Massa e Humanização - de Canetti A Sloterdijk
Massa e Humanização - de Canetti A Sloterdijk
Massa e Humanização - de Canetti A Sloterdijk
BANCA:
Prof. Dr. José Oscar de Almeida Marques (orientador)
Prof. Dr. Ana Thereza de Miranda Cordeiro Dürmaier
Prof. Dr. Laymert Garcia dos Santos
Prof. Dr. Oswaldo Giacoia Júnior (suplente)
Prof. Dr. Róbson Ramos dos Reis (suplente)
CAMPINAS
SETEMBRO DE 2009
2
Banca Examinadora
5
Agradecimentos
pela dedicação ao meu trabalho e a paciência com meus eventuais devaneios. Jamais
me proporcionou uma orientação criteriosa e amigável sobre temas e autores tão incomuns
Aos meus pais, Wagner e Gasparina, pela coragem e determinação com que saíram
de Minas Gerais com dois filhos pequenos, enfrentando o desafio de edificar a nossa
família em uma nova cidade, Campinas. É o primoroso e árduo trabalho de ambos na rede
Ao meu irmão, pelo apoio imutável. Ao meu padrinho Geraldo, pelo diálogo
constante e pela presença e ajuda nos momentos difíceis. A Danielle, pelos momentos de
alegria que me proporcionou durante os últimos passos do mestrado. Aos amigos, pelas
convicção de que é ao ensino público que cabe a tarefa de mudar nosso país, cabendo a nós,
formados nas universidades públicas de excelência, a hercúlea tarefa de melhorar cada vez
Sumário
Resumo ............................................................................................................................. 9
Introdução ....................................................................................................................... 13
Resumo
O trabalho propõe-se a analisar o fenômeno das massas humanas e suas implicações
culturais, sociais e políticas para o século XXI. Partindo da clássica obra Massa e Poder
(1960), de Elias Canetti, o estudo prossegue com o exame de dois ensaios de Peter
Sloterdijk, Regras para o Parque Humano (1999) e O Desprezo das Massas (2000), e
procura esclarecer as transformações do conceito de massa entre esses dois autores, da
massa negra e molar de Canetti à massa colorida e gasosa de Sloterdijk. Sem a pretensão de
percorrer o conceito na história da filosofia política, pretende-se fazer notar como a
reflexão sobre a natureza, as potencialidades e os riscos das multidões assume um papel
cada vez mais importante no pensamento sobre a política e cultura contemporâneas. As
catastróficas experiências das grandes guerras mundiais mostraram a urgência de uma
análise séria dos comportamentos direcionados ou espontâneos de massa, principalmente
para aqueles que desejam pensar sobre o que ainda podem significar, hoje, idéias como
democracia ou humanidade. Se, como nota Sloterdijk, o humanismo não é mais capaz de
domesticar o homem contemporâneo, bombardeado cada vez mais intensamente por mídias
embrutecedoras, outras antropotécnicas - mais efetivas que o velho humanismo na sua
forma de domesticar o homem - deverão substituí-lo em nome de um determinado projeto
de humanidade. Massa e humanização apresentam-se hoje como tópicos estreitamente
relacionados, e refletir sobre o que significa ser humano hoje e o que poderá significar
amanhã exige uma maior compreensão dos fenômenos de massa no século que se inicia.
Abstract
This work proposes to examine the phenomenon of human masses and their cultural, social
and political implications for the XXIth century. Taking as its point of depart Elias Canetti’s
classic essay Mass und Macht (1960), the study continues with an examination of two texts
by Peter Sloterdijk, Regeln für den Menschenpark (1999) and Die Verachtung der Massen
(2000), and seeks to clarify the transformations of the concept of mass between these two
authors, from Canetti’s black and molar mass to the gaseous and colorful mass of
Sloterdijk. Without the pretension of examining the concept of mass through the whole
history of political philosophy, its aim is to make clear how the reflection on the nature, the
potential and risks of the masses has an increasingly important role in thinking about
contemporary politics and culture. The disastrous experiences of the great world wars has
shown the urgency of a serious analysis of the directed or spontaneous conduct of the
masses, especially for those who want to think about what the ideas of democracy or
humanity can still mean today. If, as Sloterdijk remarked, humanism is no longer capable
of domesticating contemporary man, as he is increasingly bombed by brutal media, other
antropotechniques – more effective than the old humanism to attain human domesticating –
should replace it in the name of a particular project of humanity. Mass and humanization
present themselves today as closely related topics, and to reflect about what it means to be
human today and what could that mean tomorrow requires greater understanding of the
phenomena of mass in the century that begins.
11
Ich sah Masse um mich, aber ich sah auch Masse in mir
Eu vi a massa ao meu redor, mas eu também vi a massa dentro de mim
Elias Canetti 1
1
CANETTI, Elias. Die Fackel im Ohr. Lebensgeschichte 1921-1931. Uma luz em meu ouvido. História de
uma vida.
2
NIETZSCHE, Friedrich. Also sprach Zarathustra. Ein Buch für Alle und Keinen. Assim falou Zaratustra.
Um livro para todos e para ninguém.
13
Introdução
somente há muito pouco tempo tem conseguido angariar o devido reconhecimento. Desde
que Platão, olhando para o demos ateniense, ressaltava o perigo de uma multidão irracional
duas frentes: por um lado, surge uma psicologia das massas (presente em obras de Gabriel
Tarde, Gustave Le Bon, Sigmund Freud, Hannah Arendt, Ortega y Gasset); por outro lado,
o tema recebe atenção na literatura3 (Victor Hugo, Charles Baudelaire, Edgar Allan Poe).
Mas é apenas em 1960, com a obra Massa e Poder de Elias Canetti, que o desafio
humanidade, as grandes guerras do século XX. Peter Sloterdijk, filósofo alemão, em seu
perspectiva do final do século XX. Dessa forma, Sloterdijk nos oferece uma atualização da
3
“Nenhuma questão se apresenta mais carregada de compromissos para os literatos do século XIX do que a
multidão. Num momento em que o hábito de leitura se espalhava por todas as classes sociais, esse público em
formação fazia uma exigência: encontrar sua imagem nos romances que lia. Entre outros, Victor Hugo,
Baudelaire, Zola e Eugène Sue, na França, e Charles Dickens e Edgar Allan Poe, na Inglaterra, preencheram
essa expectativa oferecendo à sociedade o espetáculo de sua própria vida”. BRESCIANI, Maria Stella
Martins. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza, p 7.
14
crítica de Canetti, meio século depois, expondo como a direção das massas humanas ainda
humanas e algumas de suas mais relevantes implicações éticas, culturais e políticas para o
humanidade.
características sociais e histórias que permitem uma transformação da massa negra e molar
da primeira metade do século XX, na massa gasosa e colorida, segundo a interpretação que
Sloterdijk propõe em seu livro O desprezo das massas, principalmente em sua organização
Poder.
e como problema que deva ser tratado positivamente. Com a revolução industrial e o
aumento expressivo e cada vez maior do número das multidões, tornou-se imprescindível
mostram suficientemente críticas, de modo que o antigo desprezo das massas é meramente
favor de tentar superar o desprezo, mas sem uma crítica funcional do fenômeno da massa,
desprezabilidade.
ou, como Sloterdijk o denomina: o grande projeto moderno de desenvolver a massa como
sujeito. Através de um exame dos comentários de Sloterdijk sobre Hobbes, Spinoza, Hegel,
das massas atinge seu ponto crítico na cultura contemporânea de massas midiáticas, sob a
forma de uma aniquilação das diferenças, e em que medida esse processo é tomado como
movimento democrático.
definições criadas pelo gênero humano para se autocompreender e gerenciar seu futuro
enquanto humanidade.
reconhecimento. Pretende-se ter mobilizado, através dos principais autores citados, Canetti
esse fenômeno libertou-se, por assim dizer, de seu aspecto físico nos dias atuais. Segundo
4
“Um fenômeno tão enigmático quanto universal é o da massa que repentinamente se forma onde, antes, nada
havia. Umas poucas pessoas se juntam – cinco, dez ou doze, no máximo. Nada foi anunciado; nada é
aguardado. De repente, o local preteja de gente. As pessoas afluem, provindas de todos os lados, e é como se
as ruas tivessem uma única direção. Muitos não sabem o que aconteceu e, se perguntados, nada têm a
responder; no entanto, têm pressa de estar onde a maioria está. Em seu movimento, há uma determinação que
difere inteiramente da expressão da curiosidade habitual. O movimento de uns – pode-se pensar –comunica-se
aos outros; mas não é só isso: as pessoas têm uma meta. E ela está lá antes mesmo que se encontrem palavras
para descrevê-la: a meta é o ponto mais negro – o local onde a maioria encontra-se reunida”. CANETTI,
Elias. Masse und Macht, Hamburg, Claassen, 1960, p 10-11. Tradução brasileira de Sérgio Tellaroli: Massa e
Poder, São Paulo, Companhia das letras, 1995, p 14-25.
5
“As massas atuais pararam essencialmente de ser massas de reuniões e ajuntamentos; elas entraram num
regime no qual o caráter de massa não se expressa mais na reunião física, mas na participação em programas
de meios de comunicação de massa”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen: Versuch über
Kulturkämpfe in der modernen Gesellschaft, Frankfurt, Suhrkamp, p 16. Tradução brasileira de Claudia
Cavalcanti: O Desprezo das Massas: ensaio sobre lutas culturais na sociedade moderna, São Paulo, Estação
Liberdade, 2002, p 20-21.
18
Sloterdijk, as massas da atualidade não têm mais como característica principal a reunião
visto que o fenômeno da massa nos dias atuais perde sua característica essencial de
mas essa propriedade não é mais essencial para o conceito. Ou seja, a massa existe na
atualidade sem que seja necessário que uma multidão se reúna em um lugar físico. Com
esta alteração do conceito perdem-se, também, várias outras características apontadas por
apresenta grandes diferenças em relação à atual, e é justo que o conceito de massa seja
massa é o de pertencer a um corpo único. Quanto mais densa a massa, quanto maior o
número de pessoas se reunindo em um lugar, maior é esse sentimento, que tem como
indivíduo não precisa mais do contato físico para sentir-se parte de um único corpo. Neste
Er ist der Reflex dessen, daβ man heute mehr als je zuvor Masse ist,
auch ohne sich als solche zu versammeln.6
Não existe mais a necessidade de um lugar físico para a reunião de todos para a
interiorização desta, ou seja, agora é-se massa sem que se veja os outros (man ist jetzt
Masse, ohne die anderen zu sehen) . Dessa forma, as multidões não são mais orientadas
pelas experiências corporais dos indivíduos, mas sim por meio de símbolos das mídias de
um local.
negro. Sloterdijk aponta essas características para contrapô-las, dizendo que a massa pós-
moderna é, ao contrário, gasosa e colorida. Para definir com clareza a diferença entre esses
Will man die Differenz zwischen dem Zeitalter Canettis und der
Gegenwart auf einen Begriff bringen, so lieβe sich sagen: Weil heute
die Masse über das Stadium ihrer Versammlungsfähigkeit hinaus ist,
hat das Programm-Prinzip das Führer-Prinzip ersetzen müssen.
Folglich genügt es, den Unterschied zwischen einem Führer und
einem Programm zu erklären, um offenzulegen, was die klassisch-
6
“A massa de ajuntamento tornou-se uma massa relacionada a um programa – e este se emancipou, de acordo
com a definição, de reunião física num local comum a todos. Nela, como indivíduo, se é massa. Agora se é
massa sem que se veja os outros. A conseqüência disso é que as sociedades de hoje – ou se pode dizer, as pós-
modernas – não mais se orientaram primariamente pelas suas próprias experiência corporais, mas se observam
apenas por meio de símbolos das comunicações de massa, de discursos, modas, programas e celebridades.
Aqui o individualismo de massa de nossa época tem seu motivo sistêmico. É o reflexo daquilo que hoje, mais
do que nunca, é massa, também sem se reunir como tal”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p
16. Tradução: p 20-21.
20
perdem as orientações corporais como principal característica de sua constituição. Por isso,
trecho de Canetti:
Der wichtigste Vorgang, der sich innerhalb der Masse abspielt, ist
die Entladung. Vorher besteht die Masse eigentlich nicht, die
Entladung macht sie erst wirklich aus. Sie ist der Augenblick, en
dem alle, die zu ihr gehören, ihre Verschiedenheiten loswerden und
sich als gleiche fühlen.8
existem por toda parte, criando distâncias entre os indivíduos, criando cargas. Apenas na
7
“Caso se queira definir a diferença entre a época de Canetti e o presente, então poderia dizer o seguinte:
como hoje a massa ultrapassou o estágio de capacidade de reunião, o princípio do programa teve de substituir
o princípio do líder. Por conseqüência, é suficiente explicar a diferença entre um líder e um programa para
evidenciar o que diferencia a massa preta clássico-moderna reunida da massa pós-moderna midiatizada,
estilhaçada e colorida. Trata-se aqui da diferença entre descarga e entretenimento. É também ela que
determina a diferença entre o modo fascistóide e o democrático de massa da direção de afetos que vivenciam
as grandes sociedades de comunicação intensa.”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 20.
Tradução: p 24.
8
“O mais importante acontecimento a desenrolar-se no interior da massa é a descarga. Anteriormente a ele, a
massa ainda não existe de fato. É somente a descarga que efetivamente a constitui. Trata-se do momento em
que todos os que a compõem desvencilham-se de suas diferenças e passam a sentir-se iguais”. CANETTI,
Elias. Masse und Macht, p 12. Tradução: p 16.
21
multidão é possível prover um alívio dessas cargas (por mais que possa ser uma ilusão
realmente massa e esse momento só esse possível graças à inversão do temor do contato
vivenciada pelo ajuntamento físico das pessoas. Canetti inicia Massa e Poder descrevendo
9
“Somente a união de todos é capaz de promover-lhes a libertação das cargas da distância. E é precisamente
isso o que acontece na massa. Na descarga, deitam-se abaixo as separações, e todos se sentem iguais. Nessa
sua concentração, onde quase não há espaço entre as pessoas, onde os corpos se comprimem uns contra os
outros, cada um encontra-se tão próximo do outro quanto de si mesmo. Enorme é o alívio que isso provoca. É
em razão desse momento feliz, no qual ninguém é mais ou melhor que os outros, que os homens
transformam-se em massa ”. CANETTI, Elias. Masse und Macht, p 13. Tradução: p 17.
10
“Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido. Ele quer ver aquilo que o está
tocando; quer ser capaz de conhecê-lo ou, ao menos, de classificá-lo. Por toda a parte, o homem evita o
contato com o que lhe é estranho. À noite ou no escuro, o pavor ante o contato inesperado pode intensificar-se
até o pânico. Nem mesmo as roupas proporcionam segurança suficiente – quão facilmente se pode rasgá-las,
quão fácil é avançar até a carne nua, lisa, indefesa da vítima”. CANETTI, Elias. Masse und Macht, p 9.
Tradução: p 13.
22
desconhecido, a tal ponto que todas as distâncias estabelecidas pelo homem em torno de si
têm como origem esse temor. Mesmo no contato com pessoas desejadas, sendo
humanos efetivamente se tornam massa. Quanto mais densa a massa, mais forte é esse
sentimento de estar no interior de um único corpo. Assim como subitamente “tudo preteja
de gente” (Plötzlich ist alles schwarz von Menschen), subitamente tudo se passa como
11
“Somente na massa é possível ao homem liberta-se do temor do contato. Tem-se aí a única situação na qual
esse temor transforma-se no seu oposto. E é da massa densa que se precisa para tanto, aquela na qual um
corpo comprime-se contra o outro, densa inclusive na sua constituição psíquica, de modo que não atentamos
para quem é que nos ‘comprime’. Tão logo nos entregamos à massa não tememos o seu contato. Na massa
ideal, todos são iguais. Nenhuma diversidade conta, nem mesmo a dos sexos. Quem quer que nos comprima é
igual a nós. Sentimo-lo como sentimos a nós mesmos. Subitamente, tudo que se passa então como que no
interior de um único corpo. Talvez essa seja uma das razões pelas quais a massa busca concentrar-se de
maneira tão densa: ela deseja libertar-se tão completamente quanto possível do temor individual do contato.
Quanto mais energicamente os homens se apertarem uns contra os outros, tanto mais seguros eles se sentiram
de não se temerem mutuamente. Essa inversão do temor do contato é característica da massa”. CANETTI,
Elias. Masse und Macht, p 10. Tradução: p 14.
23
dentro de um único corpo (Es geht dann alles plötzlich wie innerhalb eines Körpers vor
sich). Sem a reunião física das pessoas em um pretume de gente, já não é mais possível o
momento de descarga. Possivelmente, essa constatação seria suficiente para se afirmar que
não existe o fenômeno de massa sem o momento da descarga, e que, portanto, esse seria
um fenômeno social que teve seu apogeu no século XX, chegando a seu fim quando a
massa já não conseguia mais se reunir na rua. Porém, seguindo a perspectiva de Sloterdijk,
convém analisar se é possível que algo diferente seja capaz de proporcionar a uma multidão
de pessoas o alívio obtido no momento de descarga. Se for possível que algo substitua esse
que seja necessário que esta apareça fisicamente, ou seja, que as pessoas comprimam, de
indivíduo, que cumpre seu papel como símbolo. Os líderes fascistas ou os populistas são
interior da massa. A multidão pode ser conduzida (ou mesmo, manipulada) a se reconhecer
Für keinen Personenkult dieses Jahrhunderts gilt die Formel von der
horizontalen Idealisierung mehr als für die Hitlermanie, die ihrer
Substanz nach nie etwas anderes war als eine Selbstanbetung der
lüsternsten Mittelmäβigkeit mit Hilfe der Führergestalt als eines
öffentlichen Kultmediums.12
constituía quase que um espelho para a massa, um narcisismo vulgar. O partido nazista
12
“Para nenhum culto à personalidade deste século vale mais a fórmula da idealização horizontal do que para
a hitlermania, que, de acordo com a sua substância, nunca foi outra coisa senão uma auto-adoração da mais
lasciva mediocridade, com ajuda da figura do líder como um meio público de culto”. SLOTERDIJK, Peter.
Die Verachtung der Massen, p 23-24. Tradução: p 28.
24
fazia questão de afirmar e divulgar para o povo alemão que, onde Hitler está, preteja de
característica de Triumph des Willens, acentuando sua relevância como primeira obra
trecho:
O fascínio que essa imagem exerce sobre a multidão funciona como um espectro carlylico
13
“Hans Pfitzner compreendeu definitivamente o fenômeno Hitler quando, quase acidentalmente, falou do
Führer como um ‘Prometeu desacorrentado’ – uma palavra na qual o caso de amor das massas com seu herói
é mostrado com seu título correto, definitivo e suficientemente cômico. De fato, Hitler foi o inconfundível
produto de uma invenção de figuras do modo de projeção horizontal dos meios de comunicação de massa – e
justamente nessa qualidade, como espectro carlylico, ele permanece reconhecível como portador de uma
função que também, depois da conversão da descarga política para o entretenimento não-político, permaneceu
característica da administração dos afetos de democracias de massa liberais”. SLOTERDIJK, Peter. Die
Verachtung der Massen, p 28. Tradução: p 34.
25
(als carlylisches Phantom). A referência feita aqui a Thomas Carlyle remete a uma
Der Fascismus ist absolut carlylisch. Selten hat die lange und krause
Geschichte des modernen Parteienwesens uns ein so prototypisches
Beispiel für die inneren Bedürfnisse der Masse zu hero worship
gegeben, wie es der Fascimus bietet. Absolutes, blindes Vertrauen
und glühende Verehrung bringt diese Partei ihrem Führer, dem
Duce, entgegen.14
Thomas Carlyle usada para identificar a adoração dos heróis na história15. Para Carlyle, a
história do mundo é feita apenas por alguns grandes heróis16. A perspectiva de Carlyle é
semelhante a uma característica da massa negra e molar de Canetti, que pode fazer da
figura de um líder sua meta, o ponto mais negro para onde a multidão se dirige. A
14
“O fascismo é absolutamente carlylico. Raramente a longa e confusa história do sistema partidário moderno
nos deu um exemplo tão prototípico das necessidades internas da massa para o hero worship como oferece o
fascismo. Confiança absoluta, cega, e adoração ardente levam esse partido de encontro ao seu líder, o Duce”.
MICHELS, Robert. Masse, Führer, Intellektuelle. Politisch-soziologische Aufsätze 1906-1933, Frankfurt e
Nova Iorque, 1987, p 293. Tradução IN: Desprezo das Massas, p 26-27.
15
“Faith is loyalty to some inspired Teacher, some spiritual Hero. And what therefore is loyalty proper, the
life-breath of all society, but an effluence of Hero-worship, submissive admiration for the truly great? Society
is founded on Hero-worship (…) Society everywhere is some representation, not insupportably inaccurate, of
a graduated Worship of Heroes—reverence and obedience done to men really great and wise. Not
insupportably inaccurate, I say! They are all as bank-notes, these social dignitaries, all representing gold;—
and several of them, alas, always are forged notes. We can do with some forged false notes; with a good many
even; but not with all, or the most of them forged! No: there have to come revolutions then; cries of
Democracy, Liberty and Equality, and I know not what:—the notes being all false, and no gold to be had for
them, people take to crying in their despair that there is no gold, that there never was any! "Gold," Hero-
worship, is nevertheless, as it was always and everywhere, and cannot cease till man himself ceases.”
CARLYLE, Thomas. On Heroes, Hero-Worship, and the Heroic in History, § 1, IN Project Gutenberg:
http://www.gutenberg.org/files/1091/1091-h/1091-h.htm. O culto ao herói é fundamental para Carlyle, de tal
forma que a própria sociedade é fundada em função de um culto ao herói, que, segundo ele, existe sempre e
em qualquer lugar, e só acabaria quando o próprio homem acabasse.
16
“For, as I take it, Universal History, the history of what man has accomplished in this world, is at bottom
the History of the Great Men who have worked here. They were the leaders of men, these great ones; the
modelers, patterns, and in a wide sense creators, of whatsoever the general mass of men contrived to do or to
attain; all things that we see standing accomplished in the world are properly the outer material result, the
practical realization and embodiment, of Thoughts that dwelt in the Great Men sent into the world: the soul of
the whole world's history, it may justly be considered, were the history of these” CARLYLE, Thomas. On
Heroes, Hero-Worship, and the Heroic in History, § 16, IN Project Gutenberg:
http://www.gutenberg.org/files/1091/1091-h/1091-h.htm.
26
necessidade da massa de fazer sobressair o herói como um símbolo avança por sobre
qualquer percepção da realidade, transformando seu Führer, por mais medíocre que
pudesse ser em suas reais aptidões, em um titã desacorrentado. Esse idealismo de massa é a
descarga, não precisa se ater as qualidades reais do objeto admirado, basta que ele sirva
como símbolo para que a massa possa idealizá-lo e, em certo sentido, transfigurá-lo. O
política pelo entretenimento não-político, de tal modo que toda a cultura das mídias de
denomina a administração dos afetos levada a cabo pelas democracias de massa liberais
adulam a massa negra e molar por meio do princípio de líder. A massa colorida e
gaseiforme dos dias atuais é influenciada por esse mesmo “modo de produção horizontal”,
substituir a descarga política. Sloterdijk destaca como apenas um indivíduo pode ser a meta
As pessoas que formam a massa têm uma mesma meta, um objetivo (sie haben ein
Ziel), diz Canetti. O objetivo é o pretume, o ponto mais negro, que para Canetti é o lugar
onde há mais seres humanos juntos (das Ziel ist das schwärzeste – der Ort, wo die meisten
(das Dasein der Masse), ele pode se tornar esse objetivo, ou seja, esse indivíduo se torna o
próprio lugar de referência para os muitos que constituem a massa humana. A massa corre
para seu herói, seja ele um líder político ou um astro da mídia (Medienstar). Esse culto ao
eminentemente política do culto ao herói como líder pela massa negra e molar de Canetti,
17
“Quando as massas agitadas correram atrás de seu herói, equipararam-se às pessoas na sucção do
ajuntamento, sobre as quais Canetti disse: “(...) elas têm um objetivo. Ele existe antes que tenham encontrado
palavras para ele: o objetivo é o mais negro (...).” Um indivíduo único também pode apresentar o estar-aí
[Dasein] da massa de forma tão concisa que pode tornar-se cerne do ajuntamento. Num único indivíduo, num
tal Führer, num astro da mídia, de fato fica tudo preto de gente”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der
Massen, p 28-29. Tradução: p 34-35.
18
“Em ressonâncias horizontais do tipo citado fundamenta-se a continuidade funcional entre o culto ao líder
pelas massas em descarga da primeira metade do século XX e o culto ao estrelismo pelas massas do
entretenimento na segunda metade”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 25. Tradução: p 30.
28
não são mais capazes de se reunir na rua correm (ou escorrem) em direção ao seu herói, o
contemporaneidade, em contraste com as massas negras e molares que são regidas pelo
princípio de líder. Muda-se o regime de afetos para a formação da massa, não há mais
que o lugar mais negro para onde as pessoas se dirigem seja um indivíduo, porém, para as
massas contemporâneas, esse indivíduo não precisa mais ser um líder assim como ela não
comunicação de massa, o lugar mais negro para onde a massa se dirige não precisa mais ser
visto pelas pessoas na rua, ele pode aparecer para as pessoas sem que elas necessariamente
estejam reunidas corpo a corpo. Através dos meios de comunicação de massa, o Hero-
sentimento que a massa tem si mesma enquanto uma multidão de pessoas com o mesmo
objetivo. Quem faz parte da massa contemporânea está virtualmente muito mais próximo
do lugar mais negro da aglomeração do que nunca seria possível estar na massa que se
reúne de fato. Dessa forma, o culto as estrelas das massas de entretenimento (Starkult der
Unterhaltungsmassen), onde o astro da mídia é o lugar mais negro, exerce um poder muito
mais intenso em detrimento do sentimento que a massa tem de si mesma enquanto uma
multidão.
nunca antes imaginados e sequer possíveis para reuniões físicas. Porém, os milhões que
ajuntamento corpo a corpo, mesmo que cada uma das dezenas ou centenas de milhares de
pessoas esteja virtualmente muito mais próxima do seu herói, do seu astro da mídia, do que
a grande maioria dos que se reúnem na rua conseguem estar do ponto mais negro para onde
se dirigem, do seu objetivo, do seu líder. Sloterdijk expõe algumas conseqüências de uma
perdendo assim a sensação de ser um só corpo vivo da massa negra e molar. Esses
19
“Uma sociedade por demais midiatizada vibra num estado no qual os milhões não podem mais aparecer
negra, densa e impetuosamente como totalidade efetivamente reunida, não mais como seres vivos de um
coletivo que conspira, conflui e irrompe. Mais do que isso, hoje a massa vivencia a si própria somente em
suas partículas, os indivíduos, que como partículas elementares de uma vilania invisível se entregam
exatamente aos programas nos quais é pressuposto seu caráter de massa e vilania. A maioria dos sociólogos
contemporâneos deixa-se seduzir por essa averiguação achando que teria passado a época em que a direção da
massa representaria o problema central da política e da cultura modernas. Nada poderia ser mais errôneo do
que essa visão. Entretanto, as massas da mídia, sob a influência das mídias de massa, tornaram-se massas
coloridas ou moleculares. Por isso, faz sentido que tanto a sumária quanto a elaborada crítica cultural de
nossos dias se organize sobretudo com a reciprocidade das massas da televisão e televisões de massa”.
SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 19. Tradução: p 22-23.
30
si mesma como algo que transcende a mera individualidade das pessoas que a formam.
Quando a massa surge, ela surge como que um outro ser com apetites e características
identificáveis para além da singularidade histórica ou social das pessoas que estão se
fenômeno (Erscheinung) de massa, é ele que faz desaparecer as diferenças verticais entre
que todos são iguais. A massa atual se forma em função do entretenimento: na participação
sem necessariamente ver algum dos milhões de outros indivíduos (man ist jetzt Masse,
que a direção da massa ainda seja um dos principais problemas da política e da cultura
contemporânea, o que seria um erro grosseiro de percepção, afirma Sloterdijk. Segundo ele,
a massa não se retirou do palco nem deixou de ser um dos personagens principais da
determinante das mídias de massa (Massenmedien), em uma massa colorida, molecular (ou
gasosa), em massas da mídia (Medienmassen). É por essa razão, prossegue Sloterdijk, que
toda a crítica cultural contemporânea (sucinta ou sofisticada) tem que lidar com a interação:
31
massas da televisão / televisões de massa. Neste sentido, a direção das massas teria se
permite que números cada vez maiores de pessoas façam parte dela, ao mesmo tempo em
que entorpece cada vez mais os indivíduos no seu entretenimento não-político, como
escreve Sloterdijk:
reunião física da massa a faz esquecer de que ela, uma multidão de milhares ou milhões,
as massas tinham potencial de fazer história que contribui para as afirmações daqueles que
dizem que a era das massas encontrou seu fim. Seus motivos são perceptíveis, já que a
que concerne ao seu potencial político. A massa colorida e gasosa, como diz Sloterdijk, é
apenas uma soma de microanarquias e solidões moleculares, sem comparação com a massa
de outrora que se vivenciava de fato como ajuntamento na rua. Mas não se pode perder de
20
“Massas que não se reúnem mais efetivamente tendem com o tempo a perder a consciência de sua potência
política. Elas não sentem mais como antes sua força de combate, o êxtase de sua confluência e de seu pleno
poder de exigir e tomar de assalto, como nos tempos áureos dos ajuntamentos e concentrações. A massa pós-
moderna é massa sem potencial, uma soma de microanarquias e solidões que mal lembra o tempo em que –
incitada e conscientizada pelos seus porta-vozes e secretários-gerais – deveria e queria fazer história como
coletivo prenhe de expressão”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 18. Tradução: p 22.
32
observação, a forma do fenômeno de massa que se tornou a regra nos dias atuais, as
Medienmassen, embora ele não a tenha caracterizado como invisível (que seria a
conseqüência de uma massa gasosa) e não tenha se demorado em sua análise. Convém,
Massen) para diferenciar essa sua caracterização da que Sloterdijk aplica às massas
contemporâneas. Algumas das massas invisíveis em Canetti são as massas imaginadas, não
demônios ou anjos presentes em diversos credos religiosos. Sobre o uso que as religiões
vão perdendo sua força à medida que as sociedades tornam-se secularizadas. Canetti afirma
que os bacilos recém descobertos herdam, na consciência dos homens, o papel da multidão
Canetti ou são místicas, possuindo uma função explicita na manutenção da crença nas
21
“A mente dos crentes apresenta-se povoada dessas noções de massas invisíveis. Sejam elas de mortos, de
diabos, ou de santos, são imaginadas como grandes bandos concentrados. Poder-se-ia dizer que as religiões
principiam com essas massas invisíveis. [...] Às massas invisíveis que mantêm vivas através de sua pregação
encontram-se atrelados os medos e os desejos dos homens. Esses seres invisíveis são o sangue da fé”.
CANETTI, Elias. Masse und Macht, p 46. Tradução: p 44.
33
espermatozóides:
Eine unsichtbare Masse, die immer bestand, aber als soche erst
erkannt wurde, seit es Mikroskope gibt, ist die des Sperma.
Zweihundert Millionen dieser Samantierchen machen sich zugleich
auf den Weg. Sie sind untereinander gleich und in gröβter Dichte
beisammen. Sie haben alle ein Ziel, und bis auf ein einziges unter
ihnen gehen alle auf dem Weg zugrunde. Es lieβe sich sagen, daβ sie
keine Menschen sind und daβ man von Masse im beschriebenen
Sinne hier eigentlich nicht sprechen sollte. Aber dieser Einwand
bringt alles mit, was von den Ahnen erhalten bleiben wird. Es
enthält die Ahnen, es ist die Ahnen. Es ist eine Überraschung
ungeheuerlichster Art, sie hier wiederzufinden, zwischen einem
Menschendasein und dem anderen, in gründlich veränderter Gestalt:
alle von ihnen in einem winzigen, unsichtbaren Geschöpf, und dieses
Geschöpf in solchen unermeβlichen Zahlen.22
Canetti enfatiza que a massa dos espermatozóides não é uma massa de seres
humanos, porém não esconde seu deslumbramento com esse fenômeno: onde todas as
pequenas criaturas correm para um mesmo objetivo (Sie haben alle ein Ziel), carregando
cada uma a informação dos antepassados (Es enthält die Ahnen, es ist die Ahnen) e um
antes humanas e irreais, tornam-se reais, porém não-humanas. A concepção da massa dos
22
“Uma massa invisível que sempre existiu, mas que somente foi reconhecida como tal a partir do
microscópio, é a massa dos espermatozóides. Duzentos milhões desses bichinhos põem-se a um só tempo a
caminho. São todos iguais entre si, reunidos em grande densidade. Todos têm uma meta, mas, à exceção de
um único, perecem todos no caminho. Poder-se-ia dizer que eles não são seres humanos e que, no seu caso,
não se deveria falar propriamente em massa, no sentido em que o termo foi descrito aqui. Tal objeção, porém,
não atinge o fulcro da questão. Cada bichinho desses traz consigo tudo quanto se conservará dos
antepassados. Cada um contém os antepassados: é, ele próprio, esses antepassados. Trata-se de uma enorme
surpresa reencontrá-los aqui, entre uma existência humana e outra, e sob uma forma inteiramente diversa:
todos os antepassados numa única e minúscula criatura invisível – e tal criatura, em quantidades tão
imensuráveis.”. CANETTI, Elias. Masse und Macht, p 48. Tradução: p 46.
34
espermatozóides, invisíveis ao olho nu, mas reais, embora não-humanos. Poder-se-ia dizer
que, para Canetti, massas invisíveis são massas não-existentes, e mesmo quando existentes
não são propriamente humanas. Ainda assim, para Canetti, pode haver, na sociedade
presente, a massa dos seres humanos que ainda estão por vir, a descendência:
invisível apenas porque ela ainda está por vir, portanto, não existe de fato. O que existe
realmente é um grande sentimento em relação ao devir dessa massa, segundo Canetti, capaz
de influenciar decisivamente nossos cuidados para com o futuro do mundo muito mais do
formatos da massa, portanto, de seus princípios formais. Além disso, Canetti empreende
23
“O sentimento da descendência encontra-se hoje tão vivo quanto sempre esteve. O caráter de massa, porém,
desvinculou-se da descendência própria, transferindo-se para a humanidade futura como um todo. Para a
maioria de nós, os exércitos de mortos transformaram-se em superstição vazia. Mas tem-se por um empenho
nobre e nada ocioso pensar na massa dos que ainda não nasceram, querer-lhe bem e preparar-lhe uma vida
melhor e mais justa. Esse sentimento em relação aos que ainda não nasceram é de grande importância no
medo de todos quanto ao futuro da terra. É possível que o repúdio a sua mutilação, que a preocupação quanto
a que aspecto terão, se hoje deflagrarmos nossas guerras modernas, contribuam mais para a abolição dessas
guerras, e da guerra em si, do que todos os nossos medos individuais”. CANETTI, Elias. Masse und Macht, p
47. Tradução: p 45.
35
função do qual as massas se formam. Tal classificação das massas segundo o afeto
24
dominante (Einteilung nach dem tragenden Affekt) revela que Canetti considera que
determinados conteúdos afetivos que formam a massa são tão antigos quanto a própria
humanidade:
trecho citado: os mais primitivos conteúdos afetivos das multidões humanas podem ser
modelos dos animais nas massas de acossamento (Hetzmassen) e nas massas de fuga
(Fluchtmassen). O arrebatamento ao qual o ser humano está sujeito na massa fica claro
24
“Die Massen, die man kennengelernt hat, sind von den verschiedenartigsten Affekten erfüllt. Von der Art
dieser Affekte war noch kaum die Rede. Die erste Absicht der Untersuchung ging auf eine Einteilung nach
formalen Prinzipien. Ob die Masse offen oder geschlossen ist, langsam oder rasch, unsichtbar oder sichtbar,
sagt über das, was sie empfindet, über ihren Gehalt, nur wenig aus”. [As massas que conhecemos estão
repletas dos mais variados afetos. Mal se falou aqui, porém, da natureza de tais afetos. O propósito inicial
desta investigação voltou-se para uma classificação da massa segundo princípios formais. Se ela é aberta ou
fechada, lenta ou veloz, invisível ou visível – o que pouco nos diz acerca daquilo que ela sente, de seu
conteúdo] CANETTI, Elias. Masse und Macht, p 48. Tradução: p 46.
25
“Os conteúdos afetivos principais da massa remontam a um passado bem mais distante. Eles surgem bem
cedo; sua história é tão antiga quanto a da própria humanidade, e, no caso de dois desses conteúdos, mais
antiga ainda. Um colorido homogêneo caracteriza cada um deles; uma só paixão principal os domina. Uma
vez tendo sido discernidos com clareza, torna-se impossível voltar a confundi-los. [...] As mais antigas são a
massa de acossamento e a massa de fuga. Estas verificam-se tanto em meio aos animais quanto entre os
homens, e é provável que, isoladamente, seu desenvolvimento entre os homens se tenha sempre nutrido entre
os animais”. CANETTI, Elias. Masse und Macht, p 49. Tradução: p 47.
36
desumanizado. Torna-se ainda mais clara a potência de arrebatamento das massas mais
O ponto mais negro para onde todos se dirigem é a vítima. Ela é a meta para onde a
multidão escorre, sua destruição é seu objetivo. Posteriormente, Canetti descreve como o
26
“A massa de acossamento se forma tendo em vista uma meta que se pode atingir rapidamente. Esta é-lhe
conhecida e definida com precisão; é-lhe também próxima. Seu objetivo é matar, e ela sabe quem quer matar.
Munida de uma determinação sem par, a massa de acossamento lança-se sobre sua meta; é impossível enganá-
la. Para que uma tal massa se constitua, basta anunciar a meta e propagar o nome daquele que deve morrer. A
concentração no matar é de natureza especial, insuperável por qualquer outra em intensidade . Todos querem
participar; cada um quer desferir seu golpe. A fim de poder fazê-lo, comprimem-se todos o mais próximo
possível da vítima. Se alguém não logra golpeá-la, ele desejará vê-la sendo golpeada pelos demais. É como se
os braços todos saíssem de uma única e mesma criatura. Mas aqueles que acertam têm maior peso e valor. A
meta é tudo. A vítima é a meta, mas é também o ponto de máxima densidade: ela reúne em si as ações de
todos. Meta e densidade coincidem”. CANETTI, Elias. Masse und Macht, p 49-50. Tradução: p 47-48.
27
“Der wahre Henker ist die Masse, die sich um das Blutgerüst versammelt. (...) Das Gericht, das sich für
gewöhnlich vor einer beschränkten Gruppe von Menschen abspielt, steht für die groβe Menge, die dann der
Hinrichtung beiwohnt. Das Todesurteil, das, im Namen des Rechtes abgegeben, abstrakt und unwirklich
klingt, wird wahr, wenn es vor der Menge ausgeführt wird. Denn für sie wird eigentlich Recht gesprochen,
und mit der Öffentlichkeit des Rechtes meint man die Masse”. [O verdadeiro carrasco é a massa, que se reúne
ao redor do cadafalso. (...) O julgamento, que em geral se dá diante de um grupo limitado de pessoas,
representa a grande multidão que, mais tarde, assiste à execução. A pena de morte, que pronunciada em nome
37
abstração do direito, antes, é o conteúdo afetivo da massa e é em função dela que o mesmo
direito é dito público, segundo Canetti. Mas não devemos considerar que a inclinação para
forma moderna da massa de acossamento que Canetti traz à luz características viscerais da
do direito, soa abstrata e irreal, torna-se real ao ser executada na presença da massa. É, afinal, para ela que a
sentença é pronunciada, e quando se diz que o direito é público, é a massa que se tem em mente]. CANETTI,
Elias. Masse und Macht, p 52. Tradução: p 49
28
“A repugnância ao matar coletivamente é origem assaz moderna. Não se deve superestimá-la. Ainda hoje,
pelos jornais, todos participam das execuções públicas. Como tudo, também isso fez-se apenas mais
confortável. Sentado tranqüilamente em casa, o homem pode, dentre centenas de detalhes, deter-se naqueles
que mais o excitam. A aclamação só se dá depois de tudo terminado; nem o mais leve vestígio de culpa turva
o prazer. Não se é responsável por coisa alguma: nem pela sentença, nem pelo jornalista que testemunhou-lhe
a execução, nem por seu relato, nem mesmo pelo jornal que publicou tal relato. Mas sabe-se mais a respeito
do ocorrido do que em tempos passados, quando se tinha de caminhar e permanecer de pé durante horas para,
por fim, ver apenas muito pouco. No público formado pelos leitores de jornal conservou-se viva uma massa
de acossamento abrandada, mas, em função de sua distância dos acontecimentos, ainda menos responsável;
conservou-se aí, é-se tentado a dizê-lo, a sua forma ao mesmo tempo mais desprezível e estável. Como sequer
precise reunir-se, ela evita também sua desagregação; a repetição cotidiana do jornal a provê de variedade”.
CANETTI, Elias. Masse und Macht, p 54. Tradução: p 51.
38
Canetti traz à luz a Medienmasse em uma forma quase embrionária ressaltando suas
extraordinárias e terríveis consequências. Ao afirmar que uma das mais primitivas massas
público dos leitores de jornais, Canetti revela que o papel da modernidade foi apenas o de
tornar tudo mais confortável. O homem não precisa mais ir à rua para participar da massa
de acossamento, não precisa mais ir à praça para ver a execução pública do condenado, não
precisa mais aparecer negra e densamente junto com os outros. A meta da massa, a
destruição da vítima, está descrita no jornal que ele lê confortavelmente toda manhã com
maiores detalhes do que jamais conseguiria observar se estivesse no meio de uma multidão.
Da mesma forma, ele não sente culpa pela destruição da vítima, nem a massa se dispersa
depois que o objetivo é alcançado. A massa não se dispersa porque ela não se reúne. Mas
estão lá, milhares, todas as manhãs, lendo o mesmo fato no jornal. Nem o jornal, nem o
mais desprezível, embora mais estável. Uma massa que não precisa se reunir, não se
desagrega, e, por estar mais distantes dos fatos, não se sente responsável por eles.
que se comporta como massa, de tal forma que esse público é uma massa de acossamento
de pessoas, muito mais do que seria possível imaginar juntas no mesmo local, mas não é
invisível. Não mais se vê a massa negra e molar que dá forma a algum conteúdo afetivo
arrebatador. O indivíduo da massa da mídia está virtualmente muito mais próximo da meta,
39
do ponto mais negro, ainda que efetivamente mais longe das partículas que compõem a
abrandamento e a estabilidade. A massa torna-se cada vez mais menos consciente de sua
força, mas torna-se, em contrapartida, cada vez mais estável, e diminuem suas
variedade”. Dessa forma, as massas das mídias de massa são capazes de ser quase
29
“A massa não reunida e não reunível da sociedade pós-moderna não possui mais, por essa razão, um
sentimento de corpo e espaço próprios; ela não se vê mais confluir e agir, não sente mais sua natureza
pulsante; não produz mais um grito conjunto. Distancia-se cada vez mais da possibilidade de passar de suas
rotinas práticas e indolentes para um aguçamento revolucionário”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der
Massen, p 17-18. Tradução: p 21.
40
A massa negra e molar da primeira metade do século XX, que encontra seu
em inocuidade.
30
Segundo Sloterdijk, Heidegger também se ocupa de uma análise de um modo de existência que se dissolve
na publicidade midiática vulgar através da análise do Man feita no parágrafo 27 de Ser e Tempo. Tratar-se-á
brevemente deste tópico mais frente.
41
II - Reconhecimento e desprezo
homens livres) leva a sociedade à tirania (a escravatura dos escravos). Para Platão, essa
multidão irracional que degenera em tirania não deixa de ser o próprio povo (δῆμος). Em
como o governo dos ‘οι πολλοι (o governo dos Muitos). Por outro lado, o termo grego
όχλος, usado em outras passagens, possui o sentido de multidão com a conotação inglesa
da palavra mob, uma multidão violentamente ativa, uma turba (não é o caso de crowd, do
inglês, ou foule, do francês, que também podem ser traduzidos como multidão, embora com
31
“o povo, ao tentar escapar ao fumo da escravatura de homens livres, há-de cair no fogo do domínio dos
escravos, revestindo, em vez daquela liberdade ampla e despropositada, a farda mais insuportável e mais
amarga, a da escravatura de escravos” PLATÃO. Platonis Opera, ed. John Burnet, Clarendon Press Oxford,
1902. Tradução portuguesa: A República. Maria Helena da Rocha Pereira, Fundação Calouste Gulbenkian,
Lisboa, 1973. 569c.
42
uma conotação neutra). Os autores romanos empregam diversos termos32: populus, plebs,
turba, vulgus, multitudo. Embora não seja objeto do presente texto empreender uma
história do pensamento ocidental, esses diferentes usos e sentidos que o termo multidão (ou
teórica, pois tais termos nunca foram objeto de uma definição precisa, sendo tratados como
algo marginal, como se a percepção de que uma aglutinação de pessoas ora é o povo, ou
uma turba, ou os Muitos, fosse algo dado, imediato (ou melhor, algo que não merece um
32
“Lorsqu’ils parlent du peuple, les auteurs romains emploient divers termes, parfois populus, d’autres fois
plebs, mais, le plus souvent : turba, vulgus, multitudo. Chez Dion Cassius et Appien, les expression les plus
courantes sont: hoi polloi, homilos, ochlos, plèthos, dèmos, hoi en tôi astei, hoi en tèi polei” YAVETZ, Zvi.
La plèbe et le prince: foule et vie politique sous le haut-empire romain. Ed. La Découverte, Paris, 1984, p
189.
43
do conceito é feita apenas de forma negativa: massa é aquilo que não corresponde, em
nenhuma de suas características, ao que se entende por elite. Günzel classifica como
surpreendente a concordância com que se desenvolveu uma aversão pela massa (Abneigung
fenômeno na primeira metade do séc. XX, tanto por parte de conservadores quanto de
teóricos críticos. Um dos motivos dessa aversão seria a manifesta e fácil aproximação,
análises correntes permitiam que a mesma aversão aos regimes totalitaristas fosse
surgimento de tais regimes. Günzel propõe que o principal motivo dessa aversão não seria
apenas essa fácil aproximação das massas com o totalitarismo, mas sim a inexistência de
um reconhecimento teórico das massas. Tal lacuna no quadro teórico surge devido à
33
“Sem poder mencionar aqui, em detalhes, os modelos da construção da teoria filosófica e científico-
cultural, é evidente que ›massa‹ é definida, em todos os casos conhecidos, apenas de forma negativa, através
de reclamação de uma elite antiga – quase “nobre” – em oposição àquela. A coerência com que os
conservadores, assim como os teóricos críticos, acima de tudo na primeira metade do último século,
desenvolveram uma aversão contra a massa é surpreendente. O motivo não é simplesmente o familiar curto-
circuito, em que a massa é tida como portadora ativa e única causa dos regimes totalitários. O motivo é uma
lacuna significativa no quadro teórico que tem sua correspondência na realidade: o acesso ao interior da
massa é epistemológico, ou seja, o olhar distanciado da análise apanha a massa como tal - e de acordo com a
definição de massa: No ser-massa o humano não é mais humano, mas apenas a massa. Na massa está esse
humano-massa, ou mais precisamente: esse pedaço da massa que não está mais na posse de qualquer tipo de
livre arbítrio. Ele é muito mais desprovido de autocontrole e será movido, moldado e guiado com a massa.
Com o discurso filosófico tradicional, ou com os modelos histórico-culturais, só se pode alcançar o fenômeno
de massa por si no sentido de rejeição ou enfrentá-lo com a ignorância.”. GÜNZEL, Stephan. "Masse" als
ästhetisches Problem, in: Ästhetik. Ephemeres und Historisches, hg. v. Renate Resche, Hamburg: Kovac,
2002, p 125-142.
44
tentativa de lidar com a massa de forma epistemológica, ou seja, tentar reconhecer a massa
distância só é capaz de inferir a desumanidade dos indivíduos que a formam, pelo modo
como estes são movidos, moldados e guiados por ela, comportando-se não mais segundo
suas aspirações individuais (de certa forma, não são mais indivíduos propriamente, mas sim
partículas integrantes de uma mesma massa). Portanto, a via epistemológica, sob a qual se
O caminho epistemológico, tal como designado por Günzel, tem como ícones
mesma abordagem do texto de Le Bon). Gustave Le Bon, Gabriel Tarde, Sigmund Freud,
entre outros, buscam compreender o fenômeno da massa humana à distância, buscando leis
de comportamento que lhes permitissem desenvolver uma psicologia descritiva das massas.
Porém, de uma forma geral, suas considerações não escapam de definir a massa sempre
não pretenda analisar em pormenores o tratamento dado as massas pelos autores citados,
vale ressaltar que a literatura lidou de forma menos contraproducente com o conceito de
massa por não pretender palmilhar o caminho epistemológico, mas sim a via estética,
34
Não se ignora a atenção dada às massas na literatura, através de autores como Charles Baudelaire, Edgar
Allan Poe, Émile Zola, que, sem a pretensão de preencher a lacuna teórica sobre as massas, puderam esboçar
um quadro das massas mais interessante que aqueles que tentaram enfrentar o problema com pretensões
científicas.
45
embora, como lhe é próprio, sem se interessar em oferecer um trabalho teórico sobre as
massas35. Canetti, ao descrever a massa aberta, descreve uma das características da sua
época que não permitem mais que se desvie a atenção dos fenômenos de massa:
Die offene Masse ist die eigentliche Masse, die sich ihrem
natürlichen Drang zu wachsen frei überläβt. Eine offene Masse hat
kein klares Gefühl oder Bild davon, wie groβ sie werden könnte. Sie
hält sich an kein Gebäude, das ihr bekannt ist und das sie zu erfüllen
hätte. Ihr Maβ ist nicht festgelegt; sie will ins Unendliche wachsen,
und was sie dazu braucht, sind mehr und mehr Menschen. In diesem
nackten Zustand fällt die Masse am meisten auf. Doch behält sie
etwas Auβergewöhnliches und wird, da sie immer zerfällt, nicht
ganz voll genommen. Sie wäre vielleicht auch weiterhin nicht mit
dem Ernste betrachtet worden, der ihr gebührt, hätte nicht die
ungeheuerliche Zunahme der Bevölkerungszahl überall und das
rapide Wachstum der Städte, die unser modernes Zeitalter
kennzeichnen, zu ihrer Bildung immer häufiger Gelegenheit
gegeben.36
O fato da massa sempre se desintegrar é uma das características que faz com que ela
não seja levada a sério (que contribuem, portanto, para a dificuldade de seu
portanto, o aumento das aglomerações humanas, faz com que esse fenômeno seja cada vez
35
É importante citar que existe uma abordagem distinta e contemporânea do conceito de massa feita por
Michael Hardt e Antonio Negri em Empire (2000) e Multitude: War and Democracy in the Age of Empire
(2004). Embora esses autores declarem que existe uma diferença crucial entre multidão e massa (e no
conceito de multidão encontram elementos de resistência para o domínio do capitalismo universal), não
trataremos deles no presente texto. Ao partir do conceito de massa em Canetti, dificilmente se encontrará
pontos satisfatórios para a construção do conceito de multidão em Negri e Hardt. Portanto, para evitar
conclusões insatisfatórias, evitar-se-á essa aproximação no presente texto, que demandaria um trabalho maior
e mais atencioso as obras citadas de Negri e Hardt.
36
“A massa aberta é a massa propriamente dita, que se entrega livremente a seu ímpeto de crescimento. Uma
massa aberta não tem uma idéia ou sensação clara de quão grande poderá vir a ser. Ela não se atém a nenhum
edifício que conheça e deva preencher. Sua medida não se encontra fixada; ela deseja crescer até o infinito, e
aquilo de que precisa para tanto são mais e mais pessoas. É nesse seu estado nu e cru que a massa mais chama
a atenção. Ainda assim, ela conserva algo de extraordinário e, visto desintegrar-se sempre, não é levada
totalmente a sério. Talvez se persistisse não a encarando com a seriedade com que lhe é devida, não fosse pelo
fato de o aumento vertiginoso da população mundial e o rápido crescimento das cidades, ambos
característicos desta nossa época moderna, terem propiciado oportunidades cada vez mais freqüentes para sua
formação”. CANETTI, Elias. Masse und Macht, p 16. Tradução: p 19.
46
literatura, sensível a essa exigência estética, oferece às multidões um esboço delas em suas
obras). Segundo Günzel, a única forma de escapar a rejeição da massa seria abordá-la sob a
perspectiva estética (este será o aspecto inovador da abordagem de Canetti, como veremos
mais a frente).
segunda parte de O desprezo das massas, sob o título “Desprezo como conceito”
Sloterdijk, um programa de desenvolvimento, portanto, seu primeiro passo deve ser rejeitar
37
“No projeto da modernidade de desenvolver a massa como sujeito, acumulam-se, tanto quanto pudemos
entender, material explosivo psicopolítico e facilmente inflamável. Ele pode detonar por meio de faíscas tanto
de cima quanto de baixo. Como todos os programas de desenvolvimento, este também deve ofender seu
destinatário tão logo o faça entender que ele não é o que deve ser”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der
Massen, p 30. Tradução: p 37.
47
bewegen sich die modernen Diskurse über den Menschen als ein
Ende in sich selbst.38
programa que visa desenvolver a massa tem, necessariamente, que ofender sua atual
pretensão de ascensão, não precisa dessa rejeição e pode buscar meios de dizer que a massa
já é o que deve ser. Esse binômio (Entwickeln x Verwöhnen) é uma das formas que
Sloterdijk usa para expressar a diferença entre comunicação horizontal e vertical, como o
Anerkennung heiβt Verachtung). É necessário frisar que Sloterdijk não aceita que o
desprezo seja uma questão meramente subjetiva, que seria superada pelo desenvolvimento
Wer immer sich einmischt in den Betrieb der Diskurse über aktuelle
Gesellschaftssysteme und ihre Populationen, die Eliten und die
Massen, die Gleichen und die Gleicheren, die Vielen und die sehr
Vielen, hat sich bereits, wissend oder nicht, entschieden, ob er die
groβe Zahl entwickeln und beleidigen oder ihr schmeicheln und sie
verführen will. Was man in der Moderne an Kulturkämpfen und
ideologischen Parteigefechten wahrnimmt, ist meistens nichts als der
Streit zwischen den Beleidigern und den Schmeichlern.40
40
“Não importa quem se intrometa na fabricação de discursos sobre os atuais sistemas sociais e suas
populações, as elites e as massas, os iguais e os mais iguais, os muitos e os muito muitos, já se decidiu, esteja-
se ciente ou não, se quer desenvolver ou ofender um grande número de pessoas, ou adulá-las e seduzi-las. O
que na modernidade se percebe nas lutas culturais e nos combates partidários ideológicos, na maior parte das
vezes não passa de disputa entre ofensores e aduladores”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen,
p 30-31. Tradução: p 38.
49
eine Ressource ist, deren Wert mit ihrer Knappheit korreliert; zum
anderen weil die Prätendenten auf Anerkennung, indem sie sich
unaufhörlich vermehren, sich notwendigerweise gegenseitig
überfordern; und schlieβlich weil die Masse als solche ein Pseudo-
subjekt darstellt, zu dem man sich nicht in Beziehung setzen kann,
ohne ein Element von Verachtung ins Spiel zu bringen, wobei ich
die Schmeichelei als eine invertierte Verachtung mitrechne.41
desprezo (Verachtung). Sloterdijk destaca três razões para esse desenvolvimento epidêmico
medida em que algo reconhecido tem seu valor destacado em contraste com aquilo que não
mutuamente. Por fim, ao se lidar com a massa, sempre surge um elemento de desprezo.
41
“Se o mundo moderno, como alguns intérpretes de Hegel expuseram com bons argumentos, é uma arena de
lutas generalizadas por reconhecimento, então inevitavelmente ele deve levar a uma forma de sociedade na
qual o desprezo se torna epidêmico – por um lado, porque reconhecimento, assim como atenção, é uma fonte
cujo valor está correlacionado com sua escassez; por outro lado, porque os pretendentes a reconhecimento, na
medida em que se multiplicam ininterruptamente, necessariamente se superexigem de forma recíproca; e por
fim porque a massa como tal representa um pseudo-sujeito com o qual não se pode travar relações sem trazer
à baila um elemento de desprezo, e incluo a adulação como um desprezo invertido”. SLOTERDIJK, Peter.
Die Verachtung der Massen, p 31-32. Tradução: p 39.
51
desprezo na modernidade. O caminho de trazer à luz uma história do desprezo é uma forma
do fenômeno de massa levam ao desprezo, a história da idéia de desprezo pode revelar uma
imagem mais precisa desse fenômeno, que é, ele próprio, o responsável pela ausência de
estudos sobre o tema das massas na história do pensamento ocidental. Neste sentido,
afirma que a filosofia acadêmica afastou-se do tema, e que a opinião pública, por estar
uma visão coerente da situação em que se encontra. Neste sentido, o problema do desprezo
torna-se cada vez mais evidente na medida em que diversos sujeitos coletivos começam a
42
“Pouco se conhece sobre a história e a lógica desse drama do desprezo que adere aos tempos modernos em
seu todo como uma doença hereditária íntima”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 32.
Tradução: p 39.
52
movidos por inéditas paixões de dignidade (ou paixões de auto-estima - Leidenschaft der
43
“O roteiro dos tempos modernos prevê (...) que sujeitos coletivos que não pertencem à alta nobreza –
primeiramente a nobreza média e a cortesã, depois a burguesia, a pequena burguesia, a classe trabalhadora e
as chamadas minorias – sucessivamente, comecem a manifestar uma paixão da dignidade, historicamente
inédita, e para a sua satisfação, se dirijam a arena política e literária (...). Os grupos autenticamente políticos
são sempre ao mesmo tempo campos de força nos quais se formam paixões de dignidade. Desde então eles
querem encher os livros de história e ser enaltecidos como grandezas públicas, às quais logrou a evolução da
indolência ofendida para a subjetividade de expressão poderosa. Deve-se notar que os grupos em ascensão
dos tempos recentes não apenas manifestam um pathos autobiográfico; eles desenvolvem, também sem
exceção, um afeto filantrópico, mais exatamente autofilantrópico. Não esqueçamos que também os Estados
nacionais dos séculos XIX e XX só puderam tomar forma como experimento de dignidade coletiva e auto-
elevação conduzidos pela mídia de massa – e que a chamada política externa foi sempre necessariamente
dramatizada entre essas tensões de atenção e desprezo, contanto que incluíssem concorrências no imaginário”.
SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 32-33. Tradução: p 40.
53
Doch der Pfad zur Subjektwürde für alle ist einer, der zunächst eher
nach unten als nach oben zu führen scheint. 44
O projeto moderno de desenvolver a massa como sujeito é esse atalho (Pfad) para a
sujeito, sendo a dialética entre senhor e escravo o padrão lógico do roteiro das lutas por
de relações que envolve o desprezo do gênero humano. Nietzsche constata que o pretenso
objetificação do próprio desprezo. Por fim, Heidegger revela o ser-aí [Dasein] no modo
“impessoal” [Man], que abarca todos os indivíduos em uma desprezabilidade mútua; uma
ditadura sem dono à qual todos estão primariamente subjugados. É em Nietzsche que se
torna mais evidente que esse caminho da dignidade do sujeito para todos conduz antes para
baixo do que para cima, ou seja, mais reforça o desprezo do que resolve positivamente o
problema de reconhecimento. Analisaremos cada passo desse roteiro histórico para depois
estatal moderno. Esse reconhecimento serve ao seu interesse principal, que seria reconstruir
tem que neutralizar as lutas por reconhecimento na sociedade. Sloterdijk expõe a forma
com que Hobbes resolve o conflito por reconhecimento para poder alcançar seu objetivo
teórico:
reconhecimento recusado (desprezo) aos indivíduos, mas uma proibição ativa de lutarem
construir uma descrição de um súdito ideal para o Estado e, para esse fim, torna-se
Wer den Untertanen sucht, muβ den Menschen bei der Wurzel
fassen. Zu der Untertänigmachung aller unter dem einen Souverän
dient dem Staatslogiker eine anthropologische Reduktion sämtlicher
Individualitäten auf eine stabile natürliche gemeinsame Motivbasis.
(...)
Thomas Hobbes war als Staatstheoretiker optimistisch genug, ein
solches zur Untertänigkeit geneigt machendes Motiv in der
menschlichen Natur aufweisen zu können, weil er als Anthropologe
pessimistisch genug war, um sämtlichen Menschen gemeinsame
Voraussetzungen der Niedrigkeit oder Gewöhnlichkeit zu
unterstellen. 47
46
“Para alcançá-lo, pareceu necessário a Hobbes castrar politicamente todos os pretendentes a
reconhecimento (...). O submisso ideal seria aquele que finalmente entendeu que ainda só deve existir um
único soberano, o portador realmente em exercício de todo poder legítimo, e que ele, como súdito confesso,
sensatamente entregou suas emoções rebeldes e ‘protestantes’ ao soberano artificial”. SLOTERDIJK, Peter.
Die Verachtung der Massen, p 35. Tradução: p 43.
47
“Quem procura o súdito deve entender o homem em sua raiz. Para que todos se submetam a um soberano,
serve ao lógico do Estado uma redução antropológica de todas as individualidades sob uma base de motivo
estável, natural e comum. (...) Com teórico do Estado, Thomas Hobbes era suficientemente otimista para
poder mostrar na natureza humana um tal motivo que tende a levar à submissão, porque, como antropólogo,
56
do desprezo é feita enquanto antropólogo, e não enquanto teórico do Estado. Hobbes diz
que a motivação humana que prevalece sobre todas as outras disposições humanas é o
como diz Sloterdijk, leva mais para baixo o reconhecimento de valor do homem do que
para cima:
era suficientemente pessimista para atribuir a todos os homens pressupostos comuns de baixeza ou
ordinariedade”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 36. Tradução: p 44.
48
“A operação básica hobbesiana, a redução do comportamento humano a um último móvel, o medo, libera
conseqüências de época. Com ela começa uma era que torna ‘o homem’ sistematicamente suspeito e por isso
o pensa a partir de baixo. (...) Para compreender como funciona a máquina de força ‘homem’, é necessário
conhecer seu mecanismo de propulsão (...). Se é vilania, então tem método. – durante toda uma era explicar,
compreender e difamar darão no mesmo no que diz respeito ao homem. Conseqüentemente estariam dadas as
condições sob as quais a frase ‘Tout compreendre c’est tout pardonner’ seria verdadeira, sem ressalvas? Não
inteiramente, pois deve-se acrescentar que tudo compreender em verdade significa tudo desprezar. A era da
57
pelo qual a aglomeração humana se torna massa em Canetti, tem que passar pelo momento
indivíduos na massa (como foi exposto no primeiro capítulo do presente texto), encontra
hobbesiano, para se aniquilar as diferenças verticais entre os indivíduos (ou, para usar as
desprezo de todos por todos (einer Verachtung aller durch alle). Neste início da era da
têm os mesmos resultados no que diz respeito ao ser humano. Neste sentido, diz Sloterdijk,
a igualdade humana secular (ou pós-cristã) não é um valor em si, mas um conceito
confiável para que a multidão possa e necessite ser governada49. Tal redução antropológica
Wer nämlich die Furcht als universalen Motor proklamiert, hebt die
traditionelle Selbstbegründung des Adels, seine Verwerfung der
Todesangst, auf und holt auch die aristokratischen Verächter des
Allzumenschlichen zurück in eine mittlere Humanität, die in der
desverticalização começa com o fato de que se busca o homem sempre embaixo. Uma tendência
metodicamente controlada de um desprezo de todos por todos infiltra-se nas premissas da doutrina política
moderna do homem. (...) A respeito dessas relações pode-se notar, além disso, que igualdade pós-cristã nunca
significou um valor em si, mas representou um meio de o Estado moderno dinamizado se organizar na base de
uma natureza humana comum e confiável, firmemente abraçada”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der
Massen, p 39-40. Tradução: p 48-50.
49
Sobre a reflexão política como justificações de necessidades de governo da massa, tratar-se-á ao fim do
presente capítulo.
58
mundo (In-der-Welt-Seins) como cidadão, súdito e ser humano: toda diferença vertical
deve ser repudiada a priori no fundamento da natureza humana. Portanto, para o projeto de
50
“Pois quem proclama o medo como motor universal abole a tradicional autofundamentação da nobreza- seu
repúdio do medo da morte – e relega também os aristocratas que desprezam o demasiadamente humano a uma
humanidade intermediária, que se fundamenta na aliança por interesse entre razão, medo e autoconservação.
Nessa situação intermediária a modernidade está consolidada como programa e empreendimento. Aqui, todo
excesso humano para cima a priori é repudiado. O dever de se manter no centro constitui a impronunciada
sobre-regra do ser-no-mundo como cidadão, súdito e homem”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der
Massen, p 42. Tradução: p 51.
59
que ele reconhece (ineditamente de forma positiva) que a multidão é dirigida por
Razão? Apesar de árduo defensor de seu projeto democrático, Spinoza não cai no simples
elogio das massas, não as adula. Embora Sloterdijk destaque sua contribuição ao projeto de
desenvolvimento da massa como sujeito, ele reconhece que a filosofia de Spinoza propõe o
inverso: desenvolver a massa como substância (na medida em que a multidão também é
uma modificação da substância divina, mesmo que sua característica principal seja a vida
em imaginações).
Soll aber die Menge je Gewalt über sich selbst gewinnen – und
nichts anderes meint die von Spinoza erhobene avantgardistische
Forderung nach der demokratischen Staatsform -, so muβ die Frage
geklärt sein, wie eine Selbstregierung der Vielen auf der Basis von
Imaginationen möglich wäre. Dazu ist die Annahme erforderlich,
daβ es unter den Imaginationen solche gibt, die imstande sind, die
Vernunft so gut zu ersetzen, wie diese in einem anderen Register
denn überhaupt ersetzt werden kann. Die spinozanische Demokratie
ist jene Gesellschaftsordnung, die es vermöchte, die Menge mit
51
“Caso se possa reconhecer em Hobbes o senhor da antropologia política dominante até hoje, então Espinosa
pode ser considerado o descobridor filosófico da massa. Espinosa é o primeiro antropólogo da democracia
moderna visto que originalmente propôs a questão de como o auto-governo da multidão seria possível diante
do fato de que esta – seguindo a tradição ele a chama de vulgus – se orienta constantemente por noções
morais, imagens e sensações, em imaginationes, assim como por manifestações como avidez, ira, inveja e
anseio por honra, e não por idéias racionais. Espinosa não perde tempo com a teoria da adulação, que mais
tarde alcançou tanto sucesso, a de querer alçar a multidão sob o ponto de vista da razão ou da maioridade
lógica. Espinosa é o eterno antijornalista. Ele também não mente para o grande público”. SLOTERDIJK,
Peter. Die Verachtung der Massen, p 43. Tradução: p 52-53.
60
O reconhecimento das massas é pressuposto para que elas possam ganhar poder
sobre si mesmas (Gewalt über sich selbst), ou seja, para a efetividade do conceito de
funcionalmente a Razão (Sloterdijk destaca a relevância dessa tese para as reflexões sobre
contemporânea), ou seja, ele não se recusa a reconhecer limitações no modus vivendi das
concedido por Spinoza as massas mostra que o problema objetivo do desprezo não é
52
“Mas se um dia a multidão ganhar poder sobre si mesma – e não significa outra coisa que a enaltecida
exigência vanguardista de Espinosa pela forma democrática de Estado -, então deve ser esclarecida a questão
de como seria possível um autogoverno dos muitos baseado em imaginações. Para tal é necessário supor que
entre as imaginações existam aquelas capazes de substituir tão bem a razão como essa pode então ser
substituída em outro registro. A democracia espinosiana é aquela ordem social que pode abastecer a multidão
com eficazes analogias da razão ou simulações caritativas. (...) Trata-se aqui, com estas reflexões, de um
generoso pressentimento da cultura de massas, porque Espinosa não repudia o reconhecimento ao modus
vivendi dos muitos como tal, conduzido por imaginações para-racionais”. SLOTERDIJK, Peter. Die
Verachtung der Massen, p 43-44. Tradução: p 53-54.
61
ofensa pelo desprezo gerado pelo que antes era reconhecimento recusado. Embora
a massa. Segundo Sloterdijk, é possível encontrar essa explicitação nas definições dos
afetos feita por Spinoza na Ética. Para construir essa argumentação, Sloterdijk se pauta por
dois pontos: Primeiro, ressalta que as pessoas, no contexto da Ética de Spinoza, ainda são
recorre à definição do desprezo (contemptus) feita na terceira parte da Ética, que seria o
Geistes):
53
“De fato, a teoria da multidão de Espinosa representa um testemunho quase singular do fato de que pode
existir também um trato não-hipócrita com as formas mais limitadas da formação humana – um trato que
reconhece a vida que permanece no plano das imaginações, como justamente aquilo que é, como uma
cristalização local do infinito ou da natureza-Deus. A história do efeito do espinosismo evidentemente mostra
que pessoas não apenas podem ofender-se com o reconhecimento recusado, mas também podem embaraçar-se
com o reconhecimento concedido. Se Espinosa pode ser considerado o descobridor do problema político da
multidão em seu significado moderno de massa, ele é ao mesmo tempo o autor que primeiramente explicitou
o embaraço estético e moral que surge com o tornar-se perceptível do não-digno de ser perceptível no espaço
público”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 44-45. Tradução: p 55.
62
substituição da palavra coisa (res) por massa. Seguindo este raciocínio, a massa seria
definida como algo impossibilitado de atrair a atenção da mente. Neste sentido, Sloterdijk
... weil die Masse, insofern sie – zunächst und zumeist – das Nicht-
Besondere verkörpert, das Unbeachtliche als solches ist. Die
entdeckung der Masse bringt die Erhebung des Uninteressanten in
den Rang des Interessanten mit sich. (...) Das Uninteressante, das als
solches auffällig wird, ist somit die logische Form des Verächtlichen
– in ihm drängt sich die real existierende Nichtigkeit ins Blickfeld.
(...) In der Verlängerung dieser Überlegung findet sich die Evidenz,
warum die Massenkultur für alle Zeit an den Versuch gebunden sein
wird, das Uninteressante als das Auffälligste zu entfalten. (...) Kein
Zufall, daβ Massenkultur überall, wo sie sich geltend macht, auf die
Verbindung von Trivialität mit Spezialeffekten setzen wird.55
como apenas mais uma parte da massa. É neste sentido, portanto, que a massa, por
54
“Desprezo é a imaginação de uma coisa que toca tão pouco a mente, que a mente, pela presença da coisa, é
mais movida antes a imaginar aquilo que não está na coisa do que aquilo que está”. SPINOZA, Baruch.
Ethica Ordine Geometrico Demonstrata, parte 3, definição 5. IN: “Spinoza Opera”, vol.II ed. Carl Gebhardt,
Heidelberg 1925.
55
“porque a massa, na medida em que – primeira e geralmente – encarna o não-particular, é o não perceptível
como tal. A descoberta da massa acarreta a elevação do desinteressante ao plano do interessante. (...) O
desinteressante, que como tal se torna visível, é portanto a forma lógica do desprezível – nele avança para o
campo visual a nulidade realmente existente. (...) No prolongamento dessa reflexão se encontra a evidência de
como a cultura de massa estará sempre ligada à tentativa de desenvolver o desinteressante como o mais
perceptível. (...) Não é por acaso que a cultura de massas, em toda parte onde prevalece, aposta na ligação de
trivialidade com efeitos especiais”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 46. Tradução: p 56-
57.
63
desinteressante: empurrar para o palco da visibilidade o vazio real existente (die real
É por essa característica que, em qualquer lugar que se identifique a cultura de massas, esta
estrutura do roteiro das sucessivas lutas por reconhecimento. Sloterdijk descreve como se
56
“Não há como não ver que a história dos tempos modernos apresenta uma seqüência de revolta de grupos
antes aparentemente desinteressantes contra o desprezo ou não-atenção. A história social mais recente tem sua
substância – melhor dizendo, seu roteiro – numa série de campanhas para a elevação da dignidade, na qual
sempre novos coletivos ousam tomar a dianteira com suas reivindicações de reconhecimento. (...) Cada novo
sujeito político que surge alcança importância e consideração, por um lado na medida em que se mostra com
centro de ação, que como um senhor também pode ameaçar e decretar emergência, e por outro, na medida em
que atribui a si mesmo uma posição elevada de verdadeiro humanitarismo. Com isso torna-se claro que, em
tais reclamações, sempre nos deparamos com a tomada de assalto dos elevados de ontem – para a conquista
da posição que até então despertava atenção em abundância e por essa razão tinha atenção a dar”.
SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 46-47. Tradução: p 58.
64
desenvolve através dos sucessivos levantes de diferentes sujeitos coletivos em lutas pela
possui um modus operandi: o coletivo desprezado deve mostrar sua força impondo-se
humanitarismo (Menschlichkeit). Essas duas ações são os passos do sujeito coletivo para a
virá de Hegel. Em sua análise da dialética entre senhor e servo, Sloterdijk encontrará a
descrição mais precisa do roteiro das tomadas de assalto dos sujeitos políticos em busca de
reconhecimento:
57
“Com movimento de pensamento semelhante, em sua análise da dialética entre senhor e servo Hegel
mostrará como a parte subjugada e desprezada de ontem pôde tornar-se a parte dominante e auto-estimada de
hoje. No início o contraente, que deveria cair a posição de servo, tremera na luta por reconhecimento de vida
ou morte; na morte, que estava diante dele no final do primeiro duelo, ele encontrara seu limite, e naquele que
pôde dar-lho, avistou seu senhor. Em conseqüência de seu estremecimento, o perdedor se submetera e
aprendera a rezar ao implorar pela sua vida, e, com a reza, a língua dos escravos como sendo o elogio do
senhor, a obediência solícita e sem vontade e os sinais da maior humildade possível diante dos vencedores,
dos poderosos e dos herdeiros importantes. Mas na medida em que então que o servo executa o trabalho
verdadeiro sob renúncia ao autodesfrute direito durante toda uma era, cresce nele o poder prático que lhe
revela o mundo. Ele conquista o pleno poder que consiste no poder-ajudar e no saber-como, enquanto o
senhor cada vez mais se tranca num desfrute impotente de resultados de méritos alheios, no qual perde o
alcance operativo [imperativo] das coisas. No fim resta do senhor apenas um invólucro sensualista; é o servo
politecnicamente ativo que, como novo mestre do mundo e de si mesmo, se dispõe ao prazer. Quando Hegel,
invertendo a doutrina de Espinosa, quer desenvolver a substância como sujeito, esse empreendimento tem a
fonte de sua plausibilidade na incessante emancipação do servo. Onde havia servos, haverá engenheiros,
funcionários, empresários, eleitores; onde havia senhores devem ser definidas novas tarefas”. SLOTERDIJK,
Peter. Die Verachtung der Massen, p 48-49. Tradução: p 59-60 (correção nossa).
66
Iluminismo (Aufklärung), abre possibilidades que vão muito além das pretensões
oportunismo súbito de sorte. A implantação da igualdade pós-servil gera esses efeitos, que
histórico:
58
“A parte obscurecida da substância anterior, a massa serva, não será por muito tempo desprezível se, por
meio da elaboração e do domínio de todas as matérias, tomar o poder. Pode ela, no início das lutas que fazem
história, ter caído para a posição aviltante, pois quem implorou pela sua vida não é mais capaz de satisfazer-
se, então quer tornar-se uma classe universal que se auto-satisfaça. A razão da igualdade de todos agora
aparece como a sua ascensão conjunta a partir da desinteressância rumo à ‘luz da opinião pública’. Quem
trabalhou também pode deixar-se ver. Mas, justamente com essa possibilidade de uma evidenciação geral faz-
se notar uma nova diferença gritante, decisiva para o mundo do futuro: em conseqüência do esclarecimento
abre-se aquilo que aponta para além do esclarecimento – a clareira política, o espaço de empreendimento, a
lacuna de mercado e a chance histórica daquilo que ousa para ganhar, e ganha porque segurou firme a sua
sorte quando ela se mostrou favorável por um único segundo”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der
Massen, p 49-50. Tradução: p 60-61.
67
É no tempo que o problema objetivo do desprezo tem de ser resolvido. Mas coloca-
estrutura da desprezabilidade. Antes de abordar esse ponto, Sloterdijk cita o jovem Karl
Marx como um dos que mais contribuíram para as disposições ofensivas da indignação
informada militante. Segundo Sloterdijk, a ofensiva do jovem Marx pode ser sintetizada em
uma afirmação que faz a respeito de um trecho da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel:
Die Kritik der Religion endet mit der Lehre, daβ der Mensch das
höchste Wesen für den Menschen sei, also mit dem kategorischen
Imperativ, alle Verhältnisse umzuwerfen, indenen der Mensch ein
erniedrigtes, ein geknechtetes, ein verlassenes, ein verächtliches
Wesen ist (...) 60
59
“O fato de que auto-satisfação pós-servil não se dê imediatamente, mas tem como pressuposto a história do
trabalho e o trabalho da História, tal exortação à paciência histórica já aparece na investigação de Hegel. A
massa que se auto-satisfaz é separada pelo definitivo autodesfrute por meio de uma inevitável prorrogação.
(...) Diante do desfrute, a redistribuição, diante da redistribuição, o domínio da maioria. Para esse programa é
necessário tempo, e somente nesse tempo objetivo definido, o verdadeiro período de progresso, a paciente
impaciência com os motivos que forçam a prorrogação pode tornar-se a razão das continuadas ações na
História. (...) De fato, ensina-se a insatisfação século XVIII e, no XIX, ela se torna militante; com ajuda
daqueles que, porta-vozes da indignação informada, se chamam intelectuais, ela apresenta uma disposição
ofensiva”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 49-50. Tradução: p 50.
60
“A crítica da religião termina com a tese de que o homem seria o ser supremo para o homem, portanto com
o imperativo categórico de derrubar todas as relações nas quais o homem é um ser rebaixado, servil,
abandonado, desprezível (...)”. MARX, Karl. Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie, IN:
SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 51. Tradução: p 63.
68
Para Sloterdijk, a frase de Marx é a mais perfeita expressão da ética dos jovens
derrubar todas as relações (alle Verhältnisse umzuwerfen) que levam ao desprezo do ser
humano, e, portanto, das massas. Sloterdijk destaca as relações de desprezo enfatizadas por
Marx:
61
“Ela se fundamente na exigência de abolir todo o sistema das relações que leva ao rebaixamento de pessoas
e ao seu reflexo no desprezo”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 51. Tradução: p 63.
62
“Tornadas desprezíveis ou desumanas, as maiorias nas tradicionais sociedades de classe, segundo Marx, são
divididas de duas formas: politicamente, em ordens de dominações em processo de deformação, cujo
resultado é o homem oprimido, servil; e socialmente, no sistema de trabalho esvaziante, cujo resultado é a
psique proletária. As duas deformações, porém – isto os autores iluminados da burguesia e da esquerda não
souberam ou não quiseram saber – confluem, numa necessidade insaciável, para compensação e vingança –
uma necessidade para cuja satisfação surgiram as indústrias do entretenimento e do rebaixamento do século
XX. A terceira forma de desprezo do homem, sua exposição no sistema de comunicações vulgarizantes,
prostituintes e flexibilizantes – esse câncer interativo da mídia – ainda está fora do campo de visão dos
revolucionários do século XIX; somente alguns artistas eminentes, Baudelaire e Mallarmé sobretudo,
69
interaktive Krebs des Medienzeitalters), esteve longe de ser pensada pelos revolucionários
do século XIX; apenas na arte surgem reações contra ela (Baudelaire e Mallarmé). A
Sloterdijk, não falta clareza a Marx quanto a essa forma de desprezo. A segunda forma de
psique proletária. Contudo, Sloterdijk observa que as duas formas de desprezo (política e
social) levam a um reforço da terceira forma (midiática), que passou despercebida aos
teóricos do século XIX e foi apenas intuída quase que profeticamente por alguns artistas
eminentes. O sistema de dominação que gera o homem servil e o sistema social que gera a
(Kompensation und Rache), visando atender a essa demanda que surgem as indústrias do
século XX. Portanto, a indignação informada das massas em função das relações de
desprezo, tanto social quanto política, encontra seu alívio justamente em outra espécie de
imperativo revolucionário, embora com uma clara posição em relação a forma de desprezo
político, manteve uma postura ambivalente em relação à forma de desprezo social, como
afirma Sloterdijk:
In bezug auf die zweite Form der Verächtilichkeit, die aus der
Gefangenschaft der Mehrheiten im system entfremdender Arbeit
entspringt, blieb Marx einer verführerischen Ambivalenz verhaftet,
weil seine Doktrin unfähig war, zu entscheinden, ob sie für die
reagiram com profética veemência à crescente fixação do homem no rebaixamento por meio de comunicações
triviais”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 52. Tradução: p 63-64.
70
sujeito e, portanto, reconhecida como senhor, não mais como serva. Mas essa fúria dilui-se
no entretenimento ordinário das massas com seu reflexo na mídia. Assim, ao contrário de
Sloterdijk observa essa nova situação de perigo imposta aos teóricos “protetores’’ das
massas:
em uma forma midiática com vistas a atender as necessidades geradas pelo desprezo social
63
“Com respeito a segunda forma de desprezo, que surge do cativeiro das maiorias no sistema de trabalho
alienado, Marx permaneceu preso a uma ambivalência sedutora, porque sua doutrina era incapaz de decidir se
queria defender o abrandamento ou o agravamento da miséria proletária. Ela estava por demais interessada na
ilusão da fúria de classe auto-redentora, fúria que só podia ascender partindo do mais profundo
empobrecimento.”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 53. Tradução: p 65.
64
“Mas já nos tempos de Marx as forças pragmáticas do movimento dos trabalhadores se empenharam em
também defender constantes e pequenas melhoras da situação proletária como êxitos no projeto de longo
prazo do refinamento das massas. Ninguém contestará os momentos de verdade do pragmatismo social-
democrata. Contudo, da satisfação ‘prematura’ com os pequenos passos para o consumo limitado nasce para a
massa e seus protetores teorizantes uma nova situação de perigo: mas como, se tal progresso estivesse no
plano apenas da mudança de estrutura da desprezabilidade?” SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der
Massen, p 54. Tradução: p 66.
71
e político das massas. Para Sloterdijk, Friedrich Nietzsche foi o primeiro a reconhecer o
Zarathustra:
65
“O autor de Zaratustra também insistiu – nisso mais semelhante ao real-idealista Hegel do que admitem a
maioria dos exegetas de ambos – que desprezo fosse algo objetivo que não pode ser abolido pelo mero
término subjetivo da desprezabilidade. A benevolência social-democrata não pode solucionar o problema do
conflito entre verticalidade e horizontalidade na luta por reconhecimento. Sim, a presunção aparentemente
livre de desprezo do último homem é determinada por Nietzsche justamente como a essência do
objetivamente desprezível”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 54-55. Tradução: p 66-67.
72
O último homem torna tudo pequeno, inclusive ele mesmo. A sociedade dos
últimos homens é imagem da igualdade antropológica feita por baixo (Jeder will das
Gleiche, Jeder ist gleich). O ato de piscar o olho (blinzeln) é o símbolo de um tácito pacto
66
“Oh! Chega o tempo em que o homem não dará mais à luz uma estrela. Oh! Chega o tempo do mais
desprezível dos homens, que não pode mais desprezar a si próprio. Vejam! Mostro-lhes o último homem. ‘O
que é amor? O que é criação? O que é nostalgia? O que é estrela’ – assim pergunta o último homem e pisca os
olhos. A terra se tornou pequena então, e sobre ela saltita o último homem, que torna tudo pequeno. Sua
estirpe é indestrutível, como a pulga; o último homem é o que mais tempo vive. ‘Nós inventamos a felicidade’
– dizem os últimos homens, e piscam os olhos. Abandonaram as regiões onde é duro viver, pois se precisa de
calor. Inclusive, ama-se o vizinho e se esfrega nele, pois se precisa de calor. Adoecer e desconfiar, eles
consideram perigoso: caminha-se com cuidado. Louco é quem continua tropeçando com pedras e com
homens! Um pouco de veneno, de vez em quando, isso produz sonhos agradáveis. E muito veneno, por fim,
para ter uma morte agradável. Continua-se trabalhando, pois o trabalho é um entretenimento. Mas evitamos
que o entretenimento canse. Já não se torna nem pobre, nem rico: as duas coisas são demasiado molestas.
Quem ainda quer governar? Quem ainda quer obedecer? Ambas as coisas são demasiado molestas. Nenhum
pastor e um só rebanho! Cada um é o mesmo, cada um é igual: quem sente de outra maneira segue
voluntariamente para o hospício. ‘Antigamente, todo mundo era louco’ – dizem os mais sutis e piscam o olho.
É-se esperto e sabe-se de tudo, o que acontece é: assim se tem uma ridicularização sem fim. Ainda se discute,
mas logo se reconcilia, senão estropia o estômago. Tem-se seu prazerzinho para o dia e seu prazerzinho para a
noite: mas preza-se a saúde. ‘Nós inventamos a felicidade’ – dizem os últimos homens, e piscam os olhos”.
NIETZSCHE, Friedrich. Also sprach Zarathustra. IN: KSA, vol. 4, p 19 (as partículas se grifadas indicam a
tradução de man do original alemão, no sentido de indeterminação do sujeito).
73
desprezabilidade é pronunciada pelos últimos homens como a felicidade que eles mesmos
Es ist nicht die Selbstbefriedigung als solche, die sich hier das
Prädikat verächtlich verdient hat; Verächtlichkeit ist die allzu
befriedigt zur Schau gestellte Beschränktheit in der
Selbstbefriedigung zur Schau gestellte Beschränktheit in der
Selbstbefriedigung. Verächtlich ist der letzte Mensch in Zarathustras
Augen, weil er hat haltmachen wollen bei den profanen, den
endlichen, den in der Horizonalen erschöpften „Lüstchen“.
Verächtlich sind für ihn die letzten Menschen, weil sie die
aristokratischen Leidenschaften, die Passionen der
Selbstüberschreitung und die kreative Verausgabung, zu einer
Verrücktheit erklärt und damit begonnen haben, die Maβstäbe des
herausgeforderten und gesteigerten Lebens insgesamt im Namen
einer ausgeheilten Vernunft der Ebene verächtlich zu machen. (...)
Verächtlich scheinen also jene Verächter, die abgestumpft sind
gegen jede Regung, die über Wertungen, Wünsche und
Verständigungsverfahren der selbstbefriedigenden Mitte
hinausginge. Zarathustra nimmt es auf sich, den letzten Menschen zu
verachten, weil sein Mitgefühl ihm verbietet, ein Menschenleben
gutzuheiβen, das von sich selbst so wenig verlangt, daβ es schon die
bloβe Möglichkeit von Selbstverachtung abgelegt hat. Wer den
Menschen weiterträumt, hütet die Möglichkeit, ihn auch noch zu
verachten.67
acabar com todas as relações onde o ser humano é desprezível torna-se ela própria uma
67
“Não foi a auto-satisfação como tal que mereceu aqui ser caracterizada como desprezível; desprezibilidade
é a limitação demasiada satisfeita e exposta na auto-satisfação. O último homem aos olhos de Zaratustra é
desprezível porque quis parar nos “desejozinhos” profanos, finitos, esgotados na horizontal. Para ele,
desprezíveis são os últimos homens porque seu prazer não está aberto para cima. Eles lhe parecem dignos de
desprezo sobretudo porque declararam ser um devaneio as paixões aristocráticas, as paixões de auto-
superação e o esgotamento criativo, e com isso começaram a tornar desprezíveis os padrões de vida desafiada
e elevada conjuntamente em nome de uma razão agora saudável da planície. (...) Portanto, desprezíveis
parecem aqueles desprezadores embotados contra todo movimento que ultrapasse valorações, desejos e
procedimentos de compreensão do centro auto-satisfeito. Zaratustra toma a seu cargo desprezar o último
homem porque sua simpatia o proíbe aprovar uma vida humana que exige tão pouco de si própria que já
perdeu a mera possibilidade de autodesprezo. Quem continua a almejar o homem, mantém a possibilidade de
ainda poder desprezá-lo”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 55-56. Tradução: p 67-68.
74
Zarathustra despreza o último homem, mas, no sentido inverso, também é desprezado pelo
último homem. Os últimos homens continuam com a prática de destruir todas as relações
própria objetificação do desprezo, pois, embora não aceite qualquer valoração maior que
essas duas ações juntam criam a aparência de que o desprezo foi dissolvido e acabou-se. O
piscar dos olhos (blinzeln) dos últimos homens quando dizem que inventaram a felicidade é
o pacto silencioso sobre o suposto fim do desprezo. Para Sloterdijk, aí reside a provocação
desprezadores de baixo:
Elitären, die ihre Ziele von der Masse berachtet wissen und ahnen,
daβ es mit dem, was ihnen am Herzen liegt, in der aufziehenden
Massenkultur ein für alle Mal vorbei ist. Was die zweite Position
angeht, so wird es wohl für alle Zukunft kaum möglich sein, ihr
einen eloquenteren Anwalt als Friedrich Nietzsche zu besorgen.68
O desprezo que Zarathustra dirige ao último homem não é como o antigo desprezo
das massas (ele almeja uma superação do homem através do conceito de Übermensch).
Esse desprezo é a transformação do próprio desprezo da multidão por tudo (Verachtung der
Menge für alles) que ultrapassa seu sistema de valoração em desprezo corretivo e
Die Frage: was ist diese oder jene Gütertafel und »Moral« werth?
will unter die verschiedensten Perspektiven gestellt sein; man kann
namentlich das »werth wozu?« nicht fein genug aus einander legen.
Etwas zum Beispiel, das ersichtlich Werth hätte in Hinsicht auf
möglichste Dauerfähigkeit einer Rasse (oder auf Steigerung ihrer
Anpassungskräfte an ein bestimmtes Klima oder auf Erhaltung der
grössten Zahl), hätte durchaus nicht den gleichen Werth, wenn es
sich etwa darum handelte, einen stärkeren Typus herauszubilden.
Das Wohl der Meisten und das Wohl der Wenigsten sind
entgegengesetzte Werth-Gesichtspunkte: an sich schon den ersteren
für den höherwerthigen zu halten, wollen wir der Naivetät englischer
Biologen überlassen... Alle Wissenschaften haben nunmehr der
Zukunfts-Aufgabe des Philosophen vorzuarbeiten: diese Aufgabe
68
“A incorrigível provocação de Nietzsche consiste no fato de que ele transforma o desprezo da multidão por
tudo o que ultrapasse sua organização no horizonte em material e massa de resistência para um desprezo
corretivo, potencializador. Com a intervenção de Zaratustra o desprezo ganha uma constituição complexa: no
segundo desprezo, um desprezo anterior é dirigido e revalorado contra si mesmo. (...) Necessariamente
aparece duas vezes também o segundo desprezo, ou desprezo composto, uma vez de baixo, como desprezo
ofensivo das elites por parte das novas massas flexibilizadas, que fazem de seu modo de vida a medida de
todas as coisas e querem libertar-se de seu observador que as despreza; e como desprezo das massas e de seu
amplo idioma por meio dos últimos elitistas, que sabem desprezados seus objetivos pela massa e pressentem
que na cultura de massas em organização acabou de uma vez por todas aquilo com que se importam. No que
diz respeito a segunda posição, pelo resto dos tempos será quase impossível arrumar-lhe um defensor mais
eloqüente do que Friedrich Nietzsche”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 56-57.
Tradução: p 68-69.
76
Nietzsche explicita que o bem da maioria (das Wohl der Meisten) e o bem dos
poucos (das Wohl der Wenigsten) são valorações opostas, outorgando ao filósofo a tarefa,
Werthe), que não pode ser resolvido, segundo Nietzsche, de outra forma que não a vertical
(portanto, o filósofo deve definir hierarquias de valores - Rangordnung der Werthe). Neste
Verachtung der Eliten durch die neuen flexibilisierten Massen), munidos de seu modo de
vida (way of life) que deve ser o padrão de medida para todas as coisas. Do outro lado, os
últimos elitistas que desprezam as massas e seu modo de valoração (Verachtung der
Massen und ihres breiten Idioms durch die letzten Elitären), cientes de que, para eles, não
desprezadores de baixo:
Besondere Erfolge erzielt zur Zeit auf diesem Feld der Philosoph
Richard Rorty, der sich ohne Umschweife ins Lager der letzten
69
“A questão: que vale esta ou aquela tábua de valores, esta ou aquela ‘moral’? deve ser colocada das mais
diversas perspectivas; pois ‘vale para quê?’ jamais pode ser analisado de maneira suficientemente sutil. Algo,
por exemplo, que tivesse valor evidente com relação à maior capacidade de duração possível de uma raça (ou
ao acréscimo do seu poder de adaptação a um determinado clima, ou à conservação do maior número) não
teria em absoluto o mesmo valor, caso se tratasse, digamos, de formar um tipo de homem mais forte. O bem
da maioria e o bem dos raros são considerações de valor opostas: tomar o primeiro como de valor mais
elevado em si, eis algo que deixamos para a ingenuidade dos biólogos ingleses... Todas as ciências doravante
preparar o caminho para a tarefa futura do filósofo, sendo esta tarefa assim compreendida: o filósofo deve
resolver o problema de valor, deve determinar a hierarquia dos valores.”. NIETZSCHE, Friedrich W. Zur
Genealogie der Moral. Erste Abhandlung, § 17, nota final.
77
que se torna regra, ao passo que o desprezo de Zarathustra pelo último homem passa a
representar a caduca lembrança de uma forma de diferenciação que não mais existe (e,
70
“Nesse campo, hoje em dia, obtém destacados êxitos o filósofo Richard Rorty, que sem rodeios se coloca
no lugar dos últimos homens – pressupondo que estes sejam americanos – e chama cruamente seus críticos,
de Kierkegaard e Nietzsche a Heidegger, Adorno e Foucault, de esnobes cansativos, desagradáveis, heróicos,
embora continuem a fazer parte, em posição privilegiada, de sua lista de leitura. Como desprezador de baixo
dos desprezadores de cima, o liberal Rorty, que os ares da Virgínia transformaram em social-democrata, prega
uma nova versão do sonho americano – o andar aprumado rumo à banalidade e, se preciso, uma segunda
separação em relação à Europa”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 58. Tradução: p 71.
78
A ditadura sem dono do impessoal (das Man) é o retrato que Heidegger faz do ser-
71
“A última contribuição eminente para o processo filosófico em torno do desprezível e seu contrário foi dada
por Martin Heidegger em seu famoso capítulo acerca do Man* [‘o impessoal’] em Ser e tempo, parágrafo 27.
(...) Primeiramente, porém, com um retrato extraordinário, Heidegger revelou para a teoria o pálido selbst [si
mesmo] do ‘impessoal’. O que especialmente salta aos olhos do retratista, no ‘impessoal’, é a ausência de
todos os traços nos quais se pudesse apontar o característico, o radicalmente individual e insubstituível de
uma existência decidida por si mesma. Em referência à massa do ‘impessoal’ sempre se considera, segundo o
seu fenomenólogo, ‘inopinadamente o domínio já assumido dos outros. O próprio ‘impessoal’ faz parte dos
outros e consolida seu poder’. A quem porém, foi dado o seu ‘si mesmo’ dessa maneira ‘impessoal’ e maciça
– e são, segundo Heidegger, ‘primeira e primordialmente’ todos, sem exceção –, este não pode sentir esse
nivelamento. (...) A evocação astuta de Heidegger acerca do estar-aí [Dasein] no modo “impessoal” inclui
todos os indivíduos, sem exceção, na desprezabilidade do resultado primeiramente válido: estamos mesmo a
tal ponto infiltrados pelos outros, de sua parte já minados, que sob nenhuma circunstância estamos em
condições de ir ao encontro de nossa ‘própria’ existência. (...) Sob tais premissas o desprezo deve aparecer
como um existencial que está fixado na existência como tal, contanto que primeiramente não possa ser outra
coisa que a convivência decaída com outros decaídos. (...) Por isso, no início é impossível as pessoas não
viverem desprezivelmente, não viverem na forma impessoal, não viverem dispersas na ditadura sem dono,
porque todos chegam primeiro somente como ‘impessoal’ e geralmente assim permanecem”. SLOTERDIJK,
Peter. Die Verachtung der Massen, p 59-60. Tradução: p 72-74.
* Em Ser e tempo, Heidegger substantiva a palavra alemã Man a partir do sentido do pronome “se” usado
impessoalmente – como em “diz-se que”. Mas a locução “o se” soa estranho e empregaremos em seu lugar “o
impessoal”, cf. Heidegger: história e verdade em Ser e Tempo, de Jonathan Rée (São Paulo, UNESP, 2000,
p.31. Tradução de José Oscar de Almeida Marques). (N.E.)
79
O trecho citado por Sloterdijk de Assim falou Zaratustra ecoa nas linhas citadas de
Ser e tempo. O último homem, ao descrever as ações e características de sua sociedade, usa
sempre o impessoal73. Nos únicos momentos em que o último homem diz algo em
primeira pessoa (Nós inventamos a felicidade - Wir haben das Glück erfunden), a
mesmo, cada um é igual (Jeder will das Gleiche, Jeder ist gleich) – com o que escreve
Heidegger: cada um é o outro e nenhum é ele mesmo. O Man é o ninguém (Jeder ist der
Andere und Keiner er selbst. Das Man ist das Niemand). A igualdade antropológica,
72
“Nessa impossibilidade de comprovação e incapacidade de constatação, o Man desenvolve sua verdadeira
ditadura. Desfrutamos e nos divertimos como Man desfruta; lemos, vemos e julgamos literatura e arte como
Man vê e julga; mas também nos retiramos do ‘grande monte’ como Man se retira; achamos revoltante o que
Man acha revoltante (...) A opinião pública escurece tudo e entrega o assim oculto como o conhecido e
acessível a cada um (...) Cada um é o outro e nenhum ele mesmo. O Man (...) é o ninguém (...)”.
HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit, p 126-128. [Ed. Bras.: Ser e tempo. São Paulo, Vozes, 2001] IN: Die
Verachtung der Massen, p 60. Tradução: p 73.
73
man braucht; man liebt; man geht; man arbeitet; man sorgt; man wird; man zankt; man versöhnt; man hat;
man ehrt. Ver nota X.
80
compaixão (Mitleid) como adulação, dado que as duas se referem ao ser humano, poder-se-
ia considerar ambos os casos como tentativas de reconhecimento. Mas se, para Sloterdijk, a
74
“O que é de temer, o que tem efeito mais fatal que qualquer fatalidade, não é o grande temor, mas o grande
nojo ao homem; e também a grande compaixão pelo homem. Supondo que esses dois um dia se cassassem,
inevitavelmente algo de monstruoso viria ao mundo, a ‘última vontade’ do homem, sua vontade do nada, o
niilismo. E de fato, muita coisa aponta pra isso. Quem para farejar possui não apenas o nariz, mas também os
olhos e ouvidos, sente, em quase toda parte que vai atualmente, algo semelhante a um ar de hospício, a um ar
de hospital – falo, naturalmente, das áreas de cultura do homem, de toda espécie de ‘Europa’ sobre a terra.
(...) Ar puro, portanto! Ar puro! E afastamento de todos os hospícios e hospitais da cultura! E portanto boa
companhia, nossa companhia! Ou solidão, se tiver de ser! Mas afastamento dos maus odores da degradação
interna e da oculta carcoma da doença!... Para que nós mesmo, meus amigos, ao menos por algum tempo
ainda nos defendamos das duas mais terríveis pragas que podem estar reservadas para nós precisamente – o
grande nojo do homem e a grande compaixão do homem!...”. NIETZSCHE, Friedrich W. Zur Genealogie der
Moral. Dritte Abhandlung, § 14
81
adulação é o desprezo invertido (neste sentido torna-se mais clara a aproximação com os
todas as relações onde o homem é desprezado acaba por tornar o próprio desprezo um
nojo pelo homem com a compaixão pelo homem: trazendo a luz do mundo a sinistra
(Unheimlichsten) figura do último homem, a última vontade do homem (letzte Wille des
Menschen, sein Wille zum Nichts, der Nihilismus), o niilismo, a desertificação. Oswaldo
Giacoia Junior, em um artigo cujo objetivo é estabelecer uma relação entre aspectos
75
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. “O último homem e a técnica moderna”. Natureza humana, jun. 1999, vol.1,
no.1, p.50-51.
82
uma ditadura do ninguém (como escreve Heidegger: Das Man ist das Niemand). O
horizontais. Mas a busca por revalorações baseadas em diferenças horizontais traz consigo
um incontornável problema:
Weil aber, wie gesehen, alle Unterschiede auf der Basis der
Gleichheit, also einer im voraus festgesetzten Ununterschiedenheit,
vorgenommen werden, sind alle modernen Unterscheidungen mehr
oder weniger akut von der Indifferenz bedroth. Der Differenzkult
der aktuellen Gesellschaft, wie er sich von der Mode bis in die
Philosophie ausbreitet, hat seinen Grund darin, daβ man alle
horizontalen Differenzen zu Recht als schwache, widerrufliche,
konstruierte empfindet.77
76
“O projeto de desenvolver a massa como sujeito alcança seu estágio crítico tão logo pronunciemos a regra
de que todas as diferenciações devem ser realizadas como diferenciações da massa. (...) Ela anula todos os
vocabulários e critérios que se prestem à manifestação de suas limitações; ela deslegitima todos os jogos de
linguagem que não ganha. Ela estilhaça todos os espelhos que não lhe assegurem ser ela a mais bela em todo
o país. (...) Nesse sentido, o projeto da cultura de massas é nietzscheano de uma forma profundamente
antinietzscheana: sua máxima chama-se revaloração de todos os valores como transformação de toda a
diferença vertical em diferença horizontal”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 85-86.
Tradução: p 105-106.
77
“Mas já que, como foi visto, todas as diferenças são efetuadas com base na igualdade, portanto em uma
impossibilidade preestabelecida de diferenciar, todas as diferenciações modernas estão em maior ou menor
medida gravemente ameaçadas pela indiferença. O culto à diferença na sociedade atual, expandindo-se da
moda à filosofia, tem seu motivo no fato de que se sente todas as diferenças horizontais, e com razão, como
sendo fracas, revogáveis, construídas”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 86. Tradução: p
106-107.
83
diferenças com base na igualdade. Se ainda se permitir uma idéia de identidade, também
imperativos como “seja diferente, seja você mesmo”. Diferença que não faz diferença
não pareçam iguais, deve-se ser o mais diferente possível, mas apenas na medida em que
78
“Onde havia identidade, deve aparecer indiferença, ou melhor, indiferença diferente. Diferença que não faz
diferença é o título lógico da massa. De agora em diante identidade e indiferença deve ser entendidas como
sinônimos. (...) ser massa significa diferenciar-se sem que faça alguma diferença. Indiferença diferenciada é o
mistério formal da massa e sua cultura, que organiza um centro total. Por essa razão, seu jargão não pode ser
outro senão o de um individualismo afiado. Quando juramos que tudo o que fazemos para ser diferente em
nada significa, podemos fazer o que sempre nos vem à mente. (...) Somente por isso, no decorrer no último
meio século pudemos sair de uma massa preta ou molar para uma molecular colorida.” SLOTERDIJK, Peter.
Die Verachtung der Massen, p 86-87. Tradução: p 107.
84
a identidade deve ser sempre buscada sob a forma de uma indiferença diferenciada. Os
defensores das pretensões de desenvolver a massa servil como sujeito, de derrubar todas as
diferenciar valores. Ainda assim, Sloterdijk, com um resquício de ironia, não deixa de
desprezo:
79
“A cultura de massas pressupõe o fracasso de todo fazer-se-interessante, e isto quer dizer fazer-se-melhor-
do-que-os-outros. E isto com razão, pois é seu dogma que somente nos diferenciemos entre nós sob o
pressuposto de que nossas diferenças não façam diferença. A massa compromete. (...) após a grande investida
rumo à igualdade e a nova capacidade de moldagem de tudo, queremos e devemos existir antes de nossas
diferenças, contanto que sejam feitas diretamente e não achadas. A prioridade de nossa existência ante nossas
qualidades e obras desencadeia a indiferença como primeiro e único principio da massa.” SLOTERDIJK,
Peter. Die Verachtung der Massen, p 87-88. Tradução: p 108-109.
85
como única na sociedade. Mas o que se apresenta como uma simples pretensão revela
da Modernidade”, desenvolver a massa como sujeito, pode ser lido como o grande projeto
Sloterdijk, uma análise que tem como objetivo reconhecer o problema de reconhecimento
da massa. John S. McClelland, em seu livro The Crowd and The Mob: From Plato to
Canetti, defende uma tese diversa de Sloterdijk e busca diretamente o conceito de multidão
na história, tentando assim explicar sua ausência por meio de uma varredura da idéia de
multidão nos escritos filosóficos e políticos da história ocidental (ao contrário de Sloterdijk
multidão (the crowd) e a turba (multidão tumultuada, amotinada, violentamente ativa - the
mob), dois fenômenos distintos, são tratadas de forma marginal pela reflexão política
80
“Visto desse ponto de vista, o justa ou injustamente assim denominado “Projeto da Modernidade” é
definitivamente o mais admirável empreendimento observado na história da humanidade. É sempre bom
lembrar que a democracia apela, de modo inédito, para a discrição de seus membros – para a discrição no
duplo sentido da palavra: como força de diferenciação e como sentimento de compasso, como sentido para
inescritas relações de categoria e como respeito por ordens informais do bom e do menos bom – em constante
consideração às necessidades de igualdade e hábitos de comparação”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung
der Massen, p 92-93. Tradução: p 114.
86
Para McClelland, o que deve ser governado (a multidão) não é o centro da reflexão
política na história ocidental. O pensamento ocidental sempre optou (desde Platão) por
massas. Entretanto, este posicionamento superior não ocorre porque o pensador esteja
sempre do lado dos que governam, mas antes porque, se a reflexão política no ocidente é
vista como uma série de justificações de formas de governo, o pensador político percebe
que é mais convincente tratar o objeto do governo (o povo, a massa humana) como uma
multidão que necessariamente precisa ser governada, já que ela pode, facilmente,
McClelland vê nesse desprezo teórico pelas massas uma falha do pensamento político
ocidental, e, a partir da genealogia desta falha, ele ousa afirmar que é possível que a
“teorização política” no Ocidente seja concebida para evidenciar que a democracia (the
rule of men by themselves) necessariamente torna-se o governo pela turba (mob rule).
Desta forma, McClelland ilumina uma disposição antidemocrática que nasce com a
81
McMCLELLAND, John S. The Crowd and the Mob: from Plato to Canetti. Pg. 1.
87
reflexão política ocidental e que a acompanharia, segundo ele, até Massa e Poder de
na história, alcança sua expressão e estágio crítico nas sociedades democráticas de massas.
Mas ele observa que a democracia na cultura contemporânea de massas não resolve o
(diferente daquela produzida pelo princípio de líder, que levou a Europa a batalhas
diferentes que não fazem diferença, ou seja, um pluralismo vazio de uma massa gasosa,
reconhecimento das massas pós-modernas. Pode-se ser que, nessas lutas, também estejam
massa, formam as multidões, seja adulando-as, seja ofendendo-as. Essa idéia do ser
humano como ser influenciável é uma herança do humanismo, tal como Sloterdijk
desenvolve a questão em seu ensaio Regras para o Parque Humano: uma resposta à carta
de Heidegger sobre o humanismo (1999). A relação entre Regras para o Parque Humano e
82
“Quem hoje se questiona sobre o futuro da humanidade e dos meios de humanização deseja essencialmente
saber se subsiste alguma esperança de dominar as atuais tendências embrutecedoras entre os homens. Quanto
a isto, tem uma perturbadora importância o fato de que o embrutecimento, hoje e sempre, costuma ocorrer
exatamente quando há grande desenvolvimento do poder, seja como rudeza imediatamente bélica e imperial,
seja como bestialização cotidiana das pessoas pelos entretenimentos desinibidores da mídia”. SLOTERDIJK,
Peter. Regeln für den Menschenpark. § 6. Tradução Regras para o Parque Humano, p 16.
90
(alltägliche Bestialisierung) das pessoas, de forma muito mais eficiente do que qualquer
bélica e imperial (unmittelbare kriegerische und imperiale Roheit). Hoje, nas mídias para
buscar uma resposta à pergunta: que tipo de ser humano é formado frente às multidões cada
vez maiores, frente aos intermináveis conflitos por reconhecimento na sociedade, às mídias
83
“O fenômeno do humanismo hoje merece atenção antes de mais nada porque nos recorda – embora de
forma velada e tímida – que as pessoas na cultura elitizada estão submetidas de forma constante e simultânea
a dois poderes de formação – vamos aqui denominá-los, para simplificar, influências inibidoras e
desinibidoras. Faz parte do credo do humanismo a convicção de que os seres humanos são ‘animais
influenciáveis’ e de que é portanto imperativo prover-lhes o tipo certo de influências. A etiqueta ‘humanismo’
recorda – de forma falsamente inofensiva – a contínua batalha pelo ser humano que se produz como disputa
entre tendências bestializadoras e tendências domesticadoras”. SLOTERDIJK, Peter. Regeln für den
Menschenpark. § 6. Tradução: p 17
91
as corretas influências para que este desenvolva sua humanidade, sua plenitude enquanto
fabricação”, Oswaldo Giacoia Junior ressalta a forma como Sloterdijk lida com
Das latente Thema des Humanismus ist also die Entwilderung des
Menschen, und seine latente These lautet: Richtige Lektüre macht
zahm.85
84
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. “Corpos em fabricação”. Natureza humana, jun. 2003, vol.5, no.1, p 182.
85
“O tema latente do humanismo é, portanto, o desembrutecimento do ser humano, e sua tese latente é: as
boas leituras conduzem a domesticação”. SLOTERDIJK, Peter. Regeln für den Menschenpark. § 6.
Tradução: 17.
92
na atual sociedade de massas, o que significa dizer que o livro não ocupa mais um lugar de
86
“Certamente, a leitura teve um imenso poder na formação humana – e, em dimensões mais modestas,
continua a tê-lo; a seleção, contudo – seja como for que tenha sido levada a cabo – sempre funcionou como a
eminência parda por trás do poder. Lições e seleções têm mais a ver entre si do que qualquer historiador da
cultura quis ou pôde levar em conta e, ainda que nos pareça impossível por hora reconstruir de forma
suficientemente precisa a conexão entre leitura e seleção, considerar que essa conexão, enquanto tal, possui
algo de real, é mais do que uma simples hipótese descompromissada”. SLOTERDIJK, Peter. Regeln für den
Menschenpark. § 52. Tradução: 43.
93
viver na multidão. A mudança da massa negra e molar para a massa gaseiforme e colorida
da atualidade permite uma forma de influência muito mais efetiva que a primeira. O
indivíduo não precisa mais ver os outros ao seu lado: basta-lhe participar dos programas de
comunicação em massa para que já faça parte da massa. Hoje, o humanismo parece não
87
“Com o estabelecimento midiático da cultura de massas no Primeiro Mundo em 1918 (radiodifusão) e
depois de 1945 (televisão) e mais ainda pela atual revolução da internet, a coexistência humana nas
sociedades atuais foi retomada a partir de novas bases. Essas bases, como se pode mostrar sem esforço, são
decididamente pós-literárias, pós-epistolares e, conseqüentemente, pós-humanistas. Quem considera
demasiado dramático o prefixo ‘pós-‘ nas formulações acima poderia substituí-lo pelo advérbio
‘marginalmente’ – de forma que nossa tese diz: é apenas marginalmente que os meios literários epistolares e
humanistas servem às grandes sociedades modernas para a produção de suas sínteses políticas e culturais. (...)
A era do humanismo moderno como modelo de escola e de formação terminou porque não se sustenta mais a
ilusão de que grandes estruturas políticas e econômicas possam ser organizadas segundo o amigável modelo
da sociedade literária” SLOTERDIJK, Peter. Regeln für den Menschenpark. § 4. Tradução: 14.
88
“O senhor pergunta: Comment redonner uns sens au mot ‘Humanisme’? ‘De que maneira dar novamente à
palavra humanismo um sentido?’ A sua pergunta não pressupõe apenas que o senhor que conservar a palavra
‘humanismo’; ela contém também a confissão de que a palavra perdeu seu sentido. Ela perdeu o sentido, pela
convicção de que a essência do humanismo é de caráter metafísico e isto significa, agora, que a Metafísica
não só coloca a questão da verdade do ser, mas a obstrui, na medida em que a metafísica persiste no
esquecimento do ser. Mas o pensar que conduz a esta compreensão do caráter problemático da essência do
94
Heidegger adota, segundo Sloterdijk, uma voz trêmula. A pergunta de Jean Beaufret faz
funcional que são mais relevantes para Sloterdijk do que a proposta feita por Heidegger
vista de um projeto de domesticação que forma uma ‘comunidade amigável’, parece ter
humanismo levou-nos, ao mesmo tempo, a pensar a essência do homem mais radicalmente.” HEIDEGGER,
Martin. Über den Humanismus, p 114-116 (Aubier). Tradução: p 28.
89
Sloterdijk empreendeu uma análise mais precisa da proposta de Heidegger em um texto intitulado “A
domesticação do Ser, por uma clarificação da clareira”. SLOTERDIJK, Peter. Die Domestikation des Seins.
Für eine Verdeutlichtung der Lichtung, IN: „Nicht gerettet. Versuche nach Heidegger“. Frankfurt/M,
Suhrkamp, 2001.
95
sobre todos os seres. Neste sentido, para Heidegger, fascismo, bolchevismo, americanismo,
por ter mostrado, de forma muito mais explicita do que os outros, seu desprezo por valores
90
“Para Heidegger, esse intenso exercício ontológico de humildade não é alcançado por nenhum caminho que
parta do humanismo; o que ele julga ver neste último é, mais propriamente, uma contribuição a história do
armamento da subjetividade. De fato, Heidegger interpreta o mundo histórico da Europa como o teatro dos
humanismos militantes; ele é o campo no qual subjetividade humana leva a cabo, com fatídica conseqüência,
sua tomada de poder sobre todos os seres. Sob essa perspectiva, o humanismo se oferece como cúmplice
natural de todos os possíveis horrores que podem ser cometidos em nome do bem humano. Mesmo na trágica
titanomaquia da metade do século entre bolchevismo, o fascismo e o americanismo exibiram-se, na visão de
Heidegger, somente três variações dessa mesma força antropocêntrica e três candidaturas a um domínio
humanitariamente ornado de mundo – dentre as quais o fascismo errou o passo ao exibir mais abertamente
que seus concorrentes seu desprezo por valores inibitórios pacíficos e educacionais. De fato, o fascismo é a
metafísica da desinibição – talvez mesmo uma forma desinibida da metafísica. Na visão de Heidegger, o
fascismo foi a síntese do bestialismo e do humanismo; isto é, a paradoxal confluência de inibição e
desinibição” SLOTERDIJK, Peter. Regeln für den Menschenpark. § 25. Tradução: 30-31.
91
“Estas considerações deixam claro que a questão do humanismo significa mais que a bucólica suposição de
que a leitura forma. Ela envolve nada menos que uma antropodicéia – isto é, uma definição do ser humano em
face de sua abertura biológica e de sua ambivalência moral. Acima de tudo, porém, a questão de como o ser
humano poderia se tornar um ser humano verdadeiro ou real está daqui em diante inevitavelmente colocada
como uma questão de mídia, se entendermos por mídias os meios comunitários e comunicativos pelos quais
os homens se formam a si mesmos para o que podem, e o que vão, se tornar”. SLOTERDIJK, Peter. Regeln
für den Menschenpark. § 8. Tradução: 19-20
96
questão de mídia. Essa afirmação ganha ecos catastróficos quando inserida nos dias atuais,
cenário de conflito entre os partidários das influências domesticadoras (em certo sentido,
92
A obra The Lonely Crowd (1950), do sociólogo americano David Riesman, oferece um rico estudo sobre o
desenvolvimento subjetivo de comportamentos de massa pelos americanos.
93
“Nietzsche já tinha algo disso em mente quando ousou designar-se a si mesmo, tendo em vista seu
pensamento, como uma force majeure. Podemos deixar de lado a irritação provocada mundo afora por essa
observação, já que falta ainda muito tempo – séculos, se não milênios – para o julgamento adequado de tais
97
incontornáveis 94. Já nos dias atuais, observam-se lutas culturais titânicas entre os impulsos
mídias, embora, frente às vitórias cada vez mais certas das mídias horizontais de massas e a
leitura não funciona como mídia com poder de influenciar (amansar) de modo geral a
Frente a essa constatação, convém avaliar se ainda existem chances para algum processo de
humanização, se esse conflito não estaria perdido frente à bestialização cotidiana dos
homens na sociedade atual. Esse é o desafio que o século XXI nos apresenta. A polêmica
pretensões. Quem teria o fôlego suficiente para imaginar uma época do mundo em que Nietzsche será tão
histórico como Platão o era para Nietzsche? Basta que tenhamos a noção de que as próximas grandes etapas
do gênero humano serão períodos de decisão política quanto à espécie. Nelas se revelará se a humanidade ou
suas elites culturais conseguiram pelo menos encaminhar procedimentos efetivos de autodomesticação. Na
própria cultura contemporânea trava-se uma luta titânica entre os impulsos domesticadores e os
bestializadores, e seus respectivos meios de comunicação. Seria surpreendente a obtenção de sucessos mais
significativos no campo da domesticação, diante de um processo de civilização em que uma onda desinibidora
sem precedentes avança de forma aparentemente irrefreável”. SLOTERDIJK, Peter. Regeln für den
Menschenpark. § 55. Tradução: 45-46
94
Interessante notar que no mesmo ano da publicação do Regras do Parque Humano, 1999, Suzan George
publica na França O Relatório Lugano. Trata-se de eloqüente exemplo de como decisões políticas quanto à
espécie humana tornam-se problemas viscerais no alvorecer do século XXI. Como destacado por Laymert
Garcia dos Santos no prefácio à edição brasileira, Suzan George revela com precisão a lógica contemporânea
da globalização: lógica do extermínio.
95
Sobre o affaire Sloterdijk: “É verdade que certas discussões científicas que se realizam pacificamente nos
Estados Unidos ou na Inglaterra enfrentam, na Alemanha, dificuldades e constrangimentos peculiares.
Embora os programas eugenistas tenham sido aceitos por biólogos de todo o mundo e das mais variadas
tendências ideológicas até a Segunda Guerra Mundial, foram sobretudo as práticas nazistas que trouxeram à
idéia de melhoria genética o opróbrio do qual não conseguem se livrar. (...) É compreensível, então, que o
trabalho de Sloterdijk tenha ferido susceptibilidades. Mas, mesmo levando-se isso em conta, a magnitude da
reação indica que há outros interesses mais profundos em jogo. E, de fato, o que se processa, de forma não
muito disfarçada, é uma guerra de sucessão no establishment filosófico universitário alemão. Sloterdijk não
poupa críticas à presente situação da Teoria Crítica e dos herdeiros da Escola de Frankfurt que, para ele, não
98
alemão traduz a própria preocupação de Sloterdijk com a forma que a sociedade reagiria a
essas questões, pois o avanço tecnológico entra como um fator decisivo, como escreve
Sloterdijk:
mais possuem respostas para as questões que se colocam para a terceira geração do pós-guerra. A figura
emblemática de Jürgen Habermas se apresenta, para Sloterdijk, desgastada e em franco declínio. Rei morto,
rei posto. Nos três anos passados desde a conferência de Elmau, não há muitas dúvidas de que Peter
Sloterdijk, principalmente por sua hábil exposição midiática, surge hoje como o mais visível nome dos meios
filosóficos na Alemanha”. MARQUES, José Oscar de A. “Sobre as Regras para o Parque humano de Peter
Sloterdijk”. Publicado em Natureza Humana. Vol. IV, 2002, pág. 363-381.
96
“É a marca da era técnica e antropotécnica que os homens mais e mais se encontrem no lado ativo ou
subjetivo da seleção, ainda que não precisem ter se dirigido voluntariamente para o papel do selecionador.
Pode-se ademais constatar: há um desconforto no poder de escolha, e em breve será uma opção pela inocência
recusar-se explicitamente a exercer o poder de seleção que de fato se obteve”. SLOTERDIJK, Peter. Regeln
für den Menschenpark. § 54. Tradução: 44-45.
99
Embora o último homem deva ser superado, não escapa a Nietzsche que a
por baixo, castrando a própria possibilidade de seu futuro. Para Nietzsche, é evidente que o
97
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. “Corpos em fabricação”. Natureza humana, jun. 2003, vol.5, no.1, p.175-
202.
* NIETZSCHE, F. Also Sprach Zarathustra II. Von der Selbst-Überwindung. IN: KSA 4, p 147.
98
“Chame-se ‘civilização’, ‘humanização’ ou ‘progresso’ àquilo em que se vê a distinção dos europeus;
chame-se-lhe, simplesmente, sem louvar ou censurar, e utilizando uma fórmula política, o movimento
democrático da Europa: por trás de todas as fachadas morais e políticas a que remetem essas fórmulas, efetua-
se um tremendo processo fisiológico, que não pára de avançar – o processo de homogeneização dos europeus,
seu crescente libertar-se das condições em que surgem as raças ligadas a clima e classe, sua independência
cada vez maior de todo meio determinado, que durante séculos se inscreveria com exigências iguais no corpo
e na alma - ou seja, a lenta ascensão de um tipo de homem essencialmente supranacional e nômade, que
fisiologicamente possui, como marca distintiva, o máximo em força e arte de adaptação”. NIETZSCHE,
Friedrich W. Jenseits von Gut und Böse. § 242.
100
europeu (der Prozess einer Anähnlichung der Europäer). Civilizar, humanizar, progredir,
Nesse sentido, a cultura de massas envolve o problema do tipo de seres humanos que
processo. No parágrafo 242 de Além do bem e do Mal, ele distingue dois tipos de
evolução:
99
“As mesmas novas condições em que se produzirá, em termos gerais, um nivelamento e mediocrização do
homem – um homem animal de rebanho, útil, laborioso, variamente versátil e apto -, são sumamente
adequadas a originar homens de exceção, da mais perigosa e atraente qualidade. Pois enquanto essa tal força
de adaptação, que está sempre a testar condições cambiantes e começa um novo trabalho a cada geração, cada
decênio quase, não permite em absoluto a pujança do tipo; enquanto a impressão geral causada por esses
futuros europeus será, provavelmente, a de trabalhadores bastante utilizáveis, múltiplos, faladores e fracos de
101
mesmo neste sentido massificado, são uma questão de poder (democracia é uma questão de
Wenn Zarathustra durch die Stadt geht, in der alles kleiner geworden
ist, nimmt er das Ergebnis einer bislang erfolgreichen und
unumstrittenen Züchtungspolitik wahr: Die Menschen haben es - so
scheint es ihm - mit Hilfe einer geschickten Verbindung von Ethik
und Genetik fertiggebracht, sich selber kleinzuzüchten. Sie haben
sich selbst der Domestikation unterworfen und eine Zuchtwahl in
Richtung auf haustierliche Umgänglichkeit bei sich selbst auf den
Weg gebracht. Aus dieser Einsicht entspringt Zarathustras
eigentümliche Humanismus-Kritik als Zurückweisung der falschen
Harmlosigkeit, mit der sich der neuzeitliche gute Mensch umgibt.
Tatsächlich, es wäre nicht harmlos, wenn Menschen Menschen in
Richtung auf Harmlosigkeit züchteten. 100
homem é considerado rebaixado e servil, vem à tona na constatação de que não é inócuo
que homens criem homens com vista à inocuidade (es wäre nicht harmlos, wenn Menschen
Menschen in Richtung auf Harmlosigkeit züchteten). Dessa forma, também se revela que o
vontade, necessitados do senhor, do mandante, como do pão de cada dia; enquanto a democratização da
Europa resulta, portanto, na criação de um tipo preparado para a escravidão no sentido mais sutil: o homem
forte, caso singular e de exceção, terá de ser mais forte e rico do que jamais foi (...). Quero dizer que a
democratização da Europa é, simultaneamente, uma instituição involuntária para o cultivo de tiranos –
tomando a palavra em todo sentido, também no mais espiritual”. NIETZSCHE, Friedrich W. Jenseits von Gut
und Böse. § 242.
100
“Quando Zaratustra atravessa a cidade na qual tudo ficou menor, ele se apercebe do resultado de uma
política de criação até então próspera e indiscutível: os homens conseguiram - assim lhe parece – com ajuda
de uma hábil combinação de ética e genética, criar-se a si mesmos para serem menores. Eles próprios se
submeteram à domesticação e puseram em prática sobre si mesmo uma seleção direcionada para produzir uma
sociabilidade à maneira de animais domésticos. Dessa percepção se origina a peculiar crítica ao humanismo
de Zaratustra, como rejeição da falsa inocuidade da qual se cerca o bom ser humano moderno. Não seria
inócuo que homens criassem homens com vista à inocuidade” SLOTERDIJK, Peter. Regeln für den
Menschenpark. § 49. Tradução: p 40.
102
humanismo, para além de seu mero aspecto pacificador, funcionou como uma forma ativa
de que forma essa antropotécnica poderia subsistir. É nesse sentido que Sloterdijk expressa
a seguinte preocupação:
assuma de forma ativa a tarefa de implementá-la. Se não assumir, quem inevitavelmente irá
ditar as regras para o que o homem deve ser tornar será a massa subjetivamente
produzirá indivíduos de massa, com consciências de massa. Se, de fato, a tecnologia vier a
humano, a que interesses (ou interesses de quem) servirá essa intervenção? Se a forma
cultura de massas, com todas as características dessa cultura de massas midiatizadas pós-
101
“Mas tão logo poderes de conhecimento se desenvolvam positivamente em um campo, as pessoas farão
uma má figura se – como na época de uma anterior incapacidade – quiserem deixar agir em seu lugar um
poder mais elevado, seja ele Deus, o acaso, ou os outros. Já que as meras recusas ou abdicações costumam
falhar devido a sua esterilidade, será provavelmente importante, no futuro, assumir de forma ativa o jogo e
formular um código das antropotécnicas. Um tal código também alteraria de forma retroativa o significado do
humanismo clássico – pois não inclui só a amizade do ser humano pelo ser humano; ela implica também – e
de maneira crescentemente explícita – que o homem representa o mais alto poder para o homem”.
SLOTERDIJK, Peter. Regeln für den Menschenpark. § 54. Tradução: p 45.
103
Rund, rechtlich und gütig sind sie mit einander, wie Sandkörnchen
rund, rechtlich und gütig mit Sandkörnchen sind.102
que cresce inexoravelmente serve como retrato da sociedade midiática de massas do século
XXI. Ecoa a afirmação de Zarathustra: o deserto cresce. O aviso vem de uma aparente
Elias Canetti:
Es ist wichtig, als erstes einmal festzustellen, daβ die Masse sich nie
gesättigt fühlt. Solange es einen Menschen gibt, der nicht von ihr
ergriffen ist, zeigt sie Appetit. Ob sie diesen auch behalten würde,
wenn sie wirklich alle Menschen in sich aufgenommen hätte, kann
niemand sicher sagen, doch ist es sehr zu vermuten.103
contra o extraordinário:
102
“São corretos, leais e benévolos uns para com os outros, como são corretos, leais e benévolos entre si os
grãos de areia” NIETZSCHE, F. Also sprach Zarathustra. Von der verkleinernden Tugend, § 2.
103
“É importante estabelecer, antes de tudo, que a massa jamais se sente saciada. Enquanto houver alguém
que não se tenha deixado apanhar por ela, ela demonstrará apetite. Se seguiria demonstrando-o, uma vez
tendo realmente absorvido a totalidade dos homens, isso ninguém pode afirmar com certeza, embora seja de
se supor que sim”. CANETTI, Elias. Masse und Macht, p 13. Tradução: p 17.
104
Himmel, in dem von Zeit zu Zeit ein tanzender Stern aufging. Wen
wundert es nach der vorgetragenen Analyse, wenn die entschlossen
vorrückende Einheitskultur, die nur noch beliebige Differenzen vor
dem Hintergrund von Ununterschiedenheit gelten lassen kann, jetzt
Anstalten trifft für ihre nächsten Schläge in dem unbefristeten
finalen Feldzug gegen das Auβerordentliche?104
Porém, o deserto cresce dentro de nós. Sloterdijk demonstra uma preocupação com essa
Kultur in dem normativen Sinn, na den zu erinnern nötig ist wie nie
zuvor, umfaβt den Inbegriff von Versuchen, die Masse in uns selber
herauszufordern, sich gegen sich selbst zu entscheiden. Sie ist eine
Differenz zum Besseren, die es, wie alle relevant Unterscheidungen,
nur gibt, sooft und solange sie gemacht wird.105
desafiá-la. Só que provocar essa massa pós-moderna é provocar nossa própria subjetividade
contra nós mesmos. A massificação do ser humano dissolve todas as diferenças relevantes
provocação, não de adulação. Em suma, o século XXI parece nos descortinar uma
104
“Vejo em tudo isso vestígios de um ódio que se torna cada vez mais seguro de si, para com a exceção que
ainda representa uma exceção no sentido mais antigo, vestígios de rancor daquilo que em sua maneira nunca
poderá ser substituído e que justamente por isso se quer substituir de forma tão rápida e indigna quanto
possível – porque somente o permutável preenche a norma da indiferença; além disso, vejo ainda vestígios de
um desespero embaraçado, que se move sobretudo em vista daquilo que lembra o reino perdido da graça.
Talvez, por menos oportuno que possa parecer, se devesse dizer mais uma vez: no mundo que sucedeu à
graça, a arte foi o asilo das exceções que restaram. Ela foi um campo no céu noturno, no qual de tempos em
tempos nascia uma estrela. Exposta a análise, a quem admiraria se a cultura da uniformidade em franco
progresso, que só suporta determinadas diferenças diante do pano de fundo de indiferenciabilidade, agora
prepare os próximos golpes da derradeira e sem data marcada campanha contra o extraordinário?”
SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 94. Tradução: p 116.
105
“Cultura no sentido normativo, é mais do que nunca necessário lembrar, abrange a quintessência das
tentativas de provocar a massa em nós mesmos para decidir-se contra si mesmo. Ela é uma diferença para
melhor que, como todas as diferenciações relevantes, somente perdurará enquanto e sempre que for feita”.
SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 95. Tradução: p 117.
105
sociedade futura do último homem. Se é verdade que o deserto cresce, também é verdade
que vivemos no seio de um conflito em que nada foi decidido, nem nada é certo. Torna-se
o gerenciamento do gênero humano, no século XXI, não pode ser negligenciada e, nesse
cultura de massas. Uma abordagem positiva do fenômeno das massas humanas é possível,
Posfácio
Aos 20 anos, o jovem Elias Canetti, depois de um passeio pelas montanhas, reserva,
durante uma semana, todas as manhãs para o início de seu projeto: escrever um livro sobre
as massas. Escolheu para essas manhãs a leitura da Psicologia das Massas e análise do Eu,
de Sigmund Freud. O livro em nenhum momento parecia coerente com a lembrança que o
próprio Canetti tinha do arrebatamento da massa; nada havia, no ensaio de Freud, que
competente das massas consistia um desafio muito maior do que havia imaginado. Somente
35 anos mais tarde Canetti daria a público Massa e Poder. Certamente não foi a arrogância
que o fez observar posteriormente sobre seu livro: “acredito que peguei o século pela
garganta” 107.
106
“Em Frankfurt eu sucumbira a ela pela primeira vez, sem oferecer resistência. Desde então sempre estive
ciente do quanto se gosta de sucumbir à massa. Era isto, precisamente, o que me causara tanto espanto. Eu via
a massa ao meu redor, mas também via a massa dentro de mim (...)”. CANETTI, Elias. Die Fackel im Ohr.
Lebensgeschichte 1921-1931. p 143. Tradução: p 139.
107
“Gestern ist das Manuskript von Masse und Macht nach Hamburg abgegangen. 1925, vor vierunddreiβig
Jahren, hatte ich den ersten Gedanken zu einem Buch über die Masse. Aber der wirkliche Keim dazu war
noch früher: eine Arbeiterdemonstration in Frankfurt anläβlich des Todes von Rathenau, ich war siebzehn
Jahre alt. Wie immer ich es ansehe, mein ganzes erwachsenes Leben war von diesem Buche erfüllt, aber seit
ich in England lebe, also seit über zwanzig Jahren, habe ich, wenn auch mit tragischen Unterbrechungen,
kaum an etwas anderem gearbeitet. War es diesen Aufwand wert? Sind mir viele andere Werke so entgangen?
108
Sloterdijk enxergou neste momento um sintoma do espírito do tempo e algum tempo depois
publicou o ensaio. O texto Regras do parque humano não teve a mesma oportunidade de
uma tranqüila maturação: foi publicado em jornal tão logo iniciou-se a polêmica em torno
de seu discurso, sob a justificativa de que, em alguns momentos, o interesse público deve
Wie soll ich es sagen? Ich muβte tun, was ich getan habe. Ich stand unter einem Zwang, den ich nie begreifen
werde. Ich habe davon gesprochen, bevor viel mehr als die Absicht zu dem Buche da war. Ich habe es mit
dem gröβten Anspruch angemeldet, um mich besser daran zu ketten. Während jeder, der mich kannte, mich
dazu antrieb, es zu vollenden, habe ich es nicht um eine Stunde früher abgeschlossen, als mir richtig schien.
Die besten Freunde, die ich hatte, verloren in den Jahren ihren Glauben an mich, es dauerte zu lange, ich
konnte es ihnen nicht verargen. Jetzt sage ich mir, daβ es mir gelungen ist, dieses Jahrhundert an der Gurgel
zu packen”. [Ontem, o manuscrito de Massa e Poder foi enviado para Hamburgo. Em 1925, há trinta e quatro
anos atrás, tive a primeira idéia de um livro sobre a massa. Mas, seu verdadeiro gérmen era ainda mais
anterior: uma manifestação de trabalhadores em Frankfurt, por ocasião da morte de Rathenau; eu tinha
dezessete anos. Como constato continuamente, toda minha vida de adulto está ocupada por este livro; mas
desde que eu vivo na Inglaterra, ou seja, há mais de vinte anos, salvo algumas trágicas interrupções, eu mal
trabalhara em qualquer outra coisa. Valeu a pena este esforço? Não perdi assim muitas outras obras? Como
devo dizê-lo? Eu tive que fazer o que fiz. Eu estava sob uma coação que nunca vou entender. Já falava deste
livro quando não havia nada mais do que apenas a intenção de escrevê-lo. Anunciei-o como uma obra de
enormes pretensões a fim de que me atasse mais a ele. Apesar de que todos que me conheciam me impeliam a
terminá-lo, eu não o terminei nem uma hora antes do que me pareceu que devia ser. Durante todos esses anos,
meus melhores amigos perderam sua fé em mim, demorou muito tempo, eu não poderia culpá-los. Agora digo
a mim mesmo que eu consegui agarrar este século pela garganta]. CANETTI, Elias. Die Provinz des
Menschen. Aufzeichnungen 1942-1972. p 242-243.
108
Em 1999, o novo Kulturintendent de Munique, Julian Nida-Rümelin, recusou-se a renovar o contrato de
Dieter Dorn, diretor de longa data do Münchner Kammerspiele, substituindo-o por Frank Baumbauer. Em 15
de fevereiro, a crítica de teatro Christine Dössel escreve um artigo no Süddeutsche Zeitung defendendo que a
era de Dieter Dorn chegara ao final e que não havia nenhum problema nessa substituição. Alguns dias depois,
Sloterdijk publica no Süddeutsche Zeitung um artigo intitulado “Das Münchner Symptom”, identificando o
episódio e o artigo de Christine Dössel como um sintoma das lutas culturais dos tempos modernos (entre a
high-culture e low-culture). Em 6 de março, Julian Nida-Rümelin responde com um artigo intitulado:
“Tertiärphilosophie: Ist Peter Sloterdijk high? - Der Artikel des Kollegen Sloterdijk zum intendantenwechsel
an den Kammerspielen ist der bisher ahnungsloseste Kommentar zum Thema” [Filosofia-terciária: Peter
Sloterdijk está alto? O artigo do colega Sloterdijk sobre a mudança feita pelo intendente no Kammerspielen é
o comentário mais ‘sem noção’ sobre o tema]. Em primeiro de julho de 1999, Sloterdijk, convidado pela
Bayerische Akademie der Schönen Künste de Munique, profere uma palestra onde já expõe as bases do ensaio
Die Verachtung der Massen, publicado pela Suhrkamp no ano seguinte.
109
que às vezes somos levados a tirar. Ainda que se reconheça a massa ao olhar para si
Bibliografia Principal
McCLELLAND, John S. The Crowd and the Mob: from Plato to Canetti. London,
Unwin Hyman, 1989.
———. Also sprach Zarathustra – Ein Buch für Alle und Keinen, KSA 4, 1883–
1885. Tradução de Mário da Silva: Assim falou Zaratustra. Círculo do Livro, São Paulo,
s/d.
———. Jenseits von Gut und Böse – Vorspiel einer Philosophie der Zukunft, KSA
5, 1886. Tradução de Paulo César de Souza: Além do Bem e do Mal, São Paulo,
Companhia das letras, 1992.
112
———. Zur Genealogie der Moral – Eine Streitschrift, KSA 5, 1887. Tradução de
Paulo César de Souza: Genealogia da Moral, São Paulo, Companhia das letras, 1999.
PLATÃO. Platonis Opera, ed. John Burnet, Clarendon Press Oxford, 1902.
Bibliografia de Apoio
GEIGER, R. L. “Democracy and the crowd: the social history of an idea in France
and Italy, 1890-1914”. Societas. Vol. 7, 1977.
———. The Crowd: a Study of Popular Mind. Electronic Text Center, University
of Virginia Library, E.U.A., 1995.