Filosofia Politica Contemporanea
Filosofia Politica Contemporanea
Filosofia Politica Contemporanea
Contemporânea
Jorge L. Viesenteiner
Maria Cristina Müller
Rodrigo Ribeiro Alves Neto
(Orgs.)
ANPOF - Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia
Diretoria 2019-2020
Adriano Correia Silva (UFG)
Antônio Edmilson Paschoal (UFPR)
Suzana de Castro (UFRJ)
Franciele Bete Petry (UFSC)
Patrícia Del Nero Velasco (UFABC)
Agnaldo Portugal (UNB)
Luiz Felipe Sahd (UFC)
Vilmar Debona (UFSM)
Jorge Viesenteiner (UFES)
Eder Soares Santos (UEL)
Diretoria 2017-2018
Adriano Correia Silva (UFG)
Antônio Edmilson Paschoal (UFPR)
Suzana de Castro (UFRJ)
Agnaldo Portugal (UNB)
Noéli Ramme (UERJ)
Luiz Felipe Sahd (UFC)
Cintia Vieira da Silva (UFOP)
Monica Layola Stival (UFSCAR)
Jorge Viesenteiner (UFES)
Eder Soares Santos (UEL)
Diretoria 2015-2016
Marcelo Carvalho (UNIFESP)
Adriano N. Brito (UNISINOS)
Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros (USP)
Antônio Carlos dos Santos (UFS)
André da Silva Porto (UFG)
Ernani Pinheiro Chaves (UFPA)
Maria Isabel de Magalhães Papaterra Limongi (UPFR)
Marcelo Pimenta Marques (UFMG)
Edgar da Rocha Marques (UERJ)
Lia Levy (UFRGS)
Diretoria 2013-2014
Marcelo Carvalho (UNIFESP)
Adriano N. Brito (UNISINOS)
Ethel Rocha (UFRJ)
Gabriel Pancera (UFMG)
Hélder Carvalho (UFPI)
Lia Levy (UFRGS)
Érico Andrade (UFPE)
Delamar V. Dutra (UFSC)
Diretoria 2011-2012
Vinicius de Figueiredo (UFPR)
Edgar da Rocha Marques (UFRJ)
Telma de Souza Birchal (UFMG)
Bento Prado de Almeida Neto (UFSCAR)
Maria Aparecida de Paiva Montenegro (UFC)
Darlei Dall’Agnol (UFSC)
Daniel Omar Perez (PUC/PR)
Marcelo de Carvalho (UNIFESP)
Produção
Antonio Florentino Neto
Capa
Adriano de Andrade
Comitê Científico: Coordenadoras e Coordenadores de
GTs e de Programas de Pós-graduação
F488
Filosofia política contemporânea / Organização Maria Cristina
Müller...et al -- São Paulo: ANPOF, 2019.
152 p.
ISBN: 978-85-88072-79-4
O enigma da biopolítica 41
Davi Maranhão De Conti
Por uma política não intensificada: Walter Benjamin leitor de Erich Unger 76
Márcio Jarek
Esta coletânea foi organizada com base em parte dos trabalhos apresentados
tanto nas sessões temáticas quanto na reunião do Grupo de Trabalho “Filosofia Política
Contemporânea” no XVIII Encontro Nacional da ANPOF, realizado em outubro de
2018, na Universidade Federal do Espírito Santo – UFES (Vitória-ES). Desde 2010,
o GT “Filosofia Política Contemporânea” vem se consolidando como um espaço de
reflexão conjunta e discussão crítica sobre as possibilidades e impossibilidades atuais da
política efetivamente democrática, conferindo visibilidade às pesquisas desenvolvidas no
âmbito dessa relevante área da investigação filosófica. Mediante distintas perspectivas
teórico-conceituais – de diálogos contemporâneos com Nietzsche e Schmitt ao exame
das contribuições originais de Hannah Arendt, passando pelas reflexões de Foucault,
Agamben e Esposito, entre outros importantes pensadores – pretende-se discutir o lugar
e o sentido da vida política na atualidade. A cada edição dos encontros da ANPOF, o
GT “Filosofia Política Contemporânea” fortalece essa rede de pesquisadores e estudantes,
promovendo a convergência teórica e temática das pesquisas nessa importante área,
estimulando as atividades conjuntas entre os membros do GT, os pesquisadores do seu
Núcleo de Sustentação, estudiosos convidados e o público em geral.
O interesse pelas atividades do GT “Filosofia Política Contemporânea” é significativo.
Assim, no sentido de receber os trabalhos encaminhados e oportunizar uma ampla discussão
entre os pesquisadores da filosofia política contemporânea, o GT organizou suas atividades
no XVIII Encontro em dois momentos distintos mas complementares: reunião do Núcleo
de Sustentação e Apoio do GT e sessões temáticas. A reunião do Núcleo de Sustentação e
Apoio privilegiou a interlocução das pesquisas de seus componentes e, para tal, a dinâmica
utilizada teve como centro a apresentação de um tema-problema por um dos membros e
sua discussão por um ou dois outros membros. Houve uma troca prévia dos textos para
permitir o aprofundamento das reflexões e a construção e reconstrução das argumentações
e compreensões, promovendo-se verdadeiro diálogo entre as pesquisas. Foram apresentados
sete trabalhos e nove debatedores. As sessões temáticas receberam vinte e um trabalhos de
estudantes e pesquisadores de diversos Programas de Pós-Graduação do país. Foram três
dias de intenso e rico trabalho. Esta coletânea publica textos de ambos os momentos.
Compõem a coletânea textos que apresentam a reflexão sobre a política, a ética e
a estética de Foucault, Marco Aurélio e Pierre Hadot, sobre a biopolítica, o pensamento
político de Roberto Esposito, a política de Walter Benjamin e Erich Unger e as contribuições
de Judith Butler ao debate político contemporâneo e a reflexão política de Hannah Arendt
e seus conceitos de fenomenologia, verdade, mentira, poder, violência e autoridade. Uma
monstra significativa da diversidade e da liberdade de concepções e reflexões críticas
possíveis sobre a vida política contemporânea.
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Revolução e republicanismo em Hannah Arendt
Elementos republicanos
Este artigo tem a pretensão de investigar a presença de alguns dos elementos
do pensamento republicano na obra de Hannah Arendt, isso por entendemos que,
na contemporaneidade, Arendt contribui de forma significativa para se pensar o
republicanismo. Nesse sentido, não podemos desconsiderar que tal prerrogativa nasce
principalmente do fato de suas obras estarem fortemente marcadas pelos principais
acontecimentos do início da modernidade e dos séculos seguintes, como as revoluções
burguesas e a catastrófica experiência do fenômeno totalitário, que rompeu de forma
significativa com a divisão entre o público e o privado, tema que também ganha destaque
nas obras de nossa autora.
Dessa feita, acreditamos que Hannah Arendt pode e deve ser lida como uma autora
do republicanismo, se podemos assim dizer, de um tipo específico de republicanismo, a
saber, o republicanismo contemporâneo. No entanto, é preciso ficar claro de que teoria
republicana estamos falando. E, por outro lado, se interpelar até que ponto Arendt é ou não
influenciada por algumas das principais vertentes do republicanismo que se expandiram
pelo todo o século XIX, sem esquecer que sua leitura do republicanismo sofre fortes
influências de pensadores como Montesquieu e Maquiavel.
Os elemento republicanismo que por hora pretendemos analisar a partir de Arendt,
são os presente em sua obra Sobre a Revolução (1963), publicada doze anos após a publicação
de Origens do Totalitarismo (1951), obra em que Arendt procura lançar alguns fios de
esperança ao nosso tempo, sobretudo no que se refere a política, tendo como referência
a envergadura das revoluções setecentistas, que tinham como objetivo a efetivação da
liberdade pública por meio da fundação e constituição da república. Seu texto nos desperta
para refletir sobre os acontecimentos e sermos capazes de perceber a mensagem que eles
transmitem para nossos dias; ou, nas palavras de Arendt, que herança ou testamento nos é
deixado ou se perdeu no decurso das revoluções.
Passemos ao tema. Em Sobre a Revolução, logo no início do capítulo sobre a Fundação
I: Constitutio libertatis, Arendt afirma ao fazer referência a Robespierre: “o objetivo supremo
da revolução, a fundação da liberdade, e sobre a tarefa concreta do governo revolucionário,
a instauração de uma república” (ARENDT, 2011. p. 188). Sérgio Cardoso, ao se referir
ao republicanismo revolucionário, ressalta que essa experiência reflete um modelo que
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Antônio Batista Fernandes
tem sua grande motivação na criação de “um espaço comum equalizador, definido pela
implicação de todos os cidadãos no sistema das decisões políticas” (CARDOSO, 2000, p.
29). Tal realidade só se torna realmente possível a luz do regime republicano, que promove
a interação de todos e sua participação efetiva nos corpos políticos, esse é o objetivo da
revolução segundo Arendt, a criação do espaço de aparição política, de fundação e garantia
da liberdade pública por meio da instauração da república.
Assim, no que tange a nossa proposta, não podemos fugir da pergunta: a que
republicanismo podemos vincular Hannah Arendt? Nunca foi a preocupação de Arendt
discorrer sobre as diferentes vertentes e teorias que deram origem ao republicanismo,
mas sim encontra nesse pensamento os conceitos e categorias que são necessários para se
pensar a questão política, reforçando assim seu interesse pela tradição republicana, sem
que, citando Canovan (1992), sua versão do republicanismo se associe a qualquer um dos
modelos que ela herdou (Romano ou Americano). Portanto, em Arendt, a compreensão
de alguns conceitos ligados ao pensamento republicano são fundamentais, tais como:
revolução, fundação, autoridade, poder, violência, promessa, poder constituinte e forma
constitucional dentre outros que formam o arcabouço teórico do pensamento de nossa
autora. Segundo André Duarte (2013), Hannah Arendt dá a esses conceitos uma definição
própria e que muitas vezes fogem da forma como usualmente são concebidos, característico
do modo de pensar de nossa autora, descrito pela própria Arendt como um pensamento
sem amparos.
O interesse de Arendt pelo republicanismo decorre do fato dessa tradição se
caracterizar “como uma corrente de pensamento que concede grande valor a política
e a vida pública” (BIGNOTTO, 2013, p. 9). Os tempos sombrios vivenciados pela
contemporaneidade atestam um cenário de apatia política e distanciamento do homem
da cena pública, o afastamento da vida pública, a ascensão da esfera da vida privada e o
desinteresse pela política foram os ingredientes necessário para o surgimento dos regimes
totalitários do nazismo e do stalinismo. Desse modo, podemos dizer que foi o terror da
experiência totalitária que aproximou Arendt do pensamento republicano, enquanto
tradição que, segundo Bignotto, conservou “seu interesse pela liberdade, pela afirmação da
vida ativa e pela defesa do interesse comum” (2013, p. 12).
Nesses termos, não há como negar que Arendt se inscreve no rol dos autores do
republicanismo contemporâneo, talvez mais estritamente da vertente que denominamos
por constitucionalismo republicano, o que não significa dizer que o vínculo de Arendt ao
republicanismo represente uma continuidade das ideias da tradição em seu pensamento,
mas que partindo da experiência fundacional das tradições, que de alguma maneira nos
tocam pelo passado, poderemos sem dúvida elaborar relações com o universo teórico do
pensamento republicano e, com isso, abordar com mais propriedade as questões de nosso
tempo.
Sem dúvida existem muitos elementos de proximidade entre o pensamento de
Arendt e a tradição republicana, mas algo que não podemos desconsidera nesse contexto
é a importância que as revoluções modernas representam para essa aproximação. Pois, é
somente por meio do resgate da importância dos eventos revolucionários, que marcaram
de maneira significativa o século XVIII, que poderemos compreender a importância
desse fenômeno na constituição da liberdade, fim a qual deveriam se destinar todas as
revoluções.
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Revolução e republicanismo em Hannah Arendt
Revolução e republicanismo
As Revoluções marcam o momento em que se demonstra à capacidade dos homens
para a novidade, expressam por meio do aparecimento do sistema de conselhos a esperança
da constituição de novas comunidades política, os conselhos, segundo Arendt, nunca
“apareceram como resultado de uma tradição ou teoria revolucionária consciente, mas de
um modo totalmente espontâneo; cada vez como se nunca tivesse havido nada semelhante
antes” (2008, p. 199). O fenômeno revolucionário na obra de Arendt é fundamental para
se estabelecer a relação entre novidade e liberdade como fundamento da experiência
política. A proposta de Arendt na compreensão desse fenômeno consiste no fato de que as
revoluções aparecem no campo da política como eventos únicos, capazes de nos colocar de
maneira radical diante do problema do começo e de sua irreversibilidade.
Conforme destaca a autora em Origens do Totalitarismo:
Tal passagem, que remete a capacidade humana de começar coisas novas, que
Arendt encontra na obra de Santo Agostinho, e retoma em muitos de suas obras, pode
nos conduzir a eventos políticos como também a eventos que negam inteiramente a
política, como os regimes totalitários. Assim, o problema principal da autora não consiste
em entender os eventos revolucionários sobre uma perspectiva meramente histórica, mas
principalmente como gérmen, que torna possível o espaço de aparecimento da liberdade
pública e a fundação de um corpo político ancorado na experiência de um novo início.
O que as revoluções significaram foi possibilidade da criação de uma nova forma
de Estado, que não estivesse fundada em nenhuma forma preestabelecida de organização,
mas no desejo de liberdade que impulsiona a ação política2. O principal propósito das
revoluções sempre foi o nascimento da liberdade, não apenas no sentido de liberties, que
configura a conquista de direitos civis num governo constitucional, mas, sobretudo, no
sentido político. Para Hannah Arendt, as revoluções sempre estiveram relacionadas com
duas realidades, de um lado a libertação como necessária para a ausência de restrições; de
outro a liberdade, como modo político de vida.
Logo, foi a experiência da liberdade, enquanto realidade nova vivenciada pelos
homens das revoluções, aliada a novidade do evento em si, que constituíram o páthos
das revoluções modernas, portanto, é somente nessas circunstâncias que podemos falar
de revolução. Assim sendo, o que as revoluções modernas ensinaram aos homens de seu
tempo foi que a experiência de ser livre é realmente possível, atestando que o novo pode
sempre surgir a partir de uma interrupção do curso linear e contínuo da história.
É dessa experiência da liberdade que surgiu os princípios da liberdade pública e da
felicidade pública que as duas revoluções setecentistas deixam se perder. Ao iniciar o capítulo
sobre A tradição revolucionária e seu tesouro perdido, último capítulo de Sobre a Revolução,
Arendt se utilizado do aforismo poético de René Char3 “nossa herança não é precedida
2 De acordo com Pancera, a noção arendtiana de revolução “vai além da mera quebra dos quadros conceitual e valo-
rativos constituídos, para pensar a ação como instituinte, como criadora de algo novo, ação que tem na sua base essa
nova concepção de poder que Arendt formula.” (PANCERA, 2013, p. 145).
3 Hannah Arendt vai utilizar o mesmo aforismo no prefácio de Between Past and Future, com o mesmo propósito, de
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Antônio Batista Fernandes
de nenhum testamento” (ARENDT, 1973, p. 215), para se referir à herança deixada pela
tradição revolucionária sem ser precedida por nenhum testamento. Tal herança ou tesouro
representa o recebimento de uma dádiva desprovida de um nome, e de sua impossibilidade
de ser transmitida às gerações futuras sobre a forma de herança. O tesouro que foi pedido
nas revoluções significava o nascimento de uma forma inteiramente nova de governo por
meio do surgimento do sistema de conselhos. Para Arendt, a incapacidade dos homens das
revoluções para conservar e transmitir a herança recebida constituiu o principal fracasso
das revoluções, que não conseguiram “converter em forma de governo a experiência do
sistema de conselhos” (CORREIA, 2014, p. 206).
Segundo Arendt (2011), o espírito revolucionário que nasceu das revoluções foi sendo
posteriormente esquecido no momento em que as revoluções falharam em lhe fornecer
uma instituição duradoura. A fundação da república não representou para os homens da
revolução o surgimento de um espaço que permitisse o aparecimento da liberdade pública
ou da felicidade pública. Assim, como a própria Arendt frisa em uma menção a Jefferson,
“a revolução tinha dado liberdade ao povo, mas falhara em fornecer um espaço onde se
pudesse exercer essa liberdade” (ARENDT, 2011, p. 297).
Nesse sentido, para Arendt, o conceito de fundação assume uma importância crucial,
pois concilia os princípios de estabilidade e novidade. A principal referência de nossa autora
para esse conceito encontra-se em Roma, pois “foi em Roma que a fundação se tornou
central para toda a vida pública da cidade e estava vinculada com todos os grandes feitos
dos cidadão e com a grandeza da república que tomou forma com os anos” (RUBIANO,
2016, p. 191). Assim, segundo Avritzer (2007), o conceito de fundação e a recuperação
do conceito de autoridade configuram um dos elementos mais puramente republicano da
obra de Hannah Arendt. Logo, para Arendt, o que salva “o ato de iniciar de sua própria
arbitrariedade é que ele traz dentro de si seu próprio princípio [...] o princípio inspira os
atos que seguirão e continua a aparecer enquanto dura a ação” (ARENDT, 2011, p. 272).
Para os homens da Revolução Americana, o princípio que inspirou sua fundação e guiou
os compromissos da nova república foi a promessa, “o princípio da promessa mútua e da
deliberação comum” (ARENDT, 2011, 273), que afastou os homens da revolução da força
e os conduziu ao estabelecimento da República.
Torna-se importante compreender o modo como Arendt desenvolve o conceito de
promessa mútua a partir da experiência das Revoluções. Nessa direção, Helton Adverse
nos lembra sobre a importância da promessa para os homens da Revolução, enquanto
mecanismo que possibilita a constituição de um espaço político onde o poder e a liberdade
possam aparecer.
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Revolução e republicanismo em Hannah Arendt
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Antônio Batista Fernandes
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Revolução e republicanismo em Hannah Arendt
Hannah Arendt frente à democracia liberal e a “um modelo de soberania política centrado
em um governo de estado como portador do poder soberano” (MULDOON, 2011, p. 410).
Existe em Arendt a certeza de que é real “a possibilidade de se formar um novo conceito
de estado. Um estado-conselho [...], para o qual o princípio de soberania fosse totalmente
discrepante” (ARENDT, 2008, p. 201), embora a própria Arendt assuma que tal realidade
talvez só seja possível apenas “no encalço da próxima revolução” (ARENDT, 2008, p. 201).
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Antônio Batista Fernandes
Referências bibliográficas:
ADVERSE, Helton. Uma república para os modernos. Arendt, a secularização e o
republicanismo. Filosofia Unisinos, n. 13, p.39-56, jan. 2012.
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_____. Between past and future. New York: Penguin Books, 1993.
_____. Karl Marx y latradicion Del pensamiento político occidental: reflexiones sobre La
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_____. On Revolution. New York: Penguin Books, 1973.
_____. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.
_____. Sobre a Revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
AVRITZER, Leonardo. Ação, Fundação e Autoridade em Hannah Arendt. Revista Lua
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BIGNOTTO, Newton (Org). Matrizes do republicanismo. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2013.
CANOVAN, Margareth.Hannah Arendt: a re-interpretation of her political thought.
Cambridge: Cambridge University Press, 1992.
CARDOSO, Sérgio. Que república? Notas sobre a tradição do “governo misto”, In:
BIGNOTTO, Newton. (org.). Pensar a república. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000, p.
27- 48.
CORREIA, Adriano. Hannah Arendt e a modernidade: política, economia e a disputa por uma
fronteira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
DUARTE, André. Hannah Arendt e o pensamento político: a arte de distinguir e relacionar
conceitos. Revista Argumentos, v. 5, n. 9, p. 39-62, jan./jun. 2013.
PANCERA, Carlo Gabriel Kszab. Arendt e Maquiavel: fundação, violência e poder no
pensamento republicano. Argumentos: Revista de Filosofia, Fortaleza, v. 5, n. 9, p. 140-153,
jan./jun. 2013.
MULDOON, James. The Lost Treasure of Arendt’s Council System. Critical Horizons,
12.3, p. 396-417, 2011.
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O caráter psicagógico nas meditações de Marco Aurélio...
Assistimos, nos últimos anos, um renovado interesse pelas escolas filosóficas antigas,
particularmente o estoicismo e o cinismo. Um dos principais motivos dessa volta aos gregos,
se deve aos estudos desenvolvidos por M. Foucault nos seus últimos cursos no Collège de
France,2 onde analisa por meio do método genealógico as formas de governamentalidade e
os modos de subjetivação no ocidente. Foucault interessou-se pela dimensão prática que a
filosofia antiga adquiriu por meio das técnicas de si praticadas nas escolas filosóficas antigas,
enfatizando a ética do cuidado de si (epimeleia heauto) e interpretando a filosofia antiga
como uma estética da existência. As pesquisas foucaltianas foram fortemente influenciadas
pela proposta filosófica de Pierre Hadot que vinculou a filosofia [das escolas filosóficas
antigas] ao modo de vida, numa perspectiva existencial - espiritual. Nesse sentido,
gostaríamos de destacar a prática estoica, pois ela se apresenta como uma fonte filosófica
originaria inesgotável de inspiração para repensar a dimensão ética, estética e política de
nosso tempo. Especificamente nos interessa, apresentar a interpretação que Hadot faz das
Meditações de Marco Aurélio como um exercício espiritual. Aprofundar essa interpretação
permite, tanto uma maior compreensão do estatuto ético, estético e político do estoicismo
daquela época, quanto, se deixarmos de lado os apelos que dizem respeito, exclusivamente,
à época greco-romana, uma instancia interpeladora e instigadora das nossas atuais formas
de compreender e viver aquelas dimensões filosóficas; e das nossas opções de relação com
o mundo, com os outros e com consigo mesmos.
Em definitiva, a proposta de Hadot possibilita de fato repensar a prática filosófica,
não apenas a antiga, mas também a atual. Frente a um contexto, caracterizado pela
imposição de modelos de subjetivação que passam do cuidado ao controle, à dominação e
à aniquilação da autonomia do outro. A proposta hadotiana vem ao encontro da discussão
sobre qual o lugar que cabe à filosofia na criação de novos conceitos e novas práticas, enfim,
para o surgimento de novas formas de vida, que possam ser alternativas àquelas que nos
são impostas.
22
Carolina Molina Reyes
e teriam uma função formativa tanto para quem as prática (o próprio autor da obra)
como para os seus ouvintes – quando os há. As obras teriam portanto o objetivo de
guiar, conduzir, educar, formar. Daí o seu caráter psicagógico ou seja, de condução da
alma.
Dita compreensão deriva e forma parte de uma abordagem maior, a saber, de sua
interpretação da filosofia antiga como forma de vida desenvolvida ampla e detalhadamente
no ano 1995 na obra O que é a filosofia antiga? Nessa obra e depois de longos anos de
estudo e dedicação especializada principalmente a textos gregos, neoplatónicos e estoicos,
Hadot conclui que a Filosofia antiga foi verdadeiramente um fenómeno histórico-
espiritual. A filosofia na antiguidade era antes de tudo uma forma de vida, um exercício
espiritual destinado a atingir o ideal de sabedoria proposto por uma determinada escola
filosófica. Distante da representação atual onde predomina o discurso teórico, especializado
e, muitas vezes desvinculado da vida, a filosofia antiga não se compreendia sem uma estreita
relação entre a vida filosófica e o discurso filosófico. Seguir uma vida filosófica pressuporia
primeiramente uma escolha, uma opção por um determinado estilo de vida que implicaria
uma transformação total do ser e uma determinada visão de mundo. É a opção por uma
determinada vida filosófica, que posteriormente precisará sustentar-se ratificar-se, motivar-
se e influenciar-se pelo discurso.
Cada escola filosófica apresenta um ideal de sabedoria e uma atitude existencial
a ser alcançada. Essa atitude e esse ideal poderá ser adquirido por meio da prática de
determinados exercícios espirituais; de ordem física, discursiva, ou intuitiva, a través
dos quais se procura atingir essa transformação e conversão existencial, viver a atitude
fundamental e alcançar o ideal de sabedoria proposto pela escola filosófica escolhida.
Se por um lado cada escola filosófica apresenta um determinado modelo de sabedoria,
todas elas tem um pressuposto comum; o homem se encontra num estado de angustia,
de agonia proveniente da ignorância, e do erro nos juízos de valor às coisas. É frente a
essa angustia que a filosofia se apresenta como um caminho terapêutico para conquistar
a tranquilidade da alma (ataraxia). Dentre as escolas filosóficas antigas os estoicos
caracterizam-se pela atitude existencial da ataraxia, isto é, a imperturbabilidade da alma.
Ela será atingida através da atitude espiritual fundamental do estoico, a atenção (prosochè),
a vigilância permanente e atenta da consciência de si. É essa atitude que lhe permitirá viver
a sua escolha; a de uma vida na qual nenhum pensamento, nenhum desejo, nenhuma ação é
guiado por outra lei que não outra que a da Razão Universal. (HADOT, 2013).
23
O caráter psicagógico nas meditações de Marco Aurélio...
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Carolina Molina Reyes
O estoicismo de Epíteto
Vemos que ao igual que os estoicos anteriores para Epíteto o estoico delimita
o centro de autonomia na a alma, como um princípio diretor (hegemonikon). É nesse
princípio diretor que se situa a liberdade e o verdadeiro eu, a possibilidade do bem ou do
mal moral. (HADOT, 2013). Porém, a diferença dos seus antepassados, para Epíteto - e
logo também para Marco Aurélio a alma (o princípio diretor ou hegemonikon) possui agora
três atividades: o assentimento, o impulso e o desejo. É função da alma:
Desenvolver um discurso interior. Ao receber as imagens provindas das sensações
do corpo, a alma elabora um discurso interior, um juízo e diz a si mesma o que é para ela
aquele acontecimento ou objeto que está ante seus olhos. Emerge assim o chamado discurso
interior, isto é, o juízo emitido sobre determinada representação. (HADOT, 2013). Para
Epiteto devem aceitar-se apenas as representações adequadas (kataléptijé) ou seja, aquelas
que se detêm no que se percebe, sem acrescentar nenhum elemento a mais. Observemos o
exemplo dado pelo próprio Epíteto:
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O caráter psicagógico nas meditações de Marco Aurélio...
4 O estoicismo fundamenta-se na crença de um instinto de conservação de si mesmo, de amor a sua própria existência
e a todo o que possa conservá-la. É esse instinto quem conduz à coerência consigo mesmo e tende à Razão Universal.
26
Carolina Molina Reyes
Acolhe com alegria tudo o que lhe é dado em partilha pela natureza
universa (1)
VIII, 47: Se te afliges a causa de uma das coisas exteriores, não é ela que
te turba, senão teu juízo respeito a aquela coisa (3)
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O caráter psicagógico nas meditações de Marco Aurélio...
Os três topoi não aparecem nas Meditações de Marco Aurélio de maneira episódica,
porém, desde o Livro II até o Livro XII, cada uma das meditações não são outra coisa que
repetir e praticar fielmente a disciplina indicada por Epiteto. São exercícios de atualização
e assimilação dos três topoi, ainda que não seja de modo explícito nem utilize sempre os
termos de juízo, assentimento ou desejo, Marco Aurélio está seguindo fielmente a estrutura
tripartite dos topoi que Epiteto tinha instaurado como askesis, como exercício espiritual.
(HADOT, 2014). As Meditações não são mais do que o reflexo do esforço com que Marco
Aurélio realiza os exercícios filosóficos com a intensidade de uma experiência mística. De
fato,
28
Carolina Molina Reyes
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O caráter psicagógico nas meditações de Marco Aurélio...
Referências bibliográficas:
ARNAIZ. Gabriel: Relevancia de las aportaciones de Pierre Hadot y Michel Onfray para
la Filosofía Práctica. A Parte Rei, São Paulo, Julio 2007, n. 52. p. 1-9]
BOSCH-VECIANA; Antoni. Pierre Hadot, lector de l’antiguitat clàssica: la
contemporaneïtat de la vida filosófica. Annuari de la Societat Catalana de Filosofia XXI,
2010. 7-46.
CASTRO Henrique. Introdução às Meditações de Marco Aurélio. Universidade
Fluminense. 2011
COLARES. Lorrayne. Comentarios sobre as relações entre discurso e modo de vida
segundo Pierre Hadot. In: Revista Ética e Filosofia Política, n. 18, vol. II. dez./2015.
FERNANDEZ José Miguel. Pierre Hadot y el estudio de la filosofía antigua como forma
de vida. Tese (Licenciatura)- Pontificia Universidad Católica de Chile, 2012. “Orientador:
Prof. Dr. Jorge Martinez”.
FERREIRA Favio. Pierre Hadot e os exercícios espirituais: a filosofia entre a ação e o
discurso. In: Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, jan./jun. 2011p. 99-111.
FORCE. Pierre: The teeth of time: Pierre Hadot on meaning and misunderstanding in
the history of ideas. In: History and Theory 50. Fev./2011, p. 20-40.
HADOT, Pierre. A Filosofia como maneira de viver: Entrevista de Jeannie Carlier e
Arnold I. Davidson. Trad. Lara Christina de Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2016.
_____ Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. Trad. Flavio Fontelle Loque e Loraine
Oliveira. São Paulo: É realizações Editora, 2014.
_____ La ciudadela interior. Trad. María Cucurella Miquel. Barcelona: Alpha Decay, 2013.
_____ La filosofia como forma de vida. Conversaciones com Jeannie Carlier y Arnold I.
Davidson. Barcelona: Alpha Decay, 2009.
_____ O que é a filosofia antiga? Trad. Dion Davi Macedo. 3. ed. São Paulo: Edições
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OLIVEIRA. Loraine. Dossiê Pierre Hadot: A filosofia como modo de vida. In: Archai, n.
18, sep.-dez./2016, p. 285-289.
30
Daniel Arruda Nascimento
Introdução
Esta comunicação tem a dupla intenção de debater o texto As democracias de massa
e seu germe autoritário: conexões (im)pertinentes da governamentalidade biopolítica de Foucault
e os dispositivos aclamatórios da soberania em Agamben de Castor M. M. Bartolomé Ruiz e
retirar da sombra uma preocupação expressa por Chantal Mouffe e Ernesto Laclau em
Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical: o fato do pensamento de
esquerda se encontrar hoje em uma encruzilhada2. Buscarei nesta contribuição provocativa,
como não poderia deixar de ser, enfrentar igualmente o problema da tripla decepção com
a incapacidade do Estado de Direito em responder aos apelos sociais e às demandas
institucionais que o nosso tempo trazem à tona, com os modelos de democracias formais
disponíveis ao nosso público e com a própria política, o que atinge inclusive as alternativas
que costumam se colocar dentro do que se convencionou chamar de esquerda3. Superada
a fase da crítica do consenso, uma adoção antagônica do sentido de democracia resulta
na sua captura por dispositivos espetaculares, dispositivos que produzem e reproduzem o
espetáculo, minando a própria democracia.
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As encruzilhadas do pensamento de esquerda: entre as democracias...
não previstos no pensamento clássico, toda uma profusão de lutas e movimentos sociais,
chacoalharam os seus cânones contrariando convicções assumidas como verdades, mas
podem ter como resultado o avanço rumo a sociedades menos desiguais. Proponho aqui
somar a essas razões outras para ampliar a visão dessas encruzilhadas do pensamento de
esquerda, a partir das observações trazidas pelo professor Castor Ruiz em diálogo com
Michel Foucault e Giorgio Agamben. Podemos perquirir se a realidade contraditória que
embala o descontentamento com a política nos nossos dias não está também infiltrada
na militância de esquerda, especialmente naquela que se avizinha. Em que medida as
autodeclaradas militâncias de esquerda não se inserem na aludida governamentalidade
biopolítica, não estão capturadas pelas técnicas de administração de condutas que esvaziam
os seus participantes de autonomia? Técnicas estas que aplicadas em larga escala e de maneira
difusa resultam em um processo de subjetivação que dá origem ao que reconhecemos
como sociedade de massa. Em que medida estas militâncias de esquerda não teriam aderido
sem a reserva crítica necessária aos apelos da opinião pública, talvez como um modo de
sobreviver aos impactos dos seus fracassos históricos4? Ou não seriam elas mesmas a
repercussão inconfessa e surpreendente do dispositivo da glória, da ritualização do poder
pelos governos a fim de garantir sua legitimidade e estabilidade, tão dependentes dos atos
aclamatórios, da opinião pública expressa nos meios de comunicação e nas pesquisas de
opinião? Em que medida essas militâncias não estariam a reboque das assim nominadas
democracias espetaculares e do correspondente império da aparência?
Notemos que em 1990, com a publicação de La comunità che viene, já preocupava
ao filósofo italiano o confinamento histórico da natureza humana na forma do espetáculo
(cf. AGAMBEN, 2001, p. 44). Qualquer nome que se queira dar ao processo que nos dias
atuais domina a história mundial, seja capitalismo, seja democracia espetacular, aduz a uma
imensa acumulação de imagens e representações. Em suas palavras, “quando, em novembro
de 1967, Guy Debord publicou A sociedade do espetáculo, a transformação da política e da
inteira vida social em uma fantasmagoria espetacular não havia ainda atingido a figura
extrema que hoje se tornou perfeitamente familiar” (AGAMBEN, 2001, p. 63). Guy
Debord estava certo quando escreveu que o seu livro tinha o mérito de não ser desmentido
pelos acontecimentos posteriores à sua publicação, mas antes ter sido confirmado por eles
(cf. DEBORD, 2017, p. 33)5. Também estava certo quando observou que pouca gente
se interessaria pelo seu livro (cf. DEBORD, 2017, p. 172)6. Cuida-se de um livro desses
que vale a pena ter escrito. Não apenas desses que valem a leitura, mas desses pelos quais
vale a pena ter dado uma vida. Seus aforismos incandescentes são densos e deixam um
longo rastro. O autor parecia saber que havia produzido um trabalho sem comparação.
Mais que isso, um trabalho que encheria o mundo de ideias. O seu livro é resolutamente
fundamental para se compreender não apenas o século vinte, como o século vinte e um.
Mezzi senza fine: note sulla politica, publicado em 1996, quando Giorgio Agamben iniciava
o seu programa político-filosófico mais conhecido (Homo sacer), é ainda mais explícito
na referência ao legado do cineasta e escritor francês, ao dedicar um capítulo inteiro aos
Comentários sobre a sociedade do espetáculo de 1988, ainda que na modalidade de glosas
4 Tenho consciência de que o tema do fracasso histórico das esquerdas é controverso. Considero que há movimentos
históricos de esquerda que foram vitoriosos na ampliação de direitos e na proteção de minorias. Considero, sem
prejuízo, que governos que se instalaram sob a batuta de movimentos de esquerda terminaram, na maioria das vezes,
em um hediondo fracasso. Não por não terem sido capazes de se manter hegemonicamente até os dias atuais, mas
por não terem, na imensa maioria dos casos, sido capazes de permanecer fiéis aos ideais que os promoveram.
5 Advertência à edição francesa de 1992, dois anos antes de sua morte em 1994.
6 Prefácio à quarta edição italiana de 1979.
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Daniel Arruda Nascimento
marginais. “Os livros de Debord constituem a análise mais lúcida e severa da miséria e da
servidão de uma sociedade – aquela do espetáculo, na qual nós vivemos – que estendeu
hoje o seu domínio sobre todo o planeta” (AGAMBEN, 2005, p. 60). Segundo o filósofo,
“apesar das aparências, a organização democrático-espetacular-mundial que vai assim se
delineando corre o risco de ser, na realidade, a pior tirania que jamais surgiu na história
da humanidade, contra a qual a resistência e o dissenso serão de fato sempre mais difíceis”
(AGAMBEN, 2005, p. 71). O que vale para o pensamento de esquerda, com toda certeza,
especialmente quando opta, ou é capturado, pelo caminho do espetáculo: também para o
pensamento de esquerda e para as suas práticas é difícil resistir à sua tirania.
Precisamos então compreender o que é o espetáculo. O espetáculo é a afirmação da
aparência, o conceito de espetáculo designa a aparência organizada socialmente (DEBORD,
2017, p. 40). Toda a vida em sociedade passa a representar a si mesma pelo quinhão da
espetacularização. O que é bom deve aparecer e apenas aquilo que aparece é bom. Aparecer
é vital, como se aparece também é. Por isso, não apenas aparecer, mas parecer ser, parecer
ter. Uma seleção de imagens paira sobre o mundo sensível e convence que é o sensível
por excelência, o único caminho pelo qual o mundo se dá a conhecer. Uma duplicação
de mundo que poderia ser batizada de platonismo cego. Mais que isso, pelo movimento
essencial do espetáculo que se alastra por toda a terra, todo o mundo fenomênico se rende
à circulação de mercadorias. “Reconhecemos a nossa velha inimiga, a qual sabe tão bem,
à primeira vista, mostrar-se como algo trivial e fácil de compreender, mesmo sendo tão
complexa e cheia de sutilezas metafísicas, a mercadoria” (DEBORD, 2017, p. 51). “O
espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social” (DEBORD,
2017, p. 54), ele é o produto da exploração e da expropriação, é o que circula com valor
social e econômico. Produção, sim, mas também falsificação. A dinâmica espetacular cria
imagens sem correspondência, falsifica a vida social e orienta os desejos de consumo. Nos
Comentários sobre a sociedade do espetáculo, Guy Debord escreve que na era do espetacular
integrado o espetáculo produz a realidade, fabrica a realidade, falsifica a realidade (cf.
DEBORD, 2017, p. 197). Antes, ele havia escrito o que se segue.
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As encruzilhadas do pensamento de esquerda: entre as democracias...
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Daniel Arruda Nascimento
Com trinta e cinco anos Guy Debord está preocupado com a oposição espetacular
dos papéis ilusórios entre adultos e jovens, porque onde se instalou o consumo abundante,
onde tudo se tornou mercadoria, “não existe nenhum adulto, dono da própria vida, e a
juventude, a mudança daquilo que existe, não é de modo algum propriedade desses
homens que agora são jovens, mas sim do sistema econômico, o dinamismo do capitalismo”
(DEBORD, 2017, p. 66). Nem tudo que é novo é melhor e essa oposição entre a maturidade
e a juventude não passa de mais uma falsa ilusão quando o mundo das aparências se tornou
universal. Novidades que carregam o afã da juventude facilmente se convertem em molas
espetaculares. Neste sentido, nenhum exemplo é melhor que as redes sociais. Sem conhecer
a nova realidade informatizada, Guy Debord já se mostrava profundamente incomodado
com a multiplicação do fluxo de imagens pelos computadores, tendo alertado para a
perdição da linguagem e para a generalização da subcomunicação (cf. DEBORD, 2017, pp.
146 e 151)7. O que não diria ele se soubesse que hoje carregamos esses computadores nos
nossos bolsos e mediamos por eles a maior parte diária da nossa comunicação? A não ser
por alguns desavisados, são poucos os que ainda acreditam que as redes sociais tenham
qualificado a nossa comunicação e tornado a nossa sociedade mais democrática. As redes
sociais funcionam na lógica mercadológica e contribuem para a afirmação do espetáculo e
do capital. Embora pareçam ser meios puros de comunicação, vazios de conteúdo, apenas
formas, são vitrines que se constituem na visada do mercado, a simples exposição já opera
como mercadoria. Funcionam no tempo e no espaço próprios do espetáculo. Com o auxílio
da tecnologia, duplicamos a realidade em ser e parecer ser, a partir daí tudo gira em torno da
aparência que se consegue sustentar. A polêmica afirmação de Umberto Eco na ocasião em
que recebeu o título de doutor honoris causa na Università di Torino em junho de 2015, de
que as mídias sociais promoveram o idiota da aldeia a portador da verdade, pode ser com
justiça substituída pelo reconhecimento de que as redes sociais fizeram crescer o idiota
da aldeia que mora em cada um de nós. Na disputa pela opinião pública, o uso delas pela
esquerda é um jogo na casa do adversário, para o bem e para o mal, é estar mais aparente,
mas é também tornar-se semelhante. E as chamadas fake news, ou a prática organizada do
boato, nada mais são do que a culminância natural do esquadrão espetacular.
7 Nos Comentários sobre a sociedade do espetáculo lemos que “a linguagem binária do computador também é um ir-
resistível estímulo para que se admita a cada instante, sem reservas, o que foi programado por outra pessoa, a seu
bel-prazer, pessoa que se apresenta como a fonte intemporal de uma lógica superior, imparcial e total” (DEBORD,
2017, p. 212).
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8 Para Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, todavia, os efeitos da nova cultura de massas são ambíguos, uma vez que o
acesso a um leque cada vez maior de bens pela população permite igualmente o questionamento de certos privilégios
e a rejeição das desigualdades reais (cf. LACLAU; MOUFFE, 2015, pp. 248-249).
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práticas cotidianas (cf. LACLAU; MOUFFE, 2015, pp. 154-157). Em um texto posterior
intitulado Por um modelo agonístico de democracia, Chantal Mouffe é ainda mais explícita.
Embora não amplamente aceito por democracias liberais e democracias deliberativas, o
dissenso é inerradicável e salutar para a democracia. O pluralismo de valores e interesses
em uma sociedade gera sempre antagonismos. “A objetividade social é constituída por meio
de atos de poder”, a questão do poder e dos antagonismos inerentes ao seu exercício devem
estar no centro de toda abordagem sobre a construção da democracia. “Compreender a
natureza constitutiva do poder implica abandonar o ideal de uma sociedade democrática
como a realização de perfeitas harmonia e transparência” (MOUFFE, 2005, p. 19). Em
uma sociedade de homens, não há como neutralizar o uso do poder, nem como extirpar a
presença dos antagonismos que necessariamente surgirão, nem como circunscrever o poder
a uma esfera determinada e sob controle. Por isso, a cientista política belga propõe um
modelo agonístico de democracia. Uma vez que a “política busca a criação da unidade em
um contexto de conflitos e diversidade”, que ela consiste em “domesticar a hostilidade e em
tentar conter o potencial antagonismo que existe nas relações humanas” para tornar possível
a vida em comum (MOUFFE, 2005, p. 20), a proposta é batalhar para que os antagonismos
sejam assimilados agonisticamente, que adversários no dissenso não sejam percebidos
como inimigos a serem destruídos, mas portadores de ideias a serem vencidas, com os
quais é necessário construir conjuntamente. O que apenas pode se dar, evidentemente, em
um contexto no qual certos princípios ético-políticos são reconhecidos e respeitados por
todos os envolvidos, no qual o direito de defender ideias discordantes nunca é colocado
em questão e no qual os acordos e os desacordos nunca sejam definitivos. Considerando-
se o “caráter inerentemente conflitual do pluralismo moderno”, pouco enfatizado pelos
mais bem intencionados teóricos da democracia, “o propósito da política democrática é
transformar antagonismo em agonismo” (MOUFFE, 2005, p. 21). Discordar de alguém
na esfera pública não é necessariamente adotá-lo como um inimigo e declarar guerra de
morte. É revigorante escutar a proposta da democracia agonística.
Ocorre que diante da pluralidade e dos novos antagonismos do nosso tempo, a
esquerda está mal preparada. Ernesto Laclau e Chantal Mouffe chamam a nossa atenção
para o fato da resistência à mercantilização, à burocratização e à crescente homogeneização
da vida social, assim como a formas clássicas de opressão, resultar em uma profusão de
particularismos e relações de antagonismo, e ao fato da esquerda e do seu pensamento serem
capazes de assimilar parte desses antagonismos, mas serem incapazes de compreendê-los
e assumi-los todos, descartando parte considerável desses antagonismos, classificando-os
de liberais ou, poderíamos acrescentar, simplesmente de direita (cf. LACLAU; MOUFFE,
2015, pp. 249-250). Podemos até dizer que a esquerda está mal preparada para lidar com
a explosão da liberdade de pensamento e de expressão, uma vez que apela com muita
frequência para rotularização e para o desprezo das ideias e dos interlocutores conflitantes,
assim como muitas vezes não está isenta do individualismo e da falta de autonomia que
pretende criticar. Assim, vemos jovens se aproximarem da política apenas para seguir uma
carreira rentável. Vemos jovens repetirem os gestos de velhos políticos de carreira. Vemos
jovens e velhos apostarem na performance como o filão de toda a política. Quantas vezes
vimos a execução de atos performáticos vazios de conteúdo pela simples obrigatoriedade
da performance? Quantas vezes vimos essas performances serem acompanhadas de palmas
e ovações públicas, de aclamações e gritos de apoio? Quantas vezes vimos que o mais
relevante em um debate era parecer vitorioso e não convencer pelas ideias? Claro que é do
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Davi Maranhão De Conti
O enigma da biopolítica
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O enigma da biopolítica
O que leva à nova racionalidade de poder, em que essa nova modalidade de poder
difere das anteriores, de que modo esse poder sobre a vida ganha forma ao final da Idade
Média, são algumas das questões presentes na pesquisa de Foucault. Sua análise, contudo,
não se limita ao campo histórico, uma vez que seu objetivo é compreender como chegamos
a sermos o que somos, quais desvios nos moldaram. Ao realizar uma genealogia do
biopoder, Foucault remonta ao poder pastoral, sobretudo à pastoral cristã, que caracteriza
a sociedade ocidental do medievo e que conduz aos homens como a ovelhas, em que
se estabelece uma relação biunívoca entre pastor e rebanho cujo objetivo é a salvação.
Em seguida, Foucault considera a extrapolação da pergunta acerca de como conduzir-se,
que se limitava ao escopo da Igreja, para os mais diversos âmbitos, entre eles, o espaço
do governo, que passa a ancorar os princípios de sua condução em seu fortalecimento
contínuo e ininterrupto. Finalmente, o filósofo lança luz sobre a reformulação liberal da
razão de Estado frente à emergência da figura da população, revelando a função crucial da
economia política na nova modalidade de poder.
Essa trajetória não se prende ao valor estritamente histórico da pesquisa, porque
objetiva compreender o presente, compreender o que somos, por que somos como somos.
O poder sobre a vida que se configura ao longo dos séculos não representa uma ruptura em
relação às modalidades de poder que lhe são prévias, é uma reformulação de um mesmo poder,
é a conformação do poder ao seu novo objeto: a vida população. Esclarecer a configuração
secular desse poder torna possível expor as definições do presente. As constelações de
poder-saber que definiram nosso passado e que continuam, de outras maneiras, a definir
nosso presente. O poder soberano não se desfaz, nem o poder disciplinar se apaga ao
longo dos séculos, alteram-se, reformulam-se. O biopoder não representa uma novidade
que extingue o passado, pelo contrário, é um reflexo de diversas transformações, sobretudo
aquelas por que passa a sociedade ocidental a partir do início da modernidade. É um poder
que já não estabelece uma relação negativa com a vida, que não personifica o poder de
morte característico da soberania, também não é um poder que se volta eminentemente
para o indivíduo na tentativa de torná-lo tanto mais dócil quanto mais útil, é um poder que
se concentra na vida da população, no corpo-espécie, nos processos biológicos de conjunto.
O poder de morte não desparece do horizonte da biopolítica, nem as disciplinas e
a interminável regulamentação que as caracteriza se perdem na nova mecânica do poder.
No poder sobre a vida, resultado da confluência de incontáveis fatores, resiste o poder de
morte, que se apoia agora em um racismo de Estado. Em um poder que se volta para o
incremento da vida, o racismo garante a manutenção do poder de morte, símbolo do poder
soberano. No biopoder, a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior, torna-se
um modo de melhorar a vida, de torná-la mais sã, de aumentar sua pureza. O racismo
permite que a morte não se torne estranha ao biopoder, ele é a solução para a persistência
paradoxal de um poder de morte no interior de um poder que almeja fomentar a vida.
Com o racismo, não apenas se garante a manutenção do poder de morte, como
também se abre a possibilidade de elevar esse poder ao píncaro. A morte, afinal, será
percebia como mais vida: se o outro morre, isso não significa apenas a morte do outro,
isso significa que eu vivo mais. Essa relação positiva que se estabelece entre a morte do
outro e a minha vida permite que aflore um poder de morte hiperbólico, como vimos no
Nacional-Socialismo alemão. Assim como o racismo não se dissipa com o aparecimento
do biopoder, o poder disciplinar não se desfaz, ao invés disso, renova-se, alcançando não
apenas as instituições, mas também, em certos casos, o aparato estatal.
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um dado natural, que deve sofrer intervenções apenas na medida suficiente para garantir
a segurança dos “fenômenos naturais que são os processos econômicos ou os processos
intrínsecos à população” (FOUCAULT, STP, p. 474). A natureza da população aparece
como algo a ser respeitado, a intervenção estatal não deve ultrapassar a naturalidade da
população. O arcabouço mercantilista do poder disciplinar dá lugar ao fundamento liberal
da nova modalidade de poder que desponta na Europa do século XVIII.
A ideia de uma natureza que deve basear as ações do governo ressurge, não mais
uma natureza de caráter teológico, não mais uma natureza desejada por Deus, como aquela
que fundamenta as ações do governo medieval e que se perde na formulação dos princípios
da razão de Estado, mas, antes, uma natureza do fenômeno social, uma natureza da própria
população, a população considerada como fenômeno natural que deve ser respeitado, sobre
o qual não se deve intervir, que deve ser deixado livre para encontrar seu equilíbrio natural.
Além da transformação no conhecimento biológico, que abre caminho para o
desenvolvimento da medicina e para uma reformulação das técnicas de poder, as múltiplas
modificações que marcam o ocaso da Idade Média apresentam-se como elementos da
transição que resulta no despontar do biopoder. O liberalismo, que ganha impulso a partir
de meados do século XVIII, aparece como quadro geral da biopolítica. O mercado, a
sociedade, já não devem ser incessantemente regulamentados, ao invés disso, demanda-se
agora um laissez-faire: o Estado não deve intervir indefinidamente, sua função será manter-
se vigilante, assegurar que as liberdades do mercado alcancem a todos, proporcionar um
contínuo incremento da liberdade dos fluxos comerciais. Não se trata apenas de garantir
essa liberdade, mas de fomentá-la, de aumentá-la continuamente.
O biopoder é resultado de inumeráveis cambiamentos, uma vez que reflete um
contínuo remodelar-se de um poder em movimento. A industrialização, com todas
as suas consequências sobre a habitação, sobre as condições de saneamento, é um dos
acontecimentos relevantes para a formulação dessa nova racionalidade de poder. O
horizonte de análise torna-se bastante amplo, sempre que se ilumina uma transformação
histórica é possível evidenciar mais um passo em direção à reformulação do poder. Afinal, o
biopoder é sobretudo uma consequência das diversas alterações por que passou a sociedade
europeia entre os século XVI e XVIII.
A elaboração de uma economia política, a formulação de princípios liberais, é um dos
fatores fundamentais para o alvorecer da biopolítica. Para Foucault, a análise da biopolítica
só pode ser realizada se se compreender o liberalismo, porque é no pensamento liberal que
a população desponta como fenômeno natural, como objeto central da prática de governo.
Como explica Foucault, “os sujeitos de direito sobre os quais se exerce a soberania política
aparecem como uma população que um governo deve administrar” (FOUCAULT, NB,
p. 30). A partir do liberalismo é que se formula a pergunta acerca de como devem ser
governados os sujeitos quando são entendidos tanto como sujeitos de direito quanto como
seres vivos.
O mercado – que, no mercantilismo, havia despontado como elemento crucial de
formulação das estratégias de governo –, para além de ser considerado um campo estratégico
para o fortalecimento do Estado, torna-se, com a chegada do pensamento liberal, um lugar
de veridição. O mercado é que deverá distinguir o certo e o errado no que diz respeito à
ação do governo, é ele que deverá definir a verdade em relação à prática governamental.
É a partir do desenvolvimento da economia política, em meados do século XVIII, que
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Deyvison Rodrigues Lima
I
O termo comunidade tem sofrido releituras desde as investigações de Georges
Bataille, que se recusa a compreendê-lo como uma instituição positiva fundada em um
pressuposto comum partilhado por todos. Nesse contexto, Maurice Blanchot, em La
Communauté inavouable (1983), Jean-Luc Nancy em La communauté desoeuvreé (1986)
e Giorgio Agamben em La comunità che viene (1990) repercutem a leitura batailliana,
acrescentada por traços heideggerianos: rejeitam a compreensão da comunidade seja como
uma identidade seja como uma substância partilhada. Os estudos comunitaristas da década
de 1990 dominaram a discussão sobre o tema que, porém, ganhou novo fôlego e outra
direção sob impulso do resgate das discussões do Centre de recherche philosophique sur le
politique. Assim, o político passa a ser tratado a partir da noção de ausência de fundamento
da ordem e da diferença entre política e político, por considerarem, sobretudo, a experiência
da morte como a impossibilidade da própria comunidade. O diálogo estabelecido desde
então, sob uma pitoresca influência conjunta de Heidegger e Bataille, nos lança a tarefa do
pensamento político contemporâneo: pensar a comunidade.
A questão proposta na pesquisa a seguir surge da leitura da obra de Roberto
Esposito, mais especificamente, no texto Communitas (Comunidade) de 1998: a noção
de communitas como a partilha de um munus, isto é, de uma dívida ou ausência imanente
à relação comunitária. Esposito analisa alternativas ao comunitarismo, bem como à
concepção subjetivista em geral ao propor uma análise que pretende reduzir ou expor o
sujeito, isto é, esvaziá-lo, desapropriá-lo, numa estratégia anti-humanista, anti-fundacional
ou, em seus termos, impolítica2.
A política moderna é compreendida por Esposito como uma imunização do
corpo social através da neutralização do conflito e, por conseguinte, como um processo
de institucionalização do político, isto é, desse antagonismo. Em suma, instauração da
ordem política e suas implicações, sobretudo, a forma do Estado de direito. Este paradigma
imunitário busca repelir a violência constitutiva das relações sociais a partir da proteção
1 Graduação em Direito (UFC), Mestrado em Filosofia (UFC), Doutorado em Filosofia (UFRJ) – Professor Adjunto
da Universidade Federal do Piauí.
2 A categoria de impolítico pode ser compreendida como o avesso da política, ou melhor, como aquilo da política que
é irrepresentável. Esposito utiliza o termo para designar o espaço político portador de uma irredutível negatividade,
visto sua tentativa de não se referir a algo externo a comunidade. Assim, o impolítico é o esvaziamento da política
que provoca um déficit de substância diante de sua finitude. Ao rejeitar a articulação entre imanência e transcendên-
cia, também provoca um curto circuito no tradicional problema da representação política, pois, segundo Esposito,
“l’impolitico non è altro che la enunciazione di questa irrappresentabilità”. (ESPOSITO, 1999, p. XXVII).
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Communitas: Notas sobre o pensamento de Roberto Esposito
da vida e impedir a potencial deriva comunitária como ameaça do munus que degenera as
relações humanas. Segundo Esposito, através das tecnologias imunitárias, a política moderna
tornou-se uma ambígua biopolítica. Entretanto, o que está em jogo é o pensamento da
communitas – o comum ou a relação que provoca a perda e a ausência – e como estes são
rejeitados na instauração da ordem jurídica e da unidade política através dos mecanismos
de soberania e representação, pois a modernidade com seu princípio “nolli me tangere” evita
o contato direto entre os indivíduos e estabelece a exclusividade do liame jurídico entre os
portadores de direitos subjetivos, reduzindo a possibilidade de contágio, uma vez que não
haveria relação válida que não seja mediada pela forma jurídica, institucionalizada pela
sociedade como uma comunidade perdida.
A exposição a seguir, percorre alguns argumentos do pensamento espositiano e
parte da hipótese de um ponto cego: após realizar uma reconstrução dos conceitos de
communitas e immunitas, percebe-se uma deficiência na análise da violência ou do conflito
e sua função central na concepção do político; além disso, elabora-se uma análise filosófica
e filológica sobre estes termos para demonstrar que Esposito deixa de considerar uma
possibilidade presente no prefixo cum: seu significado como “contra” e não apenas como
“com” ou generalização da relação desapropriadora. Esta possibilidade semântica ressalta
o argumento de que não é o munus que implica o perigo da relação, mas sim a partícula
cum, compreendida como relação necessariamente conflitiva, que sofre a neutralização, por
isso a individualização moderna teria como objetivo rejeitar o conflito (cum) e não apenas
o munus, pois este não seria mais do que consequência daquele.
II
Para Esposito, a discussão sobre a comunidade refere-se, paradigmaticamente, à
distinção entre Gemeinschaft e Gesellschaft, definida no referencial teórico de uma metafísica
substancialista: literalmente, uma propriedade ou qualidade em comum que dá unidade
e homogeneidade ao grupo de pessoas a partir de um “dado” partilhado por todos. O
apelo ao fundamento é explícito e repete-se o gesto universalista de pensar um ser-comum
segundo o modelo de um ser-geral com as irrenunciáveis conotações metafísicas das noções
de unidade, absoluto, interioridade, que se configuram como forma política e instituição
jurídica, ou seja, como Estado no modo de uma extensão (homogênea) do sujeito. A
leitura moderna da comunidade pode ser exemplificada seja com a obra de Ferdinand
Tönnies, Gemeinschaft und Gesellschaft (“Comunidade e Sociedade”), de 1887, seja com a
definição clássica de Max Weber, no Wirtschaft und Gesellschaft, publicado em 1922. Nesse
contexto, os autores caracterizam a comunidade como uma apropriação da essência, de
uma substância ou de uma totalidade, repousando sobre uma pertença subjetiva, tal como
um aglomerado de indivíduos. Em última instância, Esposito confirma o diagnóstico de
que o caráter metafísico da comunidade é compreendido como uma subjetividade mais
vasta, uma unidade composta de unidades menores:
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communitas e a partir dele ressalta sua formação etimológica composta pelo prefixo cum
e o radical munus: ao passo que o prefixo cum revela a presença incontornável do outro e
da relação, o radical munus apresenta um rico complexo semântico, pois significa, onus,
officium e donum. Segundo o autor, o significado do termo munus “oscila por sua vez entre
três significados não totalmente homogêneos entre si, que parecem expulsar do sentido,
ao menos reduzir a relevância, a justaposição inicial entre ‘público’/’privado’ [...] a favor
de outra área conceitual que pode ser remetida à ideia de ‘dever’” (ESPOSITO, 2006, p.
X). Segundo Esposito, o conceito de communitas se refere a um curioso dom obrigatório
marcado pela transação doadora sem a contrapartida a receber. Figura estranha ao valor de
aquisição e estabilidade do contratualismo moderno, refere-se a outro sentido de cessão ou
transferência trazido pela partícula munus. Essa característica do munus concede à relação
instaurada pela communitas um caráter desinvidualizador, ou melhor, desapropriador do
indivíduo, pois ao invés de constituí-lo a partir da garantia de uma propriedade (privada)
ou direito (subjetivo) – algo fechado em si mesmo – provoca, ao contrário, a exposição da
pessoa à finitude do outro que subtrai, isto é, à desapropriação que o munus implica no
paradoxal sentido de uma “obrigação a dar”:
Nota-se o fato de que donum (dom) pertence a um mesmo conjunto semântico que
indica dever, dívida, obrigação. Entretanto, a questão decisiva seria: “como um dom pode
ser obrigatório?” (ESPOSITO, 2006, p. XI). Não haveria de ser algo espontâneo? Com
habilidade genealógica, o autor chega à seguinte conclusão: se donum institui uma doação
obrigatória e cum refere-se à presença insistente de outrem (que está oculto, mas diferente),
cum + munus significa um tipo de relação em que o sujeito se doa incondicionalmente
ao outro (qualquer, indefinido); onde compartem uma dívida ou falta, não um direito.
Este é, conforme Esposito, o significado arcaico da comunidade, ou seja, como aquele
externo ou relação que subtrai ou corroi o sujeito. Assim, cum+munus seria uma conjunção
e disjunção. Enquanto o termo munus expressa a abertura, finitude e ausência, a partícula
cum se refere ao entre, isto é, ressalta o caráter de diferença na qual é irredutível ao mesmo
ou à unidade, pois sempre relação. Na estrutura desse vazio, não há subjetividade. E, por
isso, o pensamento moderno subjetivista cuidou de obliterar esta concepção e neutralizar
o munus.
Esposito ataca a noção de sujeito político ao afirmar que a relação do corpo social,
ou melhor, o cum-munus é a experiência da ausência de substância ou fundamento, pois a
communitas é uma existência partilhada que descentraliza a subjetividade no sentido de que
a relação não pode ser pensada a não ser, paradoxalmente, como retirada da subjetividade.
Nas palavras do autor: “Não sujeitos. Ou sujeitos de sua própria ausência, da ausência de
próprio. De uma impropriedade radical que coincide com uma absoluta contingência ou
simplesmente ‘coincide’: cai conjuntamente” (ESPOSITO, 2006, p. XIV). Entre dádiva-
dívida, o complexo semântico do termo munus indica o dom particular da reciprocidade
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sujeitos finitos recortados por um limite que não pode interiorizar porque
constitui precisamente seu ‘fora’. A exterioridade sobre a qual aparece e
que os penetra em seu comum não-pertencer. Por isso, a comunidade
não pode ser pensado como um corpo, uma corporação, uma fusão de
indivíduos que dê com resultado um indivíduo maior. (ESPOSITO,
2006, p. XIV).
III
Ao contrário dos intérpretes da modernidade, Esposito não compreende a política
a partir das categorias de legitimidade, racionalidade ou secularização, mas sim por
uma proposta bastante original: o paradigma da imunização, isto é, a proteção contra o
munus, uma negação da negação que o munus representa, como mecanismo para evitar o
contágio, a relação desinvidualizadora. O conceito de immunitas seria a forma pela qual a
modernidade protege cada um dos outros, individualizando-os, protegendo-os do contato
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Communitas: Notas sobre o pensamento de Roberto Esposito
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Se, por um lado, a communitas torna inviável a identidade individual por conta da
obrigação originária diante do outro; por outro, a immunitas é dispensa dessa obrigação e,
por conseguinte, a proteção contra os efeitos expropriativos da relação. Esse dispositivo de
proteção da vida provoca uma homogeneização a partir da neutralização do externo (ou
internalização da exceção ou do fora, que desestabiliza), isto é, indistinção entre dentro
e fora através da produção da identidade (indivíduos) e da compreensão do outro como
outro-eu (alter ego) e não como diferença, pressuposto elementar da relação. Entretanto,
tal dispositivo imunitário exige um sacrifício, aparentemente menor do que a obrigação
do munus, qual seja, o sacrifício das pulsões. A mediação racionalista se revela como um
útil mecanismo de controle dos afetos, entre conservação e exclusão da vida, tal como um
expediente de gentrificação das relações do corpo social. Se a comunidade se apresenta
como a forma da negação da individualidade, então o dispositivo imunitário é o mecanismo
que bloqueia tais consequências deletérias. A questão que se põe neste momento é a
seguinte: tal modelo societário não seria melhor do que a deriva comunitária? Não seria
um sacrifício válido diante da auto-dissolução ou do niilismo? O caso em questão, no
entanto, exige outra pergunta, mais radical: o mecanismo imunitário do Estado moderno
preenche o vazio constitutivo da comunidade? Não seria esse o mecanismo através do qual
poderíamos compreender a reação conservadora contemporânea? Se levarmos em conta
as considerações de Esposito, a comunidade mostra-se insustentável e exige prevenção,
controle, segurança e esterilização contra seu imanente conteúdo relacional, contra o perigo
que impõe ao corpo social. Todavia, quando imunizada, é exposta ao contágio mais uma
vez, pois o sistema imunitário como proteção negativa da vida combate aquilo que se faz
o tempo inteiro presente, possibilita a conservação da comunidade, mas, paradoxalmente,
pela negação de seu horizonte originário de sentido a imunização tenta afastar a lógica
do niilismo, porém, por meio da entrega ao mesmo mecanismo de destruição contra o
qual a comunidade se debate. Assim, “sacrificada para sua própria conservação. Nesta
coincidência entre conservação e sacrifício da vida, a imunização moderna alcança o ápice
da potência destrutiva” (ESPOSITO, 2006, p. XXIII). A questão em jogo é perceber
como a solução imunitária torna-se uma doença autoimune, visto que aquilo que se utiliza
para o combate do perigo ameaçador do corpo e garante a conservação da comunidade é,
paradoxalmente, aquilo que se mostra negador da própria comunidade. Ao compreender
a modernidade por este filigrana, Esposito acessa o paradoxo da biopolítica ou, como ele
denomina, abre-se a caixa-preta biopolítica que consiste no seguinte: aquilo que deveria
proteger a vida, conservá-la e promovê-la, é o que provoca a morte do corpo, no caso, uma
tanatopolítica, numa lógica que “exclui incluindo e afirma negando [...] isso significa que o
mecanismo da imunização pressupõe a presença do mal que deve combatido” (ESPOSITO,
2002, p. 10-11). Em última instância, o expediente imunitário consiste num processo de
insensibilização e despolitização do espaço comunitário. Numa palavra, do político, isto é,
da relação e do conflito.
IV
O motivo da reflexão sobre a comunidade se impõe através de acontecimentos
recentes: em nome da comunidade, da humanidade, de uma nação, terra ou ideologia
desencadeou-se uma máquina de exceção e extermínio: o comum opera através da exclusão
daquilo que, pretensamente, não participa da sua origem. Ora, até este ponto, Esposito nos
fornece uma chave de leitura irretocável: a realização da comunidade, ao menos o que se
concebe tradicionalmente como comunidade, é metafísica, impossível e leva à morte, pois
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Deyvison Rodrigues Lima
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Communitas: Notas sobre o pensamento de Roberto Esposito
Referências bibliográficas:
ESPOSITO, Roberto. Categorie dell’impolitico. 2ª ed. Bolonha: Il Mulino, 1999.
_____Communitas. Origine e destino della comunità. 2ª ed. Turim: Einaudi, 2006.
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MEILLET, Antoine. ERNOUT, Alfred. Dictionnaire etymologique de la langue latine. 4ª
ed. Paris: C. Klincksieck, 2001.
SARAIVA, Franciso dos Santos. Novissimo diccionario latino portuguez. 1ª ed. Rio de
Janeiro: H. Garnier, s.d.
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Lucas Barreto Dias
Introdução
Neste trabalho, realizo uma investigação sobre elementos fenomenológicos presentes
no pensamento político de Hannah Arendt. Trata-se de uma discussão acerca de Arendt
ser uma herdeira que tem seu nome grafado, mesmo que a contragosto, no testamento
fenomenológico. Nesse sentido, faço um recorte a partir da leitura das influências de
Husserl e Heidegger em categorias inelimináveis da compreensão que Arendt engendra
sobre as questões concernentes à política, entre elas: mundo, intersubjetividade, experiência
e aparência. A partir de um posicionamento crítico, Arendt realiza um tipo próprio de
fenomenologia, não tendo como ponto de partida nem o ego transcendental, nem uma
analítica do Dasein, mas, sim, uma compreensão da relação entre pluralidade e mundo.
Evidencia-se, a partir desta interpretação, que a fenomenologia influencia tanto os métodos
de análise de Arendt quanto os conceitos e temas pensados por ela.
Já de partida sublinho que não há, aqui, uma defesa de um método coerente e
sistemático, mas, sim, de um modo de encarar as questões e problemas que surgem ao
pensamento de Arendt, uma visada, um tipo de orientação do olhar que a autora não se
dedica a elucidar, mas que sob um exame mais ou menos atento parece despontar nos
seus intérpretes. Assim, filiar Arendt à fenomenologia não significa fazê-la refém de um
método rígido, mas de identificar a sua forma própria de compreender o mundo e seus
eventos, um modo de nos aproximarmos daquilo que ela disse ser sua principal atividade:
a compreensão e a busca por uma reconciliação com o mundo.
O que se revela destas análises é a percepção de que “o método de Arendt não
é externo aos tópicos que investiga” (BORREN, 2009, p. 16), questão que pode ser
compreendida na esteira da leitura de Vollrath (1977), em que teoria e método não são
separados como estruturas sistemáticas distintas, mas um implica no outro. Isto se dá
porque Arendt não elege um procedimento metodológico específico e sistemático que
sirva como base para todas as suas reflexões, não há um fundamento metodológico para
sua compreensão do mundo do mesmo modo como não há também nenhum fundamento
teórico último no qual ela possa se ancorar. Tratam-se, sim, de orientações metodológicas
que surgem junto aos eventos que se apresentam ao pensamento.
Minha intenção é encontrar algumas proximidades possíveis com Husserl e
Heidegger, considerando, para tanto, a discussão na literatura secundária que cerca tais
1 Graduado em Filosofia (UECE), Mestre em Filosofia (UFC) e Doutorando em Filosofia (UFMG); Professor do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE)
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Fenomenologia e política em Hannah Arendt
nomes em sua relação com o pensamento arendtiano. Sigo a pista fornecida por Young-
Bruehl (1997, p. 286) ao revelar uma Arendt que se autocompreendia como uma espécie
de fenomenóloga, mas, pontuaria a própria pensadora judia, não à maneira de Hegel ou
de Husserl. O que se destila a partir desse embate é que a fenomenologia arendtiana se
dá a partir de um modo próprio, mas, não obstante isso, deve àqueles que a antecederam
certos aspectos que são reavaliados por ela segundo outros critérios, dentre eles, dois dos
mais importantes são o primado do mundo das aparências e da pluralidade humana. Nesse
sentido, a espécie de fenomenologia de Arendt, como aponta Young-Bruehl, se afasta mais
de Husserl que de Heidegger, mas, como apontam também Tassin (1999) e Taminiaux
(1992), sua dívida com o autor de Ser e Tempo não a torna uma filha de Heidegger – como
indica Wollin (2015) –, mas sublinha uma resposta crítica à sua filosofia. Em contraposição
à cegueira frente aos assuntos humanos que ambos os fenomenólogos nutrem em seus
pensamentos, a fenomenologia do tipo arendtiano irá se fiar na intencionalidade não da
consciência, mas das aparências, dos fenômenos (cf. ARENDT, 2010b, p. 63).
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examinar sob novo modo todos os temas platonistas e aristotélicos por Heidegger. (...) Este
reexame se efetua em função da excelência do bios politikos” (TAMINIAUX, 1992, p. 26).
Arendt revela a Heidegger em carta que A condição humana, a despeito de não ter nenhuma
dedicatória, “surgiu a partir dos primeiros dias de Freiburg e deve assim quase tudo a você
em quase todos os aspectos” (ARENDT, 2001, p. 109). Tratar-se-ia de um texto inspirado
pelas reflexões heideggerianas, mas, para além disso, na interpretação de Taminiaux (que
não teve contato com o epistolário dos autores), também seria uma réplica crítica não
só ao projeto de ontologia fundamental, quanto às apropriações feitas por Heidegger
dos pensamentos de Platão e Aristóteles. O que desponta dessa aproximação, penso, são
elementos metodológicos, tais como: 1) as análises etimológicas, 2) o olhar crítico que
busca compreender a tradição do pensamento ocidental a partir de uma desconstrução e
3) a linguagem empregada que carrega consigo termos-chave no pensamento arendtiano
como existência, interpretação, fenômeno, mundo.
O que está em questão nesta interpretação e com a qual estou, aqui, em acordo, é
que Heidegger constrói este seu projeto ainda sob a cegueira tradicional frente ao âmbito
público, levando-o a uma sobreposição hierárquica de um modo de vida teórico – o bios
theoretikos – frente a um modo de vida político – bios politikos. Não obstante isso, Arendt,
no texto em homenagem aos 80 anos de Heidegger, afirma que o seu curso em Marburg
sobre O Sofista de Platão suscitou, para ela, questões importantes e urgentes. Taminiaux
(cf. 1992, pp. 14, 21) investiga o que Arendt quer indicar por “questões importante e
urgentes”, já que se trata de um texto/curso sobre problemas metafísicos e ela própria não
o dizer explicitamente. Segundo o intérprete francês, três temas guiam A condição humana:
o mundo, o princípio de individuação e o público (cf. TAMINIAUX, 1992, p. 26), todos
estes também temas heideggerianos. O que nos é sugerido não é uma aceitação, todavia,
do conteúdo temático, mas de uma preocupação com tais assuntos, de caráter urgente e
imediato, que até então continuam sendo tratados sob um ponto de vista do bios theoretikos,
em vez de se buscar uma orientação do olhar intrinsecamente localizado no bios politikos.
Mais que um acordo, então, com Heidegger, há aqui um debate em torno dos conteúdos e
no método utilizado.
Não obstante a posição crítica que Arendt constrói em A condição humana frente a
Heidegger, há também entre eles uma proximidade metodológica, um modo de olhar para
questões clássicas da filosofia, transfigurando-as em problemas do pensar contemporâneo.
No texto em homenagem a Heidegger, Arendt diz que
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Fenomenologia e política em Hannah Arendt
exatamente porque para ele o fio da tradição se rompeu, redescobre o passado” (ARENDT,
2008b, p. 279).
As constantes e, para muitos, desconfortáveis digressões que Arendt faz em seus
textos parece ter aí seu ponto de origem. Essa forma de olhar novamente para o passado
com olhos no presente, a busca por exercitar o pensar não com a intenção de trazer a
interpretação última sobre um autor, uma época ou um evento histórico, mas ver em todos
eles oportunidades para pensar, isto Arendt aprende com Heidegger. Trata-se, não de
“descobrir ou revelar um solo último e seguro, mas, mantendo-se nas profundezas, de
abrir caminhos e colocar ‘pontos de reflexão’”, é um pensar que está “permanentemente
em atuação”, que “jamais pensa ‘sobre’ alguma coisa; ele pensa alguma coisa” (ARENDT,
2008b, p. 280). É assim que se pode, então, interpretar o pensamento de Heidegger em
Ser e tempo que Arendt retém: como um pensar em permanente atuação que tenta se
desvencilhar das imagens tradicionais que os conceitos filosóficos nos imputam, tentando
ir a uma região revelada pela linguagem do modo originário com o qual cada um de nós se
encontra com as coisas, com o mundo e consigo mesmo.
É, então, esse método de pensamento experimentado por Heidegger, mais que
sua própria filosofia, que Arendt diz contribuir de modo decisivo na determinação da
“fisionomia espiritual do século XX” (Ibidem, p. 280). Essa fisionomia, deixa entrever
Arendt, subjaz justamente a esse modo não metafísico de pensar, sem fundamentos, mas
que se exercita sob o horizonte da cotidianidade (Cf. HEIDEGGER, 2012, p.73). Uma
imagem, então, desponta: a de que o pensar pode ser encarado como um caminho que se
percorre, mas que não leva a nenhum lugar previamente estabelecido. São os caminhos
florestais, os quais, ”por não conduzirem a um fim estabelecido fora da floresta (...) são
incomparavelmente mais adequados para quem ama a floresta e nela se sente à vontade do
que as rotas de problemas cuidadosamente traçadas onde se acotovelam as pesquisas dos
especialistas” (ARENDT, 2008b, pp. 280-281).
Todavia, ainda que tenha aprendido a pensar com Heidegger, seu próprio método
não se reduz ao dele. Isso porque, avalia Arendt, Heidegger finda por se tornar refém
da novidade de seu pensar contra aquilo que o movimentava: o mundo das aparências.
No movimento de pensar através dos caminhos florestais, Heidegger ergue nessa
atividade sua morada, tornando-se cada vez mais alheio à cotidianidade que engendra o
pensamento (Cf. ARENDT, 2008b, p. 286). Em A vida do espírito, Arendt designa que
uma das características do pensar é colocar-se fora de ordem, retirar-se do mundo das
aparências através da dessensorialização daquilo que me dado fenomenicamente, questão
que, inclusive, remonta a Heidegger (Cf. Idem, 2010b, pp. 95-98). O que para Arendt surge
como elemento filosófico a ser evitado, no entanto, não é realizar essa retirada do mundo
das aparências [withdrawal], mas fazer desse espaço de isolamento sua morada, o que
consistiria na tentativa de realizar o abandono do mundo das aparências.
Manter-se atrelado ao mundo das aparências, mesmo ao efetuar a retirada
exigida pelo pensar, é o que movimenta o método arendtiano e dá intensidade ao seu
modo próprio de fazer fenomenologia, à sua intencionalidade das aparências. Assim,
os três tópicos ressaltados por Taminiaux – o mundo, o princípio de individuação e o
público (cf. TAMINIAUX, 1992, p. 26) – presentes em Heidegger e Arendt podem ser
compreendidos em sua estrutura temático-metodológica, pois ainda que trate de questões
presentes em O Sofista e em Ser e Tempo, Arendt o faz com e contra Heidegger. Explico-
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Lucas Barreto Dias
me: a inspiração temático-metodológica tem raízes devedoras ao seu professor, isto é, seu
método é parcialmente proveniente daquele descrito e executado por Heidegger, assim
como algumas questões orbitam os mesmos temas, todavia os pensamentos de ambos não
coincidem, mesmo aproximando seus métodos e temas.
Este movimento em direção ao que Arendt indica como Ürphenomene tem raízes
heideggerianas, mas se distingue dele em um aspecto ineliminável: enquanto Heidegger
faz tal movimento do ponto de vista do bios theoretikos a fim de afirmar esse modo de vida
como superior, Arendt o faz do interior de uma vida que não se furta de se saber integrada,
de algum modo, ao mundo.
Esta “reapropiação hermenêutica”, como diz Taminiaux, que Arendt faz de
Heidegger – utilizar seus métodos e temas através de um outro perfil de olhar – faz
com que seja possível melhor compreender o tipo próprio de metodologia que Arendt
emprega, seus distintos métodos que, cada um a seu modo, auxiliam a autora na sua tarefa
de compreender os eventos mundanos, a condição humana e suas atividades, sejam as da
vita activa, sejam as do espírito. Arendt herda de Heidegger essa tarefa de repensar o que já
fora pensado, mas não para circunscrever o pensamento como capacidade suprema, e insere
aí também a tarefa de pensar o que foi feito para, mais que tudo, pensar o que está sendo
feito. Sua abordagem fenomenológica é conduzida parcialmente em estilo heideggeriano,
mas contra Heidegger.
Poder-se-ia dizer, assim, que o método se confunde tanto com um procedimento
técnico – por exemplo, as distinções conceituais traçadas a partir de análises etimológicas
que buscam pelas experiências originárias que engendraram a nomeação não só de objetos
como também das atividades humanas – quanto com a própria teoria, na medida em
que a construção teórica é endógena aos procedimentos, de modo que a característica
de distinguir conceitos e relacioná-los não é só uma técnica, mas diz respeito às próprias
experiências humanas e ao reconhecimento do mundo e das atividades em sua constitutiva
pluralidade.
Arendt, assim, não é uma mera discípula de Heidegger, herda dele um modo de
olhar, sem, contudo, vislumbrar as coisas do mesmo modo. Concordo com Dana Villa
quando diz que “enquanto a desconstrução de Heidegger da tradição da filosofia ocidental
é uma ferramenta inestimável, ela não é substituta para a própria fenomenologia da ação e
do espaço público de Arendt” (VILLA, 1996, p. 14). Villa compartilha com Taminiaux que
esta relação Arendt-Heidegger vai além do “método” e traz consigo considerações acerca
dos temas pensados; mais uma vez, trata-se da imbricação entre conteúdo e método.
Considerações finais
Assim como Husserl e Heidegger, Arendt, enquanto uma espécie de fenomenóloga,
realiza um retorno às coisas mesmas. Longe de tentar apreender o caráter essencial da
realidade ou dos objetos que a constituem, sua intenção é compreender aquilo que é passível
de ser pensado. Provavelmente influenciada pelo modo heideggeriano de investigação, seu
processo de análise costuma ir em direção às origens do pensamento ocidental através
de interpretações etimológicas. O lema fenomenológico “às coisas mesmas” aparece na
argumentação de Arendt através do retorno que constante ao que está na origem dos
conceitos políticos e filosóficos. A autora volta seu olhar para o nascedouro em que eventos
engendram conceitos a fim de compreender aquilo que estamos fazendo, como indica em
65
Fenomenologia e política em Hannah Arendt
A condição humana. Trata-se da busca pelas experiências que fomentam nossa linguagem
e que, por isso, também estão na base do nosso modo de pensar. Mais do que isso, na
verdade, desvelar o modo como os homens se relacionaram originalmente com o mundo
através da linguagem é o modo pelo qual Arendt entende ser capaz de encontrar um
modo de compreensão da realidade sem recorrer às estruturas teológico-metafísicas da
tradição do pensamento ocidental, sem recair em um subjetivismo, ou erigir a necessidade
da construção de um ego transcendental. Entendo que esse retorno, balanceadas algumas
dívidas com Husserl e Heidegger, constrói-se através de uma fenomenologia que não
confere primazia nem ao ego transcendental husserliano, nem ao Dasein heideggeriano,
mas ao mundo, às aparências, daí defender que Arendt empreende uma fenomenologia
calcada na intencionalidade das aparências, à qual se contrapõe não um sujeito – não
se trata meramente de inverter a lógica de Husserl –, mas que exige uma pluralidade.
No lugar, portanto, da experiência do ego pensante e da intencionalidade que parte dele,
Arendt explicita uma nova perspectiva que tem como ponto de partida as aparências e a
experiência não do Homem posto pela falácia do solipsismo, como ela assim designa, mas
da pluralidade humana.
O que fica, então, é a linguagem materna, isto é, aquela da fenomenologia, que apesar
de não se encontrar diretamente com Husserl, provém dele e se estende por Heidegger.
Cabe a Arendt buscar seu modo próprio de capturar os fenômenos e de salvá-los de seu
destino metafísico ou positivista. O que fica é uma herança de testamento duvidoso, pois
não aceita a filiação sem ressalvas, mas dela faz parte através da linguagem e do olhar.
São elementos sobretudo metodológicos que ganham forma nas orientações teóricas
de Arendt. Há, assim, um modo que lhe é próprio de também ir às coisas mesmas, às
aparências. Não se pode negar que Husserl e Heidegger tenham, cada um a seu modo,
um lugar no procedimento arendtiano: tanto pelo tipo de fenomenologia que Arendt não
faz, quanto pela linguagem que carrega consigo e seu modo fenomenológico de encarar
o mundo, buscando compreender os assuntos humanos através de suas aparições, de seus
fenômenos. A linguagem, como bem sabe Arendt, é a matéria pelo qual nosso pensamento
se move no diálogo silencioso que trava consigo mesmo e na criação de um domínio
público potencial por meio do juízo que leva em consideração as diversas doxas. Então,
se a língua materna é o que fica, também o ficam os seus procedimentos, seus métodos.
Tal qual a “pólis grega continuará a existir na base de nossa existência política enquanto
usarmos a palavra ‘política’” (ARENDT, 2008c, p.220), a fenomenologia fará parte das
considerações metodológicas de Arendt enquanto seus conceitos e métodos continuarem
em suas formulações.
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Lucas Barreto Dias
Referências bibliográficas:
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Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008a.
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Márcia Rosane Junges
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fazendo bios e zoè pairarem em uma zona de indistinção. Em outras palavras, o projeto
Homo sacer começa e termina com uma objeção recorrente a esse tipo de política. Esse é
um tensionamento entre a concretização da transvaloração para superar o niilismo e criar
o lastro para a vinda da grande política, pois insere no campo da fisiologia uma questão
política que precisa operar no paradigma da autonomia. Como apontamos anteriormente,
o pensamento de Nietzsche não deve ser entendido somente a partir da perspectiva da
vontade de potência em seu viés fisiológico, uma vez que a transvaloração, o amor fati e
o perspectivismo são potentes contrapontos que podem revitalizar a política através da
elevação da cultura. De qualquer forma, Agamben demarca nova separação em relação a
Nietzsche, reiterando sua posição sobre a potência contida em Poder soberano e vida nua,
O que resta de Auschwitz e Opus Dei, reafirmando seu conceito de potência-do-não para
engendrar a política-que-vem.
A potência-do-não é, em nossa análise, o eixo central na articulação da política-
que-vem. Assim como a grande política e a transvaloração dos valores, entendemos
que a política-que-vem e a potência-do-não se constituem em eventos originados em
rupturas, transvalorações e profanações, novas formas-de-vida que liberam a política do
enquadramento realizado pelo aparato jurídico do Estado, por outro uso do direito e pela
tarefa de inverter a biopolítica maior, aquela do Estado, por uma bipolítica menor na figura
do qualquer e do sujeito ético do testemunho. Agamben não formulou uma teoria política
para solucionar o diagnóstico do presente que realiza, apontando o niilismo que reside por
trás das democracias de massa espetaculares. Para o filósofo, a política entrou em eclipse
na Modernidade porque se alinhou ao problema da soberania. É das profundezas dessas
constatações que formula a política-que-vem, uma política não jurídica capaz de reverter
esse cenário: ela não tem centro, brota da sobreposição entre forma-de-vida e pensamento,
coincidindo com a inoperosidade e a potência destituinte, funcionando nas rachaduras
do poder soberano, a partir da figura das singularidades quaisquer. A política-que-vem se
desvela quando a vida dá a si própria a sua norma, capaz de profanar os dispositivos que
a aprisionam à biopolítica e faz um novo uso das coisas. É a resistência que surge como
horizonte inapagável do ser humano, e que só consegue se viabilizar porque não somos
reduzidos a uma programação biológica de espécie. Não há conteúdo programático que
defina essa nova política, mas sim um espírito de ruptura constante, de abertura e de um
horizonte movediço do ingovernável democrático - uma política de seres de potência.
A partir dessas constatações, pensamos que Nietzsche e Agamben com suas
concepções de potência e posicionamento político crítico apresentam as possibilidades
da política e os limites da democracia liberal. A sintonia crítica que aponta a decadência,
o esvaziamento, a espetacularização, a massificação, a aclamação e a burocracia como
fundamentos do modelo democrático são inquietantes porquanto convergem mesmo a
partir de fundamentos teóricos distintos. A partir dessas ideias sobre a potência, pensamos
que os filósofos expressam a importância de se engendrar novas formas-de-vida, coincidindo
a vida vivida com aquela existência que surge do transbordamento e da destituição, e não
de um deslocamento político do Cristianismo para a democracia, na compreensão de
Nietzsche, e da deriva teológica e econômica destes para a política, em Agamben.
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Márcio Jarek1
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homem”. Essa peculiar teleologia pode levar a um cego desenvolvimento histórico da vida
e provocar a “arrebentação do céu” como ruptura drástica e catástrofe da humanidade.
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Política e felicidade
Em vários escritos da década de 1920, Benjamin coloca a felicidade como o âmbito
central da política em contraponto a política que depende de uma concepção de vida
natural culpada. Uwe Steiner (2010, p.89) destaca que, para Benjamin, sempre que a
política tem que definir objetivos para si, esta deve limitar suas metas à ordem profana
da felicidade e que, ao fazer isso, estabelece uma condição histórica sem nenhum valor
absoluto. A felicidade, aos olhos de Benjamin, depende das relações entre indivíduos livres
e não de um plano de “ordens superiores”. O pensador berlinense estabelece desse modo
uma teleologia sem fim, sem meta final, onde o messiânico e o profano se confundem e
constituem um “dos axiomas essenciais da filosofia da história”.
6 É o que constatam os pesquisadores Paolo Primi (no posfácio à recente tradução italiana da obra de Erich Unger) e
Carlos Pérez López (2015) no artigo “Walter Benjamin y G. Sorel: entre el mito de la huelga general y uma política
de médios puros”.
7 Observação de Paolo Primi no posfácio da obra Política e metafísica de Erich Unger. (Cf. UNGER, 2009, p.127).
8 Idem.
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Para o filósofo, o ritmo do que ele chama de “ordem do profano”, o ritmo em direção a
dissolução lembra-nos da condição de eterna transitoriedade, mas também nos mobiliza
a reivindicar “o ritmo da natureza messiânica” como exigência de felicidade. Defende ele
que: “pois a natureza é messiânica devido à sua eterna e total transitoriedade” (Idem).
Em suma, no seu enigmático “Fragmento teológico-político”, Benjamin tenta
articular a superação de uma concepção da vida como meramente natural e culpada atrelada
a um plano mítico da política e busca, então, como alternativa de avaliação, a perspectiva da
“realização não intensificada da humanidade”. Para Benjamin, ocorre através do acontecer
histórico messiânico a “intensidade metafísica” da vida (proposta por Unger) que, a
diferença da “intensificação”, redimiria, consumaria e concretizaria a vida não somente
no plano biológico, mas como um todo vivo. Ressalta Benjamin (2012, p.23) que esse
acontecer histórico não se situa na definição do reino de Deus como “telos da dynamis
histórica”, nem tampouco pode ser definido como objetivo, mas que deve cotidianamente
ser orientado pela ordem profana da ideia de felicidade.
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Márcio Jarek
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O grande jogo da mentira e do cinismo
Introdução
A mentira e a propaganda, baseada em boatos, parece que se aliaram para elaborar
uma atmosfera de irrealidade, em que os indivíduos são incapacitados a reconhecer a
realidade e a diferenciar fatos e ficção, tornando-se inábeis para julgar os fatos políticos.
As discussões próprias do espaço público parecem ser ignoradas, uma vez que a opinião
pública, o testemunho e a ponderação dos diversos pontos de vista inexistem. A política,
como espaço entre-os-seres humanos, espaço do aparecimento da pluralidade, da distinção
e, portanto, da liberdade, é aniquilada. Neste contexto, pergunta-se como a irrealidade e
a ficção tomam o lugar da realidade e dos fatos e por que a mentira parece preferível à
verdade fatual. Objetiva-se discorrer sobre o significado da verdade fatual e da mentira
na política, apontando para os inconvenientes que a falsidade deliberada pode assumir no
domínio público. Parte-se das digressões de Hannah Arendt acerca da verdade fatual e da
mentira na política moderna.
Não causa espanto a vitória da ficção sobre os fatos. Não se trata de uma exclusividade
do século XXI e da explosão da comunicação via internet. Hannah Arendt tratou da mentira
na política e do uso da propaganda em ocasiões diversas. Em 1951, quando da publicação
da obra Origens do totalitarismo, descreve como as massas sucumbiram ao jogo da mentira e
do cinismo – como recusa em acreditar na verdade – como meio de orientação no mundo,
salientando que o fizeram como escolha deliberada. Na década de 1960 escreveu o texto
Verdade e política, após a pseudocontrovérsia provocada pela publicação de Eichmann em
Jerusalém, em que Arendt foi duramente criticada por ter apresentado os fatos – colaboração
dos conselhos judaicos nas ações criminosas dos nazistas. Arendt, diante do que presenciou
no Tribunal e dos documentos, precisava falar a verdade e acreditou no adágio “Fiat veritas,
et pereat mundus?”; Arendt aposta na incontestável verdade fatual e pergunta-se se é legítimo
dizer a verdade. Na década de 1970 escreveu A mentira na política: considerações sobre
os Documentos do Pentágono, em que discute a tomada de decisões nas questões que
envolviam os Estados Unidos na Indochina desde a Segunda Grande Guerra Mundial até
maio de 1968 e a proliferação da mentira em todos os setores civis e militares do governo.
O artigo será dividido em duas partes. A primeira versa sobre a propaganda, a
irrealidade e a ficção e o texto de referência é Origens do totalitarismo. A segunda trata
especificamente da mentira na política. Os textos de Arendt que servirão de referência são:
1 Doutora Filosofia UFSCar/SP; Mestre Filosofia PUCPOA/RS; Professora PPGFIL da UEL/PR; Estágio
Pós-Doutoral PPGFIL da UFG/GO (2018-2019)
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Maria Cristina Müller
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O grande jogo da mentira e do cinismo
Referindo-se a Martin Lutero, Arendt diz que ele já havia compreendido a semelhança
existente entre processos de pensamento que tomam a lógica como característica e a
solidão, quando disse que: “não é bom que os homens estejam sós”; “o homem solitário
sempre deduz uma coisa da outra e sempre pensa o pior de tudo” (ARENDT, 1997, p. 530).
A solidão passou a fazer parte do cotidiano das massas do século XX e, enquanto
experiência diária, preparou os indivíduos pertencentes ao mundo não totalitário para a
dominação total. Junto à solidão, o terror e a propaganda foram utilizados como parte da
“guerra psicológica” dirigida à massa para a obtenção da dominação. Não é propósito aqui
discutir o terror, mas é preciso destacar que o terror é mais avassalador nessa guerra; ele
perdura e subsiste para além da propaganda e é empregado em uma população absolutamente
subjugada. A propaganda é fundamental para criar a atmosfera ideal de dominação, mas
deixa de ter relevância quando o reino do terror atinge a perfeição (ARENDT, 1997, p.
393).
Arendt assevera que a propaganda nazista se tornou perita em captar o anseio das
massas pela coerência; a lógica como fundamento foi adequada pois oferecia àquilo que
era absurdo e desproporcional uma máscara de normalidade. Essa normalidade e coerência
eram legitimadas no regime bolchevista pelas “confissões” dos pseudotraidores e no regime
totalitário pelo “pedantismo da legalização de crimes por meio de leis retrospectivas e
retroativas” (ARENDT, 1997, p. 402). A coerência atendia às necessidades da mente
humana solitária e pagava o preço da irrealidade. Para isso a pura imaginação era suficiente
e fornecia a coerência e a segurança que a massa, desarraigada e desintegrada, não encontrava
na vida real. A vida humana no mundo real está sujeita ao imprevisível, aos tropeços que
fatalmente acontecem, à rotina sufocante, aos aborrecimentos cotidianos e inevitáveis do
dia a dia. O mundo real não é lógico, não é coerente, não é organizado como é o mundo da
ficção. A ficção pode fornecer um mundo de imagens belas, mesmo que falsas. E assim, um
mundo absurdamente imaginário deu lugar ao mundo real; esse mundo irreal foi oferecido
pela propaganda. Os movimentos totalitários entenderam que a força da propaganda reside
exatamente na capacidade de isolar as massas do mundo real: “O súdito ideal do governo
totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já
não existe a diferença entre o fato e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença
entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento)” (ARENDT, 1997, p. 526).
As perguntas que se impõem são: como a propaganda nazista ultrapassa o precipício
existente entre a ficção e a realidade? Como a ficção coloniza de maneira tão absoluta a
massa a ponto de ela renunciar à realidade e à verdade fatual?
O único resquício de mundo real que permanece são as lacunas, os pontos fracos, os
boatos que a massa não ousa contradizer; aquilo que não pode ser discutido em público.
A propaganda sabe que, para suas mentiras terem sucesso, precisa de um ponto de ligação
com a realidade. As massas não são conquistadas pela mera demagogia de um bom orador,
mas precisam de um elemento palpável e plausível que sirva de fundamento e ligação
com o real; deste modo, a criação de um mundo absolutamente fictício poderá obter a
credulidade das massas. O terror é diferente neste aspecto, pois pode se manter à base da
mera ficção.
A propaganda totalitária não tinha qualquer receio de que a verdade viesse à tona,
pois não tinha por objetivo persuadir, mas organizar as massas e dar-lhe a coerência que
tanto desejavam. Bastava que a ficção tivesse coerência para que a generalização sobrevivesse
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Maria Cristina Müller
à verdade; de nada adiantava desmascarar as mentiras contadas pela propaganda com tanta
coerência, assevera Arendt. A coerência era artificial e só a ficção podia oferecê-la em um
mundo em que a verdade fatual – os fatos – não interessava. A propaganda é especialista
nesta arte que, ao mesmo tempo, usa e transcende o real e a experiência demonstrável; tudo
é generalizado numa artificialidade tal que o indivíduo não exerce qualquer controle. O
mundo fictício – perfeito – criado pela propaganda compete com o mundo real, imperfeito;
é obvio que o mundo “perfeito” desenhado pela propaganda vence essa disputa. Aquilo
que a propaganda diz como “verdade” não necessita de demonstração, portanto toda e
qualquer tentativa de usar argumentos racionais para demonstrar a falsidade não surte
o efeito desejado. A propaganda transforma a suposição – a mentira – em elemento
da realidade. Os nazistas agiam como se o mundo fosse dominado pelos judeus e que
eles precisavam defender o mundo de tal conspiração; entendiam o racismo como uma
realidade prática, não como uma teoria – pseudocientífica – plausível de falibilidade. As
verdades que professavam e as ideologias que seguiam eram compreendidas como verdades
infalíveis contra as quais ninguém levantaria qualquer dúvida; ou seja, o que é verdadeiro
não necessitava de demonstração.
Diante do que foi apresentado, algumas perguntas ainda se impõem: como, nas
democracias modernas, a sedução ou escolha pela irrealidade e pela ficção permanecem,
uma vez que o terror não é a arma principal para a submissão e a dominação como foi
nos regimes autoritários analisados acima? O que permanece na atmosfera dos regimes
democráticos que se assemelha à atmosfera dos regimes autoritários e que permite mais
uma vez a opção pela ficção e pela irrealidade? Por que a ficção é tão sedutora e capaz
de substituir rapidamente a verdade fatual? É preferível a mentira à sinceridade ou à
veracidade? Por quê?
Mentira e política
A mentira interessa a esta pesquisa no que diz respeito à preservação ou não da res
publica, ou seja, à liberdade e à preservação do espaço público como espaço do aparecimento,
da pluralidade, da opinião pública, e de que modo a mentira pode prejudicá-lo. Neste
sentido, as questões que orientam a discussão nessa segunda parte da investigação dizem
respeito a como aceitar a mentira como meio legítimo, utilizado desde tempos imemoriais,
para alcançar objetivos políticos e como o uso da mentira pode encaminhar para a
destruição do espaço público e da política por destruir a verdade fatual. Essas perguntas
ligam-se com a discussão anterior: o uso da mentira pela propaganda totalitária como
instrumento de dominação e a opção deliberada pela irrealidade e ficção. Outra questão
importante se impõe: que dano o poder político é capaz de infligir à verdade fatual? Nesse
sentido, a verdade que interessa abordar aqui não é a verdade racional, mas a verdade fatual.
É importante esclarecer que não é objetivo tratar de valores morais e do vício da mentira;
o ponto de vista não é o da ética, mas o da política.
Talvez a primeira justificativa do uso legítimo da mentira pelo governante com
benefícios para a comunidade seja a apresentada por Platão no texto A República. No
livro II (382 c.), Platão assevera que a mentira, expressa por meio de palavras, em certos
contextos, pode ser útil e benéfica, como quando usada contra os inimigos ou quando é
preciso dissuadir um amigo a cometer uma ação má. No livro III (389 b. e c.) retoma a ideia
do uso da mentira como uma espécie de medicamento, deixa clara a ideia de que a mentira
pode ser usada contra os inimigos e concidadãos em benefício da comunidade; contudo,
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O grande jogo da mentira e do cinismo
nenhuma outra pessoa está autorizada a fazê-lo a não ser o médico, no caso, o governante;
ainda adverte que, se o cidadão mentir ao governante, isso será considerado grave, uma vez
que a verdade sempre é preferível. O ensinamento platônico foi adotado pela argumentação
e prática política sem qualquer receio; o governado deve ser veraz e o governante pode, em
determinadas circunstâncias, adotar a mentira, desde que em benefício da comunidade; a
isso chamaremos de tradicional mentira política.
Maquiavel, em O príncipe, emancipa definitivamente a política da moral e consolida
teoricamente o que era uma prática aceitável. Maquiavel demonstra, a partir da experiência
histórica, que a política exige a força (do leão) e a astúcia (da raposa); para triunfar, o
príncipe deveria focar nos resultados satisfatórios das ações e não na salvação da sua alma.
Isso não significa, contudo, que o príncipe deve ser propositalmente cruel; ao contrário,
deve praticar o bem sempre que possível; o mal só pode ser praticado quando necessário.
Maquiavel se opôs à convicção medieval de que o bom governante era aquele que seguia a
moral cristã. No entanto, se na política é admitido o jogo da mentira, isso não significa que
ela foi colocada ali por uma mente pecaminosa ou diabólica.
A despeito dos filósofos que tratam da ética e classificam a mentira como vício e da
maioria das religiões que a condenaram em certo grau, a mentira sempre foi admitida na
política. As principais virtudes políticas são a coragem e a habilidade, a força e a astúcia
propostas por Maquiavel. A veracidade ou a sinceridade nunca foram consideradas virtudes
políticas. Divergir dessa prática na política com algum tipo de recurso moral está fadado
ao insucesso, pois a mentira sempre foi uma ferramenta do político, do demagogo e do
estadista.
É importante esclarecer que o tipo de política de que falam Platão e Maquiavel é
a política entendida como arte – arte de governar – e como tal usa a lógica meio-e-fins
para atingir seus objetivos. Nesse caso, é compreensível o uso da mentira em substituição
à violência ou do embuste como estratégia de guerra contra adversários. A diplomacia,
com suas estratégias de dissimulação, usa a tradicional mentira política, as traduzindo
como segredo, sigilo, discrição e arcana imperri (mistérios do governo). O embuste como
falsidade deliberada – mentira – é amplamente usada e justificada. No entanto, esse tipo
de falsidade deliberada era usado para casos particulares e pontuais, em geral, para iludir o
inimigo; isso concedia à mentira um certo atenuante, fruto de circunstâncias que preferiam
a dissimulação à violência.
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Maria Cristina Müller
só existe se se fala sobre ela, mesmo quando ocorre no domínio do privado, na intimidade.
Por isso é que as coisas precisam ser faladas, discutidas, ditas. A contingência fornece
aos fatos muita fragilidade – tudo poderia ter sido diferente. Deste modo, a dúvida é
permanente e, junto à dúvida, vem a ansiedade própria de quem é livre; não há certeza, não
há obrigatoriedade e previsibilidade, tudo poderia ser diferente do que é. Arendt explica
que essa fragilidade dos fatos permite que o embuste – mentira – seja tão fácil e tentador.
A mentira – o embuste – lida com fatos; ela não precisa entrar em conflito com
a razão – que busca significado, não verdade como o intelecto –, pois tudo poderia ter
acontecido exatamente como o mentiroso contou. Estamos habituados à contingência
dos fatos, preparados a lidar com o inesperado e o imprevisível. Além disso, a mentira
tem uma grande vantagem, pois o mentiroso, um bom ator por natureza, pode contar o
embuste tomando o cuidado de deixar a narrativa muito mais plausível do que seria um fato
efetivamente ocorrido; a narrativa pode contar uma história perfeita, exatamente como o
ouvinte gostaria de ouvir. As pessoas sempre estão à espera do que lhes agrada e reconforta.
A avaliação do ouvinte é construída a partir de crenças e preconceitos preexistentes; deste
modo, o mentiroso pode efetivamente criar uma ilusão tão encantadora como foram
os mitos no passado. Nunca esperamos que a narrativa seja mentirosa, somos crédulos;
confiamos na comunicação humana. Muitas vezes a mentira pode parecer mais plausível
que a verdade, pois o mundo existente – “real” – onde as relações humanas se efetivam e
não são fantasiosas, está sempre acompanhado da imprevisibilidade, da contingência, da
falibilidade humana, do acaso, do inesperado.
A capacidade da mentira, tal qual a capacidade da ação, precisa da imaginação para
existir. A imaginação permite a substituição daquilo que está estabelecido pelas infinitas
possibilidades do novo, do inédito, permite sermos removidos mentalmente do lugar comum
para o lugar imaginado e permite imaginar que as coisas podem ser diferentes do que são. A
atividade da ação precisa da imaginação como potencial para iniciar o novo no mundo, tal
qual a mentira. Ação e mentira estão interligadas pela imaginação. Curioso perceber que a
mentira e a ação são igualmente livres e podem trazer a novidade para o mundo.
Acredita-se que a farsa pode ser facilmente percebida e derrotada bastando sobrepor
a ela a realidade dos fatos. Em situações normais isso bastaria, pois a realidade dos fatos
sempre é mais forte, visto que mais cedo ou mais tarde os fatos viriam à tona e suplantariam
o mentiroso e seu ardil. Contudo, em situações em que a normalidade perdeu o sentido,
como nos regimes totalitários ou quando as fake news invadem o mundo, a realidade dos
fatos não é suficiente. Estamos falando das modernas mentiras políticas, das falsidades
deliberadas usadas para iludir, trapacear e enganar.
A moderna mentira política manipula os fatos em escala massiva. A mentira política
moderna não lida com segredos ou dissimulações particulares, mas com coisas que são
conhecidas de todos. As contradições existentes nas inúmeras mentiras que disseminam e
que poderiam ser percebidas com a confrontação entre os fatos desaparece de dois modos:
i) ocultar os fatos ao reescrever a história, mas isso é bastante difícil, pois hora ou outra
alguma testemunha ocular ou algum documento esquecido poderia denunciar o embuste;
é muito improvável que seja possível substituir todos os documentos por novas falsificações
toda vez que o governante necessita alterar os fatos; ii) destruí-los, uma medida mais
radical. A eliminação dos dados e documentos, o assassinato das testemunhas e dos
“inimigos” e a destruição do próprio status humano (a não pessoa) aniquilam qualquer
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O grande jogo da mentira e do cinismo
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Maria Cristina Müller
realidade é diferente e mais do que a totalidade dos fatos, por isso é inaveriguável. A realidade
não é simples ou fácil, pois nela está a contingência inerente aos fatos; a questão é que a
sociedade moderna se recusa aceitar a contingência e prefere a pílula vermelha do Matrix.
Arendt aposta na possibilidade da compreensão; mesmo que os fatos sejam manipulados,
ocultados ou destruídos, a verdade pode ser narrada e, deste modo, compreendida.
Considerações finais
Quando a verdade fatual corre o perigo de ser ardilosamente eliminada do mundo
(ARENDT, 1992, p. 287), a questão passa a ser política, uma vez que os fatos informam
a opinião. Fatos e opiniões não são a mesma coisa, embora não sejam antagônicos; ambos
pertencem ao domínio público e precisam da discussão pública. A diferença está na
compreensão de que fatos são inflexíveis e as opiniões dependam do acordo livre. Para haver
opinião é preciso que o tema seja avaliado sob diversos ângulos; é preciso as informações,
os fatos, as testemunhas, a narração; quanto mais pessoas puderem contribuir com seus
pontos de vistas, mais clara será o juízo e mais próxima da verdade será a opinião. Por
outro lado, não é possível confundir a verdade fatual com a opinião no sentido de tornar
os fatos objetos de debate. Os fatos são despóticos, inflexíveis, eles constrangem. Todavia,
se os fatos forem manipulados, não é possível a opinião legítima. Nesse caso a liberdade
de opinião não passa de uma farsa, uma falsidade. A verdade fatual informa o pensamento
político que se dá no domínio público quando do embate das opiniões (ARENDT, 1992,
p. 295).
Para que haja compreensão e juízo correto, deve haver informação exata e
honesta; os fatos não podem ser manipulados nem pelo poder nem pela imprensa. Nas
democracias, a imprensa exerce papel fundamental, pois deve esclarecer, nunca confundir,
como Karl Jaspers discorreu brilhantemente em A opinião pública, contido em Introdução
ao pensamento filosófico. Todos têm direito à plena informação e direito à publicização;
deste modo, a imprensa pode ser o quarto poder, desde que esclareça e não confunda ou
dissimule. A liberdade de opinião é farsa se as informações inexistem ou se as informações
são dissimuladas.
É quase impossível que um fato importante dissimulado por mentiras cabais seja
algum dia redescoberto; nesse caso, as opiniões igualmente serão enganosas. É só nesse
caso que a verdade atua, quando ela precisa derrotar a mentira organizada; no entanto,
quando todos mentem, a verdade sempre estará em desvantagem (ARENDT, 1992, p.
310). Quando não há transparência, quando há segredos e dissimulações, a res publica
sucumbe, pois as relações humanas se dão tendo por fundamento a confiança e a boa-fé
e essas proíbem a mentira. O contrário da mentira é a sinceridade e o mundo público
precisa de sinceridade. Arendt, no Diario filosófico (2006, p. 1066-1067), faz referência a
Montaigne e a obra Ensaios: Nem sempre se deve dizer tudo, pois seria tolice; mas o que
se diz, é preciso que seja tal como pensamos, senão é maldade. Sinceridade não significa
crueldade, uma vez que a doçura e a gentileza sempre são mais recomendáveis; no entanto,
a linha tênue entre mentira e gentileza não pode ser confundida. Arendt (2006, p. 609-611)
alerta que a questão política que se impõe é: qual é a minha obrigação frente ao mundo
quando a verdade entra em conflito com o mundo, principalmente quando o mundo está
assentado em uma mentira?
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O grande jogo da mentira e do cinismo
Referências bibliográficas:
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Pentágono. In: _____. Crises da república. 2º ed. Tradução José Volkmann. São Paulo:
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Trad. Raúl Gabás. Barcelona: Herder, 2006. Volume I e II.
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Gulbenkian, 1993.
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una identidad inestable, discontinua y dinámica. Asumir que “los sujetos se construyen a
través de exclusión, es decir, de la creación de un rango de sujetos desautorizados, presujetos,
figuras de abyección, poblaciones retiradas de la vista” (BUTLER, 1995, p. 47) abre la
posibilidad de asomarse a esa región del Ser que prolifera al margen de la norma, reconocer
su existencia, y ensanchar nuestras categorías de subjetividad para introducir en ellas esos
aspectos excluidos que, una vez readmitidos en la esfera del discurso, pueden cuestionar los
modelos de subjetividad hegemónica instituidos por la lógica neoliberal.
Si bien es complejo definir los contenidos específicos asociados a una subjetividad
antagonista (ARAGÜÉS, 2015, p. 11), parece más sencillo identificar prácticas antagonistas
con capacidad crítica. Volviendo a Butler, veremos algunas opciones de resistencia que
arraigan en la dimensión discursiva y, en concreto, en el plano performativo del lenguaje.
Esta perspectiva, inaugurada por Austin, afirma que hay enunciados que trascienden
la función descriptiva y referencial del lenguaje, y que son en sí mismos una forma de
acción: hay casos “en los que decir algo es hacer algo; en los que porque decimos algo o
al decir algo hacemos algo” (AUSTIN, 1990, p. 53). El lenguaje no se agota en su faceta
enunciativa, sino que tiene efectos atribuibles a la función ‘perlocucionaria’ del discurso
(AUSTIN, 1990, p. 153), asociada a las consecuencias de la preferencia de ciertas palabras
o expresiones. Insultar, prometer, disuadir, ahuyentar o dar órdenes son algunos ejemplos
de esta función lingüística.
Ampliando esta reflexión, Butler dice que todo acto de nombrar inaugura un universo
performativo de efectos que abre posibilidades de resistencia basadas precisamente en la
alteración de ese horizonte de efectos que se despliegan a partir de cada acto expresivo
singular. Inspirándose en las tesis de Derrida sobre repetición y diferencia, Butler plantea que
la continuidad de todo significante político “depende de su repetición, pero esa necesidad
de repetición posibilita la introducción de cambios, la desviación de los contenidos del
término” (1993, p. 220). Si los términos adquieren sentido en virtud de actos repetidos que
plasman y actualizan su significado, surge la oportunidad de introducir variaciones en cada
una de esas repeticiones, y esto puede constituirse en resistencia, ya que “las exclusiones del
término pueden ser retomadas e incluidas en él” (BUTLER, 1993, p. 221). Esto no implica
que todo proceso de repetición y diferencia tenga necesariamente un carácter antagonista,
pero resulta interesante aquí indagar en su surgimiento y su potencial transformador.
Butler plantea que el sujeto, en su materialidad corporal, no es producido de una
vez por todas, sino que “es repetidamente producido” (1997a, p. 93), y esa repetición “hace
proliferar efectos que socavan la fuerza de la normalización” (1997a, p. 93). El nombre con
que cada sujeto es designado funciona como un marcador que establece su posición en
un sistema de referencia-sujeción. Sin embargo, cada vez que el sujeto heterodesignado
se reapropia de ese nombre abre un espacio para una acción discursiva antagonista que
cuestiona la norma desde dentro, al poner de manifiesto su incoherencia. “Los efectos de
catarsis en el discurso político son posibles sólo cuando términos que tradicionalmente
han significado de una forma determinada son reapropiados para otro tipo de finalidades”
(BUTLER, 1997b, p. 144), y esto se percibe en los movimientos queer y Black Power o en
el feminismo. Si la palabra proferida con la intención de insultar es asumida por la persona
destinataria de esa palabra, e incorporada afirmativamente como parte de su identidad,
la dimensión perlocucionaria de ese discurso se altera y trastoca, y ello puede fundar
discursos alternativos y dar lugar a identidades desligadas de los modelos hegemónicos
de subjetividad. Así, “el nombre que uno es llamado lo subordina a la vez que lo capacita,
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produciendo un escenario para la acción ambivalente” (BUTLER, 1997b, p. 163), esto es,
para la actuación antagonista.
Actualmente resulta obvio que “la verdad es una producción subjetiva, fruto de
la confrontación del sujeto con el mundo o, por mejor decir, de la mutua constitución
de ambos, sujeto y mundo” (ARAGÜÉS, 2015, p. 11). En este contexto, y asumiendo la
tensión entre ambos planos, cabe preguntarse “¿Qué sucede cuando comienzo a ser algo
para lo que no hay lugar en el régimen de verdad dado?” (BUTLER, 2004, p. 58). Existen
formas de identidad –y de vida- que no hallan espacio en las categorías hegemónicas con
que convencionalmente se etiqueta la realidad, y cuya existencia cuestiona esas mismas
categorías. Ese espectro de conductas, afectos y deseos ininteligibles dentro del orden
social dominante conforman ese ‘afuera’ anteriormente citado, son “regiones intermedias,
regiones híbridas de legitimidad e ilegitimidad que no tienen nombres claros” (BUTLER,
2004, p. 108), heterotopías o “no-lugares donde el reconocimiento, incluido el auto-
reconocimiento, se muestra como precario” (BUTLER, 2004, p. 108). Consideramos que
ese suelo ontológico, integrado por formas de vida que no son nombradas en las esferas de
la ‘verdad’, son un terreno sólido y fértil sobre el que cimentar nuevos discursos antagonistas
y nuevas prácticas de resistencia.
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3 Sobre el conatus de la multitud, vid. ARAGÜÉS, José Manuel. Líneas de fuga. Filosofía contra la sociedad idiota. Ma-
drid: Fundación de Investigaciones Marxistas, 2002, pp. 153-172.
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Referencias bibliográficas:
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99
As vicissitudes de uma racionalidade política do presente
Este texto tem como objetivo tratar sobre algumas transformações que podem
começar a ser vistas nas práticas de governo do início do século XXI. Para que se possa
atingir este propósito, é prudente primeiro reconstruir, ainda que muito brevemente,
uma caracterização da razão política dominante no ocidente ao longo do século passado.
Por este motivo, esta reflexão será iniciada pelo esboço de algumas características do
neoliberalismo a partir do pensamento de Foucault. Nesta descrição primeira, o enfoque
condutor da apresentação será o caráter instituinte ou institucional que essa racionalidade
política apresenta ou apresentou durante o século XX. Com isso, pretende-se indicar que
a governamentalidade neoliberal pôde se exercer preponderantemente por intermédio de
instituições por ela constituídas ou pela ressignificação de instituições a ela precedentes.
Ao final dessa exposição pretende-se indicar que no presente parece se estar diante de um
movimento de modificação nas práticas de governo, como se a as primeiras décadas do
século XXI nos colocasse diante de uma transformação interna da razão política neoliberal.
Entende-se com isso poder dar alguns indícios de que o modo pelo qual se governa,
paulatinamente passa a exercer poder sem a necessidade da intermediação de instituições.
Espera-se poder concluir essa reflexão apontando para alguns traços característicos deste
modo neoliberal “anti-institucional” de governo emergente no limiar deste século.
Para dar início a exposição, parte-se da afirmação de que o neoliberalismo é um
modo de governo fortemente institucional. Essa assertiva é um tanto contra intuitiva,
afinal, quando se pensa em neoliberalismo o que primeiro costuma vir à mente é a ideia
de liberdade de mercado, de ausência de intervenção do Estado na economia ou Estado
mínimo, privatizações dentre outras pautas que tradicionalmente são atribuídas a uma
“agenda neoliberal”. Ocorre que não se pretende aqui tratar o neoliberalismo como uma
agenda de pautas ou um receituário de ações políticas pré-definidas. Isto significaria reduzir
a profundidade dessa noção e ainda produziria uma indistinção objetiva entre liberalismo e
neoliberalismo. Por isso, opta-se por adotar a leitura de Foucault que trata o neoliberalismo
como uma racionalidade política, um modo de prática de governo e reflexão sobre essa
prática particular do século XX. Isso permite ao filósofo analisar o seu presente histórico
dentro de uma genealogia das práticas de governo, mostrando justamente o que a razão de
governo de seu tempo carrega de singular.
Para explicar isso então é preciso primeiramente traçar aqui uma linha divisória que
separe o liberalismo clássico dos séculos XVIII e XIX do neoliberalismo característico do
século XX. Nesse sentido, a principal distinção que permite à Foucault separar estas duas
formas de razão de governo é o fato de o liberalismo ser uma racionalidade constituída
1 Universidade de São Paulo
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Pedro Ivan Moreira de Sampaio
pela limitação do Estado, pelo laissez-faire, enquanto o neoliberalismo tem como princípio
ordenador a lógica da concorrência.
Certamente não é difícil ver o liberalismo clássico como uma racionalidade ordenada
pelo princípio de limitação do Estado. Para tanto basta lembra da edificação do Estado de
Direito ou mesmo das teorias dos contratualistas, que justamente concebiam a formação do
laço social e o aparecimento do Estado como uma alienação de parte dos direitos naturais
dos indivíduos em prol da preservação de outro quinhão destes direitos. Isto produz então
um Estado que justamente deve tutelar, e mais importante que isso, um Estado que não
deve interferir em certos direitos ou em certos domínios, vez que é precisamente a sua
preservação que justifica a existência do ente estatal.
Para além disso, o aparecimento histórico do liberalismo em meados do século
XVIII também reforça sua ordenação segundo o princípio da não intervenção. É no
contexto da crítica aos Estados absolutos europeus que emerge essa razão de governo. Ou
seja, o problema urgente que o liberalismo visava responder era: como limitar a atuação de
um Estado já existente? Como limitar a atuação um Estado que até então se caracteriza
pelo exercício interno de um poder de polícia ilimitado? Lembrando ainda que boa parte
das preocupações liberais orbitam a esfera econômica, o problema poderia ser enunciado
também assim: como assegurar em um Estado já existente o funcionamento de um
mercado livre? Nas palavras de Foucault: “Liberté de marché comme liberte de laissez
faire, comment était-elle possible à l’intérieur d’un État de police?” (FOUCAULT. 2004.
p.105/106).
O que Foucault consegue mostrar ao tratar da distinção entre o liberalismo clássico
e o neoliberalismo é que historicamente o problema do neoliberalismo é inverso àquele
enfrentado pelo liberalismo do século XVIII. Por tratar-se de uma razão de governo que
desponta em um contexto de pós 2ª guerra, um cenário de reestruturação ou de necessidade
de reestruturação dos Estados, o problema do neoliberalismo não se funda na limitação
do poder do rei, não se trata de garantir um espaço de não intervenção, mas ao contrário,
o problema central que presidiu o nascimento do neoliberalismo é, citando Foucault: “Soit
un État qui n’existe pas, comment le faire exister à partir de cet espace non étatique qu’est
celui d’une liberte économique? ” (FOUCAULT. 2004. p.88). Nesse sentido, o problema do
qual emerge o neoliberalismo não é o de ordenar a sociedade para garantir certa liberdade
de mercado ou liberdade econômica, ao contrário, trata-se de buscar um meio de conseguir
a partir da liberdade de mercado, ou a partir do funcionamento do mercado ordenar a
sociedade. Foi a essa urgência que o neoliberalismo precisou responder.
Por essa razão, o neoliberalismo aparece primeiramente com esse caráter fortemente
instituinte. De fato, esta característica está presente já desde o aparecimento do termo
“neoliberalismo”, no colóquio Walter Lippmann em Paris no ano de 1938 (Cf. AUDIER,
2012). Nesta ocasião, uma das denominações sugeridas, antes de se optar pelo termo
“neoliberalismo”, foi a nomenclatura “liberalismo positivo”, justamente para reforçar esse
caráter de uma razão governamental que não consistia em um princípio de limitação, mas
sim em um princípio ativo, de ação, de atuação, de intervenção. A questão posta por essa
racionalidade será então não propriamente delimitar campos de intervenção para o Estado,
mas sim definir como intervir. É com olhos neste caráter preponderantemente ativo que a
governamentalidade neoliberal se consistiu como a promoção de uma forte intervenção na
sociedade.
101
As vicissitudes de uma racionalidade política do presente
Le problème n’est pas savoir s’il y a des choses auxquelles on ne peut pas
toucher et d’autres auxquelles on a le droit de toucher. Le problème, c’est
de savoir comment on y touche. C’est le problème de la manière de faire,
c’est le problème, si vous voulez, du style gouvernemental. (FOUCAULT,
2004. p.139).
2 Télos
102
Pedro Ivan Moreira de Sampaio
naturalista onde os empregados eram obrigados a vender até a força de trabalho de sua
prole, extraindo deste ato o traço fundamental de sua constituição como classe. Ao mesmo
tempo, essa classe deixou de ser um proletariado pronto a explodir a qualquer momento
contra a vilania da fábrica. As greves agora já não podem paralisar a integralidade da
produção, já não se pode sabotar as fábricas e mais importante, já não se pode ter como
pauta de reivindicação, por exemplo, o fim da propriedade privada dos meios de produção.
Os objetivos se transformam e se troca o proletariado pelos trabalhadores que se unem não
como uma classe, mas como indivíduos que reivindicam melhores salários para possibilitar
seu projeto individual de sucesso e crescimento. É então desse direito do trabalho estável
e pacificador que se pode observar derivar algumas instituições de governo como: os
sindicatos, de empregados e patronais, os tribunais especializados em litígios trabalhistas
e mesmo órgãos públicos que tem como missão a fiscalização e elaboração de políticas
para assegurar a aplicação da lei. Todo esse arcabouço institucional é o que permite
afinal governar, fazer a passagem de um proletariado ingovernável para os trabalhadores
organizados.
Para além do direito do trabalho, também a assistência social é uma instituição
de governo que opera ao longo do século XX consoante a racionalidade neoliberal. É
oportuno primeiro ressaltar que a política social não é uma invenção do século passado
nem uma particularidade do neoliberalismo. Vale salientar que houve no ocidente políticas
sociais como as políticas bismarkianas ou mesmo aquelas pensadas por Keynes. O que elas
guardavam em comum até então é que tratavam de atuações estatais cujo objetivo era aplacar
as desigualdades econômicas. Essas intervenções se fundavam sob o argumento de que o
mercado por si só produzia desequilíbrios ao longo do tempo e seria preciso fazer operar
corretivos para dar segurança ao funcionamento das liberdades. (Cf. FOUCAULT, 2004.
p.151). No neoliberalismo o propósito é de todo outro. As desigualdades não são produto do
funcionamento de mercado, elas são gestadas pela própria sociedade, assim é preciso atuar
sobre a sociedade para evitar que esses desequilíbrios findem por excluir indivíduos dos
jogos econômicos do mercado. Assim, longe de buscar superar as desigualdades ou mesmo
reduzi-las, a política social neoliberal deve antes fazer bem funcionar as desigualdades. Nas
palavras de Michel Foucault: “Une politique sociale ne peut pas se fixe l’égalité comme
objectif. Elle doit au contraire laisse jouer l’inégalité” (FOUCAULT, 2004. p.148).
Assim, a política social neoliberal se organiza como uma assistência social que tem
como propósito fundamental garantir o “mínimo existencial” para os assistidos. Trata-se
de fornecer uma segurança para que todos possam ser incluídos no mercado, garantia de
condições de existência individuais para que ninguém seja excluído dos jogos de concorrência
do mercado. Assegurar o mínimo existencial será o que impedirá a existência de um fora
do governo. Mesmo aqueles que por ventura não possam ser incorporados no mercado
geral do trabalho, podem ser ainda objeto de um governo pela assistência social que deverá
ser, via de regra, custeada pela massa salarial, vez que são os trabalhadores aqueles mais
expostos aos riscos que a assistência e também a previdência devem securitizar. É assim
que o ocidente constituiu essa grande instituição de condução das políticas de seguridade
social, para governar os riscos presentes na sociedade que espreitam o funcionamento da
lógica de mercado.
Por fim, as últimas instituições mencionadas como exemplo, sobre quais ainda é
preciso dizer uma ou duas palavras são as agências reguladoras. Essas são instituições
que nascem já no interior da governamentalidade neoliberal. Como tal, esses órgãos
103
As vicissitudes de uma racionalidade política do presente
reguladores, que aglutinam agentes públicos e privados, suportam em sua espinha dorsal
o peso de tutelar a concorrência, princípio orientador do neoliberalismo. Para dizer de
modo um tanto simplificado, uma agencia reguladora é uma instituição composta por
representantes dos agentes que atuam no setor da economia a ser regulado, bem como por
representante do Estado. Seu objetivo é estabelecer normas de condutas para os agentes
econômicos, de forma a assegurar a concorrência naquele setor bem como evitar que seja
inibido o aparecimento de novos players para aquele mercado. No fundo, trata-se de um
modelo de autorregulação de setores da econômica. Essa opção reguladora provém da
própria pretensão neoliberal de intervenção, de modo a governar intensamente, mas ao
mesmo tempo sem buscar alterar o funcionamento do mercado por meio da imposição
de uma norma por decreto. Assim, criam-se esses órgãos onde os próprios agentes
regulados participam da criação de normas, assegurando a permanência da pluralidade
de participantes no mercado criando um estado de concorrência normatizada, permitindo
que a disputa entre as empresas possa manter o funcionamento harmônico do mercado.
Feita essa breve seletiva caracterização do viés institucional da racionalidade política
do éculo XX, passa-se agora ao início do século atual. Cabe pontuar inicialmente que é
contra esse modelo de governo mediado por instituições que, especialmente depois da
crise do mercado imobiliário estadunidense em 2008, tem se erigido uma crítica pensada
fundamentalmente a partir da retomada de pensadores da denominada “escola austríaca de
economia”. Essa crítica vem destes pensadores que a princípio compõe o quadro geral da
razão neoliberal. Hayek e Mises por exemplo, ambos expoentes dessa escola de economia,
estão em praticamente todos os momentos fundamentais da formulação do neoliberalismo.
Não se pretende com isso dizer que as políticas do século XX tenham sido implantadas
exatamente como os economistas austríacos defendiam, mas apenas salientar que eles
não podem ser vistos como algo distinto dessa governamentalidade do século XX. Ainda
assim, é preciso reconhecer que esses pensadores ocupavam um lugar de menor destaque,
quer dizer, frente à preponderância da “escola de Chicago” não é de se surpreender que
os austríacos ficassem um pouco em segundo plano. Em parte, isso se deve justamente
há algumas críticas que Hayek e Mises já faziam a esse modelo de governo institucional
ou de regulação da economia. Para explicar isso preciso então contar um pouquinho do
lugar de Hayek junto ao panteão dos Economistas. Hayek foi laureado com o prêmio
Nobel de economia em 1974. Um dos motivos que o levou a ser indicado e laureado com
o Nobel foram suas críticas à planificação da economia. A minuta de premiação refere-se
preponderantemente às análises do austríaco sobre a moeda3, mas pode-se seguramente
dizer que o motivo político do prêmio era preponderantemente a instrumentalização das
críticas de Hayek ao modelo econômico soviético. A questão é que boa parte dessas críticas
do austríaco à planificação poderiam também ser aplicadas ou direcionadas aos modelos de
regulação da econômica colocados em prática no ocidente sob as bênçãos auspiciosas da
escola de Chicago, especialmente de Milton Friedman. É esse direcionamento das críticas
de Hayek à regulação neoliberal que começa a ser retomado com destaque especialmente
a partir de 2008.
Para apresentar isso de modo sucinto, mas buscando retomar os exemplos que
já foram esboçados anteriormente caberia destacar que, por uma ótica a lá Hayek seria
3 A minuta do prêmio Nobel de 1974 que laureou tanto Friedrich Hayek quanto o sueco Gunnar Myrdal afirma exa-
tamente o seguinte: “Por seu trabalho pioneiro na teoria da moeda e flutuações económicas e pela análise penetrante
da interdependência dos fenômenos económicos, sociais e institucionais”
104
Pedro Ivan Moreira de Sampaio
possível afirmar que: primeiro, o trabalho não pode ser regulado de modo a impor normas
uniformes de conduta, a ordem nesse setor deve se limitar aos requisitos formais de contrato
entre dois indivíduos privados que acordam e podem dispor sobre todas as condições dessa
contratação, do contrário termina-se impondo um formato demasiadamente oneroso para
todo tomador de mão de obra que impacta em todos os preços, bem como ainda dificulta a
entrada de novos empreendedores nos mercados uma vez que apenas as grandes empresas
teriam condições de arcar com autos custos trabalhistas sem que isso representasse um
esforço exacerbado capaz de comprometer sua atividade. Em segundo lugar, os modelos
de assistência e previdência precisariam ser eliminados. Via de regra a securitização destes
riscos deveria ser incumbência individual e não coletiva. Deste modo, cada indivíduo
deveria escolher que riscos deseja ou não correr. Para além disso, quando se tenta criar uma
instituição central para promover essa securitização, ela termina gerando um custo social
mais alto do que representaria a própria concretização dos sinistros que ela busca assegurar.
No mais, o próprio Estado gestor terminaria sempre se vendo tentado a recorrer para esses
fundos de seguridade, afim de suprir seus demais déficits, convertendo as contribuições que
os alimenta apenas em impostos. Isso para não falar que ao garantir a ideia de um “mínimo
existência” o que se está fazendo é criando uma parcela de assistidos que são objeto de
governo, mas que não participam dos jogos da concorrência do mercado de trabalho e
por isso estão aquém de uma ordem efetiva e integral aos moldes do funcionamento do
mercado. Por fim, as agências reguladoras seriam mais um mal que um bem. Para dizer
em poucas palavras, ao permitir esse estabelecimento de regras para o mercado vindas das
empresas que deveriam concorrer, o que o Estado fomenta é a cooperação das empresas
ou a formação de cartel no setor regulado. Os players tenderão sempre a estipular regras
que dificultem o aparecimento de novos concorrentes e segmentarão o mercado entre as
empresas já existentes. Além disso, essa regulação desloca o polo da concorrência. Ao invés
de as empresas concorrerem no mercado no oferecimento de bens e serviços, elas passam a
competir prioritariamente pelos cargos dos órgãos reguladores. Para assegurar seus ganhos
não vão oferecer melhores produtos a menores preços que seus concorrentes, mas passam
a concorrer prioritariamente pelos espaços nas agências de regulação para poder conduzir
a política de regramento do modo que lhe seja mais vantajoso.
Essas seriam algumas críticas possíveis, feitas por uma ótica destes que se intitulam
contemporaneamente de “libertarianos”, pautados nessa tradição de Hayek e demais
pensadores da escola austríaca de economia. Eles conseguem operacionalizar essa crítica
que se volta para as instituições que constituíram o modelo neoliberal de governo. Este
pensamento tem paulatinamente ganhado espaço desde a crise de 2008. Para além disso,
vale ressaltar que é justamente esse conjunto de críticas contemporâneas ao neoliberalismo
que pode auxiliar na compreensão até mesmo algumas afirmações estapafúrdias muito
recentes que o cenário de “guerra cultural” tem dado ensejo. Por exemplo, ao longo do
mês de outubro de 2018 puderam ser presenciados ataques em redes sociais à revista The
Economist, ou ao cientista político e economista Francis Fukuyama, onde ambos são
acusados de serem comunistas. Ante esse tipo de discurso é difícil conter o riso. Quer
dizer, a publicação que é praticamente a cartilha neoliberal de nosso tempo e o pensador da
Escola de Chicago serem chamados de comunistas seria cômico se não fosse trágico. Mas,
o que é cabível de ser destacado é que essa afirmação pode não ser assim tão descabida.
Claro, é impossível dizer que a The Economist ou que Fukuyama sejam comunistas, mas
a questão é que essa tradição libertariana adapta e dirige a eles as mesmas críticas que
105
As vicissitudes de uma racionalidade política do presente
Hayek fazia às economias planificadas. Isso não justifica chama-los de comunistas, mas
ao observar os caminhos e descaminhos dessa critica é possível começar a entender o
movimento que embasa essa acusação e ver que no fundo ele pode ser mais do que um
devaneio de uma mente desavisada na internet.
Por fim, como este texto tem seu lugar num GT de Filosofia Política Contemporânea,
não seria possível deixar de lado a questão urgente de nosso tempo, as eleições presidenciais
de 2018. Destaca-se aqui apenas um ponto, o presidente eleito Jair Messias Bolsonaro,
seu flerte com Paulo Guedes e a aproximação ainda que claudicante com defensores de
medidas ultra-liberais. Esse fenômeno brasileiro está intimamente relacionado com as
críticas às instituições neoliberais que vinham sendo mencionadas até então. Talvez ler
a eleição de Bolsonaro por essa ótica seja no fundo a grande ordenação possível deste
fenômeno caótico que é o presidente eleito. Simplesmente dizer que Bolsonaro é um
fascista e que é o anúncio de tempos de repressão, por mais que possa ser verdade, isso não
auxilia na compreensão do significado propriamente ativo destes acontecimentos recentes.
A caracterização negativa em verdade contribui muito mais para a incompreensão, para o
impedimento da análise. Isso não quer dizer que o presidente eleito não mereça os adjetivos
atribuídos ao fascismo. Ocorre que ao se restringir à adjetivação, isso revela especialmente
a incapacidade de se enxergar o que talvez seja mais fundamental e por isso mais perigoso
no presidente eleito, a ordem ou ordenação possível nesse movimento que o rendeu 55 por
cento dos votos válidos. Talvez a questão central de sua candidatura tenha sido o discurso
de violência e neste caso a violência produziu seu efeito mais gritante, o silêncio. Silêncio
sobre o que a candidatura de Bolsonaro trazia de mais fundamental, as reformas. Essas das
quais ao longo da campanha a cada dia se falava menos, dando enfoque quase que exclusivo
ao discurso proto-fascista do candidato da extrema direita. A reforma da previdência, a
reforma trabalhista, a reforma tributária a reforma administrativa do Estado. Todas com
caráter profundamente “desestituinte”, de desmonte institucional. Essas mesmas reformas,
que a presidente eleita Dilma Rousseff se mostrou indisposta a fazer, que o seu suplente
Michel Temer se mostrou incapaz de fazer e que Bolsonaro prometeu realizar nem que pra
isso tenha que mover todo o Aqueronte. É nesse sentido que talvez fosse possível começar
a entender o lugar que ocupa na grande cena da governamentalidade ocidental uma eleição
como a brasileira e o que está em jogo neste próximo governo.
De todo modo, o exemplo do Bolsonaro é apenas o espécime local dessa transformação
maior que se pode ver caminhar desde a crise de 2008. Talvez a vicissitude de governo no
nosso tempo seja essa: o neoliberalismo entendido como um modelo jurídico-econômico
ou institucional-econômico tem paulatinamente se desfeito dessa sua faceta institucional,
com a crença de que já não precisa das instituições do século XX para governar, deixando de
prontidão apenas o aparelho repressivo, afinal todo governo precisa de alguma securitização.
Para concluir, apenas então é oportuno sugerir que talvez o que se vive no Brasil
hoje tenha mais semelhança com o Chile de 1973 do que com o golpe de 1964. No fundo
é a ordem que se anuncia que deve inspirar temor, e não o caos. O lugar da violência
do discurso do presidente eleito talvez apenas reafirme a citação de um dos patronos da
literatura Brasileira, para lembra que “[...] a ordem social e humana nem sempre se alcança
sem o grotesco, e alguma vez o cruel.” (ASSIS, 2018. p.05).
106
Pedro Ivan Moreira de Sampaio
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néolibéralismes de Michel Foucault. Paris. Sciences Po Les Presses. 2013.
107
A biopolítica como paradigma de governo: uma genealogia...
Introdução
Um dos maiores projetos presentes na trajetória intelectual do Michel Foucault seria
uma história política da governamentalidade2. Em que consiste tal projeto? Em linhas gerais,
pode-se afirmar que o seus objetivo longitudinal consiste em pensar os principais aspectos
relacionados a formação, na nossa sociedade ocidental, de diferentes artes de governo, isto é,
distintos modelos pelos quais os sujeitos são conduzidos a partir da tripla correlação entre
as estratégias de saber, as práticas de poder e os processos de subjetivação. Nesse sentido,
é correto afirmar que pode-se encontrar nessa correlação uma série de deslocamentos em
relação ao percurso estabelecido pela problemática de governo na orientação das condutas.
Sendo assim, num primeiro momento poder-se-ia ilustrar a presença do governo
de si nas culturas antigas, em que o sujeito era interpelado a produzir uma experiência
ética tensionada pela filosofia como forma de vida e uma agonística da existência desde a
emergência do pensamento socrático até as últimas escolas filosóficas da Antiguidade como
o cinismo, por exemplo (FOUCAULT, 20013, 2014). Já num segundo momento, é possível
rastrearmos a presença da formação, no século VI d.C. do que Foucault (2008) chama de
governo das almas cuja atitude fundamental era caracterizada pela relação entre pastorado
e rebanho (FOUCAULT, 2008). Por fim, no século XVI, emerge a experiência de um
Estado moderno governamentalizado compreendido por Foucault (2008) como a vocação,
por excelência da nossa modernidade, das categorias essenciais presentes na composição
de uma razão de Estado voltada para a condução da vida a partir de dispositivos como os
de seguridade e os de normalização. De todo modo, Foucault (2008) parece inclinado a
nos demonstrar como a categoria de governo está diretamente atrelada ao duplo efeito no
qual tal conceito circula na estrutura das práticas sociais existentes na nossa modernidade.
O que a analítica foucaultiana procurará referendar é que, o governo também deve
ser compreendido como espaço de governamentalização, já que ele reflete os movimentos
pelos quais seus procedimentos irão chocar-se constantemente entre os modos de
veridicção e práticas de condutas. Em torno desse duplo aspecto, emerge o problema
1 FURB/UNISINOS
2 Uma história política da governamentalidade percorre os contornos dos cursos promovidos por Foucault no Collège
de France e ensaios consagrados a problemática dos estilos de governo na nossa sociedade ocidental. Nesse sentido, é
possível rastrearmos os indicativos dessa alegoria formulada por Foucault já em Os Anormais, passando pelos cursos
Em Defesa da Sociedade, Segurança, Território, População, Nascimento da Biopolítica, Do Governo dos Vivos, O Governo
de Si e dos Outros e A Coragem da Verdade, além dos ensaios A Filosofia Analítica da Política e Omnes e Singulatim. Ver
mais detalhes em: FOUCAULT, 2002, 1999, 2008, 2009, 2012, 2013 e 2014a, 2014b, 2015.
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Rodrigo Diaz de Vivar y Soler
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A biopolítica como paradigma de governo: uma genealogia...
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Rodrigo Diaz de Vivar y Soler
Desse modo, percebe-se como a passagem do século XVII para o século XVIII
inaugura um momento em que a governamentalidade emerge como força correlativa aos
pressupostos que integram a soberania. Não obstante, o problema passa a ser, a partir
de então, não mais o combate aos excessos cometidos pela figura do príncipe, mas sim
como e sob quais condições, a pergunta governa-se demasiadamente a vida das pessoas?
é insistentemente colocada. Na opinião de Senellart (1995), ao desenvolver um estudo
crítico sobre a emergência do mercado econômico na sociedade ocidental, Foucault acaba
por compreender este acontecimento como uma prática refletida de governo.
Trata-se, portanto de um fundamento que circula em torno do problema de uma
razão governamental que vai se inscrever no campo da economia política e, como tal, deve
ser compreendida a partir do nascimento da biopolítica e sua consolidação no projeto de
sociedade ocidental. Mas, acima de tudo devemo-nos perguntar: o que Foucault (2009,19)
entende por economia política? A esse respeito ele mesmo lembra que
Conforme essas palavras sugerem, Foucault (2009) entende uma dupla posição
no contexto de uma história política da governamentalidade. De um lado, a economia
política trata-se da sistematização e da distribuição de riquezas e, de outro lado, ela refere-
se a garantia da prosperidade de uma nação. Mas, o que parece sintetizar adequadamente
a economia política seria toda estratégia calculada e refletida sobre a organização, a
distribuição e a limitação dos poderes, fazendo dela um princípio intrínseco a razão de
Estado já que os seus objetivos favorecem o enriquecimento do Estado e, ao mesmo tempo
acompanham o crescimento da população concedendo-lhe os meios necessários para a sua
subsistência.
Ocorre que, com a emergência do liberalismo, cada vez mais a economia política
passa a sinalizar as possibilidades para limitar o crescimento e a intervenção do próprio
Estado na vida dos indivíduos, pois para Foucault (2009, 39)
Evidentemente que, para Foucault (2009), não se trata de afirmar que o liberalismo
seja uma espécie de suspensão do efeito da razão de Estado, mas sim uma inflexão sobre
111
A biopolítica como paradigma de governo: uma genealogia...
o qual circula um novo efeito de uma razão de Estado mínimo e, é justamente na esteira
dessa nova modalidade de uma utopia liberal por um Estado mínimo que se inaugura um
efeito paradoxal sobre os procedimentos de governamentalidades: a reincidência de práticas
subversivas que tencionam as intervenções de uma modalidade de governo que se diz e pretende ser
liberal. Dito de outro modo, o problema para Foucault (2009), não seria o de pensarmos a
legitimidade ou não do legalismo jurídico e seus efeitos constitucionais, mas sim a condição
paradoxal da arte liberal de governar: como exercer um governo sobre a população e, ao mesmo
tempo, garantir as liberdades individuais? O liberalismo, como podemos enxergar, instiga
o desenvolvimento de práticas que operam sob a perspectiva de que deve-se governar o
mínimo possível e, ao mesmo tempo, não deve deixar-se de intervir sobre a conduta da
população.
Foucault (2009) trata, portanto de pensar as articulações entre essa nova modalidade
de governo inaugurada com o liberalismo no contexto de um novo regime de verdade e,
para contextualizar tal modelo, ele procura explorar as nuances da governamentalidade
como objeto privilegiado da criação de procedimentos de vigilância e controle muito mais
sutis do que os existentes em outros momentos históricos. No contexto do liberalismo,
esses procedimentos são um produto não dos economistas, mas do mercado econômico.
No sentido de estabelecer uma genealogia dessa prática Foucault (2009) apresenta-
nos a tese de que suas emergências e proveniências remetem ao exercício do governo praticado
pelo poder pastoral. Na Idade Média, segundo Foucault (2009), o governo era compreendido
como uma questão de justiça a partir de seus múltiplos sentidos. Primeiramente por conta
da sua atenta regulação desde a fabricação de objetos até sua posterior comercialização.
Havia também uma função jurídico-administrativa a qual o mercado era concebido por
meio da aplicação de uma política do preço justo mediada por uma acepção de justiça
distributiva, isto é, uma modalidade de mercado que procurava fomentar o acesso – senão
a todos, pelo menos a grande parte do povo – e, por fim, o mercado era o operador de
regulamentação das possíveis fraudes. Dentro dessa modalidade originária, um mercado
ruim era aquele que deixava-se contaminar pelas fraudes e pela ausência de um preço
justo e a inacessibilidade dos produtos aos sujeitos. Portanto, o poder pastoral tinha como
finalidade procurar regular o mercado de todas as maneiras concentrando, dessa maneira,
a impossibilidade da taxação dos juros acirrarem a competição entre os sujeitos e, a sua
consequente degradação moral. Um emblema dessa modalidade de mercado econômico
é a peça O Mercador de Veneza, na qual Shakespeare (1978) aponta o sentido tragicômico
de um mercado pastoral já em crise, e os contornos de uma nova modalidade, para tal
prática com a ascensão da classe burguesa. A peça shakespeariana caracteriza-se como uma
elipse entre o poder pastoral e a razão de Estado moderna por meio do encontro entre as
modalidades de mercado que deveriam ser mediadas pelo poder pastoral e a nova, e cada
vez mais crescente onda de proliferação de dispositivos próprios a uma outra economia
que tomará os juros como elemento essencial para a emergência no século XVIII de um
mercado mais independente em relação ao Estado. Entretanto, a pergunta que permanece
é: qual seria, precisamente esse novo sentido atribuído pela governamentalidade do século XVIII
ao mercado econômico? Foucault (2009) aponta que ele seria composto por um duplo aspecto:
de um lado, emerge, com o liberalismo, uma nova noção de mercado duramente atrelada
aquilo que os fisiocratas denominavam como lei dos mecanismos naturais, isto é, em nenhum
momento a razão de Estado deveria intervir sobre os aspectos espontâneos das regras de
oferta e de procura. Do outro lado, o mercado deveria tornar-se um regime de verdade, ou
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Rodrigo Diaz de Vivar y Soler
melhor, uma forma de veridicção pela aproximação ao máximo possível tanto do custo da
produção quanto da extensão da demanda e, nesse sentido, tem-se início o que se conhece
por oscilação econômica, um traço que rechaçará a demanda do preço justo e apresentará
o contexto do preço verdadeiro, pois segundo Foucault (2009, p. 47)
113
A biopolítica como paradigma de governo: uma genealogia...
dispositivos jurídicos. Conforme aponta Candiotto (2010), esse novo problema relacionado
a governamentalização do mercado econômico sinaliza que, a partir do liberalismo não se
trata mais de opor o poder real da instituição judiciária, ao exercício da soberania, mas sim
procurar formular os procedimentos necessários para um bom governo com base na sua
própria autolimitação a partir da seguinte problematização elaborada por Foucault (2009,
p. 52): “se há uma economia política, o que acontece com o direito público?” A resposta
em torno de tal questionamento consiste na possibilidade dessa governamentalização do
mercado econômico sempre delimitar em torno de quais condições o Estado deve ou
não deve interferir na economia a partir dos critérios dos modos de veridicção. Emerge,
nesse contexto um enunciado muito importante rastreado por Foucault (2009): o fato
de que, desde as primeiras décadas do século XVIII o modelo de governamentalidade
liberal insistiu na produção de uma lógica cada vez mais perversa segundo a qual a todo
o momento o estado democrático de direito deve estar assujeitado a economia de mercado. Ou
seja, para que o primeiro possa existir, é preciso que, a segunda sempre dite as regras e os
modos de veridicção de cada época pela lei natural de um mercado econômico totalmente
utilitarista. Essa perspectiva crítica nos ajuda a compreender, portanto como o reino da
soberania se curva ao governo da economia de mercado a partir de um claro tensionamento
entre a governamentalidade liberal, a economia política e o direito por meio de uma clara
composição de forças por meio de uma economia política da verdade que interpela o
Estado e, ao mesmo tempo integra o direito à realidade econômica do mercado.
Entretanto, é importante destacarmos que tal inflexão deve ser compreendida a partir
de uma espécie de jogo de duplos entre o que Foucault (2009) chama de via axiomática
jurídico-dedutiva e o jogo da prática governamental. Enquanto que a primeira remete a
uma tradição que liga o direito à Revolução Francesa partindo não do governo, mas da
constante fundamentação de um sentido originário e, ao mesmo tempo, tenta garantir a
todos os indivíduos as condições de igualdade e garantias fundamentais. Já a outra dobra
dessa inflexão corresponde aos jogos de verdades produzidas pela governamentalidade a
partir de um limite utilitarista que se interessará em fixar as regras de um mercado desejante
responsável por definir as fronteiras entre lícito e ilícito no contexto das funcionalidades
econômicas.
Considerações Finais
Conforme pudemos observar, uma genealogia do mercado econômico em Michel
Foucault nos auxilia a pensar os sentidos pelos quais, a partir do liberalismo passa a se
configurar, na nossa sociedade os elementos de uma veridicção da economia responsável
por introduzir uma prática refletida de governo, segundo a qual os tensionamentos entre
subjetividade e garantias fundamentais passam a ser inseridos dentro de um programa
econômico que gerencia as condutas por meio de uma grade de inteligibilidade de modos
de subjetivação nos quais o regramento ético é modulado pela financeirização da vida, isto
é, modos de vida e afecções em que os indivíduos são grandes e pequenos avalistas de um
permanente empresariamento de si mesmo. Na realidade o que está em jogo é a manutenção
do interesse dentro do contexto da prática jurídica o que significa que, o grande teatro dos
aparatos jurídicos, nada mais são do que a própria dimensão de uma espetacularização
que obedece a grade de inteligibilidade do mercado econômico acarretando a formação
de um processo que aqui poderíamos nomear como a judicialização do mercado como espaço
de legitimidade dos interesses neoliberais. No contexto de uma ética do homo oeconomicus tão
114
Rodrigo Diaz de Vivar y Soler
115
A biopolítica como paradigma de governo: uma genealogia...
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116
Rodrigo Ribeiro Alves Neto
117
Tensões constitutivas entre poder, violência...
instituído e preservado. A autoridade possui sempre uma força superior cuja fonte deve
transcender o poder e os que o detêm, da qual as autoridades derivam sua legitimidade e têm
seu poder confirmando. Essa é a diferença essencial entre a tirania e o governo autoritário,
ou seja, o primeiro impõe mediante o uso da violência uma dominação que atende ao
arbítrio e ao interesse do tirano, expulsando os homens da esfera pública, ao passo que,
o segundo pretende reivindicar a obediência às leis e instituições mediante a instauração
predeterminada de uma fonte de legitimidade que assegure sem violência ou persuasão ao
exercício do poder. A relação de autoridade é fortemente hierarquizada e desigual, marcada
pela obediência voluntária e assentada sobre algo pré-estabelecido. A permanência do
mundo comum só pode ser garantida se os que nele são recém-chegados por nascimento
forem acolhidos e guiados através de um mundo preestabelecido no qual nasceram como
estrangeiros. Os homens chegam ao mundo em comunidades políticas já previamente
constituídas que pressupõem o reconhecimento à autoridade de seu ordenamento jurídico
e de suas instituições. Por isso a autoridade, assentada sobre o ato fundacional do corpo
político, confere ao mundo comum a permanência, a continuidade e a estabilidade de
que os homens necessitam por serem mortais. A autoridade, em contraposição ao poder,
tem suas raízes no passado pré-estabelecido, ainda que ele deva ser tão presente na vida
real da comunidade política quanto o poder e a força dos vivos, pois reivindica respeito e
obediência voluntária dos cidadãos. É neste movimento de “aumentar” o passado em sua
vitalidade que reside a solidez do ato fundador na criação de comunidades politicamente
organizadas. Arendt enxergou na experiência romana da autoridade o quanto a fundação
de um autêntico mundo comum não está alicerçada apenas em uma pluralidade de homens
singulares, mas também em uma pluralidade de seres mortais que, enquanto tal, constitui
uma pluralidade de gerações dependente da continuidade, da estabilidade e da durabilidade
da esfera pública.Uma comunidade política que necessite de violência não tem autoridade.
Por isso o apelo à violência nunca poderá restabelecer a autoridade, como se a violência
pudesse exercer a mesma função atribuída à relação autoritária, ou seja, a subordinação. A
autoridade pressupõe reconhecimento daqueles que devem obedecer, dispensando, deste
modo, tanto a coerção pela força (não demandando o uso efetivo dos implementos para
funcionar) quanto a persuasão por argumentos (pois não é uma relação igualitária, mas sim
hierarquizada). A distinção entre poder e autoridade exprime, portanto, a oposição entre
o poder instituinte, inovador, espontâneo e livre da ação e a firme continuidade pública de
uma moldura institucional estável.
Essas distinções entre poder, autoridade e violência revelam que Arendt não é apenas
a pensadora do caráter agonístico, frágil e plural da ação política, buscando ressaltar seu
sentido performático, espontâneo e não-violento, enfim, sua dimensão pré-institucional,
indeterminada e imprevisível. Sem dúvida, a autora concebe a ação a partir da natalidade e
da pluralidade, como expressão de uma ilimitada capacidade de estabelecer relações entre
os homens enquanto seres únicos entre iguais, engajados na esfera da aparência e aptos a
ocasionar, mediante atos e palavras, novos processos no mundo comum, gerando poder
instituinte e experimentando a liberdade como o sentido radical da política. Contudo,
embora estabeleça importantes distinções conceituais e fenomênicas, a obra arendtiana
nunca manifesta um mero antagonismo entre poder, autoridade e violência. Se tais aspectos
são opostos, não se trata de apartá-los como dimensões estanques, mas ressaltar o caráter
vinculante que os diferencia, pois eles se distinguem somente porque estabelecem entre
si uma relação ou vínculo diferencial que torna possível a própria existência do “espaço
118
Rodrigo Ribeiro Alves Neto
público”, uma vez que é no âmbito, muitas vezes tenso, embora constitutivo, entre o poder
de iniciar e a capacidade de continuar o que foi iniciado que se realiza efetivamente a esfera
do político.
Essa imbricação entre as distintas dimensões da esfera política fica muito mais
evidente quando se trata de pensar um tipo especial de ação, a revolucionária, aquela que
funda o corpo político, a “ação fundadora”. Nessa forma de ação política reside uma dupla
perplexidade inerente à situação revolucionária, qual seja: a conjugação do poder e da ação
política com a violência e a autoridade. É por isso que se torna instigante examinar em
que medida o contexto de análise da obra “A Condição Humana” (2010) pode servir como
contraponto ou contraste em relação à abordagem presente na obra “Sobre a Revolução”
(2011), como se essa última exigisse de Arendt uma revisão que ampliasse sua reconsideração
fenomenológica da vida política e seu diagnóstico crítico da era moderna, tendo que
reconhecer a particularidade da situação revolucionária e as perplexidades que lhes são
inerentes. Na obra “Sobre a revolução”, o contexto de discussão se altera profundamente,
pois Arendt não aborda a ação no interior de um espaço político já demarcado, sob a
inspiração da pólis grega, mas sim um tipo de ação especial, que é a ação fundadora, sob a
inspiração romana. A ação fundadora é aquela que cria um novo corpo político a partir de
uma ruptura com a ordem político-jurídica anterior. Esse tipo especial de ação, inserida na
situação revolucionária, gera uma dupla perplexidade sobre o vínculo diferencial entre poder
e violência e entre poder e autoridade.
Na primeira perplexidade está em jogo a presença da violência no ato iniciador,
ou ainda, a violência com geradora de poder, como um fenômeno político e não como
transgressão criminosa da política ou ausência de autoridade, mas sim de uma violência
na política. Enfim, na obra “A Condição Humana”, Arendt ensina que a política e o poder
de ocasionar o novo no mundo comum são expressões de uma ação não violenta. A força
e a violência são características da esfera doméstica ou pré-política, que eram justificadas
na pólis grega por serem os únicos meios de vencer a necessidade (subjugando os escravos,
por exemplo). Ali Arendt afirma que toda intervenção violenta seria “instrumental”, pois
não tem valor em si mesma, ao passo que a ação política é livre justamente porque tem seu
fim em si mesma. A violência seria uma característica da fabricação e não da ação política.
Contudo, na obra “Sobre a Revolução”, o contexto é outro, pois Arendt parece
constatar que os homens na revolução experimentaram a perplexidade da conjugação
entre novo início e violência, pois na situação revolucionária, a força instituinte do mundo
comum precisa do uso da violência como única solução política à violência do poder
instituído. A perplexidade aqui é que a revolução gera poder e, assim, é um fenômeno
político, mas esse poder pode vir vinculado à violência, revelando que a revolução é um
fenômeno mais complexo, característico da era moderna e inteiramente contrastante com
a pólis grega na qual se descarta a oposição entre poder e violência. Parece que a obra
Sobre a Revolução exigiu de Arendt uma reconsideração crítica que ampliou seus conceitos
políticos e seu diagnóstico da era moderna, tendo que reconhecer a particularidade da
situação revolucionária. Nesse contexto, Arendt parece problematizar a rígida separação
entre poder e violência como compartimentos independentes no mundo fenomênico.
Como esclarece Duarte:
119
Tensões constitutivas entre poder, violência...
120
Rodrigo Ribeiro Alves Neto
como um fim em si mesmo, do poder conjugado da ação coletiva que dispensa justificativa,
pois o poder não está fundado em nenhuma outra instância extra-política. É por isso que
as próprias revoluções modernas são pensadas aí como expressões da confusão entre ação
e fabricação e da fusão entre poder e violência. Nesse aspecto, as revoluções modernas
seriam até mesmo marginais em relação à esfera propriamente política. Mas no contexto de
discussão da obra “Sobre a revolução”, Arendt reflete sobre o modo como a ação fundadora
precisa encontrar uma nova fonte de autoridade que conceda legitimidade ao poder
político sem recorrer ao absoluto transcendente. Isso ocorre porque a ação fundadora é
uma ruptura na história e, assim, vem acompanhada da pergunta pela autoridade daqueles
que estão a iniciar um novo começo ou uma nova instituição do mundo comum na qual
os signatários se constituem como tal no próprio ato da assinatura, como diz Derrida. As
questões que se colocam são: Como pensar o ordenamento jurídico-político sem recorrer ao
absoluto transcendente? Como estabelecer uma fonte de legitimidade capaz de constituir
os constituintes e permitir que alguns possam falar em nome do povo?
Se o poder, como fim em si mesmo, não necessita de justificação, ele requer sempre a
legitimidade que lhe é conferida por uma fonte de autoridade que dispensa a ação, a persuasão
e a violência. O problema da autoridade consiste na tarefa política de preservação do mundo
comum que, sem necessidade de coerção e persuasão, mantenha-se em continuidade
com suas fundações, conferindo relativa permanência e amplo reconhecimento às suas
instituições em face dos sempre frágeis, imprevisíveis, ilimitados e inconstantes negócios
humanos. A tarefa que Arendt se põe diante do declínio da autoridade no mundo moderno
consiste em pensar sobre o que, em um mundo secular já sem a força da autoridade política,
nos moldes tradicionalmente concebidos, poderia desempenhar politicamente este papel
de conservação, legitimidade e durabilidade às instituições políticas?
Ultimamente essa abordagem mais “institucional” da reflexão arendtiana vem
recebendo cada vez mais atenção dos intérpretes (WALDRON, 2000; KALYVAS,
2006; TASSIN, 2016; D’ALLONES, 2008, ADVERSE, 2012, TORRES, 2013). Trata-
se do problema da conservação e da continuidade pública, ou ainda, da capacidade de
estabilização e manutenção do corpo político. Esse aspecto é pouco explorado e muitas
vezes negligenciado certamente porque alguns outros textos da autora, especialmente o
livro “Sobre a Revolução”, são ainda menos conhecidos e discutidos, pois neles encontramos
uma reflexão mais detida sobre a “duração pública”. O que gera perplexidade aqui é a ação
que ocasiona o novo no mundo precisar de uma fonte de autoridade que a salve de sua
arbitrariedade, ou seja, a ação coletiva inovadora só será fundadora se estiver conjugada
com um fator de estabilização, permanência e conservação do mundo comum. A questão
é como conferir estabilidade para um ordenamento legal consentido e legitimidade para a
conservação das instituições do novo corpo político fundado pela revolução. A perplexidade
que as revoluções provocaram na modernidade secular foi o desafio de encontrar um novo
alicerce para a fundação de um mundo comum, com seu significado político materializado
em uma Constituição que, excluindo qualquer princípio absoluto de estabilização do corpo
político, preserve a autoridade, o reconhecimento e a continuidade do espaço institucional
e, ao mesmo tempo, garanta o espaço da ação conjunta de cidadãos livres e ativos, aptos a
introduzirem a novidade e revitalizarem a esfera pública. Somente precisamos de uma fonte
transcendente de autoridade quando entendemos a lei como um mandamento ao qual os
homens devem obediência absoluta, independentemente de seu consentimento ou acordos
mútuos. Arendt tentar mostrar que, quando a ação funda a liberdade em uma República
121
Tensões constitutivas entre poder, violência...
122
Rodrigo Ribeiro Alves Neto
123
Tensões constitutivas entre poder, violência...
ação, pois a vitalidade da fundação envolve criar as condições para que as futuras gerações
possam participar do mundo comum. Por isso Arendt diz que o mundo comum deve
transcender a duração de nossas vidas tanto no passado quanto no futuro, preexistindo
à nossa chegada e sobrevivendo à nossa breve permanência nele. O mundo precisa ser o
que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles
que aqui estiveram antes e aqueles que virão depois de nós. A Constituição, como um
documento escrito ou uma “coisa objetiva durável”, está simultaneamente atrelada à noção
de fundação, aos princípios que a nortearam, ligando-se à ideia de durabilidade pública e
também à experiência política concreta que dá continuidade a uma prática de liberdade
aberta ao novo. Ela não é fruto da capacidade de fabricar que molda a matéria política a
partir da mente sábia do legislador, pois consiste em um ato fundador contínuo e imanente
à capacidade política de se vincular, de prometer, de se comprometer e de assumir pactos
duradouros. A Constituição, como fonte de autoridade, é um fator de estabilização e
conservação do corpo político somente se ela cria e protege os meios ou os espaços pelos
quais o poder será mantido em sua processualidade e atualidade, uma vez que só o exercício
efetivo da ação política, a rememoração constante das práticas de fundação e a atualização
do poder podem fazer durar a vitalidade do espírito fundacional (Cf. TORRES, 2013). O
desafio ao qual à Constituição corresponde consiste justamente na tarefa de manter intacto
o poder que nasceu entre os homens no processo conjugado da ação ou no processo da
fundação.
124
Rodrigo Ribeiro Alves Neto
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em 13/08/2018>.
125
Eventos revolucionários do século XVIII: Revoluções americana...
Para além desta imprevisibilidade acerca dos efeitos desencadeados no curso das
revoluções, elas também inauguraram “uma era totalmente nova, com a criação do calendário
revolucionário, cujo ano I correspondia ao ano da execução do rei e da proclamação da
República” (ARENDT, 2013d, p. 57). Além disso, as revoluções permitiram a possibilidade
de ser livre como experiência única, como experiência nova. Não se tratava, obviamente,
de uma experiência de ser livre enquanto novidade na história do Ocidente, haja vista que
a Antiguidade Grega e Romana tenham possibilitado tal experiência. Antes, tratava-se da
retomada da experiência de ser livre por conta do vácuo de liberdade política que solapou a
humanidade a partir da queda do Império Romano até o surgimento da Era Moderna. Em
grande medida, essa perda da liberdade como possibilidade de se assentar junto aos pares
1 UFG
126
Samarone de Oliveira Lopes
A autora afirma não ser trivial que o fenômeno da revolução não tenha precedentes na
história pré-moderna. Mesmo porque, se quisermos compreender o espírito revolucionário,
aquele nascido na revolução, faz-se necessário distingui-lo do desejo moderno de novidade
a qualquer preço.4 Para Arendt, a experiência da fundação, junto à ideia de iniciar algo
novo dentro da história, acaba por tornar os homens mais conservadores, no sentido de
preservar o que fora construído, não revolucionários. Além disso, os homens das primeiras
revoluções, ou seja, aqueles que introduziram as revoluções no cenário da política, não
estavam ansiosos por coisas novas, por um novus ordo saeclorum. Logo,
é essa tendência de ser avesso à novidade, que ainda repercute na própria
palavra “revolução”, termo relativamente antigo que apenas muito
devagar veio a adquirir seu novo significado. [...] O cerne da questão
é que o enorme pathos de uma nova era, que encontramos em termos
quase idênticos em variações intermináveis ente os atores da Revolução
127
Eventos revolucionários do século XVIII: Revoluções americana...
Portanto, o termo revolução5, quando passa a ser empregado nos assuntos de ordem
política, não possui a conotação de restauração e não de um novo espírito ou, mesmo, de
uma modernidade. Por isso mesmo, diz Arendt, ao examinarmos a Revolução Francesa e
a Revolução Americana, precisamos levar em consideração que elas foram protagonizadas
por homens cuja motivação consistia na restauração de uma antiga ordem de coisas que o
despotismo da monarquia absolutista ou abusos do governo colonial haviam perturbado e
violado. É somente a partir do episódio da Queda da Bastilha6, em Paris, que se relata o
primeiro uso do termo “revolução”, não mais como um movimento cíclico.
Para Sônia Maria Schio,
5 Para Arendt, o uso do termo revolução desvencilhado da conotação de movimento cíclico, pode ser observado na
noite de 14 de julho de 1789, em Paris quando o duque de La Rochefoucaul-Liancourt informou a Luís XVI sobre
a queda da Bastilha, a libertação de alguns prisioneiros e a defecção das tropas do rei diante de um ataque popular. O
famoso diálogo que se deu entre o rei e o mensageiro é breve e revelador. Dizem que o rei exclamou: “C’est un revolte!”,
e Liancourt corrigiu: “Non, sire, c’est une revolution”. Cf. Arendt, 2013d, p. 79.
6 Queda da Bastilha, também conhecida como Tomada da Bastilha foi um evento fundamental no curso da Revolução
Francesa. Ocorreu em 14 de julho de 1789 e até hoje é considerado o principal feriado e evento político na França. A
data marca a invasão da fortaleza do estado pela massa revoltosa com os conflitos contra a nobreza. O terror e o derrama-
mento de sangue foi inevitável no confronto entre os guardas da bastilha e a massa, insuflada pela indignação e descaso.
128
Samarone de Oliveira Lopes
Schio nos convida a observar que o objetivo de Arendt não seria glorificar uma
revolução e menosprezar a outra. Também, não era interesse da pensadora, diz Schio,
simplesmente estabelecer uma relação superficial entre ambas as revoluções. Nas palavras da
comentadora, o objetivo de Arendt era explicitar as diferenças pertinentes aos fundamentos
de cada uma. Isto porque, pôde-se notar, no contexto da Revolução, que a miséria do povo
e a apatia em relação às decisões, por parte da burguesia, acabaram turvando o fenômeno
revolucionário. Enquanto isso, na América, os “pais fundadores” empenharam-se em
“manter a organização que elaboram ao chegar ao território, a liberdade e a participação
dos componentes do grupo (as Treze Colônias)” (SCHIO, 2016, p. 66).
Havia, portanto, o gérmen revolucionário capaz de fazer com que as colônias inglesas
manifestassem o desejo de não serem exploradas “pela Metrópole Inglesa, mantendo a
maneira de viver que haviam instituído no início da colonização7.
Mariana Matos Rubiano escreve que,
Existe uma relação entre a política e a vontade que se assemelha, em grande medida,
à relação que “o espaço político tem com as leis”. Para Abreu, “a ação política depende
da vontade para iniciar-se, mas não é, propriamente, um produto dela” (ABREU, 2004,
p. 156). De modo semelhante, o espaço político precisaria de uma estrutura legal para
ser constituído, todavia, é importante observar que o espaço público não é produto desta
estrutura e a mesma não se dá por meio de um processo interno inerente ao espaço público.
Quanto às diferenças cruciais entre as Revoluções Francesa e Americana, Arendt
afirma que:
Enquanto isso,
130
Samarone de Oliveira Lopes
fato de todas as treze colônias da América redigirem constituições antes, durante e depois
da Declaração da Independência, afirma Arendt:
131
Eventos revolucionários do século XVIII: Revoluções americana...
Casagranda salienta o aspecto de que, para Arendt, embora tenham existido resultados
distintos no curso das revoluções, a maioria das revoluções tanto não conseguiram garantir
origem à constitutio libertatis, “como também não foram capazes de assegurar os chamados
direitos constitucionais.” (CASAGRANDA, 2012, p. 157). Estas implicações incidem-se
tanto na Revolução Francesa quanto Americana, como nos afirma Adriano Correia:
Conclusão
Apesar dos desdobramentos das revoluções, que, em grande medida, enfraqueceu
o espírito revolucionário9, “não há como negar que essas revoluções trouxeram à luz a
experiência de ser livre. É essa a novidade trazida pela experiência de ser livre. É essa a
novidade que marca a história do homem moderno” (CASAGRANDA, 2012, p. 157). De
certa forma, essa experiência de ser livre no curso das Revoluções foi possibilitada pelo
surgimento do que Arendt convencionou chamar de Sistemas de Conselhos, deflagrados a
partir das Revoluções do século XVIII, mostrando como eles foram [e são] fundamentais
para restaurar a dignidade da liberdade política outrora perdida.
9 Trataremos da perda do espírito revolucionário no próximo tópico. Todavia, cabe indicar que uma das razões do
enfraquecimento da Revolução Americana se deu pela perda do espírito revolucionário, a perda da capacidade de se
manter em constante busca pela manutenção da liberdade e das instituições por ela fundada.
132
Samarone de Oliveira Lopes
Referências bibliográficas:
ABREU, Maria Aparecida. Hannah Arendt e os limites do novo. Rio de Janeiro: Azougue
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KOHN, J. “Freedom: The Priority of the political”. In: VILLA, D. The Cambridge
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(Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
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SCHIO, Sônia Maria. Hannah Arendt e o “Poder” da Fundação. In: Hannah Arendt:
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WELLMER, Albrecht. Hannah Arendt: sobre la revolucíon”. Areté – Revista de Filosofia,
vol. X, nº 1, 1998, p.67-100 (trad. Andrés León).
133
Arendt e a mentira política: o Lawfare no séc. XXI
Introdução2
Hannah Arendt (1906-1975), ao tratar do Totalitarismo Nazista (1933-1945), na
obra Origens do Totalitarismo (1951), demonstrou como a mentira e a propaganda (a qual
não vende algo, mas divulga pseudofatos) se aliaram para a alteração da vida humana.
E o fizeram por meio da elaboração de uma atmosfera de fluidez, de irrealidade, de
desvalorização da Política (enquanto espaço de encontro dos cidadãos, de discussão e de
ação), enfim, de apatia dos indivíduos com o entorno, com os acontecimentos e mesmo
com as próprias atitudes.
Atualmente, o denominado Lawfare, a utilização da lei como instrumento de
guerra, tem levado muitas pessoas à confusão e à incapacidade de julgar os fatos, aqueles de
cunho políticos, em especial, como os vivenciados do Brasil, e assim não se posicionando
de forma autônoma. E isso reforça a necessidade de pensar o presente, momento em
que os eventos do passado e as teorizações sobre ele tornam-se de indispensáveis para o
humano e para o futuro. E um desses exemplos é a propaganda Nazista, ao aliar a mentira
política com a divulgação de dados encadeados deliberadamente. Exposto outramente,
ao emitir informações “prontas”, que aparentemente careciam de discussões, pois eram
perfeitamente concatenadas, não geravam dúvidas nos espectadores, mesmo possuindo
interesses incógnitos. (SCHIO, 2012) O resultado foi a indiferença quanto à verdade ou
não do que era divulgado, e a busca de desresponsabilização. E nesta, um líder forte (um
Führer) e a crença na existência de um inimigo a ser combatido (uma pessoa, um partido,
uma causa, como a corrupção) tem se mostrado suficiente para que uma maioria se deixe
levar por discursos oportunistas, salvacionistas ou outros.
A mentira, voltada à política, visa ao aniquilamento da noção de realidade. A realidade
necessita de pessoas que a confirmem ou a retifiquem. Cada pessoa (o sensus privatus), então
carece da presença e da opinião dos outros para certificar-se ou para readequar-se (sensus
communis), e para gerar vínculos e ação. (SCHIO, 2008) O Lawfare, termo elaborado nos
anos 70, nos Estados Unidos, significando uma “disputa jurídica” (de Law, lei e Warfare,
guerra) que evitaria conflitos armados, tornando-se, no séc. XXI, um artifício para arruinar
o “inimigo” por meio do uso da legislação. Alia-se a isso a propaganda baseada em “boatos”
1 Professora da UFPel - Pelotas/RS.
2 O presente tema surgiu em 2016. Em 2018, as leituras foram atualizadas e o resumo refeito visando à apresentação
no XVIII Encontro da ANPOF - Vitória/ES, momento oportuno devido aos acontecimentos posteriores ao Impea-
chmam de Dilma Rousseff (dez/2015-ago/2016) e anteriores à eleição de Jair Bolsonaro (out/2018). A redação final
(dezembro de 2018) nada alterou do exposto, apenas o esmiúça e agrega conteúdos oriundos da discussão gerada.
134
Sônia Maria Schio
(Fake news), isto é, sem provas. Desta forma, o acúmulo de informações negativas, mas
sem materialidade, leva a opinião pública a emitir juízos de valor, e mesmo a votar ou a
demandar punições aos pretensos culpados. Nesse sentido, o Lawfare foi transformado
em um “instrumento político” que tem como objetivo manipular as opiniões, aniquilar as
discussões e a preocupação com a Política, como ocorreu no sistema Totalitário Nazista, o
que deve ser evitado, para que eventos como os outrora vivenciados (na primeira metade
do séc. XX) não se repitam.
3 A Germanidade é a valorização de tudo o que é alemão: os mitos, a língua, etc. Ela é, atualmente, na Alemanha, uma
disciplina estudada nas escolas a partir de aulas ministradas por professores com formação universitária.
4 O termo “ralé”, no texto arendtiano (por exemplo, em ARENDT, 1989, p. 30, 179, 154, 181; no item 2 da parte 3:
“A aliança temporária entre a ralé e a elite”,), pode ser entendido como o “refugo de todas as classes” (Idem, 1989, p.
185). Assim, “a atração que o mal e o crime exercem sobre a mentalidade da ralé não eram novidade” (Ibidem, 1989,
p. 357), pois a violência era considerada esperteza, mais uma das características básicas dela.
135
Arendt e a mentira política: o Lawfare no séc. XXI
2. O Lawfare
O termo Lawfare é formado por law, “lei” e warfare, “guerra”. Em português poderia
ser traduzida como “guerra por meio da lei” ou “guerra jurídica”. O termo surgiu, (segundo
a Wikipedia5), nos anos 1970. Em 1975, ele foi explicitado como sendo uma estratégia
5 https://pt.wikipedia.org/wiki/Lawfare. Acesso em 10/03/2017. Pode-se consultar, nesse texto, referente à nota 2
(sobre a origem do termo), http://www.laceweb.org.au/whi.htm. Acesso em 16/12/2018.
É interessante notar que o Lawfare é «uma prática conhecida, nos países anglo-saxões, como SLAPP, acrônimo de stra-
tegic lawsuit against public participation.” (Wikipedia, 2017) Pode-se acessar também https://www.casp.net/sued-for-
-freedom-of-speech-california/what-is-a-first-amendment-slapp/.Acesso em 11/03/2017.
Resumidamente, John Carlson e Neville Yeomans, em um ensaio de 1975, consideravam o Lawfare uma tática de paz,
em que a guerra dava lugar à disputa por meio de leis: “um duelo de palavras em vez de espadas” no teatro de guerra.
136
Sônia Maria Schio
para vencer uma contenda sem chegar à guerra propriamente entendida. Mesmo que hajam
entendimentos distintos, isto é, considerações do Lawfare ora como positivo ora negativo.
Nesse sentido, é importante salientar que ele é um recurso no qual as leis são interpretadas
de forma atípica. Ou seja, a legislação é utilizada contra o adversário (pessoa ou grupo)
de forma a evitar o confronto armado (o que seria positivo). Nesse sentido, a lei torna-se
um “instrumento de guerra”. O inimigo, então, não é vencido por um embate violento: as
manobras jurídicas têm a finalidade de causar danos, por exemplo, restringindo ou ampliando
ingressos, prazos ou valores (em concursos, financiamentos ou outros) de modo a impedir
que as pessoas ou as empresas possam concorrer a bolsas, funções públicas ou contratos.
O Lawfare, então, é o uso peculiar da legislação onde há uma espécie de “brecha”
legal, levando a uma tensão entre a legalidade e a ilegalidade. Ele é uma “batalha”, porém
nela não há um equilíbrio entre as partes: na maioria das vezes, ocorre previamente a
condenação (ou restrição) total ou parcial com o consentimento da opinião pública. Em
outros termos, tecnicamente parece que as regras estão sendo aplicadas corretamente,
porém estas foram elaboradas ou alteradas para que o resultado esperado fosse atingido: a
reprovação pelo ordenamento vigente e pela maioria das pessoas.
Mesmo que evite mortes físicas, ele leva à destruição de pessoas jurídicas, entidades,
indivíduos (Guantánamo, por exemplo). Ele prejudica desde sujeitos isolados até nações.
Ao manipular jurídico-legalmente as normas internacionais e nacionais ou as leis dos
direitos humanos com objetivos contrários àqueles que levaram à elaboração das mesmas,
o Lawfare distorce as bases do “Estado de direito”, e muitas vezes da possibilidade de
mostrar a inocência ou mesmo limitando o direito à liberdade de expressão: assim, a
dignidade humana resta ultrajada.
A deslegitimarão do adversário não permite reparos ( Justiça restaurativa) porque
o dano ocorre sem que haja o devido processo: trata-se de um abuso das leis praticado
intencionalmente contra o inimigo (político, econômico, militar, entre outros). Em outros
termos, não é a “Justiça” que é buscada, apenas a conformidade a certos trâmites legais.
Além de expor os possíveis “maus usos” do ordenamento jurídico, o Lawfare expõe o papel
da mídias. E estas têm como objetivo o bem comum, possuindo uma tarefa positiva, como
a História o demonstra (na “Primavera Árabe, 2010-2011, por exemplo). Entretanto, os
meios de comunicação de massa (termo em desuso, hodiernamente) pode demonstrar como
a informação pode ser manipulada, e a opinião pública também. Ou seja, a propaganda
ainda funciona no convencimento de populações.6
A pergunta, então, pode ser como “solucionar” os problemas causados pelo
Lawfare.7 Todavia, se o uso desvirtuado da lei não é percebido pelos expectadores,
O novo campo de batalha passava a ser o legal, e no qual os oponentes são os advogados, os juízes, os promotores, etc.
A definição que disseminou o uso comum da expressão foi fornecida pelo coronel da Força Aérea dos EUA, Charles
Dunlap, em 2011. E sobre Lawsuits, vide: http://legal-dictionary.thefreedictionary.com/Strategic+Lawsuits+agains-
t+Public+Participation. Acesso em 11/03/2017.
6 Certamente o Brasil não restou incólume ao Lawfare: há uma enorme quantidade de informações, nem todas confiáveis,
é presumível, mas que não resistem à uma pesquisa cuidadosa. O “Caso Lula” é o mais premente, pois houve a “promoção
de ações judiciais para descredibilizar o oponente; tentativa de influenciar opinião pública: utilização da lei para
obter publicidade negativa; Judicialização da política: a lei como instrumento para conectar meios e fins políticos;
promoção de desilusão popular; [...]” (Wikipedia, 2017). Por exemplo, Martins, também sobre o referido Caso, afir-
ma que “o Lawfare depende de repetidas acusações e manchetes para pintar o acusado como inimigo n. 1 do país.”
(http://justificando.cartacapital.com.br/2016/11/17/lawfare-representa-o-uso-indevido-dos-recursos-juridicos-pa-
ra-fins-de-perseguicao-politica/. Acesso em 10/03/2017.
7 Esse tema pode ser encontrado em http://informacaoincorrecta.com/2018/07/31/o-que-e-e-como-funciona-a-
-lawfare/. Acesso em 16/12/2018.
137
Arendt e a mentira política: o Lawfare no séc. XXI
3. As Fake news
Seria incauto alguém que discorrer sobre o Lawfare, instrumento novo de atuação,
como se ele ocorresse de forma isolada. Dito outramente, há outros mecanismos que o
acompanham, como as Fake news e um novo conceito de “inimigo”. Temas emergentes
na atualidade, e por isso com poucas pesquisas publicadas, mas que, por sua incidência, ou
ainda, por possuírem semelhanças com fatos passados, precisam ser abordados.8 Nesse viés,
as Fake News são informações falsas («boatos») veiculadas por diversos meios (whatsapp; por
exemplo) como se fossem verídicas. E essas são emitidas por pessoas que têm a intenção
de prejudicar, distorcendo fatos, ou elaborando outros, em parte ou em sua totalidade. O
objetivo, geralmente, é desacreditar alguém, ou mesmo uma instituição, não apenas com
notícias, mas também com fotos e vídeos. Pode também expor ideias (políticas, religiosas,
étnicas, etc.) de grupos, de forma anônima, e são repassadas, quase sempre, por ingenuidade
ou brincadeira. Enfim, ela é uma arma de guerra que utiliza as notícias falsas para atingir
os objetivos.
Entretanto, longe de serem inocentes, as Fake News têm um grande expansão
virtual, isto é, atingem inúmeras pessoas e nos mais diferentes lugares, com uma velocidade
inimaginável (“poder viral”). Uma das principais características dessas notícias é que elas
apelam às emoções do receptor, leitor ou espectador, levando-os a elaborarem opiniões
(e julgamentos) a partir delas, sem qualquer questionamento prévio, isto é, sem ressalvas
ou busca de fontes que as confirmem ou desmintam. Os maiores “consumidores”9 são as
pessoas que dependem das mídias para se informarem, como aquelas que estão afastadas
da vida política, nos termos arendtianos. Como esses dados não têm caráter público, são
difíceis de rastrear, mas não impossíveis de serem identificadas: requerem, apenas, um
pouco de atenção e paciência.
Em outros termos, as Fake news são fáceis de produzir, pois não carem nem de
estúdios sequer de instrumentos caros e de díficiel obtenção, podendo ser feitas com o
uso de celulares. Assim, elas são facilmente elaboradas e difundidas. Isso porque existem
algoritmos automatizados (“inteligentes”), softwares e aplicativos livres que possibilitam a
alteração de rostos e de expressões, podendo mesmo substitui-los por outros. Os chamados
“deep fakes” são as pessoas que elaboram essas ferramentas com códigos abertos e de fácil
manejo, fornecendo-os, muitas vezes, sem a necessidade de instalar programas ou a
exigência de preparo (técnico ou tecnológico) para a elaboração de materiais adulterados.
O mesmo vem sendo desenvolvido para a voz.
Como resultado, iniciam-se os questionamentos sobre os usos inadequados, incluindo
a manipulação eleitoral, a calúnia, a extorção, por exemplo. Por enquanto tais falsificações
são de fácil percepção: há distorçoes nas imagens, descontinuidade nas vozes, contradições
8 Nesse sentido, um agradecimento especial ao Prof. Dr. Itamar Soares Veiga (Filosofia/UCS) que disponibilizou o
manuscrito, inédito, “Mundo previsto e mundo realizado: Arendt e ‘o que estamos fazendo’” (ago/2018).
9 São variadas as possíveis fontes de consulta. Veja-se, por exemplo: https://brasilescola.uol.com.br/curiosidades/o-
-que-sao-fake-news.htm). Acesso em 17/12/2018.
138
Sônia Maria Schio
no uso da linguagem, as quais podem ser captadas sem o uso de equipamentos. Porém,
com o avanço nas tecnologias, isso tende a ficar cada vez mais difícil. Nesse sentido, há
grupos que pesquisam algoritmos “caçadores” (por exemplo, o grupo de Riess, o qual criou
o software Face Forensics)10. Em outros termos, essa tecnologia está sendo aperfeiçoada
rapidamente, por isso a demarcação entre a realidade e a ficção fica cada vez mais nebulosa,
levando o humano a depender de softwares para autenticar vídeos suspeitos. Porém, até esse
momento, cabe a cada um buscar detectar as notícias e suspeitar delas, não as reenviando.
Mas, existem situações mais complexas, como as que envovem a política internacional, por
exemplo, entre nações em conflito, nas quais a identificação de Fake news é imprescindível
e mais difícil, devido à sofisticação delas.
Para coibir o aparecimento, a proliferação e os estragos causados pelas Fake news
está se mostrando necessário legislar sobre o tema. As redes socais precisam ficar atentas a
certos conteúdos veiculados em suas plataformas, pois ela também possuem uma parte da
responsabilidade.11 Mas isso não é o suficiente: cada um precisa fazê-lo em seu cotidiano,
incluindo as crianças, os adolescentes e os idosos (isto é, os respons´veis por estes): buscar
esclarecimentos; questionar e verificar as fontes de envio e mesmo as próprias notícias, isto
é, se elas são cabíveis (razoáveis) ou não.
4. O “inimigo”
O conceito de “inimigo objetivo” exposto por Carl Schmitt (1888-1985) em
suas obras, e utilizado no Nazismo contra os indesejados (judeus, comunistas, ciganos,
homossexuais, entre vários outros) está sendo substituído, em especial após os Atentados
nos EUA - 2011, por um novo tipo de inimigo: aquele que atenta contra o Estado, como
o terrorista, por exemplo. Outramente exposto, com o surgimento de delitos inéditos ao
Direito Penal, este precisa ter suas tipificações ampliadas com o intuito de acompanhar as
situações e se adequar juridicamente a elas. E isso, de certa forma, é uma continuidade das
reflexões iniciadas após a II Guerra Mundial (1939-1945), no Julgamento de Nuremberg
(1945-1949) e em outros que se seguiram: como julgar os “crimes administrativos”; os
oriundos do “cumprimento de ordens”, etc, e como puni-los, posto que foram mortas, de
diversas maneiras, milhões de pessoas.
Matos (2018, p. 1) explica que o alemão Günther Jakobs (1937), há anos, teoriza
sobre o “Direito Penal do Inimigo”12, angariando adeptos assim como gerando preocupações
no meio jurídico. Mas esta possui pressupostos diferentes daqueles das décadas anteriores.
O mesmo (MATOS, 2018, p. 1) continua
139
Arendt e a mentira política: o Lawfare no séc. XXI
Jakobs cita os pensadores da Tradição para embasar suas acepções, Hobbes e Kant,
por exemplo. Entretanto eles, como também Rousseau, não escreveram com esse intento.
E eles dificilmente aceitariam distinguir os humanos em grupos13. Atualmente, destituir
alguém da cidadania para tratá-lo diferentemente seria um retrocesso, contrariando as
bases do Estado de Direito, dos Direitos Humanos, entre outros. Arendt (1989, p. 332),
com sua concepção sobre o “direito a ter direitos”, sendo o primeiro o de pertencer a uma
comunidade organizada (política), a qual garante os outros direitos, demonstra a debilidade
de tal modo de pensar baseada em sentimentos de vingança, de violência e de desrespeito à
dignidade humana. Mas, isso não significa consentir com a impunidade ou com o rechaço
aos ordenamentos jurídicos, pois estes são básicos para a vida em grupo.
Em outros termos, aceitar essa novidade seria permitir que novos “estados de
exceção” (AGAMBEN, 2004) pudessem vir a viger. Para Jakobs, alguns itens são
essenciais em sua acepção: antecipar a punição do suposto inimigo, isto é, antes penalizá-
lo antes que o processo seja concluído; permitir a desproporção entre o fato (crime) e a
pena ao mesmo tempo minimizar certas garantias processuais; agilizar o processo para
que ele serva como exemplo a outros que tenham pretensões assemelhadas; elaborar leis
mais rigorosas para aqueles que se enquadrarem nessa categoria (terroristas, componentes
de facções criminosas, traficantes, etc.). Ao mesmo tempo em que essas “providências”
embasam a proposta do autor, elas auxiliam na compreensão de sua inadequação enquanto
uma “engenharia de controle social”. (MATOS, 2018)
5. Considerações Finais
Nesse contexto, pode-se questionar como alguém é capturado nessas ficções (Lawfare,
Fakes news e “inimigo do Estado”), ficando intimamente convencido, repassando, porque
defende tais opiniões e, por exemplo, votando em nome delas. Uma possível resposta seria
a de que, como nos Regimes Totalitários, a mentira não é produzida para ativar e gerar
saberes, mas para avivar certas emoções (a humilhação, como a gerada pelo Tratado de
Versalhes - 1919), a necessidade (a miséria, por exemplo, ocorrida após a Crise Econômica
de 1929), os sentimentos subjetivos tornados objetivos (como a busca de culpados na
derrota na I Guerra Mundial - 1914/1918), ou expresso como a “vontade do povo”.
Arendt expôs, em suas inúmeras obras, que a vivência da política é a maneira de
resistir, de evitar cometer o mal político (“banal”). Isso porque, para que ela ocorra é preciso
um espaço, um locus, que seja ao mesmo tempo público e político, que haja igualdade e
liberdade de expressão, de pensamento, de discordância. Exposto outramente, que cada
13 Kant (1990, p. 48), por exemplo, escreveu que os homens têm uma origem comum, a «mesma cepa»: «tous les
hommes sur toute l’étendue de la Terre apartiennent à un seul et même genre naturel [...] qu’ils appartienent tous à
une et seule souche, d’òu ils sont issues.»
140
Sônia Maria Schio
um possa participar das decisões e das ações, sentindo-se cidadão, isto é, componente e
responsável pelo grupo. E este o protege ao mesmo tempo que é preservado pelos cidadãos.
O pensamento pode ser exercido e exposto, seja por palavras escritas, faladas, desenhadas,
ou por outra forma de expressão, havendo respeito pela singularidade na pluralidade. O
cidadão precisa sentir-se livre, espontâneo, em contato com seus semelhantes. A solidão,
o individualismo, o terror podem ser substituídos pela preocupação com o humano
(humanitas) e com o mundo (amor mundi ou “ética da responsabilidade pelo mundo).
Em contrapartida, se isso parecer utópico demais, é preciso lembrar que o futuro
ainda não está definido, que é preciso iniciar algo novo, por exemplo, colocando-se no
lugar do outro, em pensamento, seja este no presente, passado ou no porvir; vivente ou não.
A imaginação permite que isso seja possível, então, exercitá-la é uma “aventura” possível
para o humano. Pode-se também viajar, observando o entorno e como cada elemento se
posiciona nele. Assistir aos mais variados tipos de filmes, vivenciando-os. Essa experiência
também pode ser realizada em museus, jogos ou outros. (SCHIO, 2008) Isso porque elas
geram a necessidade de comentá-las, compartilhá-las, etc., fazendo com que a pessoa
se aproxime das outras para conversar, trocar opiniões. Ressurgindo os vínculos entre as
pessoas, aparece a preocupação por elas. A concorrência diminui e os temas políticos, isto
é, do interesse do grupo humano, podem ser tratados sem coação, violência, extremismos:
o humano é uma potencialidade que não é extinguível, e esta é uma lição que o Nazismo
legou, mesmo buscando o oposto.
141
Arendt e a mentira política: o Lawfare no séc. XXI
Referências bibliográficas:
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com.br/artigos/exibir/5138/Direito-Penal-do-inimigo>. Acesso em 21/10/2018.
SCHIO, Sônia M. Hannah Arendt: a estética e a política (do juízo estético ao juízo político).
Tese de doutorado, Porto Alegre: UFRGS, 2008.
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2012.
VEIGA, Itamar Soares. Mundo previsto e mundo realizado: Arendt e “o que estamos
fazendo”, manuscrito. UCS, ago/2018.
142
Tainah Gualter
O diálogo do eu-comigo-mesmo em
Rousseau e Hannah Arendt
Tainah Gualter1
1.0 Introdução
O intento neste ensaio é oportunizar o estudo de dois pensamentos, de filósofos de
épocas distintas, e perceber em ambos o princípio encorajador da consciência de si mesmo,
que recai sob a constituição da esfera privativa da individualidade. A própria palavra
“consciência”, em todo o caso, aponta nesta direção, uma vez que significa “saber comigo e por mim
mesmo”, um tipo de conhecimento que é atualizado em todo processo de pensamento. O
projeto é trazer à debate os filósofos Jean Jacques Rousseau (1712-1778) e Hannah Arendt
(1906-1972) em um “empreendimento de estudar a natureza da privatividade humana, não
para poder falar dela com sabedoria, mas para se conhecê-la”. (ROUSSEAU, 1995. p.29). Assim,
com a intuição que em ambos os autores há digressões acerca da premissa aventada, este
ensaio tem o propósito de explanar e debater uma possível aproximação do pensamento de
Rousseau sobre a Verdade e as concepções de Hannah Arendt sobre o exercício incessante
do “eu-comigo-mesmo”, premissa esta que a autora descobre entre os gregos2.
Teremos como percurso metodológico destacar do texto Devaneios de um caminhante
solitário (Reveries of the Solitary Walker, 1782) a ideia de “consciência de si mesmo” que anos
à frente a filósofa Hannah Arendt reivindica como um estado existencial, na qual faço
companhia a mim mesmo, diálogo do eu-comigo-mesmo, que tem por finalidade a
coerência do “meu eu” (grifo nosso), afim de reafirmar a singularidade que nos é tirada
enquanto estamos com os outros. Em Hannah Arendt, o diálogo sem som do pensamento
é ativamente convocado, e não finda; parece que clama por uma conversa do “Eu” com o
“Eu mesmo” para terem o sentimento de coerência de si mesmo e da realidade, enquanto
mundo aparente, para então, atestarem e conhecerem a “Verdade”.
É desse diálogo proeminente, que situamos entre os filósofos citados, o insistente
e avassalador exercício do Pensar. E esta é talvez a condição do homem que dá sentido
e o recoloca na centralidade e comando para compreender o mundo comum. Afinal, é
na atividade do Pensar que reside a oportunidade de aprofundar as raízes históricas da
143
O diálogo do eu-comigo-mesmo em Rousseau...
existência humana, buscando sempre resignação e compreensão do seu ser como habitante
do mundo comum que vai além de sua existência individual.
O pensar é a faculdade do espirito que conjuga o interrogar e o entendimento, não
com finalidade de concretizar definições, mas é o constante exercício de “tomar novas decisões
cada vez que somos confrontados com alguma dificuldade”3. O pensamento não lida com o que
será, mas com o foi; é a atividade que tem seu fim a si mesma, é por esta faculdade que o
espirito tem a possibilidade de compreender os “porquês” e os “comos” das vicissitudes da
narrativa humana. E ainda, segundo Arendt, como seres pensantes, [...] os homens têm uma
inclinação, talvez uma necessidade, de pensar para além dos limites do conhecimento, de fazer
desta habilidade algo mais do que um instrumento para conhecer e agir, é um esforçar-se através
da memória o resgate do aparente e buscar os significados e entendimento destes.
Foi com estas inclinações que desde “As origens do totalitarismo”, assim como “A
Condição Humana”, e culminando com a exegese fenomenológica de “A vida do Espirito”
que Hannah Arendt pergunta-se sobre “O que estamos fazendo?” e aplica-se a compreensão
de seu tempo; o seu olhar para o mundo é dentro do próprio mundo e, por isso tem tanta
lucidez e consistência suas digressões. Afinal, como pensadora, não abusou de seu status, e
fez deste exercício o “abrir os olhos do espirito [...] um órgão para ver e contemplar a verdade”4
Foi com este fulgor que percebeu as formas de alheamento do homem, que o apartaram da
realidade comum, e até de si mesmo, enquanto indivíduo único e distinto do mundo plural.
Segundo Arendt, Rousseau foi o primeiro filósofo a explorar a privatividade, como
um abrigo íntimo do coração e, portanto, protegido dos outros. A intimidade do coração
[..], não tem lugar objetivo e tangível no mundo5. Não obstante, parece ainda mais pertinente
enfatizar que ele fora enfático a rebelar-se ao conformismo que a sociedade impõe aos
seus membros, algo que ele caracteriza como uma perversão ao íntimo, que é a intrusão à
esta esfera pelo social. A descoberta de Rousseau sugere que o indivíduo moderno e seus
intermináveis conflitos nasceram desta estreita relação entre o social e íntimo6.
Nesse particular, o importante é que os membros do social ajam como uma enorme
família, com uma mesma opinião e o interesse comum - algo que chamamos hoje de
conformismo.7 Esta peculiaridade remonta ao fato dos homens de ação substituírem o agir
pelo conformismo; fenômeno este que surgiu com a moderna concepção de sociedade, a qual
política e social são confundidos, e interesses individuais são expandidos da esfera privativa
do lar, para a esfera do público configurando o individualismo como característica maçante
desta sociedade, que já não imprime o diferente, como qualidade de espontaneidade, mas a
valorização de uma opinião única que comunga com o interesse comum.
Na modernidade, o privado opunha-se à esfera da sociabilidade e da esfera política
situando-se no domínio do individualismo. A prevalência de um interesse único, tanto
no mundo político, como no mundo social, faz do homem um ser administrado, pois não
importa a opinião distinta e nem os interesses distintos, o admirável é a sociabilidade e a
política imprimir ao homem o interesse comum. Foi, talvez, desta coerção que surgiu os
conflitos do “homem burguês”, pois este homem já não se encontra à vontade na sociedade,
3 ARENDT, H. A vida do espírito. O pensar, o querer, o julgar. Tradução de Antonio Abranches, César Augusto R.
de Almeida e Helena Martins. 5ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p.199.
4 Ibid. 2018, p .21.
5 ARENDT, Hannah. A condição Humana. Tradução Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. -10 eds.- Rio de Ja-
neiro: Forense Universitária, 2017. p. 47
6 Ibid. p. 48.
7 O fenômeno do conformismo é característico do último estágio dessa evolução moderna (ARENDT, 2017, p.49).
144
Tainah Gualter
mas também não consegue viver fora dela, torna-se por assim dizer, conflituoso, ou pior
sem sentido, sem direção. Não à toa que os romancistas modernos representem tão bem
esta estreita relação constrangedora entre social e o íntimo.
Essa degeneração do homem, é uma das razões que Hannah Arendt resgata, do
século XVIII, a defesa que Rousseau faz aos sentimentos privativos (que ao invés de serem
expostos e retirados do lado íntimo do homem), deveriam ser preservados da esfera comum
do social e, assim como Tocqueville e os românticos, tomou a frente contra as exigências
da sociedade em nivelar o individualismo, negando a discussão crítica, e imprimir o caráter
único no social e político. A extraordinária perspectiva de Rousseau é desvelar como os
homens agem sempre numa vontade geral que unifica a opinião pública, mesmo que
inicialmente tenham opiniões divergentes. Ou seja, o domínio do social foi tão avassalador
que controla igualmente todos os indivíduos, até mesmo dentro das sociedades de classe, ou
da função atual na sociedade, já se espera um tipo de desempenho de todos os componentes,
de modo que a ação espontânea seja excluída e as convenções e regras de conduta sejam as
máximas deste desdobramento moderno, “todas elas tendentes a normalizar seus membros”8.
Essa igualdade moderna, nada tem de similar com o pertencer aos iguais9 na cidade-
Estado grega, e menos ainda o que de mais ativo estava aparente no espaço público, já
que a individualidade antiga consistia em um exercício constante de ser único e não
substituível; se antes o espaço público era preservado para aparecer o homem em sua
singularidade, o momento da “pluralidade”, isto é, “de viver como um ser distinto e único entre
iguais”10 a modernidade corrompeu este alcance, com a sociabilidade e a previsibilidade
reduzindo o humano a produto quantitativo.11 Ao invés disso, a ascensão do social prova,
constantemente, que o homem individualizado, é também a face do desamparo, “o que quer
que ele faça permanece sem importância ou consequência para os outros, e o que tem importância
para ele é desprovido de interesse para os outros.”
Este fenômeno é tão estarrecedor que desencadeou um processo de artificialização,
o homem perde o contato com as coisas como são, aquilo que publiciza nada mais é
do que o aspecto mais superficial de uma vida desamparada, alienada; sem sentido;
pois o intimo não tem forças para se defender; e a inerente situação deste homem
desamparado é a redução de sua condição humana à função que exerce no mundo
comum. A destruição do íntimo e a perversão do coração significava, mais amplamente,
não possuir um lugar privado próprio (como o caso do escravo ou estar constantemente
na presença dos outros); uma existência superficial que perde tanto a consciência de si,
quanto a consciência do
“mundo comum que a um só tempo os relacione e separe, ou vivem em
uma separação desesperadamente solitária ou são comprimidos em uma
massa. Pois uma sociedade de massas nada mais é que aquele tipo de vida
organizada que automaticamente se estabelece entre seres humanos que
se relacionam ainda uns com os outros, mas perderam o mundo outrora
comum a todos eles.” (ARENDT, p. 126.)
8 Ibid. p.50.
9 Significava ser admitido entre os pares; para isso cada homem tinha constantemente de se distinguir de todos os
outros, demonstrar por meio de gestos e feitios singulares, que era sempre o melhor e se caso for sobressair-se sobre
os outros.
10 ARENDT, 2017. P.158.
11 Objeto primordial das análises cientificista das ciências sociais e em particular do conformismo, das leis da estatística
e do behaviorismo.
145
O diálogo do eu-comigo-mesmo em Rousseau...
Foi com estas impressões que situamos no texto, Devaneios de um caminhante solitário
acepções acerca de si mesmo e dos outros. Sendo a primeira, o traço distinto do exercício
dialógico e individual do “eu-comigo-mesmo” (grifo nosso), condição esta que não permite
o indivíduo estar sozinho, desamparado, pois sempre se terá a “consciência de si” sendo
esta a atividade do espírito que Hannah Arendt atenua como sendo a mais “ativa”. E se
a distinção entre o certo e o errado estiver relacionado com a habilidade do pensar, como
aventou Hannah Arendt, seria preciso que admitamos que esta seja uma exigência para
todos, [...] não importando quão erudita ou ignorante, inteligente ou estupida essa pessoa seja”12.
Todos devemos realizar a atividade do pensamento, como disse Hannah Arendt referindo-
se a Kant, o assunto não pode ser deixado para os especialistas, como se o pensamento fosse
monopólio de uma categoria de cientistas.13 O que talvez Kant, e outros predecessores não
tenham percebido é que a atividade do pensamento, diferente das ciências que buscam a
certeza e a evidencia, tem por empresa a coerência, busca de significados, uma busca digna
de amor, mais especificamente um amor desejante. O pensamento é o despertar da alma
que não tem por finalidade tornar alguém sábio, mas é antes um corroborar com a vida,
e precisamente uma vida com sentido, pois “pensar e estar completamente vivo são a mesma
coisa, o pensar é a atividade que acompanha a vida [...] expressando o significado de tudo que
acontece nela e nos ocorre enquanto vivos.”
146
Tainah Gualter
“Vi muitos que filosofavam de maneira muito mais douta que eu, mas
sua filosofia lhes era, de certa forma, estranha. Querendo ser mais sábios
que outros, estudavam o universo para saber como este estava arranjado,
como teriam estudado alguma máquina que tivessem encontrado, por
pura curiosidade. Estudavam a natureza humana para dela poder falar
com sabedoria, mas não para se conhecerem [...] (ROUSSEAU, 1975
p. 29).
16 Não é o mesmo processo de ideal cartesiano de certeza; é muito mais próximo ao conhecimento de si mesmo socrá-
tico.
17 ROUSSEAU, J.J. Textos autobiográficos e outros escritos/ J.J. Rousseau; tradução, introdução e notas Fulvia M.L.
Moretto- São Paulo: Ed. UNESP, 2009.
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O diálogo do eu-comigo-mesmo em Rousseau...
Há também as mentiras oficiosas, são aquelas mentiras em defesas próprias, que não
denigrem a outrem, não deixam de ser uma mentira, mas prejudica somente a si mesmo.
Nesse caso, Rousseau usa como exemplo a própria mentira que contou em uma devida
ocasião, ao ser perguntado por uma jovem gestante, se tivera filhos, o mesmo responde
que nunca tivera essa felicidade. Sabendo ela e os demais presentes que havia contado
uma mentira, tudo aquilo não acarretaria mal aos outros somente a si mesmo, não mentia
para ser enganoso, ou prejudicar, se o fez foi por timidez. Ainda assim, julgou-se com
severidade, pois a mentira é sempre uma mentira.
Portanto ser sincero foi tanto sua virtude quanto o seu mal.
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Tainah Gualter
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O diálogo do eu-comigo-mesmo em Rousseau...
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Tainah Gualter
do coração ter sido invadido pelo social, de modo a caracterizar o humano a um interesse
único, que é comum aos outros pares, e por essas razões já não importa seu modo de ver a
sociedade, já que, até mesmo, o seu modo de ver é tão igual quanto dos outros, em tão alto
grau que o espontâneo é excluído, e as convenções e regras de conduta são as máximas deste
desdobramento moderno.
Assim para finalizar, não encerrar as discussões que ainda podem se desenvolver
desta temática, o recorte que foi feito a partir da obra Devaneios, é para configurar esta
denúncia que Rousseau faz à esfera social, assim como aos seus contemporâneos, pois é de tal
modo que fora mal interpretado, quanto falácias disseram dele, pois no fundo sua intenção
nunca foi de atacar vilmente a humanidade, mas trazer à tona a sua individualidade, aquilo
que caracteriza sua singularidade perante um mundo plural, e seu sentimento de verdade;
e percorrendo estes textos, ditos, principalmente, como autobiográficos percebemos esta
inclinação ao diálogo constante do “eu-comigo mesmo” e a percepção da consciência, ou
seja, vemos que ele tem por intuito a atividade do pensar, como ato que lhe singulariza
perante os demais e permite-lhe dar coerência a si mesmo e ao mundo comum.
Assim ele nos diz:
151
O diálogo do eu-comigo-mesmo em Rousseau...
Referências bibliográficas:
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Lafer. -10 ed.- Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2017
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução Roberto; revisão técnica e
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