Filosofia Politica Contemporanea

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 152

Filosofia Política

Contemporânea

Jorge L. Viesenteiner
Maria Cristina Müller
Rodrigo Ribeiro Alves Neto
(Orgs.)
ANPOF - Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia

Diretoria 2019-2020
Adriano Correia Silva (UFG)
Antônio Edmilson Paschoal (UFPR)
Suzana de Castro (UFRJ)
Franciele Bete Petry (UFSC)
Patrícia Del Nero Velasco (UFABC)
Agnaldo Portugal (UNB)
Luiz Felipe Sahd (UFC)
Vilmar Debona (UFSM)
Jorge Viesenteiner (UFES)
Eder Soares Santos (UEL)

Diretoria 2017-2018
Adriano Correia Silva (UFG)
Antônio Edmilson Paschoal (UFPR)
Suzana de Castro (UFRJ)
Agnaldo Portugal (UNB)
Noéli Ramme (UERJ)
Luiz Felipe Sahd (UFC)
Cintia Vieira da Silva (UFOP)
Monica Layola Stival (UFSCAR)
Jorge Viesenteiner (UFES)
Eder Soares Santos (UEL)

Diretoria 2015-2016
Marcelo Carvalho (UNIFESP)
Adriano N. Brito (UNISINOS)
Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros (USP)
Antônio Carlos dos Santos (UFS)
André da Silva Porto (UFG)
Ernani Pinheiro Chaves (UFPA)
Maria Isabel de Magalhães Papaterra Limongi (UPFR)
Marcelo Pimenta Marques (UFMG)
Edgar da Rocha Marques (UERJ)
Lia Levy (UFRGS)
Diretoria 2013-2014
Marcelo Carvalho (UNIFESP)
Adriano N. Brito (UNISINOS)
Ethel Rocha (UFRJ)
Gabriel Pancera (UFMG)
Hélder Carvalho (UFPI)
Lia Levy (UFRGS)
Érico Andrade (UFPE)
Delamar V. Dutra (UFSC)

Diretoria 2011-2012
Vinicius de Figueiredo (UFPR)
Edgar da Rocha Marques (UFRJ)
Telma de Souza Birchal (UFMG)
Bento Prado de Almeida Neto (UFSCAR)
Maria Aparecida de Paiva Montenegro (UFC)
Darlei Dall’Agnol (UFSC)
Daniel Omar Perez (PUC/PR)
Marcelo de Carvalho (UNIFESP)

Produção
Antonio Florentino Neto

Editor da coleção ANPOF XVIII Encontro


Jorge Luiz Viesenteiner

Diagramação e produção gráfica


Editora Phi

Capa
Adriano de Andrade
Comitê Científico: Coordenadoras e Coordenadores de
GTs e de Programas de Pós-graduação

Admar Almeida da Costa (UFRRJ)


Adriano Correia Silva (UFG)
Affonso Henrique V. da Costa (UFRRJ)
Agemir Bavaresco (PUCRS)
Aldo Dinucci (UFS)
Alessandro B. Duarte (UFRRJ)
Alessandro Rodrigues Pimenta (UFT)
Alfredo Storck (UFRGS)
Amaro de Oliveira Fleck (UFMG)
Ana Rieger Schmidt (UFRGS)
André Cressoni (UFG)
André Leclerc (UnB)
Antonio Carlos dos Santos (UFS)
Antonio Edmilson Paschoal (UFPR)
Antonio Glaudenir Brasil Maia (UVA)
Araceli Rosich Soares Velloso (UFG)
Arthur Araújo (UFES)
Bartolomeu Leite da Silva (UFPB)
Bento Prado Neto (UFSCAR)
Breno Ricardo (UFMT)
Cecilia Cintra C. de Macedo (UNIFESP)
Celso Braida (UFSC)
Cesar Augusto Battisti (UNIOESE)
Christian Hamm (UFSM)
Christian Lindberg (UFS)
Cicero Cunha Bezerra (UFS)
Clademir Luis Araldi (UFPEL)
Claudemir Roque Tossato (UNIFESP)
Claudinei Freitas da Silva (UNIOESTE)
Cláudio R. C. Leivas (UFPEL)
Clóvis Brondani (UFFS)
Cristiane N. Abbud Ayoub (UFABC)
Cristiano Perius (UEM)
Cristina Foroni (UFPR)
Cristina Viana Meireles (UFAL)
Daniel Omar Perez (UNICAMP)
Daniel Pansarelli (UFABC)
Daniel Peres Coutinho (UFBA)
Dirce Eleonora Nigro Solis (UERJ)
Eder Soares Santos (UEL)
Eduardo Aníbal Pellejero (UFRN)
Emanuel Â. da Rocha Fragoso (UECE)
Enoque Feitosa Sobreira Filho (UFPB)
Ester M. Dreher Heuser (UNIOESTE)
Evaldo Becker (UFS)
Evaldo Sampaio (UnB/Metafísica)
Fátima Évora (UNICAMP)
Fernando Meireles M. Henriques (UFAL)
Filipe Campello (UFPE)
Flamarion Caldeira Ramos (UFABC)
Floriano Jonas Cesar (USJT)
Franciele Bete Petry (UFSC)
Francisco Valdério (UEMA)
Georgia Amitrano (UFU)
Gisele Amaral (UFRN)
Guido Imaguire (UFRJ)
Gustavo Silvano Batista (UFPI)
Helder Buenos A. de Carvalho (UFPI)
Henrique Cairus (UFRJ)
Hugo F. de Araújo (UFC)
Jacira de Freitas (UNIFESP)
Jadir Antunes (UNIOESTE)
Jelson Oliveira (PUCPR)
João Carlos Salles (UFBA)
Jorge Alberto Molina (UERGS)
José Lourenço (UFSM)
Júlia Sichieri Moura (UFSC)
Juvenal Savian Filho (UNIFESP)
Leonardo Alves Vieira (UFMG)
Lívia Guimarães (UFMG)
Luciano Carlos Utteiche (UNIOESTE)
Luciano Donizetti (UFJF)
Ludovic Soutif (PUCRJ)
Luís César G. Oliva (USP)
Luiz Carlos Bombassaro (UFRGS)
Luiz Rohden (UNISINOS)
Manoel Vasconcellos (UFPEL)
Marcela F. de Oliveira (PUCRJ)
Marcelo Esteban Coniglio (UNICAMP)
Márcia Zebina Araújo da Silva (UFG)
Márcio Custódio (UNICAMP)
Marco Antonio Azevedo (UNISINOS)
Marcos H. da Silva Rosa (UERJ)
Maria Cecília Pedreira de Almeida (UnB)
Maria Cristina de Távora Sparano (UFPI)
Maria Cristina Müller (UEL)
Marina Velasco (UFRJ/PPGLM)
Mariana Cláudia Broens (UNESP)
Mariana de Toledo Barbosa (UFF)
Mário Nogueira de Oliveira (UFOP)
Mauro Castelo Branco de Moura (UFBA)
Max R. Vicentini (UEM)
Michela Bordignon (UFABC)
Milton Meira do Nascimento (USP)
Nathalie Bressiani (UFABC)
Nilo César B. Silva (UFCA)
Nilo Ribeiro (FAJE)
Patrícia Coradim Sita (UEM)
Patrícia Kauark (UFMG)
Patrick Pessoa (UFF)
Paulo Afonso de Araújo (UFJF)
Pedro Duarte de Andrade (PUCRJ)
Pedro Leão da Costa Neto (UTP)
Pedro Paulo da Costa Corôa (UFPA)
Peter Pál Pélbart (PUCSP)
Rafael de Almeida Padial (UNICAMP)
Renato Moscateli (UFG)
Ricardo Bazilio Dalla Vecchia (UFG)
Ricardo Pereira de Melo (UFMS)
Roberto Horácio de Sá Pereira (UFRJ)
Roberto Wu (UFSC)
Rodrigo Guimarães Nunes (PUCRJ)
Rodrigo Ribeiro Alves Neto (UNIRIO)
Samir Haddad (UNIRIO)
Sandro M. Moura de Sena (UFPE)
Sertório de A. Silva Neto (UFU)
Silvana de Souza Ramos (USP)
Sofia Inês A. Stein (UNISINOS)
Sônia Campaner (PUCSP)
Tadeu Verza (UFMG)
Tiegue Vieira Rodrigues (UFSM)
Viviane M. Pereira (UECE)
Vivianne de Castilho Moreira (UFPR)
Waldomiro José da Silva Filho (UFBA)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária Juliana Farias Motta CRB7/5880

F488
Filosofia política contemporânea / Organização Maria Cristina
Müller...et al -- São Paulo: ANPOF, 2019.
152 p.

ISBN: 978-85-88072-79-4

Outros autores: Jorge L. Viesenteiner, Rodrigo Ribeiro Alves Neto


Filosofia moderna. 2. Ciência política. 3. Filosofia política. I. Título
CDD 190
Índice para catálogo sistemático:
1. Filosofia moderna
2. Ciência política
3. Filosofia política
Apresentação da Coleção do XVIII Encontro
Nacional de Filosofia da ANPOF

O XVIII Encontro Nacional da ANPOF foi realizado em outubro de 2018 na


Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), em Vitória/ES, e contou com mais de
2 mil participantes com suas respectivas apresentações de pesquisa, tanto nos Grupos de
Trabalho da ANPOF quanto em Sessões Temáticas. Em acréscimo, o evento também
incluiu conjuntamente o IV Encontro Nacional ANPOF Ensino Médio, sob coordenação
do Prof. Dr. Christian Lindberg (UFS), cujos esforços não apenas amplia, mas também
inclui os debates e pesquisas vinculados à área do Ensino de Filosofia tanto de professores
vinculados ao Ensino de Filosofia quanto também de professores e estudantes do Mestrado
Profissional em Filosofia, o PROF-FILO.
A ANPOF publica desde 2013 os trabalhos apresentados sob a forma de livro,
com o intuito não apenas de tornar públicas as pesquisas de estudantes e professores, mas
também de fomentar o debate filosófico da área, especialmente por ser uma ocasião de
congregar uma significativa presença de colegas do Brasil inteiro, interconectando pesquisas
e regiões que nem sempre estão em contato. Assim, a Coleção ANPOF sintetiza o estado
da pesquisa filosófica naquele determinado momento, reunindo pesquisas apresentadas
em Grupos de Trabalho e Sessões Temáticas. O total de textos submetidos, avaliados e
aprovados à publicação na atual Coleção ANPOF do XVIII Encontro conta com mais de
650 artigos da comunidade em geral.
É importante registrar nesta “Apresentação” a dinâmica utilizada no processo de
organização dos 22 volumes que são agora publicados, cuja concepção geral consistiu em
estruturar o processo da maneira mais amplamente colegiada possível, envolvendo no
processo de avaliação dos textos submetidos todas as coordenações dos Grupos de Trabalho
e dos Programas de Pós-graduação (PPGs) em Filosofia, bem como uma comissão de
avaliação específica para os trabalhos que não foram avaliados por algumas coordenações
de PPGs. Em termos práticos, o processo seguiu três etapas: 1. cada pesquisador(a) teve um
período para submissão dos seus trabalhos; 2. Período de avaliação, adequação e reavaliação
dos textos por parte das coordenações de GTs e PPGs; 3. Editoração dos textos aprovados
pelas coordenações de GT e PPGs.
Nessa atual edição da Coleção ANPOF, figuraram na co-organização dos volumes
não apenas as coordenações de GTs, mas também de PPGs que estiveram diretamente
envolvidos no processo, na medida em que ambas as coordenações realizaram as
atividades de avaliação e seleção dos textos desde as inscrições ao evento, até avaliação
final dos textos submetidos à publicação, exercendo os mesmos papéis na estruturação da
atividades. Nessa medida, a Coleção ANPOF conta com o envolvimento quase integral
das coordenações, exprimindo justamente a concepção colegiada na organização – seja
diretamente na organização dos volumes, seja sob a forma de comitê científico – de
modo que os envolvidos figuram igualmente como co-organizadores(as) da Coleção,
cujo ganho é, sem dúvida, em transparência e em engajamento com as atividades. O
trabalho de organização da Coleção, portanto, seria impossível sem o envolvimento das
coordenações.
Reiteramos nossos os agradecimentos pelos esforços da comunidade acadêmica,
tanto no sentido da publicação das pesquisas em filosofia que são realizadas atualmente
no Brasil, quanto pela conjugação de esforços para que, apesar do gigantesco trabalho,
realizarmos da maneira mais colegiada possível nossas atividades.
Boa leitura!
Diretoria ANPOF
Sumário

Apresentação do GT Filosofia Política Contemporânea 13

Revolução e republicanismo em Hannah Arendt 14


Antônio Batista Fernandes

O caráter psicagógico nas meditações de Marco Aurélio segundo Pierre Hadot 22


Carolina Molina Reyes

As encruzilhadas do pensamento de esquerda: Entre as democracias de massa, a


governamentalidade biopolítica e os dispositivos aclamatórios 31
Daniel Arruda Nascimento

O enigma da biopolítica 41
Davi Maranhão De Conti

Communitas: Notas sobre o pensamento de Roberto Esposito 49


Deyvison Rodrigues Lima

Fenomenologia e política em Hannah Arendt 59


Lucas Barreto Dias

A potência em Nietzsche e Agamben: Aberturas da política e críticas à democracia


liberal 68
Márcia Rosane Junges

Por uma política não intensificada: Walter Benjamin leitor de Erich Unger 76
Márcio Jarek

O grande jogo da mentira e do cinismo 82


Maria Cristina Müller

Sobre la articulación de subjetividades antagonistas: Los conceptos y los afectos 91


Olaya Fernández Guerrero
Juan Manuel Aragüés Estragués

As vicissitudes de uma racionalidade política do presente 100


Pedro Ivan Moreira de Sampaio

A biopolítica como paradigma de governo: Uma genealogia do mercado


econômico em Michel Foucault 108
Rodrigo Diaz de Vivar y Soler

Tensões constitutivas entre poder, violência e autoridade em Hannah Arendt 117


Rodrigo Ribeiro Alves Neto
Eventos revolucionários do século XVIII: Revoluções americana e francesa –
aproximações e distanciamentos 126
Samarone de Oliveira Lopes

Arendt e a mentira política: O Lawfare no séc. XXI 134


Sônia Maria Schio

O diálogo do eu-comigo-mesmo em Rousseau e Hannah Arendt 143


Tainah Gualter
Apresentação do GT Filosofia Política Contemporânea

Esta coletânea foi organizada com base em parte dos trabalhos apresentados
tanto nas sessões temáticas quanto na reunião do Grupo de Trabalho “Filosofia Política
Contemporânea” no XVIII Encontro Nacional da ANPOF, realizado em outubro de
2018, na Universidade Federal do Espírito Santo – UFES (Vitória-ES). Desde 2010,
o GT “Filosofia Política Contemporânea” vem se consolidando como um espaço de
reflexão conjunta e discussão crítica sobre as possibilidades e impossibilidades atuais da
política efetivamente democrática, conferindo visibilidade às pesquisas desenvolvidas no
âmbito dessa relevante área da investigação filosófica. Mediante distintas perspectivas
teórico-conceituais – de diálogos contemporâneos com Nietzsche e Schmitt ao exame
das contribuições originais de Hannah Arendt, passando pelas reflexões de Foucault,
Agamben e Esposito, entre outros importantes pensadores – pretende-se discutir o lugar
e o sentido da vida política na atualidade. A cada edição dos encontros da ANPOF, o
GT “Filosofia Política Contemporânea” fortalece essa rede de pesquisadores e estudantes,
promovendo a convergência teórica e temática das pesquisas nessa importante área,
estimulando as atividades conjuntas entre os membros do GT, os pesquisadores do seu
Núcleo de Sustentação, estudiosos convidados e o público em geral.
O interesse pelas atividades do GT “Filosofia Política Contemporânea” é significativo.
Assim, no sentido de receber os trabalhos encaminhados e oportunizar uma ampla discussão
entre os pesquisadores da filosofia política contemporânea, o GT organizou suas atividades
no XVIII Encontro em dois momentos distintos mas complementares: reunião do Núcleo
de Sustentação e Apoio do GT e sessões temáticas. A reunião do Núcleo de Sustentação e
Apoio privilegiou a interlocução das pesquisas de seus componentes e, para tal, a dinâmica
utilizada teve como centro a apresentação de um tema-problema por um dos membros e
sua discussão por um ou dois outros membros. Houve uma troca prévia dos textos para
permitir o aprofundamento das reflexões e a construção e reconstrução das argumentações
e compreensões, promovendo-se verdadeiro diálogo entre as pesquisas. Foram apresentados
sete trabalhos e nove debatedores. As sessões temáticas receberam vinte e um trabalhos de
estudantes e pesquisadores de diversos Programas de Pós-Graduação do país. Foram três
dias de intenso e rico trabalho. Esta coletânea publica textos de ambos os momentos.
Compõem a coletânea textos que apresentam a reflexão sobre a política, a ética e
a estética de Foucault, Marco Aurélio e Pierre Hadot, sobre a biopolítica, o pensamento
político de Roberto Esposito, a política de Walter Benjamin e Erich Unger e as contribuições
de Judith Butler ao debate político contemporâneo e a reflexão política de Hannah Arendt
e seus conceitos de fenomenologia, verdade, mentira, poder, violência e autoridade. Uma
monstra significativa da diversidade e da liberdade de concepções e reflexões críticas
possíveis sobre a vida política contemporânea.

Profa. Dra. Maria Cristina Müller – UEL


Coordenadora do GT Filosofia Política Contemporânea 2016-2018
Prof. Dr. Rodrigo Ribeiro Alves Neto – UNIRIO
Coordenador do GT Filosofia Política Contemporânea 2018-2020

13
Revolução e republicanismo em Hannah Arendt

Revolução e republicanismo em Hannah Arendt

Antônio Batista Fernandes1

Elementos republicanos
Este artigo tem a pretensão de investigar a presença de alguns dos elementos
do pensamento republicano na obra de Hannah Arendt, isso por entendemos que,
na contemporaneidade, Arendt contribui de forma significativa para se pensar o
republicanismo. Nesse sentido, não podemos desconsiderar que tal prerrogativa nasce
principalmente do fato de suas obras estarem fortemente marcadas pelos principais
acontecimentos do início da modernidade e dos séculos seguintes, como as revoluções
burguesas e a catastrófica experiência do fenômeno totalitário, que rompeu de forma
significativa com a divisão entre o público e o privado, tema que também ganha destaque
nas obras de nossa autora.
Dessa feita, acreditamos que Hannah Arendt pode e deve ser lida como uma autora
do republicanismo, se podemos assim dizer, de um tipo específico de republicanismo, a
saber, o republicanismo contemporâneo. No entanto, é preciso ficar claro de que teoria
republicana estamos falando. E, por outro lado, se interpelar até que ponto Arendt é ou não
influenciada por algumas das principais vertentes do republicanismo que se expandiram
pelo todo o século XIX, sem esquecer que sua leitura do republicanismo sofre fortes
influências de pensadores como Montesquieu e Maquiavel.
Os elemento republicanismo que por hora pretendemos analisar a partir de Arendt,
são os presente em sua obra Sobre a Revolução (1963), publicada doze anos após a publicação
de Origens do Totalitarismo (1951), obra em que Arendt procura lançar alguns fios de
esperança ao nosso tempo, sobretudo no que se refere a política, tendo como referência
a envergadura das revoluções setecentistas, que tinham como objetivo a efetivação da
liberdade pública por meio da fundação e constituição da república. Seu texto nos desperta
para refletir sobre os acontecimentos e sermos capazes de perceber a mensagem que eles
transmitem para nossos dias; ou, nas palavras de Arendt, que herança ou testamento nos é
deixado ou se perdeu no decurso das revoluções.
Passemos ao tema. Em Sobre a Revolução, logo no início do capítulo sobre a Fundação
I: Constitutio libertatis, Arendt afirma ao fazer referência a Robespierre: “o objetivo supremo
da revolução, a fundação da liberdade, e sobre a tarefa concreta do governo revolucionário,
a instauração de uma república” (ARENDT, 2011. p. 188). Sérgio Cardoso, ao se referir
ao republicanismo revolucionário, ressalta que essa experiência reflete um modelo que

1 Universidade Federal do Ceará

14
Antônio Batista Fernandes

tem sua grande motivação na criação de “um espaço comum equalizador, definido pela
implicação de todos os cidadãos no sistema das decisões políticas” (CARDOSO, 2000, p.
29). Tal realidade só se torna realmente possível a luz do regime republicano, que promove
a interação de todos e sua participação efetiva nos corpos políticos, esse é o objetivo da
revolução segundo Arendt, a criação do espaço de aparição política, de fundação e garantia
da liberdade pública por meio da instauração da república.
Assim, no que tange a nossa proposta, não podemos fugir da pergunta: a que
republicanismo podemos vincular Hannah Arendt? Nunca foi a preocupação de Arendt
discorrer sobre as diferentes vertentes e teorias que deram origem ao republicanismo,
mas sim encontra nesse pensamento os conceitos e categorias que são necessários para se
pensar a questão política, reforçando assim seu interesse pela tradição republicana, sem
que, citando Canovan (1992), sua versão do republicanismo se associe a qualquer um dos
modelos que ela herdou (Romano ou Americano). Portanto, em Arendt, a compreensão
de alguns conceitos ligados ao pensamento republicano são fundamentais, tais como:
revolução, fundação, autoridade, poder, violência, promessa, poder constituinte e forma
constitucional dentre outros que formam o arcabouço teórico do pensamento de nossa
autora. Segundo André Duarte (2013), Hannah Arendt dá a esses conceitos uma definição
própria e que muitas vezes fogem da forma como usualmente são concebidos, característico
do modo de pensar de nossa autora, descrito pela própria Arendt como um pensamento
sem amparos.
O interesse de Arendt pelo republicanismo decorre do fato dessa tradição se
caracterizar “como uma corrente de pensamento que concede grande valor a política
e a vida pública” (BIGNOTTO, 2013, p. 9). Os tempos sombrios vivenciados pela
contemporaneidade atestam um cenário de apatia política e distanciamento do homem
da cena pública, o afastamento da vida pública, a ascensão da esfera da vida privada e o
desinteresse pela política foram os ingredientes necessário para o surgimento dos regimes
totalitários do nazismo e do stalinismo. Desse modo, podemos dizer que foi o terror da
experiência totalitária que aproximou Arendt do pensamento republicano, enquanto
tradição que, segundo Bignotto, conservou “seu interesse pela liberdade, pela afirmação da
vida ativa e pela defesa do interesse comum” (2013, p. 12).
Nesses termos, não há como negar que Arendt se inscreve no rol dos autores do
republicanismo contemporâneo, talvez mais estritamente da vertente que denominamos
por constitucionalismo republicano, o que não significa dizer que o vínculo de Arendt ao
republicanismo represente uma continuidade das ideias da tradição em seu pensamento,
mas que partindo da experiência fundacional das tradições, que de alguma maneira nos
tocam pelo passado, poderemos sem dúvida elaborar relações com o universo teórico do
pensamento republicano e, com isso, abordar com mais propriedade as questões de nosso
tempo.
Sem dúvida existem muitos elementos de proximidade entre o pensamento de
Arendt e a tradição republicana, mas algo que não podemos desconsidera nesse contexto
é a importância que as revoluções modernas representam para essa aproximação. Pois, é
somente por meio do resgate da importância dos eventos revolucionários, que marcaram
de maneira significativa o século XVIII, que poderemos compreender a importância
desse fenômeno na constituição da liberdade, fim a qual deveriam se destinar todas as
revoluções.

15
Revolução e republicanismo em Hannah Arendt

Revolução e republicanismo
As Revoluções marcam o momento em que se demonstra à capacidade dos homens
para a novidade, expressam por meio do aparecimento do sistema de conselhos a esperança
da constituição de novas comunidades política, os conselhos, segundo Arendt, nunca
“apareceram como resultado de uma tradição ou teoria revolucionária consciente, mas de
um modo totalmente espontâneo; cada vez como se nunca tivesse havido nada semelhante
antes” (2008, p. 199). O fenômeno revolucionário na obra de Arendt é fundamental para
se estabelecer a relação entre novidade e liberdade como fundamento da experiência
política. A proposta de Arendt na compreensão desse fenômeno consiste no fato de que as
revoluções aparecem no campo da política como eventos únicos, capazes de nos colocar de
maneira radical diante do problema do começo e de sua irreversibilidade.
Conforme destaca a autora em Origens do Totalitarismo:

O começo [...] é a suprema capacidade do homem, politicamente equivale


à liberdade do homem [...] “o homem foi criado para que houvesse um
começo”, disse Agostinho. Cada novo nascimento garante esse começo;
ele é, na verdade, cada um de nós. (ARENDT, 1989, p. 531).

Tal passagem, que remete a capacidade humana de começar coisas novas, que
Arendt encontra na obra de Santo Agostinho, e retoma em muitos de suas obras, pode
nos conduzir a eventos políticos como também a eventos que negam inteiramente a
política, como os regimes totalitários. Assim, o problema principal da autora não consiste
em entender os eventos revolucionários sobre uma perspectiva meramente histórica, mas
principalmente como gérmen, que torna possível o espaço de aparecimento da liberdade
pública e a fundação de um corpo político ancorado na experiência de um novo início.
O que as revoluções significaram foi possibilidade da criação de uma nova forma
de Estado, que não estivesse fundada em nenhuma forma preestabelecida de organização,
mas no desejo de liberdade que impulsiona a ação política2. O principal propósito das
revoluções sempre foi o nascimento da liberdade, não apenas no sentido de liberties, que
configura a conquista de direitos civis num governo constitucional, mas, sobretudo, no
sentido político. Para Hannah Arendt, as revoluções sempre estiveram relacionadas com
duas realidades, de um lado a libertação como necessária para a ausência de restrições; de
outro a liberdade, como modo político de vida.
Logo, foi a experiência da liberdade, enquanto realidade nova vivenciada pelos
homens das revoluções, aliada a novidade do evento em si, que constituíram o páthos
das revoluções modernas, portanto, é somente nessas circunstâncias que podemos falar
de revolução. Assim sendo, o que as revoluções modernas ensinaram aos homens de seu
tempo foi que a experiência de ser livre é realmente possível, atestando que o novo pode
sempre surgir a partir de uma interrupção do curso linear e contínuo da história.
É dessa experiência da liberdade que surgiu os princípios da liberdade pública e da
felicidade pública que as duas revoluções setecentistas deixam se perder. Ao iniciar o capítulo
sobre A tradição revolucionária e seu tesouro perdido, último capítulo de Sobre a Revolução,
Arendt se utilizado do aforismo poético de René Char3 “nossa herança não é precedida
2 De acordo com Pancera, a noção arendtiana de revolução “vai além da mera quebra dos quadros conceitual e valo-
rativos constituídos, para pensar a ação como instituinte, como criadora de algo novo, ação que tem na sua base essa
nova concepção de poder que Arendt formula.” (PANCERA, 2013, p. 145).
3 Hannah Arendt vai utilizar o mesmo aforismo no prefácio de Between Past and Future, com o mesmo propósito, de

16
Antônio Batista Fernandes

de nenhum testamento” (ARENDT, 1973, p. 215), para se referir à herança deixada pela
tradição revolucionária sem ser precedida por nenhum testamento. Tal herança ou tesouro
representa o recebimento de uma dádiva desprovida de um nome, e de sua impossibilidade
de ser transmitida às gerações futuras sobre a forma de herança. O tesouro que foi pedido
nas revoluções significava o nascimento de uma forma inteiramente nova de governo por
meio do surgimento do sistema de conselhos. Para Arendt, a incapacidade dos homens das
revoluções para conservar e transmitir a herança recebida constituiu o principal fracasso
das revoluções, que não conseguiram “converter em forma de governo a experiência do
sistema de conselhos” (CORREIA, 2014, p. 206).
Segundo Arendt (2011), o espírito revolucionário que nasceu das revoluções foi sendo
posteriormente esquecido no momento em que as revoluções falharam em lhe fornecer
uma instituição duradoura. A fundação da república não representou para os homens da
revolução o surgimento de um espaço que permitisse o aparecimento da liberdade pública
ou da felicidade pública. Assim, como a própria Arendt frisa em uma menção a Jefferson,
“a revolução tinha dado liberdade ao povo, mas falhara em fornecer um espaço onde se
pudesse exercer essa liberdade” (ARENDT, 2011, p. 297).
Nesse sentido, para Arendt, o conceito de fundação assume uma importância crucial,
pois concilia os princípios de estabilidade e novidade. A principal referência de nossa autora
para esse conceito encontra-se em Roma, pois “foi em Roma que a fundação se tornou
central para toda a vida pública da cidade e estava vinculada com todos os grandes feitos
dos cidadão e com a grandeza da república que tomou forma com os anos” (RUBIANO,
2016, p. 191). Assim, segundo Avritzer (2007), o conceito de fundação e a recuperação
do conceito de autoridade configuram um dos elementos mais puramente republicano da
obra de Hannah Arendt. Logo, para Arendt, o que salva “o ato de iniciar de sua própria
arbitrariedade é que ele traz dentro de si seu próprio princípio [...] o princípio inspira os
atos que seguirão e continua a aparecer enquanto dura a ação” (ARENDT, 2011, p. 272).
Para os homens da Revolução Americana, o princípio que inspirou sua fundação e guiou
os compromissos da nova república foi a promessa, “o princípio da promessa mútua e da
deliberação comum” (ARENDT, 2011, 273), que afastou os homens da revolução da força
e os conduziu ao estabelecimento da República.
Torna-se importante compreender o modo como Arendt desenvolve o conceito de
promessa mútua a partir da experiência das Revoluções. Nessa direção, Helton Adverse
nos lembra sobre a importância da promessa para os homens da Revolução, enquanto
mecanismo que possibilita a constituição de um espaço político onde o poder e a liberdade
possam aparecer.

[...] o contrato na forma de promessa mútua significa para Arendt a


possibilidade de criação do poder, dispensando a necessidade de
recorrer a qualquer instância transcendente: é na pura imanência, na
horizontalidade dos pactos que se constitui um espaço político em que
o poder pode aparecer e a liberdade ganhar visibilidade (ADVERSE,
2012, p. 49).

Foi somente através da promessa, fruto da capacidade humana de agir e discursar,


que a Revolução pôde escapar da necessidade de uma instância transcendente e absoluta,
se referir a um tesouro sem nome, que representa a herança perdida das revoluções. “Does something exist, not in
outer space but in the world and the affairs of men on earth, which has not even a name?”. (ARENDT, 1993, p. 5).

17
Revolução e republicanismo em Hannah Arendt

podendo pactuar e elaborar a fundação de uma Constituição (fruto do poder de muitos)


que garantisse estabilidade ao mundo de imprevisibilidades ao qual estamos expostos.
Desse modo, a autoridade encontra-se totalmente alheia a qualquer sanção absoluta ou
transcendente, estando completamente vinculada à ideia de fundação e preservação do
corpo político, garantindo assim, a estabilidade da República.
Para Condorcet, citado por Arendt, “A palavra revolucionário só pode ser aplicada
a revoluções cujo objetivo é a liberdade” (ARENDT, 2011, p. 56). E, por outro lado,
a principal tarefa da revolução é a fundação da liberdade e a instauração da república,
conforme Robespierre. Essa fundação da liberdade só é realmente possível devido
ao “‘petitio principii’ que acompanha todo novo início [...] inerente a própria tarefa de
fundação” (ARENDT, 2011, p. 212), isto é, aquele princípio que torna possível o ato inicial
de fundação e a ação política, que Arendt denomina de princípio de natalidade, principal
responsável pelo aparecimento da liberdade.
Para nossa autora, o que restou nos Estados Unidos após a perda do espírito
revolucionário, “foram as liberdades civis, o bem-estar individual da maioria e a opinião
pública como força a governar uma sociedade democrática e igualitária” (ARENDT,
2011, p. 282). No caso da Revolução Francesa, esse espírito foi perdido no próprio curso
da revolução, na incapacidade de fundação de um novo corpo político, e, sobretudo na
invasão das forças da escassez e da necessidade na esfera pública. O espírito revolucionário
que nasceu do desejo moderno de instaurar um novo mundo, onde a forma de governo
republicano se tornaria desejável, foi aos poucos sendo perdido pelas revoluções. Dessa
maneira afirma Arendt,

[...] se a fundação era o objetivo e o fim da revolução, então o espírito


não era apenas o espírito de iniciar algo novo, e sim o de começar
algo permanente e sólido; uma instituição duradoura, encarnando e
incentivando esse espírito a novas realizações, seria autodestrutiva
(ARENDT, 2011, p. 294).

O espírito revolucionário começou a ser perdido quando as revoluções não


conseguiram instituir uma nova forma de governo que permitisse a cada membro da
sociedade se tornar um participante dos assuntos públicos, como aconteceu por meio
do sistema de conselhos em todas as revoluções. Arendt defende que todos os levantes
revolucionários tinham como propósito primordial o desenvolvimento de nova forma de
governo e “esta nova forma de governo é o sistema de conselho” (ARENDT, 2008, p. 199),
que representa o pathos da novidade das revoluções.
Em todas as revoluções sempre apareceram sistemas de conselhos, eles sempre
entraram em conflito com a proposta dos revolucionários profissionais, indivíduos que não
tinham participado ativamente do processo revolucionário, mas tinham bastante influência
sobre o curso a ser tomado pela revolução. Os revolucionários profissionais mantinham o
desejo de subir ao poder depois da revolução estourada e, mais ainda, não defendiam o
surgimento de uma nova forma de governo, mas apenas a imitação de formas passadas,
o que se encontra em conflito com o desejo dos conselhos, pautados pela inauguração de
uma nova forma de governo que garante a participação efetiva dos cidadãos nas decisões
políticas.
Em conflito com os interesses do sistema de conselhos estão também os sistemas
partidários. Embora ambos os sistemas sejam contemporâneos, “ambos eram desconhecidos

18
Antônio Batista Fernandes

antes das revoluções e ambos são consequência do postulado moderno e revolucionário de


que todos os habitantes de um determinado território têm o direito a ser admitidos à esfera
política pública” (ARENDT, 2011, p. 339), mesmo assim, conselhos e sistemas partidários
tem muito pouco ou quase nada em comum. A distinção entre os conselhos e os partidos
está no fato de que os conselhos “sempre surgiram durante a própria revolução e brotaram
do povo como órgãos espontâneos da ação política” (ARENDT, 2011, p. 339). Enquanto
os partidos, além de não terem surgido durante a revolução, não tem sua origem no povo,
tendo se desenvolvido a partir da ampliação do voto popular indicando candidatos para
cargos eletivos.
O conflito entre conselhos e partidos nas revoluções terminou sempre garantindo
a vitória dos segundos em detrimento dos primeiros, tornando os conselhos apenas
instrumentos da luta revolucionária. Com efeito, foi justamente porque os conselhos
representavam o novo começo, através da ação e da participação dos indivíduos nos assuntos
públicos, que se tornaram tão importantes para Hannah Arendt. Nessa direção, a experiência
da Revolução Russa e, principalmente da Revolução Húngara, são fundamentais para a
autora, pois tais experiências duraram o suficiente para mostrar como seria um governo e
como funcionaria uma república fundada sobre os princípios do sistema de conselhos.
Arendt defende que “os conselhos são a única alternativa democrática que
conhecemos ao sistema de partidos” (2007, p. 101). Os conselhos são a única forma
encontrada pela autora para a efetivação da ação e da liberdade política4. Por meio dos
conselhos, Hannah Arendt busca romper com as barreiras da democracia representativa
na modernidade, garantindo assim, a participação efetiva dos indivíduos nas questões
políticas, de modo que “o surgimento dos conselhos [...] foi o signo claro de um autêntico
brotar da democracia frente à ditadura, da liberdade frente à tirania” (ARENDT, 2007, p.
104). Assim, compreendemos que Arendt vislumbrava no sistema de conselhos um espaço
onde a possibilidade de participação direta de todos os cidadãos no governo fosse de fato
efetivada.
O grande tesouro das revoluções encontra-se no aparecimento do sistema de
conselhos, que tornou possível a experiência da liberdade pública, sendo a pérola que os
revolucionários descobriram e que aos poucos foi sendo submersa pelas burocracias estatais
e pelas máquinas partidárias. Arendt defende que o sistema de conselhos são “a única
alternativa que já apareceu na história [...] um princípio de organização completamente
diferente, que começa de baixo, continua para cima e afinal leva a um parlamento”
(ARENDT, 2008, p. 200). Tal proposta pode a princípio parecer frágil ou mesmo utópica,
cheia de incertezas e dúvidas, no entanto, o sistema de conselhos defendidos por Arendt
pressupõe uma estrutura que conjuga poder constituinte e forma constitucional, criando
um espaço institucional que possibilita o aparecimento da liberdade e o exercício da ação
política.
O significado atribuído por Arendt as revoluções, a importância da fundação, da
promessa e da autoridade, aliados a centralidade do sistema de conselhos surgidos a partir
das revoluções modernas enquanto fenômeno tipicamente político, configuram alguns dos
elementos do pensamento republicanismo presente no pensamento de nossa autora. Por
outro lado, entendemos ainda que o sistema de conselhos reflete uma proposta alternativa de
4 O conceito de ação em Arendt “articula-se com a ideia de conselhos entendidos não como alternativa à representa-
ção e sim como alternativa à concepção exclusiva da representação que torna os partidos a única forma de mediação
política”. (AVRITZER, 2007, p. 165).

19
Revolução e republicanismo em Hannah Arendt

Hannah Arendt frente à democracia liberal e a “um modelo de soberania política centrado
em um governo de estado como portador do poder soberano” (MULDOON, 2011, p. 410).
Existe em Arendt a certeza de que é real “a possibilidade de se formar um novo conceito
de estado. Um estado-conselho [...], para o qual o princípio de soberania fosse totalmente
discrepante” (ARENDT, 2008, p. 201), embora a própria Arendt assuma que tal realidade
talvez só seja possível apenas “no encalço da próxima revolução” (ARENDT, 2008, p. 201).

20
Antônio Batista Fernandes

Referências bibliográficas:
ADVERSE, Helton. Uma república para os modernos. Arendt, a secularização e o
republicanismo. Filosofia Unisinos, n. 13, p.39-56, jan. 2012.
ARENDT, Hannah. Crises da República. Tradução de José Volkmann. São Paulo:
Perspectiva, 2008.
_____. Between past and future. New York: Penguin Books, 1993.
_____. Karl Marx y latradicion Del pensamiento político occidental: reflexiones sobre La
revolución húngara. Madrid: Encuentro, 2007.
_____. On Revolution. New York: Penguin Books, 1973.
_____. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.
_____. Sobre a Revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
AVRITZER, Leonardo. Ação, Fundação e Autoridade em Hannah Arendt. Revista Lua
Nova, n. 68, p.147-167, 2007.
BIGNOTTO, Newton (Org). Matrizes do republicanismo. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2013.
CANOVAN, Margareth.Hannah Arendt: a re-interpretation of her political thought.
Cambridge: Cambridge University Press, 1992.
CARDOSO, Sérgio. Que república? Notas sobre a tradição do “governo misto”, In:
BIGNOTTO, Newton. (org.). Pensar a república. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000, p.
27- 48.
CORREIA, Adriano. Hannah Arendt e a modernidade: política, economia e a disputa por uma
fronteira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
DUARTE, André. Hannah Arendt e o pensamento político: a arte de distinguir e relacionar
conceitos. Revista Argumentos, v. 5, n. 9, p. 39-62, jan./jun. 2013.
PANCERA, Carlo Gabriel Kszab. Arendt e Maquiavel: fundação, violência e poder no
pensamento republicano. Argumentos: Revista de Filosofia, Fortaleza, v. 5, n. 9, p. 140-153,
jan./jun. 2013.
MULDOON, James. The Lost Treasure of Arendt’s Council System. Critical Horizons,
12.3, p. 396-417, 2011.

21
O caráter psicagógico nas meditações de Marco Aurélio...

O caráter psicagógico nas meditações de Marco


Aurélio segundo Pierre Hadot

Carolina Molina Reyes1

Assistimos, nos últimos anos, um renovado interesse pelas escolas filosóficas antigas,
particularmente o estoicismo e o cinismo. Um dos principais motivos dessa volta aos gregos,
se deve aos estudos desenvolvidos por M. Foucault nos seus últimos cursos no Collège de
France,2 onde analisa por meio do método genealógico as formas de governamentalidade e
os modos de subjetivação no ocidente. Foucault interessou-se pela dimensão prática que a
filosofia antiga adquiriu por meio das técnicas de si praticadas nas escolas filosóficas antigas,
enfatizando a ética do cuidado de si (epimeleia heauto) e interpretando a filosofia antiga
como uma estética da existência. As pesquisas foucaltianas foram fortemente influenciadas
pela proposta filosófica de Pierre Hadot que vinculou a filosofia [das escolas filosóficas
antigas] ao modo de vida, numa perspectiva existencial - espiritual. Nesse sentido,
gostaríamos de destacar a prática estoica, pois ela se apresenta como uma fonte filosófica
originaria inesgotável de inspiração para repensar a dimensão ética, estética e política de
nosso tempo. Especificamente nos interessa, apresentar a interpretação que Hadot faz das
Meditações de Marco Aurélio como um exercício espiritual. Aprofundar essa interpretação
permite, tanto uma maior compreensão do estatuto ético, estético e político do estoicismo
daquela época, quanto, se deixarmos de lado os apelos que dizem respeito, exclusivamente,
à época greco-romana, uma instancia interpeladora e instigadora das nossas atuais formas
de compreender e viver aquelas dimensões filosóficas; e das nossas opções de relação com
o mundo, com os outros e com consigo mesmos.
Em definitiva, a proposta de Hadot possibilita de fato repensar a prática filosófica,
não apenas a antiga, mas também a atual. Frente a um contexto, caracterizado pela
imposição de modelos de subjetivação que passam do cuidado ao controle, à dominação e
à aniquilação da autonomia do outro. A proposta hadotiana vem ao encontro da discussão
sobre qual o lugar que cabe à filosofia na criação de novos conceitos e novas práticas, enfim,
para o surgimento de novas formas de vida, que possam ser alternativas àquelas que nos
são impostas.

A Filosofia como forma de vida, conceitos fundamentais da tese de P. Hadot.


Em 1977 Pierre Hadot apresenta pela primeira vez o ensaio Exercícios Espirituais
e Filosofia Antiga. Nele explicita que as obras filosóficas dos antigos comportam um
caráter psicagógico. Essas obras com frequência corresponderiam a exercícios espirituais
1 Universidade do Vale do Rio dos Sinos- Unisinos
2 A hermenêutica do Sujeito (1981-1982), O governo de si e dos outros (1982-1983), A coragem da verdade (1983-
1984).

22
Carolina Molina Reyes

e teriam uma função formativa tanto para quem as prática (o próprio autor da obra)
como para os seus ouvintes – quando os há. As obras teriam portanto o objetivo de
guiar, conduzir, educar, formar. Daí o seu caráter psicagógico ou seja, de condução da
alma.
Dita compreensão deriva e forma parte de uma abordagem maior, a saber, de sua
interpretação da filosofia antiga como forma de vida desenvolvida ampla e detalhadamente
no ano 1995 na obra O que é a filosofia antiga? Nessa obra e depois de longos anos de
estudo e dedicação especializada principalmente a textos gregos, neoplatónicos e estoicos,
Hadot conclui que a Filosofia antiga foi verdadeiramente um fenómeno histórico-
espiritual. A filosofia na antiguidade era antes de tudo uma forma de vida, um exercício
espiritual destinado a atingir o ideal de sabedoria proposto por uma determinada escola
filosófica. Distante da representação atual onde predomina o discurso teórico, especializado
e, muitas vezes desvinculado da vida, a filosofia antiga não se compreendia sem uma estreita
relação entre a vida filosófica e o discurso filosófico. Seguir uma vida filosófica pressuporia
primeiramente uma escolha, uma opção por um determinado estilo de vida que implicaria
uma transformação total do ser e uma determinada visão de mundo. É a opção por uma
determinada vida filosófica, que posteriormente precisará sustentar-se ratificar-se, motivar-
se e influenciar-se pelo discurso.
Cada escola filosófica apresenta um ideal de sabedoria e uma atitude existencial
a ser alcançada. Essa atitude e esse ideal poderá ser adquirido por meio da prática de
determinados exercícios espirituais; de ordem física, discursiva, ou intuitiva, a través
dos quais se procura atingir essa transformação e conversão existencial, viver a atitude
fundamental e alcançar o ideal de sabedoria proposto pela escola filosófica escolhida.
Se por um lado cada escola filosófica apresenta um determinado modelo de sabedoria,
todas elas tem um pressuposto comum; o homem se encontra num estado de angustia,
de agonia proveniente da ignorância, e do erro nos juízos de valor às coisas. É frente a
essa angustia que a filosofia se apresenta como um caminho terapêutico para conquistar
a tranquilidade da alma (ataraxia). Dentre as escolas filosóficas antigas os estoicos
caracterizam-se pela atitude existencial da ataraxia, isto é, a imperturbabilidade da alma.
Ela será atingida através da atitude espiritual fundamental do estoico, a atenção (prosochè),
a vigilância permanente e atenta da consciência de si. É essa atitude que lhe permitirá viver
a sua escolha; a de uma vida na qual nenhum pensamento, nenhum desejo, nenhuma ação é
guiado por outra lei que não outra que a da Razão Universal. (HADOT, 2013).

O Manuscrito das Meditações de Marco Aurélio


Em relação ao manuscrito das Meditações, a primeira referência encontra-se
duzentos anos após a morte de Marco Aurélio e corresponde a Themistius3, quem a refere
como sendo uma exortação (paraggelmata). Uma segunda referência encontra-se no século
X na SUDAS, espécie de enciclopédia Bizantina, que cita vários fragmentos e especifica
que a obra contem 12 livros. Uma terceira referência, já no ocidente, data do século xvi;
no ano de 1559 aparece a primeira edição impressa e traduzida ao latim, cujo livro de base
dessa tradução não se possui. Desde então e até o século XX a obra foi traduzida ao inglês,
francês, alemão, espanhol, português, russo, tcheco, polonês, persa, e outros idiomas, e sabe-
se que no ano de 1908 contavam-se 111 edições.
3 Filósofo grego, exegeta (comentarista) de Platão e Aristóteles. Alto funcionário do Império Romano de Oriente
(317 d.C.- Constantinopla 388).

23
O caráter psicagógico nas meditações de Marco Aurélio...

Segundo Castro (2011) as Meditações de Marco Aurélio caracterizam-se por um


estilo pouco comum, provavelmente a única obra desse tipo tanto na filosofia quanto na
literatura. Talvez seja essa a razão pela qual tenha sido diversamente catalogada ao longo
dos anos.
Entre as interpretações dadas ao longo da história encontramos no século xvii, na
Inglaterra, encontramos a Thomas Gataker e Méric Casaubin quem identificam como
hypomnémata. O termo hupomnémata, provém do grego e quer designar anotações que
alguém faz para si mesmo. (HADOT, 2016). Contrariamente e no mesmo século XVII,
J. Pierre de Joly atribuiu as desconexões ao fato ter-se perdido a totalidade do que, para
ele seria um tratado sistemático que Marco Aurélio teria escrito. Outras interpretações
apontam um escrito que Marco Aurélio teria escrito para seu filho ou, na época do
romanticismo, que teria sido um tipo de caderno pessoal onde Marco Aurélio expressava
suas preocupações e sentimentos de sofrimento. (CASTRO, 2011). No século XX, a obra
foi considerada como sintoma da enfermidade psicológica que Marco Aurélio possuía e
demostraria a crise de identidade do autor. (HADOT, 2014).
Como podemos perceber a diversidade de géneros literários atribuídos à obra é
variado. Para Hadot, se traduz em um anacronismo causado pelo desconhecimento das
condições nas quais se escreveu a obra. (HADOT, 2016). Segundo Hadot, as Meditações
correspondem ao género do Hypomnémata; isto é, anotações, reflexões que alguém – neste
caso Marco Aurélio- escreve para si mesmo. Na perspectiva da filosofia como forma de
vida, se traduze em exercícios espirituais realizados por Marco Aurélio a fim de assimilar os
dogmas e as regras de vida do estoicismo. (HADOT, 2014). Não se entende, por isso, que
toda anotação feita para si mesmo, seja um exercício espiritual. Como veremos em breve,
as anotações de Marco Aurélio são verdadeiros exercícios filosóficos recebidos da tradição
filosófica estoica, especialmente a de Epiteto.
À primeira vista o conteúdo das Meditações aparece como estranho, desconcertante.
Fora o primeiro capítulo, onde Marco Aurélio evoca a homens e deuses aos que expressa
seu reconhecimento, o restante da obra é umas serie de frases aparentemente desordenadas,
sem estilo, desconexas, carentes de um fio condutor claro que lhe dê unidade e sentido à
sequência de suas frases, se bem, elas sejam impressionantes e bem escritas. (HADOT,
2013). Frente a essa dificuldade apresentada pelo texto, Hadot (2008, p.384) sinala que

para compreender as obras filosóficas da Antiguidade, será necessário


dar conta das condições particulares da vida filosófica naquela época,
revelar aí a intenção profunda do filósofo, que é não desenvolver um
discurso que teria seu fim em si mesmo, mas agir sobre as almas.

Sendo assim, o contexto vivo imediato no qual devemos situar as Meditações de


Marco Aurélio é na escola filosófica estoica e, por tanto, nos exercícios espirituais que nela
são praticados. Devemos considerar que o estoico situa a intenção moral, a vontade de fazer
o Bem, de agir corretamente- segundo o ditame da razão- como sua regra principal, seu
kanon. Como indicamos anteriormente, a filosofia apresenta-se como terapêutica frente
à situação de angustia na qual o homem se encontra e, para os estoicos, essa infelicidade
do homem provém do desejo de adquirir bens ou querer evitar males que não dependem
dele. Por isso declaram como único bem ou mal, o bem ou o mal moral, pois é apenas isso
que depende da vontade do indivíduo. Sendo fiel a seu kanon, a filosofia estoica procurará
formar ao homem de bem; isto é, aquele que se esforça por:

24
Carolina Molina Reyes

1. Agir com justiça,


2. Aceitar com serenidade os acontecimentos queridos pela Natureza e,
3. Pensar sempre com retidão e verdade.
Contudo, as meditações de Marco Aurélio compreendem-se num contexto ainda
mais especifico: o estoicismo de Epiteto. De fato, a obra alude à exigência que teria
colocado Epíteto no seu Manual, a de “ter sempre à mão e em qualquer circunstância da vida,
os princípios, os dogmas, as regras de vida, as fórmulas que permitiriam pôr-se em boa disposição
interior para agir bem ou aceitar o destino”. (HADOT, 2013, p.128).

O estoicismo de Epíteto

Os três atos da alma


Epiteto encontra-se entre os mais ortodoxos da escola estoica e, sabemos pelas
Meditações que, é através dele que Marco Aurélio conheceu as fontes do estoicismo.
Em Conversações, obra de Arriano que recolhe as conversações anedóticas que mantinha
Epíteto com seus ouvintes, se relata a presença de um tema fortemente estruturado que é
representativo e próprio de Epíteto.
Os antigos estoicos distinguiam apenas duas funções da alma: o assentimento
(referido ao âmbito das representações e o conhecimento) e o impulso ativo (referido ao
movimento aos objetos daquelas representações), porém no Manual de Arriano Epiteto diz:

De nós depende o juízo de valor (hypolépsis), o impulso à ação (hormé),


o desejo (orexis) ou a aversão; numa palavra, tudo o que é nossa própria
obra. Não dependem de nós o corpo, a riqueza, as honras, os altos
cargos; numa palavra todas as cosas que não são nossas próprias obras.
(HADOT, 2013, p.162. Grifo nosso).

Vemos que ao igual que os estoicos anteriores para Epíteto o estoico delimita
o centro de autonomia na a alma, como um princípio diretor (hegemonikon). É nesse
princípio diretor que se situa a liberdade e o verdadeiro eu, a possibilidade do bem ou do
mal moral. (HADOT, 2013). Porém, a diferença dos seus antepassados, para Epíteto - e
logo também para Marco Aurélio a alma (o princípio diretor ou hegemonikon) possui agora
três atividades: o assentimento, o impulso e o desejo. É função da alma:
Desenvolver um discurso interior. Ao receber as imagens provindas das sensações
do corpo, a alma elabora um discurso interior, um juízo e diz a si mesma o que é para ela
aquele acontecimento ou objeto que está ante seus olhos. Emerge assim o chamado discurso
interior, isto é, o juízo emitido sobre determinada representação. (HADOT, 2013). Para
Epiteto devem aceitar-se apenas as representações adequadas (kataléptijé) ou seja, aquelas
que se detêm no que se percebe, sem acrescentar nenhum elemento a mais. Observemos o
exemplo dado pelo próprio Epíteto:

Formulamos interiormente o conteúdo de uma representação: “O filho


de tal está morto”. À interrogação que nos provoca essa representação,
respondemos: “Isso não depende da vontade, isso não é um mal”. “O pai
de tal o deserdou. Que os parece?”. Respondemos: “Isso não depende da
vontade, não é um mal”. “Se afligiu por aquilo”. Respondemos: “depende
da vontade, é um mal”. “O tem suportado valentemente”. “Isso depende
da vontade, é um bem”. (HADOT, 2013, p.164-165).

25
O caráter psicagógico nas meditações de Marco Aurélio...

Segundo Epíteto a ideia segundo a qual determinado acontecimento é uma


tragédia, desgraça, etc., corresponde a uma representação que ultrapassa a visão adequada
da realidade, acrescentando um juízo de valor, isso não deveria acontecer nas almas que
assimilam o axioma fundamental do estoico, para quem o único bem ou mal é o bem ou o
mal moral.
O impulso à ação e a ação mesma. A alma dirige, no âmbito das ações (kathékonta)
o que, por probabilidade e boas razões, se considera apropriado à natureza humana. Isto é,
agir conforme o instinto de conservação4 e conforme à justiça, especialmente na família, na
cidade, na sociedade, nas relações com os homens em geral.
O desejo. Refere-se à afetividade, aquilo que experimentamos ou desejamos
experimentar. É tanto o âmbito da paixão como da passividade frente a aquilo que se impõe
a o Destino, o curso da natureza universal. É a disposição da espera.

Os três âmbitos do exercício filosófico


Às essas três atividades da alma, anteriormente descritas, Epiteto atribui três
disciplinas nas quais o estoico deve trenar-se:
A disciplina do desejo: atua no âmbito do desejo ou da aversão. Considerando que
o homem deseja ou teme coisas que não dependem dele, a disciplina do desejo consistirá
em habituar-se a renunciar progressivamente a esses desejos e a essas aversões, de modo a
desejar apenas o que depende dele: o bem moral. Frente aquilo que não depende dele deve
ser indiferente; considerá-lo e aceita-lo como vontade da Natureza Universal. (HADOT,
2013, p.168).
A disciplina do impulso à ação: no âmbito das ações adequadas (kathékonta) à
natureza universal. Frente a coisas que não dependem de nós; família, cidade, sociedade,
etc. Baseado no instinto de conservação da natureza razoável, o estoico tem que se guiar
pela intenção de agir ao serviço da comunidade humana e da justiça.
A disciplina do juízo, do assentimento: trata-se de criticar cada representação
de modo que o discurso interior, o juízo emitido, seja objetivo e não acrescente nada à
realidade.
Epíteto utiliza a palavra topos – que tradicionalmente se empregava para designar
as partes da filosofia- para designar às três disciplinas. De certa maneira elas são a vivencia
prática das três partes do discurso filosófico (lógica, física, ética). Assim como o topos
retórico dialético é um exercício no âmbito do discurso, os três topoi de Epíteto são três
temas de exercício intelectual, três temas do exercício vivido que aplicam os dogmas ao
âmbito da vida. Por um lado, a disciplina do juízo, do assentimento corresponde à parte
lógica do discurso filosófico e a disciplina do impulso à ação corresponde à ética. Por outro
lado, a disciplina do desejo corresponderia certamente ao âmbito da moral desde que ela
implica uma atitude frente aos acontecimentos da natureza, do cosmos, busca compreender
os acontecimentos como parte do encadeamento da Razão universal, de modo de aceita-
los como vontade da Natureza universal. Desse modo, a disciplina vincula o desejo com
o consentimento ao destino, levando a tomar consciência do lugar do homem dentro do
Todo, reconhecendo-se como parte dele. Nesse sentido a disciplina do desejo corresponde
à vivencia prática da física.

4 O estoicismo fundamenta-se na crença de um instinto de conservação de si mesmo, de amor a sua própria existência
e a todo o que possa conservá-la. É esse instinto quem conduz à coerência consigo mesmo e tende à Razão Universal.

26
Carolina Molina Reyes

As Meditações de Marco Aurélio como exercício espiritual


Tendo situado a obra de Marco Aurélio sob o gênero literário Hypomnémata, isto
é, anotações e reflexões, de Marco Aurélio, para si mesmo e tendo-nos situado no contexto
vivo imediato delas, ou seja, no estoicismo de Epiteto e sua estrutura tripartite dos topoi,
podemos compreender que o aspecto estranho, confuso, aparentemente desordenado e
pouco rigoroso que apresentam as Meditações responde à rigorosa estrutura dos topoi de
Epiteto. É através dela que Marco Aurélio retoma o kanon estoico; os dogmas e as regras
enunciadas pelo seu mestre, de modo de assimila-las e converter seu discurso interior.
A continuação reproduzimos alguns exemplos apresentados por Hadot. (2014,
p.149-150). de sentenças onde Marco Aurélio faz referência aos topoi de Epíteto. O número
ao final da sentença indica o topoi alusivo: (1) desejos, (2) impulso à ação e (3) juízo:
VII,54: Em todos os lugares e constantemente, depende de ti

Comprazer-te piedosamente com a presente conjunção dos


acontecimentos, (1)

Conduzir-te com justiça em relação aos homens presentes, (2)

Aplicar à representação presente as regras de discernimento, a fim de que


nada que não seja objetivo se infiltre nela (3)

IX, 6: Te são suficientes

O juízo presente de valor, à condição que ele seja objetivo (3)

A ação presente, à condição que seja cumprida a serviço da comunidade


humana (2)

A disposição interior presente, à condição que ela encontre sua alegria


em toda conjunção de acontecimentos produzida pela causa exterior (1)

VIII, 7: A natureza racional segue bem a via que lhe é própria

Se no que concerne às representações (fantasia), ela não dá seu


assentimento nem ao que é falso, nem ao que é obscuro, (3)

Se ela dirige suas tendências (hormai) somente em direção às ações que


servem a comunidade humana (2)

Acolhe com alegria tudo o que lhe é dado em partilha pela natureza
universa (1)

VIII, 47: Se te afliges a causa de uma das coisas exteriores, não é ela que
te turba, senão teu juízo respeito a aquela coisa (3)

VII, 28: A dor ou é um mal para o corpo – que ele se manifeste- ou


para a alma; mas esta pode preservar sua própria serenidade e calma, se
recusando a julgar que isto seja um mal. Pois, todo julgamento, impulso
à ação e desejo estão no âmago e nada penetra até lá. (3).

27
O caráter psicagógico nas meditações de Marco Aurélio...

Os três topoi não aparecem nas Meditações de Marco Aurélio de maneira episódica,
porém, desde o Livro II até o Livro XII, cada uma das meditações não são outra coisa que
repetir e praticar fielmente a disciplina indicada por Epiteto. São exercícios de atualização
e assimilação dos três topoi, ainda que não seja de modo explícito nem utilize sempre os
termos de juízo, assentimento ou desejo, Marco Aurélio está seguindo fielmente a estrutura
tripartite dos topoi que Epiteto tinha instaurado como askesis, como exercício espiritual.
(HADOT, 2014). As Meditações não são mais do que o reflexo do esforço com que Marco
Aurélio realiza os exercícios filosóficos com a intensidade de uma experiência mística. De
fato,

trata-se de reatualizar, de reavivar, de despertar sem cessar um estado


interior que corre constantemente o risco de adormecer-se e apagar-
se. Sempre, novamente, trata-se de pôr em ordem um discurso interior
que se dispersa e se dilui na futilidade e a rotina [...] Escrevendo suas
Meditações, Marco Aurélio pratica, pois, exercícios espirituais estoicos;
isto é, que utiliza uma técnica, um procedimento- a escritura-, para
influenciar-se a si mesmo, para transformar seu discurso interior através
da meditação dos dogmas e das regras de vida do estoicismo. Exercício
de escritura diário, sempre renovado, sempre retomado, sempre por
retomar, já que o verdadeiro filósofo tem consciência de não ter atingido
ainda a sabedoria. (HADOT, 2013, p.113).

Reforça a interpretação de Hadot, de ser as Meditações a prática de um exercício


filosófico, o fato de serem escritas em grego. A saber, Marco Aurélio tinha por língua
materna o latim, porém e, se bem, ele tinha sido educado por retóricos gregos, o grego
era considerado na época a língua oficial para a filosofia. Isso reforça a ideia de que as
Meditações não são devaneios espontâneas de Marco Aurélio, senão que correspondem a
exercícios de sua tradição filosófica. O tecnicismo utilizado por ele mostra que ele não é
um amateur nem o estoicismo uma religião. (HADOT, 2013). A diferencia de Lucrécio,
Cícero, e Sêneca – que buscavam popularizar a filosofia grega- Marco Aurélio, escreve
para si mesmo. Ele buscar submergir-se nos dogmas e nas regras de vida de sua escola. As
Meditações não são senão o reflexo do progresso espiritual de Marco Aurélio.
Seguindo a proposta interpretativa de Hadot, por um lado, concordamos que as
Meditações são verdadeiramente um exercício espiritual, basta lê-las para perceber nelas,
o esforço de alguém que procurou viver consciente e coerentemente a sua vida. Percebe-
se o esforço por realizar determinadas regras entendidas como uma verdadeira vivencia
espiritual, um processo de transformação existencial.
A partir das Meditações podemos destacar algumas características próprias do
estoicismo: o reconhecimento da dimensão moral, como o único bem e mal existente de
onde surgem a liberdade e a serenidade perante os acontecimentos decorrentes na vida, a
consciência de pertencer a um Todo (totalidade cósmica e totalidade humana) e o valor
absoluto outorgado à pessoa humana, já que todos provem da Razão Universal. Nesse
sentido, a compreensão dos três topoi - a disciplina do assentimento, do desejo e do impulso
à ação- proposta por Epíteto aplicados às anotações de Marco Aurélio, permitem-nos
constatar a primazia que tem para o estoico a Razão Universal. Assim, a vida inteira está
subordinada à ela; a partir dela surge e nela se fundamenta a experiência moral e a pureza
de intenção, como um absoluto. Segundo Hadot (2013, p.487) nessa perspectiva moral e
razão são uma única questão para o sábio antigo.

28
Carolina Molina Reyes

Como indicamos no início do texto, cremos que o conhecimento e o aprofundamento


das reflexões de Hadot, neste caso por meio de sua interpretação das Meditações de Marco
Aurélio, nos possibilitam repensar, não apenas o estatuto da filosofia filosófico e suas
implicações para a vida dos antigos, mas sobretudo nos instigam a repensar qual o estatuto
prático existencial atual da filosofia, isto é, qual a ocupação, não apenas especulativo-teórica,
mas também a função espiritual que a caracteriza e lhe cabe como tarefa própria.

29
O caráter psicagógico nas meditações de Marco Aurélio...

Referências bibliográficas:
ARNAIZ. Gabriel: Relevancia de las aportaciones de Pierre Hadot y Michel Onfray para
la Filosofía Práctica. A Parte Rei, São Paulo, Julio 2007, n. 52. p. 1-9]
BOSCH-VECIANA; Antoni. Pierre Hadot, lector de l’antiguitat clàssica: la
contemporaneïtat de la vida filosófica. Annuari de la Societat Catalana de Filosofia XXI,
2010. 7-46.
CASTRO Henrique. Introdução às Meditações de Marco Aurélio. Universidade
Fluminense. 2011
COLARES. Lorrayne. Comentarios sobre as relações entre discurso e modo de vida
segundo Pierre Hadot. In: Revista Ética e Filosofia Política, n. 18, vol. II. dez./2015.
FERNANDEZ José Miguel. Pierre Hadot y el estudio de la filosofía antigua como forma
de vida. Tese (Licenciatura)- Pontificia Universidad Católica de Chile, 2012. “Orientador:
Prof. Dr. Jorge Martinez”.
FERREIRA Favio. Pierre Hadot e os exercícios espirituais: a filosofia entre a ação e o
discurso. In: Aurora, Curitiba, v. 23, n. 32, jan./jun. 2011p. 99-111.
FORCE. Pierre: The teeth of time: Pierre Hadot on meaning and misunderstanding in
the history of ideas. In: History and Theory 50. Fev./2011, p. 20-40.
HADOT, Pierre. A Filosofia como maneira de viver: Entrevista de Jeannie Carlier e
Arnold I. Davidson. Trad. Lara Christina de Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2016.
_____ Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. Trad. Flavio Fontelle Loque e Loraine
Oliveira. São Paulo: É realizações Editora, 2014.
_____ La ciudadela interior. Trad. María Cucurella Miquel. Barcelona: Alpha Decay, 2013.
_____ La filosofia como forma de vida. Conversaciones com Jeannie Carlier y Arnold I.
Davidson. Barcelona: Alpha Decay, 2009.
_____ O que é a filosofia antiga? Trad. Dion Davi Macedo. 3. ed. São Paulo: Edições
Loyola, 2008.
OLIVEIRA. Loraine. Dossiê Pierre Hadot: A filosofia como modo de vida. In: Archai, n.
18, sep.-dez./2016, p. 285-289.

30
Daniel Arruda Nascimento

As encruzilhadas do pensamento de esquerda: Entre as


democracias de massa, a governamentalidade
biopolítica e os dispositivos aclamatórios

Daniel Arruda Nascimento1

Introdução
Esta comunicação tem a dupla intenção de debater o texto As democracias de massa
e seu germe autoritário: conexões (im)pertinentes da governamentalidade biopolítica de Foucault
e os dispositivos aclamatórios da soberania em Agamben de Castor M. M. Bartolomé Ruiz e
retirar da sombra uma preocupação expressa por Chantal Mouffe e Ernesto Laclau em
Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical: o fato do pensamento de
esquerda se encontrar hoje em uma encruzilhada2. Buscarei nesta contribuição provocativa,
como não poderia deixar de ser, enfrentar igualmente o problema da tripla decepção com
a incapacidade do Estado de Direito em responder aos apelos sociais e às demandas
institucionais que o nosso tempo trazem à tona, com os modelos de democracias formais
disponíveis ao nosso público e com a própria política, o que atinge inclusive as alternativas
que costumam se colocar dentro do que se convencionou chamar de esquerda3. Superada
a fase da crítica do consenso, uma adoção antagônica do sentido de democracia resulta
na sua captura por dispositivos espetaculares, dispositivos que produzem e reproduzem o
espetáculo, minando a própria democracia.

O espetáculo na ordem da realidade


Chantal Mouffe e Ernesto Laclau escreveram em 1985 que o pensamento de
esquerda se encontrava em uma encruzilhada (cf. LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 51).
Muitas das convicções clássicas do passado sofreram um sério questionamento frente à
avalanche de mutações históricas que as sucederam, transformações que modificaram as
condições históricas onde a militância se move e que trazem, muitas vezes, germes de
decepção com o resultado de suas próprias ações. Igualmente, porque fenômenos positivos
1 Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas; Professor da Universidade Federal Fluminense
2 Esta comunicação tem o seu contexto na realização de uma atividade situada no XVIII Encontro Nacional da AN-
POF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia). Combinamos entre os membros do Grupo de Trabalho
em Filosofia Política Contemporânea que debateríamos na oportunidade os textos uns dos outros. Coube a mim
oferecer um comentário à comunicação oral do professor Castor M. M. Bartolomé Ruiz. A versão integral e final do
texto debatido deve ser encontrada nos anais do evento.
3 Deixaremos de lado neste momento as discussões sobre os sentidos do conceito político de esquerda. Para os fins
destas reflexões, bastará tomar o sentido mais corriqueiro de esquerda no espectro político atual, inclusive no que o
termo tem de pejorativo. Por pensamento de esquerda, então, consideramos o pensamento e as práticas de grupos que
vicejam na herança do pensamento socialista, mas também de militâncias, partidos e movimentos sociais que se
autodenominam de esquerda.

31
As encruzilhadas do pensamento de esquerda: entre as democracias...

não previstos no pensamento clássico, toda uma profusão de lutas e movimentos sociais,
chacoalharam os seus cânones contrariando convicções assumidas como verdades, mas
podem ter como resultado o avanço rumo a sociedades menos desiguais. Proponho aqui
somar a essas razões outras para ampliar a visão dessas encruzilhadas do pensamento de
esquerda, a partir das observações trazidas pelo professor Castor Ruiz em diálogo com
Michel Foucault e Giorgio Agamben. Podemos perquirir se a realidade contraditória que
embala o descontentamento com a política nos nossos dias não está também infiltrada
na militância de esquerda, especialmente naquela que se avizinha. Em que medida as
autodeclaradas militâncias de esquerda não se inserem na aludida governamentalidade
biopolítica, não estão capturadas pelas técnicas de administração de condutas que esvaziam
os seus participantes de autonomia? Técnicas estas que aplicadas em larga escala e de maneira
difusa resultam em um processo de subjetivação que dá origem ao que reconhecemos
como sociedade de massa. Em que medida estas militâncias de esquerda não teriam aderido
sem a reserva crítica necessária aos apelos da opinião pública, talvez como um modo de
sobreviver aos impactos dos seus fracassos históricos4? Ou não seriam elas mesmas a
repercussão inconfessa e surpreendente do dispositivo da glória, da ritualização do poder
pelos governos a fim de garantir sua legitimidade e estabilidade, tão dependentes dos atos
aclamatórios, da opinião pública expressa nos meios de comunicação e nas pesquisas de
opinião? Em que medida essas militâncias não estariam a reboque das assim nominadas
democracias espetaculares e do correspondente império da aparência?
Notemos que em 1990, com a publicação de La comunità che viene, já preocupava
ao filósofo italiano o confinamento histórico da natureza humana na forma do espetáculo
(cf. AGAMBEN, 2001, p. 44). Qualquer nome que se queira dar ao processo que nos dias
atuais domina a história mundial, seja capitalismo, seja democracia espetacular, aduz a uma
imensa acumulação de imagens e representações. Em suas palavras, “quando, em novembro
de 1967, Guy Debord publicou A sociedade do espetáculo, a transformação da política e da
inteira vida social em uma fantasmagoria espetacular não havia ainda atingido a figura
extrema que hoje se tornou perfeitamente familiar” (AGAMBEN, 2001, p. 63). Guy
Debord estava certo quando escreveu que o seu livro tinha o mérito de não ser desmentido
pelos acontecimentos posteriores à sua publicação, mas antes ter sido confirmado por eles
(cf. DEBORD, 2017, p. 33)5. Também estava certo quando observou que pouca gente
se interessaria pelo seu livro (cf. DEBORD, 2017, p. 172)6. Cuida-se de um livro desses
que vale a pena ter escrito. Não apenas desses que valem a leitura, mas desses pelos quais
vale a pena ter dado uma vida. Seus aforismos incandescentes são densos e deixam um
longo rastro. O autor parecia saber que havia produzido um trabalho sem comparação.
Mais que isso, um trabalho que encheria o mundo de ideias. O seu livro é resolutamente
fundamental para se compreender não apenas o século vinte, como o século vinte e um.
Mezzi senza fine: note sulla politica, publicado em 1996, quando Giorgio Agamben iniciava
o seu programa político-filosófico mais conhecido (Homo sacer), é ainda mais explícito
na referência ao legado do cineasta e escritor francês, ao dedicar um capítulo inteiro aos
Comentários sobre a sociedade do espetáculo de 1988, ainda que na modalidade de glosas
4 Tenho consciência de que o tema do fracasso histórico das esquerdas é controverso. Considero que há movimentos
históricos de esquerda que foram vitoriosos na ampliação de direitos e na proteção de minorias. Considero, sem
prejuízo, que governos que se instalaram sob a batuta de movimentos de esquerda terminaram, na maioria das vezes,
em um hediondo fracasso. Não por não terem sido capazes de se manter hegemonicamente até os dias atuais, mas
por não terem, na imensa maioria dos casos, sido capazes de permanecer fiéis aos ideais que os promoveram.
5 Advertência à edição francesa de 1992, dois anos antes de sua morte em 1994.
6 Prefácio à quarta edição italiana de 1979.

32
Daniel Arruda Nascimento

marginais. “Os livros de Debord constituem a análise mais lúcida e severa da miséria e da
servidão de uma sociedade – aquela do espetáculo, na qual nós vivemos – que estendeu
hoje o seu domínio sobre todo o planeta” (AGAMBEN, 2005, p. 60). Segundo o filósofo,
“apesar das aparências, a organização democrático-espetacular-mundial que vai assim se
delineando corre o risco de ser, na realidade, a pior tirania que jamais surgiu na história
da humanidade, contra a qual a resistência e o dissenso serão de fato sempre mais difíceis”
(AGAMBEN, 2005, p. 71). O que vale para o pensamento de esquerda, com toda certeza,
especialmente quando opta, ou é capturado, pelo caminho do espetáculo: também para o
pensamento de esquerda e para as suas práticas é difícil resistir à sua tirania.
Precisamos então compreender o que é o espetáculo. O espetáculo é a afirmação da
aparência, o conceito de espetáculo designa a aparência organizada socialmente (DEBORD,
2017, p. 40). Toda a vida em sociedade passa a representar a si mesma pelo quinhão da
espetacularização. O que é bom deve aparecer e apenas aquilo que aparece é bom. Aparecer
é vital, como se aparece também é. Por isso, não apenas aparecer, mas parecer ser, parecer
ter. Uma seleção de imagens paira sobre o mundo sensível e convence que é o sensível
por excelência, o único caminho pelo qual o mundo se dá a conhecer. Uma duplicação
de mundo que poderia ser batizada de platonismo cego. Mais que isso, pelo movimento
essencial do espetáculo que se alastra por toda a terra, todo o mundo fenomênico se rende
à circulação de mercadorias. “Reconhecemos a nossa velha inimiga, a qual sabe tão bem,
à primeira vista, mostrar-se como algo trivial e fácil de compreender, mesmo sendo tão
complexa e cheia de sutilezas metafísicas, a mercadoria” (DEBORD, 2017, p. 51). “O
espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social” (DEBORD,
2017, p. 54), ele é o produto da exploração e da expropriação, é o que circula com valor
social e econômico. Produção, sim, mas também falsificação. A dinâmica espetacular cria
imagens sem correspondência, falsifica a vida social e orienta os desejos de consumo. Nos
Comentários sobre a sociedade do espetáculo, Guy Debord escreve que na era do espetacular
integrado o espetáculo produz a realidade, fabrica a realidade, falsifica a realidade (cf.
DEBORD, 2017, p. 197). Antes, ele havia escrito o que se segue.

Sem dúvida, a pseudonecessidade imposta pelo consumo moderno não


pode ser contrastada a nenhuma necessidade ou desejo autêntico que não
seja, ele mesmo, produzido pela sociedade e sua história. Mas a mercadoria
abundante aí está como a ruptura absoluta do desenvolvimento orgânico
das necessidades sociais. Sua acumulação automática libera um artificial
ilimitado, diante do qual o desejo vivo fica desarmado. A força cumulativa
de um artificial independente provoca por toda a parte a falsificação da
vida social (DEBORD, 2017, pp. 69-70, grifos do autor).

Interessante é observar como em uma série de passagens de A sociedade do


espetáculo o escritor francês permite compreender que o que nós temos de fato com a
universalidade da sociedade do espetáculo é a gestão sobre a vida humana, o que torna o
seu pensamento surpreendentemente convergente com a governamentalidade biopolítica.
O espetáculo é o “autorretrato do poder na época de sua gestão totalitária das condições
de existência” (DEBORD, 2017, p. 44) – lugar em que o autor não se refere aos regimes
totalitários do início do século, mas à sociedade contemporânea a si já na segunda
metade do século. O espetáculo toma a vida humana como simples aparência, constitui
o modelo dominante de vida em sociedade, faz a mediação de toda relação social entre
pessoas, forja estilos de vida, padrões aparentes sem profundidade, tipos de personalidade

33
As encruzilhadas do pensamento de esquerda: entre as democracias...

(cf. DEBORD, 2017, pp. 38-65), poderíamos acrescentar, subjetividades. Alienados de


sua própria vida para assumir papéis e comportamentos já previamente configurados,
aqueles que vivem em uma sociedade do espetáculo, passam a se reconhecer nas imagens
dominantes e falam e agem acordes com as expectativas dos outros: “a exterioridade
do espetáculo aparece no fato de seus próprios gestos já não serem seus, mas de um
outro que os representa por ele” (DEBORD, 2017, p. 48). Vemos como a autonomia
dos sujeitos está contaminada. Em um ambiente como esse, onde não é possível a ação
autônoma, compromete-se a política e, evidentemente, qualquer pretensão de construção
da democracia. Se os sujeitos não podem pensar, discursar e agir por si, como poderia
haver democracia? Talvez seja a gestão do poder a área que sofra o maior impacto
no alastramento do espetáculo. O escritor francês está plenamente consciente disso,
quando afirma nos últimos anos de sua vida que “a instalação da dominação espetacular
é uma transformação social tão profunda que mudou radicalmente a arte de governar”
(DEBORD, 2017, p. 259). Mais interessante ainda é notar como o aspecto glorioso do
espetáculo não lhe passa despercebido. Ainda que de maneira furtiva, Guy Debord
acena para o que Giorgio Agamben tornaria futuramente o objeto de um extenso estudo
arqueológico. Cito uma passagem exemplar.

O caráter fundamentalmente tautológico do espetáculo decorre do


simples fato de seus meios serem, ao mesmo tempo, seu fim. É o sol
que nunca se põe no império da passividade moderna. Recobre toda a
superfície do mundo e está indefinidamente impregnado de sua própria
glória (DEBORD, 2017, p. 41, grifos nossos).

Não é de se espantar, portanto, que não apenas as artes de governar sofram


modificações, mas a própria política traga as marcas da sociedade espetacularizada. Toda
a política deve agora pagar os tributos do espetáculo. Tanto aqueles que querem conservar
a sociedade tanto aqueles que se revoltam contra as desigualdades sociais parecem cair na
mesma armadilha. “À aceitação dócil do que existe pode juntar-se a revolta puramente
espetacular: isto mostra que a própria insatisfação tornou-se mercadoria” (DEBORD, 2017,
pp. 63-64). A indignação e as melhores intenções na construção de uma sociedade menos
injusta são muitas vezes portadas por personalidades que já se adaptaram visceralmente aos
requisitos do espetáculo. O mesmo se diga para movimentos contra as arbitrariedades e as
opressões que tornaram-se eminentemente performáticos. No Brasil, por exemplo, durante
o ano de 2016 e durante o processo que culminou no golpe midiático-parlamentar que
derrubou a presidenta eleita Dilma Rousseff, vimos o comando de ir às ruas ser obedecido
por ambas as forças que se contrapunham. Durante alguns meses vimos as passeatas de
verde e amarelo dos domingos se repetirem em vermelho nas sextas-feiras, em um jogo de
cores onde o que contava era a exposição pública e a quantidade de pessoas que se colocava
nas ruas. Uma repetição monótona que mais do que expressar a falta de alternativas reais,
trazia uma pergunta subjacente a todo aquele que se insere criticamente em alguma
militância: na luta contra as arbitrariedades e as opressões deve-se adotar as mesmas armas
dos dominadores, para subverter o seu uso, ou é sempre necessário criar armas próprias?
Guy Debord não tem dúvidas: “na luta da organização revolucionária contra a sociedade
de classes, as armas são a essência dos próprios combatentes: a organização revolucionária
não pode reproduzir em si as condições de cisão e hierarquia que são as da sociedade
dominante” (DEBORD, 2017, p. 109). O escritor e militante francês não poderia ser
mais claro: a organização revolucionária “tem de lutar sempre contra sua deformação no

34
Daniel Arruda Nascimento

espetáculo reinante” (DEBORD, 2017, p. 109). “A organização revolucionária deve ter


aprendido que já não pode combater a alienação sob formas alienadas” (DEBORD, 2017,
p. 110, grifos do autor). Se as militâncias forem apenas reprodutoras de comportamentos
orientados pela necessidade do espetáculo, estamos perdidos. Cito ainda uma passagem
dos Comentários sobre a sociedade do espetáculo.

O indivíduo que foi marcado pelo pensamento espetacular empobrecido,


mais do que por qualquer outro elemento de sua formação, coloca-se de
antemão a serviço da ordem estabelecida, embora sua intenção subjetiva
possa ser o oposto disso. Nos pontos essenciais ele obedecerá à linguagem
do espetáculo, a única que conhece, aquela que lhe ensinaram a falar.
Ele pode querer repudiar essa retórica, mas vai usar a sintaxe dessa
linguagem. Eis um dos aspectos mais importantes do sucesso obtido
pela dominação espetacular (DEBORD, 2017, pp. 214-215, grifos do
autor).

Com trinta e cinco anos Guy Debord está preocupado com a oposição espetacular
dos papéis ilusórios entre adultos e jovens, porque onde se instalou o consumo abundante,
onde tudo se tornou mercadoria, “não existe nenhum adulto, dono da própria vida, e a
juventude, a mudança daquilo que existe, não é de modo algum propriedade desses
homens que agora são jovens, mas sim do sistema econômico, o dinamismo do capitalismo”
(DEBORD, 2017, p. 66). Nem tudo que é novo é melhor e essa oposição entre a maturidade
e a juventude não passa de mais uma falsa ilusão quando o mundo das aparências se tornou
universal. Novidades que carregam o afã da juventude facilmente se convertem em molas
espetaculares. Neste sentido, nenhum exemplo é melhor que as redes sociais. Sem conhecer
a nova realidade informatizada, Guy Debord já se mostrava profundamente incomodado
com a multiplicação do fluxo de imagens pelos computadores, tendo alertado para a
perdição da linguagem e para a generalização da subcomunicação (cf. DEBORD, 2017, pp.
146 e 151)7. O que não diria ele se soubesse que hoje carregamos esses computadores nos
nossos bolsos e mediamos por eles a maior parte diária da nossa comunicação? A não ser
por alguns desavisados, são poucos os que ainda acreditam que as redes sociais tenham
qualificado a nossa comunicação e tornado a nossa sociedade mais democrática. As redes
sociais funcionam na lógica mercadológica e contribuem para a afirmação do espetáculo e
do capital. Embora pareçam ser meios puros de comunicação, vazios de conteúdo, apenas
formas, são vitrines que se constituem na visada do mercado, a simples exposição já opera
como mercadoria. Funcionam no tempo e no espaço próprios do espetáculo. Com o auxílio
da tecnologia, duplicamos a realidade em ser e parecer ser, a partir daí tudo gira em torno da
aparência que se consegue sustentar. A polêmica afirmação de Umberto Eco na ocasião em
que recebeu o título de doutor honoris causa na Università di Torino em junho de 2015, de
que as mídias sociais promoveram o idiota da aldeia a portador da verdade, pode ser com
justiça substituída pelo reconhecimento de que as redes sociais fizeram crescer o idiota
da aldeia que mora em cada um de nós. Na disputa pela opinião pública, o uso delas pela
esquerda é um jogo na casa do adversário, para o bem e para o mal, é estar mais aparente,
mas é também tornar-se semelhante. E as chamadas fake news, ou a prática organizada do
boato, nada mais são do que a culminância natural do esquadrão espetacular.
7 Nos Comentários sobre a sociedade do espetáculo lemos que “a linguagem binária do computador também é um ir-
resistível estímulo para que se admita a cada instante, sem reservas, o que foi programado por outra pessoa, a seu
bel-prazer, pessoa que se apresenta como a fonte intemporal de uma lógica superior, imparcial e total” (DEBORD,
2017, p. 212).

35
As encruzilhadas do pensamento de esquerda: entre as democracias...

O pensamento de esquerda e as democracias espetaculares


Esse é o ambiente que compreende as encruzilhadas contemporâneas do pensamento
de esquerda e agora podemos passar à última parte destas breves reflexões. As alternativas
que sempre se apresentaram ao pensamento de esquerda, revolução ou reforma a partir
das regras do jogo, não existem mais, salientam Chantal Mouffe e Ernesto Laclau. O
projeto socialista hoje deve se apresentar como um projeto de radicalização da democracia
(cf. LACLAU; MOUFFE, 2015, pp. 54 e 235), realizável apenas na luta hegemônica
contra as formas de subordinação e na ampliação da participação de sujeitos políticos
autônomos. Com o desenlace final do século vinte, tornou-se cada vez mais evidente que a
política não se restringe ao nível do partido ou do Estado. Todavia, ao lado do surgimento
dos movimentos sociais enquanto sujeitos políticos, reunindo lutas por identidades e por
direitos, vemos o incremento da mercantilização das relações humanas e a ambiguidade
dos novos meios de comunicação. Tudo isso aumentou as relações antagônicas do nosso
meio. Diante da pluralidade e dos novos antagonismos do nosso tempo, o pensamento
de esquerda pode estar mal preparado. É provável que não esteja isento do mesmo
paroquialismo que pretende combater. E aqui surge a hipótese de Chantal Mouffe e
Ernesto Laclau: se os antagonismos não podem ser eliminados, porque fazem parte do
cotidiano do campo político, talvez seja o momento de investir em um modelo agonístico
de democracia.
Ficaremos aqui apenas com alguns apontamentos do casal de cientistas políticos
para orientar o nosso debate. Antes de tudo é preciso reconhecer que toda política, na
medida em que se desenvolve em meio a relações sociais determinadas pelo contingente
histórico, implica considerar que ela mesma está agora confrontada com o regime intensivo
de acumulações que teve lugar a partir da metade do século vinte, um regime “caracterizado
pela disseminação das relações capitalistas de produção a todo o conjunto das relações
sociais, e a subordinação destas à lógica da produção para o lucro” (LACLAU; MOUFFE,
2015, p. 244). Modificações profundas ocorreram no modo de produção capitalista e no
mundo do trabalho. Conjuntamente, as relações sociais passaram a ser regidas pela lógica
da produção e do consumo, onde o que mais importa é honrar o momento posterior da
produção, qual seja, o momento da troca lucrativa. Vivemos em sociedade, em meio a
relações sociais. Isso significa que para estar à altura do seu tempo, aquele que se insere
nas redes de relações sociais deve apresentar-se como uma mercadoria altamente desejável,
com alto valor no mundo do comércio. Isso significa também que os encontros entre
pessoas no tecido social serão reuniões de negócios, com os valores e as estratégias próprios
do mundo negocial voltado para o enriquecimento das partes que negociam. Por outro
lado, dado o desenvolvimento da sociedade do consumo e de uma nova cultura de massas
(favorecida pela expansão dos meios de comunicação de massa concentrados e uniformes),
o real acúmulo de bens ilude os consumidores fazendo-os acreditar no progresso social
e no avanço da democracia8. É possível divisar assim algo que podemos designar por
mercantilização da vida.

Essa “mercantilização” da vida social destruiu relações sociais prévias,


substituindo-as por relações mercantis através das quais a lógica da
acumulação capitalista penetrou em esferas cada vez mais numerosas.

8 Para Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, todavia, os efeitos da nova cultura de massas são ambíguos, uma vez que o
acesso a um leque cada vez maior de bens pela população permite igualmente o questionamento de certos privilégios
e a rejeição das desigualdades reais (cf. LACLAU; MOUFFE, 2015, pp. 248-249).

36
Daniel Arruda Nascimento

Hoje, não é somente como vendedor da força de trabalho que o indivíduo


é subordinado ao capital, mas também através de sua incorporação a
uma multidão de outras relações sociais: cultura, tempo livre, doença,
educação, sexo, e até a morte. Praticamente, não há um só domínio da
vida individual e coletiva que escape a relações capitalistas (LACLAU;
MOUFFE, 2015, p. 245).

Em contraste, toda ação política depende da autonomia dos sujeitos envolvidos.


Como vimos, segundo Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, a transformação da sociedade
atual apenas será alcançada com a formação da hegemonia socialista, com a modificação
das condições sociais, das oportunidades políticas e com a maturação dos sujeitos
revolucionários. Mas a realidade do nosso século não é mais a mesma da realidade do
século de Marx. Não é mais possível atribuir a uma classe determinada o papel de sujeito
revolucionário, nem admitir pontos privilegiados de ruptura ou espaços políticos unificados
(cf. LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 235). A opressão pulverizou-se assim como pulverizou-
se a resistência. Posições sociais e identidades cada vez mais flutuantes deram origem a
todo um complexo de lutas contra o poder, contra as opressões e contra as relações injustas
de subordinação. Os indivíduos não assumem apenas uma única luta contra a dominação,
na medida em que têm uma existência múltipla na sociedade, como são múltiplos os
espaços e as relações sociais. Quando articuladas por diversos agentes e destinadas a pôr
fim às situações de dominação, essas lutas adquirem o caráter político necessário a toda
luta revolucionária. Muitas dessas lutas receberam o nome, na falta de outro melhor, de
novos movimentos sociais. São esses movimentos sociais que portam as bandeiras mais
conhecidas na atualidade política, bagunçando o entendimento dos que ainda pretendem
aplicar conceitos clássicos para a compreensão do mundo político contemporâneo. Esse
é o contexto da proposta de democracia radical anelada pelo referido casal de cientistas
políticos. Ademais, onde a pluralidade das identidades e das relações sociais é um fato, a
autonomia é um ingrediente indispensável da luta hegemônica (cf. LACLAU; MOUFFE,
2015, pp. 220-221). Considerando-se que o socialismo seja um componente seminal de
um projeto de democracia radical, a estratégia hegemônica da esquerda política requer “a
autonomização das esferas de luta e a multiplicação dos espaços políticos” (LACLAU;
MOUFFE, 2015, p. 266). Apenas sujeitos livres podem constituir o sujeito revolucionário.
Não será então somente Giorgio Agamben que destilará a sua crítica à democracia
interpretada como democracia consensual. Nas últimas páginas de Il regno e la gloria, depois
de sustentar que a democracia contemporânea está fundada na glória e na eficácia da
aclamação multiplicada pela mídia, o filósofo italiano alfineta os teóricos do consenso, esse
estranho dispositivo admitido pela primeira vez nos documentos jurídicos para justificar a
concentração de poderes na pessoa de um imperador romano, afirmando que o consenso é
a forma moderna de aclamação (cf. AGAMBEN, 2007, pp. 282-283). Inapelavelmente, o
consenso é usado normalmente para justificar decisões políticas quando não há consenso.
Está no coração de Hegemonia e estratégia socialista a superação das aspirações por consenso.
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe apontam para a inevitável complexidade das relações
sociais do século e para a impossibilidade do consenso no campo político. Qualquer teoria
política deve hoje partir do pressuposto de que as identidades sociais são relacionais e
contingentes, não são fixas e estáveis, elas flutuam nas condições em que as relações são
estabelecidas. Igualmente, que a hegemonia socialista depende da articulação de agentes
sociais concretos, diferentes e em dissenso, construídas passo a passo na superabundância das

37
As encruzilhadas do pensamento de esquerda: entre as democracias...

práticas cotidianas (cf. LACLAU; MOUFFE, 2015, pp. 154-157). Em um texto posterior
intitulado Por um modelo agonístico de democracia, Chantal Mouffe é ainda mais explícita.
Embora não amplamente aceito por democracias liberais e democracias deliberativas, o
dissenso é inerradicável e salutar para a democracia. O pluralismo de valores e interesses
em uma sociedade gera sempre antagonismos. “A objetividade social é constituída por meio
de atos de poder”, a questão do poder e dos antagonismos inerentes ao seu exercício devem
estar no centro de toda abordagem sobre a construção da democracia. “Compreender a
natureza constitutiva do poder implica abandonar o ideal de uma sociedade democrática
como a realização de perfeitas harmonia e transparência” (MOUFFE, 2005, p. 19). Em
uma sociedade de homens, não há como neutralizar o uso do poder, nem como extirpar a
presença dos antagonismos que necessariamente surgirão, nem como circunscrever o poder
a uma esfera determinada e sob controle. Por isso, a cientista política belga propõe um
modelo agonístico de democracia. Uma vez que a “política busca a criação da unidade em
um contexto de conflitos e diversidade”, que ela consiste em “domesticar a hostilidade e em
tentar conter o potencial antagonismo que existe nas relações humanas” para tornar possível
a vida em comum (MOUFFE, 2005, p. 20), a proposta é batalhar para que os antagonismos
sejam assimilados agonisticamente, que adversários no dissenso não sejam percebidos
como inimigos a serem destruídos, mas portadores de ideias a serem vencidas, com os
quais é necessário construir conjuntamente. O que apenas pode se dar, evidentemente, em
um contexto no qual certos princípios ético-políticos são reconhecidos e respeitados por
todos os envolvidos, no qual o direito de defender ideias discordantes nunca é colocado
em questão e no qual os acordos e os desacordos nunca sejam definitivos. Considerando-
se o “caráter inerentemente conflitual do pluralismo moderno”, pouco enfatizado pelos
mais bem intencionados teóricos da democracia, “o propósito da política democrática é
transformar antagonismo em agonismo” (MOUFFE, 2005, p. 21). Discordar de alguém
na esfera pública não é necessariamente adotá-lo como um inimigo e declarar guerra de
morte. É revigorante escutar a proposta da democracia agonística.
Ocorre que diante da pluralidade e dos novos antagonismos do nosso tempo, a
esquerda está mal preparada. Ernesto Laclau e Chantal Mouffe chamam a nossa atenção
para o fato da resistência à mercantilização, à burocratização e à crescente homogeneização
da vida social, assim como a formas clássicas de opressão, resultar em uma profusão de
particularismos e relações de antagonismo, e ao fato da esquerda e do seu pensamento serem
capazes de assimilar parte desses antagonismos, mas serem incapazes de compreendê-los
e assumi-los todos, descartando parte considerável desses antagonismos, classificando-os
de liberais ou, poderíamos acrescentar, simplesmente de direita (cf. LACLAU; MOUFFE,
2015, pp. 249-250). Podemos até dizer que a esquerda está mal preparada para lidar com
a explosão da liberdade de pensamento e de expressão, uma vez que apela com muita
frequência para rotularização e para o desprezo das ideias e dos interlocutores conflitantes,
assim como muitas vezes não está isenta do individualismo e da falta de autonomia que
pretende criticar. Assim, vemos jovens se aproximarem da política apenas para seguir uma
carreira rentável. Vemos jovens repetirem os gestos de velhos políticos de carreira. Vemos
jovens e velhos apostarem na performance como o filão de toda a política. Quantas vezes
vimos a execução de atos performáticos vazios de conteúdo pela simples obrigatoriedade
da performance? Quantas vezes vimos essas performances serem acompanhadas de palmas
e ovações públicas, de aclamações e gritos de apoio? Quantas vezes vimos que o mais
relevante em um debate era parecer vitorioso e não convencer pelas ideias? Claro que é do

38
Daniel Arruda Nascimento

jogo político realizar performances significativas. O problema é apostar exclusivamente


no desempenho performático e esquecer a já caduca aposta no convencimento dos
interlocutores, o que antes já fora nomeado de tomada de consciência. Outro problema é
aderir à espiral do ódio, ingressar sem reservas na ventania que dissemina a incompreensão
e os discursos de ódio. Os usos dos dispositivos espetaculares acirram os antagonismos,
esgarçando-os até onde vão os discursos de ódio. Infelizmente, a esquerda se deixou
seduzir pelo fundo fascista e violento da sociedade brasileira. Mesmo as alianças que,
como não poderia deixar de ser, ainda pululam na cena política, parecem ser muito frágeis
e convergem apenas quando há uma coincidência de causas a defender ou um inimigo
comum a derrotar.

39
As encruzilhadas do pensamento de esquerda: entre as democracias...

Referências bibliográficas:
AGAMBEN, G. Il regno e la gloria: per una genealogia teologica dell’economia e del
governo, Vicenza: Neri Pozza, 2007.
_____. La comunità che viene, Torino: Bollati Boringhieri, 2001.
_____. Mezzi senza fine: note sulla politica, Torino: Bollati Boringhieri, 2005.
_____. La potenza del pensiero: saggi e conferenze, Vicenza: Neri Pozza, 2005.
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo, tradução de Estela dos Santos Abreu, Rio de
Janeiro: Contraponto, 2017.
LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática
radical, tradução de Joanildo A. Burity et al., São Paulo: Intermeios; Brasília: CNPq, 2015.
MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia, tradução de Pablo Sanges Ghetti,
Revista de Sociologia e Política, nº 25, Curitiba, 2005, pp. 11-23.
NASCIMENTO, D. A. Umbrais de Giorgio Agamben: para onde nos conduz o homo sacer?,
São Paulo: LiberArs, 2014.
NEGRI, T. Notas sobre o Brasil. Para onde vai o PT? Para onde vão as lutas? Ponto de
debate, Fundação Rosa Luxemburgo, nº 10, 2017. Disponível em: <https://rosaluxspba.org
/wp-content/uploads/2017/02/ponto_debate_ed10_web.pdf>. Acesso em: 26 jul. 2018.

40
Davi Maranhão De Conti

O enigma da biopolítica

Davi Maranhão De Conti1

O biopoder – resultado de múltiplas transformações históricas, produto de um


desenvolvimento secular da racionalidade governamental, efeito das mudanças que ocorreram
sobretudo entre os séculos XVI e XVIII – é uma modalidade de poder que abarca tanto uma
anatomopolítica, que se forma por volta do século XVII e que se volta para o corpo como
máquina, estabelecendo uma ortopedia social, quanto uma biopolítica, que se desenvolve
a partir de meados do século XVIII, que se concentra no corpo da população e se funda
na economia política. Se, por um lado, não se deve perder de vista o caráter histórico da
reflexão foucaultiana – uma vez que é por situar-se na dimensão dos fatos que Foucault se
habilita a tão aguçada investigação acerca das modificações por que passam continuamente
as modalidades de poder –, por outro, há de se ter sempre à vista que seu intuito é, acima de
tudo, compreender o presente, o que ele realiza pela investigação de seus fundamentos, de
suas passagens, de suas reformulações. Se a vida em Foucault, como nota Muhle, “carece de
qualquer status ontológico e é ela mesma ‘produzida’ pela constelação poder-saber” (MUHLE,
2014, p. 80), então, para que se compreenda o que somos, é preciso lançar luz sobre o conjunto
das transformações históricas que configuram a “constelação” que nos define.
A nova racionalidade de poder, que se estabelece em oposição ao poder soberano,
é um reflexo das incessantes mutações de uma sociedade em constante transformação. O
biopoder não vem à da tona de súbito. O poder que se volta para o incremento da vida é
uma consequência da industrialização, das mudanças no modo de produção agrícola, do
surgimento da figura da população, bem como das alterações epistemológicas, sobretudo
aquelas relativas ao conhecimento biológico, que abrem espaço para o desenvolvimento
da medicina, para a formulação de um discurso médico-científico. A biopolítica tem a
ver com a população como problema ao mesmo tempo científico e tecnológico, como
problema biológico e como problema de poder.
Ao arraigar sua análise à dimensão histórica, o que Foucault pretende, mais que
elucidar as constelações de poder-saber de um período e as transformações que envolvem
as passagens de um período a outro, é lançar luz sobre as relações de poder do presente,
o modus operandi do governo de sua época. Por situar sua reflexão no campo histórico,
Foucault muitas vezes desvia-se de seu projeto inicial, realiza deslocamentos em sua análise,
encontra o tema da biopolítica nos diversos fenômenos que povoam o tempo. Porque o
tempo histórico é denso, Foucault é capaz de enxergar a conformação do biopoder nos
múltiplos acontecimentos que ilustram as transições epocais.

1 Universidade Federal de Goiás

41
O enigma da biopolítica

O que leva à nova racionalidade de poder, em que essa nova modalidade de poder
difere das anteriores, de que modo esse poder sobre a vida ganha forma ao final da Idade
Média, são algumas das questões presentes na pesquisa de Foucault. Sua análise, contudo,
não se limita ao campo histórico, uma vez que seu objetivo é compreender como chegamos
a sermos o que somos, quais desvios nos moldaram. Ao realizar uma genealogia do
biopoder, Foucault remonta ao poder pastoral, sobretudo à pastoral cristã, que caracteriza
a sociedade ocidental do medievo e que conduz aos homens como a ovelhas, em que
se estabelece uma relação biunívoca entre pastor e rebanho cujo objetivo é a salvação.
Em seguida, Foucault considera a extrapolação da pergunta acerca de como conduzir-se,
que se limitava ao escopo da Igreja, para os mais diversos âmbitos, entre eles, o espaço
do governo, que passa a ancorar os princípios de sua condução em seu fortalecimento
contínuo e ininterrupto. Finalmente, o filósofo lança luz sobre a reformulação liberal da
razão de Estado frente à emergência da figura da população, revelando a função crucial da
economia política na nova modalidade de poder.
Essa trajetória não se prende ao valor estritamente histórico da pesquisa, porque
objetiva compreender o presente, compreender o que somos, por que somos como somos.
O poder sobre a vida que se configura ao longo dos séculos não representa uma ruptura em
relação às modalidades de poder que lhe são prévias, é uma reformulação de um mesmo poder,
é a conformação do poder ao seu novo objeto: a vida população. Esclarecer a configuração
secular desse poder torna possível expor as definições do presente. As constelações de
poder-saber que definiram nosso passado e que continuam, de outras maneiras, a definir
nosso presente. O poder soberano não se desfaz, nem o poder disciplinar se apaga ao
longo dos séculos, alteram-se, reformulam-se. O biopoder não representa uma novidade
que extingue o passado, pelo contrário, é um reflexo de diversas transformações, sobretudo
aquelas por que passa a sociedade ocidental a partir do início da modernidade. É um poder
que já não estabelece uma relação negativa com a vida, que não personifica o poder de
morte característico da soberania, também não é um poder que se volta eminentemente
para o indivíduo na tentativa de torná-lo tanto mais dócil quanto mais útil, é um poder que
se concentra na vida da população, no corpo-espécie, nos processos biológicos de conjunto.
O poder de morte não desparece do horizonte da biopolítica, nem as disciplinas e
a interminável regulamentação que as caracteriza se perdem na nova mecânica do poder.
No poder sobre a vida, resultado da confluência de incontáveis fatores, resiste o poder de
morte, que se apoia agora em um racismo de Estado. Em um poder que se volta para o
incremento da vida, o racismo garante a manutenção do poder de morte, símbolo do poder
soberano. No biopoder, a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior, torna-se
um modo de melhorar a vida, de torná-la mais sã, de aumentar sua pureza. O racismo
permite que a morte não se torne estranha ao biopoder, ele é a solução para a persistência
paradoxal de um poder de morte no interior de um poder que almeja fomentar a vida.
Com o racismo, não apenas se garante a manutenção do poder de morte, como
também se abre a possibilidade de elevar esse poder ao píncaro. A morte, afinal, será
percebia como mais vida: se o outro morre, isso não significa apenas a morte do outro,
isso significa que eu vivo mais. Essa relação positiva que se estabelece entre a morte do
outro e a minha vida permite que aflore um poder de morte hiperbólico, como vimos no
Nacional-Socialismo alemão. Assim como o racismo não se dissipa com o aparecimento
do biopoder, o poder disciplinar não se desfaz, ao invés disso, renova-se, alcançando não
apenas as instituições, mas também, em certos casos, o aparato estatal.

42
Davi Maranhão De Conti

Do mesmo modo, o poder pastoral não se exclui da lógica governamental do


biopoder. O questionamento acerca de como conduzir-se, que encontrava resposta nos
mandamentos da Igreja, alcança novas repostas. A proliferação da pergunta sobre como
conduzir-se é também um reflexo da retomada dessa questão pelos filósofos iluministas.
Essa pergunta, tão característica do poder pastoral, alcança o soberano, que é levado a
questionar-se acerca de qual é o melhor modo de governar. Ao buscar responder essa
pergunta, como vimos, o que aflora é a razão de Estado, a ideia de um poder que se volta
para o contínuo fortalecimento do aparato estatal.
A razão de Estado é um reflexo da ampliação da lógica pastoral aos mecanismos de
um governo que passa a questionar-se acerca de qual é a melhor estratégia a se adotar para
conduzir os homens. Com a razão de Estado entram em cena um dispositivo diplomático-
militar e uma “polícia”, ambos projetados para abrir caminho ao contínuo desenvolvimento
do Estado, por meio tanto de um equilíbrio entre as nações europeias quanto, internamente,
de uma ilimitada regulamentação da sociedade. Foucault não se distancia da história e
por isso é capaz de refletir tão profundamente acerca das transformações do poder. Ele
acompanha as reformulações do poder a partir das mudanças na prática governamental,
considerando a atuação do Estado mais do que as teorias que justificam o seu poder.
Nesse estudo de Foucault, o mercantilismo aparece como o pano de fundo do
poder disciplinar, de um poder que deriva de uma questão própria ao poder pastoral. A
anatomopolítica ou poder disciplinar é a prática governamental de um Estado ancorado
em princípios mercantilistas. O objetivo, expresso nos compêndios acerca do poder
policial, é regulamentar a sociedade exaustivamente, controlando os mínimos detalhes. O
fortalecimento do Estado aparece como objetivo central. O poder, nessa lógica da razão de
Estado, volta-se sempre sobre si mesmo, para tornar-se sempre mais poderoso, o que deve
ocorrer, é o que se acredita nesse momento da história, por meio de intenso controle.
Para não perdermos de vista a dimensão histórica, tão cara ao pensamento de
Foucault, lembremos que estamos no início da modernidade, período em que o equilíbrio
europeu, o equilíbrio entre as nações que compõem a Europa, aparece, ao lado do contínuo
aprimoramento do Estado, como um dos pilares dessa nova razão governamental
autocentrada. O equilíbrio da balança europeia, além de favorecer a elaboração de um
dispositivo diplomático militar e de um dispositivo de polícia, enseja o desenvolvimento
da estatística. A estatística aparece como método adequado aos conhecimento do Estado
sobre si mesmo e sobre os demais Estados.
Ao fortalecimento do aparato militar, bem como do sistema diplomático baseado
na consulta mútua entre os Estados, soma-se a possibilidade de entender o Estado, assim
como de monitorar crescimento dos demais Estados com os quais se deve manter uma
relação harmônica, em que se privilegie a manutenção do equilíbrio. Vemos, aos poucos,
aflorar uma nova modulação da racionalidade de poder. Não demora para que a população
tome o lugar do indivíduo como elemento central das estratégias políticas. Contudo, o
poder disciplinar, que se acompanha do ideal de um Estado policial, isto é, de um Estado
de regulamentação indefinida, não se adequa ao desenvolvimento espontâneo do mercado.
Já não parece razoável, para o crescimento do Estado, que se almeje um controle de cada
detalhe de um mercado em crescente expansão.
Como observa Foucault, com surgimento da economia política, a população deixa
de constituir um bem que se deve aumentar continuamente, apresenta-se agora como

43
O enigma da biopolítica

um dado natural, que deve sofrer intervenções apenas na medida suficiente para garantir
a segurança dos “fenômenos naturais que são os processos econômicos ou os processos
intrínsecos à população” (FOUCAULT, STP, p. 474). A natureza da população aparece
como algo a ser respeitado, a intervenção estatal não deve ultrapassar a naturalidade da
população. O arcabouço mercantilista do poder disciplinar dá lugar ao fundamento liberal
da nova modalidade de poder que desponta na Europa do século XVIII.
A ideia de uma natureza que deve basear as ações do governo ressurge, não mais
uma natureza de caráter teológico, não mais uma natureza desejada por Deus, como aquela
que fundamenta as ações do governo medieval e que se perde na formulação dos princípios
da razão de Estado, mas, antes, uma natureza do fenômeno social, uma natureza da própria
população, a população considerada como fenômeno natural que deve ser respeitado, sobre
o qual não se deve intervir, que deve ser deixado livre para encontrar seu equilíbrio natural.
Além da transformação no conhecimento biológico, que abre caminho para o
desenvolvimento da medicina e para uma reformulação das técnicas de poder, as múltiplas
modificações que marcam o ocaso da Idade Média apresentam-se como elementos da
transição que resulta no despontar do biopoder. O liberalismo, que ganha impulso a partir
de meados do século XVIII, aparece como quadro geral da biopolítica. O mercado, a
sociedade, já não devem ser incessantemente regulamentados, ao invés disso, demanda-se
agora um laissez-faire: o Estado não deve intervir indefinidamente, sua função será manter-
se vigilante, assegurar que as liberdades do mercado alcancem a todos, proporcionar um
contínuo incremento da liberdade dos fluxos comerciais. Não se trata apenas de garantir
essa liberdade, mas de fomentá-la, de aumentá-la continuamente.
O biopoder é resultado de inumeráveis cambiamentos, uma vez que reflete um
contínuo remodelar-se de um poder em movimento. A industrialização, com todas
as suas consequências sobre a habitação, sobre as condições de saneamento, é um dos
acontecimentos relevantes para a formulação dessa nova racionalidade de poder. O
horizonte de análise torna-se bastante amplo, sempre que se ilumina uma transformação
histórica é possível evidenciar mais um passo em direção à reformulação do poder. Afinal, o
biopoder é sobretudo uma consequência das diversas alterações por que passou a sociedade
europeia entre os século XVI e XVIII.
A elaboração de uma economia política, a formulação de princípios liberais, é um dos
fatores fundamentais para o alvorecer da biopolítica. Para Foucault, a análise da biopolítica
só pode ser realizada se se compreender o liberalismo, porque é no pensamento liberal que
a população desponta como fenômeno natural, como objeto central da prática de governo.
Como explica Foucault, “os sujeitos de direito sobre os quais se exerce a soberania política
aparecem como uma população que um governo deve administrar” (FOUCAULT, NB,
p. 30). A partir do liberalismo é que se formula a pergunta acerca de como devem ser
governados os sujeitos quando são entendidos tanto como sujeitos de direito quanto como
seres vivos.
O mercado – que, no mercantilismo, havia despontado como elemento crucial de
formulação das estratégias de governo –, para além de ser considerado um campo estratégico
para o fortalecimento do Estado, torna-se, com a chegada do pensamento liberal, um lugar
de veridição. O mercado é que deverá distinguir o certo e o errado no que diz respeito à
ação do governo, é ele que deverá definir a verdade em relação à prática governamental.
É a partir do desenvolvimento da economia política, em meados do século XVIII, que

44
Davi Maranhão De Conti

irão estabelecer-se os mecanismos para julgar a prática governamental, “não em função de


uma lei ou de um princípio moral, mas em função de proposições que serão, elas próprias,
submetidas à demarcação do verdadeiro e do falso” (FOUCAULT, NB, p. 25-26).
Em sua reflexão acerca do biopoder e sobretudo acerca de seu arcabouço liberal,
Foucault avança em direção a uma análise do neoliberalismo. Nesta que é sua única
incursão por uma história da contemporaneidade nos cursos realizados no Collège de
France, Foucault ilumina questões fundamentais para que se compreenda o modo como
somos hoje governados. A análise de Foucault acerca do ordoliberalismo alemão e do
anarcoliberalismo americano, levam-no a cunhar o conceito de homo œconomicus. Essa
noção tornou-se elemento-chave para os diversos estudioso que pretendam refletir acerca
da política contemporânea. O homo œconomicus, o homem eminentemente governável, é
uma caraterização inescapável do que nos tornamos.
O modelo da empresa invadiu os múltiplos aspectos das relações humanas. Até as
relações mais íntimas, como aquela que se estabelece no interior da família, agora caem na
grade de análise de um poder que engloba tudo na lógica do mercado. Como nota Foucault,
é possível analisar em termos econômicos, de custo, de benefício do capital investido, a
relação entre uma mãe e seu filho. A teoria do capital humano leva a uma generalização
da lógica do mercado a todas as esferas da sociedade, o que possui implicações ilimitadas.
A herança genética, a educação a que se tem acesso, tudo pode e deve ser calculado de
acordo com critérios econômicos. O homem é uma empresa em um ambiente de extrema
concorrência.
O neoliberalismo deixa para trás alguns dos pilares do pensamento liberal. Por um
lado, não se pretender mais limitar as intervenções do Estado ao mínimo possível, não é
mais o Estado que dever assegurar o bom funcionamento do mercado: para os ordoliberais,
deve ocorrer o contrário, é o mercado que deve definir a prática governamental. O Estado
não irá vigiar o mercado, antes o mercado deverá controlar o Estado. As intervenções são
consideradas benéficas sempre que garantam a intensificação, a indefinida ampliação da
concorrência. Por outro lado, o homo œconomicus, vai tomar o lugar do homem liberal. Não
há mais interesse em deixar o homem agir livremente no mercado, o homo œconomicus
não é o homem do intercâmbio, ele é o empresário de si mesmo.
As análises de Foucault acerca desse novo homem econômico – resultado da técnicas
de poder, correlato das estratégias governamentais –, desempenham um papel essencial
nas recentes análises de cunho filosófico acerca da política atual. O filósofo francês, por
meio de seu aguçado senso histórico, é capaz de evidenciar as diversas transformações por
que passou o poder nos últimos séculos; além disso, revela-se também bastante perspicaz
em suas reflexões acerca do presente. Suas análises tornaram-se moeda corrente nos
estudos políticos, não apenas no campo da filosofia, mas das ciências humanas de modo
geral.
O fundamento histórico das análises de Foucault dão-lhes uma complexidade e
uma dinâmica incomum aos textos filosóficos. Nosso trabalho fornece um mapeamento
da questão biopolítica em seu pensamento. A problemática do biopoder não deve ser
limitada a alguns pontos específicos da reflexão foucaultiana, é preciso pensá-la em toda
sua amplitude. Foucault, ao se voltar para a questão do poder, não pretendeu investigar
questões teóricas, colocou-se no jogo das práticas governamentais, na complexa dinâmica
das relações humanas, que constituem a história em toda sua heterogeneidade.

45
O enigma da biopolítica

A noção de biopoder ilumina a constelação histórica sobre a qual Foucault se


debruça ao longo da década de 1970. Foucault mostra que é possível pensar o poder não
por meio das teorias que o fundamentam e legitimam, mas por meio das próprias práticas
governamentais. O termo biopoder serve bem ao seu propósito, por meio dele o filósofo
evidencia a dinâmica de um poder em constante transformação, de um poder que se volta
para a vida em todas as suas dimensões, que a investe em seus contornos mais íntimos,
que a torna fundamentalmente produtiva, ao mesmo tempo em que a anula, fazendo dela
acima de tudo um correlato de seus agenciamentos.

46
Davi Maranhão De Conti

Referências bibliográficas:
AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. 2. ed. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010.
BAZZICALUPO, L. Biopolítica: um mapa conceitual. São Leopoldo: Editora UNISINOS,
2017.
_____. Biopolitica: una mappa concettuale. 1ª. ed. Roma: Carocci editore, 2010.
CASTRO, E. Lecturas Foucaulteanas: una historia conceptual de la biopolítica. La Plata:
UNIPE: Editorial Universitaria, 2011.
CUTRO, A. (Org.). Biopolitica: storia e attualità di un concetto. Verona: Ombre Corte,
2005.
ESPOSITO, R. Biopolítica y Filosofía. Revista de Ciencia Política. Santiago: Pontificia
Universidade Católica de Chile, v. 29, n. 1, p. 133-141.
_____. Bíos: biopolitica e filosofia. Torino: Editore Einaudi, 2004.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
_____. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 9. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2007.
_____. Dits et ecrits:1954-1988. Paris: Gallimard, 1994.
_____. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 2ª. ed. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2010.
_____. História da Sexualidade: a vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1988. Volume I.
_____. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo:
Martins Fontes, 2008.
_____. O Nascimento da Clínica. 7ª.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
_____. Segurança, Território, População: curso dado no Collège de France (1977-1978).
São Paulo: Martins Fontes, 2008.
_____.  O poder psiquiátrico:  curso dado no Collège de France (1973-1974). São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
HAN, B.  Psicopolítica:  O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte:
Editora Âyiné, 2018.
HOFFMAN, M. O poder disciplinar. In:  TAYLOR, D.  Michel Foucault: Conceitos
fundamentais. Petrópolis: Editora Vozes, 2018.
JÚNIOR, O. G.; RAMIRO, C. H. L.; RICCI, L. A. L. (org.)  Responsabilidade e
futuro: bioética, biopoder e os desafios para a reflexão e ação. São Paulo: LiberArs, 2015.
LAZZARATO, M. O governo do Homem Endividado. São Paulo: N-1 edições, 2017.
LEMM, V. The Biological Threshold of Modern Politics: Nietzsche, Foucault and the
Question of Animal Life. In: SIEMENS, H. W.; ROODT, V. (Eds.). Nietzsche, Power and
Politics: Rethinking Nietzsche’s Legacy for Political Thought.
LEMM, V; VATTER, M. (Eds.). The Government of Life: Foucault, Biopolitics and
Neoliberalism. Nova Iorque: Fordham University Press, 2014.
LEMKE, T. Biopolitics: an advanced introduction. Nova Iorque: New York University Press,
2011.
_____. Biopolitik zur Einführung. Hamburg: Junius Verlag GmbH, 2007.
_____. Introducción a la biopolítica. Tradução de Lidia Tirado Zedillo. Ciudad de México:
Fondo de Cultura Económica, 2017.
_____. The Government of Living Beings: Michel Foucault. In: LEMKE, T. Biopolitics: an

47
O enigma da biopolítica

advanced introduction. Nova Iorque: New York University Press, 2011.


MAUER, M. Foucault et le problème de la vie. Paris: Publications de la Sorbonne, 2015.
MILLS, C. Biopolitics. Nova Iorque: Routledge, 2018.
MUHLE, M. A Genealogy of Biopolitics: the notion of life in Canguilhem and Foucault.
In: LEMM, V; VATTER, M. (Eds.). The Government of Life: Foucault, Biopolitics and
Neoliberalism. Nova Iorque: Fordham University Press, 2014.
_____. Eine Genealogie der Biopolitik: Zum Begriff des Lebens bei Foucault und
Canguilhem. Stuttgart: Merz Academie, 2013.
LEMM, V; VATTER, M. (Eds.). The Government of Life: Foucault, Biopolitics and
Neoliberalism. Nova Iorque: Fordham University Press, 2014.
_____. Eine Genealogie der Biopolitik: Zum Begriff des Lebens bei Foucault und
Canguilhem. Stuttgart: Merz Academie, 2013.
TAYLOR, C. Biopoder. In: TAYLOR, D.  Michel Foucault: Conceitos fundamentais.
Petrópolis: Editora Vozes, 2018.

48
Deyvison Rodrigues Lima

Communitas: Notas sobre o pensamento de Roberto Esposito

Deyvison Rodrigues Lima1

I
O termo comunidade tem sofrido releituras desde as investigações de Georges
Bataille, que se recusa a compreendê-lo como uma instituição positiva fundada em um
pressuposto comum partilhado por todos. Nesse contexto, Maurice Blanchot, em La
Communauté inavouable (1983), Jean-Luc Nancy em La communauté desoeuvreé (1986)
e Giorgio Agamben em La comunità che viene (1990) repercutem a leitura batailliana,
acrescentada por traços heideggerianos: rejeitam a compreensão da comunidade seja como
uma identidade seja como uma substância partilhada. Os estudos comunitaristas da década
de 1990 dominaram a discussão sobre o tema que, porém, ganhou novo fôlego e outra
direção sob impulso do resgate das discussões do Centre de recherche philosophique sur le
politique. Assim, o político passa a ser tratado a partir da noção de ausência de fundamento
da ordem e da diferença entre política e político, por considerarem, sobretudo, a experiência
da morte como a impossibilidade da própria comunidade. O diálogo estabelecido desde
então, sob uma pitoresca influência conjunta de Heidegger e Bataille, nos lança a tarefa do
pensamento político contemporâneo: pensar a comunidade.
A questão proposta na pesquisa a seguir surge da leitura da obra de Roberto
Esposito, mais especificamente, no texto Communitas (Comunidade) de 1998: a noção
de communitas como a partilha de um munus, isto é, de uma dívida ou ausência imanente
à relação comunitária. Esposito analisa alternativas ao comunitarismo, bem como à
concepção subjetivista em geral ao propor uma análise que pretende reduzir ou expor o
sujeito, isto é, esvaziá-lo, desapropriá-lo, numa estratégia anti-humanista, anti-fundacional
ou, em seus termos, impolítica2.
A política moderna é compreendida por Esposito como uma imunização do
corpo social através da neutralização do conflito e, por conseguinte, como um processo
de institucionalização do político, isto é, desse antagonismo. Em suma, instauração da
ordem política e suas implicações, sobretudo, a forma do Estado de direito. Este paradigma
imunitário busca repelir a violência constitutiva das relações sociais a partir da proteção
1 Graduação em Direito (UFC), Mestrado em Filosofia (UFC), Doutorado em Filosofia (UFRJ) – Professor Adjunto
da Universidade Federal do Piauí.
2 A categoria de impolítico pode ser compreendida como o avesso da política, ou melhor, como aquilo da política que
é irrepresentável. Esposito utiliza o termo para designar o espaço político portador de uma irredutível negatividade,
visto sua tentativa de não se referir a algo externo a comunidade. Assim, o impolítico é o esvaziamento da política
que provoca um déficit de substância diante de sua finitude. Ao rejeitar a articulação entre imanência e transcendên-
cia, também provoca um curto circuito no tradicional problema da representação política, pois, segundo Esposito,
“l’impolitico non è altro che la enunciazione di questa irrappresentabilità”. (ESPOSITO, 1999, p. XXVII).

49
Communitas: Notas sobre o pensamento de Roberto Esposito

da vida e impedir a potencial deriva comunitária como ameaça do munus que degenera as
relações humanas. Segundo Esposito, através das tecnologias imunitárias, a política moderna
tornou-se uma ambígua biopolítica. Entretanto, o que está em jogo é o pensamento da
communitas – o comum ou a relação que provoca a perda e a ausência – e como estes são
rejeitados na instauração da ordem jurídica e da unidade política através dos mecanismos
de soberania e representação, pois a modernidade com seu princípio “nolli me tangere” evita
o contato direto entre os indivíduos e estabelece a exclusividade do liame jurídico entre os
portadores de direitos subjetivos, reduzindo a possibilidade de contágio, uma vez que não
haveria relação válida que não seja mediada pela forma jurídica, institucionalizada pela
sociedade como uma comunidade perdida.
A exposição a seguir, percorre alguns argumentos do pensamento espositiano e
parte da hipótese de um ponto cego: após realizar uma reconstrução dos conceitos de
communitas e immunitas, percebe-se uma deficiência na análise da violência ou do conflito
e sua função central na concepção do político; além disso, elabora-se uma análise filosófica
e filológica sobre estes termos para demonstrar que Esposito deixa de considerar uma
possibilidade presente no prefixo cum: seu significado como “contra” e não apenas como
“com” ou generalização da relação desapropriadora. Esta possibilidade semântica ressalta
o argumento de que não é o munus que implica o perigo da relação, mas sim a partícula
cum, compreendida como relação necessariamente conflitiva, que sofre a neutralização, por
isso a individualização moderna teria como objetivo rejeitar o conflito (cum) e não apenas
o munus, pois este não seria mais do que consequência daquele.

II
Para Esposito, a discussão sobre a comunidade refere-se, paradigmaticamente, à
distinção entre Gemeinschaft e Gesellschaft, definida no referencial teórico de uma metafísica
substancialista: literalmente, uma propriedade ou qualidade em comum que dá unidade
e homogeneidade ao grupo de pessoas a partir de um “dado” partilhado por todos. O
apelo ao fundamento é explícito e repete-se o gesto universalista de pensar um ser-comum
segundo o modelo de um ser-geral com as irrenunciáveis conotações metafísicas das noções
de unidade, absoluto, interioridade, que se configuram como forma política e instituição
jurídica, ou seja, como Estado no modo de uma extensão (homogênea) do sujeito. A
leitura moderna da comunidade pode ser exemplificada seja com a obra de Ferdinand
Tönnies, Gemeinschaft und Gesellschaft (“Comunidade e Sociedade”), de 1887, seja com a
definição clássica de Max Weber, no Wirtschaft und Gesellschaft, publicado em 1922. Nesse
contexto, os autores caracterizam a comunidade como uma apropriação da essência, de
uma substância ou de uma totalidade, repousando sobre uma pertença subjetiva, tal como
um aglomerado de indivíduos. Em última instância, Esposito confirma o diagnóstico de
que o caráter metafísico da comunidade é compreendido como uma subjetividade mais
vasta, uma unidade composta de unidades menores:

uma “propriedade” dos sujeitos comuns: um atributo, uma determinação,


um predicado que os qualifica como pertencentes ao mesmo conjunto.
Ou até mesmo uma “substância” produzida por sua união. [...] é
concebido como uma qualidade que se acrescenta à sua natureza como
sujeitos, tornando-os também sujeitos de comunidade [...] Sujeitos de
uma entidade maior, superior ou até melhor, da identidade individual
simples - que se origina dela e eventualmente a especula. Deste ponto de

50
Deyvison Rodrigues Lima

vista - apesar das óbvias diferenças históricas, conceituais e lexicais - a


sociologia organicista da Gemeinschaft, o neo-comunitarismo americano
e as várias éticas da comunicação (mas em alguns aspectos, e apesar de
um calibre categórico muito diferente, até a tradição comunista) estão
na mesma linha que mantém aquilo que é impensado da comunidade
[l´impensato della comunità] (ESPOSITO, 2006, p. VIII).

Dessa forma, o pressuposto essencialista é o da partilha comum de uma qualidade,


atributo ou propriedade que une, algo como um predicado que determina a pertença ao
mesmo conjunto ou, inclusive, uma substância produzida por sua união como algo maior,
melhor e superior que, entretanto, apenas duplica a noção de unidade e rejeita a diferença:
conduz a multiplicidade à ordem, a multidão ao povo e, por conseguinte, a redução do
outro ao mesmo como semelhantes ou participantes de uma raça, sangue, cultura, natureza
ou língua, cujo essencialismo estimula a exclusão do diferente. Além do essencialismo
assumido, outra característica do pensamento político moderno seria considerar que este
momento de identidade substancial não é presente, mas sim compreendido como algo
anterior, puro ou atemporal: a comunidade perdida como um ideal ou lamento que inspira
a reflexão sobre a pureza originária. A imagem da Gemeinschaft perdida serve como um
padrão ético de comportamento na Gesellschaft, esta sim local da ação dos indivíduos, bem
como para a organização da soberania e da representação política, para a questão sobre
a forma ou unidade política e da relação entre bem e poder que encontra na instituição
estatal o horizonte sacrificial determinante da política, através do conservadorismo da
origem e da homogeneização infinita. Em outras palavras, sob o discurso de preservação da
origem pura, justifica-se exclusão e extermínio das ameaças, reais ou fictícias, que poderiam
perturbar o corpo social. Ter em comum aquilo que é próprio, uma propriedade étnica ou
espiritual, produziria indivíduos proprietários do comum, possuidores do ser comum como
uma qualidade essencial. Esta concepção da comunidade como partilha de substância ou
pertencimento do comum faz parte da expressão metafísica do tradicional problema “ad
unum” e sofre um decisivo ataque na leitura espositiana.
Desse modo, ao elaborar o diagnóstico do discurso das substâncias comunitárias,
baseadas em alguma identidade orgânica ou mística, Esposito lança o desafio de pensar o
ser-comum fora dos paradigmas da partilha do pertencimento a uma essência. O esforço
proposto nos coloca na contramão da modernidade por evitar tomar a comunidade em
termos de individualidade, identidade ou origem. De modo inverso, o autor italiano
sustenta a tese de que a comunidade se refere ao nada, à ausência, falta e finitude ao invés
do fundamento ou apropriação e posse plena de uma substância: como uma comunidade
da não propriedade, da partilha da carência, da dívida ou, numa palavra, a exigência de um
“dom-a-dar”, pois:

communitas é o conjunto de pessoas unidas não por uma propriedade,


mas justamente por um dever ou dívida. Não por um ‘mais’, mas por
um ‘menos’, por uma falta, por um limite que se configura como um
ônus, ou inclusive como uma modalidade defectiva [modalitá difettiva],
para quem está ‘afetado’, diferente daquele que está isento ou isentado.
(ESPOSITO, 2006, p. XIII).

Este seria o impensado da comunidade, o nada do sentido da exposição. Ao


distinguir entre comum e próprio, público e privado, ou seja, aquilo que é mais de um
não pode ser tomado como proprium ou particular; logo após, ele analisa o termo latino

51
Communitas: Notas sobre o pensamento de Roberto Esposito

communitas e a partir dele ressalta sua formação etimológica composta pelo prefixo cum
e o radical munus: ao passo que o prefixo cum revela a presença incontornável do outro e
da relação, o radical munus apresenta um rico complexo semântico, pois significa, onus,
officium e donum. Segundo o autor, o significado do termo munus “oscila por sua vez entre
três significados não totalmente homogêneos entre si, que parecem expulsar do sentido,
ao menos reduzir a relevância, a justaposição inicial entre ‘público’/’privado’ [...] a favor
de outra área conceitual que pode ser remetida à ideia de ‘dever’” (ESPOSITO, 2006, p.
X). Segundo Esposito, o conceito de communitas se refere a um curioso dom obrigatório
marcado pela transação doadora sem a contrapartida a receber. Figura estranha ao valor de
aquisição e estabilidade do contratualismo moderno, refere-se a outro sentido de cessão ou
transferência trazido pela partícula munus. Essa característica do munus concede à relação
instaurada pela communitas um caráter desinvidualizador, ou melhor, desapropriador do
indivíduo, pois ao invés de constituí-lo a partir da garantia de uma propriedade (privada)
ou direito (subjetivo) – algo fechado em si mesmo – provoca, ao contrário, a exposição da
pessoa à finitude do outro que subtrai, isto é, à desapropriação que o munus implica no
paradoxal sentido de uma “obrigação a dar”:

Um tom de dever tão nítido que modifica e até interrompe a


biunivocidade do vínculo entre doador e donatário: ainda que gerado
por um benefício recebido precedentemente, o munus indica só o dom
que se dá, não o que se recebe. Projeta-se por completo no ato transitivo
do dar. Não implica de modo algum a estabilidade da posse [...] senão
perda, subtração, cessão: é uma “prenda”, ou um “tributo”, que se paga
obrigatoriamente. O munus é a obrigação que se contraiu com o outro e
requer uma adequada desobrigação (ESPOSITO, 2006, p. XI-XII).

Nota-se o fato de que donum (dom) pertence a um mesmo conjunto semântico que
indica dever, dívida, obrigação. Entretanto, a questão decisiva seria: “como um dom pode
ser obrigatório?” (ESPOSITO, 2006, p. XI). Não haveria de ser algo espontâneo? Com
habilidade genealógica, o autor chega à seguinte conclusão: se donum institui uma doação
obrigatória e cum refere-se à presença insistente de outrem (que está oculto, mas diferente),
cum + munus significa um tipo de relação em que o sujeito se doa incondicionalmente
ao outro (qualquer, indefinido); onde compartem uma dívida ou falta, não um direito.
Este é, conforme Esposito, o significado arcaico da comunidade, ou seja, como aquele
externo ou relação que subtrai ou corroi o sujeito. Assim, cum+munus seria uma conjunção
e disjunção. Enquanto o termo munus expressa a abertura, finitude e ausência, a partícula
cum se refere ao entre, isto é, ressalta o caráter de diferença na qual é irredutível ao mesmo
ou à unidade, pois sempre relação. Na estrutura desse vazio, não há subjetividade. E, por
isso, o pensamento moderno subjetivista cuidou de obliterar esta concepção e neutralizar
o munus.
Esposito ataca a noção de sujeito político ao afirmar que a relação do corpo social,
ou melhor, o cum-munus é a experiência da ausência de substância ou fundamento, pois a
communitas é uma existência partilhada que descentraliza a subjetividade no sentido de que
a relação não pode ser pensada a não ser, paradoxalmente, como retirada da subjetividade.
Nas palavras do autor: “Não sujeitos. Ou sujeitos de sua própria ausência, da ausência de
próprio. De uma impropriedade radical que coincide com uma absoluta contingência ou
simplesmente ‘coincide’: cai conjuntamente” (ESPOSITO, 2006, p. XIV). Entre dádiva-
dívida, o complexo semântico do termo munus indica o dom particular da reciprocidade

52
Deyvison Rodrigues Lima

ou neutralidade entre os comprometidos que formam, a partir desta condição precária,


ao invés de uma comunidade de proprietários ou portadores de direitos subjetivos ou
essência partilhada e, portanto, plenos em si mesmo, uma comunidade em torno da falta,
do negativo como desapropriação, movimento constitutivo através da desconstituição
ou desapropriação. O que caracteriza o comum, portanto, não seria o próprio ou uma
identidade, mas sim o impróprio, isto é, uma comum ausência de identidade, uma ausência
do próprio e do sujeito ou

sujeitos finitos recortados por um limite que não pode interiorizar porque
constitui precisamente seu ‘fora’. A exterioridade sobre a qual aparece e
que os penetra em seu comum não-pertencer. Por isso, a comunidade
não pode ser pensado como um corpo, uma corporação, uma fusão de
indivíduos que dê com resultado um indivíduo maior. (ESPOSITO,
2006, p. XIV).

Para Esposito, a principal – e mais perigosa – consequência do munus é a


expropriação do sujeito. A subjetividade estaria implicada num sentido centrípeto: como
outro e não como mesmo, a rigor, como um sacrifício ou uma compensatio. Tal compensatio
é consequência social do munus, como uma partilha da ausência que caracteriza o
comum e os leva ao vazio da comunidade e, por esse caminho, ao niilismo. A referência
polissêmica do munus a uma carga, dívida, dom e dádiva não apenas reforça a compreensão
da condição de finitude e negatividade, mas põe como constitutiva da relação ou do ser-
comum a questão do fundamento como vazio, ao invés de plenitude ou liame que vincula
indivíduos antes isolados. Pelo contrário, é a ex-posição ao outro, a própria relação que a
constitui, pois “a comunidade não é um modo-de-ser – menos ainda, de ‘fazer’ – do sujeito
individual [...] mas a exposição que interrompe seu fechamento e o inverte ao exterior [la
rovescia all’esterno], uma vertigem, uma síncope, um espasmo na continuidade do sujeito”
(ESPOSITO, 2006, p. XV). Em resumo, com Bataille: um nada de sujeito. Assim, não se
revela uma origem, mas sim um modo constitutivo-desconstitutivo que desvela, por sua
vez, uma finitude infinita.
Essa desapropriação radical, na qual nenhuma propriedade mantém-se própria, mas
se despedaça nos lances do impróprio, provoca a ausência de centro e de ordem do ser-
comum. Diante disso, surge a figura do impróprio que não constitui sujeitos, mas sim,
paradoxalmente, sujeitos de sua própria ausência, a partir do outro, cujo reforço subtrativo é
dado pela partícula cum, que remete à imanência de uma relação desapropriadora. Segundo
Esposito, o que determina uma comunidade é tal impropriedade, precisamente, um nada
de substância. Se uma comunidade se instaura através de uma ausência ou distância, o
comum desta ausência, para Esposito, torna-se obrigatoriedade, o dever (não normativo,
claro) de dar. Essa condição deficitária não permite a auto-afirmação de sujeito de direitos
ou autofundamentação: não há presença de uma identidade, mas apenas relação e diferença.

III
Ao contrário dos intérpretes da modernidade, Esposito não compreende a política
a partir das categorias de legitimidade, racionalidade ou secularização, mas sim por
uma proposta bastante original: o paradigma da imunização, isto é, a proteção contra o
munus, uma negação da negação que o munus representa, como mecanismo para evitar o
contágio, a relação desinvidualizadora. O conceito de immunitas seria a forma pela qual a
modernidade protege cada um dos outros, individualizando-os, protegendo-os do contato

53
Communitas: Notas sobre o pensamento de Roberto Esposito

desapropriador e niilista do munus, isto é, ao invés do cum-munus, o im-munus. A immunitas


evita a relação ao constituir sujeitos e identidades isoladas: um solipsismo político expresso
como um individualismo liberal ou possessivo, afastando o perigo do impróprio através da
subjetividade autônoma. A imunização tem a função de romper o vínculo com a dimensão
originária do viver em comum, instituindo outra origem, artificial, que coincide com a
figura jurídica e privatista do contrato: refere-se ao seu poder imunizante e asséptico.
Segundo Esposito, a immunitas é a expressão da subjetividade contra a ausência e
perda e, por conseguinte, se a comunidade conserva como originária a ausência e a falta, o
delito e o medo, a imunização da comunidade é, precisamente, o delito contra o delito, ou
seja, contra a própria comunidade que revela a estrutura violenta e sacrificial da filosofia
política:

Não é mais o mecanismo imunológico como uma função do direito,


mas o direito como função do mecanismo imunológico. Esta passagem
decisiva [...] tem como origem a relação estrutural entre o direito e a
violência. Essa, longe de se limitar ao papel, desempenhado pela lei, de
imunização da comunidade contra a violência que ameaça, caracteriza os
mesmos procedimentos imunitários: mais do que eliminada, a violência
é incorporada no aparato destinado a reprimi-la - ainda violentamente.
(ESPOSITO, 2002, p. 12).

A relação comunitária é portadora de um perigo mortal e, diante deste, a única


saída seria suprimi-la através de um terceiro ao qual todos se vinculem e sem que devam
vincular-se imediatamente entre si. Evidentemente, a relação retorna à cena, porém sob
a forma estatal, controlada juridicamente. Assim, a imunização da communitas refere-se
à redução da relação do munus: introduz-se um antígeno para provocar a proteção. O
dispositivo estatal é a proteção contra a relação imanente desapropriadora (isto é, contra o
impróprio) e instaura o lema: proteção e obediência, certeza e segurança. Pode-se afirmar
que o Estado existe em função da propriedade ou da apropriação do sujeito e o direito
conserva esta lógica imunitária. Segundo Esposito, a relação entre direito e comunidade é
paradoxal:

Ao proteger [a comunidade] do risco de expropriação - que ela carrega


dentro de si como sua vocação mais intrínseca - esvazia-o de seu próprio
núcleo de sentido. Pode-se dizer que a lei conserva a comunidade
através de sua destituição [...] a constitui desconstituindo-a. E isso - o
paradoxo extremo - exatamente na medida em que tenta fortalecer sua
identidade. [...] Para trazê-lo de volta ao seu “próprio”, se é verdade que
“próprio” é exatamente o que não é “comum”. Esforçando-se para tornar
a comunidade mais própria, o direito torna-a, necessariamente, menos
comum. (ESPOSITO, 2002, p. 26-27).

O dispositivo da immunitas é a forma negativa da communitas: se a comunidade


é a relação que, vinculando seus membros a um empenho em doação recíproca, põe em
perigo a identidade individual, então a immunitas é a condição de dispensa de tal obrigação
e, por isso, de defesa nos confrontos de seus efeitos expropriativos. O autor refere-
se à generalização do munus provocada pela partícula cum, por isso a lógica do sistema
imunitário contra o sistema de reciprocidade tributária, visto que a proteção imunitária da
vida se instaura contra aquilo que a nega através da neutralização. Ora, essa estratégia de
neutralização da relação afeta, por via indireta, o munus, desidratando a lógica viral do cum.

54
Deyvison Rodrigues Lima

Se, por um lado, a communitas torna inviável a identidade individual por conta da
obrigação originária diante do outro; por outro, a immunitas é dispensa dessa obrigação e,
por conseguinte, a proteção contra os efeitos expropriativos da relação. Esse dispositivo de
proteção da vida provoca uma homogeneização a partir da neutralização do externo (ou
internalização da exceção ou do fora, que desestabiliza), isto é, indistinção entre dentro
e fora através da produção da identidade (indivíduos) e da compreensão do outro como
outro-eu (alter ego) e não como diferença, pressuposto elementar da relação. Entretanto,
tal dispositivo imunitário exige um sacrifício, aparentemente menor do que a obrigação
do munus, qual seja, o sacrifício das pulsões. A mediação racionalista se revela como um
útil mecanismo de controle dos afetos, entre conservação e exclusão da vida, tal como um
expediente de gentrificação das relações do corpo social. Se a comunidade se apresenta
como a forma da negação da individualidade, então o dispositivo imunitário é o mecanismo
que bloqueia tais consequências deletérias. A questão que se põe neste momento é a
seguinte: tal modelo societário não seria melhor do que a deriva comunitária? Não seria
um sacrifício válido diante da auto-dissolução ou do niilismo? O caso em questão, no
entanto, exige outra pergunta, mais radical: o mecanismo imunitário do Estado moderno
preenche o vazio constitutivo da comunidade? Não seria esse o mecanismo através do qual
poderíamos compreender a reação conservadora contemporânea? Se levarmos em conta
as considerações de Esposito, a comunidade mostra-se insustentável e exige prevenção,
controle, segurança e esterilização contra seu imanente conteúdo relacional, contra o perigo
que impõe ao corpo social. Todavia, quando imunizada, é exposta ao contágio mais uma
vez, pois o sistema imunitário como proteção negativa da vida combate aquilo que se faz
o tempo inteiro presente, possibilita a conservação da comunidade, mas, paradoxalmente,
pela negação de seu horizonte originário de sentido a imunização tenta afastar a lógica
do niilismo, porém, por meio da entrega ao mesmo mecanismo de destruição contra o
qual a comunidade se debate. Assim, “sacrificada para sua própria conservação. Nesta
coincidência entre conservação e sacrifício da vida, a imunização moderna alcança o ápice
da potência destrutiva” (ESPOSITO, 2006, p. XXIII). A questão em jogo é perceber
como a solução imunitária torna-se uma doença autoimune, visto que aquilo que se utiliza
para o combate do perigo ameaçador do corpo e garante a conservação da comunidade é,
paradoxalmente, aquilo que se mostra negador da própria comunidade. Ao compreender
a modernidade por este filigrana, Esposito acessa o paradoxo da biopolítica ou, como ele
denomina, abre-se a caixa-preta biopolítica que consiste no seguinte: aquilo que deveria
proteger a vida, conservá-la e promovê-la, é o que provoca a morte do corpo, no caso, uma
tanatopolítica, numa lógica que “exclui incluindo e afirma negando [...] isso significa que o
mecanismo da imunização pressupõe a presença do mal que deve combatido” (ESPOSITO,
2002, p. 10-11). Em última instância, o expediente imunitário consiste num processo de
insensibilização e despolitização do espaço comunitário. Numa palavra, do político, isto é,
da relação e do conflito.

IV
O motivo da reflexão sobre a comunidade se impõe através de acontecimentos
recentes: em nome da comunidade, da humanidade, de uma nação, terra ou ideologia
desencadeou-se uma máquina de exceção e extermínio: o comum opera através da exclusão
daquilo que, pretensamente, não participa da sua origem. Ora, até este ponto, Esposito nos
fornece uma chave de leitura irretocável: a realização da comunidade, ao menos o que se
concebe tradicionalmente como comunidade, é metafísica, impossível e leva à morte, pois
55
Communitas: Notas sobre o pensamento de Roberto Esposito

ausência de relação. Nossa exposição percorreu este argumento de Esposito, apresentando


sua inversão sutil (a comunidade seria a relação como ausência) e suas consequências,
mas com a intenção de lançar uma hipótese: haveria um ponto cego a ser tratado. Após a
reconstrução dos termos communitas e immunitas, sugerimos que há um déficit na análise
da violência ou do conflito. Através do mesmo percurso filológico e filosófico, pretendemos
mostrar que Esposito deixa de considerar uma possibilidade semântica presente no prefixo
cum: não seria apenas portador do sentido do relação (“com”), mas também seria responsável
por implicar na comunidade o sentido do “contra”. Esta possibilidade semântica nos
permitiria sustentar que não é o munus como relação desapropriadora, mas o cum, desde que
compreendido como relação conflitiva, que sofre a neutralização por meio da immunitas.
Por conta disso, a individualização moderna teria como objetivo rejeitar, sobretudo, o
conflito (cum) e não apenas o munus. Assim, a neutralização do munus não se daria pela
compensatio do complexo dívida-dávida ou dom a dar obrigatório, mas sim pela exclusão
do cum, do conflito, este sim a origem e o impulso da desestabilização e, sub-repticiamente,
o problema enfrentado pela política ocidental. Não é suficiente a constatação de que haja
uma relação constitutiva que desapropria o sujeito, pois o caráter não tematizado dessa
relação é o ponto fundamental que Esposito e os demais autores da communitas não dão a
devida relevância.
Na argumentação espositiana, mesmo que a privação seja operada pelo munus, sua
generalização ocorre por meio do cum, por isso que é diante deste que a imunização concentra
seus esforços (evitar a relação desapropriadora). No entanto, ao contrário de Esposito, que
reafirma que o cum seria apenas um fator de universalização do munus, invertemos a relação
de causa e sustentamos que é a própria relação – expressa pela partícula cum – que provoca
o conflito. A origem da ordem não se dá mediante a luta contra o munus, mas sim contra
o conflito instaurado pela ocorrência da relação, ou seja, do cum. A suspeita do sentido de
cum tanto como uma partícula aditiva, o que seria mais trivial, mas também como “contra”,
tal como propomos, designando uma contraposição, é confirmada ao analisar os mesmo
textos e dicionários que Esposito se refere em sua reconstrução filológica acerca dos termos
cum e munus. Parece-nos que Esposito deixou de considerar uma possibilidade semântica
bastante plausível presente no termo cum: esta partícula não significa apenas uma partilha
ou uma relação de adição ou justaposição, mas também pode ser considerada como uma
oposição e significar uma relação de conflito, que provocaria uma reação por si só, sem
considerações sobre o munus. No Dictionnaire etymologique de la langue latine, de Ernout
e Meillet, afirma-se, no verbete cum, que “com certas expressões como agere cum, bellum
gerere cum, o significado é próximo ao de contra, sendo o parceiro também o adversário”
(MEILLET, 2001, p. 156). De modo semelhante, no tradicional dicionário de Saraiva,
consta que “cum, prep. de abl. 1º Com, em companhia de; ao mesmo tempo que; [...] 8º
Com, contra [...] §8º Bellum gerere cum aliquo (Fazer a guerra contra alguém)”. (SARAIVA,
s.d., p. 324). De fato, a partícula “contra”, significando “em oposição a”, originalmente
tinha o significado de “em comparação com”, ressaltando seu caráter de conjunção ou
justaposição, tal como a preposição alemã gegenüber, com ampla variação semântica, mas
que pode significa tanto “em frente de”, quanto “contra”. Por sua vez, cum como preposição
de ablativo, em latim, introduz um complemento circunstancial de companhia “com” que,
no entanto, também tem o sentido de hostilidade, “contra”, como no exemplo, “Nautae cum
piratis pugnant”.

56
Deyvison Rodrigues Lima

Evidentemente, não são apenas por motivos estritamente gramaticais que a


comunidade pode ser remetida ao conflito: antes de que haja uma dívida para ser partilhada,
haveria uma relação que provoca o débito. O ser-em-comum seria a comunidade assentada
sobre o negativo, ou melhor, cujo modo de ocorrência é a negatividade e tal negativo não é
outro senão o conflito. Esta é a hipótese de pesquisa que propomos colocar em marcha na
área de filosofia política contemporânea.

57
Communitas: Notas sobre o pensamento de Roberto Esposito

Referências bibliográficas:
ESPOSITO, Roberto. Categorie dell’impolitico. 2ª ed. Bolonha: Il Mulino, 1999.
_____Communitas. Origine e destino della comunità. 2ª ed. Turim: Einaudi, 2006.
_____ Immunitas. Protezione e negazione della vita. 1ª ed. Turim: Einaudi, 2002.
MEILLET, Antoine. ERNOUT, Alfred. Dictionnaire etymologique de la langue latine. 4ª
ed. Paris: C. Klincksieck, 2001.
SARAIVA, Franciso dos Santos. Novissimo diccionario latino portuguez. 1ª ed. Rio de
Janeiro: H. Garnier, s.d.

58
Lucas Barreto Dias

Fenomenologia e política em Hannah Arendt

Lucas Barreto Dias1

Introdução
Neste trabalho, realizo uma investigação sobre elementos fenomenológicos presentes
no pensamento político de Hannah Arendt. Trata-se de uma discussão acerca de Arendt
ser uma herdeira que tem seu nome grafado, mesmo que a contragosto, no testamento
fenomenológico. Nesse sentido, faço um recorte a partir da leitura das influências de
Husserl e Heidegger em categorias inelimináveis da compreensão que Arendt engendra
sobre as questões concernentes à política, entre elas: mundo, intersubjetividade, experiência
e aparência. A partir de um posicionamento crítico, Arendt realiza um tipo próprio de
fenomenologia, não tendo como ponto de partida nem o ego transcendental, nem uma
analítica do Dasein, mas, sim, uma compreensão da relação entre pluralidade e mundo.
Evidencia-se, a partir desta interpretação, que a fenomenologia influencia tanto os métodos
de análise de Arendt quanto os conceitos e temas pensados por ela.
Já de partida sublinho que não há, aqui, uma defesa de um método coerente e
sistemático, mas, sim, de um modo de encarar as questões e problemas que surgem ao
pensamento de Arendt, uma visada, um tipo de orientação do olhar que a autora não se
dedica a elucidar, mas que sob um exame mais ou menos atento parece despontar nos
seus intérpretes. Assim, filiar Arendt à fenomenologia não significa fazê-la refém de um
método rígido, mas de identificar a sua forma própria de compreender o mundo e seus
eventos, um modo de nos aproximarmos daquilo que ela disse ser sua principal atividade:
a compreensão e a busca por uma reconciliação com o mundo.
O que se revela destas análises é a percepção de que “o método de Arendt não
é externo aos tópicos que investiga” (BORREN, 2009, p. 16), questão que pode ser
compreendida na esteira da leitura de Vollrath (1977), em que teoria e método não são
separados como estruturas sistemáticas distintas, mas um implica no outro. Isto se dá
porque Arendt não elege um procedimento metodológico específico e sistemático que
sirva como base para todas as suas reflexões, não há um fundamento metodológico para
sua compreensão do mundo do mesmo modo como não há também nenhum fundamento
teórico último no qual ela possa se ancorar. Tratam-se, sim, de orientações metodológicas
que surgem junto aos eventos que se apresentam ao pensamento.
Minha intenção é encontrar algumas proximidades possíveis com Husserl e
Heidegger, considerando, para tanto, a discussão na literatura secundária que cerca tais
1 Graduado em Filosofia (UECE), Mestre em Filosofia (UFC) e Doutorando em Filosofia (UFMG); Professor do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE)

59
Fenomenologia e política em Hannah Arendt

nomes em sua relação com o pensamento arendtiano. Sigo a pista fornecida por Young-
Bruehl (1997, p. 286) ao revelar uma Arendt que se autocompreendia como uma espécie
de fenomenóloga, mas, pontuaria a própria pensadora judia, não à maneira de Hegel ou
de Husserl. O que se destila a partir desse embate é que a fenomenologia arendtiana se
dá a partir de um modo próprio, mas, não obstante isso, deve àqueles que a antecederam
certos aspectos que são reavaliados por ela segundo outros critérios, dentre eles, dois dos
mais importantes são o primado do mundo das aparências e da pluralidade humana. Nesse
sentido, a espécie de fenomenologia de Arendt, como aponta Young-Bruehl, se afasta mais
de Husserl que de Heidegger, mas, como apontam também Tassin (1999) e Taminiaux
(1992), sua dívida com o autor de Ser e Tempo não a torna uma filha de Heidegger – como
indica Wollin (2015) –, mas sublinha uma resposta crítica à sua filosofia. Em contraposição
à cegueira frente aos assuntos humanos que ambos os fenomenólogos nutrem em seus
pensamentos, a fenomenologia do tipo arendtiano irá se fiar na intencionalidade não da
consciência, mas das aparências, dos fenômenos (cf. ARENDT, 2010b, p. 63).

Arendt além de Husserl e Heidegger


O contato de Arendt com o pensamento de Husserl é eivado de dificuldades. As
poucas referências que ela indica sugerem mais o que não é a fenomenologia de Arendt,
isto é, ao revelar as contraposições entre os pensamentos de Arendt e Husserl, o pai da
fenomenologia passa a representar, em certa medida, aquilo que a pensadora judia critica
na filosofia: a cegueira frente aos assuntos humanos e a falta de um interesse prático no
pensar. Não obstante esse afastamento, há certos aspectos que revelam uma proximidade
temático-metodológica: o fato de Arendt se ocupar dos fenômenos através de um conceito
próprio de experiência que engendra a atividade do pensamento desponta como uma
relação com Husserl que subjaz no interior do seu pensamento. O olhar husserliano para
o mundo, ainda que recaia em uma cegueira frente às questões políticas, localiza uma nova
fase para a filosofia contemporânea na medida em que, como afirma Le Ny (cf. 2013, p.
69), os eventos mundanos passam a ser fenômenos que se doam ao olhar fenomenológico,
em outras palavras, todo acontecimento é uma oportunidade para a filosofia, um objeto
para o pensamento.
No que tange às contraposições entre Arendt e Husserl, Tassin (1999) e Rizo-
Patrón (2006) elaboram, cada um, três pontos de encontro crítico. A intérprete peruana
identifica três lugares em que Husserl é mencionado em A vida do espírito: 1) na percepção
arendtiana de que o pensar se dá sempre a partir de uma retirada do mundo, em que
Husserl é classificado entre os “pensadores profissionais” dos quais Kant fala e Arendt
se apropria; 2) ao discutir a ruptura do senso comum, apontando a falta desse sexto
sentido nas doutrinas científicas e filosóficas; e 3) na crítica à concepção husserliana de
consciência, que dá mais enfoque no ato perceptivo do objeto que ao próprio objeto. Tais
comentários, de certo modo, dizem respeito mais a um modo de contraposição entre
Arendt e Husserl do que, efetivamente falando, de uma influência, ou, poder-se-ia dizer,
de uma influência pela via negativa, da posição de que a fenomenologia é uma via de
interpretação do mundo que pode se distinguir dos métodos tradicionais da filosofia, mas
que Husserl, todavia, não fornece um modo adequado de romper com uma tradição que
Arendt avalia como falida.
Já Tassin (1999) parece corroborá-la ao elencar três pontos que separaram os
autores: 1) Arendt indicaria um interesse prático (proveniente de uma noção de práxis)

60
Lucas Barreto Dias

no pensar, definindo-o a partir do e voltado para o mundo, pondo-se contrária a um puro


interesse teórico; 2) em vez de uma comunidade espiritual supranacional que perpassaria
o pensamento husserliano, Arendt coloraria a dolorosa experiência de um pensar apátrida;
e 3) no lugar de empreender uma filosofia que exerce uma função reitora [rectrice], isto é,
posicionando-se hierarquicamente sobre a vida ativa, Arendt desenvolveria uma análise do
pensamento, do julgamento e da compreensão políticas que não se subjugam a um modo
especulativo (Cf. TASSIN, 1999, p. 85-86). Tassin compreende que Husserl, apesar de
na fase de Krisis (Cf. HUSSERL, 2012) estar preocupado com o mundo da vida e com a
intersubjetividade, ele ainda se instaura em uma esteira platônica que Arendt tanto rechaça
ao longo de suas obras, qual seja: a indiferença frente ao âmbito público-político.
Estes afastamentos entre Arendt e Husserl explicitados por Rizo-Patrón e Tassin se
encontram nos mesmos pontos: enquanto para a fenomenologia husserliana há um enfoque
maior no ato de consciência e na percepção do objeto, a fenomenologia arendtiana parte
dos eventos não enquanto impressões do espírito, mas ressaltando-os em sua realidade, nas
palavras de Arendt: “Se, quando percebo um objeto fora de mim, decido concentrar-me
na minha percepção (...) em vez de concentrar-me no objeto visto, é como se eu tivesse
perdido o objeto original, porque ele perdeu seu impacto sobre mim” (ARENDT, 2010b, p.
177). Metodologicamente pensando, o que surge como realce é um novo ponto de partida
para se pensar a fenomenologia, não mais dando primazia ao ato da consciência do ego
transcendental, mas da compreensão do mundo como primado epistêmico e hermenêutico,
questão que possui espaço em Arendt já em seus primeiros escritos pós-guerra, mas que
ganham revelo na intencionalidade das aparências exposta em A vida do espírito (Cf.
ARENDT, 2010b, p. 63).
A preocupação latente da pensadora judia, todavia, não se move como uma mera
abstração, mas sempre está vinculada à tentativa de encontrar um novo modo de se
reconciliar ao mundo. O modo como Arendt estrutura a sua própria fenomenologia não
parte do ego transcendental, mas do mundo das aparências. A atividade de pensamento,
ainda que proceda por um distanciamento deste mundo por uma retirada temporária,
sempre parte dele e se mantém nele ancorada. Só é possível distanciar-se na medida em
que há proximidade, mas não adequação, isto é, o pensamento só pode colocar o mundo
entre parênteses porque a existência do mundo está dada, mas o mundo mesmo não está
dado em absoluto: o mundo não é um ser que possa ser apreendido absolutamente, mas ele
está aí para ser percebido sob os diversos perfis através dos quais se apresenta. O problema
no qual a compreensão tradicional da filosofia reside, segundo Arendt, é querer encontrar a
realidade do mundo fora dele, como se houvesse uma essência que o ordenasse e orientasse
um suposto conhecimento que se poderia ter dele não a partir do próprio mundo, mas
de uma região ontologicamente anterior, nessa compreensão, diz Arendt, “Em vez de ter
se retirado espiritualmente de tudo o que está presente e à mão, o espírito carregou para
dentro de si as aparências. E sua ‘consciência’ tornou-se um substituto completo para o
mundo exterior, apresentado como impressão ou imagem” (ARENDT, 2010b, p. 177-178).
Le Ny, aluno de Tassin, segue parte das considerações de seu orientador e faz uma
leitura à qual me alio: a de que Husserl representa, por sua parte, tanto aquilo que Arendt
critica na filosofia – a cegueira frente aos assuntos humanos – quanto uma orientação
teórica que “‘afrouxou’ as amarras’ e abriu os olhos da filosofia contemporânea para a qual
todo objeto pode ser um objeto de pensamento e uma ocasião para a filosofia” (LE NY,
2013, p. 69). A fenomenologia representa uma abertura às questões mundanas, ao primado

61
Fenomenologia e política em Hannah Arendt

da aparência. Ao designar o mundo como horizonte comum e a intersubjetividade como


ineliminável, o pensamento passa a não operar mais nos mesmos parâmetros que o fazia a
tradição filosófica, pois não cede ao materialismo ou ao idealismo, assim como não se perde
nas deduções dialéticas. Entretanto, falta o reconhecimento da pertinência da dimensão
política em sua dignidade própria, pois a “contribuição fenomenológica se mantém, todavia,
inalcançada e ambígua, já que a inversão prometida, apenas entrepercebida [entraperçu], é
imediatamente fechada e recoberta pelos preconceitos clássicos acerca da vida ativa” (LE
NY, 1999, p. 69, 70).
Para Arendt, Husserl só consegue encontrar a intersubjetividade e a importância
do mundo partindo do ego transcendental, recaindo no mesmo erro de Descartes, pois
o eu-penso não tem como consequência o eu-sou, mas é o eu-sou que é condição para
o eu-penso (Cf. ARENDT, 2010b, p. 245, nota 59), ou seja, minha existência factual,
o mundo e a intersubjetividade não são coisas que eu encontro ao me voltar para o ego
transcendental, mas já estão postas enquanto fenômenos. Nas palavras de Arendt: a
“objetividade [husserliana] é construída na própria subjetividade da consciência em virtude
da intencionalidade. Ao contrário, e com a mesma justeza, pode-se falar da intencionalidade
das aparências e da sua subjetividade embutida” (ARENDT, 2010b, p.63, grifos meus). Ora,
não se tratam de estruturas transcendentais, mas, sim, do impacto com o qual os homens
se deparam desde o momento em que chegam ao mundo. Na medida em que são seres
condicionáveis e condicionados (Cf. ARENDT, 2010a, p. 10-11), Arendt parte de outra
perspectiva: a de que somos seres do mundo.
Deste modo, os elementos a seguir ganham destaque: 1) o conceito de experiência
e 2) o primado que esta tem para a atividade de pensar, 3) a distinção que Arendt realiza
entre os diversos conceitos com os quais busca compreender o mundo e as atividades
humanas, 4) a utilização de uma linguagem que toca a matriz fenomenológica, mesmo que
utilizada a partir de outros enfoques.
Assim como Husserl, defendo que Heidegger desponta como o tipo de fenomenólogo
com o qual Arendt não se alinha. Os motivos: 1) a cegueira frente aos assuntos humanos;
2) a preocupação com a existência apenas na medida em que ela propicia uma abertura
ao projeto de ontologia fundamental; 3) a análise do mundo e da mundanidade a partir
de um ponto de vista dual – autêntico e inautêntico – que designa toda a dimensão da
cotidianidade como inautêntica, ao passo que a autenticidade só se revela através de uma
experiência solipsista (Cf. ARENDT, 2008a, pp. 205-210). Tais questões acabam por se
chocar com a compreensão de Arendt de que a experiência só pode ser compreendida
vinculada à pluralidade humana, pois a experiência do mundo não se dá apenas com os
sentidos biológicos, mas junto a um contexto compartilhado que se mantém o mesmo
a outros indivíduos, os quais, cada um a seu modo, experimentam este mesmo mundo,
confirmando a sua existência (Cf. idem, 2010b, p. 67). De todo modo, essa relação de
influência se dá, sobretudo, através de uma “reapropiação hermenêutica” (Cf. TAMINIAUX,
1992) que Arendt faz de Heidegger, de modo que seu professor se mantém sempre como
um estranho na festa (YOUNG-BRUEHL, 1997, p. 7), mas ainda assim um de seus
convidados.
Sigo de perto as análises de Taminiaux (1992) nesta relação entre os pensamentos
de Arendt e Heidegger. Interprete de ambos os autores, Taminiaux entende, por exemplo,
que “a análise arendtiana em A condição humana pode ser vista como uma tentativa de

62
Lucas Barreto Dias

examinar sob novo modo todos os temas platonistas e aristotélicos por Heidegger. (...) Este
reexame se efetua em função da excelência do bios politikos” (TAMINIAUX, 1992, p. 26).
Arendt revela a Heidegger em carta que A condição humana, a despeito de não ter nenhuma
dedicatória, “surgiu a partir dos primeiros dias de Freiburg e deve assim quase tudo a você
em quase todos os aspectos” (ARENDT, 2001, p. 109). Tratar-se-ia de um texto inspirado
pelas reflexões heideggerianas, mas, para além disso, na interpretação de Taminiaux (que
não teve contato com o epistolário dos autores), também seria uma réplica crítica não
só ao projeto de ontologia fundamental, quanto às apropriações feitas por Heidegger
dos pensamentos de Platão e Aristóteles. O que desponta dessa aproximação, penso, são
elementos metodológicos, tais como: 1) as análises etimológicas, 2) o olhar crítico que
busca compreender a tradição do pensamento ocidental a partir de uma desconstrução e
3) a linguagem empregada que carrega consigo termos-chave no pensamento arendtiano
como existência, interpretação, fenômeno, mundo.
O que está em questão nesta interpretação e com a qual estou, aqui, em acordo, é
que Heidegger constrói este seu projeto ainda sob a cegueira tradicional frente ao âmbito
público, levando-o a uma sobreposição hierárquica de um modo de vida teórico – o bios
theoretikos – frente a um modo de vida político – bios politikos. Não obstante isso, Arendt,
no texto em homenagem aos 80 anos de Heidegger, afirma que o seu curso em Marburg
sobre O Sofista de Platão suscitou, para ela, questões importantes e urgentes. Taminiaux
(cf. 1992, pp. 14, 21) investiga o que Arendt quer indicar por “questões importante e
urgentes”, já que se trata de um texto/curso sobre problemas metafísicos e ela própria não
o dizer explicitamente. Segundo o intérprete francês, três temas guiam A condição humana:
o mundo, o princípio de individuação e o público (cf. TAMINIAUX, 1992, p. 26), todos
estes também temas heideggerianos. O que nos é sugerido não é uma aceitação, todavia,
do conteúdo temático, mas de uma preocupação com tais assuntos, de caráter urgente e
imediato, que até então continuam sendo tratados sob um ponto de vista do bios theoretikos,
em vez de se buscar uma orientação do olhar intrinsecamente localizado no bios politikos.
Mais que um acordo, então, com Heidegger, há aqui um debate em torno dos conteúdos e
no método utilizado.
Não obstante a posição crítica que Arendt constrói em A condição humana frente a
Heidegger, há também entre eles uma proximidade metodológica, um modo de olhar para
questões clássicas da filosofia, transfigurando-as em problemas do pensar contemporâneo.
No texto em homenagem a Heidegger, Arendt diz que

O decisivo no método [de Heidegger] era que, por exemplo, não se


falava sobre Platão e não se expunha sua doutrina das ideias, mas seguia-
se e se sustentava um diálogo durante um semestre inteiro, até não ser
mais uma doutrina milenar, mas apenas uma problemática altamente
contemporânea. (ARENDT, 2008b, p. 279)

Isto, que Arendt indica como uma novidade do pensamento heideggeriano,


provém, cronologicamente falando, do apelo de Husserl para se buscar as coisas mesmas.
Heidegger assumiria, nesse sentido, a posição de mestre do pensar que exercia fascínio
entre os jovens alemães que buscavam não mais uma filosofia feita por pura erudição, mas
que nutriam uma paixão pela atividade do pensamento e viam em Heidegger “alguém
que efetivamente atinge as coisas que Husserl proclamou; [alguém que] sabe que elas não
são um assunto acadêmico, mas a preocupação do homem pensante (...) desde sempre; e,

63
Fenomenologia e política em Hannah Arendt

exatamente porque para ele o fio da tradição se rompeu, redescobre o passado” (ARENDT,
2008b, p. 279).
As constantes e, para muitos, desconfortáveis digressões que Arendt faz em seus
textos parece ter aí seu ponto de origem. Essa forma de olhar novamente para o passado
com olhos no presente, a busca por exercitar o pensar não com a intenção de trazer a
interpretação última sobre um autor, uma época ou um evento histórico, mas ver em todos
eles oportunidades para pensar, isto Arendt aprende com Heidegger. Trata-se, não de
“descobrir ou revelar um solo último e seguro, mas, mantendo-se nas profundezas, de
abrir caminhos e colocar ‘pontos de reflexão’”, é um pensar que está “permanentemente
em atuação”, que “jamais pensa ‘sobre’ alguma coisa; ele pensa alguma coisa” (ARENDT,
2008b, p. 280). É assim que se pode, então, interpretar o pensamento de Heidegger em
Ser e tempo que Arendt retém: como um pensar em permanente atuação que tenta se
desvencilhar das imagens tradicionais que os conceitos filosóficos nos imputam, tentando
ir a uma região revelada pela linguagem do modo originário com o qual cada um de nós se
encontra com as coisas, com o mundo e consigo mesmo.
É, então, esse método de pensamento experimentado por Heidegger, mais que
sua própria filosofia, que Arendt diz contribuir de modo decisivo na determinação da
“fisionomia espiritual do século XX” (Ibidem, p. 280). Essa fisionomia, deixa entrever
Arendt, subjaz justamente a esse modo não metafísico de pensar, sem fundamentos, mas
que se exercita sob o horizonte da cotidianidade (Cf. HEIDEGGER, 2012, p.73). Uma
imagem, então, desponta: a de que o pensar pode ser encarado como um caminho que se
percorre, mas que não leva a nenhum lugar previamente estabelecido. São os caminhos
florestais, os quais, ”por não conduzirem a um fim estabelecido fora da floresta (...) são
incomparavelmente mais adequados para quem ama a floresta e nela se sente à vontade do
que as rotas de problemas cuidadosamente traçadas onde se acotovelam as pesquisas dos
especialistas” (ARENDT, 2008b, pp. 280-281).
Todavia, ainda que tenha aprendido a pensar com Heidegger, seu próprio método
não se reduz ao dele. Isso porque, avalia Arendt, Heidegger finda por se tornar refém
da novidade de seu pensar contra aquilo que o movimentava: o mundo das aparências.
No movimento de pensar através dos caminhos florestais, Heidegger ergue nessa
atividade sua morada, tornando-se cada vez mais alheio à cotidianidade que engendra o
pensamento (Cf. ARENDT, 2008b, p. 286). Em A vida do espírito, Arendt designa que
uma das características do pensar é colocar-se fora de ordem, retirar-se do mundo das
aparências através da dessensorialização daquilo que me dado fenomenicamente, questão
que, inclusive, remonta a Heidegger (Cf. Idem, 2010b, pp. 95-98). O que para Arendt surge
como elemento filosófico a ser evitado, no entanto, não é realizar essa retirada do mundo
das aparências [withdrawal], mas fazer desse espaço de isolamento sua morada, o que
consistiria na tentativa de realizar o abandono do mundo das aparências.
Manter-se atrelado ao mundo das aparências, mesmo ao efetuar a retirada
exigida pelo pensar, é o que movimenta o método arendtiano e dá intensidade ao seu
modo próprio de fazer fenomenologia, à sua intencionalidade das aparências. Assim,
os três tópicos ressaltados por Taminiaux – o mundo, o princípio de individuação e o
público (cf. TAMINIAUX, 1992, p. 26) – presentes em Heidegger e Arendt podem ser
compreendidos em sua estrutura temático-metodológica, pois ainda que trate de questões
presentes em O Sofista e em Ser e Tempo, Arendt o faz com e contra Heidegger. Explico-

64
Lucas Barreto Dias

me: a inspiração temático-metodológica tem raízes devedoras ao seu professor, isto é, seu
método é parcialmente proveniente daquele descrito e executado por Heidegger, assim
como algumas questões orbitam os mesmos temas, todavia os pensamentos de ambos não
coincidem, mesmo aproximando seus métodos e temas.
Este movimento em direção ao que Arendt indica como Ürphenomene tem raízes
heideggerianas, mas se distingue dele em um aspecto ineliminável: enquanto Heidegger
faz tal movimento do ponto de vista do bios theoretikos a fim de afirmar esse modo de vida
como superior, Arendt o faz do interior de uma vida que não se furta de se saber integrada,
de algum modo, ao mundo.
Esta “reapropiação hermenêutica”, como diz Taminiaux, que Arendt faz de
Heidegger – utilizar seus métodos e temas através de um outro perfil de olhar – faz
com que seja possível melhor compreender o tipo próprio de metodologia que Arendt
emprega, seus distintos métodos que, cada um a seu modo, auxiliam a autora na sua tarefa
de compreender os eventos mundanos, a condição humana e suas atividades, sejam as da
vita activa, sejam as do espírito. Arendt herda de Heidegger essa tarefa de repensar o que já
fora pensado, mas não para circunscrever o pensamento como capacidade suprema, e insere
aí também a tarefa de pensar o que foi feito para, mais que tudo, pensar o que está sendo
feito. Sua abordagem fenomenológica é conduzida parcialmente em estilo heideggeriano,
mas contra Heidegger.
Poder-se-ia dizer, assim, que o método se confunde tanto com um procedimento
técnico – por exemplo, as distinções conceituais traçadas a partir de análises etimológicas
que buscam pelas experiências originárias que engendraram a nomeação não só de objetos
como também das atividades humanas – quanto com a própria teoria, na medida em
que a construção teórica é endógena aos procedimentos, de modo que a característica
de distinguir conceitos e relacioná-los não é só uma técnica, mas diz respeito às próprias
experiências humanas e ao reconhecimento do mundo e das atividades em sua constitutiva
pluralidade.
Arendt, assim, não é uma mera discípula de Heidegger, herda dele um modo de
olhar, sem, contudo, vislumbrar as coisas do mesmo modo. Concordo com Dana Villa
quando diz que “enquanto a desconstrução de Heidegger da tradição da filosofia ocidental
é uma ferramenta inestimável, ela não é substituta para a própria fenomenologia da ação e
do espaço público de Arendt” (VILLA, 1996, p. 14). Villa compartilha com Taminiaux que
esta relação Arendt-Heidegger vai além do “método” e traz consigo considerações acerca
dos temas pensados; mais uma vez, trata-se da imbricação entre conteúdo e método.

Considerações finais
Assim como Husserl e Heidegger, Arendt, enquanto uma espécie de fenomenóloga,
realiza um retorno às coisas mesmas. Longe de tentar apreender o caráter essencial da
realidade ou dos objetos que a constituem, sua intenção é compreender aquilo que é passível
de ser pensado. Provavelmente influenciada pelo modo heideggeriano de investigação, seu
processo de análise costuma ir em direção às origens do pensamento ocidental através
de interpretações etimológicas. O lema fenomenológico “às coisas mesmas” aparece na
argumentação de Arendt através do retorno que constante ao que está na origem dos
conceitos políticos e filosóficos. A autora volta seu olhar para o nascedouro em que eventos
engendram conceitos a fim de compreender aquilo que estamos fazendo, como indica em

65
Fenomenologia e política em Hannah Arendt

A condição humana. Trata-se da busca pelas experiências que fomentam nossa linguagem
e que, por isso, também estão na base do nosso modo de pensar. Mais do que isso, na
verdade, desvelar o modo como os homens se relacionaram originalmente com o mundo
através da linguagem é o modo pelo qual Arendt entende ser capaz de encontrar um
modo de compreensão da realidade sem recorrer às estruturas teológico-metafísicas da
tradição do pensamento ocidental, sem recair em um subjetivismo, ou erigir a necessidade
da construção de um ego transcendental. Entendo que esse retorno, balanceadas algumas
dívidas com Husserl e Heidegger, constrói-se através de uma fenomenologia que não
confere primazia nem ao ego transcendental husserliano, nem ao Dasein heideggeriano,
mas ao mundo, às aparências, daí defender que Arendt empreende uma fenomenologia
calcada na intencionalidade das aparências, à qual se contrapõe não um sujeito – não
se trata meramente de inverter a lógica de Husserl –, mas que exige uma pluralidade.
No lugar, portanto, da experiência do ego pensante e da intencionalidade que parte dele,
Arendt explicita uma nova perspectiva que tem como ponto de partida as aparências e a
experiência não do Homem posto pela falácia do solipsismo, como ela assim designa, mas
da pluralidade humana.
O que fica, então, é a linguagem materna, isto é, aquela da fenomenologia, que apesar
de não se encontrar diretamente com Husserl, provém dele e se estende por Heidegger.
Cabe a Arendt buscar seu modo próprio de capturar os fenômenos e de salvá-los de seu
destino metafísico ou positivista. O que fica é uma herança de testamento duvidoso, pois
não aceita a filiação sem ressalvas, mas dela faz parte através da linguagem e do olhar.
São elementos sobretudo metodológicos que ganham forma nas orientações teóricas
de Arendt. Há, assim, um modo que lhe é próprio de também ir às coisas mesmas, às
aparências. Não se pode negar que Husserl e Heidegger tenham, cada um a seu modo,
um lugar no procedimento arendtiano: tanto pelo tipo de fenomenologia que Arendt não
faz, quanto pela linguagem que carrega consigo e seu modo fenomenológico de encarar
o mundo, buscando compreender os assuntos humanos através de suas aparições, de seus
fenômenos. A linguagem, como bem sabe Arendt, é a matéria pelo qual nosso pensamento
se move no diálogo silencioso que trava consigo mesmo e na criação de um domínio
público potencial por meio do juízo que leva em consideração as diversas doxas. Então,
se a língua materna é o que fica, também o ficam os seus procedimentos, seus métodos.
Tal qual a “pólis grega continuará a existir na base de nossa existência política enquanto
usarmos a palavra ‘política’” (ARENDT, 2008c, p.220), a fenomenologia fará parte das
considerações metodológicas de Arendt enquanto seus conceitos e métodos continuarem
em suas formulações.

66
Lucas Barreto Dias

Referências bibliográficas:
ARENDT, Hannah. Compreender: Formação, exílio e totalitarismo. Trad. Br. Denise
Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008a.
_____. A condição humana. Trad. Br.: Roberto Raposo, revisão técnica: Adriano Correia.
11ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.
_____. Hannah Arendt-Martin Heidegger: correspondência 1925 / 1975. Organização de
Ursula Ludz; Tradução br. de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2001.
_____. Homens em tempos sombrios. Trad. Br. de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia
das letras (edição de bolso), 2008b.
_____. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Trad. br.: Cesar Augusto R. de Almeida,
Antônio Abranches e Helena Franco Martins. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2010b.
BORREN, Marieke. Amor Mundi: Hannah Arendt’s political phenomenology of world.
Amsterdam: F & N Eigen Beheer, 2009.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Br. de Fausto Castilho. Ed. Bilíngue (Alemão
e Português). Campinas: Editora da Unicamp; Petrópolis: Editora Vozes, 2012.
HUSSERL, Edmund. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma
introdução à Filosofia Fenomenológica. Trad. br. de Diogo Falcão Ferrer. Rio de Janeiro:
Forense, 2012.
LE NY, Marc. Hannah Arendt: Les temps politique des hommes. Paris: L’Harmattan,
2013.
RIZO-PATRÓN, Rosemary. “Arendt, ?lectora de Husserl?”. II Jornadas de Fenomenologia
y Hermenéutica. 21 de octubre de 2006. Disponível em:
TAMINIAUX, Jacques. La fille de Thrace et le penseur professionnel: Arendt et Heidegger.
Paris: Éditions Payot, 1992.
TASSIN, Étienne. Le trésor perdu: Hannah Arendt l’intelligence de l’action politique.
Paris: Éditions Payot & Rivages, 1999.
VILLA, Dana. Arendt and Heidegger: the fate of the political. Princeton: Princeton
University Press, 1996.
VOLLRATH, Ernst. “Hannah Arendt and the Method of Political Thinking”. Social
Research. Vol. 44, No. 1, Hannah Arendt (SPRING 1977), pp. 160-182.
WOLLIN, Richard. Heidegger’s children: Hannah Arendt, Karl Löwith, Hans Jonas, and
Hebert Marcuse. Princeton: Princeton University Press, 2001.
YOUNG-BRUEHL, Elizabeth. Hannah Arendt: por amor ao mundo. Trad. de Antônio
Trânsito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997.

67
A potência em Nietzsche e Agamben: Aberturas da política...

A potência em Nietzsche e Agamben: Aberturas da


política e críticas à democracia liberal

Márcia Rosane Junges1

As críticas à democracia liberal formuladas por Nietzsche e Agamben devem ser


consideradas para refletirmos acerca da política e da democracia hoje. Como é possível falar
em liberdade e participação democrática se a política se encontra diminuída e capturada
pelo dispositivo da economia, e se a política coincide com biopolítica2? Em termos teóricos,
qual é a relação que existe entre as perspectivas da potência e as concepções da política
em cada um dos autores? Qual é a efetividade de uma democracia representativa que se
tornou subordinada ao poder econômico, à espetacularização midiática, como propõe Guy
Debord, e ao estado de exceção3? Tais questões nortearam nossa tese e aqui apresentamos
uma tentativa de síntese da investigação.
A partir desse panorama analisamos os aspectos políticos das obras de ambos os
pensadores, tendo como lastro o conceito de potência, que surge como seu fio condutor e
articulador. No caso do pensador alemão, temos em vista a ideia de vontade de potência4,
uma potência biológica que coloca a vida como valor supremo, operando a nível molecular,
fora do escopo do arbítrio humano. Potência, em Nietzsche, não diz respeito à volição
ou arbítrio. Trata-se da potência fisiológica, orgânica, de autoafirmação da vida e que
1 Doutora em Filosofia Política pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, em cotutela (dupla titu-
lação) com a Università degli Studi di Padova – UNIPD, Itália, através do Programa de Doutorado Sanduíche no
Exterior – PDSE Capes. E-mail: [email protected]. Professora na Unisinos.
2 Temos em vista a compreensão sobre a biopolítica tributária a Michel Foucault, que toma outra perspectiva quando
Agamben adverte que sua gênese já se encontra no pensamento grego antigo, na deriva do paradigma da oikos para
a polis, com a zoè ocupando lugar central no interesse da política. Uma das preocupações que Agamben enfrenta ao
longo de seus escritos é o deslocamento da zoè para o centro de interesses da política soberana: a biopolítica que se
descortina no campo como paradigma da política e da exceção modernas. No Homo sacer seu intento é compreender
a mudança da política, porquanto em seu lugar originário foi inserida a vida nua em um ex-ceptio.
3 O estado de exceção (Ausnahmezustand, Notstand) é uma figura jurídica do Estado de direito que opera no limiar
entre a ordem e o direito, paradoxal porquanto ao aplicar a lei a desaplica, uma vez que é uma medida excepcional
sobre a vida humana e procura tornar legal aquilo que não pode sê-lo. Trata-se de um dispositivo que captura a vida
humana e a torna um mero ser vivente, homo sacer, utilizado como instrumento extraordinário de polícia e se conver-
tendo no paradigma de governo das democracias contemporâneas.
4 Em língua portuguesa a expressão Wille zur Macht é traduzida de dois modos: como vontade de poder e vontade de
potência. Entretanto, não se tratam de terminologias equivalentes. Empregamos a segunda opção, em sintonia com
a tradução realizada por Torres Filho (1978) em Nietzsche. Obras incompletas. Neste caso, precisamos deixar claro
que potência não denota o sentido aristotélico, como ocorre em Agamben. Por outro lado, a escolha por não traduzir
Macht por poder ajuda afastar a perspectiva de compreensão do termo em um aspecto político reducionista e simpli-
ficador, como ocorreu ao longo da recepção nietzschiana dentro e fora do Brasil. Se vertermos Wille por disposição,
como pontua Scarlett Marton em A terceira margem da interpretação, na abertura de A doutrina da vontade de poder em
Nietzsche (MÜLLER-LAUTER, 1997, 10-11), podemos entender Macht em conexão ao verbo Machen como fazer,
produzir, criar. Assim chega-se ao entendimento de vontade de potência como força plástica e criadora, que nos parece
ser aquilo que Nietzsche vislumbrava com sua doutrina, tida como uma das pilastras filosóficas de sua obra. Marton
pontua que tal concepção pode ser encontrada, sobretudo, nos fragmentos póstumos entre 1882 e 1889.

68
Márcia Rosane Junges

engendra forças em caráter relacional afirmando suas diferenças. “A vontade de potência


aparece assim como explicação do caráter intrínseco da força” (MARTON, 2010, p. 40)
e é a expressão de sua efetivação. A noção de força só será retomada em A gaia ciência, e
apenas em 1885 é que a teoria das forças ganhará uma formulação específica. Já a grande
política5 é aquela que irá tornar a fisiologia6 dominante sobre todas as outras questões, e
não contém em si uma prerrogativa política no sentido clássico do termo. Por outro lado,
a potência da transvaloração contém a possibilidade de modificar um cenário político,
revitalizando-o através da cultura: é o contramovimento capaz de engendrar a grande
política, ainda que a política não seja a preocupação central do filósofo. A grande política
é a resposta cultural a um movimento político democrático de decadência, cujo ápice é o
niilismo e a pilastra central é a moral judaico-cristã.
Refletimos acerca de uma espécie de tensionamento entre a vontade de potência, que
opera em nível fisiológico, e a transvaloração dos valores, que ocorre como potencialidade
de revitalizar um sistema político. Não é nosso intuito resolver essa aparente tensão, senão
apontá-la para que esteja presente dentro do diagnóstico que a filosofia nietzschiana
traça sobre a decadência política e as aberturas que surgem para a política e a democracia
liberal. Como a vontade de potência em Nietzsche é naturalizada, há uma tendência para
que a política siga essa linha, tomando rumos hierarquizados e com pouco espaço para a
democracia na potência da natureza. Porém, isso não invalida as possibilidades políticas
oriundas da transvaloração dos valores, ainda que a democracia não seja o que almeja e
nem mesmo a política seja o horizonte de suas argumentações centrais.
No caso de Agamben, a potência-do-não é pensada a partir do conceito aristotélico
de potência, entendendo que o ser humano é o único capaz de poder sobre sua própria
impotência, e a partir disso estabelecer linhas de fuga e resistência que gerem novas
formas-de-vida7 e uma política-que-vem. O conceito de potência-do-não precisa ser
compreendido em relação com a categoria de profanação8, quando se retira a assinatura
5 A grande política é o contradiscurso nietzschiano à pequena política expressa pela democracia de rebanho nivelado-
ra, herança secularizada do Cristianismo. Engendrada pela transvaloração dos valores, a grande política expressa não
um programa político, mas uma elevação cultural que irá mudar a direção do ressentimento como um dos sintomas
do niilismo europeu, e tem como seus pilares “a fisiologia, a hierarquia e a criação para a elevação da humanidade”
(RUBIRA, 2016, p. 247, in MARTON, 2016). Trata-se de um novo horizonte teórico que sai da apolitia para uma
doutrina de domínio. Como afirma Brobjer (2008), a grande política traz consigo uma revitalização do espírito e
outro parâmetro valorativo, propondo a concepção de uma aristocracia espiritual para uma vida mais elevada. En-
quanto terminologia filosófica, a grande política surge em Humano, demasiado humano no contexto da crítica aos
nacionalismos e unificação da Europa, mencionada de forma esparsa através dos escritos (SCHMID, 2014, p. 251, in
NIEMEYER, 2014). A partir do começo de setembro de 1888 a grande política possui uma abordagem crucial em
relação à tarefa da transvaloração (RUBIRA, 2016, p. 248, in MARTON, 2016).
6 É preciso atentar às modificações que ocorrem no conceito de fisiologia no pensamento nietzschiano, para que não
se tome o termo a partir de um significado unívoco ao longo de sua obra. Como aponta Ramacciotti (2012), “na
obra da maturidade, a fisiologia opera como fio condutor da teoria nietzschiana da interpretação, sobretudo, de sua
psicologia da cultura moderna”. Em nossa pesquisa é esse o período que julgamos ser o mais ilustrativo das impli-
cações políticas que a concepção fisiológica da potência irá assumir. Ernani Chaves (2007) igualmente alerta para
a pluralidade de usos do termo fisiologia, baseado nos escritos de Helmut Pfotenhauer, Wolfgang Muller-Lauter e
Patrick Wotling.
7 A forma-de-vida expressa aquela vida que jamais pode ser separada de sua forma: é a vida que dá a si própria a sua
regra, e não simplesmente aceita-a como um elemento exterior imposto. É a insurgência que aflora na imanência e
que rompe com o imperativo da biopolítica de redução a uma mera vida nua. Trata-se de pensar para além de uma
submissão ao poder soberano e fazer experiências que articulam a linguagem, a potência e o pensamento, vivendo
como se não (hōs mē) estivesse preso a este tempo e aos dispositivos jurídicos da soberania.
8 A profanação é o contradispositivo formulado por Agamben para restaurar ao uso comum o que havia sido separado
e dividido pelo sacrifício: é através dela que se pode construir linhas de fuga e ruptura para outra política. Adentran-
do na teologia, constrói a temática da profanação, que opera como um dos fios condutores de seu projeto filosófico.
Conceito romano, profanar significa retirar do templo (fanum) aquele sagrado (sacer) que está fora do alcance dos
seres humanos, uma libertação não para que o uso anterior seja recuperado, mas para fazer um novo uso que rompa a

69
A potência em Nietzsche e Agamben: Aberturas da política...

de sacralidade de um dispositivo e este passa a ter um novo uso. A potência-do-não é um


dos conceitos centrais na obra agambeniana, formulado como um amadurecimento da
problemática da potência, que perpassa seus escritos desde os anos 1970. Para Edgardo
Castro (2012, p. 10) a temática aristotélica da potência seria o fio condutor da filosofia
de Agamben, como fica evidenciado em Potência do Pensamento, Bartebly, mas já desde O
homem sem conteúdo. Agamben recupera a filosofia aristotélica para diferenciar potência
(dynamis) como possibilidade, de ato (energeia), e reivindica que a potência não se esgota
ou anula no ato, mas se conserva no ato e no pensamento e não requer uma concretização
efetiva, porquanto a inoperosidade é potência-do-não e uma forma de desativar, em
coincidência com a uma forma-de-vida. “Ter uma potência, ter uma faculdade, significa ter
uma privação” (AGAMBEN, 2015a, p. 245). Essa potência é, portanto, aquela possibilidade
que o ser humano tem enquanto aberto à contingência e não inscrito em um determinismo
biológico. Ao retomar o conceito de potência-do-não aristotélico Agamben recupera
essa herança filosófica que abre linhas de fuga e ruptura para desativar as programações
biopolíticas, e assim sua concepção ontológica terá implicações políticas cruciais ao propor
que a relação entre potência e ato deve ser transposta para os poderes constituinte e
constituído.
Um de nossos esforços consistiu em estabelecer nexos para desvelar em que sentido
a vontade de potência e a potência-do-não abrem espaço para repensarmos os limites
da democracia liberal em nossos dias. Procuramos mostrar a importância da categoria
de potência nas filosofias de Nietzsche e Agamben, e como a centralidade dessa ideia se
imbrica com outros conceitos que são articulados do ponto de vista político. Propomos
que há uma sintonia profunda entre as críticas que realizam aos modelos políticos e às
democracias liberais, embora o façam desde perspectivas teóricas distintas. Pensamos que
há uma conexão entre a noção de potência e a compreensão da política: isso exposto,
apontamos para duas hipóteses centrais. A primeira trata acerca da similaridade ou sintonia
da crítica dos autores à política e à democracia liberal, enquanto a segunda tese averigua
a valoração diferenciada da potência como categoria de abertura para grande política e a
política-que-vem. Nietzsche, ao partir da potência da natureza, conclui que a democracia
é um regime que nega essa potência da natureza ao pretender uma isonomia dos sujeitos
que não existe no mundo imanente. Contudo, pensamos que sua transvaloração oferece a
possibilidade de uma revitalização política através da elevação da cultura e da aristocracia
do espírito, e o perspectivismo, que tem na vida seu critério mais elevado, vislumbra o agon
como terreno para as disputas democráticas. A partir disso podem surgir outras formas de
política, lastreadas no dissenso e no agonismo. Essa relação entre a vontade de potência
e a transvaloração pode apontar para uma política fora dos padrões de representatividade
democrática clássica. Chiara Piazzesi (2017) alerta que uma devida compreensão da
vontade de potência deve considerar os aspectos mecanicista e valorativo, em relação
agonística. Frezzatti (2004) investiga as ligações entre cultura e fisiologia, sendo ambos os
aspectos complementares, uma luta da potência e pela potência no vir-a-ser.
No caso de Agamben, ao conceber a potência como potência-do-não como
possibilidade do novo e da ruptura, este problematiza a democracia como regime de
autogestão coletiva dos quaisquer na política-que-vem: a política é o “im-possível” não no
esfera sacra. Em nossa tese analisamos a temática da profanação discutindo-a face à transvaloração, porquanto ambas
as ideias contém a abertura para dessacralizar algo tido como inacessível ou decadente. A política é radicalmente
modificada com os mecanismos da profanação e da transvaloração, pois se descortinam perspectivas para além dos
modelos representativos e soberanos.

70
Márcia Rosane Junges

sentido de um projeto a ser concretizado, mas da possibilidade do novo, do vir-a-ser que


não se esgota no ato. Entretanto, pensamos haver um tensionamento quando são igualadas
a política-que-vem à inoperosidade e à potência destituinte, pois estas podem resultar
em outras formas políticas que não sejam soberano-democráticas ou representativas, e
operem fora do paradigma político democrático tradicional. No ensaio Em nome de quê?
Agamben sentencia que “as categorias do político desabaram em todos os lugares” (2018,
p. 96), e apenas a poesia poderia fazer-lhe frente. Pensando na potência-do-não como
linha de fuga e resistência surge a possibilidade de formas-de-vida que carreguem consigo
a marca da insurgência, da potência destituinte, da experiência de um pensar que também é
agir na expressão do gesto, da medialidade pura, na tensão constante entre potência e ato
personificada pela inoperosidade e pela resistência.
Surgido no momento da publicação de O Reino e a Glória, em 2007 (NASCIMENTO,
2010, p. 81), o conceito inoperosidade é uma questão ontológica em Agamben e que não
significa inércia ou cessação de uma atividade, mas uma operação de desativar uma obra e
atribuir-lhe um novo uso ao modo de uma profanação, mas que não deve ser compreendido
somente na esfera da ação e do imperativo da operosidade, porquanto há uma coincidência
irrecusável entre potência-do-não, pensamento e resistência, que funcionam imbricados.
Agir, em Agamben, também é pensar, e nisso ele dá continuidade à tradição aristotélica
e averroísta que fundamenta sua concepção de potência do pensamento. Retomando
Aristóteles, Agamben compreende o ser humano como o único ser sem obra (ergon)
própria, portanto argos, inoperoso, e desse modo aberto à contingência. Na matriz cristã
há uma antítese entre o Deus criador e aquele ocioso da tradição pagã, motivo pelo qual o
Ocidente cristão não consegue conceber a inoperosidade se não for sob a “forma negativa
da suspensão do trabalho” (AGAMBEN, 2014b), como na festa, na poesia, na dança e nas
máscaras, cujo caráter destituinte que estabelecem rompe com aquele dos dias comuns,
invertendo valores e poderes vigentes, liberando o corpo e suas expressões de um agir
produtivo. Nessa abertura inoperosa das funções biológicas, econômicas e sociais surgem
novos usos possíveis e profanadores, e desse modo uma abertura para a política para além
daquele eixo da oikos ao qual está aprisionada desde a Grécia antiga. É nesse contexto que
precisamos entender o poder destituinte agambeniano, tarefa de uma política-que-vem
que inaugura novas formas-de-vida e que não é aquela do poder constituído dado por
formulações políticas clássicas.
Como resultados de nossa pesquisa percebemos uma proximidade entre as críticas
empreendidas por Nietzsche e Agamben à política através de seus conceitos de grande
política e política-que-vem. Alertamos para os desdobramentos críticos endereçados
à democracia liberal, embora seus pressupostos teóricos sejam distintos e não haja uma
filiação direta entre os pensadores, mas sim entrecruzamentos que têm a potência como
horizonte último. Quando Nietzsche formula sua doutrina da vontade de potência em
Assim falou Zaratustra, ele tem em mente uma potência biológica que compreende a
vida como parâmetro máximo avaliativo. A luta contínua pela potência se dá no âmbito
orgânico e inorgânico, mas sem o caráter de extermínio ou precedência hegemônica. O
mesmo Nietzsche que enxerga a vida como critério basilar e perspectiva mais elevada em
termos fisiológicos, formula a categoria da transvaloração para ultrapassar a mentalidade
degenerada tributária ao Cristianismo e transposta para a democracia. Compreendida
como a tarefa central de sua filosofia, a transvaloração é um contramovimento que faz
surgir a grande política como alternativa à pequena política do século XIX. Pensamos que

71
A potência em Nietzsche e Agamben: Aberturas da política...

seja possível aproximarmos os expedientes da transvaloração e da grande política como


formas-de-vida ao modo como Agamben hipotetiza, pois se constroem a partir de seus
próprios parâmetros.
Dedicamos uma parte da pesquisa a analisar “o Nietzsche de Agamben”, ou seja,
como o filósofo alemão é evocado nos escritos do italiano. Analisar essas referências
mostrou-se desafiador porque não há uma linearidade na compreensão de Agamben
sobre conceitos nietzschianos. Vanessa Lemm afirma que as referências ao filósofo alemão
perpassam toda obra de Agamben, porém é preciso perceber que são “leituras oscilantes,
multifacéticas e inerentemente plurais que Agamben faz de Nietzsche” (2017, p. 151). O
eterno retorno ocupa patamar central de suas preocupações, mudando de entendimento à
medida que sua obra é escrita a fim de propor uma filosofia da potência que se harmonize
com o passado. Assim, não se pode falar em uma interpretação unívoca acerca das menções
a Nietzsche, mas de nuances que vão sendo estabelecidas com o decorrer de sua reflexão,
culminando com sua concepção de potência e política em O uso dos corpos. Em O homem
sem conteúdo é explícita a concordância e a importância que Agamben concede à vontade
de potência nietzschiana e seus nexos com a arte. Sarah Scheibenberger (2017) credita o
surgimento da potência-do-não a um conceito de vida tardio em Agamben, e alerta para
uma ambivalência do sentido da potência agambeniana que pode ser entendida somente
se for tomada em consideração a separação inicial com o filósofo alemão. A análise segue
essa lógica em Poder soberano e vida nua, um ano após o lançamento de O homem sem
conteúdo, quando Agamben parece se afastar das concepções nietzschianas ao alertar para
a importância do surgimento de outra ontologia da potência, que supere a preponderância
do ato sobre a potência. Uma possível leitura desse momento teórico é que em O homem
sem conteúdo Agamben não possuía uma formulação própria da potência como aquela da
potência-do-não, expressa em Poder soberano e vida nua. À medida que amadureceu sua
potência-do-não, Agamben por vezes esmaece a concordância com Nietzsche, mas se
reaproxima em alguns aspectos, oscilando em seu entendimento sobre o eterno retorno.
Em todo caso, Nietzsche adquire importância na trajetória agambeniana, tendo em vista
que é por tomar outro rumo acerca da potência que pode surgir a política-que-vem.
Em O que resta de Auschwitz Agamben propõe que a ética de nosso tempo se inicia
com a superação do ressentimento. Contudo, se o eterno retorno propõe uma transmutação
sobre aquilo que foi através do amor fati, há que se admitir uma falência desse recurso
ao propor repetir Auschwitz, porquanto esse paradigma nunca deixou de se concretizar.
Não é à toa que seja exatamente a figura do campo aquela emblemática da política
contemporânea, como examinado em Poder soberano e vida nua. Com isso Agamben segue
se afastando de Nietzsche em sua filosofia política, estabelecendo um diálogo através dessa
dissonância, ao surgir a proposição de uma ética da vergonha e do resto, do indizível que
retorna sem cessar.
Em O uso dos corpos, das cinco referências feitas a Nietzsche, mencionamos a
última, onde o filósofo italiano retoma a problemática de Poder soberano e vida nua. Então,
questiona-se sobre o que pode significar um modo de vida que tenha por objeto somente
a vida ela mesma, cuja tradição política ocidental compreendeu sempre como sendo vida
nua. Seria algo como viver a bios e a zoè de forma indiscernível. É então que assinala o
limite e o abismo contidos no conceito de grande política como fisiologia, que torna a vida
nua o centro da política. Não poderia ser mais clara a crítica que Agamben tece a Nietzsche
na obra final do Homo Sacer, aquela de reduzir a grande política a um recorte fisiológico,

72
Márcia Rosane Junges

fazendo bios e zoè pairarem em uma zona de indistinção. Em outras palavras, o projeto
Homo sacer começa e termina com uma objeção recorrente a esse tipo de política. Esse é
um tensionamento entre a concretização da transvaloração para superar o niilismo e criar
o lastro para a vinda da grande política, pois insere no campo da fisiologia uma questão
política que precisa operar no paradigma da autonomia. Como apontamos anteriormente,
o pensamento de Nietzsche não deve ser entendido somente a partir da perspectiva da
vontade de potência em seu viés fisiológico, uma vez que a transvaloração, o amor fati e
o perspectivismo são potentes contrapontos que podem revitalizar a política através da
elevação da cultura. De qualquer forma, Agamben demarca nova separação em relação a
Nietzsche, reiterando sua posição sobre a potência contida em Poder soberano e vida nua,
O que resta de Auschwitz e Opus Dei, reafirmando seu conceito de potência-do-não para
engendrar a política-que-vem.
A potência-do-não é, em nossa análise, o eixo central na articulação da política-
que-vem. Assim como a grande política e a transvaloração dos valores, entendemos
que a política-que-vem e a potência-do-não se constituem em eventos originados em
rupturas, transvalorações e profanações, novas formas-de-vida que liberam a política do
enquadramento realizado pelo aparato jurídico do Estado, por outro uso do direito e pela
tarefa de inverter a biopolítica maior, aquela do Estado, por uma bipolítica menor na figura
do qualquer e do sujeito ético do testemunho. Agamben não formulou uma teoria política
para solucionar o diagnóstico do presente que realiza, apontando o niilismo que reside por
trás das democracias de massa espetaculares. Para o filósofo, a política entrou em eclipse
na Modernidade porque se alinhou ao problema da soberania. É das profundezas dessas
constatações que formula a política-que-vem, uma política não jurídica capaz de reverter
esse cenário: ela não tem centro, brota da sobreposição entre forma-de-vida e pensamento,
coincidindo com a inoperosidade e a potência destituinte, funcionando nas rachaduras
do poder soberano, a partir da figura das singularidades quaisquer. A política-que-vem se
desvela quando a vida dá a si própria a sua norma, capaz de profanar os dispositivos que
a aprisionam à biopolítica e faz um novo uso das coisas. É a resistência que surge como
horizonte inapagável do ser humano, e que só consegue se viabilizar porque não somos
reduzidos a uma programação biológica de espécie. Não há conteúdo programático que
defina essa nova política, mas sim um espírito de ruptura constante, de abertura e de um
horizonte movediço do ingovernável democrático - uma política de seres de potência.
A partir dessas constatações, pensamos que Nietzsche e Agamben com suas
concepções de potência e posicionamento político crítico apresentam as possibilidades
da política e os limites da democracia liberal. A sintonia crítica que aponta a decadência,
o esvaziamento, a espetacularização, a massificação, a aclamação e a burocracia como
fundamentos do modelo democrático são inquietantes porquanto convergem mesmo a
partir de fundamentos teóricos distintos. A partir dessas ideias sobre a potência, pensamos
que os filósofos expressam a importância de se engendrar novas formas-de-vida, coincidindo
a vida vivida com aquela existência que surge do transbordamento e da destituição, e não
de um deslocamento político do Cristianismo para a democracia, na compreensão de
Nietzsche, e da deriva teológica e econômica destes para a política, em Agamben.

73
A potência em Nietzsche e Agamben: Aberturas da política...

Referências bibliográficas:
AGAMBEN, Giorgio. O fogo e o relato. Ensaios sobre criação, escrita, arte e livros. Trad.
Andrea Santurbano, Patricia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018.
_____. Creazione e anarchia. L’opera nell’età della religione capitalista. Vicenza: Neri
Pozza, 2017a.
_____. Karman. Breve trattato sull’azione, la colpa e il gesto. Torino: Bollati Boringhieri,
2017b.
_____. Uma biopolítica menor. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. São Paulo: Série
Pandemia, N-1 Edições, 2017c.
_____. A potência do pensamento. Trad. António Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica,
2015a.
_____. Bartleby, ou da contingência. Trad. Vinícius Honesko. Belo Horizonte: Autêntica,
2015b.
_____. Meios sem fim. Notas sobre a política. Trad. Davi Pessoa. Belo Horizonte:
Autêntica, 2015c.
_____. Stasis. La guerra civile come paradigma politico. Homo sacer II, 2. Torino: Bollati
Boringhieri, 2015d.
_____. L’uso dei corpi. Homo sacer IV, 2. Vicenza: Neri Pozza, 2014a.
_____. Nudez. Trad. Davi Pessoa. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2014b.
_____. A comunidade que vem. Trad. Claudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2013a.
_____. Il regno e la gloria. Per una genealogia teologica dell’economia e del governo. Homo
Sacer II, 2. Vicenza: Neri Pozza, 2007a.
_____. Profanações. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007b.
_____. Homo sacer. Il potere sovrano e la nuda vita. Torino: Einaudi, 2005.
_____. Estado de exceção. Homo Sacer II. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo,
2004.
_____. Quel che resta di Auschwitz. L’archivio e il testimone. (Homo sacer III). Torino:
Bollati Boringhieri, 1998.
_____. L’umo senza contenuto. Macerata: Quodlibet, 1994.
ARISTÓTELES. Metafísica. 2ª ed. São Paulo: Edipro, 2012.
BROBJER, Thomas. Critical Aspects of Nietzsche’s Relation to Politics and Democracy.
In: Nietzsche, power and politics: rethinking Nietzsche’s legacy for political tought. Ed.
SIEMENS, Herman W. & ROODT, Vasti. Belin, New York: Walter de Gruyter, 2008, p.
205-227.
CAMPIONI, Giuliano. Leggere Nietzsche. Alle origini dell’edizione critica Colli-
Montinari. Pisa: ETS, 1992.
CAROLIS, Massimo de. FUSILLO, Francesco. RUSSO, Giuseppe. ZANARDI,
Maurizio. Sulla Potenza. Da Aristotele a Nietzsche. Napoli: Guida, 1989.
CASTRO, Edgardo. Introdução a Giorgio Agamben. Uma arqueologia da potência. Trad.
Beatriz de Almeida Magalhães. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
CHAVES, Ernani. Considerações sobre o ator: uma introdução ao projeto nietzschiano da
fisiologia da arte. Trans/Form/Ação. Vol 30, p. 51-63, 2007.
DETWILER, Bruce. Nietzsche and the politics of aristocratic radicalism. Chicago:
University of Chicago Press, 1990.
DOUSSAN, Jenny. Writing Lines: Agamben contra Nietzsche. Cultural Critique, Vol. 92,
2016, disponível em https://bit.ly/2HbXdlT , acesso em 20-04-2018.

74
Márcia Rosane Junges

FLEISNER, Paula. La vida entre estética y política. En busca de las posibles herencias
nietzscheanas en el pensamiento de Giorgio Agamben. Pléyade: Revista de Humanidades
y Ciencias Sociales, Nº. 17, 2016, disponível em https://bit.ly/2LPYxZt, acesso em 20-
07-2018.
FREZZATTI, Wilson. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/
biologia. Tempo da Ciência ( 11 ) 22 : 115-135, 2º semestre 2004.
GIACOIA JR., Oswaldo. Agamben. Por uma ética da vergonha e do resto. São Paulo: n-1
edições, 2018.
HATAB, Lawrence J. A Nietzschean Defense of Democracy: An Experiment in
Postmodern Politics. Illinois: Open Court Publishing Company, 1995.
LEMM, Vanessa. Agamben como lector de Nietzsche: una visión de conjunto.
BOLETIN/18 del Centro de Estudios de Teoría y Crítica Literaria (Octubre de 2017),
disponível em http://bit.ly/2zvNdzJ, acesso em 04-11-2017.
_____. Más allá de una política de la doninación: la cultura aristocrática en Nietzsche.
Alpha (Osorno), Nº 31, Decembre 2010, p. 9-24.
MARTON, Scarlet (ed. responsável). Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola
(Sendas & Veredas), 2016.
_____. Nietzsche, seus leitores e suas leituras. São Paulo: Barcarolla, 2010.
MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Volontá di potenza e nichilismo. Nietzsche e Heidegger.
Trieste: Parnaso, 1998.
_____. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. São Paulo: Annablume, 1997.
NASCIMENTO, Daniel Arruda. Do conceito de inoperosidade no recente vulto de
Giorgio Agamben. Cadernos de Ética e Filosofia Política 17, 2/2010, pp.79-101, disponível
em https://bit.ly/2mAaIyU, acesso em 20-06-2018.
NIEMEYER, Christian. Org. Léxico de Nietzsche. Trad. André Muniz Garcia, Ernani
Chaves, Fernando Barros, Jorge Luiz Viesenteiner, William Matiolli. São Paulo: Edições
Loyola, 2014.
NIETZSCHE, Friedrich. Trad. e org. Rubens Rodrigues Torres Filho. Nietzsche. Obras
incompletas (2ª ed. São Paulo: Coleção Os pensadores, 1978).
_____. COLLI, Giorgio; MONTINARI, Mazzino (Org.). Sämtliche Werke: Kritische
Studienausgabe. Berlin: Walter de Gruyter, 1967-77 und 1988, Neuausgabe 1999, 15
Bänden.
OTTMANN, Henning. Nietzsche und die Politik. Berlin/New York: Walter de Gruyter,
1999.
PIAZZESI, Chiara. Nietzsche. Roma: Carocci, 2017.
RAMACCIOTTI, Bárbara Lucchesi. Nietzsche: fisiologia como fio condutor. Estudos
Nietzsche, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 65-90, jan./jun. 2012.
TONGEREN, Paul van. Nietzsche as “Über-Politischer Denker”. In: Nietzsche, power
and politics: rethinking Nietzsche’s legacy for political tought. Ed. SIEMENS, Herman
W. & ROODT, Vasti. Belin, New York: Walter de Gruyter, 2008, p. 69-83.

75
Por uma política não intensificada: Walter Benjamin leitor...

Por uma política não intensificada: Walter


Benjamin leitor de Erich Unger

Márcio Jarek1

Questão inicial: o problema da intensificação


O jovem Benjamin da década de 1920 nos apresenta a sua definição de política da
seguinte maneira: “a realização da humanidade não intensificada” (BENJAMIN, 2012,
p.34)2. Essa frase consolida boa parte das reflexões de Benjamin sobre as relações entre vida e
política pensadas como livro na época. Mais precisamente podemos encontrar o acolhimento
por parte de Benjamin de uma investigação mais precisa acerca das temporalidades natural
(ou mítica), histórica, trágica e messiânica e, decorrente disso, a defesa de uma configuração
política “verdadeira” que promova a realização da humanidade e da vida humana de modo
a “não intensificá-las” ou a não torná-las histórica e politicamente completas. Benjamin,
com isto, tenta nos apresentar uma espécie de teologia anarquista “sem fim”3.
Muitos pesquisadores defendem que a definição de política como “a realização não
intensificada da humanidade” pode ser lida como uma fórmula dirigida contra o pensamento
de Nietzsche (Cf. STEINER, 2010). Para esses pesquisadores a crítica a Nietzsche presente
no ensaio “O capitalismo como religião”, destaca que Benjamin entende a concepção de
“além do homem” (Übermensch), o ponto máximo da doutrina da morte de Deus, como
uma tentativa de “arrebentação do céu pela humanidade intensificada”4. Como uma forma
mítica de querer intensificar a vida, de vê-la completa.
Segundo Benjamin, toda forma de intensificação da vida humana, como aquela
constatada no heroísmo trágico do Zaratustra nietzschiano, se apresenta com uma forma
equivocada de intensificação que nada mais é que a ênfase em um desenvolvimento
histórico “sem conversão”. Esse desenvolvimento histórico retoma a mesma condição de
culpabilização mítica e de condenação da vida ao definir como telos para esta o ir “além do
1 Licenciatura em Filosofia (PUCPR-2002), Mestrado em Filosofia (PUCPR-2006) e Doutorado em Filosofia
(PUC-Rio-2016); Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR
2 Tradução por nós ligeiramente modificada. No texto original em alemão (G.S. VI, p.99), encontramos a expressão
“die Erfüllung der ungesteigerten Menschhaftigkeit” que foi traduzida para o português por João Barrento como “a
realização da essência do humano não elevada a uma potência superior”. Optou-se por utilizar termos correlatos que
aparecem em traduções para outras línguas e em diversos trabalhos de comentadores (Cf. BERDET, 2014 e STEI-
NER, 2010), acreditamos, assim, que esses termos possam melhor situar a frase no contexto das questões políticas
que Benjamin avaliava na época.
3 O posicionamento anarquista de Benjamin era uma atitude comum a um conjunto de intelectuais judeus inconfor-
mados com os rumos tomados pela social-democracia alemã. Essas ideias anarquistas podem ser pressentidas nos
escritos que se situam na crítica do Estado e de sua intromissão na cultura, na crítica da Universidade, que transfor-
mou ciência e pesquisa em formação profissional rentável e na crítica da instituição familiar e do casamento como
meta necessária da vida (Cf. CHAVES, 2003, p. 26-27).
4 Cf. BENJAMIN, 2013, p.23.

76
Márcio Jarek

homem”. Essa peculiar teleologia pode levar a um cego desenvolvimento histórico da vida
e provocar a “arrebentação do céu” como ruptura drástica e catástrofe da humanidade.

Unger, metafísica e política


O termo “intensificação” ganhou relevância nos seus estudos de Benjamin sobre a
“verdadeira política” certamente como influência e assimilação interpretativa do pensador
judaico alemão Erich Unger (1887-1950). Unger publicou sua principal obra, intitulada
Política e Metafísica no mesmo ano (1921) em que Benjamin trabalhava em seu projeto de
um livro sobre as relações entre vida e violência.
Em janeiro de 1921 Benjamin escreve a Gerschom Scholem sobre sua inquietude
quanto às reflexões propiciadas pelos seus estudos sobre linguagem, bem como, sobre seu
empenho em concluir o trabalho sobre vida e violência. Nessa carta Benjamin relata que
logo poderá contar com o livro de Georges Sorel (Reflexões sobre a violência) na escrita do
artigo sobre política, e destaca, com empolgação, que igualmente tomou conhecimento
sobre o livro de Unger após ter assistido a duas conferências do autor. Relata Benjamin
que:

A conferência que assisti [...] me parece hoje a mais significativa


sobre a política. [...] Ontem à noite, logo após a segunda conferência,
Hüne Caro me disse ter escrito a você [G. Scholem] sobre o livro do
conferencista [Eric Unger], Política e metafísica. [...] julgo, pelo interesse
extremamente vivo que tomei pelas ideias de Unger, ao exemplo daquelas
sobre o problema psicofísico, surpreendentemente próximas as minhas,
que creio poder com toda responsabilidade vos recomendar esta obra
[...] (BENJAMIN, 1978, p.232-233, com recortes e inserções nossas)

A obra que Benjamin recomendava na época, Política e metafísica, não alcançou


grande repercussão naquele momento e ficou ainda muito tempo esquecida entre os
pesquisadores do pensamento político contemporâneo. Publicada inicialmente na década
de 1920 somente voltou a ter edições a partir da década de 1980 e quase não conta com
traduções para outras línguas além do alemão. Essa obra é o resultado das discussões de
Unger no grupo expressionista e de ativismo político chamado “Neo-Pathetike” que, na
época, era frequentado por muitos intelectuais e literatos judeus de vanguarda dos quais
muitos eram amigos e conhecidos de Benjamin5. A obra se dedica a crítica dos pressupostos
metafísicos da política moderna e analisa a condição de possibilidade da ação política atual
eficaz e não catastrófica. Para tanto, Unger estrutura seu pequeno livro em três momentos:
primeiro, a crítica da representação política referida ao psicofísico; em segundo lugar, a
definição metafísica do conceito de povo; e, por último, a exposição do esquema de uma
nova política. É característica do pensamento de Unger (e, em certa medida, partilhada
por Benjamin) uma ideia de fundo judaico de que a total cisão entre a esfera material e
metafísica da política, caracterizada pela ênfase moderna e contínua apenas às questões
econômicas, faz surgir o perigo da condução da história humana para a catástrofe. Tal
constatação de Unger se condensa originalmente na compreensão do problema psicofísico
da vida humana e nos processos de subjetivação dos indivíduos e formação da noção de
povo e de humanidade. Assim como em Benjamin, o problema reside no entendimento
político-metafísico de uma vida mais abrangente na história, onde um corpo vivo (Leib)
é pensado como superior a vida natural material (Körper). O processo de constatação da
5 Conforme relata o próprio Benjamin à G. Scholem na mesma carta de 1921 citada anteriormente.

77
Por uma política não intensificada: Walter Benjamin leitor...

catástrofe na política moderna em Unger se assemelha desse modo à crítica do poder/


violência mítica sobre a vida em Benjamin6.
Como exemplo das influências dessa obra no pensamento de Benjamin, a primeira
seção de Política e metafísica de Unger é dedicada à desconstrução das concepções modernas
da política (nos mesmos termos que Benjamin crítica o poder e a violência no direito
moderno). Esse processo de desconstrução situa-se na avaliação da correlação entre os
campos do saber, dos códigos normativos do direito e da constituição da subjetividade
(esta última orientada por uma particular avaliação do chamado “problema psicofísico”
da vida humana). Nos informa o pesquisador e tradutor italiano Paolo Primi7 que é nesse
contexto que “a figura da intensificação” elucida como a comunidade humana transgrediu
os limites entre a cultura e a natureza, entre o indivíduo e a coletividade e adotou, de modo
catastrófico, o reducionismo econômico para a orientação política de toda a vida.
Na perspectiva de Unger a intensificação da vida provocou apenas a intensificação
dos aspectos de materialidade fisiológica da vida natural humana. Assim, nesse modo de
avaliar, o núcleo do problema político está em uma universalização performativa ligada a
uma intensificação do corpo como objeto de saber e critério de relações de poder (UNGER,
2009). Por essa via, a política passa a ser compreendida apenas como a intensificação extrema
do interesse vital e a consequência desse tipo de intensificação, dentre outras coisas, é a
condução da condição de decisão humana da arena política para a arena não política do
antropológico e do existencial. Como resultado, os processos de diferenciação da vida dos
indivíduos passam a ser orientados por uma de-cisão (no sentido de provocar cisão) e que
acabam constituindo formas de vida apenas como assinaturas singulares inseparáveis de um
substrato biológico8. A “decisão” aqui é indicada como um declinar-se, uma cisão ou uma
separação em relação à possibilidade de uma “intensidade metafísica” da vida. Em outros
termos, uma concepção mítica de destino em uma vida natural culpada retorna quando se
intensifica o lado puramente biológico da vida humana. Nessa condição, a semelhança do
mito, os indivíduos passam a ter como campo de escolhas existenciais “livres” apenas aquilo
que foi previamente estabelecido e, no caso, cindido do plano metafísico.

Política e felicidade
Em vários escritos da década de 1920, Benjamin coloca a felicidade como o âmbito
central da política em contraponto a política que depende de uma concepção de vida
natural culpada. Uwe Steiner (2010, p.89) destaca que, para Benjamin, sempre que a
política tem que definir objetivos para si, esta deve limitar suas metas à ordem profana
da felicidade e que, ao fazer isso, estabelece uma condição histórica sem nenhum valor
absoluto. A felicidade, aos olhos de Benjamin, depende das relações entre indivíduos livres
e não de um plano de “ordens superiores”. O pensador berlinense estabelece desse modo
uma teleologia sem fim, sem meta final, onde o messiânico e o profano se confundem e
constituem um “dos axiomas essenciais da filosofia da história”.

De fato, essa relação [entre profano e messiânico] determina uma


concepção mística da história cuja problemática se pode apresentar

6 É o que constatam os pesquisadores Paolo Primi (no posfácio à recente tradução italiana da obra de Erich Unger) e
Carlos Pérez López (2015) no artigo “Walter Benjamin y G. Sorel: entre el mito de la huelga general y uma política
de médios puros”.
7 Observação de Paolo Primi no posfácio da obra Política e metafísica de Erich Unger. (Cf. UNGER, 2009, p.127).
8 Idem.

78
Márcio Jarek

através de uma imagem. Se a orientação de uma seta indicar o objetivo


em direção ao qual atua a dynamis do profano, e uma outra a direção da
intensidade messiânica, então não há dúvida de que a busca da felicidade
pela humanidade livre aspira a afastar-se da direção messiânica; mas,
do mesmo modo que uma força, ativada num certo sentido, é capaz de
levar outra a atuar num sentido diametralmente oposto, assim também
a ordem profana do profano é capaz de suscitar a vinda do messiânico
(BENJAMIN, 2012, p.24, com inserções nossas).

Benjamin sustenta a ideia de uma vinda do messiânico e não do Messias. Sustenta


a condição de uma temporalidade que não se consuma em uma figura superior salvadora.
Cabe lembrar que o Messias, em boa parte da tradição judaica e especialmente em
Benjamin, e diferentemente da tradição do cristianismo, não pode ser compreendido como
um homem, um santo ou um salvador, mas, sim como um tempo. Disso resulta a condição
aparentemente paradoxal da existência de um tempo messiânico com a ausência de um
Messias.
Assim, compreender a política como “realização da humanidade não intensificada”
é compreender a política como vontade de felicidade. Como demanda histórica de
atravessamento imanente do messiânico na ordem do real, na ordem do profano, como
um jogo de forças contrárias atuantes na vida de indivíduos livres. Para tanto, há a
necessidade de se avaliar a vida tensionada entre duas temporalidades distintas. Explica-
nos o pesquisador Gerard Raulet (1997, p.189) que Benjamin com isso apresenta em
seu “Fragmento teológico-político” uma radical diferenciação entre a temporalidade dos
eventos históricos e a temporalidade dos eventos messiânicos. A temporalidade histórica
se caracteriza pela tensão e pela espera em relação ao que a temporalidade messiânica pode
trazer. A temporalidade histórica constitui uma teleologia em relação aos possíveis eventos
messiânicos que ela espera. Mas esse telos é um tipo de falsa consciência, pois se somente
o Messias pode “a qualquer instante” pôr fim à espera, logo sua vinda significará uma
mudança de temporalidade que abolirá a temporalidade histórica e a própria temporalidade
messiânica.
Por fim, a característica principal de uma certa temporalidade messiânica esperada
por Benjamin é a de espera por “um mundo-que-vem” que, paradoxalmente, está neste
mundo. Essa espera messiânica toma lugar na ordem profana como busca pela felicidade
(RAULET, 1997) ou como vontade de felicidade (BIRNBAUM, 2008). A felicidade para
Benjamin é uma categoria política no sentido mais restrito não apenas devido ser parte da
ordem do profano. Pelo contrário, a subjetiva busca por uma vida feliz não é assunto apenas
para o ser humano individual, mas para o indivíduo como parte da humanidade. O que
chama a atenção são as observações apresentadas nos “Esquemas do problema psicofísico”
quanto ao papel da felicidade no processo de obtenção de uma vida histórica ligada ao
corpo vivo (Leib) da humanidade. A semelhança nos argumentos presentes nesses dois
escritos (“Esquemas do problema psicofísico” e o “Fragmento teológico-político”) reside
igualmente na discussão sobre a relação da felicidade com a noção de dissolução (Auflösung):
em ambos os trabalhos está contida a ideia de uma “vida eterna” como resultante profano
da compreensão da eterna transitoriedade (a dissolução) da vida e da, também eterna,
busca pela felicidade.
Para Benjamin, “na felicidade tudo o que é terreno aspira à sua dissolução, mas só
na felicidade ele está destinado a encontrar a sua dissolução” (BENJAMIN, 2012b, p.24.).

79
Por uma política não intensificada: Walter Benjamin leitor...

Para o filósofo, o ritmo do que ele chama de “ordem do profano”, o ritmo em direção a
dissolução lembra-nos da condição de eterna transitoriedade, mas também nos mobiliza
a reivindicar “o ritmo da natureza messiânica” como exigência de felicidade. Defende ele
que: “pois a natureza é messiânica devido à sua eterna e total transitoriedade” (Idem).
Em suma, no seu enigmático “Fragmento teológico-político”, Benjamin tenta
articular a superação de uma concepção da vida como meramente natural e culpada atrelada
a um plano mítico da política e busca, então, como alternativa de avaliação, a perspectiva da
“realização não intensificada da humanidade”. Para Benjamin, ocorre através do acontecer
histórico messiânico a “intensidade metafísica” da vida (proposta por Unger) que, a
diferença da “intensificação”, redimiria, consumaria e concretizaria a vida não somente
no plano biológico, mas como um todo vivo. Ressalta Benjamin (2012, p.23) que esse
acontecer histórico não se situa na definição do reino de Deus como “telos da dynamis
histórica”, nem tampouco pode ser definido como objetivo, mas que deve cotidianamente
ser orientado pela ordem profana da ideia de felicidade.

80
Márcio Jarek

Referências bibliográficas:
BENJAMIN, W. Arquivos Walter Benjamin de antropologia. Tradução de André-Kees
de Moraes Schouten. In: SCHOUTEN, A. Canteiro de obras: arquivos de antropologia.
Pesquisa de doutorado em antropologia social da Universidade de São Paulo, 2012b.
Disponível em: <http://arquivoswbdeantropologia.net.br>. Acesso em: 20 set. 2015.
_____. Correspondance (1910-1928). Volume I. Traduction par Guy Petitdemange. Paris:
Aubier Montaigne, 1978.
_____. Gesammelte Schriften. VI. Hrsg. von Rolf Tiedemann und H. Schweppenhaüser.
Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1991.
_____. O anjo da história. Organização e tradução de João Barrento. Belo Horizonte:
Autêntica, 2012.
_____. O capitalismo como religião. Organização de Michel Löwy e tradução de Nélio
Schneider e Renato Ribeiro Pompeu. São Paulo: Boitempo, 2013.
BERDET, M. Walter Benjamin: la passion dialectique. Paris: Armand Colin, 2014.
BIRNBAUM, A. Bonheur justice Walter Benjamin: le détour grec. Paris: Payot, 2008.
CHAVES, E. No limiar do moderno. Um estudo sobre F. Nietzsche e Walter Benjamin. Belém:
Paka Tatu, 2003.
LÓPEZ, C. P. Walter Benjamin y Georges Sorel: entre el mito de la huelga general y una
política de medios puros. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Universidade Estadual
Paulista (Unesp), Marília, v. 38, n. 1, p. 213-238, Jan./Abr., 2015. Disponível em: <http://
dx.doi.org/10.1590/S0101-31732015000100012>. Acesso em: 10 jun. 2018.
RAULET, G. Le caractère destructeur: esthétique, théologie et politique chez Walter Benjamin.
Paris: Aubier, 1997.
STEINER, U. Walter Benjamin: an introduction to his work and thought. Translated by
Michael Winkler. Chicago: University of Chicago Press, 2010.
UNGER, E. Politica e metafisica. Traduzione e postfazione di Paolo Primi. Napoli:
Cronopio, 2009.

81
O grande jogo da mentira e do cinismo

O grande jogo da mentira e do cinismo

Maria Cristina Müller1

Introdução
A mentira e a propaganda, baseada em boatos, parece que se aliaram para elaborar
uma atmosfera de irrealidade, em que os indivíduos são incapacitados a reconhecer a
realidade e a diferenciar fatos e ficção, tornando-se inábeis para julgar os fatos políticos.
As discussões próprias do espaço público parecem ser ignoradas, uma vez que a opinião
pública, o testemunho e a ponderação dos diversos pontos de vista inexistem. A política,
como espaço entre-os-seres humanos, espaço do aparecimento da pluralidade, da distinção
e, portanto, da liberdade, é aniquilada. Neste contexto, pergunta-se como a irrealidade e
a ficção tomam o lugar da realidade e dos fatos e por que a mentira parece preferível à
verdade fatual. Objetiva-se discorrer sobre o significado da verdade fatual e da mentira
na política, apontando para os inconvenientes que a falsidade deliberada pode assumir no
domínio público. Parte-se das digressões de Hannah Arendt acerca da verdade fatual e da
mentira na política moderna.
Não causa espanto a vitória da ficção sobre os fatos. Não se trata de uma exclusividade
do século XXI e da explosão da comunicação via internet. Hannah Arendt tratou da mentira
na política e do uso da propaganda em ocasiões diversas. Em 1951, quando da publicação
da obra Origens do totalitarismo, descreve como as massas sucumbiram ao jogo da mentira e
do cinismo – como recusa em acreditar na verdade – como meio de orientação no mundo,
salientando que o fizeram como escolha deliberada. Na década de 1960 escreveu o texto
Verdade e política, após a pseudocontrovérsia provocada pela publicação de Eichmann em
Jerusalém, em que Arendt foi duramente criticada por ter apresentado os fatos – colaboração
dos conselhos judaicos nas ações criminosas dos nazistas. Arendt, diante do que presenciou
no Tribunal e dos documentos, precisava falar a verdade e acreditou no adágio “Fiat veritas,
et pereat mundus?”; Arendt aposta na incontestável verdade fatual e pergunta-se se é legítimo
dizer a verdade. Na década de 1970 escreveu A mentira na política: considerações sobre
os Documentos do Pentágono, em que discute a tomada de decisões nas questões que
envolviam os Estados Unidos na Indochina desde a Segunda Grande Guerra Mundial até
maio de 1968 e a proliferação da mentira em todos os setores civis e militares do governo.
O artigo será dividido em duas partes. A primeira versa sobre a propaganda, a
irrealidade e a ficção e o texto de referência é Origens do totalitarismo. A segunda trata
especificamente da mentira na política. Os textos de Arendt que servirão de referência são:

1 Doutora Filosofia UFSCar/SP; Mestre Filosofia PUCPOA/RS; Professora PPGFIL da UEL/PR; Estágio
Pós-Doutoral PPGFIL da UFG/GO (2018-2019)

82
Maria Cristina Müller

Verdade e política, A mentira na política: considerações sobre os Documentos do Pentágono


e Diario Filosófico.
A hipótese que orienta a investigação aponta para o potencial de sucesso da falsidade
deliberada – mentira – no âmbito da política em detrimento da verdade fatual, embora a
tomada de posição precise estar alicerçada nos fatos e não em embustes. Arendt assinala
que a verdade fatual pode até ser destruída pelos governantes ou poderosos, mas jamais
substituída; os fatos são inflexíveis, irreversíveis. No entanto, mesmo que a mentira seja
preferível à verdade, o grande problema na sociedade moderna não é a substituição da
verdade fatual pela mentira ou as mentiras se tornarem verdades, mas o cinismo se tornar
o modo como todos se orientam no mundo, isto é, a recusa em acreditar na verdade.

A propaganda, a irrealidade e a ficção


Na Alemanha nazista, as massas preferiram a ficção ao invés da verdade dos fatos.
Deste modo, pode-se tomar a análise de Arendt sobre a propaganda nazista para compreender
a predominância da mentira sobre a verdade fatual. Sabe-se que o movimento totalitário
atingiu seu ápice quando os indivíduos não estabeleciam mais contato entre si, nem com a
realidade do mundo que os circundava. É no contato entre as pessoas, é no confronto entre
as opiniões, que o indivíduo confirma sua identidade única e distinta e percebe a realidade
de si mesmo e do mundo. É no espaço público, espaço da política, aquela dimensão que se
estabelece entre os seres humanos quando eles agem em concerto, que a realidade e os fatos
aparecem e se confirmam. Por isso que os governos autoritários – tiranias, totalitarismos
– necessitam destruir qualquer possibilidade de vida pública. A eliminação do espaço
público é um pré-requisito para se estabelecer a dominação. O recolhimento das pessoas
na sua individualidade “egoística” gera a impotência. Eliminando-se os espaços de contato
político, elimina-se a capacidade humana para ação e, consequentemente, para a resistência
a qualquer possibilidade de dominação. O espaço público é o espaço da pluralidade, da
diversidade de opiniões; logo, os governos autoritários precisam suprimi-los. O totalitarismo
não se satisfaz apenas com a destruição do espaço público, necessita destruir também a
vida privada. Para a obtenção do domínio total, o regime totalitário mina as relações sociais
privadas embasadas na confiança, extirpa a singularidade humana e, com isso, a diversidade.
O resultado da destruição da vida pública e privada para o indivíduo é a “[...] experiência
de não pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais e desesperadas experiências que o
homem pode ter.” (ARENDT, 1997, p. 527). Ao se destruir a possibilidade de participação
no mundo público, de criar e iniciar algo novo no mundo comum por sua própria iniciativa
singular e única, destrói-se a própria dignidade humana. O ser humano se atomiza. A
solidão – o estar apartado de todos e inclusive de si mesmo, da sua capacidade de dialogar
consigo mesmo – é o fundamento para o terror e a essência dos governos totalitários.
Arendt assinala que ainda resta uma outra capacidade humana, que independe
do Eu, dos Outros – pluralidade – e do Mundo: a capacidade do raciocínio lógico. O
raciocínio lógico não precisa da experiência nem do pensamento, permanecendo sem medo
de errar. O raciocínio lógico parte de uma premissa evidente por si mesma e, utilizando
regras elementares de evidência irrefutável – que independem da aceitação dos demais e da
existência de qualquer experiência material que o prove –, chega a conclusões necessárias;
tal capacidade continua atuante mesmo na absoluta solidão. Assim, Arendt (1997, p. 529)
alerta para o fato de que, utilizando justamente essas duas características, raciocínio lógico e
solidão, os regimes totalitários conseguiram submeter milhares de pessoas ao domínio total.

83
O grande jogo da mentira e do cinismo

Referindo-se a Martin Lutero, Arendt diz que ele já havia compreendido a semelhança
existente entre processos de pensamento que tomam a lógica como característica e a
solidão, quando disse que: “não é bom que os homens estejam sós”; “o homem solitário
sempre deduz uma coisa da outra e sempre pensa o pior de tudo” (ARENDT, 1997, p. 530).
A solidão passou a fazer parte do cotidiano das massas do século XX e, enquanto
experiência diária, preparou os indivíduos pertencentes ao mundo não totalitário para a
dominação total. Junto à solidão, o terror e a propaganda foram utilizados como parte da
“guerra psicológica” dirigida à massa para a obtenção da dominação. Não é propósito aqui
discutir o terror, mas é preciso destacar que o terror é mais avassalador nessa guerra; ele
perdura e subsiste para além da propaganda e é empregado em uma população absolutamente
subjugada. A propaganda é fundamental para criar a atmosfera ideal de dominação, mas
deixa de ter relevância quando o reino do terror atinge a perfeição (ARENDT, 1997, p.
393).
Arendt assevera que a propaganda nazista se tornou perita em captar o anseio das
massas pela coerência; a lógica como fundamento foi adequada pois oferecia àquilo que
era absurdo e desproporcional uma máscara de normalidade. Essa normalidade e coerência
eram legitimadas no regime bolchevista pelas “confissões” dos pseudotraidores e no regime
totalitário pelo “pedantismo da legalização de crimes por meio de leis retrospectivas e
retroativas” (ARENDT, 1997, p. 402). A coerência atendia às necessidades da mente
humana solitária e pagava o preço da irrealidade. Para isso a pura imaginação era suficiente
e fornecia a coerência e a segurança que a massa, desarraigada e desintegrada, não encontrava
na vida real. A vida humana no mundo real está sujeita ao imprevisível, aos tropeços que
fatalmente acontecem, à rotina sufocante, aos aborrecimentos cotidianos e inevitáveis do
dia a dia. O mundo real não é lógico, não é coerente, não é organizado como é o mundo da
ficção. A ficção pode fornecer um mundo de imagens belas, mesmo que falsas. E assim, um
mundo absurdamente imaginário deu lugar ao mundo real; esse mundo irreal foi oferecido
pela propaganda. Os movimentos totalitários entenderam que a força da propaganda reside
exatamente na capacidade de isolar as massas do mundo real: “O súdito ideal do governo
totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já
não existe a diferença entre o fato e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença
entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento)” (ARENDT, 1997, p. 526).
As perguntas que se impõem são: como a propaganda nazista ultrapassa o precipício
existente entre a ficção e a realidade? Como a ficção coloniza de maneira tão absoluta a
massa a ponto de ela renunciar à realidade e à verdade fatual?
O único resquício de mundo real que permanece são as lacunas, os pontos fracos, os
boatos que a massa não ousa contradizer; aquilo que não pode ser discutido em público.
A propaganda sabe que, para suas mentiras terem sucesso, precisa de um ponto de ligação
com a realidade. As massas não são conquistadas pela mera demagogia de um bom orador,
mas precisam de um elemento palpável e plausível que sirva de fundamento e ligação
com o real; deste modo, a criação de um mundo absolutamente fictício poderá obter a
credulidade das massas. O terror é diferente neste aspecto, pois pode se manter à base da
mera ficção.
A propaganda totalitária não tinha qualquer receio de que a verdade viesse à tona,
pois não tinha por objetivo persuadir, mas organizar as massas e dar-lhe a coerência que
tanto desejavam. Bastava que a ficção tivesse coerência para que a generalização sobrevivesse

84
Maria Cristina Müller

à verdade; de nada adiantava desmascarar as mentiras contadas pela propaganda com tanta
coerência, assevera Arendt. A coerência era artificial e só a ficção podia oferecê-la em um
mundo em que a verdade fatual – os fatos – não interessava. A propaganda é especialista
nesta arte que, ao mesmo tempo, usa e transcende o real e a experiência demonstrável; tudo
é generalizado numa artificialidade tal que o indivíduo não exerce qualquer controle. O
mundo fictício – perfeito – criado pela propaganda compete com o mundo real, imperfeito;
é obvio que o mundo “perfeito” desenhado pela propaganda vence essa disputa. Aquilo
que a propaganda diz como “verdade” não necessita de demonstração, portanto toda e
qualquer tentativa de usar argumentos racionais para demonstrar a falsidade não surte
o efeito desejado. A propaganda transforma a suposição – a mentira – em elemento
da realidade. Os nazistas agiam como se o mundo fosse dominado pelos judeus e que
eles precisavam defender o mundo de tal conspiração; entendiam o racismo como uma
realidade prática, não como uma teoria – pseudocientífica – plausível de falibilidade. As
verdades que professavam e as ideologias que seguiam eram compreendidas como verdades
infalíveis contra as quais ninguém levantaria qualquer dúvida; ou seja, o que é verdadeiro
não necessitava de demonstração.
Diante do que foi apresentado, algumas perguntas ainda se impõem: como, nas
democracias modernas, a sedução ou escolha pela irrealidade e pela ficção permanecem,
uma vez que o terror não é a arma principal para a submissão e a dominação como foi
nos regimes autoritários analisados acima? O que permanece na atmosfera dos regimes
democráticos que se assemelha à atmosfera dos regimes autoritários e que permite mais
uma vez a opção pela ficção e pela irrealidade? Por que a ficção é tão sedutora e capaz
de substituir rapidamente a verdade fatual? É preferível a mentira à sinceridade ou à
veracidade? Por quê?

Mentira e política
A mentira interessa a esta pesquisa no que diz respeito à preservação ou não da res
publica, ou seja, à liberdade e à preservação do espaço público como espaço do aparecimento,
da pluralidade, da opinião pública, e de que modo a mentira pode prejudicá-lo. Neste
sentido, as questões que orientam a discussão nessa segunda parte da investigação dizem
respeito a como aceitar a mentira como meio legítimo, utilizado desde tempos imemoriais,
para alcançar objetivos políticos e como o uso da mentira pode encaminhar para a
destruição do espaço público e da política por destruir a verdade fatual. Essas perguntas
ligam-se com a discussão anterior: o uso da mentira pela propaganda totalitária como
instrumento de dominação e a opção deliberada pela irrealidade e ficção. Outra questão
importante se impõe: que dano o poder político é capaz de infligir à verdade fatual? Nesse
sentido, a verdade que interessa abordar aqui não é a verdade racional, mas a verdade fatual.
É importante esclarecer que não é objetivo tratar de valores morais e do vício da mentira;
o ponto de vista não é o da ética, mas o da política.
Talvez a primeira justificativa do uso legítimo da mentira pelo governante com
benefícios para a comunidade seja a apresentada por Platão no texto A República. No
livro II (382 c.), Platão assevera que a mentira, expressa por meio de palavras, em certos
contextos, pode ser útil e benéfica, como quando usada contra os inimigos ou quando é
preciso dissuadir um amigo a cometer uma ação má. No livro III (389 b. e c.) retoma a ideia
do uso da mentira como uma espécie de medicamento, deixa clara a ideia de que a mentira
pode ser usada contra os inimigos e concidadãos em benefício da comunidade; contudo,

85
O grande jogo da mentira e do cinismo

nenhuma outra pessoa está autorizada a fazê-lo a não ser o médico, no caso, o governante;
ainda adverte que, se o cidadão mentir ao governante, isso será considerado grave, uma vez
que a verdade sempre é preferível. O ensinamento platônico foi adotado pela argumentação
e prática política sem qualquer receio; o governado deve ser veraz e o governante pode, em
determinadas circunstâncias, adotar a mentira, desde que em benefício da comunidade; a
isso chamaremos de tradicional mentira política.
Maquiavel, em O príncipe, emancipa definitivamente a política da moral e consolida
teoricamente o que era uma prática aceitável. Maquiavel demonstra, a partir da experiência
histórica, que a política exige a força (do leão) e a astúcia (da raposa); para triunfar, o
príncipe deveria focar nos resultados satisfatórios das ações e não na salvação da sua alma.
Isso não significa, contudo, que o príncipe deve ser propositalmente cruel; ao contrário,
deve praticar o bem sempre que possível; o mal só pode ser praticado quando necessário.
Maquiavel se opôs à convicção medieval de que o bom governante era aquele que seguia a
moral cristã. No entanto, se na política é admitido o jogo da mentira, isso não significa que
ela foi colocada ali por uma mente pecaminosa ou diabólica.
A despeito dos filósofos que tratam da ética e classificam a mentira como vício e da
maioria das religiões que a condenaram em certo grau, a mentira sempre foi admitida na
política. As principais virtudes políticas são a coragem e a habilidade, a força e a astúcia
propostas por Maquiavel. A veracidade ou a sinceridade nunca foram consideradas virtudes
políticas. Divergir dessa prática na política com algum tipo de recurso moral está fadado
ao insucesso, pois a mentira sempre foi uma ferramenta do político, do demagogo e do
estadista.
É importante esclarecer que o tipo de política de que falam Platão e Maquiavel é
a política entendida como arte – arte de governar – e como tal usa a lógica meio-e-fins
para atingir seus objetivos. Nesse caso, é compreensível o uso da mentira em substituição
à violência ou do embuste como estratégia de guerra contra adversários. A diplomacia,
com suas estratégias de dissimulação, usa a tradicional mentira política, as traduzindo
como segredo, sigilo, discrição e arcana imperri (mistérios do governo). O embuste como
falsidade deliberada – mentira – é amplamente usada e justificada. No entanto, esse tipo
de falsidade deliberada era usado para casos particulares e pontuais, em geral, para iludir o
inimigo; isso concedia à mentira um certo atenuante, fruto de circunstâncias que preferiam
a dissimulação à violência.

[...] a mentira tradicional referia-se apenas a particularidades e nunca


visava a iludir, literalmente, todas as pessoas; ela se dirigia ao inimigo
e visava a iludir apenas a ele. Essas suas limitações restringiam tanto o
dano infligido à verdade que, para nós, em retrospecto, ele pode parecer
quase inócuo (ARENDT, 1992, p. 312).

É importante compreender, segundo Arendt (2004, p. 14), que a falsidade deliberada


trata de fatos contingentes, nunca de verdades inerentes – que trazem em si a verdade. Os
fatos têm como característica a contingência e poderiam ser diferentes do que são. Arendt
(1992, p. 283) explica que os fatos e eventos resultam da condição de os seres humanos
viverem juntos e agirem nesse mundo. São os fatos que fornecem a “textura” do domínio
político. Para que os fatos tenham plausibilidade, eles necessitam de testemunhas; elas
contam e recontam o acontecido, gerando a memória, as lembranças; portanto, os fatos
sempre precisam do espaço dos assuntos humanos que os receba e abrigue. A verdade fatual

86
Maria Cristina Müller

só existe se se fala sobre ela, mesmo quando ocorre no domínio do privado, na intimidade.
Por isso é que as coisas precisam ser faladas, discutidas, ditas. A contingência fornece
aos fatos muita fragilidade – tudo poderia ter sido diferente. Deste modo, a dúvida é
permanente e, junto à dúvida, vem a ansiedade própria de quem é livre; não há certeza, não
há obrigatoriedade e previsibilidade, tudo poderia ser diferente do que é. Arendt explica
que essa fragilidade dos fatos permite que o embuste – mentira – seja tão fácil e tentador.
A mentira – o embuste – lida com fatos; ela não precisa entrar em conflito com
a razão – que busca significado, não verdade como o intelecto –, pois tudo poderia ter
acontecido exatamente como o mentiroso contou. Estamos habituados à contingência
dos fatos, preparados a lidar com o inesperado e o imprevisível. Além disso, a mentira
tem uma grande vantagem, pois o mentiroso, um bom ator por natureza, pode contar o
embuste tomando o cuidado de deixar a narrativa muito mais plausível do que seria um fato
efetivamente ocorrido; a narrativa pode contar uma história perfeita, exatamente como o
ouvinte gostaria de ouvir. As pessoas sempre estão à espera do que lhes agrada e reconforta.
A avaliação do ouvinte é construída a partir de crenças e preconceitos preexistentes; deste
modo, o mentiroso pode efetivamente criar uma ilusão tão encantadora como foram
os mitos no passado. Nunca esperamos que a narrativa seja mentirosa, somos crédulos;
confiamos na comunicação humana. Muitas vezes a mentira pode parecer mais plausível
que a verdade, pois o mundo existente – “real” – onde as relações humanas se efetivam e
não são fantasiosas, está sempre acompanhado da imprevisibilidade, da contingência, da
falibilidade humana, do acaso, do inesperado.
A capacidade da mentira, tal qual a capacidade da ação, precisa da imaginação para
existir. A imaginação permite a substituição daquilo que está estabelecido pelas infinitas
possibilidades do novo, do inédito, permite sermos removidos mentalmente do lugar comum
para o lugar imaginado e permite imaginar que as coisas podem ser diferentes do que são. A
atividade da ação precisa da imaginação como potencial para iniciar o novo no mundo, tal
qual a mentira. Ação e mentira estão interligadas pela imaginação. Curioso perceber que a
mentira e a ação são igualmente livres e podem trazer a novidade para o mundo.
Acredita-se que a farsa pode ser facilmente percebida e derrotada bastando sobrepor
a ela a realidade dos fatos. Em situações normais isso bastaria, pois a realidade dos fatos
sempre é mais forte, visto que mais cedo ou mais tarde os fatos viriam à tona e suplantariam
o mentiroso e seu ardil. Contudo, em situações em que a normalidade perdeu o sentido,
como nos regimes totalitários ou quando as fake news invadem o mundo, a realidade dos
fatos não é suficiente. Estamos falando das modernas mentiras políticas, das falsidades
deliberadas usadas para iludir, trapacear e enganar.
A moderna mentira política manipula os fatos em escala massiva. A mentira política
moderna não lida com segredos ou dissimulações particulares, mas com coisas que são
conhecidas de todos. As contradições existentes nas inúmeras mentiras que disseminam e
que poderiam ser percebidas com a confrontação entre os fatos desaparece de dois modos:
i) ocultar os fatos ao reescrever a história, mas isso é bastante difícil, pois hora ou outra
alguma testemunha ocular ou algum documento esquecido poderia denunciar o embuste;
é muito improvável que seja possível substituir todos os documentos por novas falsificações
toda vez que o governante necessita alterar os fatos; ii) destruí-los, uma medida mais
radical. A eliminação dos dados e documentos, o assassinato das testemunhas e dos
“inimigos” e a destruição do próprio status humano (a não pessoa) aniquilam qualquer

87
O grande jogo da mentira e do cinismo

possibilidade do contraditório. Por isso é tão importante para os regimes totalitários


destruírem o espaço público e o mundo comum. Sem um mundo comum, que nos permite
compartilhar impressões e pontos de vistas, sem o contraditório, não é possível refletir e
diferenciar o fato da mentira. Os fatos passam a ter outra cara e a linha divisória entre
verdade e falsidade desaparece por completo. A essa altura, como a vida está em jogo, os
indivíduos passam a agir como se acreditassem nos fatos, ou seja, acreditam nas próprias
mentiras, tornando-as verdades.

[...] o que é mais perturbador, se as mentiras políticas modernas são tão


grandes que requerem um rearranjo completo de toda a trama fatual,
a criação de outra realidade, por assim dizer, na qual elas se encaixem
sem remendos, falhas ou rachaduras, exatamente como os fatos se
encaixavam em seu próprio contexto original, o que impede essas novas
estórias, imagens e pseudofatos de se tornarem um substituto adequado
para a realidade e fatualidade? (ARENDT, 1992, p. 313).

Nada impede que as imagens e os pseudofatos sejam tomados como realidade e


substituam a fatualidade. Os governos totalitários e as ditaduras já provaram que isso é
possível. O totalitarismo nazista constantemente alterava seus arquivos com falsificações
que se adequavam à “realidade” do momento. Por si só essas substituições servem como
indício do caráter mentiroso desses sistemas, quem acredita num mentiroso confesso? No
entanto, a verdade não se torna relevante a ponto de vir à tona e fazer com que as máscaras
caíam. Absurda e paradoxalmente, a mentira é substituída pelo cinismo. Arendt explica
que a longo prazo o resultado da lavagem cerebral a que todos – as massas e as elites nos
governos totalitários – foram submetidos com as constantes mentiras os leva a recusa em
acreditar na verdade de qualquer coisa, ou seja, o sentido de orientação é aniquilado. E,
para isso não há remédio. Como saber que se trata de uma mentira, se não há ponto de
referência que auxilie na tomada de posição individual no mundo?
É possível derrotar a mentira se observado o tempo modal que ela manipula. A
mentira opera com o fazer crer; acredita-se em fatos passados; a mentira sempre está em
retrospectiva. O mentiroso não pode antecipar ou antever as transformações que todos
desejam e os fatos que o público quer eliminar. A ação, por outro lado, lida com o que
está por vir; a ação inicia, traz o inédito, lida com o que vai nascer. Assim, a política, como
espaço da ação, tem como força estabilizadora a possibilidade de transformar e substituir o
que está posto: a política pode trazer o novo no mundo. A aposta continua sendo no futuro
e na imprevisibilidade que esse futuro guarda, apesar de toda mentira passada. Quem sabe
o mentiroso seja desmascarado!
Arendt observa que, estranhamente, ao mesmo tempo que os fatos são inflexíveis
– no sentido de que a realidade fatual é irreversível – guardam uma elasticidade vinda
da contingência: tudo poderia ter sido diferente do que foi. O que ocorreu não pode ser
alterado, mas poderia ter sido diferente – inflexibilidade e contingência. A inflexibilidade
permite que os fatos sejam superiores a qualquer poder. Mesmo assim, dependendo das
atitudes políticas, eles podem ser transformados em resultados necessários, que não podem
ser evitados, ou negados, eliminados do mundo.
Apesar de a mentira e o cinismo parecerem ganhar o jogo, quem detém o poder é
incapaz de encontrar um substituto para a verdade; ele pode usar a persuasão ou violência
para ocultar e destruir a verdade, mas jamais poderá substituí-la. Arendt afirma que a

88
Maria Cristina Müller

realidade é diferente e mais do que a totalidade dos fatos, por isso é inaveriguável. A realidade
não é simples ou fácil, pois nela está a contingência inerente aos fatos; a questão é que a
sociedade moderna se recusa aceitar a contingência e prefere a pílula vermelha do Matrix.
Arendt aposta na possibilidade da compreensão; mesmo que os fatos sejam manipulados,
ocultados ou destruídos, a verdade pode ser narrada e, deste modo, compreendida.

Considerações finais
Quando a verdade fatual corre o perigo de ser ardilosamente eliminada do mundo
(ARENDT, 1992, p. 287), a questão passa a ser política, uma vez que os fatos informam
a opinião. Fatos e opiniões não são a mesma coisa, embora não sejam antagônicos; ambos
pertencem ao domínio público e precisam da discussão pública. A diferença está na
compreensão de que fatos são inflexíveis e as opiniões dependam do acordo livre. Para haver
opinião é preciso que o tema seja avaliado sob diversos ângulos; é preciso as informações,
os fatos, as testemunhas, a narração; quanto mais pessoas puderem contribuir com seus
pontos de vistas, mais clara será o juízo e mais próxima da verdade será a opinião. Por
outro lado, não é possível confundir a verdade fatual com a opinião no sentido de tornar
os fatos objetos de debate. Os fatos são despóticos, inflexíveis, eles constrangem. Todavia,
se os fatos forem manipulados, não é possível a opinião legítima. Nesse caso a liberdade
de opinião não passa de uma farsa, uma falsidade. A verdade fatual informa o pensamento
político que se dá no domínio público quando do embate das opiniões (ARENDT, 1992,
p. 295).
Para que haja compreensão e juízo correto, deve haver informação exata e
honesta; os fatos não podem ser manipulados nem pelo poder nem pela imprensa. Nas
democracias, a imprensa exerce papel fundamental, pois deve esclarecer, nunca confundir,
como Karl Jaspers discorreu brilhantemente em A opinião pública, contido em Introdução
ao pensamento filosófico. Todos têm direito à plena informação e direito à publicização;
deste modo, a imprensa pode ser o quarto poder, desde que esclareça e não confunda ou
dissimule. A liberdade de opinião é farsa se as informações inexistem ou se as informações
são dissimuladas.
É quase impossível que um fato importante dissimulado por mentiras cabais seja
algum dia redescoberto; nesse caso, as opiniões igualmente serão enganosas. É só nesse
caso que a verdade atua, quando ela precisa derrotar a mentira organizada; no entanto,
quando todos mentem, a verdade sempre estará em desvantagem (ARENDT, 1992, p.
310). Quando não há transparência, quando há segredos e dissimulações, a res publica
sucumbe, pois as relações humanas se dão tendo por fundamento a confiança e a boa-fé
e essas proíbem a mentira. O contrário da mentira é a sinceridade e o mundo público
precisa de sinceridade. Arendt, no Diario filosófico (2006, p. 1066-1067), faz referência a
Montaigne e a obra Ensaios: Nem sempre se deve dizer tudo, pois seria tolice; mas o que
se diz, é preciso que seja tal como pensamos, senão é maldade. Sinceridade não significa
crueldade, uma vez que a doçura e a gentileza sempre são mais recomendáveis; no entanto,
a linha tênue entre mentira e gentileza não pode ser confundida. Arendt (2006, p. 609-611)
alerta que a questão política que se impõe é: qual é a minha obrigação frente ao mundo
quando a verdade entra em conflito com o mundo, principalmente quando o mundo está
assentado em uma mentira?

89
O grande jogo da mentira e do cinismo

Referências bibliográficas:
ARENDT, Hannah. A mentira na política: considerações sobre os Documentos do
Pentágono. In: _____. Crises da república. 2º ed. Tradução José Volkmann. São Paulo:
Perspectiva, 2004.
_____. Diario filosófico: 1950–1973. 2º ed. Editado por Ursula Ludz e Ingeborg Nordmann.
Trad. Raúl Gabás. Barcelona: Herder, 2006. Volume I e II.
_____. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. Trad. Roberto
Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
_____. Verdade e política. In: _____. Entre o passado e o futuro. 3. ed. Trad. Mauro W. B. de
Almeida. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992.
JASPERS, Karl. Introdução à filosofia de Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2015.
LAFER, Celso. A mentira: um capítulo das relações entre a ética e a política. Arte Pensamento,
1992. Fonte: https://artepensamento.com.br/item/a-mentira-um-capitulo-das-relacoes-
entre-a-etica-e-a-politica/. Acesso em 11/10/2018 9h30min.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Trad. Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Martins
Fontes, 1993.
MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Trad. Sergio Milliet. São Paulo: Editora 34, 2016.
PLATÃO. A República. 7. ed. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 1993.

90
Olaya Fernández Guerrero / Juan Manuel Aragüés Estragués

Sobre la articulación de subjetividades antagonistas: Los conceptos


y los afectos

Olaya Fernández Guerrero1


Juan Manuel Aragüés Estragués2

1. Introducción: en torno a la construcción de una subjetividad antagonista


La construcción de subjetividad es la batalla fundamental de la política
contemporánea. El poder es muy consciente de ello y dedica grandes esfuerzos en esa
dirección. En este contexto, los medios de comunicación se han convertido en una gran
máquina de construcción de subjetividad ajustada a los intereses del capitalismo posfordista.
El sociólogo español Jesús Ibáñez lo definía de manera precisa: “el individuo es el objeto más
cuidadosamente fabricado por el sistema capitalista” (1986, p. 58). De ahí que abordar una
política antagonista exija pensar procedimientos para construir subjetividad antagonista.
Aquí se aborda una reflexión sobre dos estrategias que apuntan en esa dirección y se
complementan entre sí. Primero se examinarán, siguiendo a Judith Butler, las posibilidades
de resistencia que surgen en el contexto discursivo a partir de la reapropiación de ciertos
conceptos, ensanchando sus límites semánticos o mostrando su insuficiencia para etiquetar
la realidad. La segunda estrategia atañe a los mecanismos de articulación de multitudes,
que puede lograrse mediante una combinación de elementos racionales y afectivos donde
las ‘pasiones alegres’, en sentido spinoziano, dan cohesión y solidez a esas colectividades
que reivindican nuevos espacios y nuevos tiempos en el ámbito de la polis.

2. Discursos antagonistas y prácticas performativas subversivas


Para empezar a cartografiar el territorio de las subjetividades antagonistas, una de
las primeras coordenadas la hallamos en Judith Butler. Esta autora revisa el concepto de
subjetividad, problematiza sus límites y busca los modos más efectivos de crear un ‘discurso
de la insurrección’ (BUTLER, 1997b) basado en ensanchar esos límites y resignificar la
subjetividad para dar cabida en ella a todos los elementos que han sido excluidos en la
formulación moderna del ‘sujeto’. Siguiendo a Foucault, investiga los procesos por los que
se define la ‘normalidad’, detecta sus inconsistencias y explora las opciones de resistencia
que emergen del discurso de la ‘verdad’. Asume como punto de partida que el sujeto deviene
inteligible culturalmente a partir de su identificación con los términos que lo describen,
pues “existen prácticas reguladoras que generan identidades coherentes” (BUTLER, 1990,
p. 17) y que actúan produciendo la subjetividad de los cuerpos que gobiernan. Toda creación
de identidad descansa sobre sistemas oposicionales, categorías dicotómicas que clasifican

1 Doctora en Filosofía / Departamento de Ciencias Humanas; Universidad de La Rioja


2 Doctor en Filosofía / Departamento de Filosofía; Universidad de Zaragoza, Campus San Francisco

91
Sobre la Articulación de Subjetividades...

a los individuos. Esas taxonomías se basan en variables discretas, mutuamente excluyentes


-hombre o mujer, homosexual o heterosexual…- y con pretensiones de exhaustividad.
El poder -entendido como biopoder- opera intensamente sobre los individuos
y se filtra por los intersticios de los cuerpos y las vidas, de modo que “el poder no es
simplemente aquello a lo que nos oponemos sino también, en un sentido fuerte, aquello
de lo que dependemos para nuestra existencia y aquello que albergamos y preservamos en
el ser que somos” (BUTLER, 1997a, p. 2). Toda subjetividad surge de la interacción con el
poder explicitado en las palabras que nos nombran: “la sujeción consiste precisamente en
esta dependencia fundamental de un discurso que nunca elegimos y que, paradójicamente,
inicia y sustenta nuestra agencia” (BUTLER, 1997a, p. 2). Foucault y Butler consideran que
no puede concebirse al individuo al margen de las relaciones de poder en que está inmerso,
ni prescindiendo de los saberes que se producen sobre él en el seno de esas relaciones.
Subjetividad e identidad surgen como resultado de la incardinación en ese entramado,
puesto que “el individuo se constituyó en la medida en que la vigilancia ininterrumpida, la
escritura continua y el castigo virtual dieron marco a ese cuerpo así sojuzgado y le extrajeron
una psique” (FOUCAULT, 2005, p. 67). La visibilidad y la enunciabilidad son los nodos
que establecen la inteligibilidad de los sujetos (FERNÁNDEZ GUERRERO, 2017).
Sin embargo, esas prácticas de dominación nunca logran inscribirse en los
cuerpos de manera definitiva, porque “no es posible escribir ‘al’ cuerpo, o escribir ‘el’
cuerpo, sin rupturas, giros, discontinuidades (discreción), ni tampoco sin incoherencias,
contradicciones, rupturas del discurso en sí” (NANCY, 1992, p. 21). Esas grietas que se
abren entre el cuerpo y la palabra pueden ser un punto de apoyo para generar resistencias
críticas. Surge la paradoja de que “el poder es a la vez externo al sujeto y el propio lugar
del sujeto” (BUTLER, 1997a, p. 15), sin que sea fácil deslindar dónde empieza y dónde
acaba la interioridad y la exterioridad con respecto a ese poder. Esta ambivalencia se debe
a que “el sujeto se constituye a partir de la fuerza de exclusión y abyección, que produce
un ‘afuera’ constitutivo del sujeto, un ‘afuera’ abyecto que es ‘interior’ al sujeto al modo
de su propia repudia fundante” (BUTLER, 1993, p. 3). Nombrar es delimitar, marcar
convencionalmente una parcela de la realidad a la que ese nombre refiere, pues la escritura
“crea el sentido al consignarlo, al conferirle un peso” (DERRIDA, 1967, p. 24). Ese acto
deíctico fundante siempre deja fuera de sí la diferencia.
Ese ‘afuera’, ese ámbito de alteridad inherente a todo proceso de conceptualización,
ofrece un potencial antagonista que resulta útil para nuestro propósito. La noción de sujeto
está bajo sospecha, pues lo que se entiende por ‘sujeto’ es el resultado de la sedimentación
de normas y costumbres que se adscriben a los cuerpos y les confieren sentido con respecto
a un marco sociocultural de referencia. El nombre etiqueta y legitima los sujetos viables,
pero nombrar es asimismo un ejercicio de poder, un acto represivo que delimita el dominio
de la inteligibilidad y excluye e invisibiliza todo aquello que queda fuera de ese campo.
Ese proceso da lugar a un ‘afuera’, un espacio marginal al que queda relegado “lo no
narrativizable, lo traumático” (BUTLER, 1993, p. 188). Pero ese ‘afuera’ ofrece opciones de
resistencia frente a la dominación que las palabras nos imponen, y puede funcionar como
‘suelo ontológico’ que fundamente una teoría y una praxis antagonistas, puesto que “lo
que es rechazado en la formación del sujeto continúa determinando a ese sujeto, prevalece
como una negatividad definitoria” (BUTLER, 1993, p. 190). Se entabla así en el núcleo del
sujeto una relación dialéctica con un ‘afuera’ de límites difusos, conformado por elementos
proscritos, abyectos o a-normales que, no obstante, constituyen al individuo y le confieren

92
Olaya Fernández Guerrero / Juan Manuel Aragüés Estragués

una identidad inestable, discontinua y dinámica. Asumir que “los sujetos se construyen a
través de exclusión, es decir, de la creación de un rango de sujetos desautorizados, presujetos,
figuras de abyección, poblaciones retiradas de la vista” (BUTLER, 1995, p. 47) abre la
posibilidad de asomarse a esa región del Ser que prolifera al margen de la norma, reconocer
su existencia, y ensanchar nuestras categorías de subjetividad para introducir en ellas esos
aspectos excluidos que, una vez readmitidos en la esfera del discurso, pueden cuestionar los
modelos de subjetividad hegemónica instituidos por la lógica neoliberal.
Si bien es complejo definir los contenidos específicos asociados a una subjetividad
antagonista (ARAGÜÉS, 2015, p. 11), parece más sencillo identificar prácticas antagonistas
con capacidad crítica. Volviendo a Butler, veremos algunas opciones de resistencia que
arraigan en la dimensión discursiva y, en concreto, en el plano performativo del lenguaje.
Esta perspectiva, inaugurada por Austin, afirma que hay enunciados que trascienden
la función descriptiva y referencial del lenguaje, y que son en sí mismos una forma de
acción: hay casos “en los que decir algo es hacer algo; en los que porque decimos algo o
al decir algo hacemos algo” (AUSTIN, 1990, p. 53). El lenguaje no se agota en su faceta
enunciativa, sino que tiene efectos atribuibles a la función ‘perlocucionaria’ del discurso
(AUSTIN, 1990, p. 153), asociada a las consecuencias de la preferencia de ciertas palabras
o expresiones. Insultar, prometer, disuadir, ahuyentar o dar órdenes son algunos ejemplos
de esta función lingüística.
Ampliando esta reflexión, Butler dice que todo acto de nombrar inaugura un universo
performativo de efectos que abre posibilidades de resistencia basadas precisamente en la
alteración de ese horizonte de efectos que se despliegan a partir de cada acto expresivo
singular. Inspirándose en las tesis de Derrida sobre repetición y diferencia, Butler plantea que
la continuidad de todo significante político “depende de su repetición, pero esa necesidad
de repetición posibilita la introducción de cambios, la desviación de los contenidos del
término” (1993, p. 220). Si los términos adquieren sentido en virtud de actos repetidos que
plasman y actualizan su significado, surge la oportunidad de introducir variaciones en cada
una de esas repeticiones, y esto puede constituirse en resistencia, ya que “las exclusiones del
término pueden ser retomadas e incluidas en él” (BUTLER, 1993, p. 221). Esto no implica
que todo proceso de repetición y diferencia tenga necesariamente un carácter antagonista,
pero resulta interesante aquí indagar en su surgimiento y su potencial transformador.
Butler plantea que el sujeto, en su materialidad corporal, no es producido de una
vez por todas, sino que “es repetidamente producido” (1997a, p. 93), y esa repetición “hace
proliferar efectos que socavan la fuerza de la normalización” (1997a, p. 93). El nombre con
que cada sujeto es designado funciona como un marcador que establece su posición en
un sistema de referencia-sujeción. Sin embargo, cada vez que el sujeto heterodesignado
se reapropia de ese nombre abre un espacio para una acción discursiva antagonista que
cuestiona la norma desde dentro, al poner de manifiesto su incoherencia. “Los efectos de
catarsis en el discurso político son posibles sólo cuando términos que tradicionalmente
han significado de una forma determinada son reapropiados para otro tipo de finalidades”
(BUTLER, 1997b, p. 144), y esto se percibe en los movimientos queer y Black Power o en
el feminismo. Si la palabra proferida con la intención de insultar es asumida por la persona
destinataria de esa palabra, e incorporada afirmativamente como parte de su identidad,
la dimensión perlocucionaria de ese discurso se altera y trastoca, y ello puede fundar
discursos alternativos y dar lugar a identidades desligadas de los modelos hegemónicos
de subjetividad. Así, “el nombre que uno es llamado lo subordina a la vez que lo capacita,

93
Sobre la Articulación de Subjetividades...

produciendo un escenario para la acción ambivalente” (BUTLER, 1997b, p. 163), esto es,
para la actuación antagonista.
Actualmente resulta obvio que “la verdad es una producción subjetiva, fruto de
la confrontación del sujeto con el mundo o, por mejor decir, de la mutua constitución
de ambos, sujeto y mundo” (ARAGÜÉS, 2015, p. 11). En este contexto, y asumiendo la
tensión entre ambos planos, cabe preguntarse “¿Qué sucede cuando comienzo a ser algo
para lo que no hay lugar en el régimen de verdad dado?” (BUTLER, 2004, p. 58). Existen
formas de identidad –y de vida- que no hallan espacio en las categorías hegemónicas con
que convencionalmente se etiqueta la realidad, y cuya existencia cuestiona esas mismas
categorías. Ese espectro de conductas, afectos y deseos ininteligibles dentro del orden
social dominante conforman ese ‘afuera’ anteriormente citado, son “regiones intermedias,
regiones híbridas de legitimidad e ilegitimidad que no tienen nombres claros” (BUTLER,
2004, p. 108), heterotopías o “no-lugares donde el reconocimiento, incluido el auto-
reconocimiento, se muestra como precario” (BUTLER, 2004, p. 108). Consideramos que
ese suelo ontológico, integrado por formas de vida que no son nombradas en las esferas de
la ‘verdad’, son un terreno sólido y fértil sobre el que cimentar nuevos discursos antagonistas
y nuevas prácticas de resistencia.

3. En torno a la construcción de la multitud (o del pueblo)


Optar por el concepto de ‘multitud’ para nombrar al sujeto antagonista no implica
entrar en conflicto con otros términos, como ‘pueblo’. Lo que interesa es el procedimiento
de construcción de ese sujeto, así como sus características, y no el nombre que le demos.
La práctica de resignificación de conceptos que el poder había determinado de
manera negativa solo es posible cuando nos encontramos ante sujetos ya constituidos
y marginados por el discurso dominante. Sin embargo, la situación cambia cuando no
hay concepto para resignificar, cuando el sujeto que se pretende desborda los límites de
las reivindicaciones regionales sobre las que se articulan los sujetos existentes y lo que
se pretende es producir entre ellos, y más allá, cadenas de equivalencias, horizontes
compartidos. En este sentido, suscribimos la reflexión del Comité Invisible, que apunta
que “no es el ‘pueblo’ el que produce el levantamiento, es el levantamiento el que produce su
pueblo, al suscitar la experiencia y la inteligencia comunes, el tejido humano y el lenguaje
de la vida real que habían desaparecido” (2015, p. 45).
¿Cómo construir la multitud? Veremos brevemente algunas estrategias enfocadas a
ese objetivo.
A diferencia de lo que señalan los teóricos más reputados de la cuestión de la
multitud, Negri, Hardt, Virno, entendemos que la multitud no es un sujeto ya dado, sino
un sujeto que debe ser construido. Porque la multitud, como las mareas, crece y decrece.
Sus perfiles son difícilmente definibles, pues fluctúan al albur de las luchas y los procesos
sociales. La multiplicidad que constituye la multitud no puede sino constituirse en la
práctica, en el desarrollo de un proyecto político que garantiza su mantenimiento como
poder constituyente. Ello nos da la clave para entender los presupuestos sobre los que la
multitud debe ser construida.
El primero de ellos es la definición de un proyecto político que permita articular
la multiplicidad constituyente en una práctica compartida. Ese proyecto pasa por la
construcción de lo común. Entendemos que la idea de común es imprescindible en la

94
Olaya Fernández Guerrero / Juan Manuel Aragüés Estragués

definición de una propuesta antagonista de perfiles materialistas. Lo común es definido


colectivamente en el seno de la multitud, de tal modo que la frontera de ambos se superpone:
la extensión de la multitud viene definida por el horizonte de lo común que se pretenda
reivindicar, del mismo modo que los límites de ese común son el fruto del acuerdo en el
seno de la multitud. Por ello, coincidimos con Montserrat Galcerán en que “necesitamos
reinterpretar la política ya no como un arte de gobernar, sino como un arte de construir lo
común” (2009, p. 169). Lo común posee perfiles históricos, es fruto de luchas, victorias
y derrotas. Cuando Marx, por ejemplo, critica el robo de leña en los bosques alemanes,
no está sino defendiendo la explotación comunal de esos bosques frente a la tendencia a
privatizar las propiedades comunales. Esa operación política de privatización de lo común
viene acompañada por una operación teórica, llevada a cabo por el liberalismo naciente,
que entiende la propiedad privada como única forma de propiedad. Batalla, la de la
apropiación de lo común, desatada con nuevos bríos por el neoliberalismo contemporáneo,
empeñado en privatizar bienes y servicios. La actual batalla por la educación, la sanidad o
el agua define el campo de la lucha por lo común y, por lo tanto, los perfiles de la multitud
que se opone a lo que Laval y Dardot definen como “una nueva ola de enclosures” (2015, p.
21), de cercados, haciendo referencia a la política de expropiación de lo común, a través de
cercados, que estuvo en el origen de la guerra civil de la Inglaterra del XVII. Lo común
no es algo dado por su naturaleza, como defiende Virno en un sorprendente escorzo
idealista, platónico, sino fundado en una decisión política. De la potencia de la multitud,
podríamos decir con un lenguaje spinoziano, dependerá la extensión de lo común. Y no es
inconveniente la referencia al autor del Tratado político, pues en su tantum iuris quantum
potentiae se halla la clave de la definición de lo común y de la multitud. Como establecen
de nuevo Laval y Dardot: “Conviene más bien abandonarla y renunciar, de una vez por
todas, a la idea de que existen cosas inapropiables por naturaleza para fundar por entero y
verdaderamente en derecho la inapropiabilidad” (2015, p. 45). Y cuanto más poderoso sea
el sujeto político, cuanta mayor potencia posea la multitud, mayor capacidad de desarrollar
un derecho de lo común. De este modo, el establecimiento de lo común como programa
político de la multitud se convierte en el elemento racional fundante de una política de
la materialidad antagonista. Porque no cabe duda de que esa política debe disponer de
una dimensión racional, expresada a través de un proyecto o programa. De ese programa
debe derivar algo básico: el conatus de la multitud3, es decir, la posibilidad de permanencia
en el ser de la mayoría social. Si en Spinoza el concepto de conatus tiene una dimensión
exclusivamente individual, abogamos por una lectura social del mismo, de tal modo que se
defiendan aquellas prácticas, éticas y políticas, que sean beneficiosas para la supervivencia
de la especie. Ahí es donde aparece lo común, en ese proceso de elaboración del proyecto
colectivo, de la praxis política compartida. Aunque, como veremos seguidamente, esa nueva
política antagonista no debe fundarse exclusivamente en la dimensión racional del sujeto.
No puede, ni debe, porque el ser humano no solo está constituido por elementos
racionales. Uno de los grandes déficits de la política revolucionaria es su desatención histórica
a los componentes afectivos, deseantes, de la subjetividad. Quizá pueda plantearse como
excepción el momento inaugural de la revolución rusa, cuando muchas de las vanguardias
supieron entender esa necesidad de apelar a lo emocional en la dirección de una política
revolucionaria.

3 Sobre el conatus de la multitud, vid. ARAGÜÉS, José Manuel. Líneas de fuga. Filosofía contra la sociedad idiota. Ma-
drid: Fundación de Investigaciones Marxistas, 2002, pp. 153-172.

95
Sobre la Articulación de Subjetividades...

El capitalismo ha comprendido a la perfección que la política ha de atender a la


dimensión subjetiva, y ha hecho de la seducción su herramienta fundamental. ¿Por qué
votamos por aquello que, objetivamente, atenta contra nuestros intereses? De la misma
manera que volvemos a comprar el producto que nos ha defraudado, dado que la publicidad
nos impele al consumo irreflexivo, en política nos guiamos por parámetros que apelan
más a lo emocional, lo estético, que a lo racional. El capitalismo ejerce una violencia
simbólica, por decirlo con Bourdieu, que constituye y normaliza a los sujetos en todas sus
dimensiones. Tal es su eficacia que puede desembocar en esa subsunción real de la que
Marx hablaba, de modo premonitorio, en el capítulo sexto de El Capital. Frente a la imagen
opresora del capital que nuestra tradición ha transmitido en su propaganda política, y que
objetivamente responde a lo real, el dominio se ha conseguido con la aquiescencia de una
población que, en el fordismo, se vio envuelta por las irresistibles redes del consumo, y que,
en el posfordismo, se ha plegado a las prácticas de sí neoliberales, como apunta Lordon
(2013, p. 247-249). Y todo ello porque “la sociedad avanza a golpe de deseos y de afectos”
(LORDON, 2013, p. 7). O, como también apunta Jon Beasley-Murray, porque “el orden
social se asegura por medio de hábitos y afectos” (2010, p. 11). Algo que ya describió
Spinoza en su Ética, donde afirma que el sujeto está necesariamente sometido a afectos
y deseos que le constituyen y que, en modo alguno, puede entenderse que el sujeto sea
“un imperio dentro de otro imperio” (SPINOZA, 1994, p. 170), es decir, que goce de
autonomía y libertad para imponerse a su entorno.
De ahí se deduce que es preciso apostar, también, por una política de los afectos,
porque, insiste Spinoza en la proposición VII de la cuarta parte de su Ética, “un afecto no
puede ser reprimido ni suprimido sino por medio de otro afecto contrario, y más fuerte
que el que ha de ser reprimido” (1994, p. 262). También porque la indignación es el motor
de toda acción política colectiva (SPINOZA, 1994, p. 103 y p. 106) y, finalmente, porque
la alegría aumenta la potencia de obrar del sujeto (SPINOZA, 1994, p. 224-225) y posee
una dimensión que la vincula con la faceta racional del ser humano (SPINOZA, 1994,
p. 312-313). Nada más alejado de la realidad que pretender que el ser humano se guíe
exclusivamente por la razón, como explica en su Tratado político: “De ahí que quienes se
imaginan que pueden inducir a la multitud o a aquellos que están absortos por los asuntos
públicos, a que vivan según el exclusivo mandato de la razón, sueñan con el siglo dorado
de los poetas o con una fábula” (SPINOZA, 1986, p. 82). Generar afectos alegres es un
poderoso instrumento de producción de multitud, como pudimos comprobar en España
el 15-M. Fue esa alegría de lo común, esa común alegría, la que nos hizo conscientes de
nuestro proceso de empoderamiento, de la potencial potencia de nuestro proceso. Quizá
sea a esto a lo que se refiere el Comité Invisible cuando dice que “la inteligencia estratégica
proviene del corazón y no del cerebro” (2015, p. 17). De este modo, Spinoza, con su
radical materialismo inmanentista, nos pone en la senda de la construcción de una política
antagonista urdida en torno a la emotividad.
La construcción de subjetividad antagonista desde una perspectiva deseante, desde
afectos alegres, es crucial en la actual batalla política. El espíritu de seriedad y rigidez que
ha acompañado a nuestras militancias debe ser reemplazada por la alegría del mundo
nuevo que se propone. Hemos de aprender que la sonrisa es revolucionaria.
Una última consideración en la estrategia de construcción de la multitud. También
aquí es preciso marcar distancias con nuestra tradición, que ha estado muy ligada a lo que
podríamos denominar ‘deseo de Verdad’. Probablemente sea posible establecer un vínculo

96
Olaya Fernández Guerrero / Juan Manuel Aragüés Estragués

entre el hiperracionalismo de las políticas revolucionarias, que acabamos de mencionar, y


su afán por convertirse en discursos verdaderos, incluso científicos, como pudo constatarse
con la pretensión bogdanoviana de construir una ‘ciencia proletaria’. En todo caso, esa
‘voluntad de Verdad’ se halla detrás del profundo sectarismo que también ha acompañado
nuestra historia política. Pues, lógicamente, si se pretende estar en posesión de la Verdad,
quien no comparta la posición se encuentra en el error y es preciso combatirle. Esa idea de
Verdad está muy alejada de las posiciones materialistas que entienden la realidad en devenir,
sometida al proceso histórico, y a la subjetividad constituida por múltiples determinaciones
que la singularizan. Desde una perspectiva materialista, la Verdad, especialmente en el
ámbito político, nunca puede ser un dato a priori, sino el efecto de un encuentro entre
singularidades. Por ello entendemos que ese ‘deseo de Verdad’ debe ser sustituido por un
‘deseo de multitud’ que privilegie la voluntad de encuentro sobre la pretensión de hallarse
en la posición correcta. Ese deseo de multitud, encuentro y construcción que crea espacios
lisos y desborda los estriados, exige varias condiciones. En primer lugar, lo que, recuperando
al último Foucault, los griegos denominaban parrhesia, o decir-verdad. Decir-verdad, en
minúscula, asumiendo que la verdad posee una dimensión subjetiva pero, sobre todo, que
el sujeto debe tener el ‘coraje de la verdad’ (FOUCAULT, 2014), de expresar su mundo
para colocarlo en transacción frente a los otros. Ha habido en nuestra tradición excesivos
silencios que han resultado nefastos. La horizontalidad que perseguimos no puede
construirse sin la multiplicación de las voces, y ello exige, en segundo lugar, una actitud a
la que se ha prestado muy poca atención en la historia del pensamiento y de la política,
que es la de la escucha. Desde la antigüedad se ha hecho hincapié en políticas isegóricas,
de acceso a la palabra, pero ese acceso es suficiente. Cuando se parte de la singularidad
materialista, de la diferencia, se hace imprescindible el proceso de escucha como medio
para componer las miradas. Una escucha que debe ir acompañada, en tercer lugar, de un
proceso de traducción orientado a generar un lenguaje común que supere desencuentros
que, en muchas ocasiones, no remiten a cuestiones sustanciales o de contenido. Es evidente
que nuestras diferentes tribus se han construido privilegiando aspectos de la realidad (las
cuestiones de género, la ecología, el movimiento obrero, las luchas culturales) o diferentes
dimensiones de lo humano, lo que ha generado lenguajes específicos que aconsejan, por
ello, un proceso de traducción o sintonización que muestre los acuerdos más allá de las
diferencias formales. Hay motivos políticos, pero también epistemológicos, para entender
la imperiosa necesidad de esos procesos de traducción, sin cuya ayuda volveremos a tropezar
en la piedra de ese solipsismo político que es el sectarismo.

4. Consideraciones finales: resignificaciones y afectividades


En estas páginas se han analizado las posibilidades de resistencia y antagonismo que
surgen a partir de ciertas prácticas de resignificación relacionadas con el lenguaje, así como
la efectividad de la combinación de elementos racionales y afectivos a la hora de crear
multitudes capaces de erigirse en instancia crítica frente a los poderes instituidos.
Los conceptos etiquetan la realidad, delimitando parcelas de significado y marcando
a los sujetos que se ajustan a esas parcelas. Sin embargo, esa designación a través del lenguaje
nunca es exhaustiva, sino que hay subjetividades, actitudes, pensamientos o formas de vida
que quedan fuera del campo simbólico, y que además cuestionan con su existencia la propia
coherencia de ese campo. A partir de ese ‘afuera’, constituido por todos aquellos elementos
que no tienen cabida en el orden conceptual dominante, es posible iniciar prácticas de

97
Sobre la Articulación de Subjetividades...

resistencia basadas en la sospecha y en la reapropiación de las palabras, cuyo significado


es flexible y puede modificarse para acoger otras subjetividades que, en principio, han sido
omitidas de los discursos hegemónicos.
Las subjetividades antagonistas, abordadas desde una dimensión colectiva, pueden
multiplicar su potencial crítico si consiguen convertirse en multitud, y esa es la segunda
línea argumental que se ha explorado en este trabajo. Nuestra tesis es que esas agrupaciones
de individuos capaces de enfrentarse y desafiar al orden neoliberal serán más sólidas y
efectivas si su cohesión se logra por medio de la combinación de la adhesión racional
y de la emotividad, entendida en el sentido de una afectividad positiva que contribuya
a fomentar un común sentido de la justicia, de la protesta, de la reivindicación que es
beneficiosa para toda la ciudadanía. En ese nuevo escenario conformado por innumerables
voces que reclaman su espacio en el ámbito común, es crucial promover actitudes como
la parrhesía, la escucha activa, y la apertura dialogante hacia todos los discursos y hacia
todas las verdades, con minúsculas, que el otro trae consigo. Solo así será posible crear
subjetividades antagonistas que sean realmente capaces de aglutinar y acoger en sí mismas,
de maneras potentes, esas multiplicidades y diversidades subversivas que buscan -y pueden-
cambiar el orden establecido.

98
Olaya Fernández Guerrero / Juan Manuel Aragüés Estragués

Referencias bibliográficas:
ARAGÜÉS, José Manuel. Una potente fragua. En torno a la construcción de subjetividad
antagonista. En: Actas I Congreso internacional de la Red española de Filosofía, Vol. XIII, 2015,
pp. 7-14. Disponible en: <http://redfilosofia.es/congreso/actas/>. Acceso en: 10/05/2018
AUSTIN, John Langshaw. Cómo hacer cosas con palabras. Barcelona: Paidós Ibérica, 1990.
BEASLEY-MURRAY, Jon. Poshegemonía. Buenos Aires: Paidós, 2010.
BUTLER, Judith. Gender trouble. Feminism and the subversion of identity. New York:
Routledge, 1990.
_____ Bodies that matter. On the discursive limits of ‘sex’. New York: Routledge, 1993.
_____ Contingent foundations: Feminism and the question of Postmodernism. En:
BENHABIB, Seyla et al. Feminist contentions. A philosophical exchange. New York:
Routledge, 1995, p. 35-58.
_____ The Psychic Life of Power. Theories in Subjection. California: Stanford University Press,
1997a.
_____ Excitable speech. A politics of the performative. New York: Routledge, 1997b.
_____ Undoing gender. New York: Routledge, 2004.
COMITÉ INVISIBLE. A nuestros amigos. Logroño: Pepitas de calabaza, 2015.
DERRIDA, Jacques. L’écriture et la différence. Paris: Éditions du Seuil, 1967.
FERNÁNDEZ GUERRERO, Olaya. Poder y panoptismo en el segundo Michel Foucault.
Philósophos. Revista de Filosofia, v. 22, n. 2, p. 187-209, 2017.
FOUCAULT, Michel. El coraje de la verdad. Madrid: Akal, 2014.
_____ El poder psiquiátrico. Curso del Collège de France (1973-1974). Madrid: Akal, 2005.
GALCERÁN, Montserrat. Deseo (y) libertad: una investigación sobre los presupuestos de la
acción. Madrid: Traficantes de sueños, 2009.
IBÁÑEZ, Jesús. Más allá de la sociología. Madrid: Siglo XXI, 1986.
LAVAL, Christian y DARDOT, Pierre. Común. Barcelona: Gedisa, 2015.
LORDON, Frédéric. La societé des affects. Paris: Seuil, 2013.
NANCY, Jean-Luc. Corpus. Paris: Métailié, 1992.
SPINOZA, Baruch. Ética. Madrid: Alianza Editorial, 1994.
_____ Tratado político, Madrid: Alianza Editorial, 1986.

99
As vicissitudes de uma racionalidade política do presente

As vicissitudes de uma racionalidade política do presente

Pedro Ivan Moreira de Sampaio 1

Este texto tem como objetivo tratar sobre algumas transformações que podem
começar a ser vistas nas práticas de governo do início do século XXI. Para que se possa
atingir este propósito, é prudente primeiro reconstruir, ainda que muito brevemente,
uma caracterização da razão política dominante no ocidente ao longo do século passado.
Por este motivo, esta reflexão será iniciada pelo esboço de algumas características do
neoliberalismo a partir do pensamento de Foucault. Nesta descrição primeira, o enfoque
condutor da apresentação será o caráter instituinte ou institucional que essa racionalidade
política apresenta ou apresentou durante o século XX. Com isso, pretende-se indicar que
a governamentalidade neoliberal pôde se exercer preponderantemente por intermédio de
instituições por ela constituídas ou pela ressignificação de instituições a ela precedentes.
Ao final dessa exposição pretende-se indicar que no presente parece se estar diante de um
movimento de modificação nas práticas de governo, como se a as primeiras décadas do
século XXI nos colocasse diante de uma transformação interna da razão política neoliberal.
Entende-se com isso poder dar alguns indícios de que o modo pelo qual se governa,
paulatinamente passa a exercer poder sem a necessidade da intermediação de instituições.
Espera-se poder concluir essa reflexão apontando para alguns traços característicos deste
modo neoliberal “anti-institucional” de governo emergente no limiar deste século.
Para dar início a exposição, parte-se da afirmação de que o neoliberalismo é um
modo de governo fortemente institucional. Essa assertiva é um tanto contra intuitiva,
afinal, quando se pensa em neoliberalismo o que primeiro costuma vir à mente é a ideia
de liberdade de mercado, de ausência de intervenção do Estado na economia ou Estado
mínimo, privatizações dentre outras pautas que tradicionalmente são atribuídas a uma
“agenda neoliberal”. Ocorre que não se pretende aqui tratar o neoliberalismo como uma
agenda de pautas ou um receituário de ações políticas pré-definidas. Isto significaria reduzir
a profundidade dessa noção e ainda produziria uma indistinção objetiva entre liberalismo e
neoliberalismo. Por isso, opta-se por adotar a leitura de Foucault que trata o neoliberalismo
como uma racionalidade política, um modo de prática de governo e reflexão sobre essa
prática particular do século XX. Isso permite ao filósofo analisar o seu presente histórico
dentro de uma genealogia das práticas de governo, mostrando justamente o que a razão de
governo de seu tempo carrega de singular.
Para explicar isso então é preciso primeiramente traçar aqui uma linha divisória que
separe o liberalismo clássico dos séculos XVIII e XIX do neoliberalismo característico do
século XX. Nesse sentido, a principal distinção que permite à Foucault separar estas duas
formas de razão de governo é o fato de o liberalismo ser uma racionalidade constituída
1 Universidade de São Paulo

100
Pedro Ivan Moreira de Sampaio

pela limitação do Estado, pelo laissez-faire, enquanto o neoliberalismo tem como princípio
ordenador a lógica da concorrência.
Certamente não é difícil ver o liberalismo clássico como uma racionalidade ordenada
pelo princípio de limitação do Estado. Para tanto basta lembra da edificação do Estado de
Direito ou mesmo das teorias dos contratualistas, que justamente concebiam a formação do
laço social e o aparecimento do Estado como uma alienação de parte dos direitos naturais
dos indivíduos em prol da preservação de outro quinhão destes direitos. Isto produz então
um Estado que justamente deve tutelar, e mais importante que isso, um Estado que não
deve interferir em certos direitos ou em certos domínios, vez que é precisamente a sua
preservação que justifica a existência do ente estatal.
Para além disso, o aparecimento histórico do liberalismo em meados do século
XVIII também reforça sua ordenação segundo o princípio da não intervenção. É no
contexto da crítica aos Estados absolutos europeus que emerge essa razão de governo. Ou
seja, o problema urgente que o liberalismo visava responder era: como limitar a atuação de
um Estado já existente? Como limitar a atuação um Estado que até então se caracteriza
pelo exercício interno de um poder de polícia ilimitado? Lembrando ainda que boa parte
das preocupações liberais orbitam a esfera econômica, o problema poderia ser enunciado
também assim: como assegurar em um Estado já existente o funcionamento de um
mercado livre? Nas palavras de Foucault: “Liberté de marché comme liberte de laissez
faire, comment était-elle possible à l’intérieur d’un État de police?” (FOUCAULT. 2004.
p.105/106).
O que Foucault consegue mostrar ao tratar da distinção entre o liberalismo clássico
e o neoliberalismo é que historicamente o problema do neoliberalismo é inverso àquele
enfrentado pelo liberalismo do século XVIII. Por tratar-se de uma razão de governo que
desponta em um contexto de pós 2ª guerra, um cenário de reestruturação ou de necessidade
de reestruturação dos Estados, o problema do neoliberalismo não se funda na limitação
do poder do rei, não se trata de garantir um espaço de não intervenção, mas ao contrário,
o problema central que presidiu o nascimento do neoliberalismo é, citando Foucault: “Soit
un État qui n’existe pas, comment le faire exister à partir de cet espace non étatique qu’est
celui d’une liberte économique? ” (FOUCAULT. 2004. p.88). Nesse sentido, o problema do
qual emerge o neoliberalismo não é o de ordenar a sociedade para garantir certa liberdade
de mercado ou liberdade econômica, ao contrário, trata-se de buscar um meio de conseguir
a partir da liberdade de mercado, ou a partir do funcionamento do mercado ordenar a
sociedade. Foi a essa urgência que o neoliberalismo precisou responder.
Por essa razão, o neoliberalismo aparece primeiramente com esse caráter fortemente
instituinte. De fato, esta característica está presente já desde o aparecimento do termo
“neoliberalismo”, no colóquio Walter Lippmann em Paris no ano de 1938 (Cf. AUDIER,
2012). Nesta ocasião, uma das denominações sugeridas, antes de se optar pelo termo
“neoliberalismo”, foi a nomenclatura “liberalismo positivo”, justamente para reforçar esse
caráter de uma razão governamental que não consistia em um princípio de limitação, mas
sim em um princípio ativo, de ação, de atuação, de intervenção. A questão posta por essa
racionalidade será então não propriamente delimitar campos de intervenção para o Estado,
mas sim definir como intervir. É com olhos neste caráter preponderantemente ativo que a
governamentalidade neoliberal se consistiu como a promoção de uma forte intervenção na
sociedade.

101
As vicissitudes de uma racionalidade política do presente

Le problème n’est pas savoir s’il y a des choses auxquelles on ne peut pas
toucher et d’autres auxquelles on a le droit de toucher. Le problème, c’est
de savoir comment on y touche. C’est le problème de la manière de faire,
c’est le problème, si vous voulez, du style gouvernemental. (FOUCAULT,
2004. p.139).

Essa intervenção tinha fundamentalmente duas finalidades: primeiro, manter o


bom funcionamento do mercado, como um mecanismo que precisa ser protegido das
influencias desreguladoras provenientes da sociedade. Em segundo lugar, se objetiva fazer
com que a própria sociedade passe a funcionar conforme os mecanismos do mercado. A
razão neoliberal persegue então estes dois objetivos e o faz por intermédio de instituições,
sejam instituições já existentes que são reordenadas, ou pela fundação de novas instituições
que já nascem comandadas por esse τέλος2.
É possível mencionar aqui alguns exemplos de instituições pelo meio das quais se
exerceu esse governo neoliberal ao longo do século XX. São elas: a instituição de um direito
do trabalho, o funcionamento da assistência social por meio das instituições de seguridade
social, as agências reguladoras; isso para destacar apenas alguns poucos exemplos de tantos
outros possíveis.
Para tecer alguns comentários sobre cada uma destas instituições referidas, inicia-se
aqui pelo direito do trabalho. A princípio deve causar estranheza tratar da instituição de
um direito dos trabalhadores como instituição neoliberal, mas desde agora adverte-se que
isso não significa negar a história de conquistas trabalhistas que tiveram lugar ao longo
do século XX. Ao remontar um pouco esse período, por exemplo, na França, é impossível
não ver ali um contexto de fortes mobilizações sociais, especialmente dos trabalhadores. O
próprio imaginário que se tem contemporaneamente de greves e de grandes manifestações,
frequentemente se reporta a esse período da história francesa. Disso, normalmente
apreende-se que surgiram conquistas, como direitos trabalhistas, dentre eles: a legalização
das greves e a criação das políticas de assistência e seguridade social. Tudo isso é verdade e a
sucessão histórica de todos esses acontecimentos não permite dizer o contrário. Mas, o que
se pretende aqui destacar é que se por um lado a garantia dos direitos trabalhistas foi uma
conquista dos trabalhadores, por outro lado eles são também a homogeneização do modo de
como governar os ambientes de trabalho. Se com a legalização das greves os trabalhadores
puderam ter mais segurança para fazer movimentos reivindicatórios, sem colocar em risco
iminente seus empregos, por outro lado isso foi também um modo de regulamentar e
delimitar tanto os movimentos quanto suas reivindicações possíveis. Em certo sentido esse
conjunto chamado de direitos sociais, ou mais precisamente as consolidações de legislações
trabalhistas, podem perfeitamente ser vistos como a constituição de um quadro normativo
estatal estável, que uniformiza as expectativas a respeito da atuação estatal. A grande
questão é que efetivamente essa medida estabilizadora do funcionamento das relações de
trabalho é o que permitiu que o trabalho pudesse começar a funcionar propriamente como
um mercado de força de trabalho. O modo pelo qual foram positivadas leis de proteção ao
trabalhador é o que permitiu que se pudesse governar esse mercado segundo princípios de
concorrência. (Cf. EDELMAN, 2016.).
É verdade que os trabalhadores puderam passar a gozar de uma certa proteção,
de modo que a imagem das fábricas pôde com isso deixar de ser a cena de um romance

2 Télos

102
Pedro Ivan Moreira de Sampaio

naturalista onde os empregados eram obrigados a vender até a força de trabalho de sua
prole, extraindo deste ato o traço fundamental de sua constituição como classe. Ao mesmo
tempo, essa classe deixou de ser um proletariado pronto a explodir a qualquer momento
contra a vilania da fábrica. As greves agora já não podem paralisar a integralidade da
produção, já não se pode sabotar as fábricas e mais importante, já não se pode ter como
pauta de reivindicação, por exemplo, o fim da propriedade privada dos meios de produção.
Os objetivos se transformam e se troca o proletariado pelos trabalhadores que se unem não
como uma classe, mas como indivíduos que reivindicam melhores salários para possibilitar
seu projeto individual de sucesso e crescimento. É então desse direito do trabalho estável
e pacificador que se pode observar derivar algumas instituições de governo como: os
sindicatos, de empregados e patronais, os tribunais especializados em litígios trabalhistas
e mesmo órgãos públicos que tem como missão a fiscalização e elaboração de políticas
para assegurar a aplicação da lei. Todo esse arcabouço institucional é o que permite
afinal governar, fazer a passagem de um proletariado ingovernável para os trabalhadores
organizados.
Para além do direito do trabalho, também a assistência social é uma instituição
de governo que opera ao longo do século XX consoante a racionalidade neoliberal. É
oportuno primeiro ressaltar que a política social não é uma invenção do século passado
nem uma particularidade do neoliberalismo. Vale salientar que houve no ocidente políticas
sociais como as políticas bismarkianas ou mesmo aquelas pensadas por Keynes. O que elas
guardavam em comum até então é que tratavam de atuações estatais cujo objetivo era aplacar
as desigualdades econômicas. Essas intervenções se fundavam sob o argumento de que o
mercado por si só produzia desequilíbrios ao longo do tempo e seria preciso fazer operar
corretivos para dar segurança ao funcionamento das liberdades. (Cf. FOUCAULT, 2004.
p.151). No neoliberalismo o propósito é de todo outro. As desigualdades não são produto do
funcionamento de mercado, elas são gestadas pela própria sociedade, assim é preciso atuar
sobre a sociedade para evitar que esses desequilíbrios findem por excluir indivíduos dos
jogos econômicos do mercado. Assim, longe de buscar superar as desigualdades ou mesmo
reduzi-las, a política social neoliberal deve antes fazer bem funcionar as desigualdades. Nas
palavras de Michel Foucault: “Une politique sociale ne peut pas se fixe l’égalité comme
objectif. Elle doit au contraire laisse jouer l’inégalité” (FOUCAULT, 2004. p.148).
Assim, a política social neoliberal se organiza como uma assistência social que tem
como propósito fundamental garantir o “mínimo existencial” para os assistidos. Trata-se
de fornecer uma segurança para que todos possam ser incluídos no mercado, garantia de
condições de existência individuais para que ninguém seja excluído dos jogos de concorrência
do mercado. Assegurar o mínimo existencial será o que impedirá a existência de um fora
do governo. Mesmo aqueles que por ventura não possam ser incorporados no mercado
geral do trabalho, podem ser ainda objeto de um governo pela assistência social que deverá
ser, via de regra, custeada pela massa salarial, vez que são os trabalhadores aqueles mais
expostos aos riscos que a assistência e também a previdência devem securitizar. É assim
que o ocidente constituiu essa grande instituição de condução das políticas de seguridade
social, para governar os riscos presentes na sociedade que espreitam o funcionamento da
lógica de mercado.
Por fim, as últimas instituições mencionadas como exemplo, sobre quais ainda é
preciso dizer uma ou duas palavras são as agências reguladoras. Essas são instituições
que nascem já no interior da governamentalidade neoliberal. Como tal, esses órgãos

103
As vicissitudes de uma racionalidade política do presente

reguladores, que aglutinam agentes públicos e privados, suportam em sua espinha dorsal
o peso de tutelar a concorrência, princípio orientador do neoliberalismo. Para dizer de
modo um tanto simplificado, uma agencia reguladora é uma instituição composta por
representantes dos agentes que atuam no setor da economia a ser regulado, bem como por
representante do Estado. Seu objetivo é estabelecer normas de condutas para os agentes
econômicos, de forma a assegurar a concorrência naquele setor bem como evitar que seja
inibido o aparecimento de novos players para aquele mercado. No fundo, trata-se de um
modelo de autorregulação de setores da econômica. Essa opção reguladora provém da
própria pretensão neoliberal de intervenção, de modo a governar intensamente, mas ao
mesmo tempo sem buscar alterar o funcionamento do mercado por meio da imposição
de uma norma por decreto. Assim, criam-se esses órgãos onde os próprios agentes
regulados participam da criação de normas, assegurando a permanência da pluralidade
de participantes no mercado criando um estado de concorrência normatizada, permitindo
que a disputa entre as empresas possa manter o funcionamento harmônico do mercado.
Feita essa breve seletiva caracterização do viés institucional da racionalidade política
do éculo XX, passa-se agora ao início do século atual. Cabe pontuar inicialmente que é
contra esse modelo de governo mediado por instituições que, especialmente depois da
crise do mercado imobiliário estadunidense em 2008, tem se erigido uma crítica pensada
fundamentalmente a partir da retomada de pensadores da denominada “escola austríaca de
economia”. Essa crítica vem destes pensadores que a princípio compõe o quadro geral da
razão neoliberal. Hayek e Mises por exemplo, ambos expoentes dessa escola de economia,
estão em praticamente todos os momentos fundamentais da formulação do neoliberalismo.
Não se pretende com isso dizer que as políticas do século XX tenham sido implantadas
exatamente como os economistas austríacos defendiam, mas apenas salientar que eles
não podem ser vistos como algo distinto dessa governamentalidade do século XX. Ainda
assim, é preciso reconhecer que esses pensadores ocupavam um lugar de menor destaque,
quer dizer, frente à preponderância da “escola de Chicago” não é de se surpreender que
os austríacos ficassem um pouco em segundo plano. Em parte, isso se deve justamente
há algumas críticas que Hayek e Mises já faziam a esse modelo de governo institucional
ou de regulação da economia. Para explicar isso preciso então contar um pouquinho do
lugar de Hayek junto ao panteão dos Economistas. Hayek foi laureado com o prêmio
Nobel de economia em 1974. Um dos motivos que o levou a ser indicado e laureado com
o Nobel foram suas críticas à planificação da economia. A minuta de premiação refere-se
preponderantemente às análises do austríaco sobre a moeda3, mas pode-se seguramente
dizer que o motivo político do prêmio era preponderantemente a instrumentalização das
críticas de Hayek ao modelo econômico soviético. A questão é que boa parte dessas críticas
do austríaco à planificação poderiam também ser aplicadas ou direcionadas aos modelos de
regulação da econômica colocados em prática no ocidente sob as bênçãos auspiciosas da
escola de Chicago, especialmente de Milton Friedman. É esse direcionamento das críticas
de Hayek à regulação neoliberal que começa a ser retomado com destaque especialmente
a partir de 2008.
Para apresentar isso de modo sucinto, mas buscando retomar os exemplos que
já foram esboçados anteriormente caberia destacar que, por uma ótica a lá Hayek seria

3 A minuta do prêmio Nobel de 1974 que laureou tanto Friedrich Hayek quanto o sueco Gunnar Myrdal afirma exa-
tamente o seguinte: “Por seu trabalho pioneiro na teoria da moeda e flutuações económicas e pela análise penetrante
da interdependência dos fenômenos económicos, sociais e institucionais”

104
Pedro Ivan Moreira de Sampaio

possível afirmar que: primeiro, o trabalho não pode ser regulado de modo a impor normas
uniformes de conduta, a ordem nesse setor deve se limitar aos requisitos formais de contrato
entre dois indivíduos privados que acordam e podem dispor sobre todas as condições dessa
contratação, do contrário termina-se impondo um formato demasiadamente oneroso para
todo tomador de mão de obra que impacta em todos os preços, bem como ainda dificulta a
entrada de novos empreendedores nos mercados uma vez que apenas as grandes empresas
teriam condições de arcar com autos custos trabalhistas sem que isso representasse um
esforço exacerbado capaz de comprometer sua atividade. Em segundo lugar, os modelos
de assistência e previdência precisariam ser eliminados. Via de regra a securitização destes
riscos deveria ser incumbência individual e não coletiva. Deste modo, cada indivíduo
deveria escolher que riscos deseja ou não correr. Para além disso, quando se tenta criar uma
instituição central para promover essa securitização, ela termina gerando um custo social
mais alto do que representaria a própria concretização dos sinistros que ela busca assegurar.
No mais, o próprio Estado gestor terminaria sempre se vendo tentado a recorrer para esses
fundos de seguridade, afim de suprir seus demais déficits, convertendo as contribuições que
os alimenta apenas em impostos. Isso para não falar que ao garantir a ideia de um “mínimo
existência” o que se está fazendo é criando uma parcela de assistidos que são objeto de
governo, mas que não participam dos jogos da concorrência do mercado de trabalho e
por isso estão aquém de uma ordem efetiva e integral aos moldes do funcionamento do
mercado. Por fim, as agências reguladoras seriam mais um mal que um bem. Para dizer
em poucas palavras, ao permitir esse estabelecimento de regras para o mercado vindas das
empresas que deveriam concorrer, o que o Estado fomenta é a cooperação das empresas
ou a formação de cartel no setor regulado. Os players tenderão sempre a estipular regras
que dificultem o aparecimento de novos concorrentes e segmentarão o mercado entre as
empresas já existentes. Além disso, essa regulação desloca o polo da concorrência. Ao invés
de as empresas concorrerem no mercado no oferecimento de bens e serviços, elas passam a
competir prioritariamente pelos cargos dos órgãos reguladores. Para assegurar seus ganhos
não vão oferecer melhores produtos a menores preços que seus concorrentes, mas passam
a concorrer prioritariamente pelos espaços nas agências de regulação para poder conduzir
a política de regramento do modo que lhe seja mais vantajoso.
Essas seriam algumas críticas possíveis, feitas por uma ótica destes que se intitulam
contemporaneamente de “libertarianos”, pautados nessa tradição de Hayek e demais
pensadores da escola austríaca de economia. Eles conseguem operacionalizar essa crítica
que se volta para as instituições que constituíram o modelo neoliberal de governo. Este
pensamento tem paulatinamente ganhado espaço desde a crise de 2008. Para além disso,
vale ressaltar que é justamente esse conjunto de críticas contemporâneas ao neoliberalismo
que pode auxiliar na compreensão até mesmo algumas afirmações estapafúrdias muito
recentes que o cenário de “guerra cultural” tem dado ensejo. Por exemplo, ao longo do
mês de outubro de 2018 puderam ser presenciados ataques em redes sociais à revista The
Economist, ou ao cientista político e economista Francis Fukuyama, onde ambos são
acusados de serem comunistas. Ante esse tipo de discurso é difícil conter o riso. Quer
dizer, a publicação que é praticamente a cartilha neoliberal de nosso tempo e o pensador da
Escola de Chicago serem chamados de comunistas seria cômico se não fosse trágico. Mas,
o que é cabível de ser destacado é que essa afirmação pode não ser assim tão descabida.
Claro, é impossível dizer que a The Economist ou que Fukuyama sejam comunistas, mas
a questão é que essa tradição libertariana adapta e dirige a eles as mesmas críticas que

105
As vicissitudes de uma racionalidade política do presente

Hayek fazia às economias planificadas. Isso não justifica chama-los de comunistas, mas
ao observar os caminhos e descaminhos dessa critica é possível começar a entender o
movimento que embasa essa acusação e ver que no fundo ele pode ser mais do que um
devaneio de uma mente desavisada na internet.
Por fim, como este texto tem seu lugar num GT de Filosofia Política Contemporânea,
não seria possível deixar de lado a questão urgente de nosso tempo, as eleições presidenciais
de 2018. Destaca-se aqui apenas um ponto, o presidente eleito Jair Messias Bolsonaro,
seu flerte com Paulo Guedes e a aproximação ainda que claudicante com defensores de
medidas ultra-liberais. Esse fenômeno brasileiro está intimamente relacionado com as
críticas às instituições neoliberais que vinham sendo mencionadas até então. Talvez ler
a eleição de Bolsonaro por essa ótica seja no fundo a grande ordenação possível deste
fenômeno caótico que é o presidente eleito. Simplesmente dizer que Bolsonaro é um
fascista e que é o anúncio de tempos de repressão, por mais que possa ser verdade, isso não
auxilia na compreensão do significado propriamente ativo destes acontecimentos recentes.
A caracterização negativa em verdade contribui muito mais para a incompreensão, para o
impedimento da análise. Isso não quer dizer que o presidente eleito não mereça os adjetivos
atribuídos ao fascismo. Ocorre que ao se restringir à adjetivação, isso revela especialmente
a incapacidade de se enxergar o que talvez seja mais fundamental e por isso mais perigoso
no presidente eleito, a ordem ou ordenação possível nesse movimento que o rendeu 55 por
cento dos votos válidos. Talvez a questão central de sua candidatura tenha sido o discurso
de violência e neste caso a violência produziu seu efeito mais gritante, o silêncio. Silêncio
sobre o que a candidatura de Bolsonaro trazia de mais fundamental, as reformas. Essas das
quais ao longo da campanha a cada dia se falava menos, dando enfoque quase que exclusivo
ao discurso proto-fascista do candidato da extrema direita. A reforma da previdência, a
reforma trabalhista, a reforma tributária a reforma administrativa do Estado. Todas com
caráter profundamente “desestituinte”, de desmonte institucional. Essas mesmas reformas,
que a presidente eleita Dilma Rousseff se mostrou indisposta a fazer, que o seu suplente
Michel Temer se mostrou incapaz de fazer e que Bolsonaro prometeu realizar nem que pra
isso tenha que mover todo o Aqueronte. É nesse sentido que talvez fosse possível começar
a entender o lugar que ocupa na grande cena da governamentalidade ocidental uma eleição
como a brasileira e o que está em jogo neste próximo governo.
De todo modo, o exemplo do Bolsonaro é apenas o espécime local dessa transformação
maior que se pode ver caminhar desde a crise de 2008. Talvez a vicissitude de governo no
nosso tempo seja essa: o neoliberalismo entendido como um modelo jurídico-econômico
ou institucional-econômico tem paulatinamente se desfeito dessa sua faceta institucional,
com a crença de que já não precisa das instituições do século XX para governar, deixando de
prontidão apenas o aparelho repressivo, afinal todo governo precisa de alguma securitização.
Para concluir, apenas então é oportuno sugerir que talvez o que se vive no Brasil
hoje tenha mais semelhança com o Chile de 1973 do que com o golpe de 1964. No fundo
é a ordem que se anuncia que deve inspirar temor, e não o caos. O lugar da violência
do discurso do presidente eleito talvez apenas reafirme a citação de um dos patronos da
literatura Brasileira, para lembra que “[...] a ordem social e humana nem sempre se alcança
sem o grotesco, e alguma vez o cruel.” (ASSIS, 2018. p.05).

106
Pedro Ivan Moreira de Sampaio

Referências bibliográficas:
ASSIS, Machado de. Pai contra mãe. São Paulo. Editora Hedra. 2018.
AUDIER, S. Le colloque Lippmann. Paris. BDL, 2012.
DARDOT, Pierre et LAVAL, Christian. Ce cauchemar qui n’en finit pas  : comment le
néoliberalisme défait la démocracie. Paris. La découverte. 2016.
_____. La nouvelle raison du monde  : essai sur la société néolibérale. Paris. Éditions La
Découverte. 2010.
EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. São Paulo. Boitempo. 2016.
FOUCAULT, Michel. Naissance de La Biopolitique: Coursa au Collège de France 1978-1979.
Paris. Éditions Seuil/Gallimard. 2004.
FOUCAULT STUDIES. Number 6, february 2009: Neoliberal Governmentality.
Disponível em: < http://rauli.cbs.dk/index.php/foucault-studies/issue/view/365/showToc
>. Acesso em: 20 set. 2018.
FRIEDMAN, Milton. Capitalism and freedom. Chicago. Chicago University Press. 2002.
_____; SCHWARTZ, Anna Jacobson. A monetary history of the United States, 1867-1960.
9ª edição. Princeton. Princeton University Press. 1993.
HAYEK, F. A. Von. Individualism and economic order. Chicago. University Of Chicago
Press. 1948.
_____. New studies in philosophy, politics, economics and the history of ideas. Chicago University
Of Chicago Press.1985.
_____. The constitution of liberty: the definitive edition. Chicago. University Of Chicago
Press. 2011.
RAISONS POLITIQUES : Revue de Théorie Politique. Numéro 52, novembre 2013. Les
néolibéralismes de Michel Foucault. Paris. Sciences Po Les Presses. 2013.

107
A biopolítica como paradigma de governo: uma genealogia...

A biopolítica como paradigma de governo: Uma genealogia


do mercado econômico em Michel Foucault

Rodrigo Diaz de Vivar y Soler1

Introdução
Um dos maiores projetos presentes na trajetória intelectual do Michel Foucault seria
uma história política da governamentalidade2. Em que consiste tal projeto? Em linhas gerais,
pode-se afirmar que o seus objetivo longitudinal consiste em pensar os principais aspectos
relacionados a formação, na nossa sociedade ocidental, de diferentes artes de governo, isto é,
distintos modelos pelos quais os sujeitos são conduzidos a partir da tripla correlação entre
as estratégias de saber, as práticas de poder e os processos de subjetivação. Nesse sentido,
é correto afirmar que pode-se encontrar nessa correlação uma série de deslocamentos em
relação ao percurso estabelecido pela problemática de governo na orientação das condutas.
Sendo assim, num primeiro momento poder-se-ia ilustrar a presença do governo
de si nas culturas antigas, em que o sujeito era interpelado a produzir uma experiência
ética tensionada pela filosofia como forma de vida e uma agonística da existência desde a
emergência do pensamento socrático até as últimas escolas filosóficas da Antiguidade como
o cinismo, por exemplo (FOUCAULT, 20013, 2014). Já num segundo momento, é possível
rastrearmos a presença da formação, no século VI d.C. do que Foucault (2008) chama de
governo das almas cuja atitude fundamental era caracterizada pela relação entre pastorado
e rebanho (FOUCAULT, 2008). Por fim, no século XVI, emerge a experiência de um
Estado moderno governamentalizado compreendido por Foucault (2008) como a vocação,
por excelência da nossa modernidade, das categorias essenciais presentes na composição
de uma razão de Estado voltada para a condução da vida a partir de dispositivos como os
de seguridade e os de normalização. De todo modo, Foucault (2008) parece inclinado a
nos demonstrar como a categoria de governo está diretamente atrelada ao duplo efeito no
qual tal conceito circula na estrutura das práticas sociais existentes na nossa modernidade.
O que a analítica foucaultiana procurará referendar é que, o governo também deve
ser compreendido como espaço de governamentalização, já que ele reflete os movimentos
pelos quais seus procedimentos irão chocar-se constantemente entre os modos de
veridicção e práticas de condutas. Em torno desse duplo aspecto, emerge o problema
1 FURB/UNISINOS
2 Uma história política da governamentalidade percorre os contornos dos cursos promovidos por Foucault no Collège
de France e ensaios consagrados a problemática dos estilos de governo na nossa sociedade ocidental. Nesse sentido, é
possível rastrearmos os indicativos dessa alegoria formulada por Foucault já em Os Anormais, passando pelos cursos
Em Defesa da Sociedade, Segurança, Território, População, Nascimento da Biopolítica, Do Governo dos Vivos, O Governo
de Si e dos Outros e A Coragem da Verdade, além dos ensaios A Filosofia Analítica da Política e Omnes e Singulatim. Ver
mais detalhes em: FOUCAULT, 2002, 1999, 2008, 2009, 2012, 2013 e 2014a, 2014b, 2015.

108
Rodrigo Diaz de Vivar y Soler

central da história política da governamentalidade: a questão de nos perguntarmos – quase


que constantemente – por quem, e até que ponto nos tornamos governados, seja pela
perspectiva da filosofia como modo de vida, seja pelos contornos da pastoral das almas,
seja pela prática refletida da razão de Estado. Enfim, parece haver no embrião da nossa
sociedade ocidental toda uma vontade de potência responsável por interpelar os sujeitos
sobre o papel do governo a partir de um conjunto de problematizações elaboradas por
Foucault (2008, p. 118-119)

Como se governar, como ser governado, como governar os outros, por


quem devemos aceitar ser governados, como fazer para ser o melhor
governador possível? Parece-me que todos esses problemas são, em
sua intensidade e em sua multiplicidade também, característicos do
século XVI, e isso no ponto de cruzamento, para dizer as coisas muito
esquematicamente, de dois movimentos, de dois processos: o processo,
evidentemente, que, desfazendo as estruturas feudais, está criando,
instaurando os grandes Estados territoriais, administrativos, coloniais,
e um outro movimento totalmente diferente, que aliás não deixa de
ter interferências no primeiro, mas é complexo – está fora de cogitação
analisar tudo isso aqui- e, que com a Reforma, depois a Contrarreforma,
põe em questão a maneira como se quer se espiritualmente dirigido, na
terra, rumo à salvação pessoal. Movimento, de um lado, de dispersão e de
dissidência religiosa: é ai, creio, no cruzamento desses dois movimentos,
que se coloca, com aquela intensidade particular do século XVI
evidentemente, o problema do “como ser governado, por quem, até que
ponto, com que fim, por que métodos.”

Ocorre que,desde a primeira metade do século XVIII,por meio da acontecimentalização


da economia política a governamentalidade sofre um novo deslocamento sendo inserida
no paradigma do liberalismo, cujo maior traço será o desenvolvimento das práticas de
governamentalização das condutas por meio da biopolítica. Trata-se de um fenômeno
sem precedentes nessa genealogia do governo explorada por Foucault (2009), já que com
o liberalismo a vida passa a ser gerenciada por procedimentos cada vez mais voltados a
economia biopolítica dos modos de subjetivação. Nesse sentido, ocorre o que poderíamos
chamar de duplo dos processos de subjetivação, já que as experiências éticas passam a
se configurar pela grade de inteligibilidade que torna a vida possível, de um lado pela
constatação de que quanto menor for o governo, maior será nossa liberdade, bem como
pela possibilidade de compreendermos a constituição do mercado econômico como um
componente imprescindível para a modulação das condutas.
Dentre esse conjunto de práticas de governo da vida das quais a biopolítica é
proveniente, nosso ensaio procura pensar os tensionamentos e seus efeitos no projeto geral
de uma história política da governamentalidade por meio da análise genealógica do mercado
financeiro promovida por Foucault no curso Nascimento da Biopolítica. Uma genealogia
que encontra-se delimitada no interior do nascimento de um Estado governamentalizado
cujas ressonâncias estão inscritas no horizonte de uma inteligibilidade segundo a qual
as perspectivas liberais e, depois, as neoliberais ultrapassam todos os contextos jurídicos
e institucionais da nossa contemporaneidade, colocando a própria estrutura do Estado
a favor de uma perspectiva cada vez mais agressiva de um mercado econômico que não
parece conhecer limites.

109
A biopolítica como paradigma de governo: uma genealogia...

Para Uma Genealogia do Mercado Econômico em Michel Foucault


É no curso Nascimento da Biopolítica que Michel Foucault (2009) opera uma
dura crítica à razão de Estado a partir de um estudo sistemático sobre o nascimento do
liberalismo na sociedade ocidental. Entretanto, Foucault (2009) não se mostra inclinado a
pensá-lo como uma doutrina econômica, mas como um estilo de vida. Um estilo de vida
que se enquadra no paradigma produzido pela razão de Estado, por meio da composição
de uma experiência ética responsável por pensar os elementos intrínsecos de uma
modalidade de governo presente no jogo entre múltiplas forças policiais e o panorama de uma
governamentalidade mercantilista que antecederá os contornos tanto do liberalismo quanto
do neoliberalismo. Entretanto, antes de prosseguirmos é necessário que estabeleçamos o
seguinte questionamento: por quais razões Foucault prefere analisar a constituição do Estado
moderno pelo crivo das forças policiais e da governamentalidade mercantilista em detrimento a
um estudo sobre o Estado democrático de direito? A resposta a tal questionamento pode ser
encontrada nas primeiras páginas de o Nascimento da Biopolítica quando Foucault (2009)
aponta que o seu contexto de estudo procura pensar quais seriam exatamente as forças que
tentam regular os efeitos da racionalidade governamental. Essas forças compõem todo
uma performatividade de dispositivos que ultrapassam os contornos da discursividade
judiciária. Nesse sentido, a opção, por parte de Foucault, em correlacionar as experiências
das forças policiais e da governamentalidade mercantilista no contexto da razão de Estado
consiste em deslocar os sentidos e as generalizações dos fatores exteriores à figura do
Estado moderno, para efetivar uma problematização aos estudos inscritos no contexto
do direito natural, ou ainda a experiência consagrada do firmamento entre indivíduos e
Estado para a constituição da sociedade.
Essa perspectiva nos conduz a um ponto importantíssimo para pensarmos o contexto
de uma história política da governamentalidade, qual seja, o procedimento levado a cabo
por Foucault (2008) de se problematizar a noção de soberania como estrutura hegemônica
para se compreender o Estado e suas particularidades. De fato, o estudo sistemático sobre
o nascimento da razão de Estado converge na porosidade de uma leitura em torno dessa
maquinaria não abnegando seus aparatos institucionais, mas procurando trazer à tona
uma multiplicidade de processos que fazem parte de uma estrutura tão relevante para o
funcionamento do Estado como seus dispositivos tradicionais.
Em relação à governamentalidade, é interessante observarmos à maneira pela qual
ela escapa dos limites estabelecidos pelas metanarrativas construídas pela episteme moderna,
uma vez que a razão governamental não se ocupará em procurar obedecer os limites
propostos pelo Direito, pela Sociologia e pela Economia, por exemplo. O seu sentido será
sempre delimitado pelo que Foucault (2009) chama de senso utilitarista e nesse caso, o
problema não seria o de nos perguntarmos sobre a prevalência dos direitos e das garantias
fundamentais, mas sim as condições de possibilidades entre aquilo que se deve e o que não
se deve fazer, pois segundo Foucault (2009, p. 16-17)

O problema, portanto não é onde estão os direitos fundamentais e como


os direitos fundamentais dividem o domínio da governamentalidade
possível e o domínio da liberdade fundamental. A linha demarcatória vai
se estabelecer entre duas séries de coisas, cuja lista Bentham estabeleceu
num de seus textos mais importantes sobre os quais procurarei tornar, a
demarcação se dá entre agenda e non agenda, as coisas a fazer e as coisas
a não fazer.

110
Rodrigo Diaz de Vivar y Soler

Desse modo, percebe-se como a passagem do século XVII para o século XVIII
inaugura um momento em que a governamentalidade emerge como força correlativa aos
pressupostos que integram a soberania. Não obstante, o problema passa a ser, a partir
de então, não mais o combate aos excessos cometidos pela figura do príncipe, mas sim
como e sob quais condições, a pergunta governa-se demasiadamente a vida das pessoas?
é insistentemente colocada. Na opinião de Senellart (1995), ao desenvolver um estudo
crítico sobre a emergência do mercado econômico na sociedade ocidental, Foucault acaba
por compreender este acontecimento como uma prática refletida de governo.
Trata-se, portanto de um fundamento que circula em torno do problema de uma
razão governamental que vai se inscrever no campo da economia política e, como tal, deve
ser compreendida a partir do nascimento da biopolítica e sua consolidação no projeto de
sociedade ocidental. Mas, acima de tudo devemo-nos perguntar: o que Foucault (2009,19)
entende por economia política? A esse respeito ele mesmo lembra que

“Economia política”: os próprios equívocos da palavra e do seu sentido


naquela época indicam aliás que se tratava fundamentalmente, pois
vocês sabem que a expressão “economia política”, você a vêem entre 1750
e 1810-1820, oscilar entre diferentes polos semânticos. Ora se trata de
visar, através dessa expressão, certa análise estrita e limitada da produção
e circulação das riquezas. Ora por “economia política” entende-se
também, de forma mais ampla e mais prática, todo o método de governo
capaz de assegurar a prosperidade de uma nação. E, finalmente [a]
economia política – por sinal é o termo que vocês veem utilizado por
Rousseau em seu célebre verbete “Economia Política” da Enciclopédia -,
a economia política é uma espécie de reflexão geral sobre a organização,
a distribuição e

Conforme essas palavras sugerem, Foucault (2009) entende uma dupla posição
no contexto de uma história política da governamentalidade. De um lado, a economia
política trata-se da sistematização e da distribuição de riquezas e, de outro lado, ela refere-
se a garantia da prosperidade de uma nação. Mas, o que parece sintetizar adequadamente
a economia política seria toda estratégia calculada e refletida sobre a organização, a
distribuição e a limitação dos poderes, fazendo dela um princípio intrínseco a razão de
Estado já que os seus objetivos favorecem o enriquecimento do Estado e, ao mesmo tempo
acompanham o crescimento da população concedendo-lhe os meios necessários para a sua
subsistência.
Ocorre que, com a emergência do liberalismo, cada vez mais a economia política
passa a sinalizar as possibilidades para limitar o crescimento e a intervenção do próprio
Estado na vida dos indivíduos, pois para Foucault (2009, 39)

Essa nova arte de governar se caracteriza essencialmente, creio eu,


pela instauração de mecanismos a um só tempo internos, numerosos e
complexos, mas que têm por função – é com isso, digamos assim, que se
assinala a diferença em relação à razão de Estado – não tanto assegurar
o crescimento do Estado em força, riqueza e poder, [o] crescimento
indefinido do Estado, mas sim limitar do interior o exercício do poder
de governar.

Evidentemente que, para Foucault (2009), não se trata de afirmar que o liberalismo
seja uma espécie de suspensão do efeito da razão de Estado, mas sim uma inflexão sobre

111
A biopolítica como paradigma de governo: uma genealogia...

o qual circula um novo efeito de uma razão de Estado mínimo e, é justamente na esteira
dessa nova modalidade de uma utopia liberal por um Estado mínimo que se inaugura um
efeito paradoxal sobre os procedimentos de governamentalidades: a reincidência de práticas
subversivas que tencionam as intervenções de uma modalidade de governo que se diz e pretende ser
liberal. Dito de outro modo, o problema para Foucault (2009), não seria o de pensarmos a
legitimidade ou não do legalismo jurídico e seus efeitos constitucionais, mas sim a condição
paradoxal da arte liberal de governar: como exercer um governo sobre a população e, ao mesmo
tempo, garantir as liberdades individuais? O liberalismo, como podemos enxergar, instiga
o desenvolvimento de práticas que operam sob a perspectiva de que deve-se governar o
mínimo possível e, ao mesmo tempo, não deve deixar-se de intervir sobre a conduta da
população.
Foucault (2009) trata, portanto de pensar as articulações entre essa nova modalidade
de governo inaugurada com o liberalismo no contexto de um novo regime de verdade e,
para contextualizar tal modelo, ele procura explorar as nuances da governamentalidade
como objeto privilegiado da criação de procedimentos de vigilância e controle muito mais
sutis do que os existentes em outros momentos históricos. No contexto do liberalismo,
esses procedimentos são um produto não dos economistas, mas do mercado econômico.
No sentido de estabelecer uma genealogia dessa prática Foucault (2009) apresenta-
nos a tese de que suas emergências e proveniências remetem ao exercício do governo praticado
pelo poder pastoral. Na Idade Média, segundo Foucault (2009), o governo era compreendido
como uma questão de justiça a partir de seus múltiplos sentidos. Primeiramente por conta
da sua atenta regulação desde a fabricação de objetos até sua posterior comercialização.
Havia também uma função jurídico-administrativa a qual o mercado era concebido por
meio da aplicação de uma política do preço justo mediada por uma acepção de justiça
distributiva, isto é, uma modalidade de mercado que procurava fomentar o acesso – senão
a todos, pelo menos a grande parte do povo – e, por fim, o mercado era o operador de
regulamentação das possíveis fraudes. Dentro dessa modalidade originária, um mercado
ruim era aquele que deixava-se contaminar pelas fraudes e pela ausência de um preço
justo e a inacessibilidade dos produtos aos sujeitos. Portanto, o poder pastoral tinha como
finalidade procurar regular o mercado de todas as maneiras concentrando, dessa maneira,
a impossibilidade da taxação dos juros acirrarem a competição entre os sujeitos e, a sua
consequente degradação moral. Um emblema dessa modalidade de mercado econômico
é a peça O Mercador de Veneza, na qual Shakespeare (1978) aponta o sentido tragicômico
de um mercado pastoral já em crise, e os contornos de uma nova modalidade, para tal
prática com a ascensão da classe burguesa. A peça shakespeariana caracteriza-se como uma
elipse entre o poder pastoral e a razão de Estado moderna por meio do encontro entre as
modalidades de mercado que deveriam ser mediadas pelo poder pastoral e a nova, e cada
vez mais crescente onda de proliferação de dispositivos próprios a uma outra economia
que tomará os juros como elemento essencial para a emergência no século XVIII de um
mercado mais independente em relação ao Estado. Entretanto, a pergunta que permanece
é: qual seria, precisamente esse novo sentido atribuído pela governamentalidade do século XVIII
ao mercado econômico? Foucault (2009) aponta que ele seria composto por um duplo aspecto:
de um lado, emerge, com o liberalismo, uma nova noção de mercado duramente atrelada
aquilo que os fisiocratas denominavam como lei dos mecanismos naturais, isto é, em nenhum
momento a razão de Estado deveria intervir sobre os aspectos espontâneos das regras de
oferta e de procura. Do outro lado, o mercado deveria tornar-se um regime de verdade, ou

112
Rodrigo Diaz de Vivar y Soler

melhor, uma forma de veridicção pela aproximação ao máximo possível tanto do custo da
produção quanto da extensão da demanda e, nesse sentido, tem-se início o que se conhece
por oscilação econômica, um traço que rechaçará a demanda do preço justo e apresentará
o contexto do preço verdadeiro, pois segundo Foucault (2009, p. 47)

O que seria preciso fazer se quiséssemos analisar esse fenômeno,


absolutamente fundamental, a meu ver, na história da governamentalidade
ocidental, essa irrupção do mercado como princípio de veridicção, [seria]
simplesmente efetuar, relacionando entre si os diferentes fenômenos que
eu evocava há pouco, a inteligibilização desse processo, mostrar como ele
foi possível... Isto é, não se trata de mostrar o que de todo o modo é uma
tarefa inútil – que ele teria sido necessário, tampouco que um possível,
um dos possíveis num campo determinado de possíveis.

Essa perspectiva de mercado como modo de veridicção inaugura um sentido


ontológico, uma vez que ela procurará pensar as regras e efeitos do desvelamento do ser
da verdade do mercado a partir de traços voltados para os jogos de objetivação do sujeito.
Equivale dizer que o exercício de uma genealogia do mercado ultrapassa os limites
habituais da economia para se inscrever no terreno das estratégias de saber e das práticas
de poder. Estamos diante – e o próprio Foucault (2009) admite isso – de uma questão
metodológica no horizonte analítico foucaultiano segundo o qual o problema não seria
o de se estudar os fundamentos de uma natureza humana, mas sim perceber como os
modos de veridicção oportunizam pensarmos as diferentes articulações entre as formas de
subjetividades e os diferentes regimes de verdades que, a partir da governamentalização da
biopolítica desdobram-se por meio das regras de mercado ou ainda do que Gimbo (2017)
chama de antropologia normativa.
Em outras palavras, o problema do mercado econômico não se limita em constituir
uma busca pela origem do mercado. Ou seja, Foucault (2009) não está interessado uma
história da monetarização, mas sim pensar o mercado como prática refletida de veridicção,
ou seja, uma prática voltada para uma grade de inteligibilidade não por meio de uma
concepção jurisdicional, mas sim por uma veridicção associada a sua natureza.
Por sua vez, a profusão desse desvelamento da verdade do mercado implicará na
constituição de práticas voltadas para os padrões de verdades que irão diferenciar as boas
das más ações de governo, bem como oportunizar a consolidação do traço fundamental de
um Estado cada vez mais prostrado aos mecanismos naturais de preços. Isso significa que
estamos diante de um modo de gerenciamento estratégico definido pela economia na qual o
mercado ganha um tom de prática de veridicção como um modelo de governamentalidade
que não se amparará somente na justiça, mas no cambiante fluxo dos instrumentos de
governamentalização da vida, ou seja, é o mercado quem será o responsável por afirmar
se há um bom governo ou não, uma vez que um governo justo, ou pelo menos amparado
em dispositivos jurídicos fortes é incapaz de se sustentar, mas um governo que deixe a
veridicção do mercado circular segundo as mesmas normas das leis naturais, poderá exercer
sua sustentabilidade mesmo que para isso deixe padecer na miséria todos aqueles que não
são contemplados pelas regras da economia neoliberal.
Desse modo, percebe-se que o novo problema dessa modalidade de mercado
praticado pela economia neoliberal coloca em relevo uma outra racionalidade em torno
da qual circulam as relações entre a governamentalidade, os modos de veridicção e os

113
A biopolítica como paradigma de governo: uma genealogia...

dispositivos jurídicos. Conforme aponta Candiotto (2010), esse novo problema relacionado
a governamentalização do mercado econômico sinaliza que, a partir do liberalismo não se
trata mais de opor o poder real da instituição judiciária, ao exercício da soberania, mas sim
procurar formular os procedimentos necessários para um bom governo com base na sua
própria autolimitação a partir da seguinte problematização elaborada por Foucault (2009,
p. 52): “se há uma economia política, o que acontece com o direito público?” A resposta
em torno de tal questionamento consiste na possibilidade dessa governamentalização do
mercado econômico sempre delimitar em torno de quais condições o Estado deve ou
não deve interferir na economia a partir dos critérios dos modos de veridicção. Emerge,
nesse contexto um enunciado muito importante rastreado por Foucault (2009): o fato
de que, desde as primeiras décadas do século XVIII o modelo de governamentalidade
liberal insistiu na produção de uma lógica cada vez mais perversa segundo a qual a todo
o momento o estado democrático de direito deve estar assujeitado a economia de mercado. Ou
seja, para que o primeiro possa existir, é preciso que, a segunda sempre dite as regras e os
modos de veridicção de cada época pela lei natural de um mercado econômico totalmente
utilitarista. Essa perspectiva crítica nos ajuda a compreender, portanto como o reino da
soberania se curva ao governo da economia de mercado a partir de um claro tensionamento
entre a governamentalidade liberal, a economia política e o direito por meio de uma clara
composição de forças por meio de uma economia política da verdade que interpela o
Estado e, ao mesmo tempo integra o direito à realidade econômica do mercado.
Entretanto, é importante destacarmos que tal inflexão deve ser compreendida a partir
de uma espécie de jogo de duplos entre o que Foucault (2009) chama de via axiomática
jurídico-dedutiva e o jogo da prática governamental. Enquanto que a primeira remete a
uma tradição que liga o direito à Revolução Francesa partindo não do governo, mas da
constante fundamentação de um sentido originário e, ao mesmo tempo, tenta garantir a
todos os indivíduos as condições de igualdade e garantias fundamentais. Já a outra dobra
dessa inflexão corresponde aos jogos de verdades produzidas pela governamentalidade a
partir de um limite utilitarista que se interessará em fixar as regras de um mercado desejante
responsável por definir as fronteiras entre lícito e ilícito no contexto das funcionalidades
econômicas.

Considerações Finais
Conforme pudemos observar, uma genealogia do mercado econômico em Michel
Foucault nos auxilia a pensar os sentidos pelos quais, a partir do liberalismo passa a se
configurar, na nossa sociedade os elementos de uma veridicção da economia responsável
por introduzir uma prática refletida de governo, segundo a qual os tensionamentos entre
subjetividade e garantias fundamentais passam a ser inseridos dentro de um programa
econômico que gerencia as condutas por meio de uma grade de inteligibilidade de modos
de subjetivação nos quais o regramento ético é modulado pela financeirização da vida, isto
é, modos de vida e afecções em que os indivíduos são grandes e pequenos avalistas de um
permanente empresariamento de si mesmo. Na realidade o que está em jogo é a manutenção
do interesse dentro do contexto da prática jurídica o que significa que, o grande teatro dos
aparatos jurídicos, nada mais são do que a própria dimensão de uma espetacularização
que obedece a grade de inteligibilidade do mercado econômico acarretando a formação
de um processo que aqui poderíamos nomear como a judicialização do mercado como espaço
de legitimidade dos interesses neoliberais. No contexto de uma ética do homo oeconomicus tão

114
Rodrigo Diaz de Vivar y Soler

relevante ou mais do um princípio de direito natural é a mecânica dos interesses naturais.


Em outras palavras, o que o mercado neoliberal faz é a modulação da prerrogativa do
sujeito de direitos a uma forma empírica na qual o indivíduo jamais pode renunciar a
política de interesses do contexto econômico. Imprime-se portanto, uma espécie de marca
nesse indivíduo qual seja, a de que ele pode ser governamentalizado a partir das regras
prefixadas pelo mercado.
Nesse caso, a operatividade do mercado econômico acaba por constituir um sentido
ético e existencial por uma vida regrada pela relação de uma máquina econômica que gira no
vazio conforme aponta Agamben (2012), ou seja, com se o mercado econômico orientasse
todo o estatuto jurídico e epistemológico do sujeito fazendo com que os interesses
econômicos sempre orientem todos os dispositivos jurídicos. Nesse sentido, é oportuno
pensarmos como o liberalismo ventila a economia como um fundamento ético para todas
as condutas objetivadas pelas regras flutuantes do mercado.

115
A biopolítica como paradigma de governo: uma genealogia...

Referências bibliográficas:
AGAMBEN, Giorgio. O Reino e a Glória: uma genealogia teológica da economia e do governo.
São Paulo: Boitempo, 2012.
Candiotto, Cesar. A governamentalidade política no pensamento de Foucault. Filosofia
Unisinos.11(1):33-43, 2010.
Disponível:revistas.unisinos.br/index.php/filosofia/article/view/4632/1856.Acesso:
7/09/2018.
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: M. Fontes, 1999.
FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
FOUCAULT, Michel. Do Governo dos Vivos. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
FOUCAULT, Michel. O Governo de Si e dos Outros. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
FOUCAULT, Michel. A Coragem da Verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2014a.
FOUCAULT, Michel. A Filosofia Analítica da Política. In Foucault, M. Ditos e Escritos V:
ética, sexualidade, política. (pp.36-54). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014b.
FOUCAULT, Michel. Omnes et Singulatim: uma crítica da razão política. In FOUCAULT,
Michel. Ditos e Escritos IV: estratégia, poder-saber. (pp.348-378). Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2015.
GIMBO, Fernando Sepe. Uma arqueologia do mercado. Kalagatos. V. 14, N. 2. p. 145-
163, 2017. Disponível: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/6137728.pdf. Acesso:
14/09/2018.
SENELLART, Michel. A crítica da razão governamental em Michel Foucault. Tempo
Social. V.7,N.1-2,p.1-14,1995.Disponível: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0103-20701995000100001&lng=en&nrm=iso>. Acesso: 17/09/2018.
SHAKESPEARE, Willian. As alegres comadres de Windsor. Medida por medida. O sonho de
uma noite de verão. O mercador de Veneza. A megera domada. São Paulo: Ed. Abril Cultural,
1978.

116
Rodrigo Ribeiro Alves Neto

Tensões constitutivas entre poder, violência


e autoridade em Hannah Arendt

Rodrigo Ribeiro Alves Neto1

Para Arendt, as catástrofes políticas do século XX revelaram o quanto a equação


do poder com os meios da violência representa uma efetiva ameaça de destruição do
sentido da política. A aterrorização das massas nos governos totalitários foi a maior
expressão da conexão entre poder e violência, mas essa assimilação foi também recorrente
em nossa tradição de pensamento político, como se o poder fosse um fenômeno político
da dominação, do mando e da submissão. Em face do predomínio da violência no
cenário político do nosso tempo, Arendt descobriu que a filosofia política tradicional,
lamentavelmente, não nos socorre na tarefa de elucidação de um sentido eminentemente
político do poder, evidenciando sua relação com a ação, a esfera pública, a liberdade e a
pluralidade humana. O perigo, para Arendt, reside na legitimação da violência como algo
natural e o poder como naturalmente violento. Arendt buscou recusar as tentativas de
naturalizar o poder como violência e de justificar a violência como uma forma inevitável
do poder. Por isso Arendt busca superar a assimilação dos instrumentos da violência ao
poder, pois fazer da violência a mais expressiva manifestação do poder reduz a política a
mero meio para a obtenção e o exercício do poder. Para evitar a naturalização da violência,
Arendt retoma outras experiências que foram “possíveis” com o poder político, recorrendo
a noção clássica das polis grega nas quais se criou a prática da isonomia entre os cidadãos
para o exercício do poder como uma forma de ação conjunta entre iguais. A política
foi experimentada aí como a neutralização da violência, pois nela somos seres únicos
entre iguais, sem dominar ou ser dominado, pois ninguém tem direito natural a impor-
se, com violência, sobre os outros, uma vez que o poder pressupõe deliberação e ação
conjunta com base na pluralidade humana. O poder é um fenômeno político justamente
porque está assentado na ação não violenta. Arendt, diferentemente da filosofia política
tradicional, não busca pensar os modos de obtenção, exercício e manutenção do poder
governamental, mas a geração de poder pela ação coletiva de uma pluralidade de seres
singulares, visto que é a capacidade de agir em conjunto que gera o poder de que se podem
valer os governantes.
Da mesma forma, para Arendt, a ruptura totalitária iluminou o esgotamento das
bases da convivência humana que marcaram a tradição ocidental: tradição, autoridade e
religião. O totalitarismo seria, em muitos aspectos, uma resposta destrutiva para a falência
das instituições políticas tradicionais no século XX e o desafio de viver em um mundo
caracterizado pelo fato de não depender de autoridade, de religião e de tradição para ser

1 Professor Associado do Departamento de Filosofia da UNIRIO e Professor Colaborador do PPGFIL da UFRN

117
Tensões constitutivas entre poder, violência...

instituído e preservado. A autoridade possui sempre uma força superior cuja fonte deve
transcender o poder e os que o detêm, da qual as autoridades derivam sua legitimidade e têm
seu poder confirmando. Essa é a diferença essencial entre a tirania e o governo autoritário,
ou seja, o primeiro impõe mediante o uso da violência uma dominação que atende ao
arbítrio e ao interesse do tirano, expulsando os homens da esfera pública, ao passo que,
o segundo pretende reivindicar a obediência às leis e instituições mediante a instauração
predeterminada de uma fonte de legitimidade que assegure sem violência ou persuasão ao
exercício do poder. A relação de autoridade é fortemente hierarquizada e desigual, marcada
pela obediência voluntária e assentada sobre algo pré-estabelecido. A permanência do
mundo comum só pode ser garantida se os que nele são recém-chegados por nascimento
forem acolhidos e guiados através de um mundo preestabelecido no qual nasceram como
estrangeiros. Os homens chegam ao mundo em comunidades políticas já previamente
constituídas que pressupõem o reconhecimento à autoridade de seu ordenamento jurídico
e de suas instituições. Por isso a autoridade, assentada sobre o ato fundacional do corpo
político, confere ao mundo comum a permanência, a continuidade e a estabilidade de
que os homens necessitam por serem mortais. A autoridade, em contraposição ao poder,
tem suas raízes no passado pré-estabelecido, ainda que ele deva ser tão presente na vida
real da comunidade política quanto o poder e a força dos vivos, pois reivindica respeito e
obediência voluntária dos cidadãos. É neste movimento de “aumentar” o passado em sua
vitalidade que reside a solidez do ato fundador na criação de comunidades politicamente
organizadas. Arendt enxergou na experiência romana da autoridade o quanto a fundação
de um autêntico mundo comum não está alicerçada apenas em uma pluralidade de homens
singulares, mas também em uma pluralidade de seres mortais que, enquanto tal, constitui
uma pluralidade de gerações dependente da continuidade, da estabilidade e da durabilidade
da esfera pública.Uma comunidade política que necessite de violência não tem autoridade.
Por isso o apelo à violência nunca poderá restabelecer a autoridade, como se a violência
pudesse exercer a mesma função atribuída à relação autoritária, ou seja, a subordinação. A
autoridade pressupõe reconhecimento daqueles que devem obedecer, dispensando, deste
modo, tanto a coerção pela força (não demandando o uso efetivo dos implementos para
funcionar) quanto a persuasão por argumentos (pois não é uma relação igualitária, mas sim
hierarquizada). A distinção entre poder e autoridade exprime, portanto, a oposição entre
o poder instituinte, inovador, espontâneo e livre da ação e a firme continuidade pública de
uma moldura institucional estável.
Essas distinções entre poder, autoridade e violência revelam que Arendt não é apenas
a pensadora do caráter agonístico, frágil e plural da ação política, buscando ressaltar seu
sentido performático, espontâneo e não-violento, enfim, sua dimensão pré-institucional,
indeterminada e imprevisível. Sem dúvida, a autora concebe a ação a partir da natalidade e
da pluralidade, como expressão de uma ilimitada capacidade de estabelecer relações entre
os homens enquanto seres únicos entre iguais, engajados na esfera da aparência e aptos a
ocasionar, mediante atos e palavras, novos processos no mundo comum, gerando poder
instituinte e experimentando a liberdade como o sentido radical da política. Contudo,
embora estabeleça importantes distinções conceituais e fenomênicas, a obra arendtiana
nunca manifesta um mero antagonismo entre poder, autoridade e violência. Se tais aspectos
são opostos, não se trata de apartá-los como dimensões estanques, mas ressaltar o caráter
vinculante que os diferencia, pois eles se distinguem somente porque estabelecem entre
si uma relação ou vínculo diferencial que torna possível a própria existência do “espaço

118
Rodrigo Ribeiro Alves Neto

público”, uma vez que é no âmbito, muitas vezes tenso, embora constitutivo, entre o poder
de iniciar e a capacidade de continuar o que foi iniciado que se realiza efetivamente a esfera
do político.
Essa imbricação entre as distintas dimensões da esfera política fica muito mais
evidente quando se trata de pensar um tipo especial de ação, a revolucionária, aquela que
funda o corpo político, a “ação fundadora”. Nessa forma de ação política reside uma dupla
perplexidade inerente à situação revolucionária, qual seja: a conjugação do poder e da ação
política com a violência e a autoridade. É por isso que se torna instigante examinar em
que medida o contexto de análise da obra “A Condição Humana” (2010) pode servir como
contraponto ou contraste em relação à abordagem presente na obra “Sobre a Revolução”
(2011), como se essa última exigisse de Arendt uma revisão que ampliasse sua reconsideração
fenomenológica da vida política e seu diagnóstico crítico da era moderna, tendo que
reconhecer a particularidade da situação revolucionária e as perplexidades que lhes são
inerentes. Na obra “Sobre a revolução”, o contexto de discussão se altera profundamente,
pois Arendt não aborda a ação no interior de um espaço político já demarcado, sob a
inspiração da pólis grega, mas sim um tipo de ação especial, que é a ação fundadora, sob a
inspiração romana. A ação fundadora é aquela que cria um novo corpo político a partir de
uma ruptura com a ordem político-jurídica anterior. Esse tipo especial de ação, inserida na
situação revolucionária, gera uma dupla perplexidade sobre o vínculo diferencial entre poder
e violência e entre poder e autoridade.
Na primeira perplexidade está em jogo a presença da violência no ato iniciador,
ou ainda, a violência com geradora de poder, como um fenômeno político e não como
transgressão criminosa da política ou ausência de autoridade, mas sim de uma violência
na política. Enfim, na obra “A Condição Humana”, Arendt ensina que a política e o poder
de ocasionar o novo no mundo comum são expressões de uma ação não violenta. A força
e a violência são características da esfera doméstica ou pré-política, que eram justificadas
na pólis grega por serem os únicos meios de vencer a necessidade (subjugando os escravos,
por exemplo). Ali Arendt afirma que toda intervenção violenta seria “instrumental”, pois
não tem valor em si mesma, ao passo que a ação política é livre justamente porque tem seu
fim em si mesma. A violência seria uma característica da fabricação e não da ação política.
Contudo, na obra “Sobre a Revolução”, o contexto é outro, pois Arendt parece
constatar que os homens na revolução experimentaram a perplexidade da conjugação
entre novo início e violência, pois na situação revolucionária, a força instituinte do mundo
comum precisa do uso da violência como única solução política à violência do poder
instituído. A perplexidade aqui é que a revolução gera poder e, assim, é um fenômeno
político, mas esse poder pode vir vinculado à violência, revelando que a revolução é um
fenômeno mais complexo, característico da era moderna e inteiramente contrastante com
a pólis grega na qual se descarta a oposição entre poder e violência. Parece que a obra
Sobre a Revolução exigiu de Arendt uma reconsideração crítica que ampliou seus conceitos
políticos e seu diagnóstico da era moderna, tendo que reconhecer a particularidade da
situação revolucionária. Nesse contexto, Arendt parece problematizar a rígida separação
entre poder e violência como compartimentos independentes no mundo fenomênico.
Como esclarece Duarte:

Arendt se afasta de uma concepção utópica da política, em que o poder


não manteria qualquer relação com a violência, bem como recusa um

119
Tensões constitutivas entre poder, violência...

modelo de uma comunidade política plenamente pacificada e purificada


de todo conflito, o qual, por sua vez, frequentemente suscita o emprego
da violência. O pensamento político de Arendt não recusa teoricamente
o uso dos meios da violência, seja por parte do poder constituído, seja
por parte do poder constituinte revolucionário, nem tampouco deixa de
considerar as frequentes interações entre poder e violência, de modo que
sua distinção conceitual não deveria ser entendida nem como prova do
distanciamento de sua reflexão em relação ao domínio da experiência
política moderna, nem como sinal do caráter rígido e abstrato de seus
conceitos (2016, p. 16).

Para lidar com a perplexidade da conjugação entre poder e violência, o esforço de


Arendt é mostrar que, embora a violência seja um fator presente em todas as revoluções, só
na medida em que se consegue ultrapassá-la, criando algo novo por meio do estabelecimento
de novas relações entre os homens, é que podemos falar em ação propriamente fundadora.
Arendt vai ter que vincular revolução e fundação para desvincular o início de um corpo
político de um ato violento, mero crime ou transgressão. O desconcertante aqui parece ser
que a tarefa da fundação reside não na glorificação da violência, mas no desafio de salvar
o ato de iniciar da sua própria arbitrariedade, de modo que a violação da ordem anterior
funde a liberdade e não se confunda com uma mera tomada do poder, como se fosse um
mero golpe de Estado que implementasse o domínio pelos meios da pura violência sem
criar poder, uma vez que a irrupção da violência como fenômeno puro advêm justamente
quando o poder e a liberdade são destruídos. Por isso salvar o ato revolucionário da sua
própria arbitrariedade significa não permitir que a violência e a arbitrariedade se tornem
pré-requisito do poder e o próprio poder não passe de uma mera fachada sem qualquer
legitimidade e participação ativa dos cidadãos. Salvar o ato de iniciar de sua própria
arbitrariedade é impedir a autonomização ou o desatrelamento absoluto da violência
em relação ao poder. Na situação revolucionária, sem o respaldo do poder, a violência
não surtirá efeito algum. Por isso salvar o ato iniciador de sua arbitrariedade significa
não permitir que a violência se torne independente do poder e monopolize o curso dos
assuntos humanos, como aconteceu na Revolução Francesa, com o incremento do terror.
Um corpo político não pode ser fundado exclusivamente pelos meios da violência. É por
isso que Arendt ressalta a embriaguez dos revolucionários franceses com “o vinho da
liberdade”, de tal modo que, temendo o seu desaparecimento com o fim da revolução,
desdobraram a revolução ininterruptamente. A fundação de um corpo político com
espaços institucionais para o exercício da liberdade foi totalmente perdida, cedendo lugar
a um ímpeto revolucionário sem freios, no qual o suposto poder não encontra limites
na autoridade, visto que a autoridade confunde-se com o poder e ambos se resumem à
Vontade do Povo. Concebendo essa vontade como a fonte do poder e a fonte da autoridade,
os revolucionários franceses teriam tornado instável ou inconstante justamente aquilo que
poderia conferir alguma durabilidade ao corpo político, pois a própria lei se transforma na
“lei da revolução”.
A segunda perplexidade reside no fato de que as revoluções são genuínos
acontecimentos políticos que dão visibilidade à ação, à liberdade e à natalidade, enfim, à
origem do político, mas, ao mesmo tempo, a ação fundadora se vincula com a busca por um
fator de estabilização e conservação do corpo político, o que parece extrínseco à liberdade,
cujo domínio de experiência é a ação. É que no contexto de análise da obra “A Condição
Humana”, todo o esforço consiste em evidenciar a dignidade da política, da ação livre

120
Rodrigo Ribeiro Alves Neto

como um fim em si mesmo, do poder conjugado da ação coletiva que dispensa justificativa,
pois o poder não está fundado em nenhuma outra instância extra-política. É por isso que
as próprias revoluções modernas são pensadas aí como expressões da confusão entre ação
e fabricação e da fusão entre poder e violência. Nesse aspecto, as revoluções modernas
seriam até mesmo marginais em relação à esfera propriamente política. Mas no contexto de
discussão da obra “Sobre a revolução”, Arendt reflete sobre o modo como a ação fundadora
precisa encontrar uma nova fonte de autoridade que conceda legitimidade ao poder
político sem recorrer ao absoluto transcendente. Isso ocorre porque a ação fundadora é
uma ruptura na história e, assim, vem acompanhada da pergunta pela autoridade daqueles
que estão a iniciar um novo começo ou uma nova instituição do mundo comum na qual
os signatários se constituem como tal no próprio ato da assinatura, como diz Derrida. As
questões que se colocam são: Como pensar o ordenamento jurídico-político sem recorrer ao
absoluto transcendente? Como estabelecer uma fonte de legitimidade capaz de constituir
os constituintes e permitir que alguns possam falar em nome do povo?
Se o poder, como fim em si mesmo, não necessita de justificação, ele requer sempre a
legitimidade que lhe é conferida por uma fonte de autoridade que dispensa a ação, a persuasão
e a violência. O problema da autoridade consiste na tarefa política de preservação do mundo
comum que, sem necessidade de coerção e persuasão, mantenha-se em continuidade
com suas fundações, conferindo relativa permanência e amplo reconhecimento às suas
instituições em face dos sempre frágeis, imprevisíveis, ilimitados e inconstantes negócios
humanos. A tarefa que Arendt se põe diante do declínio da autoridade no mundo moderno
consiste em pensar sobre o que, em um mundo secular já sem a força da autoridade política,
nos moldes tradicionalmente concebidos, poderia desempenhar politicamente este papel
de conservação, legitimidade e durabilidade às instituições políticas?
Ultimamente essa abordagem mais “institucional” da reflexão arendtiana vem
recebendo cada vez mais atenção dos intérpretes (WALDRON, 2000; KALYVAS,
2006; TASSIN, 2016; D’ALLONES, 2008, ADVERSE, 2012, TORRES, 2013). Trata-
se do problema da conservação e da continuidade pública, ou ainda, da capacidade de
estabilização e manutenção do corpo político. Esse aspecto é pouco explorado e muitas
vezes negligenciado certamente porque alguns outros textos da autora, especialmente o
livro “Sobre a Revolução”, são ainda menos conhecidos e discutidos, pois neles encontramos
uma reflexão mais detida sobre a “duração pública”. O que gera perplexidade aqui é a ação
que ocasiona o novo no mundo precisar de uma fonte de autoridade que a salve de sua
arbitrariedade, ou seja, a ação coletiva inovadora só será fundadora se estiver conjugada
com um fator de estabilização, permanência e conservação do mundo comum. A questão
é como conferir estabilidade para um ordenamento legal consentido e legitimidade para a
conservação das instituições do novo corpo político fundado pela revolução. A perplexidade
que as revoluções provocaram na modernidade secular foi o desafio de encontrar um novo
alicerce para a fundação de um mundo comum, com seu significado político materializado
em uma Constituição que, excluindo qualquer princípio absoluto de estabilização do corpo
político, preserve a autoridade, o reconhecimento e a continuidade do espaço institucional
e, ao mesmo tempo, garanta o espaço da ação conjunta de cidadãos livres e ativos, aptos a
introduzirem a novidade e revitalizarem a esfera pública. Somente precisamos de uma fonte
transcendente de autoridade quando entendemos a lei como um mandamento ao qual os
homens devem obediência absoluta, independentemente de seu consentimento ou acordos
mútuos. Arendt tentar mostrar que, quando a ação funda a liberdade em uma República

121
Tensões constitutivas entre poder, violência...

Constitucional, não há necessidade de buscar uma fonte transcendente de autoridade, ou


seja, uma origem que deva situar-se para além do poder humano para fundar o poder e as
leis da comunidade política.
A Constituição seria essa fonte da autoridade em um novo corpo político,
pois recorda aos cidadãos a ação primeira e fundadora com a qual veio à existência a
comunidade política. A obra “Sobre a Revolução” revela o quanto o poder de iniciar não
subsiste sem a capacidade de continuar, que reside na fundação da autoridade e do próprio
espaço institucional que vai conferir durabilidade e objetividade ao mundo comum.
Assim como a revolução causa perplexidade porque conjuga poder e violência na tarefa
de fundação de um novo corpo político, ela causa também outra perplexidade porque
revela a exigência de conjugação entre poder e autoridade. Poder e violência e poder e
autoridade não se confundem, mas não são excludentes, pois estão relacionados no ato de
fundação ou na tarefa de fundação de um novo corpo político. Embora seja opostos entre
si, poder e autoridade fundam o espaço político, pois é a coexistência entre tais dimensões
da vida comum que possibilita a própria existência do espaço público. A revolução não
é só a capacidade de ocasionar um novo começo para o mundo comum, mas também a
capacidade de continuar o que foi começado, dar ao mundo a estabilidade e a conservação
necessárias para o ele se torne o lar não-mortal de seres mortais. Portanto, está em jogo na
ação fundadora o que Arendt chama de “constituição da liberdade”, ou seja, uma dualidade
entre poder e autoridade, a ação constituinte e as instituições, leis e normas de governos a
serem constituídas (Cf. TORRES, 2013).
A estratégia para salvar a ação fundadora de sua própria arbitrariedade foi depositar
a autoridade no próprio ato da fundação, transferindo essa mesma autoridade para o
produto do processo revolucionário, qual seja: a Constituição. Se o fundamento do poder
é o povo, a fonte da lei se encontra na Constituição, podendo ser abordada de diferentes
ângulos, sujeita a muitas interpretações, podendo ser emendada segundo as circunstâncias,
mas sem jamais se tornar volúvel em seus princípios, valores e aspectos fundamentais, não
estando a mercê de algum estados de espírito subjetivo, como a vontade. A Constituição
cumpre o papel de delimitar o espaço público igualitário e normatizado que, contudo,
não se opõe ao poder instituinte, uma vez que torna possível a criatividade da ação. Sem
essa proteção estabilizadora da lei, o espaço público não teria a necessária continuidade
ou permanência para além do fluxo vivo da ação e da fala. Não há, então, uma oposição
excludente entre poder e autoridade, entre Política e Direito ou entre o compartilhamento
democrático do mundo e a moldura institucional durável do mundo comum, mas sim uma
relação de complementariedade e tensão constitutiva que impede a redução do Direito a
uma atividade exclusiva do homo faber; como a própria Arendt afirma na obra “A Condição
Humana”. Nessa obra, a esfera do político é abordada como precedendo toda e qualquer
constituição formal da esfera pública e as várias formas de governo, uma vez que a sua
própria existência depende diretamente de que os homens permaneçam juntos e dispostos
a agir e falar entre si, desaparecendo quando quer que eles se vejam isolados uns dos outros.
Nesse sentido, trata-se também de um espaço que existe apenas potencialmente, isto é,
enquanto possibilidade, nunca necessariamente ou para sempre.
No entanto, na obra “Sobre a Revolução”, é examinado o desafio fundamental
trazido pela moderna secularização, qual seja: a tarefa de fundar um novo corpo político
secular (sem sanção religiosa e recurso ao absoluto) que seja capaz de conciliar liberdade,
igualdade e autoridade, ou seja, que compatibilize e vincule, em um equilíbrio sempre

122
Rodrigo Ribeiro Alves Neto

instável, a autoridade e a iniciativa, a inconstância dos negócios públicos e a continuidade


pública do mundo comum, a moldura institucional durável e o caráter performático e
inovador do poder conjugado da ação, o poder constituído e o potencial constituinte da
ação livre. Para Arendt, a relação entre o direito e a política é necessariamente tensa e
jamais solucionável de uma vez por todas. O reconhecimento desta tensão se manifesta
na concepção arendtiana de que o direito é simultaneamente uma fonte de estabilização
da criatividade potencial de toda ação coletiva bem como uma fonte de criação de novos
espaços de liberdade.
A sua ênfase no papel estabilizador e conservador da autoridade em nada exprime
o conservadorismo que os considera inflexíveis e absolutos. Refletindo tanto a respeito
do poder incorporado na ação e sua capacidade para ocasionar o novo quanto sobre a
autoridade enquanto fator estabilizador do corpo político, a obra arendtiana não exprime
contradição ou incongruência, mas revela o equilíbrio instável ou a tensão relacional
presente entre a necessidade de conservação e a tarefa de renovação do corpo político.
Isso ocorre porque o vir a ser descontínuo da novidade no mundo comum só se torna
possível em tensão com a continuidade do que já é. Para trazer o novo à teia de relações
humanas pré-existentes é preciso um contexto mundano estável, conservado e garantido
por um ordenamento constitucional e pelas instituições que o preservam. Os limites das
leis positivas constituem a garantia de um mundo comum capaz de durar para além da
fugaz duração individual de cada geração. As leis têm por função estabelecer as fronteiras
e os canais da intersubjetividade humana, proporcionando estabilidade a um mundo
essencialmente marcado pela mudança que a natalidade traz consigo potencialmente.
A tensa relação entre poder e autoridade traz à tona o desafio de fundar um novo
corpo político capaz, por um lado, de se conservar mediante um conjunto de leis e limites
normativos permanentes que gerem autoridade, reconhecimento e consentimento, mas,
ao mesmo tempo, que esteja aberto aos espaços de ação, discussão, dissenso, resistência,
enfim, da formação de coletivos de atuação política nos quais o agonismo, a pluralidade e
a liberdade possam sempre tensionar a representação política com a participação política,
testando a própria legitimidade do poder instituído. O direito não deve domesticar e
normatizar a criatividade política, como um arcabouço normativo rígido, capaz de formatar
a priori a política, asfixiando as interações humanas e engessando os negócios públicos.
As determinações democráticas radicais da vida política reivindicam autonomia do poder
instituinte em relação ao Direito, porque a ação política ocasiona o novo e, dada sua
imprevisibilidade, transcende e desafia os limites do ordenamento legal pré-estabelecido.
De tal modo que o recurso à esfera jurídico-normativa não é capaz de impedir o caráter
ilimitado da ação conjunta e não é suficiente para garantir o caráter performático da ação
livre.
Desse modo, o poder constituído e o poder constituinte estabelecem entre si
uma tensão constitutiva que dá vida e forma ao espaço público. Arendt acredita que a
capacidade humana de Constituição, de fundação e de construção do mundo está
vinculada, por um lado, ao engajamento político com o presente, pois não se trata apenas
da conservação do passado, do já pré-estabelecido, mas, por outro lado, corresponde-
se também ao futuro, ou seja, ao desafio de criar estabilidade e continuidade em meio
à instabilidade e à imprevisibilidade intrínsecas à pluralidade, à ação e ao poder. Eis o
paradoxo da fundação, ou seja, o fato de que o ato fundador nunca pode ser instituído
de forma absoluta, a ponto de abolir ou extinguir a atualidade e a processualidade da

123
Tensões constitutivas entre poder, violência...

ação, pois a vitalidade da fundação envolve criar as condições para que as futuras gerações
possam participar do mundo comum. Por isso Arendt diz que o mundo comum deve
transcender a duração de nossas vidas tanto no passado quanto no futuro, preexistindo
à nossa chegada e sobrevivendo à nossa breve permanência nele. O mundo precisa ser o
que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles
que aqui estiveram antes e aqueles que virão depois de nós. A Constituição, como um
documento escrito ou uma “coisa objetiva durável”, está simultaneamente atrelada à noção
de fundação, aos princípios que a nortearam, ligando-se à ideia de durabilidade pública e
também à experiência política concreta que dá continuidade a uma prática de liberdade
aberta ao novo. Ela não é fruto da capacidade de fabricar que molda a matéria política a
partir da mente sábia do legislador, pois consiste em um ato fundador contínuo e imanente
à capacidade política de se vincular, de prometer, de se comprometer e de assumir pactos
duradouros. A Constituição, como fonte de autoridade, é um fator de estabilização e
conservação do corpo político somente se ela cria e protege os meios ou os espaços pelos
quais o poder será mantido em sua processualidade e atualidade, uma vez que só o exercício
efetivo da ação política, a rememoração constante das práticas de fundação e a atualização
do poder podem fazer durar a vitalidade do espírito fundacional (Cf. TORRES, 2013). O
desafio ao qual à Constituição corresponde consiste justamente na tarefa de manter intacto
o poder que nasceu entre os homens no processo conjugado da ação ou no processo da
fundação.

124
Rodrigo Ribeiro Alves Neto

Referências bibliográficas:
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. Revisão Adriano Correia.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
_____. Sobre a Revolução. Trad. de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras,
2011.
_____. Sobre a violência. Trad. André Duarte. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000.
_____. Entre o passado e o futuro. Trad. R. Raposo. São Paulo: Perspectiva, 2007.
_____. Da violência. Trad. Maria C. Drummond. Brasília: Ed. Universidade de Brasília,
1985.
ADVERSE, H. Uma república para os modernos. Arendt, a secularização e o republicanismo.
Revista Filosofia Unisinos, 13(1):39-56, jan/apr, 2012.
_____. Arendt e a democracia representativa. Pensando – Revista de Filosofia Vol. 9, Nº 17,
2018.
D’ALLONES, Myriam R. El poder de los comienzos: ensayo sobre la autoridad. Buenos Aires:
Amorrortu, 2008.
DUARTE, A. Hannah Arendt: repensar o direito à luz da política democrática radical. In:
Revista Estudos Políticos (ISSN 2177-2851), Número O, 2010.
_____. Poder, violência e revolução no pensamento político de Hannah Arendt. In: Cadernos de
Filosofia Alemã, v. 21; n. 3, 2016, pp.13-27.
_____. Poder e violência no pensamento político de Hannah Arendt: uma reconsideração.
ARENDT, H. Sobre a Violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
KALYVAS, A. Democracy and the politics of the extraordinary: Max Weber, Carl Schmitt, and
Hannah Arendt. Cambridge, Cambridge University Press, 2006.
TASSIN, Etienne. Como continuar o que inicia: a tripla aporia revolucionária. Cadernos
de Filosofia Alemã, v. 21, n. 3, pp.111-122. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.11606/
issn.2318-9800.v21i3p111-122 Acessado em 13/08/2018>.
TORRES, Ana Paula R. Direito e Política em Hannah Arendt. São Paulo: Edições Loyola,
2013.
WALDRON, J. 2000. Arendt’s constitutional politics. In: D. VILLA (ed.), The Cambridge
companion to Hannah Arendt. Cambridge, Cambridge University Press,
p. 201-219. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1017/CCOL0521641985.011 Acessado
em 13/08/2018>.

125
Eventos revolucionários do século XVIII: Revoluções americana...

Eventos revolucionários do século XVIII: Revoluções americana


e francesa – aproximações e distanciamentos

Samarone de Oliveira Lopes1

Para compreendermos as revoluções oriundas da era Moderna, devemos perceber


a ideia de liberdade intrinsicamente ligada à experiência de um novo início, conforme é
concebido por Hannah Arendt. Também devemos nos atentar para o fato de que:

o conceito moderno de revolução, indissociavelmente ligado à ideia de


que o curso da história de repente se inicia de novo, de que está para se
desenrolar uma história totalmente nova, uma história jamais narrada ou
conhecida antes, era desconhecido antes das duas grandes revoluções no
final do século XVIII (ARENDT, 2013d, p. 56).

Logo, podemos perceber que os fenômenos revolucionários que emergem a partir


do século XVIII, dentre eles, a Revolução Francesa e a Revolução Americana, operam em
uma outra perspectiva em relação à experiência política experimentada na Antiguidade.
As revoluções tratam-se da imprevisibilidade da ação. E talvez por isso não seja trivial a
afirmação de Arendt de que:

antes de se engajar no que depois se demonstrou ser uma revolução,


nenhum dos atores tinha o mais leve pressentimento de qual seria o
enredo do drama. Todavia, depois que as revoluções tinham se posto em
marcha, e muito antes que os participantes pudessem saber se aquele
empreendimento resultaria em vitória ou derrota, a novidade da história
e o significado íntimo de sua trama se fizeram evidentes aos atores e
igualmente aos espectadores (ARENDT, 2013d, p. 56).

Para além desta imprevisibilidade acerca dos efeitos desencadeados no curso das
revoluções, elas também inauguraram “uma era totalmente nova, com a criação do calendário
revolucionário, cujo ano I correspondia ao ano da execução do rei e da proclamação da
República” (ARENDT, 2013d, p. 57). Além disso, as revoluções permitiram a possibilidade
de ser livre como experiência única, como experiência nova. Não se tratava, obviamente,
de uma experiência de ser livre enquanto novidade na história do Ocidente, haja vista que
a Antiguidade Grega e Romana tenham possibilitado tal experiência. Antes, tratava-se da
retomada da experiência de ser livre por conta do vácuo de liberdade política que solapou a
humanidade a partir da queda do Império Romano até o surgimento da Era Moderna. Em
grande medida, essa perda da liberdade como possibilidade de se assentar junto aos pares

1 UFG

126
Samarone de Oliveira Lopes

e debater, deve-se ao crescimento da religião cristã e a cristalização da recusa a ocupar-se


dos assuntos humanos, entendido como passageiros.
Tal como o fenômeno da revolução aparecera apenas na era moderna, a palavra
revolução, ou mesmo, alguma alusão a ela, observa Arendt, não havia sido empregada na
historiografia nem na teoria política do começo do Renascimento na Itália. Nem mesmo
Maquiavel, que se ocupava de descrever sobre “a derrubada violenta dos governantes e
a substituição de uma forma de governo por outra”2 tinha uma noção aproximada do
termo revolução e compreendia seu movimento. Para tal, ele recorria ao termo de Cícero:
mutatio rerum3. Todavia, não obstante o fato de o termo “revolução” não ter sido observado
e empregado pelo pensador de Florença, “o que define a grande pertinência de Maquiavel
para uma história da revolução, da qual foi um quase precursor, é que ele foi o primeiro a
pensar a possibilidade de fundar um corpo político permanente, constante e duradouro”
(ARENDT, 2013d, p. 65). Ou seja, Maquiavel “foi o primeiro a visualizar o surgimento
de um âmbito exclusivamente secular, cujas leis e princípios de ação eram independentes
de doutrinas, da Igreja em particular, e dos critérios morais, transcendendo a esfera dos
assuntos humanos em geral” (ARENDT, 2013d, p. 67). Para Arendt,

Certamente ele não foi o pai da ciência política ou da teoria política,


mas é difícil negar que pode ser visto como o pai espiritual da revolução.
Não só já encontramos nele esse esforço consciente e apaixonado de
reviver o espírito e as instituições da Antiguidade romana, que se tornou
tão característico do pensamento político setecentista, como ainda mais
importante nesse contexto é sua famosa insistência sobre o papel da
violência no âmbito da política, que nunca deixou de chocar seus leitores,
mas que também encontramos nas palavras e nas ações dos homens da
Revolução Francesa (ARENDT, 2013d, p. 63).

A autora afirma não ser trivial que o fenômeno da revolução não tenha precedentes na
história pré-moderna. Mesmo porque, se quisermos compreender o espírito revolucionário,
aquele nascido na revolução, faz-se necessário distingui-lo do desejo moderno de novidade
a qualquer preço.4 Para Arendt, a experiência da fundação, junto à ideia de iniciar algo
novo dentro da história, acaba por tornar os homens mais conservadores, no sentido de
preservar o que fora construído, não revolucionários. Além disso, os homens das primeiras
revoluções, ou seja, aqueles que introduziram as revoluções no cenário da política, não
estavam ansiosos por coisas novas, por um novus ordo saeclorum. Logo,
é essa tendência de ser avesso à novidade, que ainda repercute na própria
palavra “revolução”, termo relativamente antigo que apenas muito
devagar veio a adquirir seu novo significado. [...] O cerne da questão
é que o enorme pathos de uma nova era, que encontramos em termos
quase idênticos em variações intermináveis ente os atores da Revolução

2 Cf. ARENDT, 2013, p. 65.


3 Essa versão exposta por Arendt acerca do uso da expressão “revolução” empregada pela primeira vez no campo da
política não é, contudo, unanimidade. Segundo Krishan Kumar, em Revolution – Classical and Christian Conceptions,
os conflitos que se apresentavam nas cidades do norte da Itália durante o século XIV, cujos resultados eram marcados
pela violência de movimentos políticos, já eram chamados de rivoluzioni. Tratavam-se de “revoluções” empreendidas
dentro da perspectiva clássica que relacionava o termo a um fenômeno cíclico. Deste modo, era comum o termo ri-
voluzioni como sinônimo de um movimento de restauração ou retorno a um estado de coisa anterior. O mesmo pode
ser observado, segundo Kumar acerca do uso da expressão révolution na descrição da conversão do rei francês Hen-
rique IV (1593), onde o rei restaurou o reino à “saúde” anterior, desarmando seus inimigos e tendo o apoio massivo
dos súditos. A referência a este evento é exposta por Arendt na nota nº 31 do primeiro capítulo de Sobre a Revolução.
4 Cf. ARENDT, 2013d, p. 71.

127
Eventos revolucionários do século XVIII: Revoluções americana...

Americana e da Revolução Francesa, apareceu somente depois que


eles chegaram, muito a contragosto, a um ponto sem volta (ARENDT,
2013d, p. 72),

Quanto à palavra “revolução”, termo astronômico utilizado por Copérnico em seu


De revolutionibus orbium coelestium, caracteriza, na astronomia, o movimento regular e
necessário dos astros em suas órbitas. Indicaria um movimento cíclico. Arendt assevera
que:

Quando usado para assuntos dos homens na Terra, só podia significar


que as poucas formas conhecidas de governo se repetem entre os mortais
num ciclo de recorrência eterna e com a mesma força irresistível que faz
os astros seguirem seus caminhos predeterminados no firmamento. Nada
podia ser mais distante do significado original da palavra “revolução” do
que a ideia que possuía e obcecava todos os atores revolucionários, a
saber, que eram agentes num processo que consistia no fim definitivo
de uma ordem antiga e no nascimento de um mundo novo (ARENDT,
2013d, p. 72).

Portanto, o termo revolução5, quando passa a ser empregado nos assuntos de ordem
política, não possui a conotação de restauração e não de um novo espírito ou, mesmo, de
uma modernidade. Por isso mesmo, diz Arendt, ao examinarmos a Revolução Francesa e
a Revolução Americana, precisamos levar em consideração que elas foram protagonizadas
por homens cuja motivação consistia na restauração de uma antiga ordem de coisas que o
despotismo da monarquia absolutista ou abusos do governo colonial haviam perturbado e
violado. É somente a partir do episódio da Queda da Bastilha6, em Paris, que se relata o
primeiro uso do termo “revolução”, não mais como um movimento cíclico.
Para Sônia Maria Schio,

Brevemente, nos capítulos em que Arendt trata dos dois exemplos de


“revolução”, ela afirma que a Francesa não obteve sucesso, afinal houve
a Restauração e o retorno da Monarquia sob o comando de Napoleão
e a burguesia ascendeu ao poder. Por sua vez, a Revolução Americana
consolidou-se em um país que manteve a estrutura erigida no início da
ocupação da região (SCHIO, 2016, p. 66).

Todavia, afirma Arendt,

Foi a revolução Francesa, e não a Americana, que incendiou o mundo


e, portanto, foi a partir do curso dela, e não do curso dos eventos na
América nem das ações dos Pais Fundadores, que nosso uso atual do
termo revolução recebeu suas conotações e implicações em todo o mundo,
inclusive nos Estados Unidos. [...] A triste verdade é que a Revolução
Francesa, que acabou em desastre, adquiriu foros de história mundial,

5 Para Arendt, o uso do termo revolução desvencilhado da conotação de movimento cíclico, pode ser observado na
noite de 14 de julho de 1789, em Paris quando o duque de La Rochefoucaul-Liancourt informou a Luís XVI sobre
a queda da Bastilha, a libertação de alguns prisioneiros e a defecção das tropas do rei diante de um ataque popular. O
famoso diálogo que se deu entre o rei e o mensageiro é breve e revelador. Dizem que o rei exclamou: “C’est un revolte!”,
e Liancourt corrigiu: “Non, sire, c’est une revolution”. Cf. Arendt, 2013d, p. 79.
6 Queda da Bastilha, também conhecida como Tomada da Bastilha foi um evento fundamental no curso da Revolução
Francesa. Ocorreu em 14 de julho de 1789 e até hoje é considerado o principal feriado e evento político na França. A
data marca a invasão da fortaleza do estado pela massa revoltosa com os conflitos contra a nobreza. O terror e o derrama-
mento de sangue foi inevitável no confronto entre os guardas da bastilha e a massa, insuflada pela indignação e descaso.

128
Samarone de Oliveira Lopes

ao passo que a Revolução Americana, que foi um sucesso tão triunfal, se


manteve como um acontecimento de importância praticamente apenas
local (ARENDT, 2013d, p. 88).

Schio nos convida a observar que o objetivo de Arendt não seria glorificar uma
revolução e menosprezar a outra. Também, não era interesse da pensadora, diz Schio,
simplesmente estabelecer uma relação superficial entre ambas as revoluções. Nas palavras da
comentadora, o objetivo de Arendt era explicitar as diferenças pertinentes aos fundamentos
de cada uma. Isto porque, pôde-se notar, no contexto da Revolução, que a miséria do povo
e a apatia em relação às decisões, por parte da burguesia, acabaram turvando o fenômeno
revolucionário. Enquanto isso, na América, os “pais fundadores” empenharam-se em
“manter a organização que elaboram ao chegar ao território, a liberdade e a participação
dos componentes do grupo (as Treze Colônias)” (SCHIO, 2016, p. 66).
Havia, portanto, o gérmen revolucionário capaz de fazer com que as colônias inglesas
manifestassem o desejo de não serem exploradas “pela Metrópole Inglesa, mantendo a
maneira de viver que haviam instituído no início da colonização7.
Mariana Matos Rubiano escreve que,

De acordo com Arendt, a distinção mais clara entre a Revolução


Americana e a Francesa consiste e que a primeira lutou contra a
monarquia limitada e a segunda contra uma monarquia absoluta. Os
revolucionários do Novo Mundo não foram tentados a pensar nenhum
poder independente ou acima das leis: a sede do poder era o povo, mas
a fonte da lei era a Constituição, um documento escrito e duradouro,
muito diferente de um estado de espírito subjetivo como a vontade
(RUBIANO, 2011, p. 94).

Na Revolução Francesa, a “vontade geral” – princípio da teoria política de Jean Jacques


Rousseau – acabou servindo como um teórico para a vontade soberana do monarca, pois,
“o povo foi posto no lugar do rei, tornando-se a nova fonte da lei e do poder” (RUBIANO,
2011, p. 93). Posto que os revolucionários franceses, entendendo a vontade geral como
soberana, e não a Carta Constitucional, diz Rubiano: “deixaram de lado o princípio de
governo republicano para adotarem o princípio democrático. Em outras palavras, trocaram
o império da lei e a decisão da maioria pelo domínio da maioria”8. Em seu livro intitulado:
“Hannah Arendt e os limites do novo”, Maria Aparecida Abreu afirma que:
Para além da questão de que a vontade geral não combina com a
pluralidade é preciso apontar que a noção de soberania, como Arendt
enxerga em Rousseau, afasta qualquer ideia de consentimento, pois
leva em consideração que, para que um grupo de pessoas se mantenha
politicamente unido, é necessário uma troca de opiniões que levem essas
pessoas a estarem de acordo e a aceitarem o poder ou um conjunto de
instituições. Se ela aceita algum conceito de soberania, este é situado
numa “limitada independência em relação à impossibilidade de calcular
o futuro, e seus limites são inerentes à própria faculdade de cumprir
e fazer promessas”. Essas promessas, que têm o poder de obrigar e de
manter em torno de si um grupo de pessoas unidas, dão a este tipo de
soberania uma inconteste superioridade em relação à soberania daqueles
que são inteiramente livres (ABREU, 2004, p.122).

7 Idem, ibidem, p. 66.


8 Idem, ibidem, p. 93.
129
Eventos revolucionários do século XVIII: Revoluções americana...

A retirada dos interesses particulares da via política, que configuraria a formação


de uma vontade geral, conforme formulada por Rousseau, ou seja, “aquilo que generaliza
a vontade é o interesse comum que os une”, mostra que o âmbito político “não é o mais
adequado para lidar com esses interesses, que devem ser mantidos nos âmbitos social
e privado (ABREU, 2004, p. 122). Abreu afirma que Arendt vê com desconforto esse
princípio unificador,

pois representa a defesa da unanimidade, que, conforme já apontamos,


constitui um dos avessos da pluralidade inerente à condição humana da
ação. Isso faz com que insurja contra a noção de soberania, na medida
em que representa algo resultante desse “princípio unificador”, que não
é derivado da troca plural de opiniões, mas da busca de um interesse
comum oposto aos interesses particulares [...] E a vontade geral,
formulada por Rousseau, deixa de lado qualquer ideia de pluralidade que
é a própria condição humana de ação política (ABREU, 2004, p. 122).

Existe uma relação entre a política e a vontade que se assemelha, em grande medida,
à relação que “o espaço político tem com as leis”. Para Abreu, “a ação política depende
da vontade para iniciar-se, mas não é, propriamente, um produto dela” (ABREU, 2004,
p. 156). De modo semelhante, o espaço político precisaria de uma estrutura legal para
ser constituído, todavia, é importante observar que o espaço público não é produto desta
estrutura e a mesma não se dá por meio de um processo interno inerente ao espaço público.
Quanto às diferenças cruciais entre as Revoluções Francesa e Americana, Arendt
afirma que:

o grande infortúnio da Revolução Francesa, foi que nenhuma da


assembleias constituintes conseguiu arregimentar autoridade suficiente
para instaurar a lei do país; a crítica corretamente lançada a elas era
sempre a mesma: faltava-lhes, por definição, o poder de constituir; eram
em si inconstitucionais. Teoricamente, o erro crasso dos homens da
Revolução Francesa foi acreditar de maneira acrítica e quase automática
que o poder e a lei brotavam da mesma fonte (ARENDT, 2013d, p. 216).

Enquanto isso,

a grande sorte da Revolução Americana foi que o povo das colônias,


antes do conflito com a Inglaterra, estava organizado em corpos com
gestão própria, a revolução – para empregar a linguagem setecentista
– não os lançou a um estado de natureza e nunca houve qualquer
questionamento sério do pouvoir constituant daqueles que elaboraram
as constituições estaduais e, por fim, a Constituição dos Estados
Unidos. O que Madison propôs em relação à Constituição americana,
a saber, derivar sua “autoridade geral [...] inteiramente das autoridades
subordinadas, apenas reproduzia em escala nacional o que havia sido feito
pelas próprias colônias, quando constituíram seus governos estaduais
(ARENDT, 2013d, p. 216).

Cláudio Boeira Garcia salienta o aspecto de intensos debates e consentimento


dos cidadãos, no que tange às constituições promulgadas na nova república estabelecida
na América: “talvez, por isso, tenham se tornado, desde então, referências para as ações
possíveis nas esferas da política e da educação” (GARCIA, 2012, p, 74). É de espantar o

130
Samarone de Oliveira Lopes

fato de todas as treze colônias da América redigirem constituições antes, durante e depois
da Declaração da Independência, afirma Arendt:

Este traço revelou um desenvolvimento no Mundo Novo mediante


um conceito inteiramente novo de poder e autoridade, uma ideia
inteiramente nova sobre as prioridades na esfera política, muito embora
os habitantes desse mundo falassem e pensassem nos termos do Velho
Mundo e se remetessem às mesmas fontes de inspiração e confirmação
de suas teorias. O que faltava no Velho Mundo eram os municípios das
colônias, e aos olhos de um observador europeu “estourou a Revolução
Americana, e a doutrina da soberania do povo saiu da municipalidade
e tomou posse do estado. Os que receberam o poder de constituir, de
elaborar constituições, eram delegados devidamente eleitos de corpos
constituídos; receberam sua autoridade das bases e, quando aderiram ao
princípio romano de que a sede do poder reside do povo, não estavam
pensando em termos de uma ficção e de um absoluto, a nação acima de
qualquer autoridade absolvida de todas as leis, e sim em termos de uma
realidade existente, a multidão organizada cujo poder era exercido de
acordo com as leis e limitados pelas leis (ARENDT, 2013d, p. 217).

Quanto à Revolução Francesa, ela entrou em colapso quando a necessidade assumiu


a esfera da liberdade. A necessidade, diz Arendt, “é o processo vital que permeia nosso
corpo e mantém num estado constante de mudança, cujos movimentos são automáticos,
independentes de nossas atividades e irresistíveis” (ARENDT, 2013d, p. 92). Esse processo
tende a ser maior à medida que menos nos movemos, uma vez que, sendo de ordem
biológica ele acaba se impondo. Arendt afirma que:

a necessidade dos processos históricos, originalmente representada


na imagem do movimento cíclico, necessário, subordinado a leis, dos
corpos celestes, encontrou seu poderoso correspondente na necessidade
recorrente a que está submetida toda a vida humana. Quando isso
aconteceu, e aconteceu quando os pobres, levados por suas necessidades
físicas, irromperam na cena da Revolução Francesa, a metáfora
astronômica, tão plausivelmente adequada à mudança perpétua, ás
oscilações do destino humano, perdeu suas antigas conotações e adotou
o conjunto de imagens biológicas que sustenta e perpassa as teorias
orgânicas e sociais da história, que têm em comum o fato de enxergar
uma multidão – a pluralidade empírica de uma nação, de um povo ou de
uma sociedade – como um único corpo sobrenatural, movido por uma
“vontade geral” irresistível e sobre-humana (ARENDT, 2013d. p. 93).

Conforme podemos observar, Arendt atribui o fracasso da Revolução Francesa à


multidão de malogrados, cuja situação da miséria em que viviam fora descortinada em
público no curso da Revolução. Foi na Revolução Francesa, portanto, que a necessidade
assumiu a cena pública exigindo direito à participação política. Segundo Correia,

quando a questão social da pobreza das massas apoderou-se da Revolução,


“iniciada com a rebelião estritamente política do Terceiro Estado”, a
reivindicar sua admissão e seu protagonismo no domínio político, “os
homens da revolução não estavam mais preocupados com a emancipação
dos cidadãos nem com a igualdade, no sentido de todos terem igual direito à
sua personalidade jurídica, de serem protegidos por ela e, ao mesmo tempo,
de agirem quase literalmente ‘por meio’ dela” (CORREIA, 2014, p. 88).

131
Eventos revolucionários do século XVIII: Revoluções americana...

Em contraposição a esta multidão de desvalidos que assumiram a cena pública,


despersonalizando, por assim dizer, as características iniciais da Revolução Francesa, Abreu
enfatiza que na América,

os founding fathers viam no povo uma “multiplicidade de vozes e opiniões”


que deveriam formar a República norte-americana. Assim, o povo e
multidão são tratados pela autora como categorias praticamente opostas,
que caracterizam as duas revoluções analisadas em Sobre a revolução [...]
Conclui-se disso que o que diferencia povo das demais categorias é que
somente o povo é composto por pessoas que se encontram na expressão
de Canovan, “mobilizados em torno de um mundo compartilhado,
podendo agir enquanto mantém sua pluralidade como indivíduos
distintos”. A massa, a multidão e a ralé são formadas por um conjunto de
pessoas que estão interligadas por interesses, ou por uma “vontade geral”
que as unifica e afasta a individualidade de cada um de seus integrantes
(ABREU, 2004, p. 158).

Casagranda salienta o aspecto de que, para Arendt, embora tenham existido resultados
distintos no curso das revoluções, a maioria das revoluções tanto não conseguiram garantir
origem à constitutio libertatis, “como também não foram capazes de assegurar os chamados
direitos constitucionais.” (CASAGRANDA, 2012, p. 157). Estas implicações incidem-se
tanto na Revolução Francesa quanto Americana, como nos afirma Adriano Correia:

Para Arendt, os desdobramentos da revolução nos Estados Unidos, após


a fundação e os fundadores terem passado a governar, teriam dado razão
aos temores de Robespierre, pois com a promulgação da Declaração de
Direitos a ambiguidade da “busca da felicidade” logo se desfez e a ênfase
“se transferiu da liberdade pública para a liberdade civil, da participação
nos assuntos públicos em favor da felicidade pública para a garantia
de que a busca da felicidade privada seria protegida e incentivada pelo
poder público (CORREIA, 2014, p. 180).

Conclusão
Apesar dos desdobramentos das revoluções, que, em grande medida, enfraqueceu
o espírito revolucionário9, “não há como negar que essas revoluções trouxeram à luz a
experiência de ser livre. É essa a novidade trazida pela experiência de ser livre. É essa a
novidade que marca a história do homem moderno” (CASAGRANDA, 2012, p. 157). De
certa forma, essa experiência de ser livre no curso das Revoluções foi possibilitada pelo
surgimento do que Arendt convencionou chamar de Sistemas de Conselhos, deflagrados a
partir das Revoluções do século XVIII, mostrando como eles foram [e são] fundamentais
para restaurar a dignidade da liberdade política outrora perdida.

9 Trataremos da perda do espírito revolucionário no próximo tópico. Todavia, cabe indicar que uma das razões do
enfraquecimento da Revolução Americana se deu pela perda do espírito revolucionário, a perda da capacidade de se
manter em constante busca pela manutenção da liberdade e das instituições por ela fundada.

132
Samarone de Oliveira Lopes

Referências bibliográficas:
ABREU, Maria Aparecida. Hannah Arendt e os limites do novo. Rio de Janeiro: Azougue
Editorial, 2004.
ADVERSE, Helton. “Arendt, a democracia e a desobediência civil”. Revista brasileira de
estudos políticos, nº 105, jul/dez 2012, pp. 409-434.
AGUIAR, Odílio. Necessidade e Liberdade em Hannah Arendt. Princípios Revista de
filosofia. Natal (RN), v. 19, n. 32 Julho/Dezembro de 2012, p. 35-54.
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. 7ª ed. São
Paulo, Perspectiva, 2013a
_____. A promessa da política. Trad. Pedro Jorgensen Jr. – 5ª ed. – Rio de Janeiro: DIFEL,
2013b.
_____. Crises da República. Trad. José Volkmann. 3ª ed, São Paulo: Perspectiva, 2013c.
_____. Sobre a Revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras,
2013d.
_____. A condição humana. 11ª ed. Trad. Roberto Raposo (rev. téc. A. Correia). Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2014.
_____. Revolução e Liberdade. Trad. Adriano Correia. Cadernos de Filosofia Alemã:
Crítica e Modernidade. V.21, n.3, 2016.
BIGNOTTO, Newton. “Hannah Arendt e a Revolução Francesa”. O que nos faz pensar,
n 29, mai/2011, p. 41-58.
CASAGRANDA, Edison Alencar. Política e Revolução: A formação da consciência
revolucionária e a fundação de um novo corpo político. In: Leituras sobre Hannah Arendt.
Campinas, SP: Mercado das Letras, 2012.
KOHN, J. “Freedom: The Priority of the political”. In: VILLA, D. The Cambridge
Companion to Hannah Arendt. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.
PETRY, Cleriston. A ascenção da esfera social: a diluição da distinção entre público e
privado. In: Leituras sobre Hannah Arendt: educação, filosofia e política. (Orgs) Altair
Alberto Fávero; Edison Alencar Casagranda. Ed. Mercado das Letras. Campinas – SP,
2012.
RUBIANO, Mariana de Matos. Liberdade em Hannah Arendt. 2011. 132 f. Dissertação
(Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, São Paulo. 2011.
SCHIO, Sônia Maria. Hannah Arendt e o “Poder” da Fundação. In: Hannah Arendt:
Pensamento, revolução e poder (Orgs) Edilene Maria da Conceição; Elivanda de Oliveira;
Fábio A. Passos; José Luiz de Oliveira. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2016.
WELLMER, Albrecht. Hannah Arendt: sobre la revolucíon”. Areté – Revista de Filosofia,
vol. X, nº 1, 1998, p.67-100 (trad. Andrés León).

133
Arendt e a mentira política: o Lawfare no séc. XXI

Arendt e a mentira política: O Lawfare no séc. XXI

Sônia Maria Schio1

Introdução2
Hannah Arendt (1906-1975), ao tratar do Totalitarismo Nazista (1933-1945), na
obra Origens do Totalitarismo (1951), demonstrou como a mentira e a propaganda (a qual
não vende algo, mas divulga pseudofatos) se aliaram para a alteração da vida humana.
E o fizeram por meio da elaboração de uma atmosfera de fluidez, de irrealidade, de
desvalorização da Política (enquanto espaço de encontro dos cidadãos, de discussão e de
ação), enfim, de apatia dos indivíduos com o entorno, com os acontecimentos e mesmo
com as próprias atitudes.
Atualmente, o denominado Lawfare, a utilização da lei como instrumento de
guerra, tem levado muitas pessoas à confusão e à incapacidade de julgar os fatos, aqueles de
cunho políticos, em especial, como os vivenciados do Brasil, e assim não se posicionando
de forma autônoma. E isso reforça a necessidade de pensar o presente, momento em
que os eventos do passado e as teorizações sobre ele tornam-se de indispensáveis para o
humano e para o futuro. E um desses exemplos é a propaganda Nazista, ao aliar a mentira
política com a divulgação de dados encadeados deliberadamente. Exposto outramente,
ao emitir informações “prontas”, que aparentemente careciam de discussões, pois eram
perfeitamente concatenadas, não geravam dúvidas nos espectadores, mesmo possuindo
interesses incógnitos. (SCHIO, 2012) O resultado foi a indiferença quanto à verdade ou
não do que era divulgado, e a busca de desresponsabilização. E nesta, um líder forte (um
Führer) e a crença na existência de um inimigo a ser combatido (uma pessoa, um partido,
uma causa, como a corrupção) tem se mostrado suficiente para que uma maioria se deixe
levar por discursos oportunistas, salvacionistas ou outros.
A mentira, voltada à política, visa ao aniquilamento da noção de realidade. A realidade
necessita de pessoas que a confirmem ou a retifiquem. Cada pessoa (o sensus privatus), então
carece da presença e da opinião dos outros para certificar-se ou para readequar-se (sensus
communis), e para gerar vínculos e ação. (SCHIO, 2008) O Lawfare, termo elaborado nos
anos 70, nos Estados Unidos, significando uma “disputa jurídica” (de Law, lei e Warfare,
guerra) que evitaria conflitos armados, tornando-se, no séc. XXI, um artifício para arruinar
o “inimigo” por meio do uso da legislação. Alia-se a isso a propaganda baseada em “boatos”
1 Professora da UFPel - Pelotas/RS.
2 O presente tema surgiu em 2016. Em 2018, as leituras foram atualizadas e o resumo refeito visando à apresentação
no XVIII Encontro da ANPOF - Vitória/ES, momento oportuno devido aos acontecimentos posteriores ao Impea-
chmam de Dilma Rousseff (dez/2015-ago/2016) e anteriores à eleição de Jair Bolsonaro (out/2018). A redação final
(dezembro de 2018) nada alterou do exposto, apenas o esmiúça e agrega conteúdos oriundos da discussão gerada.

134
Sônia Maria Schio

(Fake news), isto é, sem provas. Desta forma, o acúmulo de informações negativas, mas
sem materialidade, leva a opinião pública a emitir juízos de valor, e mesmo a votar ou a
demandar punições aos pretensos culpados. Nesse sentido, o Lawfare foi transformado
em um “instrumento político” que tem como objetivo manipular as opiniões, aniquilar as
discussões e a preocupação com a Política, como ocorreu no sistema Totalitário Nazista, o
que deve ser evitado, para que eventos como os outrora vivenciados (na primeira metade
do séc. XX) não se repitam.

1. A mentira e a propaganda no Totalitarismo


A obra Origens do Totalitarismo, de Arendt, foi publicada em 1951, após anos de
estudo, da tentativa de compreender o que havia ocorrido na Europa, em especial na
Alemanha (1933-1945). Ela escreveu (ARENDT, 1989, p. 339. Grifos da Autora.) em
1949 que no ano de 1945, com o final da Guerra, havia

o primeiro momento em que se podia elaborar e articular as perguntas


com as quais a minha geração havia sido obrigada a viver a maior parte
de sua vida adulta: o que havia acontecido? Por que havia acontecido? Como
pôde ter acontecido?

A obra possui três capítulos (Antissemitismo, Imperialismo e Totalitarismo) nos


quais ela expõe a procedência de acontecimentos e de mentalidades que colaboraram para
que, na confluência destes, tais formas de organização pudessem aparecer e consolidarem-
se por anos (“este livro trata dos totalitarismos, suas origens e elementos” escreveu Arendt,
1989, p. 351). Na terceira parte, sobre o Totalitarismo, a autora descreveu o funcionamento
deste: a conciliação de valores opostos, como o ensejo de retorno à “germanidade”3 com
uma ampla industrialização; o apego à vida militar, na cavalaria por exemplo, ligada à
nobreza, com o aumento numérico da classe trabalhadora, dos sindicatos; o esvaziamento
do campo e o aumento da população urbana despossuída e desvinculada de grupos ou
classes (a denominada de “ralé”4); as pessoas tornaram-se números, e estes, estatísticas e,
por isso, podendo ser considerados como supérfluos, entre outros elementos.
Em outros termos, o Estado, buscando prever e controlar “tudo”, isto é, a economia,
a cultura, a saúde (vida e morte), a vida pública e também privada de cada pessoa o fez
por meio de uma estrutura estatal monolítica. Para tanto, a livre iniciativa foi eliminada
por meio da vigilância, em todas as esferas da vida, isto é, incluindo a escola, o trabalho, os
esporte, além da vida em família e nos sindicatos ou reuniões (política). Com isso, instalou-
se o terror, que é mais do que o medo: este último é necessário para resguardar a vida,
isto porque algo a coloca em risco. O terror gera uma situação de insegurança constante,
de desconfiança com os outros, de afastamento. Com o isolamento, a realidade torna-se
confusa, e a mentira pode-se instalar.
A mentira, em política, não esconde ou distorce algo, mas o demonstra de uma
maneira diferente daquela em que ocorreu. Pela aparente lógica, ou seja, pela possibilidade
de ter ocorrido como exposto, o fato é aceito. Em outros termos, no Nazismo a mentira

3 A Germanidade é a valorização de tudo o que é alemão: os mitos, a língua, etc. Ela é, atualmente, na Alemanha, uma
disciplina estudada nas escolas a partir de aulas ministradas por professores com formação universitária.
4 O termo “ralé”, no texto arendtiano (por exemplo, em ARENDT, 1989, p. 30, 179, 154, 181; no item 2 da parte 3:
“A aliança temporária entre a ralé e a elite”,), pode ser entendido como o “refugo de todas as classes” (Idem, 1989, p.
185). Assim, “a atração que o mal e o crime exercem sobre a mentalidade da ralé não eram novidade” (Ibidem, 1989,
p. 357), pois a violência era considerada esperteza, mais uma das características básicas dela.

135
Arendt e a mentira política: o Lawfare no séc. XXI

suplantou qualquer “lógica do razoável”, mesmo a relacionada à utilidade ou ao interesse,


por meio de sua situação de “pesadelo constante” (VETÖ, p. 40). A consequência é a
de que não há consentimento, apenas coerência, ou seja, a “lógica do mentiroso” passa a
ser a realidade para a maioria das pessoas. O isolamento que cada um vive faz com não
conversem: sem discussão ou divergência, os vínculos entre as pessoas se desfaz, assim
como a noção do real, do conjunto, da Humanidade. Segundo Arendt (1991, p. 33),

a questão que me importa é a de saber a que ponto devemos agarrar-


nos à realidade, mesmo em um mundo tornado inumano, para que a
humanidade não se reduza a uma palavra oca ou a um fantasma. [...]
A fuga do mundo nos tempos sombrios de impotência [como nos
Totalitarismos] pode sempre justificar-se desde que a realidade não seja
ignorada, mas antes constantemente reconhecida como aquilo a que é
necessário fugir.

Em uma atmosfera de fluidez, de irrealidade, de pesadelo constante, o estranhamento


com o mundo é constante e “qualquer coisa é possível”: uma forma de governo que se
autodenomine regida pelas Lei da Natureza (“Superioridade da Raça Branca Ariana”, na
Alemanha) ou da História (“Luta de Classes”, na URSS), que decide quem é supérfluo,
“inimigo” a ser descartado; ou quais são os territórios que devem ser necessariamente
anexados, por exemplo. Nesse contexto, cada coisa (fato, pessoa, ...) parece estar onde e
como devia, pois não há qualquer conflito com a vivência cotidiana, posto que essa foi
cuidadosamente elaborada, sem contradições, descontinuidades. Não há espaço para a
contingência, devido ao (aparente) “encaixe perfeito”: as pessoas “não acreditam em nada
visível, nem na realidade da sua própria experiência; não confiam em seus olhos e ouvidos,
mas apenas em sua imaginação, que pode ser seduzida por qualquer coisa ao mesmo tempo
universal e congruente em si”, explicou ela (ARENDT, 1989, p. 401).
Nessa circunstância, a burocracia passou a ser mais uma das “ferramentas” do Regime.
A burocracia, o “domínio de ninguém” (ARENDT, 1989, p. 449; SCHIO, 2012) se torna
uma necessidade implacável que precisa organizar toda e qualquer situação, pública ou
privada, seja das instituições, dos grupos, ou de cada indivíduo. Em outros termos, as aulas,
os casamentos, os sistemas de saúde, de moradia; os sindicatos, agremiações estudantis,
incluindo as crianças, os doentes, os nascimentos, enfim, há o “domínio total” (ARENDT,
1989, p. 488-511). Para tanto, a propaganda, oriunda das mais diversas fontes (nacionais
e estrangeiras, de partidos de direita, centro, esquerda, de liberais e conservadores, etc.) se
avolumavam, confundindo ainda mais os cidadãos. Com o tempo, restou apenas a oficial
e a clandestina, essa perseguida pelas forças do Governo, especialmente criadas para isso:
“caçar o inimigo” (os contrários ao Sistema Totalitário de Governo).

2. O Lawfare
O termo Lawfare é formado por law, “lei” e warfare, “guerra”. Em português poderia
ser traduzida como “guerra por meio da lei” ou “guerra jurídica”. O termo surgiu, (segundo
a Wikipedia5), nos anos 1970. Em 1975, ele foi explicitado como sendo uma estratégia
5 https://pt.wikipedia.org/wiki/Lawfare. Acesso em 10/03/2017. Pode-se consultar, nesse texto, referente à nota 2
(sobre a origem do termo), http://www.laceweb.org.au/whi.htm. Acesso em 16/12/2018.
É interessante notar que o Lawfare é «uma prática conhecida, nos países anglo-saxões, como SLAPP, acrônimo de stra-
tegic lawsuit against public participation.” (Wikipedia, 2017) Pode-se acessar também https://www.casp.net/sued-for-
-freedom-of-speech-california/what-is-a-first-amendment-slapp/.Acesso em 11/03/2017.
Resumidamente, John Carlson e Neville Yeomans, em um ensaio de 1975, consideravam o Lawfare uma tática de paz,
em que a guerra dava lugar à disputa por meio de leis: “um duelo de palavras em vez de espadas” no teatro de guerra.
136
Sônia Maria Schio

para vencer uma contenda sem chegar à guerra propriamente entendida. Mesmo que hajam
entendimentos distintos, isto é, considerações do Lawfare ora como positivo ora negativo.
Nesse sentido, é importante salientar que ele é um recurso no qual as leis são interpretadas
de forma atípica. Ou seja, a legislação é utilizada contra o adversário (pessoa ou grupo)
de forma a evitar o confronto armado (o que seria positivo). Nesse sentido, a lei torna-se
um “instrumento de guerra”. O inimigo, então, não é vencido por um embate violento: as
manobras jurídicas têm a finalidade de causar danos, por exemplo, restringindo ou ampliando
ingressos, prazos ou valores (em concursos, financiamentos ou outros) de modo a impedir
que as pessoas ou as empresas possam concorrer a bolsas, funções públicas ou contratos.
O Lawfare, então, é o uso peculiar da legislação onde há uma espécie de “brecha”
legal, levando a uma tensão entre a legalidade e a ilegalidade. Ele é uma “batalha”, porém
nela não há um equilíbrio entre as partes: na maioria das vezes, ocorre previamente a
condenação (ou restrição) total ou parcial com o consentimento da opinião pública. Em
outros termos, tecnicamente parece que as regras estão sendo aplicadas corretamente,
porém estas foram elaboradas ou alteradas para que o resultado esperado fosse atingido: a
reprovação pelo ordenamento vigente e pela maioria das pessoas.
Mesmo que evite mortes físicas, ele leva à destruição de pessoas jurídicas, entidades,
indivíduos (Guantánamo, por exemplo). Ele prejudica desde sujeitos isolados até nações.
Ao manipular jurídico-legalmente as normas internacionais e nacionais ou as leis dos
direitos humanos com objetivos contrários àqueles que levaram à elaboração das mesmas,
o Lawfare  distorce as bases do “Estado de direito”, e muitas vezes da possibilidade de
mostrar a inocência ou mesmo limitando o direito à liberdade de expressão: assim, a
dignidade humana resta ultrajada.
A deslegitimarão do adversário não permite reparos ( Justiça restaurativa) porque
o dano ocorre sem que haja o devido processo: trata-se de um abuso das leis praticado
intencionalmente contra o inimigo (político, econômico, militar, entre outros). Em outros
termos, não é a “Justiça” que é buscada, apenas a conformidade a certos trâmites legais.
Além de expor os possíveis “maus usos” do ordenamento jurídico, o Lawfare expõe o papel
da mídias. E estas têm como objetivo o bem comum, possuindo uma tarefa positiva, como
a História o demonstra (na “Primavera Árabe, 2010-2011, por exemplo). Entretanto, os
meios de comunicação de massa (termo em desuso, hodiernamente) pode demonstrar como
a informação pode ser manipulada, e a opinião pública também. Ou seja, a propaganda
ainda funciona no convencimento de populações.6
A pergunta, então, pode ser como “solucionar” os problemas causados pelo
Lawfare.7 Todavia, se o uso desvirtuado da lei não é percebido pelos expectadores,
O novo campo de batalha passava a ser o legal, e no qual os oponentes são os advogados, os juízes, os promotores, etc.
A definição que disseminou o uso comum da expressão foi fornecida pelo coronel da Força Aérea dos EUA, Charles
Dunlap, em 2011. E sobre Lawsuits, vide: http://legal-dictionary.thefreedictionary.com/Strategic+Lawsuits+agains-
t+Public+Participation. Acesso em 11/03/2017.
6 Certamente o Brasil não restou incólume ao Lawfare: há uma enorme quantidade de informações, nem todas confiáveis,
é presumível, mas que não resistem à uma pesquisa cuidadosa. O “Caso Lula” é o mais premente, pois houve a “promoção
de ações judiciais para descredibilizar o oponente; tentativa de influenciar opinião pública: utilização da lei para
obter publicidade negativa; Judicialização da política: a lei como instrumento para conectar meios e fins políticos;
promoção de desilusão popular; [...]” (Wikipedia, 2017). Por exemplo, Martins, também sobre o referido Caso, afir-
ma que “o Lawfare depende de repetidas acusações e manchetes para pintar o acusado como inimigo n. 1 do país.”
(http://justificando.cartacapital.com.br/2016/11/17/lawfare-representa-o-uso-indevido-dos-recursos-juridicos-pa-
ra-fins-de-perseguicao-politica/. Acesso em 10/03/2017.
7 Esse tema pode ser encontrado em http://informacaoincorrecta.com/2018/07/31/o-que-e-e-como-funciona-a-
-lawfare/. Acesso em 16/12/2018.

137
Arendt e a mentira política: o Lawfare no séc. XXI

se a maioria da população sequer sabe da existência dessa “nova arma de guerra” ou


conseguiria acreditar em sua vigência; ou ainda se não se importa com o tema, mesmo
que cada um e o grupo sejam prejudicados por ele, o que fazer? Levar à discussão
pública parece improfícuo. Esperar que o Senado e a Câmara, o Poder Judiciário ou suas
instâncias o façam, é contornar o problema da responsabilidade individual. (ARENDT,
2004, p. 84 e 213-225)

3. As Fake news
Seria incauto alguém que discorrer sobre o Lawfare, instrumento novo de atuação,
como se ele ocorresse de forma isolada. Dito outramente, há outros mecanismos que o
acompanham, como as Fake news e um novo conceito de “inimigo”. Temas emergentes
na atualidade, e por isso com poucas pesquisas publicadas, mas que, por sua incidência, ou
ainda, por possuírem semelhanças com fatos passados, precisam ser abordados.8 Nesse viés,
as Fake News são informações falsas («boatos») veiculadas por diversos meios (whatsapp; por
exemplo) como se fossem verídicas. E essas são emitidas por pessoas que têm a intenção
de prejudicar, distorcendo fatos, ou elaborando outros, em parte ou em sua totalidade. O
objetivo, geralmente, é desacreditar alguém, ou mesmo uma instituição, não apenas com
notícias, mas também com fotos e vídeos. Pode também expor ideias (políticas, religiosas,
étnicas, etc.) de grupos, de forma anônima, e são repassadas, quase sempre, por ingenuidade
ou brincadeira. Enfim, ela é uma arma de guerra que utiliza as notícias falsas para atingir
os objetivos.
Entretanto, longe de serem inocentes, as  Fake News  têm um grande  expansão
virtual, isto é, atingem inúmeras pessoas e nos mais diferentes lugares, com uma velocidade
inimaginável (“poder viral”). Uma das principais características dessas notícias é que elas
apelam às emoções do receptor, leitor ou espectador, levando-os a elaborarem opiniões
(e julgamentos) a partir delas, sem qualquer questionamento prévio, isto é, sem ressalvas
ou busca de fontes que as confirmem ou desmintam. Os maiores “consumidores”9 são as
pessoas que dependem das mídias para se informarem, como aquelas que estão afastadas
da vida política, nos termos arendtianos. Como esses dados não têm caráter público, são
difíceis de rastrear, mas não impossíveis de serem identificadas: requerem, apenas, um
pouco de atenção e paciência.
Em outros termos, as Fake news são fáceis de produzir, pois não carem nem de
estúdios sequer de instrumentos caros e de díficiel obtenção, podendo ser feitas com o
uso de celulares. Assim, elas são facilmente elaboradas e difundidas. Isso porque existem
algoritmos automatizados (“inteligentes”), softwares e aplicativos livres que possibilitam a
alteração de rostos e de expressões, podendo mesmo substitui-los por outros. Os chamados
“deep fakes” são as pessoas que elaboram essas ferramentas com códigos abertos e de fácil
manejo, fornecendo-os, muitas vezes, sem a necessidade de instalar programas ou a
exigência de preparo (técnico ou tecnológico) para a elaboração de materiais adulterados.
O mesmo vem sendo desenvolvido para a voz.
Como resultado, iniciam-se os questionamentos sobre os usos inadequados, incluindo
a manipulação eleitoral, a calúnia, a extorção, por exemplo. Por enquanto tais falsificações
são de fácil percepção: há distorçoes nas imagens, descontinuidade nas vozes, contradições
8 Nesse sentido, um agradecimento especial ao Prof. Dr. Itamar Soares Veiga (Filosofia/UCS) que disponibilizou o
manuscrito, inédito, “Mundo previsto e mundo realizado: Arendt e ‘o que estamos fazendo’” (ago/2018).
9 São variadas as possíveis fontes de consulta. Veja-se, por exemplo: https://brasilescola.uol.com.br/curiosidades/o-
-que-sao-fake-news.htm). Acesso em 17/12/2018.

138
Sônia Maria Schio

no uso da linguagem, as quais podem ser captadas sem o uso de equipamentos. Porém,
com o avanço nas tecnologias, isso tende a ficar cada vez mais difícil. Nesse sentido, há
grupos que pesquisam algoritmos “caçadores” (por exemplo, o grupo de Riess, o qual criou
o software Face Forensics)10. Em outros termos, essa tecnologia está sendo aperfeiçoada
rapidamente, por isso a demarcação entre a realidade e a ficção fica cada vez mais nebulosa,
levando o humano a depender de softwares para autenticar vídeos suspeitos. Porém, até esse
momento, cabe a cada um buscar detectar as notícias e suspeitar delas, não as reenviando.
Mas, existem situações mais complexas, como as que envovem a política internacional, por
exemplo, entre nações em conflito, nas quais a identificação de Fake news é imprescindível
e mais difícil, devido à sofisticação delas.
Para coibir o aparecimento, a proliferação e os estragos causados pelas Fake news
está se mostrando necessário legislar sobre o tema. As redes socais precisam ficar atentas a
certos conteúdos veiculados em suas plataformas, pois ela também possuem uma parte da
responsabilidade.11 Mas isso não é o suficiente: cada um precisa fazê-lo em seu cotidiano,
incluindo as crianças, os adolescentes e os idosos (isto é, os respons´veis por estes): buscar
esclarecimentos; questionar e verificar as fontes de envio e mesmo as próprias notícias, isto
é, se elas são cabíveis (razoáveis) ou não.

4. O “inimigo”
O conceito de “inimigo objetivo” exposto por Carl Schmitt (1888-1985) em
suas obras, e utilizado no Nazismo contra os indesejados (judeus, comunistas, ciganos,
homossexuais, entre vários outros) está sendo substituído, em especial após os Atentados
nos EUA - 2011, por um novo tipo de inimigo: aquele que atenta contra o Estado, como
o terrorista, por exemplo. Outramente exposto, com o surgimento de delitos inéditos ao
Direito Penal, este precisa ter suas tipificações ampliadas com o intuito de acompanhar as
situações e se adequar juridicamente a elas. E isso, de certa forma, é uma continuidade das
reflexões iniciadas após a II Guerra Mundial (1939-1945), no Julgamento de Nuremberg
(1945-1949) e em outros que se seguiram: como julgar os “crimes administrativos”; os
oriundos do “cumprimento de ordens”, etc, e como puni-los, posto que foram mortas, de
diversas maneiras, milhões de pessoas.
Matos (2018, p. 1) explica que o alemão Günther Jakobs (1937), há anos, teoriza
sobre o “Direito Penal do Inimigo”12, angariando adeptos assim como gerando preocupações
no meio jurídico. Mas esta possui pressupostos diferentes daqueles das décadas anteriores.
O mesmo (MATOS, 2018, p. 1) continua

10 Christian Riess é o pesquisador da área de computação gráfica da Universidade Friedrich-Alexander Erlangen-


-Nürnberg, na Alemanha, e integrante do grupo que desenvolveu o software Face2Face e mais recentemente o Face
Forensics. Entrevista disponível em https://www.bbc.com/portuguese/geral-44446764. Acesso em 17/12/2018.
11 No endereço: http://www.juridicohightech.com.br/2012/07/breves-consideracoes-sobre-presuncao-de.html (Aces-
so em 11/03/2017), pode-se ler que “A responsabilidade civil, de modo geral, visa a impedir que um prejuízo ou dano
não seja reparado, eis que a existência de ilícitos não indenizados normalmente acarretam desconforto social.
Diante disso, o ordenamento jurídico ampara a obrigação de reparar o dano, especificamente no artigo 927, do Código
Civil, in verbis: ‘Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.’ [...]
Diante de todo o exposto, se observa que a principal diferenciação entre presunção de culpa e responsabilidade civil
objetiva surge na medida em que, no primeiro caso, há discussão e análise de culpa, ainda que presumida, já nos casos
que restam configuradas a responsabilidade civil objetiva, irrelevante é o fator culpa, bastando que sejam comprova-
dos o dano e a causalidade.”
12 Disponível em https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/5138/Direito-Penal-do-inimigo. Acesso em
21/10/2018.

139
Arendt e a mentira política: o Lawfare no séc. XXI

essa Teoria tem como objetivo a prática de um Direito Penal que


separaria os delinquentes e criminosos em duas categorias: os primeiros
continuariam a ter o status de cidadão e, uma vez que infringissem a lei,
teriam ainda o direito ao julgamento dentro do ordenamento jurídico
estabelecido e a voltar a ajustar-se à sociedade; os outros, no entanto,
seriam chamados de inimigos do Estado e seriam adversários, cabendo a
estes um tratamento rígido e diferenciado.
Os inimigos perdem o direito às garantias legais. Não sendo capazes
de adaptar-se às regras da sociedade, devem ser afastados, ficando sob a
tutela do Estado, perdendo o status de cidadão.

Jakobs cita os pensadores da Tradição para embasar suas acepções, Hobbes e Kant,
por exemplo. Entretanto eles, como também Rousseau, não escreveram com esse intento.
E eles dificilmente aceitariam distinguir os humanos em grupos13. Atualmente, destituir
alguém da cidadania para tratá-lo diferentemente seria um retrocesso, contrariando as
bases do Estado de Direito, dos Direitos Humanos, entre outros. Arendt (1989, p. 332),
com sua concepção sobre o “direito a ter direitos”, sendo o primeiro o de pertencer a uma
comunidade organizada (política), a qual garante os outros direitos, demonstra a debilidade
de tal modo de pensar baseada em sentimentos de vingança, de violência e de desrespeito à
dignidade humana. Mas, isso não significa consentir com a impunidade ou com o rechaço
aos ordenamentos jurídicos, pois estes são básicos para a vida em grupo.
Em outros termos, aceitar essa novidade seria permitir que novos “estados de
exceção” (AGAMBEN, 2004) pudessem vir a viger. Para Jakobs, alguns itens são
essenciais em sua acepção: antecipar a punição do suposto inimigo, isto é, antes penalizá-
lo antes que o processo seja concluído; permitir a desproporção entre o fato (crime) e a
pena ao mesmo tempo minimizar certas garantias processuais; agilizar o processo para
que ele serva como exemplo a outros que tenham pretensões assemelhadas; elaborar leis
mais rigorosas para aqueles que se enquadrarem nessa categoria (terroristas, componentes
de facções criminosas, traficantes, etc.). Ao mesmo tempo em que essas “providências”
embasam a proposta do autor, elas auxiliam na compreensão de sua inadequação enquanto
uma “engenharia de controle social”. (MATOS, 2018)

5. Considerações Finais
Nesse contexto, pode-se questionar como alguém é capturado nessas ficções (Lawfare,
Fakes news e “inimigo do Estado”), ficando intimamente convencido, repassando, porque
defende tais opiniões e, por exemplo, votando em nome delas. Uma possível resposta seria
a de que, como nos Regimes Totalitários, a mentira não é produzida para ativar e gerar
saberes, mas para avivar certas emoções (a humilhação, como a gerada pelo Tratado de
Versalhes - 1919), a necessidade (a miséria, por exemplo, ocorrida após a Crise Econômica
de 1929), os sentimentos subjetivos tornados objetivos (como a busca de culpados na
derrota na I Guerra Mundial - 1914/1918), ou expresso como a “vontade do povo”.
Arendt expôs, em suas inúmeras obras, que a vivência da política é a maneira de
resistir, de evitar cometer o mal político (“banal”). Isso porque, para que ela ocorra é preciso
um espaço, um locus, que seja ao mesmo tempo público e político, que haja igualdade e
liberdade de expressão, de pensamento, de discordância. Exposto outramente, que cada
13 Kant (1990, p. 48), por exemplo, escreveu que os homens têm uma origem comum, a «mesma cepa»: «tous les
hommes sur toute l’étendue de la Terre apartiennent à un seul et même genre naturel [...] qu’ils appartienent tous à
une et seule souche, d’òu ils sont issues.»

140
Sônia Maria Schio

um possa participar das decisões e das ações, sentindo-se cidadão, isto é, componente e
responsável pelo grupo. E este o protege ao mesmo tempo que é preservado pelos cidadãos.
O pensamento pode ser exercido e exposto, seja por palavras escritas, faladas, desenhadas,
ou por outra forma de expressão, havendo respeito pela singularidade na pluralidade. O
cidadão precisa sentir-se livre, espontâneo, em contato com seus semelhantes. A solidão,
o individualismo, o terror podem ser substituídos pela preocupação com o humano
(humanitas) e com o mundo (amor mundi ou “ética da responsabilidade pelo mundo).
Em contrapartida, se isso parecer utópico demais, é preciso lembrar que o futuro
ainda não está definido, que é preciso iniciar algo novo, por exemplo, colocando-se no
lugar do outro, em pensamento, seja este no presente, passado ou no porvir; vivente ou não.
A imaginação permite que isso seja possível, então, exercitá-la é uma “aventura” possível
para o humano. Pode-se também viajar, observando o entorno e como cada elemento se
posiciona nele. Assistir aos mais variados tipos de filmes, vivenciando-os. Essa experiência
também pode ser realizada em museus, jogos ou outros. (SCHIO, 2008) Isso porque elas
geram a necessidade de comentá-las, compartilhá-las, etc., fazendo com que a pessoa
se aproxime das outras para conversar, trocar opiniões. Ressurgindo os vínculos entre as
pessoas, aparece a preocupação por elas. A concorrência diminui e os temas políticos, isto
é, do interesse do grupo humano, podem ser tratados sem coação, violência, extremismos:
o humano é uma potencialidade que não é extinguível, e esta é uma lição que o Nazismo
legou, mesmo buscando o oposto.

141
Arendt e a mentira política: o Lawfare no séc. XXI

Referências bibliográficas:
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção, São Paulo: Boitempo, 2004.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo – antissemitismo, imperialismo e totalitarismo.
São Paulo: Cia das Letras, 1989.
_____. A humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing. Homens em
tempos sombrios, Lisboa: Relógio D’Água, 1991, p. 11- 43.
_____. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
<https://afinsophia.com/2016/11/16/john-comaroff-explica-lawfare>. Acesso em
16/11/2016.
<http://justificando.cartacapital.com.br/2016/11/17/lawfare-representa-o-uso-indevido-
dos-recursos-juridicos-para-fins-de-perseguicao-politica>. Acesso em 10/03/2017.
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Lawfare>. Acesso em 10/03/2017.
<http://legal- dictionary.thefreedictionary.com/
Strategic+Lawsuits+against+Public+Participation>. Acesso em 11/03/2017.
<https://www.casp.net/sued-for-freedom-of-speech-california/what-is-a-first-
amendment-slapp>. Acesso em 11/03/2017.
<http://www.juridicohightech.com.br/2012/07/breves-consideracoes-sobre-presuncao-
de.html>. Acesso em 11/03/2017.
<http://informacaoincorrecta.com/2018/07/31/o-que-e-e-como-funciona-a-lawfare>.
Acesso em 16/12/2018.
<https://brasilescola.uol.com.br/curiosidades/o-que-sao-fake-news.html>. Acesso em
17/12/2018.
<https://www.bbc.com/portuguese/geral-44446764>. Acesso em 17/12/2018.
KANT, I. Des différentes races humaines. Opuscules sur l’Histoire, Paris: GF Flamarion,
1990, p. 47-67.
MATOS, Bruno F. de. Direito Penas do Inimigo. Disponível em < https://www.direitonet.
com.br/artigos/exibir/5138/Direito-Penal-do-inimigo>. Acesso em 21/10/2018.
SCHIO, Sônia M. Hannah Arendt: a estética e a política (do juízo estético ao juízo político).
Tese de doutorado, Porto Alegre: UFRGS, 2008.
_____. Hannah Arendt: história e liberdade (da ação à reflexão), Porto Alegre: Clarinete:
2012.
VEIGA, Itamar Soares. Mundo previsto e mundo realizado: Arendt e “o que estamos
fazendo”, manuscrito. UCS, ago/2018.

142
Tainah Gualter

O diálogo do eu-comigo-mesmo em
Rousseau e Hannah Arendt

Tainah Gualter1

1.0 Introdução
O intento neste ensaio é oportunizar o estudo de dois pensamentos, de filósofos de
épocas distintas, e perceber em ambos o princípio encorajador da consciência de si mesmo,
que recai sob a constituição da esfera privativa da individualidade. A própria palavra
“consciência”, em todo o caso, aponta nesta direção, uma vez que significa “saber comigo e por mim
mesmo”, um tipo de conhecimento que é atualizado em todo processo de pensamento. O
projeto é trazer à debate os filósofos Jean Jacques Rousseau (1712-1778) e Hannah Arendt
(1906-1972) em um “empreendimento de estudar a natureza da privatividade humana, não
para poder falar dela com sabedoria, mas para se conhecê-la”. (ROUSSEAU, 1995. p.29). Assim,
com a intuição que em ambos os autores há digressões acerca da premissa aventada, este
ensaio tem o propósito de explanar e debater uma possível aproximação do pensamento de
Rousseau sobre a Verdade e as concepções de Hannah Arendt sobre o exercício incessante
do “eu-comigo-mesmo”, premissa esta que a autora descobre entre os gregos2.
Teremos como percurso metodológico destacar do texto Devaneios de um caminhante
solitário (Reveries of the Solitary Walker, 1782) a ideia de “consciência de si mesmo” que anos
à frente a filósofa Hannah Arendt reivindica como um estado existencial, na qual faço
companhia a mim mesmo, diálogo do eu-comigo-mesmo, que tem por finalidade a
coerência do “meu eu” (grifo nosso), afim de reafirmar a singularidade que nos é tirada
enquanto estamos com os outros. Em Hannah Arendt, o diálogo sem som do pensamento
é ativamente convocado, e não finda; parece que clama por uma conversa do “Eu” com o
“Eu mesmo” para terem o sentimento de coerência de si mesmo e da realidade, enquanto
mundo aparente, para então, atestarem e conhecerem a “Verdade”.
É desse diálogo proeminente, que situamos entre os filósofos citados, o insistente
e avassalador exercício do Pensar. E esta é talvez a condição do homem que dá sentido
e o recoloca na centralidade e comando para compreender o mundo comum. Afinal, é
na atividade do Pensar que reside a oportunidade de aprofundar as raízes históricas da

1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


2 Mesmo quando o filósofo decide, com Platão, deixar a “caverna” dos assuntos humanos, não precisa esconder-se de si
mesmo; pelo contrário, sob o céu das ideias não apenas encontra as verdadeiras essências de tudo quanto existe, mas
também a si próprio, no diálogo entre “eu e mim mesmo” (eme emautõ), no qual Platão aparentemente via a essência
do pensamento. Estar em solitude significa estar consigo mesmo; e portanto, o ato de pensar, embora possa ser a mais
solitária das atividades, nunca é realizado inteiramente sem um parceiro e sem companhia. (ARENDT, Hannah, 2017.
p. 93)

143
O diálogo do eu-comigo-mesmo em Rousseau...

existência humana, buscando sempre resignação e compreensão do seu ser como habitante
do mundo comum que vai além de sua existência individual.
O pensar é a faculdade do espirito que conjuga o interrogar e o entendimento, não
com finalidade de concretizar definições, mas é o constante exercício de “tomar novas decisões
cada vez que somos confrontados com alguma dificuldade”3. O pensamento não lida com o que
será, mas com o foi; é a atividade que tem seu fim a si mesma, é por esta faculdade que o
espirito tem a possibilidade de compreender os “porquês” e os “comos” das vicissitudes da
narrativa humana. E ainda, segundo Arendt, como seres pensantes, [...] os homens têm uma
inclinação, talvez uma necessidade, de pensar para além dos limites do conhecimento, de fazer
desta habilidade algo mais do que um instrumento para conhecer e agir, é um esforçar-se através
da memória o resgate do aparente e buscar os significados e entendimento destes.
Foi com estas inclinações que desde “As origens do totalitarismo”, assim como “A
Condição Humana”, e culminando com a exegese fenomenológica de “A vida do Espirito”
que Hannah Arendt pergunta-se sobre “O que estamos fazendo?” e aplica-se a compreensão
de seu tempo; o seu olhar para o mundo é dentro do próprio mundo e, por isso tem tanta
lucidez e consistência suas digressões. Afinal, como pensadora, não abusou de seu status, e
fez deste exercício o “abrir os olhos do espirito [...] um órgão para ver e contemplar a verdade”4
Foi com este fulgor que percebeu as formas de alheamento do homem, que o apartaram da
realidade comum, e até de si mesmo, enquanto indivíduo único e distinto do mundo plural.
Segundo Arendt, Rousseau foi o primeiro filósofo a explorar a privatividade, como
um abrigo íntimo do coração e, portanto, protegido dos outros. A intimidade do coração
[..], não tem lugar objetivo e tangível no mundo5. Não obstante, parece ainda mais pertinente
enfatizar que ele fora enfático a rebelar-se ao conformismo que a sociedade impõe aos
seus membros, algo que ele caracteriza como uma perversão ao íntimo, que é a intrusão à
esta esfera pelo social. A descoberta de Rousseau sugere que o indivíduo moderno e seus
intermináveis conflitos nasceram desta estreita relação entre o social e íntimo6.
Nesse particular, o importante é que os membros do social ajam como uma enorme
família, com uma mesma opinião e o interesse comum - algo que chamamos hoje de
conformismo.7 Esta peculiaridade remonta ao fato dos homens de ação substituírem o agir
pelo conformismo; fenômeno este que surgiu com a moderna concepção de sociedade, a qual
política e social são confundidos, e interesses individuais são expandidos da esfera privativa
do lar, para a esfera do público configurando o individualismo como característica maçante
desta sociedade, que já não imprime o diferente, como qualidade de espontaneidade, mas a
valorização de uma opinião única que comunga com o interesse comum.
Na modernidade, o privado opunha-se à esfera da sociabilidade e da esfera política
situando-se no domínio do individualismo. A prevalência de um interesse único, tanto
no mundo político, como no mundo social, faz do homem um ser administrado, pois não
importa a opinião distinta e nem os interesses distintos, o admirável é a sociabilidade e a
política imprimir ao homem o interesse comum. Foi, talvez, desta coerção que surgiu os
conflitos do “homem burguês”, pois este homem já não se encontra à vontade na sociedade,
3 ARENDT, H. A vida do espírito. O pensar, o querer, o julgar. Tradução de Antonio Abranches, César Augusto R.
de Almeida e Helena Martins. 5ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p.199.
4 Ibid. 2018, p .21.
5 ARENDT, Hannah. A condição Humana. Tradução Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. -10 eds.- Rio de Ja-
neiro: Forense Universitária, 2017. p. 47
6 Ibid. p. 48.
7 O fenômeno do conformismo é característico do último estágio dessa evolução moderna (ARENDT, 2017, p.49).

144
Tainah Gualter

mas também não consegue viver fora dela, torna-se por assim dizer, conflituoso, ou pior
sem sentido, sem direção. Não à toa que os romancistas modernos representem tão bem
esta estreita relação constrangedora entre social e o íntimo.
Essa degeneração do homem, é uma das razões que Hannah Arendt resgata, do
século XVIII, a defesa que Rousseau faz aos sentimentos privativos (que ao invés de serem
expostos e retirados do lado íntimo do homem), deveriam ser preservados da esfera comum
do social e, assim como Tocqueville e os românticos, tomou a frente contra as exigências
da sociedade em nivelar o individualismo, negando a discussão crítica, e imprimir o caráter
único no social e político. A extraordinária perspectiva de Rousseau é desvelar como os
homens agem sempre numa vontade geral que unifica a opinião pública, mesmo que
inicialmente tenham opiniões divergentes. Ou seja, o domínio do social foi tão avassalador
que controla igualmente todos os indivíduos, até mesmo dentro das sociedades de classe, ou
da função atual na sociedade, já se espera um tipo de desempenho de todos os componentes,
de modo que a ação espontânea seja excluída e as convenções e regras de conduta sejam as
máximas deste desdobramento moderno, “todas elas tendentes a normalizar seus membros”8.
Essa igualdade moderna, nada tem de similar com o pertencer aos iguais9 na cidade-
Estado grega, e menos ainda o que de mais ativo estava aparente no espaço público, já
que a individualidade antiga consistia em um exercício constante de ser único e não
substituível; se antes o espaço público era preservado para aparecer o homem em sua
singularidade, o momento da “pluralidade”, isto é, “de viver como um ser distinto e único entre
iguais”10 a modernidade corrompeu este alcance, com a sociabilidade e a previsibilidade
reduzindo o humano a produto quantitativo.11 Ao invés disso, a ascensão do social prova,
constantemente, que o homem individualizado, é também a face do desamparo, “o que quer
que ele faça permanece sem importância ou consequência para os outros, e o que tem importância
para ele é desprovido de interesse para os outros.”
Este fenômeno é tão estarrecedor que desencadeou um processo de artificialização,
o homem perde o contato com as coisas como são, aquilo que publiciza nada mais é
do que o aspecto mais superficial de uma vida desamparada, alienada; sem sentido;
pois o intimo não tem forças para se defender; e a inerente situação deste homem
desamparado é a redução de sua condição humana à função que exerce no mundo
comum. A destruição do íntimo e a perversão do coração significava, mais amplamente,
não possuir um lugar privado próprio (como o caso do escravo ou estar constantemente
na presença dos outros); uma existência superficial que perde tanto a consciência de si,
quanto a consciência do
“mundo comum que a um só tempo os relacione e separe, ou vivem em
uma separação desesperadamente solitária ou são comprimidos em uma
massa. Pois uma sociedade de massas nada mais é que aquele tipo de vida
organizada que automaticamente se estabelece entre seres humanos que
se relacionam ainda uns com os outros, mas perderam o mundo outrora
comum a todos eles.” (ARENDT, p. 126.)

8 Ibid. p.50.
9 Significava ser admitido entre os pares; para isso cada homem tinha constantemente de se distinguir de todos os
outros, demonstrar por meio de gestos e feitios singulares, que era sempre o melhor e se caso for sobressair-se sobre
os outros.
10 ARENDT, 2017. P.158.
11 Objeto primordial das análises cientificista das ciências sociais e em particular do conformismo, das leis da estatística
e do behaviorismo.

145
O diálogo do eu-comigo-mesmo em Rousseau...

Foi com estas impressões que situamos no texto, Devaneios de um caminhante solitário
acepções acerca de si mesmo e dos outros. Sendo a primeira, o traço distinto do exercício
dialógico e individual do “eu-comigo-mesmo” (grifo nosso), condição esta que não permite
o indivíduo estar sozinho, desamparado, pois sempre se terá a “consciência de si” sendo
esta a atividade do espírito que Hannah Arendt atenua como sendo a mais “ativa”. E se
a distinção entre o certo e o errado estiver relacionado com a habilidade do pensar, como
aventou Hannah Arendt, seria preciso que admitamos que esta seja uma exigência para
todos, [...] não importando quão erudita ou ignorante, inteligente ou estupida essa pessoa seja”12.
Todos devemos realizar a atividade do pensamento, como disse Hannah Arendt referindo-
se a Kant, o assunto não pode ser deixado para os especialistas, como se o pensamento fosse
monopólio de uma categoria de cientistas.13 O que talvez Kant, e outros predecessores não
tenham percebido é que a atividade do pensamento, diferente das ciências que buscam a
certeza e a evidencia, tem por empresa a coerência, busca de significados, uma busca digna
de amor, mais especificamente um amor desejante. O pensamento é o despertar da alma
que não tem por finalidade tornar alguém sábio, mas é antes um corroborar com a vida,
e precisamente uma vida com sentido, pois “pensar e estar completamente vivo são a mesma
coisa, o pensar é a atividade que acompanha a vida [...] expressando o significado de tudo que
acontece nela e nos ocorre enquanto vivos.”

2.0 Os devaneios de um caminhante solitário


Publicado quatro anos depois de sua morte, Devaneios14 é uma espécie de diário-
testamento de Rousseau, no qual descreve suas impressões e sensações sobre a própria vida
e a condição humana na Terra. Passando por temas como a mentira, a felicidade, a solidão,
a meditação e a hipocrisia, Rousseau transmite para o papel tudo o que sentia e pensava
a respeito desses assuntos, utilizando a linguagem simples e poética que caracterizou boa
parte de suas principais obras. Além do mais, a fim de deixar seus relatos ainda mais ricos,
não raro, ele ilustra suas teorias descrevendo pequenos acontecimentos cotidianos no qual
esteve presente – caminhadas, visitas de amigos e alguns incidentes esporádicos.
O livro é dividido em dez caminhadas, cada qual abarcando um tema específico,
alguns deles aparecendo mais de uma vez. O interessante é notar que o termo “caminhada”
não tem sentido literal, mas metafórico, como se correspondesse a uma espécie de trilha
filosófica e meditativa. Rousseau adorava passear a pé por campos e bosques floridos, e
resolveu estender o conceito de caminhada também aos seus devaneios.
A palavra devaneios não trata de especulações abstratas, ou até falaciosas, foi o termo
propicio àquele momento que Rousseau se posicionava. Para alguns pesquisadores do
filósofo genebrino, e até mesmo para o próprio, a obra Devaneios é uma terceira parte
do livro Confissões15, que também traz em seu bojo relatos autobiográfico; nestas obras
podemos encontrar um Rousseau mais recluso a seus pensamentos, também percebemos
a veia literária do filósofo, bem como percebemos a não pretensão autor ser reconhecido
pelos outros como filósofo e autor de grandes teses acerca do homem e afins, nestes relatos
12 ARENDT, H. 2012, p. 28.
13 ARENDT, H. 2012, p. 28.
14 A obra Devaneios foi escrita por um Rousseau recluso e de poucos afetos. Neste período, procura se restabelecer o
elo consigo mesmo. Pois para si mesmo não pode mentir. Ele tem a convicção de que cumpriu o que deveria cumprir.
E se seus desafetos imaginassem que aquela situação o tiraria a paz, enganaram-se. Pois segundo o autor ele estava
finalmente livre. E bem mais que isso, saiu fortalecido! (ROUSSEAU, 1975. p.24)
15 Rousseau na Primeira Caminhada expõe a seguinte afirmação: “estas folhas podem ser consideradas como um apên-
dice das minhas Confissões”. (ROUSSEAU, 1975. p. 27)

146
Tainah Gualter

autobiográficos há uma indicação solipcista de encontro com o próprio Ser e a Verdade. O


filósofo afirma seu intuito em escrever os Devaneios, para si mesmo e não para satisfazer
os outros, assim o diz: “minha empresa é a mesma que Montaigne, mas com uma finalidade
totalmente contraria à sua: pois ele não escrevia seus ensaios senão para os outros e eu não escrevo
meus devaneios senão para mim”. (ROUSSEAU, 1975. p. 27). E corrobora que trata de um
empreendimento de conhecimento diferente de seus antecessores.

“Vi muitos que filosofavam de maneira muito mais douta que eu, mas
sua filosofia lhes era, de certa forma, estranha. Querendo ser mais sábios
que outros, estudavam o universo para saber como este estava arranjado,
como teriam estudado alguma máquina que tivessem encontrado, por
pura curiosidade. Estudavam a natureza humana para dela poder falar
com sabedoria, mas não para se conhecerem [...] (ROUSSEAU, 1975
p. 29).

Essas poucas linhas transcritas denotam o sentimento que emergia do filosofo.


Apesar de parecer inicialmente uma leitura fatalista e dramática, o fato é que Rousseau nos
proporciona uma reflexão sobre o homem; o homem individual que é; a singularidade do
seu ser, e mais, é recuperar a intimidade do seu coração que fora roubada e pervertida e por
isso sua senda e sina é também a busca pela verdade, (não é o saber absoluto e pressupor que
se há uma verdade nele os outros estão com a falsidade, mas antes de tudo tem por senda
o compromisso pela coerência de si mesmo) pois segundo o autor é o seu compromisso
estar fiel à verdade, “sem ela o homem é cego; ela é a luz da razão” (ROUSSEAU, 1975. p. 56).
A verdade é o mais precioso de todos os bens, assim tão mal como a mentira, a ignorância
também é prejudicial à saúde mental do homem. É deste modo, que a polêmica observada
neste texto é o compromisso com a Verdade16. É exposto a razão pela qual o autor não se
deixou corromper pela glória que outrora lhe coubera e pode desvelar-se daquela sociedade
mesquinha que não lhe soube compreender. É por isso que seu empreendimento, tal como
o empreendimento socrático, é o de conhecer a si mesmo e encontrar dentro de si esta
verdade que o conduzia e não lhe deixava falhar.
Em nome da verdade Rousseau se vê na condição de explicar o porquê de ter
dito o que disse, ter escrito o que escreveu. “Vivendo minha vida comigo mesmo, devo
conhecer-me e vejo, pela maneira pela qual os que julgam conhecer-me, interpretam minhas
ações e minha conduta, que deles não conhecem nada. Ninguém no mundo me conhece a não
ser eu mesmo.”17
Não há equívocos, notarmos que o autor percebe o quão conciso foi durante sua
vida. E reitera continuamente o diálogo do “eu-comigo-mesmo” como uma ferramenta
para atestar sua fala e aparição no mundo. Esta é uma condição humana e talvez seja dela
que Rousseau investe a prerrogativa do conhecimento de si. Pois suas impressões acerca
daquela sociedade que o relegou a solitude eram sobretudo, de uma sociedade corrompida
que preferem o erro e a mentira, as convenções e o conformismo do que estarem inebriadas
pela Verdade. Assim afirma que a pior mentira é a calúnia, “julgar as palavras dos homens
pelos efeitos que produzem significa frequentemente avalia-las mal” (ROUSSEAU, 1975. p.
56).

16 Não é o mesmo processo de ideal cartesiano de certeza; é muito mais próximo ao conhecimento de si mesmo socrá-
tico.
17 ROUSSEAU, J.J. Textos autobiográficos e outros escritos/ J.J. Rousseau; tradução, introdução e notas Fulvia M.L.
Moretto- São Paulo: Ed. UNESP, 2009.

147
O diálogo do eu-comigo-mesmo em Rousseau...

Há também as mentiras oficiosas, são aquelas mentiras em defesas próprias, que não
denigrem a outrem, não deixam de ser uma mentira, mas prejudica somente a si mesmo.
Nesse caso, Rousseau usa como exemplo a própria mentira que contou em uma devida
ocasião, ao ser perguntado por uma jovem gestante, se tivera filhos, o mesmo responde
que nunca tivera essa felicidade. Sabendo ela e os demais presentes que havia contado
uma mentira, tudo aquilo não acarretaria mal aos outros somente a si mesmo, não mentia
para ser enganoso, ou prejudicar, se o fez foi por timidez. Ainda assim, julgou-se com
severidade, pois a mentira é sempre uma mentira.
Portanto ser sincero foi tanto sua virtude quanto o seu mal.

“Frequentemente, contei muitas fábulas, mas muito raramente menti.


Seguindo estes princípios, dei aos outros muitas oportunidades de me
atacarem, mas não prejudiquei quem quer que fosse [...]. É unicamente
por essa razão, parece-me, que a verdade é uma virtude. Em qualquer
outro sentido, ela não é para nós senão um ser metafisico, de que não
resulta nem bem nem mal.” (ROUSSEAU, 1975. p. 66)

Mesmo desculpando e justificando-se por ter faltado com a verdade, Rousseau


acrescenta o fato do lema que escolhera, aquilo que lhe obrigava a sempre dizer a verdade
em quaisquer circunstancias, “mais do que a qualquer outro homem, a uma profissão rigorosa
da verdade, [...]e nunca permitir que saíssem ficções [...] de uma boca e uma pena que se haviam
particularmente consagrado à verdade.” (ROUSSEAU, 1975. p. 66-67)
A profissão da sinceridade é a reflexão mais laboriosa (ROUSSEAU, 1975. p. 66)
mais segura e fiel a si mesmo, assim para não se deixar falsear ou enganar-se pelas noções
abstratas do verdadeiro e do falso é sempre preferível recorrer à consciência. É por ela e
com ela que o indivíduo redefine o seu agir. É o diálogo constante do “eu” “comigo mesmo”,
é o falar a si mesmo, “a consciência é a voz da alma, as paixões são a voz do corpo, [...] a
consciência não engana nunca.” (ROUSSEAU,1995. p. 242) Tendo duvidas é preferível
sempre recorrer a consciência. A tese central sobre a consciência é exposta na obra Emilio
ou da Educação (1995), corrobora que o preceito de agir com os outros, como queremos que
ajam conosco, só tem como alicerce real a consciência e o sentimento. (ROUSSEAU,1995.
p. 195). É o velho preceito de nos colocarmos na posição do outro, ser com ciente, ter
ciência do outro.
O autor não importou de outros autores o termo, nem tão pouco condicionou
e assimilou aquilo que seria a condição do vitam impendere vero18, porém é possível
percebermos a aproximação consistente desta percepção do exercício da consciência, ou
igualmente o exercício individual do “eu-comigo-mesmo”, como a bússola para seguir
sempre com a verdade, pois como já foi esboçado anteriormente, a mentira sempre é
perniciosa e nunca traz o bem ,ou a felicidade. E se, ainda assim, recorre-se a mentira para
caluniar, ou difamar os outros, pode se mentir para os outros, mas, a consciência não se
deixará mentir para si.

3.0 A “consciência” em Hannah Arendt


Sem dúvidas a filosofa empreende um projeto inovador sobre a faculdade do
Pensamento. Encontra-se na obra inacabada A vida do Espirito (2012), “o primeiro amor
da filósofa” (grifo nosso), a filosofia pura, é nela que aparece as razões que a levaram ao
18 A questão da Verdade em Rousseau!

148
Tainah Gualter

propício projeto de tratar as três faculdades do Espírito19- o pensar, o querer e o julgar. A


obra fica inconclusa, pois a filósofa falece em 1971, quando ainda esboçava os escritos
sobre a faculdade do julgar.
A oportunidade de esboçar este texto surgiu quando postumamente escreve suas
impressões sobre o julgamento de um dos executores nazistas, em um livro intitulado
Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (1999) desenvolve a
premissa que o nazista cometera tantas e tantas atrocidades não por ser “mal”, mas porque
era “ausente o pensamento”. Eichmann era a expressão deste homem moderno, burocrata,
bem administrado; homem de frases feitas e clichês, que esvaziado até de si mesmo, não
tinha atividade do pensamento como uma exigência continua, mas fazia o uso da irreflexão
para proteger-se de suas ações e até as consequências destas.
As conclusões de Hannah Arendt, no entanto, são recebidas de modo negativo e
chamam a atenção do mundo. Ela é obrigada a se retratar com a comunidade judia e com
seus ávidos leitores, pois era inconsistente para uma judia20 “amenizar” os atos do nazista.
Em A vida do espirito, Arendt retoma este conceito, a fim de um esclarecimento público,
pois havia sido rechaçada pela comunidade judaica e colegas de pesquisa e profissão, que
aquilo que ela chamara de “banal”, foi à percepção de que Eichmann havia praticado tais
atos, não por que este tenha tido fortes convicções antissemitistas, mas por que, o mesmo,
cumpria ordens, e fazia aquilo numa ausência de reflexão sobre o que os seus atos poderiam
provocar aos judeus. Na palavra da autora, “ele simplesmente nunca percebeu o que estava
fazendo [...]. Foi pura irreflexão.” (ARENDT, H. 1999a, p. 310-311).
Foi a partir destas considerações que ela toma o exercício do pensar como a atividade
que não cessa, mas que só é possível enquanto os homens vivam em um ambiente de
liberdade política. Ela sinaliza que o advento da modernidade, não apenas reconsiderou esta
atividade, como minou completamente a atividade do pensar, impondo “a despreocupação
negligente, a confusão desesperada ou a repetição complacente de verdades (grifo da autora) que se
tornam triviais e vazias”.21 Ela parte de uma análise muito exaustiva sobre o que é o pensar
- que é o estar consigo mesmo e consigo mesmo dialogar. Explora através dos gregos22
que este é um exercício do ego que se divide em dois, o “eu” e o “eu mesmo”, a divisão não
são de opostos, pois trata-se do Ser; e o eu que pergunta é o eu que responde, e tem por
critério a conformidade, a coerência e a harmonia deste ser que é “Um”; é nesta direção que
a consciência, no sentido de consciência de si torna o pensamento possível, pois não lida
com o que ainda não é, mas essencialmente com as coisas que existem, pois a consciência
é este elo que liga o “eu” com o mundo aparente, é ela que possibilita o assentimento da
identidade do “eu” e, portanto, dos outros.
Em outros termos, tudo o que aparece no mundo plural, só o sabemos ou conhecemos
porque sintetizamos neste ser o que é e, imediatamente, o que não é, identificamos a
singularidade perante a pluralidade. A consciência é indicação de “conhecer comigo
mesmo”, “conversar”, e escutar por mim mesmo, e deste modo ter assentimento do ser, ou
19 Por Espirito compreende-se a própria “Com ciência”. Os tradutores que inicialmente observaram o termo “mind”
tiveram o cuidado esmiuçado de não associar o termo a “Filosofia da Mente”, ou a “Psicologia”, ciências que estavam
em pleno vigor na década de 60 nos EUA.
20 Hannah havia nascido na comunidade judaica, apesar de há tempos ter abandonado os preceitos da religião oriunda,
bem como durante a guerra ter conseguido refugiar-se inicialmente na França e anos depois conseguir asilo nos
EUA.
21 ARENDT, Hannah. A condição Humana. Tradução Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. -10 eds.- Rio de Ja-
neiro: Forense Universitária, 2017. p. 6.
22 Platão e Sócrates

149
O diálogo do eu-comigo-mesmo em Rousseau...

do real. Assim, a consciência expressa o ato de determinar a existência, certamente, Arendt


está convicta que aquilo que individua o ser, não pode aparecer como uma contradição,
afinal, reitera em Sócrates, ser “um” é não quer entrar em desacordo consigo mesmo.
“A razão pela qual não se deve matar, mesmo numa situação em que ninguém possa vê-
lo, é que você não vai querer viver com um assassino”.23 Ou seja, ao cometer o assassinato
você ficará constantemente na companhia do assassino. Não há como negar isso, o pensar
não sustenta a contradição, pois lida com o foi (o passado) na busca de reconciliação com
os sentidos; assim, podemos assentir que o efeito catártico que ele provoca aguarda um
retorno ao mundo comum, e que pensar não dispensa julgar os assuntos humanos, é a
dimensão dupla do “eu” em relação a si mesmo e aos outros, estamos sempre em relação
com o outro, inclusive o outro que há em nós mesmos! “É melhor estar em desacordo com
o mundo inteiro do que, sendo um, estar em desacordo comigo mesmo”.24
E exatamente por sermos um “eu” que não queremos entrar em desacordo consigo
mesmo; e a “consciência” é a condição que possibilita o diálogo do “eu”, assentando aquilo
que “eu sou eu”, sem deixar de implicar a conexão com o outro. Reafirmando a minha
identidade perante a alteridade do mundo plural, mas sem deixar de considerar que ao me
perceber, não deixo de ver o mundo que está ao meu redor. Por isso, a retirada do mundo
para pensar, é um retirar-se não permanente e nunca é solitário, pois sempre se está com
outro, ainda que seja o outro que há em mim mesmo. A duração da atividade do pensar
transforma a consciência de si em uma dualidade [...] convincente de que os homens existem
essencialmente no plural25
Em outras palavras, Arendt resolve aquilo que inicialmente se pergunta na Vida do
Espirito, a relação entre a ausência de pensamento e o mal; e numa certeza não-absoluta
promulgara, “é a consciência”, a lei moral que há dentro de mim26, que não se pode fazer ao
outro, aquilo que não se quer que façam a nós mesmos.

A consciência não é o mesmo que o pensamento; os atos de consciência


têm em comum com a experiência dos sentidos o fato de serem atos
intencionais e, portanto, cognitivos, ao passo que o ego pensante não
pensa alguma coisa, mas sobre alguma coisa; e este é ato dialético: ele se
desenrola sob a forma de um diálogo silencioso. Sem a consciência, no
sentido de si mesmo, o pensamento seria impossível. (ARENDT, 2001.
p. 140)

Para Arendt, é a consciência dá a condição para o pensamento, pois a realização


humana da consciência no dialogo sem som do pensamento sugere a experiencia da
diferença na identidade

4.0 Considerações finais


O intuito deste ensaio era perceber na obra de Rousseau a característica esmiuçada
da consciência arendtiana como projeto de apreciação do “eu”, e aquilo que segura o homem
à capacidade de estar sempre realizando este diálogo interno, a fim de perceber e descobrir
além de si mesmo, a constituição do outro. Na obra de Hannah Arendt, A Condição Humana
(1958), a filósofa articula em Rousseau, como aquele que despertou o fato do caráter íntimo
23 Ibid., p. 65.
24 ARENDT, H. “Sócrates”. A promessa da Política. Op. Cit., p.60.
25 ARENDT, H. 2012, p.207.
26 Arendt é leitora de Kant e parece pender ao Imperativo Categórico do filósofo.

150
Tainah Gualter

do coração ter sido invadido pelo social, de modo a caracterizar o humano a um interesse
único, que é comum aos outros pares, e por essas razões já não importa seu modo de ver a
sociedade, já que, até mesmo, o seu modo de ver é tão igual quanto dos outros, em tão alto
grau que o espontâneo é excluído, e as convenções e regras de conduta são as máximas deste
desdobramento moderno.
Assim para finalizar, não encerrar as discussões que ainda podem se desenvolver
desta temática, o recorte que foi feito a partir da obra Devaneios, é para configurar esta
denúncia que Rousseau faz à esfera social, assim como aos seus contemporâneos, pois é de tal
modo que fora mal interpretado, quanto falácias disseram dele, pois no fundo sua intenção
nunca foi de atacar vilmente a humanidade, mas trazer à tona a sua individualidade, aquilo
que caracteriza sua singularidade perante um mundo plural, e seu sentimento de verdade;
e percorrendo estes textos, ditos, principalmente, como autobiográficos percebemos esta
inclinação ao diálogo constante do “eu-comigo mesmo” e a percepção da consciência, ou
seja, vemos que ele tem por intuito a atividade do pensar, como ato que lhe singulariza
perante os demais e permite-lhe dar coerência a si mesmo e ao mundo comum.
Assim ele nos diz:

Seu erro, portanto, não foi o de me afastar da sociedade como um membro


inútil, mas o de me proscrever dela como um membro pernicioso; pois
poucas vezes fiz o bem, confesso-o, mas quanto ao mal, durante a minha
vida, ele não entrou em minha vontade e duvido que exista algum homem
no mundo que realmente tenha feito menos do que eu. (ROUSSEAU,
1995, p.88)

151
O diálogo do eu-comigo-mesmo em Rousseau...

Referências bibliográficas:
ARENDT, Hannah. A condição Humana. Tradução Roberto Raposo, posfácio de Celso
Lafer. -10 ed.- Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2017
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução Roberto; revisão técnica e
apresentação Adriano Correia. - 13.ed-. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018.
_____. A vida do espírito. O pensar, o querer, o julgar. Tradução de Antonio Abranches,
César Augusto R. de Almeida e Helena Martins. 5ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2012.
_____. “Filosofia e política”. In: A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1993.
_____. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens
Siqueira. 17.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
_____. “Sócrates”. A promessa da Política. Op. Cit., p.60.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. As confissões. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1965.
_____. Emílio ou Da Educação, R. T. Bertrand Brasil, 1995.
_____. Os devaneios de um viajante solitário. Brasília: Ed. UnB, 1995.

152

Você também pode gostar