Massa e Humanização - de Canetti A Sloterdijk

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LUCAS DOS REIS MARTINS

MASSA E HUMANIZAÇÃO: DE CANETTI A SLOTERDIJK

Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título

de Mestre em Filosofia junto ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia

do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de

Campinas, sob a orientação do Prof. Dr. José Oscar de Almeida Marques

BANCA:
Prof. Dr. José Oscar de Almeida Marques (orientador)
Prof. Dr. Ana Thereza de Miranda Cordeiro Dürmaier
Prof. Dr. Laymert Garcia dos Santos
Prof. Dr. Oswaldo Giacoia Júnior (suplente)
Prof. Dr. Róbson Ramos dos Reis (suplente)

CAMPINAS

SETEMBRO DE 2009
2

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA


BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP
Bibliotecária: Cecília Maria Jorge Nicolau CRB nº 3387

Martins, Lucas dos Reis


M366m Massa e humanização, de Canetti a Sloterdijk / Lucas dos
Reis Martins. - - Campinas, SP : [s. n.], 2009.

Orientador: José Oscar de Almeida Marques.


Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Sloterdijk, Peter, 1947- 2. Canetti, Elias, 1905-1994.


3. Comportamento de massa. 4. Cultura de massa. 5. Mídia.
6. Humanismo. I. Marques, José Oscar de Almeida.
II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas. III.Título.

Título em inglês: Mass and humanization, from Canetti to Sloterdijk

Palavras chaves em inglês (keywords) : Collective behavior


Culture mass
Media
Humanism

Área de Concentração: Filosofia

Titulação: Mestre em Filosofia

Banca examinadora: José Oscar de Almeida Marques, Ana Thereza de


Miranda Cordeiro Dürmaier, Laymert Garcia dos Santos

Data da defesa: 30-09-2009

Programa de Pós-Graduação: Filosofia


3

Banca Examinadora
5

Agradecimentos

A José Oscar de Almeida Marques, orientador da presente dissertação de mestrado,

pela dedicação ao meu trabalho e a paciência com meus eventuais devaneios. Jamais

poderei agradecer de maneira suficiente o entusiasmo e a generosidade intelectual com que

me proporcionou uma orientação criteriosa e amigável sobre temas e autores tão incomuns

quanto necessários em nosso espaço acadêmico.

Aos meus pais, Wagner e Gasparina, pela coragem e determinação com que saíram

de Minas Gerais com dois filhos pequenos, enfrentando o desafio de edificar a nossa

família em uma nova cidade, Campinas. É o primoroso e árduo trabalho de ambos na rede

pública de saúde que permitiu que me dedicasse à faculdade de filosofia.

Ao meu irmão, pelo apoio imutável. Ao meu padrinho Geraldo, pelo diálogo

constante e pela presença e ajuda nos momentos difíceis. A Danielle, pelos momentos de

alegria que me proporcionou durante os últimos passos do mestrado. Aos amigos, pelas

ricas discussões e conversas esclarecedoras.

Ao CNPq pela bolsa concedida, que possibilitou a realização deste trabalho.

Agradeço à UNICAMP, que, desde longa data, tem me proporcionado uma

estrutura de excelência para desenvolver meus estudos. À UNICAMP devo minha

convicção de que é ao ensino público que cabe a tarefa de mudar nosso país, cabendo a nós,

formados nas universidades públicas de excelência, a hercúlea tarefa de melhorar cada vez

mais nosso ensino público em todos os seus níveis.


7

Sumário

Resumo ............................................................................................................................. 9

Introdução ....................................................................................................................... 13

I. Massa como conceito .................................................................................................. 17

II. Reconhecimento e Desprezo ...................................................................................... 41

III. O Projeto Moderno: desenvolver a massa como sujeito........................................... 51

IV. O horizonte dos processos de humanização ............................................................. 89

Pósfacio ........................................................................................................................ 111


9

Resumo
O trabalho propõe-se a analisar o fenômeno das massas humanas e suas implicações
culturais, sociais e políticas para o século XXI. Partindo da clássica obra Massa e Poder
(1960), de Elias Canetti, o estudo prossegue com o exame de dois ensaios de Peter
Sloterdijk, Regras para o Parque Humano (1999) e O Desprezo das Massas (2000), e
procura esclarecer as transformações do conceito de massa entre esses dois autores, da
massa negra e molar de Canetti à massa colorida e gasosa de Sloterdijk. Sem a pretensão de
percorrer o conceito na história da filosofia política, pretende-se fazer notar como a
reflexão sobre a natureza, as potencialidades e os riscos das multidões assume um papel
cada vez mais importante no pensamento sobre a política e cultura contemporâneas. As
catastróficas experiências das grandes guerras mundiais mostraram a urgência de uma
análise séria dos comportamentos direcionados ou espontâneos de massa, principalmente
para aqueles que desejam pensar sobre o que ainda podem significar, hoje, idéias como
democracia ou humanidade. Se, como nota Sloterdijk, o humanismo não é mais capaz de
domesticar o homem contemporâneo, bombardeado cada vez mais intensamente por mídias
embrutecedoras, outras antropotécnicas - mais efetivas que o velho humanismo na sua
forma de domesticar o homem - deverão substituí-lo em nome de um determinado projeto
de humanidade. Massa e humanização apresentam-se hoje como tópicos estreitamente
relacionados, e refletir sobre o que significa ser humano hoje e o que poderá significar
amanhã exige uma maior compreensão dos fenômenos de massa no século que se inicia.

Abstract
This work proposes to examine the phenomenon of human masses and their cultural, social
and political implications for the XXIth century. Taking as its point of depart Elias Canetti’s
classic essay Mass und Macht (1960), the study continues with an examination of two texts
by Peter Sloterdijk, Regeln für den Menschenpark (1999) and Die Verachtung der Massen
(2000), and seeks to clarify the transformations of the concept of mass between these two
authors, from Canetti’s black and molar mass to the gaseous and colorful mass of
Sloterdijk. Without the pretension of examining the concept of mass through the whole
history of political philosophy, its aim is to make clear how the reflection on the nature, the
potential and risks of the masses has an increasingly important role in thinking about
contemporary politics and culture. The disastrous experiences of the great world wars has
shown the urgency of a serious analysis of the directed or spontaneous conduct of the
masses, especially for those who want to think about what the ideas of democracy or
humanity can still mean today. If, as Sloterdijk remarked, humanism is no longer capable
of domesticating contemporary man, as he is increasingly bombed by brutal media, other
antropotechniques – more effective than the old humanism to attain human domesticating –
should replace it in the name of a particular project of humanity. Mass and humanization
present themselves today as closely related topics, and to reflect about what it means to be
human today and what could that mean tomorrow requires greater understanding of the
phenomena of mass in the century that begins.
11

Ich sah Masse um mich, aber ich sah auch Masse in mir
Eu vi a massa ao meu redor, mas eu também vi a massa dentro de mim
Elias Canetti 1

Die Wüste wächst: weh Dem, der Wüsten birgt!


O deserto cresce: ai daquele que oculta desertos!
Nietzsche 2

1
CANETTI, Elias. Die Fackel im Ohr. Lebensgeschichte 1921-1931. Uma luz em meu ouvido. História de
uma vida.
2
NIETZSCHE, Friedrich. Also sprach Zarathustra. Ein Buch für Alle und Keinen. Assim falou Zaratustra.
Um livro para todos e para ninguém.
13

Introdução

O século XXI nasce com o grande desafio de compreender o fenômeno da

multidão. Desde o século XIX, com o surgimento da sociedade industrial, o pensamento

ocidental enfrenta esse desafio com significativa preocupação. O comportamento das

massas humanas instiga os pensadores desde o alvorecer da filosofia ocidental, entretanto,

somente há muito pouco tempo tem conseguido angariar o devido reconhecimento. Desde

que Platão, olhando para o demos ateniense, ressaltava o perigo de uma multidão irracional

e ignorante sempre inclinada a transformar a democracia em tirania, os pensadores tendem

a reagir com repúdio ao desafio de compreender teoricamente as massas. Uma tentativa de

reconhecimento se inicia em meados do século XIX, estendendo-se pelo século XX, em

duas frentes: por um lado, surge uma psicologia das massas (presente em obras de Gabriel

Tarde, Gustave Le Bon, Sigmund Freud, Hannah Arendt, Ortega y Gasset); por outro lado,

o tema recebe atenção na literatura3 (Victor Hugo, Charles Baudelaire, Edgar Allan Poe).

Mas é apenas em 1960, com a obra Massa e Poder de Elias Canetti, que o desafio

filosófico de compreender as multidões ganha uma abordagem inovadora. O pensamento

de Elias Canetti está ligado as mais tormentosas experiências de multidões da história da

humanidade, as grandes guerras do século XX. Peter Sloterdijk, filósofo alemão, em seu

ensaio O Desprezo das Massas (2000), recupera a preocupação de Elias Canetti na

perspectiva do final do século XX. Dessa forma, Sloterdijk nos oferece uma atualização da

3
“Nenhuma questão se apresenta mais carregada de compromissos para os literatos do século XIX do que a
multidão. Num momento em que o hábito de leitura se espalhava por todas as classes sociais, esse público em
formação fazia uma exigência: encontrar sua imagem nos romances que lia. Entre outros, Victor Hugo,
Baudelaire, Zola e Eugène Sue, na França, e Charles Dickens e Edgar Allan Poe, na Inglaterra, preencheram
essa expectativa oferecendo à sociedade o espetáculo de sua própria vida”. BRESCIANI, Maria Stella
Martins. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza, p 7.
14

crítica de Canetti, meio século depois, expondo como a direção das massas humanas ainda

é um dos problemas centrais da política e da cultura modernas.

A presente dissertação pretende empreender uma análise filosófica do conceito de

multidão na atualidade, visando compreender o fenômeno contemporâneo das massas

humanas e algumas de suas mais relevantes implicações éticas, culturais e políticas para o

século XXI, principalmente no que concerne a conceitos como democracia, identidade e

humanidade.

O primeiro capítulo pretende reconstruir o conceito de massa fundamentado

prioritariamente na abordagem de Elias Canetti em Massa em Poder. Serão analisadas as

características sociais e histórias que permitem uma transformação da massa negra e molar

da primeira metade do século XX, na massa gasosa e colorida, segundo a interpretação que

Sloterdijk propõe em seu livro O desprezo das massas, principalmente em sua organização

em função de seus diferentes regimes de afeto (descarga e entretenimento). Pretende-se

evidenciar a coerência da construção do conceito contemporâneo de massa midiatizada, e

mostrar em que medida sua estrutura já está antecipadamente caracterizada em Massa e

Poder.

O segundo capítulo apresenta o problema objetivo de reconhecimento que envolve

qualquer abordagem do conceito de massa. Ao se constatar a ausência de uma abordagem

teórica do conceito de massa no pensamento ocidental, mostrar-se-á de que formas as

próprias características da massa contribuem para a recusa de seu reconhecimento. O

problema não-resolvido de reconhecimento traduz-se no desprezo da massa como conceito

e como problema que deva ser tratado positivamente. Com a revolução industrial e o

aumento expressivo e cada vez maior do número das multidões, tornou-se imprescindível

aos pensadores buscar compreender as massas. Porém, as tentativas de compreensão não se


15

mostram suficientemente críticas, de modo que o antigo desprezo das massas é meramente

invertido, transformando-se em adulação das massas. Ao mobilizar idéias e discursos em

favor de tentar superar o desprezo, mas sem uma crítica funcional do fenômeno da massa,

acaba-se por iniciar na modernidade um programa de desenvolvimento da própria

desprezabilidade.

No terceiro capítulo, analisar-se-á o roteiro histórico do desprezo na modernidade,

ou, como Sloterdijk o denomina: o grande projeto moderno de desenvolver a massa como

sujeito. Através de um exame dos comentários de Sloterdijk sobre Hobbes, Spinoza, Hegel,

Marx, Nietzsche e Heidegger, busca-se esclarecer como o movimento de reconhecimento

das massas atinge seu ponto crítico na cultura contemporânea de massas midiáticas, sob a

forma de uma aniquilação das diferenças, e em que medida esse processo é tomado como

movimento democrático.

No quarto capítulo, pautando-se do texto Regras do Parque Humano, de Sloterdijk,

examina-se a relação entre a cultura de massas e os processos de humanização. O projeto

da modernidade de desenvolver a massa como sujeito está profundamente ligado às

definições criadas pelo gênero humano para se autocompreender e gerenciar seu futuro

enquanto humanidade.

Em conclusão, espera-se deixar mais evidente a relevância do conceito de massa no

século XXI, sem a pretensão de resolver o aparentemente insolúvel problema objetivo do

reconhecimento. Pretende-se ter mobilizado, através dos principais autores citados, Canetti

e Sloterdijk, um arcabouço teórico suficiente para dar consistência ao desafio filosófico de

compreender as multidões humanas.


17

I - Massa como conceito

Eine ebenso rätselhafte wie universale Erscheinung ist die Masse,


die plötzlich da ist, wo vorher nichts war. Einige wenige Leute
mögen beisammen gestanden haben, fünf oder zehn oder zwölf,
nicht mehr. Nichts ist angekündigt, nichts erwartet worden. Plötzlich
ist alles schwarz von Menschen. Von allen Seiten strömen andere
zu, es ist, als hätten Straβen nur eine Richtung. Viele wissen nicht,
was geschehen ist, sie haben auf Fragen nichts zu sagen; doch haben
sie es eilig, dort zu sein, wo die meisten sind. Es ist eine
Entschlossenheit in ihrer Bewegung, die sich vom Ausdruck
gewöhnlicher Neugier sehr wohl unterscheidet. Die Bewegung der
einen, meint man, teilt sich den anderen mit, aber das allein ist es
nicht: sie haben ein Ziel. Es ist da, bevor sie Worte dafür gefunden
haben: das Ziel ist das schwärzeste – der Ort, wo die meisten
Menschen beisammen sind.
Elias Canetti, Mass und Macht 4

Die aktuellen Massen haben im wesentlichen aufgehört,


Versammlungs- und Auflaufmassen zu sein; sie sind in ein Regime
eingetreten, in dem der Massencharakter nicht mehr im physischen
Konvent, sondern in der Teilnahme an Programmen von
Massenmedien zum Ausdruck kommt.
5
Peter Sloterdijk, Die Verachtung der Massen

A aglutinação, a multidão que surge do nada, é o fenômeno da massa. Entretanto,

esse fenômeno libertou-se, por assim dizer, de seu aspecto físico nos dias atuais. Segundo

4
“Um fenômeno tão enigmático quanto universal é o da massa que repentinamente se forma onde, antes, nada
havia. Umas poucas pessoas se juntam – cinco, dez ou doze, no máximo. Nada foi anunciado; nada é
aguardado. De repente, o local preteja de gente. As pessoas afluem, provindas de todos os lados, e é como se
as ruas tivessem uma única direção. Muitos não sabem o que aconteceu e, se perguntados, nada têm a
responder; no entanto, têm pressa de estar onde a maioria está. Em seu movimento, há uma determinação que
difere inteiramente da expressão da curiosidade habitual. O movimento de uns – pode-se pensar –comunica-se
aos outros; mas não é só isso: as pessoas têm uma meta. E ela está lá antes mesmo que se encontrem palavras
para descrevê-la: a meta é o ponto mais negro – o local onde a maioria encontra-se reunida”. CANETTI,
Elias. Masse und Macht, Hamburg, Claassen, 1960, p 10-11. Tradução brasileira de Sérgio Tellaroli: Massa e
Poder, São Paulo, Companhia das letras, 1995, p 14-25.
5
“As massas atuais pararam essencialmente de ser massas de reuniões e ajuntamentos; elas entraram num
regime no qual o caráter de massa não se expressa mais na reunião física, mas na participação em programas
de meios de comunicação de massa”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen: Versuch über
Kulturkämpfe in der modernen Gesellschaft, Frankfurt, Suhrkamp, p 16. Tradução brasileira de Claudia
Cavalcanti: O Desprezo das Massas: ensaio sobre lutas culturais na sociedade moderna, São Paulo, Estação
Liberdade, 2002, p 20-21.
18

Sloterdijk, as massas da atualidade não têm mais como característica principal a reunião

física de muitos, mas sim a participação desses muitos em programas de meios de

comunicação de massa. Aparentemente, essa multidão moderna parece um conceito vazio,

visto que o fenômeno da massa nos dias atuais perde sua característica essencial de

visibilidade, o pretume de gente, como descreve Canetti. A visibilidade da massa diminuiu,

mas essa propriedade não é mais essencial para o conceito. Ou seja, a massa existe na

atualidade sem que seja necessário que uma multidão se reúna em um lugar físico. Com

esta alteração do conceito perdem-se, também, várias outras características apontadas por

Canetti, o que é compreensível, pois a sociedade da primeira metade do século XX

apresenta grandes diferenças em relação à atual, e é justo que o conceito de massa seja

reformulado, sem, entretanto, deixar de corresponder a uma multidão de pessoas.

Para Canetti, o principal sentimento experimentado por um indivíduo no interior da

massa é o de pertencer a um corpo único. Quanto mais densa a massa, quanto maior o

número de pessoas se reunindo em um lugar, maior é esse sentimento, que tem como

principal orientação as próprias experiências corporais das pessoas. Contudo, hoje, o

indivíduo não precisa mais do contato físico para sentir-se parte de um único corpo. Neste

sentido, diz Sloterdijk:

Aus der Auflaufmasse ist eine programmbezogene Masse geworden


– und diese hat sich definitionsgemäβ von der physischen
Versammlung an einem allgemeinsamen Ort emanzipiert. In ihr ist
man als Individuum Masse. Man ist jetzt Masse, ohne die anderen zu
sehen. Die Folge davon ist, daβ sich die heutigen, wenn man so will:
die postmodernen Gesellschaften nicht mehr primär an
Körpererfahrungen ihrer selbst orientieren, sondern sich nur über
massenmediale Symbole, über Diskurse, Moden, Programme und
und Prominenzen selbst beobachten. Hierin hat der
Massenindividualismus unserer Epoche seinen systemischen Grund.
19

Er ist der Reflex dessen, daβ man heute mehr als je zuvor Masse ist,
auch ohne sich als solche zu versammeln.6

Não existe mais a necessidade de um lugar físico para a reunião de todos para a

constituição da massa, pois a massa de ajuntamento tornou-se uma massa relacionada a um

programa. A participação nos programas de comunicação em massa permite uma

interiorização desta, ou seja, agora é-se massa sem que se veja os outros (man ist jetzt

Masse, ohne die anderen zu sehen) . Dessa forma, as multidões não são mais orientadas

pelas experiências corporais dos indivíduos, mas sim por meio de símbolos das mídias de

massa, de modas, programas e celebridades. É através desses programas de comunicação

que percebemos a quase onipresença de um pensamento característico de massa (ainda aos

moldes de Canetti) nas sociedades pós-modernas (usando o termo do próprio Sloterdijk),

constituindo, entretanto, uma multidão invisível na rua, não necessariamente reunida em

um local.

Em Canetti, temos a massa como pretume de gente, como um ajuntamento molar e

negro. Sloterdijk aponta essas características para contrapô-las, dizendo que a massa pós-

moderna é, ao contrário, gasosa e colorida. Para definir com clareza a diferença entre esses

conceitos de massa, citamos o próprio Sloterdijk:

Will man die Differenz zwischen dem Zeitalter Canettis und der
Gegenwart auf einen Begriff bringen, so lieβe sich sagen: Weil heute
die Masse über das Stadium ihrer Versammlungsfähigkeit hinaus ist,
hat das Programm-Prinzip das Führer-Prinzip ersetzen müssen.
Folglich genügt es, den Unterschied zwischen einem Führer und
einem Programm zu erklären, um offenzulegen, was die klassisch-
6
“A massa de ajuntamento tornou-se uma massa relacionada a um programa – e este se emancipou, de acordo
com a definição, de reunião física num local comum a todos. Nela, como indivíduo, se é massa. Agora se é
massa sem que se veja os outros. A conseqüência disso é que as sociedades de hoje – ou se pode dizer, as pós-
modernas – não mais se orientaram primariamente pelas suas próprias experiência corporais, mas se observam
apenas por meio de símbolos das comunicações de massa, de discursos, modas, programas e celebridades.
Aqui o individualismo de massa de nossa época tem seu motivo sistêmico. É o reflexo daquilo que hoje, mais
do que nunca, é massa, também sem se reunir como tal”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p
16. Tradução: p 20-21.
20

moderne versammelte schwarze Masse von der post-modernen


mediatisierten, aufgesplitterten bunten Masse unterscheidet. Es geht
hier um den Unterschied zwischen Entladung und Unterhaltung.
Dieser ist es, der auch die Differenz zwischen dem faschistoiden und
dem massendemokratischen Modus der Affekt-Regie von
kommunikationsintensiven Groβgesellschaften mitbestimmt.7

O princípio do programa (Programm-Prinzip) substitui para as massas

contemporâneas o papel exercido pelo princípio do líder (Führer-Prinzip) nas massas

clássico-modernas. Ao perder a capacidade de reunião (ou melhor, ao superá-la), as massas

perdem as orientações corporais como principal característica de sua constituição. Por isso,

a descarga (Entladung) tem que ser substituída pelo entretenimento (Unterhaltung). A

importância da descarga para a constituição da massa havia sido apresentada no seguinte

trecho de Canetti:

Der wichtigste Vorgang, der sich innerhalb der Masse abspielt, ist
die Entladung. Vorher besteht die Masse eigentlich nicht, die
Entladung macht sie erst wirklich aus. Sie ist der Augenblick, en
dem alle, die zu ihr gehören, ihre Verschiedenheiten loswerden und
sich als gleiche fühlen.8

A descarga é a eclosão do sentimento de ausência de distâncias entre os indivíduos,

ausência de diferenças (determinadas pela hierarquia, posição social, propriedade), ou

ainda, sentimento de tornar-se uma multidão de iguais. Na vida ordinária, as diferenças

existem por toda parte, criando distâncias entre os indivíduos, criando cargas. Apenas na

7
“Caso se queira definir a diferença entre a época de Canetti e o presente, então poderia dizer o seguinte:
como hoje a massa ultrapassou o estágio de capacidade de reunião, o princípio do programa teve de substituir
o princípio do líder. Por conseqüência, é suficiente explicar a diferença entre um líder e um programa para
evidenciar o que diferencia a massa preta clássico-moderna reunida da massa pós-moderna midiatizada,
estilhaçada e colorida. Trata-se aqui da diferença entre descarga e entretenimento. É também ela que
determina a diferença entre o modo fascistóide e o democrático de massa da direção de afetos que vivenciam
as grandes sociedades de comunicação intensa.”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 20.
Tradução: p 24.
8
“O mais importante acontecimento a desenrolar-se no interior da massa é a descarga. Anteriormente a ele, a
massa ainda não existe de fato. É somente a descarga que efetivamente a constitui. Trata-se do momento em
que todos os que a compõem desvencilham-se de suas diferenças e passam a sentir-se iguais”. CANETTI,
Elias. Masse und Macht, p 12. Tradução: p 16.
21

multidão é possível prover um alívio dessas cargas (por mais que possa ser uma ilusão

meramente momentânea). A descarga é o que transforma a reunião de seres humanos em

massa, como escreve Canetti:

Nur alle zusammen können sich von ihren Distanzen befreien.


Genau das ist es, was in der Masse geschieht. In der Entladung
werden die Trennungen abgeworfen und alle fühlen sich gleich. In
dieser Dichte, da kaum Platz zwischen ihnen ist, da Körper sich an
Körper presst, ist einer dem anderen so nahe wie sich selbst.
Ungeheuer ist die Erleichterung darüber. Um dieses glücklichen
Augenblickes willen, da keiner mehr, keiner besser als der andere
ist, werden die Menschen zur Masse.9

O momento de descarga é essencial para que o ajuntamento de pessoas torne-se

realmente massa e esse momento só esse possível graças à inversão do temor do contato

vivenciada pelo ajuntamento físico das pessoas. Canetti inicia Massa e Poder descrevendo

o temor do contato como um dos maiores medos humanos:

Nichts fürchtet der Mensch mehr als die Berührung durch


Unbekanntes. Man will sehen, was nach einem greift, man will es
erkennen oder zumindest einreihen können. Überall weicht der
Mensch der Berührung durch Fremdes aus. Nachts oder im Dunkel
überhaupt kann der Schrecken über eine unerwartete Berührung sich
ins Panische steigern. Nicht einmal die Kleider gewähren einem
Sicherheit genug, wie leicht sind sie zu zerreiβen, wie leicht ist es,
bis zum nackten, glatten, wehrlosen Fleisch des Angegriffenen
durchzudringen.10

9
“Somente a união de todos é capaz de promover-lhes a libertação das cargas da distância. E é precisamente
isso o que acontece na massa. Na descarga, deitam-se abaixo as separações, e todos se sentem iguais. Nessa
sua concentração, onde quase não há espaço entre as pessoas, onde os corpos se comprimem uns contra os
outros, cada um encontra-se tão próximo do outro quanto de si mesmo. Enorme é o alívio que isso provoca. É
em razão desse momento feliz, no qual ninguém é mais ou melhor que os outros, que os homens
transformam-se em massa ”. CANETTI, Elias. Masse und Macht, p 13. Tradução: p 17.
10
“Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido. Ele quer ver aquilo que o está
tocando; quer ser capaz de conhecê-lo ou, ao menos, de classificá-lo. Por toda a parte, o homem evita o
contato com o que lhe é estranho. À noite ou no escuro, o pavor ante o contato inesperado pode intensificar-se
até o pânico. Nem mesmo as roupas proporcionam segurança suficiente – quão facilmente se pode rasgá-las,
quão fácil é avançar até a carne nua, lisa, indefesa da vítima”. CANETTI, Elias. Masse und Macht, p 9.
Tradução: p 13.
22

Para Canetti, o medo capital do ser humano é o medo do contato com o

desconhecido, a tal ponto que todas as distâncias estabelecidas pelo homem em torno de si

têm como origem esse temor. Mesmo no contato com pessoas desejadas, sendo

desconhecidas, esse medo deve ser constantemente superado. O fundamento do fenômeno

da massa está na inversão desse medo, como descreve Canetti:

Es ist die Masse allein, in der der Mensch von dieser


Berührungsfurcht erlöst werden kann. Sie ist die einzige Situation, in
der diese Furcht in ihr Gegenteil umschlägt. Es ist die dichte Masse,
die man dazu braucht, in der Körper an Körper drängt, dicht auch in
ihrer seelischen Verfassung, nämlich so, daβ man nicht darauf
achtet, wer es ist, der einen „bedrängt“. Sobald man sich der Masse
einmal überlassen hat, fürchtet man ihre Berührung nicht. In ihrem
idealen Falle sind sich alle gleich. Keine Verschiedenheit zählt, nicht
einmal die der Geschlechter. Wer immer einen bedrängt, ist das
gleiche wie man selbst. Man spürt ihn, wie man sich selber spürt. Es
geht dann alles plötzlich wie innerhalb eines Körpers vor sich.
Vielleicht ist dies einer der Gründe, warum die Masse sich so dicht
zusammenzuziehen sucht: sie will die Berührungsfurcht der
einzelnen so vollkommen wie nur möglich loswerden. Je heftiger die
Menschen sich aneinanderpressen, um so sicherer fühlen sie, daβ sie
keine Angst voreinander haben. Dieses Umschlagen der
Berührungsfurcht gehört zur Masse.11

A inversão do temor do contato propicia o momento de descarga, nas qual os seres

humanos efetivamente se tornam massa. Quanto mais densa a massa, mais forte é esse

sentimento de estar no interior de um único corpo. Assim como subitamente “tudo preteja

de gente” (Plötzlich ist alles schwarz von Menschen), subitamente tudo se passa como

11
“Somente na massa é possível ao homem liberta-se do temor do contato. Tem-se aí a única situação na qual
esse temor transforma-se no seu oposto. E é da massa densa que se precisa para tanto, aquela na qual um
corpo comprime-se contra o outro, densa inclusive na sua constituição psíquica, de modo que não atentamos
para quem é que nos ‘comprime’. Tão logo nos entregamos à massa não tememos o seu contato. Na massa
ideal, todos são iguais. Nenhuma diversidade conta, nem mesmo a dos sexos. Quem quer que nos comprima é
igual a nós. Sentimo-lo como sentimos a nós mesmos. Subitamente, tudo que se passa então como que no
interior de um único corpo. Talvez essa seja uma das razões pelas quais a massa busca concentrar-se de
maneira tão densa: ela deseja libertar-se tão completamente quanto possível do temor individual do contato.
Quanto mais energicamente os homens se apertarem uns contra os outros, tanto mais seguros eles se sentiram
de não se temerem mutuamente. Essa inversão do temor do contato é característica da massa”. CANETTI,
Elias. Masse und Macht, p 10. Tradução: p 14.
23

dentro de um único corpo (Es geht dann alles plötzlich wie innerhalb eines Körpers vor

sich). Sem a reunião física das pessoas em um pretume de gente, já não é mais possível o

momento de descarga. Possivelmente, essa constatação seria suficiente para se afirmar que

não existe o fenômeno de massa sem o momento da descarga, e que, portanto, esse seria

um fenômeno social que teve seu apogeu no século XX, chegando a seu fim quando a

massa já não conseguia mais se reunir na rua. Porém, seguindo a perspectiva de Sloterdijk,

convém analisar se é possível que algo diferente seja capaz de proporcionar a uma multidão

de pessoas o alívio obtido no momento de descarga. Se for possível que algo substitua esse

momento essencialmente corporal, será possível caracterizar um fenômeno de massa sem

que seja necessário que esta apareça fisicamente, ou seja, que as pessoas comprimam, de

fato, seus corpos uns nos outros.

O princípio de líder (Führer-Prinzip) é uma identificação subjetiva da massa em um

indivíduo, que cumpre seu papel como símbolo. Os líderes fascistas ou os populistas são

grandes exemplos desse processo de identificação, que não surge, necessariamente, do

interior da massa. A multidão pode ser conduzida (ou mesmo, manipulada) a se reconhecer

subjetivamente em seus líderes. Sloterdijk destaca esse princípio da seguinte forma:

Für keinen Personenkult dieses Jahrhunderts gilt die Formel von der
horizontalen Idealisierung mehr als für die Hitlermanie, die ihrer
Substanz nach nie etwas anderes war als eine Selbstanbetung der
lüsternsten Mittelmäβigkeit mit Hilfe der Führergestalt als eines
öffentlichen Kultmediums.12

A vulgaridade de Hitler e, ainda assim, a sua posição destacada de liderança,

constituía quase que um espelho para a massa, um narcisismo vulgar. O partido nazista

12
“Para nenhum culto à personalidade deste século vale mais a fórmula da idealização horizontal do que para
a hitlermania, que, de acordo com a sua substância, nunca foi outra coisa senão uma auto-adoração da mais
lasciva mediocridade, com ajuda da figura do líder como um meio público de culto”. SLOTERDIJK, Peter.
Die Verachtung der Massen, p 23-24. Tradução: p 28.
24

fazia questão de afirmar e divulgar para o povo alemão que, onde Hitler está, preteja de

gente, criando assim, nas imaginações da massa, um reconhecimento do líder como

sublimação da nação. As manifestações em Nurembergue são mais que evidentes quanto a

este ponto, encontrando na obra cinematográfica Triumph des Willens (O Triunfo da

Vontade, 1935), de Leni Riefenstahl, sua ilustração midiática. O esforço de criação de

imagens capazes de reforçar a identificação das massas com o Führer é a principal

característica de Triumph des Willens, acentuando sua relevância como primeira obra

cinematográfica de propaganda política ao modo de uma produção horizontal dos meios de

comunicação (trataremos da diferença entre horizontalidade e verticalidade dos meios de

comunicação mais a frente). Sloterdijk enfatiza o papel midiático de Hitler no seguinte

trecho:

Hans Pfitzner hat das Hitler-Phänomen abschlieβend begriffen, als


er wie beiläufig von dem Führer als einem „entfesselten Prometeus“
sprach – ein Wort, in dem die Affaire der Massen mit ihrem Helden
unter den richtigen, den endgültigen und den hinreichend komischen
Titel gebracht ist. Hitler war in der Tat das unverwechselbare
Produkt einer Figurenerfindung nach dem massenmedialen,
horizontal projektiven Modus – und genau in dieser Eigenschaft, als
carlylisches Phantom, bleibt er zu erkennen als Träger einer
Funktion, die auch nach der Umstellung von politischer Entladung
auf unpolitische Unterhaltung für den Affekhaushalt liberaler
Massendemokratien charakteristisch geblieben ist.13

A imagem do Führer é produto de um modo horizontal de comunicação de massa.

O fascínio que essa imagem exerce sobre a multidão funciona como um espectro carlylico

13
“Hans Pfitzner compreendeu definitivamente o fenômeno Hitler quando, quase acidentalmente, falou do
Führer como um ‘Prometeu desacorrentado’ – uma palavra na qual o caso de amor das massas com seu herói
é mostrado com seu título correto, definitivo e suficientemente cômico. De fato, Hitler foi o inconfundível
produto de uma invenção de figuras do modo de projeção horizontal dos meios de comunicação de massa – e
justamente nessa qualidade, como espectro carlylico, ele permanece reconhecível como portador de uma
função que também, depois da conversão da descarga política para o entretenimento não-político, permaneceu
característica da administração dos afetos de democracias de massa liberais”. SLOTERDIJK, Peter. Die
Verachtung der Massen, p 28. Tradução: p 34.
25

(als carlylisches Phantom). A referência feita aqui a Thomas Carlyle remete a uma

afirmação de Robert Michels acerca do fascismo:

Der Fascismus ist absolut carlylisch. Selten hat die lange und krause
Geschichte des modernen Parteienwesens uns ein so prototypisches
Beispiel für die inneren Bedürfnisse der Masse zu hero worship
gegeben, wie es der Fascimus bietet. Absolutes, blindes Vertrauen
und glühende Verehrung bringt diese Partei ihrem Führer, dem
Duce, entgegen.14

Segundo Michels, o fascismo é um excelente exemplo da função do Hero-worship

como necessidade interna da massa. Hero-worship (culto ao herói) é uma expressão de

Thomas Carlyle usada para identificar a adoração dos heróis na história15. Para Carlyle, a

história do mundo é feita apenas por alguns grandes heróis16. A perspectiva de Carlyle é

semelhante a uma característica da massa negra e molar de Canetti, que pode fazer da

figura de um líder sua meta, o ponto mais negro para onde a multidão se dirige. A

14
“O fascismo é absolutamente carlylico. Raramente a longa e confusa história do sistema partidário moderno
nos deu um exemplo tão prototípico das necessidades internas da massa para o hero worship como oferece o
fascismo. Confiança absoluta, cega, e adoração ardente levam esse partido de encontro ao seu líder, o Duce”.
MICHELS, Robert. Masse, Führer, Intellektuelle. Politisch-soziologische Aufsätze 1906-1933, Frankfurt e
Nova Iorque, 1987, p 293. Tradução IN: Desprezo das Massas, p 26-27.
15
“Faith is loyalty to some inspired Teacher, some spiritual Hero. And what therefore is loyalty proper, the
life-breath of all society, but an effluence of Hero-worship, submissive admiration for the truly great? Society
is founded on Hero-worship (…) Society everywhere is some representation, not insupportably inaccurate, of
a graduated Worship of Heroes—reverence and obedience done to men really great and wise. Not
insupportably inaccurate, I say! They are all as bank-notes, these social dignitaries, all representing gold;—
and several of them, alas, always are forged notes. We can do with some forged false notes; with a good many
even; but not with all, or the most of them forged! No: there have to come revolutions then; cries of
Democracy, Liberty and Equality, and I know not what:—the notes being all false, and no gold to be had for
them, people take to crying in their despair that there is no gold, that there never was any! "Gold," Hero-
worship, is nevertheless, as it was always and everywhere, and cannot cease till man himself ceases.”
CARLYLE, Thomas. On Heroes, Hero-Worship, and the Heroic in History, § 1, IN Project Gutenberg:
http://www.gutenberg.org/files/1091/1091-h/1091-h.htm. O culto ao herói é fundamental para Carlyle, de tal
forma que a própria sociedade é fundada em função de um culto ao herói, que, segundo ele, existe sempre e
em qualquer lugar, e só acabaria quando o próprio homem acabasse.
16
“For, as I take it, Universal History, the history of what man has accomplished in this world, is at bottom
the History of the Great Men who have worked here. They were the leaders of men, these great ones; the
modelers, patterns, and in a wide sense creators, of whatsoever the general mass of men contrived to do or to
attain; all things that we see standing accomplished in the world are properly the outer material result, the
practical realization and embodiment, of Thoughts that dwelt in the Great Men sent into the world: the soul of
the whole world's history, it may justly be considered, were the history of these” CARLYLE, Thomas. On
Heroes, Hero-Worship, and the Heroic in History, § 16, IN Project Gutenberg:
http://www.gutenberg.org/files/1091/1091-h/1091-h.htm.
26

necessidade da massa de fazer sobressair o herói como um símbolo avança por sobre

qualquer percepção da realidade, transformando seu Führer, por mais medíocre que

pudesse ser em suas reais aptidões, em um titã desacorrentado. Esse idealismo de massa é a

sujeição da percepção à projeção, um regime de afetos narcisista. A massa, em busca da

descarga, não precisa se ater as qualidades reais do objeto admirado, basta que ele sirva

como símbolo para que a massa possa idealizá-lo e, em certo sentido, transfigurá-lo. O

absolutamente carlylico é o elo de ligação da massa negra e molar para a massa

contemporânea e o Hero-worship é a característica que vai permitir substituir a descarga

política pelo entretenimento não-político, de tal modo que toda a cultura das mídias de

massa possa ser classificada como absolutamente carlylica, como produtora de

celebridades, símbolos que atentem ao desejo da massa pelo seu herói.

O predicado absolutamente carlylico continuará sendo válido para o que Sloterdijk

denomina a administração dos afetos levada a cabo pelas democracias de massa liberais

(Affekhaushalt liberaler Massendemokratien). Neste sentido, os meios de comunicação

adulam a massa negra e molar por meio do princípio de líder. A massa colorida e

gaseiforme dos dias atuais é influenciada por esse mesmo “modo de produção horizontal”,

entretanto, o princípio é outro: o entretenimento.

Na ausência da presença física da massa, o entretenimento não-político deverá

substituir a descarga política. Sloterdijk destaca como apenas um indivíduo pode ser a meta

para onde a massa se dirige:

Wenn die erregten Massen ihrem Helden nachliefen, so glichen sie


den Menschen im Auflaufsog, von denen Canetti sagte: „... sie
haben ein Ziel. Es ist da, bevor sie Worte dafür gefunden haben: das
Ziel ist das schwärzeste ...“ Auch ein Einzelner vermag das Dasein
der Masse so bündig darzustellen, daβ er zum Kern des Auflaufs
27

werden kann. In einem Einzigen, einem solchen Führer, einem


Medienstar, ist in der Tat alles schwarz von Menschen.17

As pessoas que formam a massa têm uma mesma meta, um objetivo (sie haben ein

Ziel), diz Canetti. O objetivo é o pretume, o ponto mais negro, que para Canetti é o lugar

onde há mais seres humanos juntos (das Ziel ist das schwärzeste – der Ort, wo die meisten

Menschen beisammen sind). Se um único indivíduo pode apresentar o ser-o-aí da massa

(das Dasein der Masse), ele pode se tornar esse objetivo, ou seja, esse indivíduo se torna o

próprio lugar de referência para os muitos que constituem a massa humana. A massa corre

para seu herói, seja ele um líder político ou um astro da mídia (Medienstar). Esse culto ao

herói se mantém na massa contemporânea, porém o que se perde é a característica

eminentemente política do culto ao herói como líder pela massa negra e molar de Canetti,

como diz Sloterdijk:

In Horizontalresonnanzen der genannten Art gründet die funktionale


Kontinuität zwischen dem Führerkult der Entladungsmassen in der
ersten und dem Starkult der Unterhaltungsmassen in der zweiten
Hälfte unseres Jahrhunderts.18

O Hero-worship carlylico da massa da primeira metade do século XX é um culto ao

líder das massas em descarga (Führerkult der Entladungsmassen). Na segunda metade do

século XX, o Hero-worship se mantém, porém despolitizado, ou seja, torna-se um culto as

estrelas das massas de entretenimento (Starkult der Unterhaltungsmassen). As massas que

17
“Quando as massas agitadas correram atrás de seu herói, equipararam-se às pessoas na sucção do
ajuntamento, sobre as quais Canetti disse: “(...) elas têm um objetivo. Ele existe antes que tenham encontrado
palavras para ele: o objetivo é o mais negro (...).” Um indivíduo único também pode apresentar o estar-aí
[Dasein] da massa de forma tão concisa que pode tornar-se cerne do ajuntamento. Num único indivíduo, num
tal Führer, num astro da mídia, de fato fica tudo preto de gente”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der
Massen, p 28-29. Tradução: p 34-35.
18
“Em ressonâncias horizontais do tipo citado fundamenta-se a continuidade funcional entre o culto ao líder
pelas massas em descarga da primeira metade do século XX e o culto ao estrelismo pelas massas do
entretenimento na segunda metade”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 25. Tradução: p 30.
28

não são mais capazes de se reunir na rua correm (ou escorrem) em direção ao seu herói, o

ponto mais negro, mediante a participação nos meios de comunicação em massa.

Portanto, é o princípio do programa que rege as massas coloridas e gasosas da

contemporaneidade, em contraste com as massas negras e molares que são regidas pelo

princípio de líder. Muda-se o regime de afetos para a formação da massa, não há mais

descarga política, e sim entretenimento despolitizado. É através desse entretenimento que é

possível surgir o fenômeno da massa ao modo contemporâneo. O culto ao herói permite

que o lugar mais negro para onde as pessoas se dirigem seja um indivíduo, porém, para as

massas contemporâneas, esse indivíduo não precisa mais ser um líder assim como ela não

precisa mais necessariamente se reunir. Com a participação das pessoas em mídias de

comunicação de massa, o lugar mais negro para onde a massa se dirige não precisa mais ser

visto pelas pessoas na rua, ele pode aparecer para as pessoas sem que elas necessariamente

estejam reunidas corpo a corpo. Através dos meios de comunicação de massa, o Hero-

Worship é exercido muito mais intensamente de forma inversamente proporcional ao

sentimento que a massa tem si mesma enquanto uma multidão de pessoas com o mesmo

objetivo. Quem faz parte da massa contemporânea está virtualmente muito mais próximo

do lugar mais negro da aglomeração do que nunca seria possível estar na massa que se

reúne de fato. Dessa forma, o culto as estrelas das massas de entretenimento (Starkult der

Unterhaltungsmassen), onde o astro da mídia é o lugar mais negro, exerce um poder muito

mais intenso em detrimento do sentimento que a massa tem de si mesma enquanto uma

multidão.

Neste sentido, as mídias de massa permitem a formação de multidões com números

nunca antes imaginados e sequer possíveis para reuniões físicas. Porém, os milhões que

participam de um mesmo programa de comunicação em massa não são capazes de possuir


29

o mesmo sentimento de si enquanto multidão que aqueles milhares que participam de um

ajuntamento corpo a corpo, mesmo que cada uma das dezenas ou centenas de milhares de

pessoas esteja virtualmente muito mais próxima do seu herói, do seu astro da mídia, do que

a grande maioria dos que se reúnem na rua conseguem estar do ponto mais negro para onde

se dirigem, do seu objetivo, do seu líder. Sloterdijk expõe algumas conseqüências de uma

sociedade formada por mídias de massa:

Die durchmediatisierte Gesellschaft vibriert in einem Zustand, in


dem die Millionen nicht mehr als aktuell versammelte Totalität,
nicht mehr als konspiratives, zusammenströmendes und
losbrechendes Kollektivlebewesen schwarz, dicht, heftig in
Erscheinung treten können. Vielmehr erlebt sich heute die Masse
selbst nur noch in ihren Partikeln, den Individuen, die sich als
Elementarteilchen einer unsichtbaren Gemeinheit genau den
Programmen hingeben, in denen ihre Massenhaftigkeit und
Gemeinheit vorausgesetzt wird. Die Mehrheit der zeitgenössischen
Soziologen läβt sich von diesem Befund zu der Meinung verführen,
daβ das Zeitalter abgelaufen sei, in dem die Regie der Masse das
Zentralproblem moderner Politik und Kultur darstellte. Nichts
könnte falscher sein als diese Ansicht. Allerdings sind die
Medienmassen unter dem Einfluβ der Massenmedien zu bunten oder
molekularen Massen geworden. Es hat daher einen guten Sinn, wenn
die summarische wie die elaborierte Kulturkritik unserer Tage sich
vor allem mit dem Wechselspiel von Fernsehmassen und
Massenfernsehen anlegt.19

A massa atual só vivencia a si mesma através dos indivíduos que a constituem,

perdendo assim a sensação de ser um só corpo vivo da massa negra e molar. Esses

indivíduos são como partículas elementares de uma mesquinhez invisível (als

19
“Uma sociedade por demais midiatizada vibra num estado no qual os milhões não podem mais aparecer
negra, densa e impetuosamente como totalidade efetivamente reunida, não mais como seres vivos de um
coletivo que conspira, conflui e irrompe. Mais do que isso, hoje a massa vivencia a si própria somente em
suas partículas, os indivíduos, que como partículas elementares de uma vilania invisível se entregam
exatamente aos programas nos quais é pressuposto seu caráter de massa e vilania. A maioria dos sociólogos
contemporâneos deixa-se seduzir por essa averiguação achando que teria passado a época em que a direção da
massa representaria o problema central da política e da cultura modernas. Nada poderia ser mais errôneo do
que essa visão. Entretanto, as massas da mídia, sob a influência das mídias de massa, tornaram-se massas
coloridas ou moleculares. Por isso, faz sentido que tanto a sumária quanto a elaborada crítica cultural de
nossos dias se organize sobretudo com a reciprocidade das massas da televisão e televisões de massa”.
SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 19. Tradução: p 22-23.
30

Elementarteilchen einer unsichtbaren Gemeinheit), procurando participar justamente dos

programas de comunicação que assumem seu caráter de massa (Massenhaftigkeit) e

reforçam suas características mesquinhas (Gemeinheit). A massa negra e molar vivencia a

si mesma como algo que transcende a mera individualidade das pessoas que a formam.

Quando a massa surge, ela surge como que um outro ser com apetites e características

identificáveis para além da singularidade histórica ou social das pessoas que estão se

reunindo. Segundo Canetti, é o momento de descarga que propicia o aparecimento do

fenômeno (Erscheinung) de massa, é ele que faz desaparecer as diferenças verticais entre

os indivíduos, ou, ao menos, engendra a sensação de que essas diferenças desapareceram e

que todos são iguais. A massa atual se forma em função do entretenimento: na participação

em programas de entretenimento de mídias de massa nos quais o indivíduo sente

desaparecer as diferenças verticais. Através do culto as celebridades da mídia (Starkult der

Unterhaltungsmassen), sejam modas, programas, astros pop, o indivíduo se torna massa,

sem necessariamente ver algum dos milhões de outros indivíduos (man ist jetzt Masse,

ohne die anderen zu sehen) que constituem a multidão da qual participa.

Esse desaparecer da massa como pretume de gente, como multidão reunida e

vivenciada corporalmente, leva a maioria dos sociólogos contemporâneos a desacreditar

que a direção da massa ainda seja um dos principais problemas da política e da cultura

contemporânea, o que seria um erro grosseiro de percepção, afirma Sloterdijk. Segundo ele,

a massa não se retirou do palco nem deixou de ser um dos personagens principais da

sociedade contemporânea, ela se tornou invisível metamorfoseando-se, sob a influência

determinante das mídias de massa (Massenmedien), em uma massa colorida, molecular (ou

gasosa), em massas da mídia (Medienmassen). É por essa razão, prossegue Sloterdijk, que

toda a crítica cultural contemporânea (sucinta ou sofisticada) tem que lidar com a interação:
31

massas da televisão / televisões de massa. Neste sentido, a direção das massas teria se

tornado um problema ainda mais relevante e complexo na atualidade. A massa molecular

permite que números cada vez maiores de pessoas façam parte dela, ao mesmo tempo em

que entorpece cada vez mais os indivíduos no seu entretenimento não-político, como

escreve Sloterdijk:

Bei Massen, die nicht mehr als aktuell versammelte


zusammenkommen, liegt es nahe, daβ ihnen mit der Zeit das
Bewuβtsein ihrer politischen Potenz verloren geht. Sie empfinden
das Gefühl ihrer Schlagkraft, den Rausch ihres Zusammenströmens
und ihrer Vollmacht, zu fordern und zu stürmen, nicht mehr so wie
damals in den Hochzeiten der Aufläufe und Aufmärsche. Die
postmoderne Masse ist Masse ohne Potential, eine Summe aus
Mikroanarchismen und Einsamkeiten, die sich kaum noch erinnert
an die Zeit, in der sie – angereizt und zu sich gebracht durch ihre
Vorsprecher und Generalsekretäre – als ausdrucksschwangeres
Kollektiv Geschichte machen wollte und sollte.20

Assim, para Sloterdijk, a massa pós-moderna é massa sem potencial. A ausência da

reunião física da massa a faz esquecer de que ela, uma multidão de milhares ou milhões,

possui força e capacidade de ação política. Inversamente, é a recordação do tempo em que

as massas tinham potencial de fazer história que contribui para as afirmações daqueles que

dizem que a era das massas encontrou seu fim. Seus motivos são perceptíveis, já que a

massa contemporânea é irreconhecível enquanto massa negra e molar, principalmente no

que concerne ao seu potencial político. A massa colorida e gasosa, como diz Sloterdijk, é

apenas uma soma de microanarquias e solidões moleculares, sem comparação com a massa

de outrora que se vivenciava de fato como ajuntamento na rua. Mas não se pode perder de

20
“Massas que não se reúnem mais efetivamente tendem com o tempo a perder a consciência de sua potência
política. Elas não sentem mais como antes sua força de combate, o êxtase de sua confluência e de seu pleno
poder de exigir e tomar de assalto, como nos tempos áureos dos ajuntamentos e concentrações. A massa pós-
moderna é massa sem potencial, uma soma de microanarquias e solidões que mal lembra o tempo em que –
incitada e conscientizada pelos seus porta-vozes e secretários-gerais – deveria e queria fazer história como
coletivo prenhe de expressão”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 18. Tradução: p 22.
32

vista que essa massa contemporânea é resultado de um processo de transformação social e

cultural, portanto histórico, da massa clássico-moderna.

Não foge à percepção de Canetti, já em Masse und Macht, em uma rápida

observação, a forma do fenômeno de massa que se tornou a regra nos dias atuais, as

Medienmassen, embora ele não a tenha caracterizado como invisível (que seria a

conseqüência de uma massa gasosa) e não tenha se demorado em sua análise. Convém,

primeiramente, examinar o que Canetti designou por “massas invisíveis” (unsichtbaren

Massen) para diferenciar essa sua caracterização da que Sloterdijk aplica às massas

contemporâneas. Algumas das massas invisíveis em Canetti são as massas imaginadas, não

propriamente existentes: os mortos invisíveis (unsichtbaren Toten), as multidões de

demônios ou anjos presentes em diversos credos religiosos. Sobre o uso que as religiões

fazem dessas concepções de massas invisíveis, Canetti escreve:

Von solchen Vorstellungen unsichtbarer Massen ist der Geist der


Gläubigen erfüllt. Ob es die Toten oder die Heiligen sind, man denkt
sie sich in groβen, konzentrierten Scharen. Man möchte sagen, daβ
die Religionen mit diesen unsichbaren Massen beginnen. [...] An die
unsichtbaren Massen, die sie durch ihre Predigt am Leben erhalten,
hängen sich die Ängste und Wünsche der Menschen. Das Blut des
Glaubens sind diese Unsichtbaren.21

A crença nessas massas invisíveis e místicas é fundamental para as religiões, mas

vão perdendo sua força à medida que as sociedades tornam-se secularizadas. Canetti afirma

que os bacilos recém descobertos herdam, na consciência dos homens, o papel da multidão

de demônios. Ainda assim, são massas não-humanas. Portanto, as massas invisíveis em

Canetti ou são místicas, possuindo uma função explicita na manutenção da crença nas

21
“A mente dos crentes apresenta-se povoada dessas noções de massas invisíveis. Sejam elas de mortos, de
diabos, ou de santos, são imaginadas como grandes bandos concentrados. Poder-se-ia dizer que as religiões
principiam com essas massas invisíveis. [...] Às massas invisíveis que mantêm vivas através de sua pregação
encontram-se atrelados os medos e os desejos dos homens. Esses seres invisíveis são o sangue da fé”.
CANETTI, Elias. Masse und Macht, p 46. Tradução: p 44.
33

diversas religiões, ou não são propriamente humanas. Em uma interessante observação de

uma massa invisível, secularizada e quase-humana, Canetti discorre sobre os

espermatozóides:

Eine unsichtbare Masse, die immer bestand, aber als soche erst
erkannt wurde, seit es Mikroskope gibt, ist die des Sperma.
Zweihundert Millionen dieser Samantierchen machen sich zugleich
auf den Weg. Sie sind untereinander gleich und in gröβter Dichte
beisammen. Sie haben alle ein Ziel, und bis auf ein einziges unter
ihnen gehen alle auf dem Weg zugrunde. Es lieβe sich sagen, daβ sie
keine Menschen sind und daβ man von Masse im beschriebenen
Sinne hier eigentlich nicht sprechen sollte. Aber dieser Einwand
bringt alles mit, was von den Ahnen erhalten bleiben wird. Es
enthält die Ahnen, es ist die Ahnen. Es ist eine Überraschung
ungeheuerlichster Art, sie hier wiederzufinden, zwischen einem
Menschendasein und dem anderen, in gründlich veränderter Gestalt:
alle von ihnen in einem winzigen, unsichtbaren Geschöpf, und dieses
Geschöpf in solchen unermeβlichen Zahlen.22

Canetti enfatiza que a massa dos espermatozóides não é uma massa de seres

humanos, porém não esconde seu deslumbramento com esse fenômeno: onde todas as

pequenas criaturas correm para um mesmo objetivo (Sie haben alle ein Ziel), carregando

cada uma a informação dos antepassados (Es enthält die Ahnen, es ist die Ahnen) e um

fenômeno observado justamente entre a existência de um ser humano (Menschendasein) e

outro. Canetti demonstra que, por um processo de secularização, as massas invisíveis,

antes humanas e irreais, tornam-se reais, porém não-humanas. A concepção da massa dos

mortos invisíveis, dos antepassados, pode ser assemelhada à concepção dos

22
“Uma massa invisível que sempre existiu, mas que somente foi reconhecida como tal a partir do
microscópio, é a massa dos espermatozóides. Duzentos milhões desses bichinhos põem-se a um só tempo a
caminho. São todos iguais entre si, reunidos em grande densidade. Todos têm uma meta, mas, à exceção de
um único, perecem todos no caminho. Poder-se-ia dizer que eles não são seres humanos e que, no seu caso,
não se deveria falar propriamente em massa, no sentido em que o termo foi descrito aqui. Tal objeção, porém,
não atinge o fulcro da questão. Cada bichinho desses traz consigo tudo quanto se conservará dos
antepassados. Cada um contém os antepassados: é, ele próprio, esses antepassados. Trata-se de uma enorme
surpresa reencontrá-los aqui, entre uma existência humana e outra, e sob uma forma inteiramente diversa:
todos os antepassados numa única e minúscula criatura invisível – e tal criatura, em quantidades tão
imensuráveis.”. CANETTI, Elias. Masse und Macht, p 48. Tradução: p 46.
34

espermatozóides, invisíveis ao olho nu, mas reais, embora não-humanos. Poder-se-ia dizer

que, para Canetti, massas invisíveis são massas não-existentes, e mesmo quando existentes

não são propriamente humanas. Ainda assim, para Canetti, pode haver, na sociedade

secularizada, uma concepção de massa invisível e humana, porém não-existente no

presente, a massa dos seres humanos que ainda estão por vir, a descendência:

Das Gefühl für die Nachkommenschaft ist heute so lebendig, wie es


immer war. Doch hat sich die Vorstellung des massenhaften von der
eigenen nachkommenschaft abgelöst und auf die zukünftige
Menschheit als Ganzes übertragen. Für die meisten von uns sind die
Heere der Toten ein leerer Aberglaube geworden. Doch gilt es als
edle und keineswegs müβige Bemühung, die Masse der
Ungeborenen vorauszufühlen, ihnen wohlzuwollen und ein besseres
und gerechteres Leben für sie vorzubereiten. In der allgemeinen
Bangigkeit um die Zukunft der Erde ist dieses Gefühl für die
Ungeborenen von der gröβten Bedeutung. Es könnte sein, daβ der
Abscheu von ihrer Verstümmelung, der Gedanke daran, wie sie
aussehen möchten, wenn wir heute unsere neuartigen Kriege führen,
mehr als alle privaten Ängste um uns selbst zur Abschaffung dieser
Kriege und des Krieges überhaupt führen. 23

A massa dos não-nascidos (Masse der Ungeborenen) é considerada uma massa

invisível apenas porque ela ainda está por vir, portanto, não existe de fato. O que existe

realmente é um grande sentimento em relação ao devir dessa massa, segundo Canetti, capaz

de influenciar decisivamente nossos cuidados para com o futuro do mundo muito mais do

que nossos próprios medos.

A visibilidade ou invisibilidade da massa faz parte de classificações quanto aos

formatos da massa, portanto, de seus princípios formais. Além disso, Canetti empreende

23
“O sentimento da descendência encontra-se hoje tão vivo quanto sempre esteve. O caráter de massa, porém,
desvinculou-se da descendência própria, transferindo-se para a humanidade futura como um todo. Para a
maioria de nós, os exércitos de mortos transformaram-se em superstição vazia. Mas tem-se por um empenho
nobre e nada ocioso pensar na massa dos que ainda não nasceram, querer-lhe bem e preparar-lhe uma vida
melhor e mais justa. Esse sentimento em relação aos que ainda não nasceram é de grande importância no
medo de todos quanto ao futuro da terra. É possível que o repúdio a sua mutilação, que a preocupação quanto
a que aspecto terão, se hoje deflagrarmos nossas guerras modernas, contribuam mais para a abolição dessas
guerras, e da guerra em si, do que todos os nossos medos individuais”. CANETTI, Elias. Masse und Macht, p
47. Tradução: p 45.
35

uma investigação acerca do conteúdo das massas, ou seja, o sentimento dominante em

função do qual as massas se formam. Tal classificação das massas segundo o afeto
24
dominante (Einteilung nach dem tragenden Affekt) revela que Canetti considera que

determinados conteúdos afetivos que formam a massa são tão antigos quanto a própria

humanidade:

Die affektiven Hauptformen der Masse aber gehen viel weiter


zurück. Sie treten sehr früh auf, ihre Geschichte ist so alt wie die der
Menschheit selbst und in zwei dieser Formen noch älter. Jede von
ihnen zeichnet sich durch eine einheitliche Färbung aus, eine einzige
Hauptpassion beherrscht sie. Hat man sich einmal Klarheit über sie
verschafft, so ist es unmöglich, sie je wieder miteinander zu
verwechseln.
[...] Die Hetz- und die Fluchtmasse sind die beiden ältesten von
ihnen. Sie kommem unter Tieren so gut wie beim Menschen vor,
und es ist wahrscheinlich, daβ im einzelnen ihre Ausbildung unter
Menschen sich immer wieder von tierischen Vorbildern genärhrt
hat.25

O escândalo sociológico do fenômeno da massa se expressa de forma peculiar no

trecho citado: os mais primitivos conteúdos afetivos das multidões humanas podem ser

encontrados em multidões animais, e é provável que os homens tenham seguido os

modelos dos animais nas massas de acossamento (Hetzmassen) e nas massas de fuga

(Fluchtmassen). O arrebatamento ao qual o ser humano está sujeito na massa fica claro

24
“Die Massen, die man kennengelernt hat, sind von den verschiedenartigsten Affekten erfüllt. Von der Art
dieser Affekte war noch kaum die Rede. Die erste Absicht der Untersuchung ging auf eine Einteilung nach
formalen Prinzipien. Ob die Masse offen oder geschlossen ist, langsam oder rasch, unsichtbar oder sichtbar,
sagt über das, was sie empfindet, über ihren Gehalt, nur wenig aus”. [As massas que conhecemos estão
repletas dos mais variados afetos. Mal se falou aqui, porém, da natureza de tais afetos. O propósito inicial
desta investigação voltou-se para uma classificação da massa segundo princípios formais. Se ela é aberta ou
fechada, lenta ou veloz, invisível ou visível – o que pouco nos diz acerca daquilo que ela sente, de seu
conteúdo] CANETTI, Elias. Masse und Macht, p 48. Tradução: p 46.
25
“Os conteúdos afetivos principais da massa remontam a um passado bem mais distante. Eles surgem bem
cedo; sua história é tão antiga quanto a da própria humanidade, e, no caso de dois desses conteúdos, mais
antiga ainda. Um colorido homogêneo caracteriza cada um deles; uma só paixão principal os domina. Uma
vez tendo sido discernidos com clareza, torna-se impossível voltar a confundi-los. [...] As mais antigas são a
massa de acossamento e a massa de fuga. Estas verificam-se tanto em meio aos animais quanto entre os
homens, e é provável que, isoladamente, seu desenvolvimento entre os homens se tenha sempre nutrido entre
os animais”. CANETTI, Elias. Masse und Macht, p 49. Tradução: p 47.
36

quando a multidão humana se entrega a um comportamento animal, desinibido,

desumanizado. Torna-se ainda mais clara a potência de arrebatamento das massas mais

primitivas pela descrição que Canetti fornece da massa de acossamento (Hetzmasse):

Die Hetzmasse bildet sich im Hinblick auf ein rasch erreichbares


Ziel. Es ist ihr bekannt und genau bezeichnet, es ist auch nah. Sie ist
aufs Töten aus, und sie weiβ, wen sie töten will. Mit der
Entschlossenheit ohnegleichen geht sie auf dieses Ziel los; es ist
unmöglich, sie darum zu betrügen. Es genügt, dieses Zeil
bekanntzugeben, es genügt zu verbreiten, wer umkommen soll,
damit eine Masse sich bildet. Die Konzentration aufs Töten ist eine
besonderer Art und an Intensität durch keine andere zu übertreffen.
Jeder will daran teilhaben, jeder schlägt zu. Um seinen Schlag
führen zu können, drägt sich jeder in die nächste Nähe des Opfers.
Wenn er nicht treffen kann, will er sehen, wie es von den anderen
getroffen wird. Alle Arme kommen wie aus ein und demselben
Geschöpf. Doch die Arme, die treffen, haben mehr Wert und
Gewicht. Das Ziel ist alles. Das Opfer ist das Ziel, doch es ist auch
der Punkt der gröβten Dichte: es vereinigt die Handlungen aller in
sich. Ziel und Dichte fallen zusammen.26

O ponto mais negro para onde todos se dirigem é a vítima. Ela é a meta para onde a

multidão escorre, sua destruição é seu objetivo. Posteriormente, Canetti descreve como o

matar coletivamente da massa de acossamento vai ganhando outras formas de

representação, como a do carrasco27. A sentença da pena de morte é mais do que uma

26
“A massa de acossamento se forma tendo em vista uma meta que se pode atingir rapidamente. Esta é-lhe
conhecida e definida com precisão; é-lhe também próxima. Seu objetivo é matar, e ela sabe quem quer matar.
Munida de uma determinação sem par, a massa de acossamento lança-se sobre sua meta; é impossível enganá-
la. Para que uma tal massa se constitua, basta anunciar a meta e propagar o nome daquele que deve morrer. A
concentração no matar é de natureza especial, insuperável por qualquer outra em intensidade . Todos querem
participar; cada um quer desferir seu golpe. A fim de poder fazê-lo, comprimem-se todos o mais próximo
possível da vítima. Se alguém não logra golpeá-la, ele desejará vê-la sendo golpeada pelos demais. É como se
os braços todos saíssem de uma única e mesma criatura. Mas aqueles que acertam têm maior peso e valor. A
meta é tudo. A vítima é a meta, mas é também o ponto de máxima densidade: ela reúne em si as ações de
todos. Meta e densidade coincidem”. CANETTI, Elias. Masse und Macht, p 49-50. Tradução: p 47-48.
27
“Der wahre Henker ist die Masse, die sich um das Blutgerüst versammelt. (...) Das Gericht, das sich für
gewöhnlich vor einer beschränkten Gruppe von Menschen abspielt, steht für die groβe Menge, die dann der
Hinrichtung beiwohnt. Das Todesurteil, das, im Namen des Rechtes abgegeben, abstrakt und unwirklich
klingt, wird wahr, wenn es vor der Menge ausgeführt wird. Denn für sie wird eigentlich Recht gesprochen,
und mit der Öffentlichkeit des Rechtes meint man die Masse”. [O verdadeiro carrasco é a massa, que se reúne
ao redor do cadafalso. (...) O julgamento, que em geral se dá diante de um grupo limitado de pessoas,
representa a grande multidão que, mais tarde, assiste à execução. A pena de morte, que pronunciada em nome
37

abstração do direito, antes, é o conteúdo afetivo da massa e é em função dela que o mesmo

direito é dito público, segundo Canetti. Mas não devemos considerar que a inclinação para

o “matar coletivamente” se desvaneceu com o tempo, e é exatamente ao descrever uma

forma moderna da massa de acossamento que Canetti traz à luz características viscerais da

massa da mídia (Medienmasse):

Der Abscheu vor dem Zusammentöten ist ganz modernen Datums.


Man überschätze ihn nicht. Auch heute nimmt jeder an öffentlichen
Hinrichtungen teil, durch die Zeitung. Man hat es nur, wie alles, viel
bequemer. Man sitzt in Ruhe bei sich und kann unter hundert
Einzelheiten bei denen verweilen, die einen besonders erregen. Man
akklamiert erst, wenn alles vorüber ist, nicht die leiseste Spur von
Mitschuld trübt den Genuβ. Man ist für nichts verantwortlich, nicht
fürs Urteil, nicht für den Augenzeugen, nicht für seinen Bericht und
auch nicht für die Zeitung, die den Bericht gedruckt hat. Aber man
weiβ mehr darüber als in früheren Zeiten, da man stundenlang gehen
und stehen muβte und schlieβlich nur wenig sah. Im Publikum der
Zeitungsleser hat sich eine gemilderte, aber durch ihre Distanz von
den Ereignissen um so verantwortungslosere Hetzmasse am Leben
erhalten, man wäre versucht zu sagen, ihre verächtlichste und
zugleich stabilste Form. Da sie sich nicht einmal zu versammeln
braucht, kommt sie auch um ihren Zerfall herum, für Abwechslung
ist in der täglichen Wiederholung der Zeitung gesorgt.28

do direito, soa abstrata e irreal, torna-se real ao ser executada na presença da massa. É, afinal, para ela que a
sentença é pronunciada, e quando se diz que o direito é público, é a massa que se tem em mente]. CANETTI,
Elias. Masse und Macht, p 52. Tradução: p 49
28
“A repugnância ao matar coletivamente é origem assaz moderna. Não se deve superestimá-la. Ainda hoje,
pelos jornais, todos participam das execuções públicas. Como tudo, também isso fez-se apenas mais
confortável. Sentado tranqüilamente em casa, o homem pode, dentre centenas de detalhes, deter-se naqueles
que mais o excitam. A aclamação só se dá depois de tudo terminado; nem o mais leve vestígio de culpa turva
o prazer. Não se é responsável por coisa alguma: nem pela sentença, nem pelo jornalista que testemunhou-lhe
a execução, nem por seu relato, nem mesmo pelo jornal que publicou tal relato. Mas sabe-se mais a respeito
do ocorrido do que em tempos passados, quando se tinha de caminhar e permanecer de pé durante horas para,
por fim, ver apenas muito pouco. No público formado pelos leitores de jornal conservou-se viva uma massa
de acossamento abrandada, mas, em função de sua distância dos acontecimentos, ainda menos responsável;
conservou-se aí, é-se tentado a dizê-lo, a sua forma ao mesmo tempo mais desprezível e estável. Como sequer
precise reunir-se, ela evita também sua desagregação; a repetição cotidiana do jornal a provê de variedade”.
CANETTI, Elias. Masse und Macht, p 54. Tradução: p 51.
38

Canetti traz à luz a Medienmasse em uma forma quase embrionária ressaltando suas

extraordinárias e terríveis consequências. Ao afirmar que uma das mais primitivas massas

humanas, a massa de acossamento (Hetzmasse), permanece viva na figura moderna do

público dos leitores de jornais, Canetti revela que o papel da modernidade foi apenas o de

tornar tudo mais confortável. O homem não precisa mais ir à rua para participar da massa

de acossamento, não precisa mais ir à praça para ver a execução pública do condenado, não

precisa mais aparecer negra e densamente junto com os outros. A meta da massa, a

destruição da vítima, está descrita no jornal que ele lê confortavelmente toda manhã com

maiores detalhes do que jamais conseguiria observar se estivesse no meio de uma multidão.

Da mesma forma, ele não sente culpa pela destruição da vítima, nem a massa se dispersa

depois que o objetivo é alcançado. A massa não se dispersa porque ela não se reúne. Mas

estão lá, milhares, todas as manhãs, lendo o mesmo fato no jornal. Nem o jornal, nem o

repórter, se sentem responsáveis pela participação na execução da vítima. Segundo Canetti,

o que se conservou da massa de acossamento na massa de leitores de jornal é o seu caráter

mais desprezível, embora mais estável. Uma massa que não precisa se reunir, não se

desagrega, e, por estar mais distantes dos fatos, não se sente responsável por eles.

Portanto, já em Mass und Macht, Canetti identifica a existência de um público

formado em função de uma participação em um programa midiático (os leitores de jornais)

que se comporta como massa, de tal forma que esse público é uma massa de acossamento

abrandada (verantwortungslosere Hetzmasse). Ela pode existir como milhares ou milhões

de pessoas, muito mais do que seria possível imaginar juntas no mesmo local, mas não é

visível como massa. O abrandamento da modernidade tornou a massa gasosa, portanto,

invisível. Não mais se vê a massa negra e molar que dá forma a algum conteúdo afetivo

arrebatador. O indivíduo da massa da mídia está virtualmente muito mais próximo da meta,
39

do ponto mais negro, ainda que efetivamente mais longe das partículas que compõem a

multidão que se reúne em torno de determinado acontecimento midiático. Neste breve

trecho citado, Canetti desvela as principais características que norteiam a mudança da

massa negra e molar para a massa gasosa e colorida da contemporaneidade: o

abrandamento e a estabilidade. A massa torna-se cada vez mais menos consciente de sua

força, mas torna-se, em contrapartida, cada vez mais estável, e diminuem suas

possibilidades de desagregação. É nesta direção que se alinham as observações de

Sloterdijk em relação à sociedade contemporânea regida pelas mídias de massa:

Die unversammelte und unversammelbare Masse in der


postmodernen Gesellschaft besitzt darum kein Eigenkörper- und
kein Eigenraum-Gefühl mehr; sie sieht sich selbst nicht mehr
zusammenströmen und agieren, sie spürt ihre pulsierende Physis
nicht mehr; sie bringt keinen gemeinsamen Aufschrei mehr hervor.
Sie entfernt sich immer mehr von der Möglichkeit, aus ihren
praktisch-trägen Routinen in eine revolutionäre Zuspitzung
überzugehen.29

Ou, como escreve Canetti: “a repetição cotidiana do jornal a provê de

variedade”. Dessa forma, as massas das mídias de massa são capazes de ser quase

infinitamente maiores que as massas de reunião, porém, há características muito

relevantes que se perdem com a ausência da reunião física, como a própria

possibilidade de desagregação dessa massa. A desinibição momentânea que o homem

experimenta ao participar de uma massa de acossamento e da qual pode vir a se

envergonhar depois que a massa se desagrega torna-se abrandada. A execução é feita

em função do seu público, a mídia de massa alimenta os conteúdos afetivos de seu

29
“A massa não reunida e não reunível da sociedade pós-moderna não possui mais, por essa razão, um
sentimento de corpo e espaço próprios; ela não se vê mais confluir e agir, não sente mais sua natureza
pulsante; não produz mais um grito conjunto. Distancia-se cada vez mais da possibilidade de passar de suas
rotinas práticas e indolentes para um aguçamento revolucionário”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der
Massen, p 17-18. Tradução: p 21.
40

público, mas os milhares ou milhões que participam de um mesmo programa

midiático não se sentem minimamente responsáveis por ele. Ninguém se envergonha

porque ninguém fez nada30.

A massa negra e molar da primeira metade do século XX, que encontra seu

apogeu no carlylico culto ao líder político, transforma-se em uma massa de partículas

dispersas, formada segundo o princípio do entretenimento não-político, com

possibilidades de crescimento infinitamente maiores, e de desagregação quase nulas.

Consequentemente, se a massa pós-moderna perde em liderança demagoga, ela ganha

em inocuidade.

30
Segundo Sloterdijk, Heidegger também se ocupa de uma análise de um modo de existência que se dissolve
na publicidade midiática vulgar através da análise do Man feita no parágrafo 27 de Ser e Tempo. Tratar-se-á
brevemente deste tópico mais frente.
41

II - Reconhecimento e desprezo

Se a massa é um fenômeno social importante e característico do gênero humano, a

ausência de atenção teórica a esse conceito ao longo da história do pensamento ocidental

traz à luz um problema de reconhecimento. Há dificuldades semânticas, desde os textos da

Antiguidade, na diferenciação de usos de termos como multidão, povo, plebe, turba.

Identifica-se essa dificuldade (para ficar com um exemplo) na crítica de Platão à

democracia. Na República, referindo-se ao povo ateniense, Platão aponta o perigo de uma

multidão irracional e ignorante, sempre inclinada a transformar a democracia em tirania:

ὁ δῆμος φεύγων ἂν καπνὸν δουλείας ἐλευθέρων εἰς πῦρ


δούλων δεσποτείας ἂν ἐμπεπτω κὼς εἴη͵ ἀντὶ τῆς πολλῆς
ἐκείνης καὶ ἀκαίρου ἐλευθερίας τὴν χαλεπωτάτην τε καὶ
πικροτάτην δούλων δουλείαν μετ αμπισχόμενος. 31

Platão descreve como a liberdade despropositada na democracia (a escravatura dos

homens livres) leva a sociedade à tirania (a escravatura dos escravos). Para Platão, essa

multidão irracional que degenera em tirania não deixa de ser o próprio povo (δῆμος). Em

Aristóteles, a democracia não é caracterizada como um simples governo do δῆμος, mas

como o governo dos ‘οι πολλοι (o governo dos Muitos). Por outro lado, o termo grego

όχλος, usado em outras passagens, possui o sentido de multidão com a conotação inglesa

da palavra mob, uma multidão violentamente ativa, uma turba (não é o caso de crowd, do

inglês, ou foule, do francês, que também podem ser traduzidos como multidão, embora com

31
“o povo, ao tentar escapar ao fumo da escravatura de homens livres, há-de cair no fogo do domínio dos
escravos, revestindo, em vez daquela liberdade ampla e despropositada, a farda mais insuportável e mais
amarga, a da escravatura de escravos” PLATÃO. Platonis Opera, ed. John Burnet, Clarendon Press Oxford,
1902. Tradução portuguesa: A República. Maria Helena da Rocha Pereira, Fundação Calouste Gulbenkian,
Lisboa, 1973. 569c.
42

uma conotação neutra). Os autores romanos empregam diversos termos32: populus, plebs,

turba, vulgus, multitudo. Embora não seja objeto do presente texto empreender uma

Wortstudie das diferentes possibilidades de designar uma multidão humana ao longo da

história do pensamento ocidental, esses diferentes usos e sentidos que o termo multidão (ou

massa) pode possuir em diferentes contextos histórico-filosóficos evidenciam uma lacuna

teórica, pois tais termos nunca foram objeto de uma definição precisa, sendo tratados como

algo marginal, como se a percepção de que uma aglutinação de pessoas ora é o povo, ou

uma turba, ou os Muitos, fosse algo dado, imediato (ou melhor, algo que não merece um

trabalho de reconhecimento teórico). Stephan Günzel, em seu artigo »Massa« como

problema estético, já distante da antiguidade e referindo-se ao século XX, escreve sobre a

dificuldade teórica de se lidar com o conceito de massa:

Faktisch stellt die ›Masse‹ ein Problem für die theoretische


Reflexion dar: Ohne auf die Modelle philosophischer und
kulturwissenschaftlicher Theoriebildung an dieser Stelle im
Einzelnen eingehen zu können, ist augenfällig, dass ›Masse‹ in allen
namhaften Fällen nur negativ, mittels Reklamation einer ihr
gegenüberstehenden, älteren – quasi ›adeligen‹ – Elite, bestimmt
wird. Die Einheitlichkeit, mit der konservative wie kritische
Kulturtheoretiker vor allem in der ersten Hälfte des letzten
Jahrhunderts eine Abneigung gegenüber der Masse entwickelt
haben, ist frappierend. Der Grund dafür ist nicht bloß der geläufige
Kurzschluss, dass Massen als aktive Träger der totalitären Regime
auch deren alleinige Ursache waren. Der Grund ist auch eine
bezeichnende Leerstelle im theoretischen Gerüst, die ihre
Entsprechung im Realen hat: Epistemologisch ist der Zugang zum
Innenraum der Masse, also zur Masse als solcher, dem
distanzierenden Blick der Analyse unweigerlich entrückt – und zwar
gemäß der Definition von Masse: Im Masse-Sein ist der Mensch
nicht mehr Mensch, sondern eben Masse. In der Masse ist dieser

32
“Lorsqu’ils parlent du peuple, les auteurs romains emploient divers termes, parfois populus, d’autres fois
plebs, mais, le plus souvent : turba, vulgus, multitudo. Chez Dion Cassius et Appien, les expression les plus
courantes sont: hoi polloi, homilos, ochlos, plèthos, dèmos, hoi en tôi astei, hoi en tèi polei” YAVETZ, Zvi.
La plèbe et le prince: foule et vie politique sous le haut-empire romain. Ed. La Découverte, Paris, 1984, p
189.
43

Massemensch, oder genauer: dieses Masseteil, nicht mehr in Besitz


eines irgendwie gearteten freien Willens. Er ist vielmehr bar jeder
Selbstbeherrschung und wird in der Masse mit ihr bewegt, geformt
und gelenkt. Mit herkömmlicher philosophischer Rhetorik oder
kulturgeschichtlichen Modellen ist dem Massephänomen per se also
nur in der Weise der Ablehnung beizukommen oder mit Ignoranz zu
begegnen.33

Segundo o autor, na ausência de um reconhecimento teórico específico, a definição

do conceito é feita apenas de forma negativa: massa é aquilo que não corresponde, em

nenhuma de suas características, ao que se entende por elite. Günzel classifica como

surpreendente a concordância com que se desenvolveu uma aversão pela massa (Abneigung

gegenüber der Masse) entre as várias tentativas de esboçar um reconhecimento do

fenômeno na primeira metade do séc. XX, tanto por parte de conservadores quanto de

teóricos críticos. Um dos motivos dessa aversão seria a manifesta e fácil aproximação,

principalmente nesse período, do fenômeno de massas às experiências totalitárias. As

análises correntes permitiam que a mesma aversão aos regimes totalitaristas fosse

transferida de forma imediata as massas, elegendo-as como as grandes culpadas pelo

surgimento de tais regimes. Günzel propõe que o principal motivo dessa aversão não seria

apenas essa fácil aproximação das massas com o totalitarismo, mas sim a inexistência de

um reconhecimento teórico das massas. Tal lacuna no quadro teórico surge devido à

33
“Sem poder mencionar aqui, em detalhes, os modelos da construção da teoria filosófica e científico-
cultural, é evidente que ›massa‹ é definida, em todos os casos conhecidos, apenas de forma negativa, através
de reclamação de uma elite antiga – quase “nobre” – em oposição àquela. A coerência com que os
conservadores, assim como os teóricos críticos, acima de tudo na primeira metade do último século,
desenvolveram uma aversão contra a massa é surpreendente. O motivo não é simplesmente o familiar curto-
circuito, em que a massa é tida como portadora ativa e única causa dos regimes totalitários. O motivo é uma
lacuna significativa no quadro teórico que tem sua correspondência na realidade: o acesso ao interior da
massa é epistemológico, ou seja, o olhar distanciado da análise apanha a massa como tal - e de acordo com a
definição de massa: No ser-massa o humano não é mais humano, mas apenas a massa. Na massa está esse
humano-massa, ou mais precisamente: esse pedaço da massa que não está mais na posse de qualquer tipo de
livre arbítrio. Ele é muito mais desprovido de autocontrole e será movido, moldado e guiado com a massa.
Com o discurso filosófico tradicional, ou com os modelos histórico-culturais, só se pode alcançar o fenômeno
de massa por si no sentido de rejeição ou enfrentá-lo com a ignorância.”. GÜNZEL, Stephan. "Masse" als
ästhetisches Problem, in: Ästhetik. Ephemeres und Historisches, hg. v. Renate Resche, Hamburg: Kovac,
2002, p 125-142.
44

tentativa de lidar com a massa de forma epistemológica, ou seja, tentar reconhecer a massa

através do olhar distanciado da análise. Quem analisa o fenômeno da massa humana à

distância só é capaz de inferir a desumanidade dos indivíduos que a formam, pelo modo

como estes são movidos, moldados e guiados por ela, comportando-se não mais segundo

suas aspirações individuais (de certa forma, não são mais indivíduos propriamente, mas sim

partículas integrantes de uma mesma massa). Portanto, a via epistemológica, sob a qual se

fundamenta os modelos do discurso filosófico tradicional acerca da massa, só poderá

resultar em sua rejeição, ou seja, no seu desprezo.

O caminho epistemológico, tal como designado por Günzel, tem como ícones

cardinais La psychologie des foules (1895), de Gustave Le Bon, e Massenpsychologie und

Ich-Analyse (1921), de Sigmund Freud (o texto de Freud retoma o problema seguindo a

mesma abordagem do texto de Le Bon). Gustave Le Bon, Gabriel Tarde, Sigmund Freud,

entre outros, buscam compreender o fenômeno da massa humana à distância, buscando leis

de comportamento que lhes permitissem desenvolver uma psicologia descritiva das massas.

Porém, de uma forma geral, suas considerações não escapam de definir a massa sempre

negativamente. Não é mais possível, principalmente a partir do séc. XIX, ignorar a

presença e a força das multidões na sociedade. A atenção teórica dispensada às massas é o

reflexo dessa impossibilidade de simplesmente ignorá-las34. Ainda que o presente texto

não pretenda analisar em pormenores o tratamento dado as massas pelos autores citados,

vale ressaltar que a literatura lidou de forma menos contraproducente com o conceito de

massa por não pretender palmilhar o caminho epistemológico, mas sim a via estética,

34
Não se ignora a atenção dada às massas na literatura, através de autores como Charles Baudelaire, Edgar
Allan Poe, Émile Zola, que, sem a pretensão de preencher a lacuna teórica sobre as massas, puderam esboçar
um quadro das massas mais interessante que aqueles que tentaram enfrentar o problema com pretensões
científicas.
45

embora, como lhe é próprio, sem se interessar em oferecer um trabalho teórico sobre as

massas35. Canetti, ao descrever a massa aberta, descreve uma das características da sua

época que não permitem mais que se desvie a atenção dos fenômenos de massa:

Die offene Masse ist die eigentliche Masse, die sich ihrem
natürlichen Drang zu wachsen frei überläβt. Eine offene Masse hat
kein klares Gefühl oder Bild davon, wie groβ sie werden könnte. Sie
hält sich an kein Gebäude, das ihr bekannt ist und das sie zu erfüllen
hätte. Ihr Maβ ist nicht festgelegt; sie will ins Unendliche wachsen,
und was sie dazu braucht, sind mehr und mehr Menschen. In diesem
nackten Zustand fällt die Masse am meisten auf. Doch behält sie
etwas Auβergewöhnliches und wird, da sie immer zerfällt, nicht
ganz voll genommen. Sie wäre vielleicht auch weiterhin nicht mit
dem Ernste betrachtet worden, der ihr gebührt, hätte nicht die
ungeheuerliche Zunahme der Bevölkerungszahl überall und das
rapide Wachstum der Städte, die unser modernes Zeitalter
kennzeichnen, zu ihrer Bildung immer häufiger Gelegenheit
gegeben.36

O fato da massa sempre se desintegrar é uma das características que faz com que ela

não seja levada a sério (que contribuem, portanto, para a dificuldade de seu

reconhecimento). Porém, o rápido crescimento das cidades, o aumento populacional,

portanto, o aumento das aglomerações humanas, faz com que esse fenômeno seja cada vez

mais presente e visível no cotidiano. Por mais que se rejeite o reconhecimento ao

35
É importante citar que existe uma abordagem distinta e contemporânea do conceito de massa feita por
Michael Hardt e Antonio Negri em Empire (2000) e Multitude: War and Democracy in the Age of Empire
(2004). Embora esses autores declarem que existe uma diferença crucial entre multidão e massa (e no
conceito de multidão encontram elementos de resistência para o domínio do capitalismo universal), não
trataremos deles no presente texto. Ao partir do conceito de massa em Canetti, dificilmente se encontrará
pontos satisfatórios para a construção do conceito de multidão em Negri e Hardt. Portanto, para evitar
conclusões insatisfatórias, evitar-se-á essa aproximação no presente texto, que demandaria um trabalho maior
e mais atencioso as obras citadas de Negri e Hardt.
36
“A massa aberta é a massa propriamente dita, que se entrega livremente a seu ímpeto de crescimento. Uma
massa aberta não tem uma idéia ou sensação clara de quão grande poderá vir a ser. Ela não se atém a nenhum
edifício que conheça e deva preencher. Sua medida não se encontra fixada; ela deseja crescer até o infinito, e
aquilo de que precisa para tanto são mais e mais pessoas. É nesse seu estado nu e cru que a massa mais chama
a atenção. Ainda assim, ela conserva algo de extraordinário e, visto desintegrar-se sempre, não é levada
totalmente a sério. Talvez se persistisse não a encarando com a seriedade com que lhe é devida, não fosse pelo
fato de o aumento vertiginoso da população mundial e o rápido crescimento das cidades, ambos
característicos desta nossa época moderna, terem propiciado oportunidades cada vez mais freqüentes para sua
formação”. CANETTI, Elias. Masse und Macht, p 16. Tradução: p 19.
46

fenômeno de massa, sua freqüência e intensidade maiores requerem e exigem atenção (a

literatura, sensível a essa exigência estética, oferece às multidões um esboço delas em suas

obras). Segundo Günzel, a única forma de escapar a rejeição da massa seria abordá-la sob a

perspectiva estética (este será o aspecto inovador da abordagem de Canetti, como veremos

mais a frente).

Por meio de uma reconstrução da história do conceito de desprezo, Sloterdijk busca

esclarecer o fundamento do que nomeia como grande projeto da modernidade, no início da

segunda parte de O desprezo das massas, sob o título “Desprezo como conceito”

(Verachtung als Begriff):

In dem Projekt der Moderne, die Masse als Subjekt zu entwickeln,


sammelt sich, soviel wir verstanden haben, leicht entzündlicher
psychopolitischer Sprengstoff an. Er kann durch Funken von oben
wie von unten detonieren.
Wie alle Entwicklungsprogramme muβ auch dieses seinen
Adressaten beleidigen, sobald es ihm zu verstehen gibt, er sei noch
nicht, was er werden soll.37

O projeto da modernidade de desenvolver a massa como sujeito constitui, segundo

Sloterdijk, um programa de desenvolvimento, portanto, seu primeiro passo deve ser rejeitar

o não-desenvolvido. Negar a esse projeto seu caráter progressista significa rejeitar a

imposição de qualquer exigência às massas, como observa Sloterdijk:

Will man dieser prekären Implikation des Fortschritts-,


Heraufhebungs- und Emporziehungsdenkens ausweichen, so muβ
man die Masse auf der Stelle von Entwicklungszumutungen
freisprechen und ihr versichern, sie sei, so wie sie ist, schon ganz am
Ziel. In der Alternative zwischen Entwickeln und Verwöhnen

37
“No projeto da modernidade de desenvolver a massa como sujeito, acumulam-se, tanto quanto pudemos
entender, material explosivo psicopolítico e facilmente inflamável. Ele pode detonar por meio de faíscas tanto
de cima quanto de baixo. Como todos os programas de desenvolvimento, este também deve ofender seu
destinatário tão logo o faça entender que ele não é o que deve ser”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der
Massen, p 30. Tradução: p 37.
47

bewegen sich die modernen Diskurse über den Menschen als ein
Ende in sich selbst.38

Para Sloterdijk, os discursos modernos sobre o homem como fim em si movem-se

em duas possibilidades: desenvolver (Entwickeln) ou mimar (Verwöhnen) a massa. O

programa que visa desenvolver a massa tem, necessariamente, que ofender sua atual

situação não-desenvolvida; já a alternativa de mimar a massa, que prescinde dessa

pretensão de ascensão, não precisa dessa rejeição e pode buscar meios de dizer que a massa

já é o que deve ser. Esse binômio (Entwickeln x Verwöhnen) é uma das formas que

Sloterdijk usa para expressar a diferença entre comunicação horizontal e vertical, como o

faz no seguinte trecho:

Wo man in bezug auf ein Kollektiv zwischen


Vertikalkommunikation (Beleidigen) oder
Horizontalkommunikation (Schmeicheln) wählen muβ, dort liegt
etwas vor, was man ein objektives Anerkennungsproblem nennen
muβ. Im Begriff der Masse sind Merkmale mitgesetzt, die per se zu
einer Vorenthaltung der Anerkennung geneigt machen. Verweigerte
Anerkennung heiβt Verachtung – so wie verweigerte und
verworfene Berührung Ekel heiβt.39

Sloterdijk identifica um problema objetivo de reconhecimento (ein objektives

Anerkennungsproblem) na escolha da abordagem para se lidar com um coletivo, portanto,

com a massa. Trata-se da escolha entre comunicação vertical (ofender - Beleidigen) e

comunicação horizontal (adular - Schmeicheln). Como o próprio conceito de massa carrega

consigo características que conduzem a uma privação do reconhecimento (Vorenthaltung


38
“Caso se queira distanciar dessa implicação precária do pensamento de progresso, ascensão e elevação,
então se deve imediatamente absolver a massa das exigências de desenvolvimento e assegurar-lhe ter ela,
assim como é, atingido sua meta. Na alternativa entre desenvolver e mimar movem-se os discursos modernos
sobre o homem como um fim em si mesmo”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 30.
Tradução: p 37-38.
39
“Lá onde se deve escolher em relação a um coletivo entre comunicação vertical (ofender) e comunicação
horizontal (adular), existe algo que se deve chamar de problema objetivo de reconhecimento. No conceito de
massa estão incluídas características que per se tendem a uma retenção do reconhecimento. Reconhecimento
recusado chama-se desprezo – assim como contato físico recusado e repudiado se chama nojo”.
SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 31. Tradução: p 38-39.
48

der Anerkennung), o problema objetivo de reconhecimento torna-se um problema objetivo

de reconhecimento recusado, portanto, um problema objetivo de desprezo (Verweigerte

Anerkennung heiβt Verachtung). É necessário frisar que Sloterdijk não aceita que o

desprezo seja uma questão meramente subjetiva, que seria superada pelo desenvolvimento

da massa como sujeito na modernidade. Ao contrário, trata-se de uma questão objetiva,

pois a escolha entre a abordagem vertical (desenvolver, ofender – Entwickeln, Beleidigen) e

abordagem horizontal (mimar, adular – Schmeicheln, Verwöhnen) é determinante para a

definição do conceito de massa. Segundo Sloterdijk, a modernidade é a arena em que se

trava o conflito entre esses dois lados:

Wer immer sich einmischt in den Betrieb der Diskurse über aktuelle
Gesellschaftssysteme und ihre Populationen, die Eliten und die
Massen, die Gleichen und die Gleicheren, die Vielen und die sehr
Vielen, hat sich bereits, wissend oder nicht, entschieden, ob er die
groβe Zahl entwickeln und beleidigen oder ihr schmeicheln und sie
verführen will. Was man in der Moderne an Kulturkämpfen und
ideologischen Parteigefechten wahrnimmt, ist meistens nichts als der
Streit zwischen den Beleidigern und den Schmeichlern.40

A disputa entre ofensores (Beleidigern) e aduladores (Schmeichlern) tem origem em

um problema objetivo de reconhecimento. O tema principal dessa arena de conflito resume-

se a uma questão de reconhecimento. Sloterdijk ressalta isso descrevendo conseqüências

relevantes desse conflito para a sociedade:

Wenn die moderne Welt, wie manche Hegel-Interpreten mit guten


Argumenten dargelegt haben, eine Arena von generalisierten
Kämpfen um Anerkennung ist, so muβ sie unausweichlich zu einer
Gesellschaftsform führen, in der die Verachtung epidemisch wird –
zum einen deswegen, weil Anerkennung – wie Aufmerksamkeit –

40
“Não importa quem se intrometa na fabricação de discursos sobre os atuais sistemas sociais e suas
populações, as elites e as massas, os iguais e os mais iguais, os muitos e os muito muitos, já se decidiu, esteja-
se ciente ou não, se quer desenvolver ou ofender um grande número de pessoas, ou adulá-las e seduzi-las. O
que na modernidade se percebe nas lutas culturais e nos combates partidários ideológicos, na maior parte das
vezes não passa de disputa entre ofensores e aduladores”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen,
p 30-31. Tradução: p 38.
49

eine Ressource ist, deren Wert mit ihrer Knappheit korreliert; zum
anderen weil die Prätendenten auf Anerkennung, indem sie sich
unaufhörlich vermehren, sich notwendigerweise gegenseitig
überfordern; und schlieβlich weil die Masse als solche ein Pseudo-
subjekt darstellt, zu dem man sich nicht in Beziehung setzen kann,
ohne ein Element von Verachtung ins Spiel zu bringen, wobei ich
die Schmeichelei als eine invertierte Verachtung mitrechne.41

A principal conseqüência do mundo moderno enquanto arena de conflitos por

reconhecimento é o desenvolvimento epidêmico de recusas de reconhecimento, ou seja, de

desprezo (Verachtung). Sloterdijk destaca três razões para esse desenvolvimento epidêmico

do desprezo: primeiro, a fonte de reconhecimento (assim como o da atenção -

Aufmerksamkeit) na sociedade é diretamente relacionada à ausência de reconhecimento, na

medida em que algo reconhecido tem seu valor destacado em contraste com aquilo que não

alcança reconhecimento. Segundo, os pretendentes a reconhecimento se multiplicam, e,

sempre aumentando em número, passam a elevar as exigências de reconhecimento

mutuamente. Por fim, ao se lidar com a massa, sempre surge um elemento de desprezo.

Neste ponto, Sloterdijk esclarece que considera a adulação (Schmeichelei) um desprezo

invertido (invertierte Verachtung). Portanto, a adulação da massa, a comunicação

horizontal, não resolve de forma positiva o problema de reconhecimento. Ao contrário, é

exatamente ao fazer um elogio da massa que se abdica de enfrentar o problema de

reconhecimento em outras bases que não as mesmas do desprezo.

41
“Se o mundo moderno, como alguns intérpretes de Hegel expuseram com bons argumentos, é uma arena de
lutas generalizadas por reconhecimento, então inevitavelmente ele deve levar a uma forma de sociedade na
qual o desprezo se torna epidêmico – por um lado, porque reconhecimento, assim como atenção, é uma fonte
cujo valor está correlacionado com sua escassez; por outro lado, porque os pretendentes a reconhecimento, na
medida em que se multiplicam ininterruptamente, necessariamente se superexigem de forma recíproca; e por
fim porque a massa como tal representa um pseudo-sujeito com o qual não se pode travar relações sem trazer
à baila um elemento de desprezo, e incluo a adulação como um desprezo invertido”. SLOTERDIJK, Peter.
Die Verachtung der Massen, p 31-32. Tradução: p 39.
51

III - O Projeto Moderno: desenvolver a massa como sujeito

No intento de esclarecer o papel do desprezo das massas no problema moderno de

reconhecimento, Sloterdijk propõe-se a destacar alguns momentos relevantes da história do

desprezo na modernidade. O caminho de trazer à luz uma história do desprezo é uma forma

de buscar outra abordagem do reconhecimento do fenômeno de massa. Se as características

do fenômeno de massa levam ao desprezo, a história da idéia de desprezo pode revelar uma

imagem mais precisa desse fenômeno, que é, ele próprio, o responsável pela ausência de

estudos sobre o tema das massas na história do pensamento ocidental. Neste sentido,

Sloterdijk refere-se ao desprezo como uma doença hereditária:

Von der Geschichte und der Logik dieses Verachtungsdrama, das


der Neuzeit im ganzen wie ein intimes Erbleiden anhaftet, ist wenig
bekannt.42

O desprezo, que se torna epidêmico na contemporaneidade, comporta-se como uma

doença íntima hereditária de cuja história e funcionamento pouco se conhece. Sloterdijk

afirma que a filosofia acadêmica afastou-se do tema, e que a opinião pública, por estar

incessantemente envolvida em conflitos por reconhecimento, fica impossibilitada de ter

uma visão coerente da situação em que se encontra. Neste sentido, o problema do desprezo

torna-se cada vez mais evidente na medida em que diversos sujeitos coletivos começam a

exigir reconhecimento na história da modernidade:

Das Drehbuch der Neuzeit sieht vielmehr vor, daβ nichthochadlige


Kollektivsubjekte, der mittlere und der höfische Adel zuerst, sodann
das Bürgertum, das Kleinbürgertum, die Arbeiterschaft und die
sogenannten Minderheiten in der Folge, eine historisch beispiellose
Leidenschaft der Selbstachtung an der Tag zu legen beginnen und

42
“Pouco se conhece sobre a história e a lógica desse drama do desprezo que adere aos tempos modernos em
seu todo como uma doença hereditária íntima”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 32.
Tradução: p 39.
52

sich zu deren Befriedigung in die politische und literarische Arena


begeben. (...) Die authentisch politischen Gruppen sind immer
zugleich Kraftfelder, in denen sich Leidenschaften der Selbstachtung
formieren. Sie wollen von nun an die Geschichtsbücher füllen und
als öffentliche Gröβen gewürdigt werden, denen der Aufschwung
von der gekränkten Trägheit in die ausdrucksmächtige Subjektivität
gelungen ist. Man darf bemerken, daβ die aufsteigenden Gruppen
der neueren Zeit nicht nur ein autobiographisches Pathos an der Tag
legen; sie entwickeln auch ohne Ausnahme einen philanthropischen,
genauer einen autophilanthropischen Affekt. Vergessen wir nicht,
daβ auch die Nationalstaaten des 19. und 20. Jahrhunderts nur als
massenmedial gesteuerte Experimente kollektiver Selbstachtung und
Selbsterhöhung Form annehmen konnten – uns daβ die sogenannte
Auβenpolitik zwischen diesen, sofern sie Konkurrenzen im
Imaginären einschloβ, unweigerlich stets von Achtungs- und
Miβachtungsspannungen dramatisiert wurde. 43

Segundo Sloterdijk, o roteiro histórico gerado pelo projeto de desenvolver a massa

como sujeito compreende sucessivas buscas de reconhecimento por diferentes sujeitos

coletivos (Kollektivsubjekte), que buscam se afirmar, tanto na política como na literatura,

movidos por inéditas paixões de dignidade (ou paixões de auto-estima - Leidenschaft der

Selbstachtung). Sloterdijk afirma que os Estado nacionais dos séculos XIX e XX

formaram-se pelas paixões de auto-estima e auto-elevação (Selbstachtung und

Selbsterhöhung) coletivas dirigidos pelas mídias de massa. O imaginário midiático da

época regulava-se por tensões de atenção e desprezo (Achtungs- und

Miβachtungsspannungen) em relação a outros Estados. Tal roteiro de buscas de

43
“O roteiro dos tempos modernos prevê (...) que sujeitos coletivos que não pertencem à alta nobreza –
primeiramente a nobreza média e a cortesã, depois a burguesia, a pequena burguesia, a classe trabalhadora e
as chamadas minorias – sucessivamente, comecem a manifestar uma paixão da dignidade, historicamente
inédita, e para a sua satisfação, se dirijam a arena política e literária (...). Os grupos autenticamente políticos
são sempre ao mesmo tempo campos de força nos quais se formam paixões de dignidade. Desde então eles
querem encher os livros de história e ser enaltecidos como grandezas públicas, às quais logrou a evolução da
indolência ofendida para a subjetividade de expressão poderosa. Deve-se notar que os grupos em ascensão
dos tempos recentes não apenas manifestam um pathos autobiográfico; eles desenvolvem, também sem
exceção, um afeto filantrópico, mais exatamente autofilantrópico. Não esqueçamos que também os Estados
nacionais dos séculos XIX e XX só puderam tomar forma como experimento de dignidade coletiva e auto-
elevação conduzidos pela mídia de massa – e que a chamada política externa foi sempre necessariamente
dramatizada entre essas tensões de atenção e desprezo, contanto que incluíssem concorrências no imaginário”.
SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 32-33. Tradução: p 40.
53

reconhecimento pareceria desembocar em um reconhecimento geral de todos, portanto, na

dissolução do problema de reconhecimento, mas a análise feita por Sloterdijk da idéia de

desprezabilidade ao longo desse projeto da modernidade pretende revelar que o problema

objetivo de reconhecimento não se resolve, como antecipa nesta observação:

Doch der Pfad zur Subjektwürde für alle ist einer, der zunächst eher
nach unten als nach oben zu führen scheint. 44

O projeto moderno de desenvolver a massa como sujeito é esse atalho (Pfad) para a

dignidade do sujeito para todos (Subjektwürde für alle). Sloterdijk destacará as

contribuições mais relevantes ao longo da implantação desse projeto moderno, tecendo

uma pequena história do conceito de desprezabilidade no pensamento moderno ocidental.

Nesse sentido, cria um roteiro do desenvolvimento filosófico desse conceito destacando os

seguintes pensadores e suas principais contribuições nesse campo: Hobbes dá início às

antropologias modernas e políticas, fundamentando o igualitarismo antropológico (a

convicção da natureza igualitária psicológica das pessoas). A seguir, Spinoza, o

descobridor filosófico da massa e primeiro antropólogo da democracia moderna, intui os

moldes da cultura de massa ao lidar com problema do autogoverno da multidão. Em Hegel

esclarece-se o projeto da modernidade, enquanto desenvolvimento da substância como

sujeito, sendo a dialética entre senhor e escravo o padrão lógico do roteiro das lutas por

reconhecimento na modernidade. Marx contribui para a disposição ofensiva da necessidade

de desenvolver a massa como sujeito, fundamentando a exigência de abolir todo o sistema

de relações que envolve o desprezo do gênero humano. Nietzsche constata que o pretenso

término subjetivo da desprezabilidade não abole o problema objetivo do desprezo e o

projeto moderno deságua em uma sociedade do “último homem”, a imagem da


44
“Mas o atalho da dignidade do sujeito para todos parece antes levar mais para baixo do que para cima”.
SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 34. Tradução: p 42.
54

objetificação do próprio desprezo. Por fim, Heidegger revela o ser-aí [Dasein] no modo

“impessoal” [Man], que abarca todos os indivíduos em uma desprezabilidade mútua; uma

ditadura sem dono à qual todos estão primariamente subjugados. É em Nietzsche que se

torna mais evidente que esse caminho da dignidade do sujeito para todos conduz antes para

baixo do que para cima, ou seja, mais reforça o desprezo do que resolve positivamente o

problema de reconhecimento. Analisaremos cada passo desse roteiro histórico para depois

ratificar o diferencial de Elias Canetti, na obra Massa e Poder, em relação à abordagem da

massa nesse contexto.

Sloterdijk, no trecho a seguir, qualifica Hobbes como um dos pioneiros do que

chama de nova psicopolítica:

Schon in der Frühzeit der neuen Psychopolitik, in jenem 17.


Jahrhundert, in dem gleichzeitig mit dem religiös motivierten
Bürgerkrieg auch die Idee des Politischen als einer eigenständigen
staatstechnischen Kunstsphäre entstand, hat sich Thomas Hobbes an
die zukunftsweisende Aufgabe gemacht, die Masse als Untertan zu
entwickeln. Seinem theoretischen Genie und seiner praktischen
Härte verdanken wir die Einsicht, daβ Subjektivität und
Untertänigkeit konvergieren, etymologisch wie real (...). Die als
Subjekt zu entwickelnde Masse tritt demnach auf die Theoriebühne
der Neuzeit in Gestalt einer homogenisierten Menge von Untertanen
unter einem staatstechnisch modernisierten Souverän.45

A massa, em Hobbes, adquire reconhecimento como uma multidão homogeneizada

de súditos (homogenisierten Menge von Untertanen) subjugada por um soberano técnico-

estatal moderno. Esse reconhecimento serve ao seu interesse principal, que seria reconstruir

radicalmente a máquina estatal. Porém, para o perfeito funcionamento do Estado, Hobbes


45
“Já nos primórdios da nova psicopolítica, naquele século XVII no qual, concomitante a guerra civil
motivada pela religião, também surgiu a idéia do elemento político como uma esfera artística autônoma e
técnico-estatal, Thomas Hobbes se propôs a tarefa promissora de desenvolver a massa como súdita. Ao seu
gênio teórico e sua dureza prática somos gratos pela idéia de que subjetividade e servidão convergem tanto
etimologicamente quando na realidade (...). A massa a ser desenvolvida como sujeito, conseqüentemente,
surge na tribuna teórica dos tempos modernos na figura de uma multidão homogeneizada de súditos sob um
soberano estatal e tecnicamente modernizado”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 34.
Tradução: p 42.
55

tem que neutralizar as lutas por reconhecimento na sociedade. Sloterdijk expõe a forma

com que Hobbes resolve o conflito por reconhecimento para poder alcançar seu objetivo

teórico:

Um dies zu erreichen, schien es Hobbes nötig, alle Prätendenten auf


Anerkennung, virtuell die gesamte Population des absolutistischen
Staates (...). Der ideale Untertan wäre jener, der endlich verstanden
hat, daβ es nur einen einzigen Souverän noch geben soll, den real
amtierenden Träger aller legitimen Gewalt, und daβ er, als
bekennender Untertan, seine rebellischen und „protestantischen“
Regungen bei diesem künstlichen Herrn aus Einsicht abgegeben
hat.46

O reconhecimento dado por Hobbes à massa pressupõe não apenas um

reconhecimento recusado (desprezo) aos indivíduos, mas uma proibição ativa de lutarem

por qualquer reconhecimento. Portanto, segundo Sloterdijk, é imprescindível para Hobbes

construir uma descrição de um súdito ideal para o Estado e, para esse fim, torna-se

necessário empreender uma investigação radical do ser humano:

Wer den Untertanen sucht, muβ den Menschen bei der Wurzel
fassen. Zu der Untertänigmachung aller unter dem einen Souverän
dient dem Staatslogiker eine anthropologische Reduktion sämtlicher
Individualitäten auf eine stabile natürliche gemeinsame Motivbasis.
(...)
Thomas Hobbes war als Staatstheoretiker optimistisch genug, ein
solches zur Untertänigkeit geneigt machendes Motiv in der
menschlichen Natur aufweisen zu können, weil er als Anthropologe
pessimistisch genug war, um sämtlichen Menschen gemeinsame
Voraussetzungen der Niedrigkeit oder Gewöhnlichkeit zu
unterstellen. 47

46
“Para alcançá-lo, pareceu necessário a Hobbes castrar politicamente todos os pretendentes a
reconhecimento (...). O submisso ideal seria aquele que finalmente entendeu que ainda só deve existir um
único soberano, o portador realmente em exercício de todo poder legítimo, e que ele, como súdito confesso,
sensatamente entregou suas emoções rebeldes e ‘protestantes’ ao soberano artificial”. SLOTERDIJK, Peter.
Die Verachtung der Massen, p 35. Tradução: p 43.
47
“Quem procura o súdito deve entender o homem em sua raiz. Para que todos se submetam a um soberano,
serve ao lógico do Estado uma redução antropológica de todas as individualidades sob uma base de motivo
estável, natural e comum. (...) Com teórico do Estado, Thomas Hobbes era suficientemente otimista para
poder mostrar na natureza humana um tal motivo que tende a levar à submissão, porque, como antropólogo,
56

Para Sloterdijk, a principal contribuição do autor do Leviathan ao roteiro filosófico

do desprezo é feita enquanto antropólogo, e não enquanto teórico do Estado. Hobbes diz

que a motivação humana que prevalece sobre todas as outras disposições humanas é o

medo, e mais precisamente o medo da morte (fear of death). A igualdade antropológica

hobbesiana é edificada sobre a redução radical do comportamento humano ao medo da

morte. Essa operação básica de uma antropologia especificamente moderna e política,

como diz Sloterdijk, leva mais para baixo o reconhecimento de valor do homem do que

para cima:

Die Hobbessche Grundoperation, die Reduktion menschlichen


Verhaltens auf ein letztes Bewegendes, die Furcht, setzt epochale
Folgen frei. Mit ihr beginnt ein Zeitalter, das „den Menschen“
systematisch verdächtig macht und ihn darum von unten her denkt.
(...) Um zu begreifen, wie die Kraftmaschine Mensch abläuf, ist
Einsicht in ihr Triebfederwerk vonnöten (...). Ist es Gemeinheit, hat
es doch Methode – ein Weltalter lang werden in Menschensachen
erklären, verstehen und herabsetzen auf dasselbe hinauslaufen .
Demnach wären nun Bedingungen gegeben, unter denen der Satz:
Tout comprendre c’est tout pardonner ohne Einschränkung wahr
würde? Nicht ganz, denn man muβ hinzufügen, daβ alles verstehen
nun in Wahrheit alles verachten heiβt. Das Zeitalter der
Entvertikalisierung beginnt damit, daβ man den Menschen immer
unten sucht. Eine methodisch kontrollierte Neigung zu einer
Verachtung aller durch alle sickert in die Prämissen der modernen
politischen Lehre vom Menschen ein. (...) Im Blick auf diese
Verhältnisse läβt sich zudem notieren, daβ Egalität nach-christlich
nie einen Wert an sich bedeutete, sondern ein Mittel des
dynamisierten modernen Staats darstellte, sich selbst auf der Basis
einer fest angenommenen gemeinsamen und zuverlässig niederen
Menschennatur zu organisieren.48

era suficientemente pessimista para atribuir a todos os homens pressupostos comuns de baixeza ou
ordinariedade”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 36. Tradução: p 44.
48
“A operação básica hobbesiana, a redução do comportamento humano a um último móvel, o medo, libera
conseqüências de época. Com ela começa uma era que torna ‘o homem’ sistematicamente suspeito e por isso
o pensa a partir de baixo. (...) Para compreender como funciona a máquina de força ‘homem’, é necessário
conhecer seu mecanismo de propulsão (...). Se é vilania, então tem método. – durante toda uma era explicar,
compreender e difamar darão no mesmo no que diz respeito ao homem. Conseqüentemente estariam dadas as
condições sob as quais a frase ‘Tout compreendre c’est tout pardonner’ seria verdadeira, sem ressalvas? Não
inteiramente, pois deve-se acrescentar que tudo compreender em verdade significa tudo desprezar. A era da
57

O programa de desenvolvimento da massa como sujeito, semelhante aos momentos

pelo qual a aglomeração humana se torna massa em Canetti, tem que passar pelo momento

de descarga (Entladung). Esse momento, que cria um sentimento de igualdade entre os

indivíduos na massa (como foi exposto no primeiro capítulo do presente texto), encontra

seu análogo no programa de desenvolvimento da massa com o sujeito mediante o que

Sloterdijk chama de processo de desverticalização (Entvertikalisierung). No contexto

hobbesiano, para se aniquilar as diferenças verticais entre os indivíduos (ou, para usar as

palavras de Canetti, as distâncias, as cargas) busca-se uma homogeneização do ser humano

por baixo. O momento de descarga traduzido em doutrina política moderna torna-se um

desprezo de todos por todos (einer Verachtung aller durch alle). Neste início da era da

desverticalização, compreender, explicar e reduzir (erklären, verstehen und herabsetzen)

têm os mesmos resultados no que diz respeito ao ser humano. Neste sentido, diz Sloterdijk,

a igualdade humana secular (ou pós-cristã) não é um valor em si, mas um conceito

construído com vistas a oferecer ao Estado moderno um fundamento na natureza humana

confiável para que a multidão possa e necessite ser governada49. Tal redução antropológica

estabelece o que é o empreendimento propriamente moderno da era da desverticalização,

como expõe Sloterdijk:

Wer nämlich die Furcht als universalen Motor proklamiert, hebt die
traditionelle Selbstbegründung des Adels, seine Verwerfung der
Todesangst, auf und holt auch die aristokratischen Verächter des
Allzumenschlichen zurück in eine mittlere Humanität, die in der

desverticalização começa com o fato de que se busca o homem sempre embaixo. Uma tendência
metodicamente controlada de um desprezo de todos por todos infiltra-se nas premissas da doutrina política
moderna do homem. (...) A respeito dessas relações pode-se notar, além disso, que igualdade pós-cristã nunca
significou um valor em si, mas representou um meio de o Estado moderno dinamizado se organizar na base de
uma natureza humana comum e confiável, firmemente abraçada”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der
Massen, p 39-40. Tradução: p 48-50.
49
Sobre a reflexão política como justificações de necessidades de governo da massa, tratar-se-á ao fim do
presente capítulo.
58

Motivallianz von Vernunft, Furcht und Selbsterhaltung gründet. In


dieser Mittellage ist die Moderne als Programm und Betrieb
verankert. Hier wird jeder menschliche Exzeβ und Überstieg nach
oben a priori verworfen. Die Pflicht, sich in der Mitte zu halten,
bildet die unausgesprochene Über-Regel des In-der-Welt-Seins als
Bürger, Untertan und Mensch.50

A redução antropológica hobbesiana engendra uma sobre-regra tácita do ser-no-

mundo (In-der-Welt-Seins) como cidadão, súdito e ser humano: toda diferença vertical

deve ser repudiada a priori no fundamento da natureza humana. Portanto, para o projeto de

desenvolvimento da massa como sujeito, a grande contribuição de Hobbes é a

fundamentação do igualitarismo antropológico, porém, uma igualdade esquadrinhada por

baixo, através de um desprezo homogeneizante.

Se, para Sloterdijk, Hobbes é o responsável pela fundamentação radical da

igualdade entre as pessoas, Spinoza será o primeiro antropólogo da democracia moderna,

como escreve no trecho:

Wenn man in Hobbes den Ahnherrn der bis heute dominierenden


politischen Anthropologie erkennen kann, so darf Spinoza als der
philosophische Entdecker der Masse gelten. Spinoza ist der erste
Anthropologe der modernen Demokratie, insofern er ursprünglich
die Frage aufwart, wie die Selbstregierung der Menge möglich sei
angesichts der Tatsache, daβ diese – er nennt sie der Tradition
folgend den vulgus – sich stets an sinnlichen Vorstellungen, an
Bildern und Sensationen, an imaginationes, sowie an Begierden wie
der Habsucht, dem Zorn, dem Neid und der Ehrsucht orientiert und
nicht an rationalen Einsichten. Spinoza verliert keine Zeit mit der
später so erfolgreich gewordenen Schmeicheltehorie, die Menge als
ganze auf den Standpunkt der Vernunft oder der logischen

50
“Pois quem proclama o medo como motor universal abole a tradicional autofundamentação da nobreza- seu
repúdio do medo da morte – e relega também os aristocratas que desprezam o demasiadamente humano a uma
humanidade intermediária, que se fundamenta na aliança por interesse entre razão, medo e autoconservação.
Nessa situação intermediária a modernidade está consolidada como programa e empreendimento. Aqui, todo
excesso humano para cima a priori é repudiado. O dever de se manter no centro constitui a impronunciada
sobre-regra do ser-no-mundo como cidadão, súdito e homem”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der
Massen, p 42. Tradução: p 51.
59

Mündigkeit heben zu wollen. Spinoza ist der ewige Anti-Journalist.


Er lügt auch nicht für das groβe Publikum.51

Sloterdijk considera Spinoza o descobridor do filosófico da massa, na medida em

que ele reconhece (ineditamente de forma positiva) que a multidão é dirigida por

imaginações. Neste sentido, ele apresenta o problema fundamental de uma proposta de

democracia moderna: como seria possível o autogoverno da multidão (Selbstregierung der

Menge) se é sua característica essencial não se deixar conduzir prioritariamente pela

Razão? Apesar de árduo defensor de seu projeto democrático, Spinoza não cai no simples

elogio das massas, não as adula. Embora Sloterdijk destaque sua contribuição ao projeto de

desenvolvimento da massa como sujeito, ele reconhece que a filosofia de Spinoza propõe o

inverso: desenvolver a massa como substância (na medida em que a multidão também é

uma modificação da substância divina, mesmo que sua característica principal seja a vida

em imaginações).

Caracterizar as limitações da multidão e propor um sistema democrático constituem

o reconhecimento de um problema político central em Spinoza, como escreve Sloterdijk:

Soll aber die Menge je Gewalt über sich selbst gewinnen – und
nichts anderes meint die von Spinoza erhobene avantgardistische
Forderung nach der demokratischen Staatsform -, so muβ die Frage
geklärt sein, wie eine Selbstregierung der Vielen auf der Basis von
Imaginationen möglich wäre. Dazu ist die Annahme erforderlich,
daβ es unter den Imaginationen solche gibt, die imstande sind, die
Vernunft so gut zu ersetzen, wie diese in einem anderen Register
denn überhaupt ersetzt werden kann. Die spinozanische Demokratie
ist jene Gesellschaftsordnung, die es vermöchte, die Menge mit

51
“Caso se possa reconhecer em Hobbes o senhor da antropologia política dominante até hoje, então Espinosa
pode ser considerado o descobridor filosófico da massa. Espinosa é o primeiro antropólogo da democracia
moderna visto que originalmente propôs a questão de como o auto-governo da multidão seria possível diante
do fato de que esta – seguindo a tradição ele a chama de vulgus – se orienta constantemente por noções
morais, imagens e sensações, em imaginationes, assim como por manifestações como avidez, ira, inveja e
anseio por honra, e não por idéias racionais. Espinosa não perde tempo com a teoria da adulação, que mais
tarde alcançou tanto sucesso, a de querer alçar a multidão sob o ponto de vista da razão ou da maioridade
lógica. Espinosa é o eterno antijornalista. Ele também não mente para o grande público”. SLOTERDIJK,
Peter. Die Verachtung der Massen, p 43. Tradução: p 52-53.
60

wirksamen Vernunftanalogien oder wohltätigen Simulationen zu


versorgen. (...)
Es handelt sich bei diesen Überlegungen um eine groβzügige
Vorausahnung der Massenkultur, weil Spinoza den von para-
rationalen Imaginationen gesteuerten modus vivendi der Vielen als
solchem die Anerkennung nicht verweigert.52

O reconhecimento das massas é pressuposto para que elas possam ganhar poder

sobre si mesmas (Gewalt über sich selbst), ou seja, para a efetividade do conceito de

democracia. Spinoza propõe que se poderia selecionar um conjunto de imaginações para-

racionais que fossem benéficas para as multidões e, ao mesmo tempo, substituísse

funcionalmente a Razão (Sloterdijk destaca a relevância dessa tese para as reflexões sobre

os mitos na democracia baseada em nações). Substituir o discurso racional por imagens é

característica distinta do que denominamos cultura de massas (Massenkultur), porém, em

Spinoza, não há a adulação das massas (atributo comum na cultura de massas

contemporânea), ou seja, ele não se recusa a reconhecer limitações no modus vivendi das

multidões. Porém, segundo Sloterdijk, o desenvolvimento histórico desse reconhecimento

concedido por Spinoza as massas mostra que o problema objetivo do desprezo não é

superado, mas se configura de uma forma diversa:

Tatsächlich stellt Spinozas Theorie der Menge ein nahezu singuläres


Zeugnis dafür dar, daβ es auch einen nicht-heuchlerischen Umgang
mit den beschränkteren Formen der menschlichen Bildung geben
kann – einen Umgang, der das Leben, das auf der Ebene der
Imaginationen verbleibt, als eben das anerkennt, was es ist, als eine
lokale Kristallisation des Unendlichen oder der Gott-Natur. Die
Wirkungsgeschichte des Spinozismus zeigt freilich, daβ Menschen

52
“Mas se um dia a multidão ganhar poder sobre si mesma – e não significa outra coisa que a enaltecida
exigência vanguardista de Espinosa pela forma democrática de Estado -, então deve ser esclarecida a questão
de como seria possível um autogoverno dos muitos baseado em imaginações. Para tal é necessário supor que
entre as imaginações existam aquelas capazes de substituir tão bem a razão como essa pode então ser
substituída em outro registro. A democracia espinosiana é aquela ordem social que pode abastecer a multidão
com eficazes analogias da razão ou simulações caritativas. (...) Trata-se aqui, com estas reflexões, de um
generoso pressentimento da cultura de massas, porque Espinosa não repudia o reconhecimento ao modus
vivendi dos muitos como tal, conduzido por imaginações para-racionais”. SLOTERDIJK, Peter. Die
Verachtung der Massen, p 43-44. Tradução: p 53-54.
61

nicht nur durch verweigerte Anerkennung gekränkt, sondern auch


durch gewährte Anerkennung in Verlegenheit gebracht werden
können.
Darf Spinoza als der Entdecker des politischen Problems der Menge
in ihrer neuzeitlichen Bedeutung von Masse gelten, so ist er zugleich
der Autor, der zuerst die ästhetische und moralische Verlegenheit
offengelegt hat, die mit dem Bemerkbarwerden des Nicht-
Bewerkenswerten im öffentlichen Raum auftaucht.53

Há um constrangimento gerado pelo reconhecimento concedido que é diferente da

ofensa pelo desprezo gerado pelo que antes era reconhecimento recusado. Embora

Sloterdijk reconheça que o reconhecimento concedido por Spinoza ao conceito de massa

abre a possibilidade de uma abordagem não-hipócrita (nicht-heuchlerischen Umgang), ele

também aponta que, em consequência desse reconhecimento, Spinoza é o primeiro a ter de

explicitar o constrangimento estético e moral associado à empreitada de tornar perceptível

a massa. Segundo Sloterdijk, é possível encontrar essa explicitação nas definições dos

afetos feita por Spinoza na Ética. Para construir essa argumentação, Sloterdijk se pauta por

dois pontos: Primeiro, ressalta que as pessoas, no contexto da Ética de Spinoza, ainda são

compreendidas no esquema da teoria da coisa (Schema der Ding-Theorien). Segundo,

recorre à definição do desprezo (contemptus) feita na terceira parte da Ética, que seria o

fracasso de um objeto em sua tentativa de ganhar a atenção da mente (Achtung des

Geistes):

53
“De fato, a teoria da multidão de Espinosa representa um testemunho quase singular do fato de que pode
existir também um trato não-hipócrita com as formas mais limitadas da formação humana – um trato que
reconhece a vida que permanece no plano das imaginações, como justamente aquilo que é, como uma
cristalização local do infinito ou da natureza-Deus. A história do efeito do espinosismo evidentemente mostra
que pessoas não apenas podem ofender-se com o reconhecimento recusado, mas também podem embaraçar-se
com o reconhecimento concedido. Se Espinosa pode ser considerado o descobridor do problema político da
multidão em seu significado moderno de massa, ele é ao mesmo tempo o autor que primeiramente explicitou
o embaraço estético e moral que surge com o tornar-se perceptível do não-digno de ser perceptível no espaço
público”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 44-45. Tradução: p 55.
62

Contemptus est rei alicujus imaginatio, quæ Mentem adeo parum


tangit, ut ipsa Mens ex rei præsentia magis moveatur ad ea
imaginandum, quæ in ipsa re non sunt, quam quæ in ipsa sunt.54

Sloterdijk se vale da definição de Spinoza como uma fórmula, sugerindo a

substituição da palavra coisa (res) por massa. Seguindo este raciocínio, a massa seria

definida como algo impossibilitado de atrair a atenção da mente. Neste sentido, Sloterdijk

desenvolve as seguintes conseqüências:

... weil die Masse, insofern sie – zunächst und zumeist – das Nicht-
Besondere verkörpert, das Unbeachtliche als solches ist. Die
entdeckung der Masse bringt die Erhebung des Uninteressanten in
den Rang des Interessanten mit sich. (...) Das Uninteressante, das als
solches auffällig wird, ist somit die logische Form des Verächtlichen
– in ihm drängt sich die real existierende Nichtigkeit ins Blickfeld.
(...) In der Verlängerung dieser Überlegung findet sich die Evidenz,
warum die Massenkultur für alle Zeit an den Versuch gebunden sein
wird, das Uninteressante als das Auffälligste zu entfalten. (...) Kein
Zufall, daβ Massenkultur überall, wo sie sich geltend macht, auf die
Verbindung von Trivialität mit Spezialeffekten setzen wird.55

A multidão, por definição, não pode ser compreendida segundo as distinções

características de um indivíduo, e, enquanto se constitui como fenômeno de massa, torna-se

uma multidão em que o indivíduo experimenta um sentimento de igualdade com os demais,

como apenas mais uma parte da massa. É neste sentido, portanto, que a massa, por

constituir-se no não-específico (das Nicht-Besondere), é o não-perceptível (das

Unbeachtliche) enquanto tal. Conseqüentemente, reconhecer a massa é tornar interessante

54
“Desprezo é a imaginação de uma coisa que toca tão pouco a mente, que a mente, pela presença da coisa, é
mais movida antes a imaginar aquilo que não está na coisa do que aquilo que está”. SPINOZA, Baruch.
Ethica Ordine Geometrico Demonstrata, parte 3, definição 5. IN: “Spinoza Opera”, vol.II ed. Carl Gebhardt,
Heidelberg 1925.
55
“porque a massa, na medida em que – primeira e geralmente – encarna o não-particular, é o não perceptível
como tal. A descoberta da massa acarreta a elevação do desinteressante ao plano do interessante. (...) O
desinteressante, que como tal se torna visível, é portanto a forma lógica do desprezível – nele avança para o
campo visual a nulidade realmente existente. (...) No prolongamento dessa reflexão se encontra a evidência de
como a cultura de massa estará sempre ligada à tentativa de desenvolver o desinteressante como o mais
perceptível. (...) Não é por acaso que a cultura de massas, em toda parte onde prevalece, aposta na ligação de
trivialidade com efeitos especiais”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 46. Tradução: p 56-
57.
63

o não-interessante. Sloterdijk qualifica esse processo como a forma lógica do desprezível

(logische Form des Verächtlichen) que é, propriamente, o método de tornar visível o

desinteressante: empurrar para o palco da visibilidade o vazio real existente (die real

existierende Nichtigkeit). A forma lógica do desprezível revela a principal diretriz da

cultura de massa: sempre tentar desenvolver o desinteressante como o mais impressionante.

É por essa característica que, em qualquer lugar que se identifique a cultura de massas, esta

sempre lida com a mistura de trivialidade e efeitos especiais.

A aplicação da forma lógica do desprezível à história dos tempos modernos revela a

estrutura do roteiro das sucessivas lutas por reconhecimento. Sloterdijk descreve como se

dá tal processo na seguinte passagem:

Es ist kaum zu verkennen, daβ die Geschichte der Neuzeit eine


Sequenz Von Aufständen der vormals uninteressant scheinenden
Gruppen gegen die Verachtung oder nicht-Beachtung darstellt. Die
jüngere Sozialgeschichte hat ihre Substanz – besser ihr Drehbuch –
in einer Serie von Kampagnen zur Aufrichtung der Selbstachtung, in
der immer neue Kollektive sich mit ihren Ansprüchen auf
Anerkennung nach vorne wagen. (...) Jedes neu auftretende
politische Subjekt verschafft sich Bedeutung und Beachtung zum
einen, indem es sich als Aktionszentrum gebärdet, das wie ein Herr
auch drohen und den Ernstfall erklären kann, zum anderen, indem es
in sich selbst eine Gipfelposition der wahren Menschlichkeit
erkennt. Damit ist klar, daβ es bei solchen Reklamationen stets um
die Erstürmung der Höhen von gestern zu tun ist – um die
Eroberung der Position, die bisher Achtung in Fülle besaβ und daher
Achtung zu vergeben hatte.56

56
“Não há como não ver que a história dos tempos modernos apresenta uma seqüência de revolta de grupos
antes aparentemente desinteressantes contra o desprezo ou não-atenção. A história social mais recente tem sua
substância – melhor dizendo, seu roteiro – numa série de campanhas para a elevação da dignidade, na qual
sempre novos coletivos ousam tomar a dianteira com suas reivindicações de reconhecimento. (...) Cada novo
sujeito político que surge alcança importância e consideração, por um lado na medida em que se mostra com
centro de ação, que como um senhor também pode ameaçar e decretar emergência, e por outro, na medida em
que atribui a si mesmo uma posição elevada de verdadeiro humanitarismo. Com isso torna-se claro que, em
tais reclamações, sempre nos deparamos com a tomada de assalto dos elevados de ontem – para a conquista
da posição que até então despertava atenção em abundância e por essa razão tinha atenção a dar”.
SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 46-47. Tradução: p 58.
64

O projeto moderno de desenvolver a massa enquanto sujeito implica na aplicação

da lógica do desprezível ao tempo. Enquanto processo em construção, o projeto se

desenvolve através dos sucessivos levantes de diferentes sujeitos coletivos em lutas pela

elevação de sua auto-estima (Kampagnen zur Aufrichtung der Selbstachtung). O antes

desinteressante quer tornar-se interessante. O roteiro dessas lutas por reconhecimento

possui um modus operandi: o coletivo desprezado deve mostrar sua força impondo-se

como centro da ação (Aktionszentrum), como sendo capaz de ameaçar e decretar

emergência, e, ao mesmo tempo, mostrar que é o real defensor do verdadeiro

humanitarismo (Menschlichkeit). Essas duas ações são os passos do sujeito coletivo para a

conquista de importância (Bedeutung) e atenção (Beachtung), ou seja, a negação da recusa

de reconhecimento com que se deparou.

A próxima contribuição ao projeto moderno de desenvolver a massa como sujeito

virá de Hegel. Em sua análise da dialética entre senhor e servo, Sloterdijk encontrará a

descrição mais precisa do roteiro das tomadas de assalto dos sujeitos políticos em busca de

reconhecimento:

Mit einer verwandten Denkbewegung wird Hegel in seiner Analyse


der Dialektik von Herr und Knecht zeigen, wie aus dem
unterworfenen und verachteten Teil von gestern der herrschende und
sich selber achtende Teil von heute hat werden können. Im Anfang
hatte der Kontrahent, der in die Knechtsposition geraten sollte, beim
Kampf um Anerkennung auf Leben und Tod gezittert; er hatte in
dem Tod, der ihm am Ende des ersten Zweikampfs vor Augen stand,
seine Grenze gefunden, und in dem, der ihn geben konnte, seinen
Herrn erblickt. Infolge seines Zitterns hatte der Verlierer sich
unterworfen und mit dem Flehen um sein Leben das Beten gelernt,
mit dem Beten die Sklavensprache als das Herrscherlob, den willig-
willenlosen Gehorsam und die Zeichen der alleuntertänigsten Demut
vor den Siegern, den Gewaltigen und den hohen Erben. Aber indem
nun der Knecht unter Verzicht auf direkten Selbstgenuβ ein
Weltalter lang die reale Arbeit tut, wächst in ihm das praktische
Können, das die Welt aufschlieβt. Er gewinnt die Vollmacht, die im
Handanlegenkönnen und im Wissen-Wie besteht, während sich der
65

Herr mehr und mehr in ein impotentes Genieβen von Resultaten


fremder Leistung verschlieβt, bei dem er den operativen Griff auf
die Dinge verliert. Am Ende bleibt vom Herrn nur eine
sensualistische Hülse übrig; der polytechnisch tätige Knecht ist es,
der sich als der neue Meister der Welt und seiner selbst zu genieβen
anschickt. Wenn Hegel, Spinozas Doktrin umkehrend, die Substanz
als Subjekt entwickeln will, so hat dieses Unternehmen in der
unaufhaltsamen Emanzipation des Knechts die Quelle seiner
Plausibilität. Wo Knechte waren, werden Ingenieure, Beamte,
Unternehmer, Wählen sein; wo Herren waren, müssen neue Aufgabe
definiert werden.57

Hegel inverte a doutrina de Spinoza, tornando explícito o projeto da modernidade:

desenvolver a substância como sujeito (seguindo Sloterdijk, a massa é essa substância

ainda não-reconhecida). A busca por reconhecimento e liberdade da massa servil segue a

estrutura da celebre dialética hegeliana do senhor e do servo. O caminho do

reconhecimento, e, portanto, da superação do desprezo, passaria pelo poder operativo que a

massa ganhou sobre o mundo:

Die verdunkelte Teil der vormaligen Substanz, die knechtische


Masse, ist nicht länger verächtlich, wenn sie durch die Bearbeitung
und Meisterung aller Materien die Macht ergreift. Mag sie auch am
Beginn der geschichtemachenden Kämpfe in die entwürdigte
Position geraten sein, denn wer um sein Leben gefleht hat, ist nicht
mehr satisfaktionsfähig, so will sie doch am Ende der Geschichte zu
der universalen Klasse werden, die sich selbst befriedigt. Der Grund

57
“Com movimento de pensamento semelhante, em sua análise da dialética entre senhor e servo Hegel
mostrará como a parte subjugada e desprezada de ontem pôde tornar-se a parte dominante e auto-estimada de
hoje. No início o contraente, que deveria cair a posição de servo, tremera na luta por reconhecimento de vida
ou morte; na morte, que estava diante dele no final do primeiro duelo, ele encontrara seu limite, e naquele que
pôde dar-lho, avistou seu senhor. Em conseqüência de seu estremecimento, o perdedor se submetera e
aprendera a rezar ao implorar pela sua vida, e, com a reza, a língua dos escravos como sendo o elogio do
senhor, a obediência solícita e sem vontade e os sinais da maior humildade possível diante dos vencedores,
dos poderosos e dos herdeiros importantes. Mas na medida em que então que o servo executa o trabalho
verdadeiro sob renúncia ao autodesfrute direito durante toda uma era, cresce nele o poder prático que lhe
revela o mundo. Ele conquista o pleno poder que consiste no poder-ajudar e no saber-como, enquanto o
senhor cada vez mais se tranca num desfrute impotente de resultados de méritos alheios, no qual perde o
alcance operativo [imperativo] das coisas. No fim resta do senhor apenas um invólucro sensualista; é o servo
politecnicamente ativo que, como novo mestre do mundo e de si mesmo, se dispõe ao prazer. Quando Hegel,
invertendo a doutrina de Espinosa, quer desenvolver a substância como sujeito, esse empreendimento tem a
fonte de sua plausibilidade na incessante emancipação do servo. Onde havia servos, haverá engenheiros,
funcionários, empresários, eleitores; onde havia senhores devem ser definidas novas tarefas”. SLOTERDIJK,
Peter. Die Verachtung der Massen, p 48-49. Tradução: p 59-60 (correção nossa).
66

der Gleichheit aller erscheint jetzt als ihr gemeinsames


Heraufgekommensein aus der Uninteressantheit ins „Licht der
Öffentlichkeit“. Wer gearbeitet hat, darf sich auch sehen lassen.
Doch eben mit dieser Möglichkeit eines allgemeinen Hervortretens
macht sich eine neue, für die Zukunftswelt entscheidende grelle
Differenz bemerkbar: Infolge der Aufklärung klafft auf, was über
die Aufklärung hinausdeutet – die politische Lichtung, der
Unternehmungsspielraum, die Marktlücke und die historische
Chance dessen, der wagt, um zu gewinnen, und der gewinnt, weil er
sein Glück festhielt, als es sich eine Sekunde lang günstig zeigte.58

O desfecho do roteiro histórico do drama do desprezo é o momento em que a massa

servil torna-se classe universal e auto-satisfatória. Assim, a resolução hegeliana do

problema objetivo do reconhecimento é o desenvolvimento final de toda substância

desprezada como sujeito. Mas a construção da prática de um reconhecimento de todos (a

evidenciação geral – allgemeinen Hervortretens), que seria uma consequência direta do

Iluminismo (Aufklärung), abre possibilidades que vão muito além das pretensões

iluministas: a clareira política (politische Lichtung), o espaço de empreendimento

(Unternehmungsspielraum), a lacuna de mercado (Marktlücke) e a chance histórica em um

oportunismo súbito de sorte. A implantação da igualdade pós-servil gera esses efeitos, que

extrapolam pretensões meramente iluministas, porque tem de ser construída no tempo

histórico:

Daβ die nach-knechtische Selbstbefriedigung nicht auf der Stelle


erfolgen kann, sondern die Feschichte der Arbeit und die Arbeit der
Geschichte zur Voraussetzung hat – diese Mahnung zu historischer

58
“A parte obscurecida da substância anterior, a massa serva, não será por muito tempo desprezível se, por
meio da elaboração e do domínio de todas as matérias, tomar o poder. Pode ela, no início das lutas que fazem
história, ter caído para a posição aviltante, pois quem implorou pela sua vida não é mais capaz de satisfazer-
se, então quer tornar-se uma classe universal que se auto-satisfaça. A razão da igualdade de todos agora
aparece como a sua ascensão conjunta a partir da desinteressância rumo à ‘luz da opinião pública’. Quem
trabalhou também pode deixar-se ver. Mas, justamente com essa possibilidade de uma evidenciação geral faz-
se notar uma nova diferença gritante, decisiva para o mundo do futuro: em conseqüência do esclarecimento
abre-se aquilo que aponta para além do esclarecimento – a clareira política, o espaço de empreendimento, a
lacuna de mercado e a chance histórica daquilo que ousa para ganhar, e ganha porque segurou firme a sua
sorte quando ela se mostrou favorável por um único segundo”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der
Massen, p 49-50. Tradução: p 60-61.
67

Geduld geht schon aus der Hegelschen Untersuchung hervor. Die


selbstbefriedigende Masse wird durch einen unvermeidlichen
Aufschub vom definitiven Selbstgenuβ getrennt. (...) Vor dem
Genuβ, die Umverteilung; vor der Umverteilung, die
Mehrheitsherrschaft. Für dieses Programm ist Zeit vonnöten, und
nur in dieser zielgerichteten Zeit, der eigentlichen
Fortschrittsperiode, kann die geduldige Ungeduld mit den Gründen,
die den Aufschub erzwingen, zur Triebfeder der weiterführenden
Geschichtsaktionen werden. Die Zeit soll reif werden, für das, was
kommen soll, doch kann, was kommen wird, zugleich nur durch die
Ungeduld mit dem Bestehenden dazu gebracht werden einzutreten.
Tatsächlich wird die Unzufriedenheit im 18. Jahrhundert gelehrt
und im 19. militant; mit Hilfe derer, die als Sprecher der
informierten Empörung die Intellektuellen heiβen, gibt sie sich eine
offensive Verfassung.59

É no tempo que o problema objetivo do desprezo tem de ser resolvido. Mas coloca-

se a questão de se a aplicação no tempo desse roteiro moderno não mudaria a própria

estrutura da desprezabilidade. Antes de abordar esse ponto, Sloterdijk cita o jovem Karl

Marx como um dos que mais contribuíram para as disposições ofensivas da indignação

informada militante. Segundo Sloterdijk, a ofensiva do jovem Marx pode ser sintetizada em

uma afirmação que faz a respeito de um trecho da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel:

Die Kritik der Religion endet mit der Lehre, daβ der Mensch das
höchste Wesen für den Menschen sei, also mit dem kategorischen
Imperativ, alle Verhältnisse umzuwerfen, indenen der Mensch ein
erniedrigtes, ein geknechtetes, ein verlassenes, ein verächtliches
Wesen ist (...) 60

59
“O fato de que auto-satisfação pós-servil não se dê imediatamente, mas tem como pressuposto a história do
trabalho e o trabalho da História, tal exortação à paciência histórica já aparece na investigação de Hegel. A
massa que se auto-satisfaz é separada pelo definitivo autodesfrute por meio de uma inevitável prorrogação.
(...) Diante do desfrute, a redistribuição, diante da redistribuição, o domínio da maioria. Para esse programa é
necessário tempo, e somente nesse tempo objetivo definido, o verdadeiro período de progresso, a paciente
impaciência com os motivos que forçam a prorrogação pode tornar-se a razão das continuadas ações na
História. (...) De fato, ensina-se a insatisfação século XVIII e, no XIX, ela se torna militante; com ajuda
daqueles que, porta-vozes da indignação informada, se chamam intelectuais, ela apresenta uma disposição
ofensiva”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 49-50. Tradução: p 50.
60
“A crítica da religião termina com a tese de que o homem seria o ser supremo para o homem, portanto com
o imperativo categórico de derrubar todas as relações nas quais o homem é um ser rebaixado, servil,
abandonado, desprezível (...)”. MARX, Karl. Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie, IN:
SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 51. Tradução: p 63.
68

Sobre esta passagem, escreve Sloterdijk:

Sie gründet in der Forderung, das gesamte System der Verhältnisse


aufzuheben, das zur Erniedrigung von Menschen und ihrem Reflex
in der Verachtung führt.61

Para Sloterdijk, a frase de Marx é a mais perfeita expressão da ética dos jovens

hegelianos. A necessidade de desenvolver a massa como sujeito encontra seu imperativo:

derrubar todas as relações (alle Verhältnisse umzuwerfen) que levam ao desprezo do ser

humano, e, portanto, das massas. Sloterdijk destaca as relações de desprezo enfatizadas por

Marx:

Verächtlich gemacht oder entmenscht werden die Mehrheiten in den


traditionellen Klassengesellschaften nach der Einsicht von Marx auf
zweifache Weise – politisch in den Ordnungen der verkrümmenden
Herrschaft, deren Resultat der herabgedrückte, der servile Mensch
ist; gesellschaftlich im System der entleerenden Arbeit, deren
Resultat die proletarische Psyche ist. Die beiden Deformationen
flieβen jedoch – das haben die hellen Autoren des Bürgertums und
der Linken nicht gewuβt oder nicht wissen wollen – in einem
unstillbaren Bedürfnis nach Kompensation und Rache zusammen –
einem Bedürfnis, zu dessen Befriedigung die Unterhalttungs- und
Erniedrigungsindustrien des 20. Jahrhunderts angetreten sind. Die
dritte Verächtlichkeit des Menschen, seine Bloβstellung im System
vulgarisierender, prostituierender und flexibilisierender
Kommunikationen – dieser interaktive Krebs des Medienzeitalters
ist für die Revolutionäre des 19. Jahrhunderts noch auβer Sichtweite,
nur einige eminente Künstler, Baudelaire und Mallarmé in erster
Linie, haben auf die zunehmende Fixierung des Menschen in der
Erniedrigung durch Trivialkommunikationen mit prophetischer
Heftigkeit reagiert.62

61
“Ela se fundamente na exigência de abolir todo o sistema das relações que leva ao rebaixamento de pessoas
e ao seu reflexo no desprezo”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 51. Tradução: p 63.
62
“Tornadas desprezíveis ou desumanas, as maiorias nas tradicionais sociedades de classe, segundo Marx, são
divididas de duas formas: politicamente, em ordens de dominações em processo de deformação, cujo
resultado é o homem oprimido, servil; e socialmente, no sistema de trabalho esvaziante, cujo resultado é a
psique proletária. As duas deformações, porém – isto os autores iluminados da burguesia e da esquerda não
souberam ou não quiseram saber – confluem, numa necessidade insaciável, para compensação e vingança –
uma necessidade para cuja satisfação surgiram as indústrias do entretenimento e do rebaixamento do século
XX. A terceira forma de desprezo do homem, sua exposição no sistema de comunicações vulgarizantes,
prostituintes e flexibilizantes – esse câncer interativo da mídia – ainda está fora do campo de visão dos
revolucionários do século XIX; somente alguns artistas eminentes, Baudelaire e Mallarmé sobretudo,
69

Neste trecho, Sloterdijk identifica três relações de desprezo. A terceira forma,

vulgarização do homem nos sistemas de comunicação (câncer interativo da mídia -

interaktive Krebs des Medienzeitalters), esteve longe de ser pensada pelos revolucionários

do século XIX; apenas na arte surgem reações contra ela (Baudelaire e Mallarmé). A

primeira forma de desprezo é a política, produzindo o homem servil e oprimido. Segundo

Sloterdijk, não falta clareza a Marx quanto a essa forma de desprezo. A segunda forma de

desprezo é social: o sistema de trabalho esvaziante (entleerenden Arbeit) que produz a

psique proletária. Contudo, Sloterdijk observa que as duas formas de desprezo (política e

social) levam a um reforço da terceira forma (midiática), que passou despercebida aos

teóricos do século XIX e foi apenas intuída quase que profeticamente por alguns artistas

eminentes. O sistema de dominação que gera o homem servil e o sistema social que gera a

psique proletária produzem juntos uma necessidade de compensação e vingança

(Kompensation und Rache), visando atender a essa demanda que surgem as indústrias do

entretenimento e do rebaixamento (Unterhalttungs- und Erniedrigungsindustrien) do

século XX. Portanto, a indignação informada das massas em função das relações de

desprezo, tanto social quanto política, encontra seu alívio justamente em outra espécie de

desprezo do homem, o entretenimento midiático vulgar. Marx, preocupado com seu

imperativo revolucionário, embora com uma clara posição em relação a forma de desprezo

político, manteve uma postura ambivalente em relação à forma de desprezo social, como

afirma Sloterdijk:

In bezug auf die zweite Form der Verächtilichkeit, die aus der
Gefangenschaft der Mehrheiten im system entfremdender Arbeit
entspringt, blieb Marx einer verführerischen Ambivalenz verhaftet,
weil seine Doktrin unfähig war, zu entscheinden, ob sie für die

reagiram com profética veemência à crescente fixação do homem no rebaixamento por meio de comunicações
triviais”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 52. Tradução: p 63-64.
70

Milderung oder die Verschärfung der proletarischen Misere


plädieren wollte. Zu sehr war sie interessiert an dem Trugbild des
selbsterlösenden Klassenzorns, der nur aus der tiefsten Verelendung
aufsteigen könnte.63

O agravamento da fúria de classe (Klassenzorn) foi o impulso necessário para

derrubar as relações de desprezo do homem, e, nesse sentido, desenvolver a massa como

sujeito e, portanto, reconhecida como senhor, não mais como serva. Mas essa fúria dilui-se

no entretenimento ordinário das massas com seu reflexo na mídia. Assim, ao contrário de

ser um impulso destruidor de todas as relações de desprezo do homem em vista da

conquista por reconhecimento, torna-se o criador de uma nova forma de desprezo.

Sloterdijk observa essa nova situação de perigo imposta aos teóricos “protetores’’ das

massas:

Doch schon zu Marxens Zeiten haben die pragmatischen Kräfte der


Arbeiterbewegung sich dafür stark gemacht, auch stetige kleine
Verbesserungen der proletarischen Situation als Erfolge in dem
Langzeitprojekt der Massenkultivierung hoch zu schätzen. Niemand
wird dem sozialdemokratischen Pragmatismus seine
Wahrheitmomente abstreiten. Und doch, aus der „verfrühten“
Satisfaktion über kleine Schritte zum limitierten Konsum erwächst
der Masse und ihren theoretisierenden Schutzherren eine neue
Gefährdung: Wie, wenn solcher Fortschritt in der Ebene nur der
Strukturwandel der Verächtlichkeit wäre?64

A mudança de estrutura da desprezabilidade é uma nova configuração do desprezo

em uma forma midiática com vistas a atender as necessidades geradas pelo desprezo social

63
“Com respeito a segunda forma de desprezo, que surge do cativeiro das maiorias no sistema de trabalho
alienado, Marx permaneceu preso a uma ambivalência sedutora, porque sua doutrina era incapaz de decidir se
queria defender o abrandamento ou o agravamento da miséria proletária. Ela estava por demais interessada na
ilusão da fúria de classe auto-redentora, fúria que só podia ascender partindo do mais profundo
empobrecimento.”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 53. Tradução: p 65.
64
“Mas já nos tempos de Marx as forças pragmáticas do movimento dos trabalhadores se empenharam em
também defender constantes e pequenas melhoras da situação proletária como êxitos no projeto de longo
prazo do refinamento das massas. Ninguém contestará os momentos de verdade do pragmatismo social-
democrata. Contudo, da satisfação ‘prematura’ com os pequenos passos para o consumo limitado nasce para a
massa e seus protetores teorizantes uma nova situação de perigo: mas como, se tal progresso estivesse no
plano apenas da mudança de estrutura da desprezabilidade?” SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der
Massen, p 54. Tradução: p 66.
71

e político das massas. Para Sloterdijk, Friedrich Nietzsche foi o primeiro a reconhecer o

problema dessa nova estrutura do desprezo:

Auch der Autor des Zarathustra hat – hierin dem Real-Idealisten


Hegel ähnlicher, als die meisten Exegeten beider zugeben – darauf
bestanden, daβ Verächtlichkeit etwas Objektives sei, das nicht durch
bloβes subjektives Aufhören mit dem Verachten aufgehoben werden
kann. Die sozialdemokratische Gutmütigkeit kann das Problem des
Widerstreits von Vertikalität und Horizontalität im Ringen um
Anerkennung nicht lösen. Ja, die von Verachtung scheinbar freie
Selbstgefälligkeit des letzten Menschen wird von Nietzsche
geradewegs als Inbegriff des objektiv Verächtlichen bestimmt.65

Nietzsche, para Sloterdijk, é quem mais claramente percebeu que o moderno

projeto de desenvolver a massa como sujeito não resolve o problema de reconhecimento

(isto é, não acaba com o desprezo). A nova estrutura da desprezabilidade é encarnada no

conceito de último homem (letzte Mensch) de Nietzsche, apresentado em Assim falou

Zarathustra:

Wehe! Es kommt die Zeit, wo der Mensch keinen Stern mehr


gebären wird. Wehe! Es kommt die Weit des verächtlichsten
Menschen, der sich selber nicht mehr verachten kann.
Seht! Ich zeige euch den letzten Menschen.
»Was ist Liebe? Was ist Schöpfung? Was ist Sehnsucht? Was ist
Stern« - so fragt der letzte Mensch und blinzelt.
Die Erde ist dann klein geworden, und auf ihr hüpft der letzte
Mensch, der Alles klein macht. Sein Geschlecht ist unaustilgbar, wie
der Erdfloh; der letzte Mensch lebt am längsten.
»Wir haben das Glück erfunden« - sagen die letzten Menschen und
blinzeln.
Sie haben den Gegenden verlassen, wo es hart war zu leben: denn
man braucht Wärme. Man liebt noch den Nachbar und reibt sich an
ihm: denn man braucht Wärme.

65
“O autor de Zaratustra também insistiu – nisso mais semelhante ao real-idealista Hegel do que admitem a
maioria dos exegetas de ambos – que desprezo fosse algo objetivo que não pode ser abolido pelo mero
término subjetivo da desprezabilidade. A benevolência social-democrata não pode solucionar o problema do
conflito entre verticalidade e horizontalidade na luta por reconhecimento. Sim, a presunção aparentemente
livre de desprezo do último homem é determinada por Nietzsche justamente como a essência do
objetivamente desprezível”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 54-55. Tradução: p 66-67.
72

Krankwerden und Misstrauen-haben gilt ihnen sündhaft: man geht


achtsam einher. Ein Thor, der noch über Steine oder Menschen
stolpert!
Ein wenig Gift ab und zu: das macht angenehme Träume. Und viel
Gift zuletzt, zu einem angenehmen Sterben.
Man arbeitet noch, denn Arbeit ist eine Unterhaltung. Aber man
sorgt dass die Unterhaltung nicht angreife.
Man wird nicht mehr arm und reich: Beides ist zu beschwerlich.
Wer will noch regieren? Wer noch gehorchen? Beides ist zu
beschwerlich.
Kein Hirt und Eine Heerde! Jeder will das Gleiche, Jeder ist gleich:
wer anders fühlt, geht freiwillig in's Irrenhaus.
»Ehemals war alle Welt irre« - sagen die Feinsten und blinzeln.
Man ist klug und weiss Alles, was geschehn ist: so hat man kein
Ende zu spotten. Man zankt sich noch, aber man versöhnt sich bald -
sonst verdirbt es den Magen.
Man hat sein Lüstchen für den Tag und sein Lüstchen für die Nacht:
aber man ehrt die Gesundheit.
»Wir haben das Glück erfunden« - sagen die letzten Menschen und
blinzeln.66

O último homem torna tudo pequeno, inclusive ele mesmo. A sociedade dos

últimos homens é imagem da igualdade antropológica feita por baixo (Jeder will das

Gleiche, Jeder ist gleich). O ato de piscar o olho (blinzeln) é o símbolo de um tácito pacto

sobre a conformação do que se diz com a realidade. A nova configuração da

66
“Oh! Chega o tempo em que o homem não dará mais à luz uma estrela. Oh! Chega o tempo do mais
desprezível dos homens, que não pode mais desprezar a si próprio. Vejam! Mostro-lhes o último homem. ‘O
que é amor? O que é criação? O que é nostalgia? O que é estrela’ – assim pergunta o último homem e pisca os
olhos. A terra se tornou pequena então, e sobre ela saltita o último homem, que torna tudo pequeno. Sua
estirpe é indestrutível, como a pulga; o último homem é o que mais tempo vive. ‘Nós inventamos a felicidade’
– dizem os últimos homens, e piscam os olhos. Abandonaram as regiões onde é duro viver, pois se precisa de
calor. Inclusive, ama-se o vizinho e se esfrega nele, pois se precisa de calor. Adoecer e desconfiar, eles
consideram perigoso: caminha-se com cuidado. Louco é quem continua tropeçando com pedras e com
homens! Um pouco de veneno, de vez em quando, isso produz sonhos agradáveis. E muito veneno, por fim,
para ter uma morte agradável. Continua-se trabalhando, pois o trabalho é um entretenimento. Mas evitamos
que o entretenimento canse. Já não se torna nem pobre, nem rico: as duas coisas são demasiado molestas.
Quem ainda quer governar? Quem ainda quer obedecer? Ambas as coisas são demasiado molestas. Nenhum
pastor e um só rebanho! Cada um é o mesmo, cada um é igual: quem sente de outra maneira segue
voluntariamente para o hospício. ‘Antigamente, todo mundo era louco’ – dizem os mais sutis e piscam o olho.
É-se esperto e sabe-se de tudo, o que acontece é: assim se tem uma ridicularização sem fim. Ainda se discute,
mas logo se reconcilia, senão estropia o estômago. Tem-se seu prazerzinho para o dia e seu prazerzinho para a
noite: mas preza-se a saúde. ‘Nós inventamos a felicidade’ – dizem os últimos homens, e piscam os olhos”.
NIETZSCHE, Friedrich. Also sprach Zarathustra. IN: KSA, vol. 4, p 19 (as partículas se grifadas indicam a
tradução de man do original alemão, no sentido de indeterminação do sujeito).
73

desprezabilidade é pronunciada pelos últimos homens como a felicidade que eles mesmos

inventaram. Sobre essa felicidade como a nova desprezabilidade, observa Sloterdijk:

Es ist nicht die Selbstbefriedigung als solche, die sich hier das
Prädikat verächtlich verdient hat; Verächtlichkeit ist die allzu
befriedigt zur Schau gestellte Beschränktheit in der
Selbstbefriedigung zur Schau gestellte Beschränktheit in der
Selbstbefriedigung. Verächtlich ist der letzte Mensch in Zarathustras
Augen, weil er hat haltmachen wollen bei den profanen, den
endlichen, den in der Horizonalen erschöpften „Lüstchen“.
Verächtlich sind für ihn die letzten Menschen, weil sie die
aristokratischen Leidenschaften, die Passionen der
Selbstüberschreitung und die kreative Verausgabung, zu einer
Verrücktheit erklärt und damit begonnen haben, die Maβstäbe des
herausgeforderten und gesteigerten Lebens insgesamt im Namen
einer ausgeheilten Vernunft der Ebene verächtlich zu machen. (...)
Verächtlich scheinen also jene Verächter, die abgestumpft sind
gegen jede Regung, die über Wertungen, Wünsche und
Verständigungsverfahren der selbstbefriedigenden Mitte
hinausginge. Zarathustra nimmt es auf sich, den letzten Menschen zu
verachten, weil sein Mitgefühl ihm verbietet, ein Menschenleben
gutzuheiβen, das von sich selbst so wenig verlangt, daβ es schon die
bloβe Möglichkeit von Selbstverachtung abgelegt hat. Wer den
Menschen weiterträumt, hütet die Möglichkeit, ihn auch noch zu
verachten.67

A felicidade do último homem é limitada aos seus pequenos prazeres (Lüstchen),

portanto, segundo Sloterdijk, é uma felicidade esgotada na horizontal. Em Nietzsche, a

estrutura da desprezabilidade torna-se mais complexa. A anterior missão histórica de

acabar com todas as relações onde o ser humano é desprezível torna-se ela própria uma

67
“Não foi a auto-satisfação como tal que mereceu aqui ser caracterizada como desprezível; desprezibilidade
é a limitação demasiada satisfeita e exposta na auto-satisfação. O último homem aos olhos de Zaratustra é
desprezível porque quis parar nos “desejozinhos” profanos, finitos, esgotados na horizontal. Para ele,
desprezíveis são os últimos homens porque seu prazer não está aberto para cima. Eles lhe parecem dignos de
desprezo sobretudo porque declararam ser um devaneio as paixões aristocráticas, as paixões de auto-
superação e o esgotamento criativo, e com isso começaram a tornar desprezíveis os padrões de vida desafiada
e elevada conjuntamente em nome de uma razão agora saudável da planície. (...) Portanto, desprezíveis
parecem aqueles desprezadores embotados contra todo movimento que ultrapasse valorações, desejos e
procedimentos de compreensão do centro auto-satisfeito. Zaratustra toma a seu cargo desprezar o último
homem porque sua simpatia o proíbe aprovar uma vida humana que exige tão pouco de si própria que já
perdeu a mera possibilidade de autodesprezo. Quem continua a almejar o homem, mantém a possibilidade de
ainda poder desprezá-lo”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 55-56. Tradução: p 67-68.
74

reafirmação da desprezabilidade. O roteiro de desenvolver a massa como sujeito acaba por

desenvolver a própria desprezabilidade, porém, como o problema de reconhecimento não é

subjetivo, o desprezo toma a forma na figura do último homem. Se a missão de destruir as

relações de desprezo do homem malogrou, coube a Nietzsche, através de Zarathustra,

recuperá-la e resignificá-la: o último homem deve ser desprezado, essa é a máxima de

Zarathustra que traduz a radicalidade anterior de tentar superar as estruturas de desprezo.

Zarathustra despreza o último homem, mas, no sentido inverso, também é desprezado pelo

último homem. Os últimos homens continuam com a prática de destruir todas as relações

de desprezo, porém, tomam a si mesmos como parâmetro. O último homem torna-se a

própria objetificação do desprezo, pois, embora não aceite qualquer valoração maior que

ele mesmo, perdeu a possibilidade do autodesprezo (Selbstverachtung). Perder a

possibilidade de se autodesprezar e promover uma redução antropológica na horizontal,

essas duas ações juntam criam a aparência de que o desprezo foi dissolvido e acabou-se. O

piscar dos olhos (blinzeln) dos últimos homens quando dizem que inventaram a felicidade é

o pacto silencioso sobre o suposto fim do desprezo. Para Sloterdijk, aí reside a provocação

de Nietzsche, ao tornar Zarathustra o grande desprezador de cima dos pequenos

desprezadores de baixo:

Nietzsche unauslotbare Provokation besteht darin, daβ er die


Verachtung der Menge für alles, was ihre Einrichtung im Horizont
überschreitet, zum Material und Widerstandsmasse macht für eine
korrektive, eine potenzierende Verachtung. Mit Zarathustra
Intervention gewinnt das Verachten eine komplexe Verfassung: In
der zweiten Verachtung wird eine vorhergehende Verachtung gegen
sich selbst gekehrt und umgewertet. (...)
Mit Notwenddigkeit tritt nun auch die zweite oder
zusammengesetzte Verachtung doppelt auf, einmal von unten als
offensive Verachtung der Eliten durch die neuen flexibilisierten
Massen, die ihren way of life zum Maβ aller Dinge machen und sich
ihrer verachtenden Beobachter entledigen wollen; und als
Verachtung der Massen und ihres breiten Idioms durch die letzten
75

Elitären, die ihre Ziele von der Masse berachtet wissen und ahnen,
daβ es mit dem, was ihnen am Herzen liegt, in der aufziehenden
Massenkultur ein für alle Mal vorbei ist. Was die zweite Position
angeht, so wird es wohl für alle Zukunft kaum möglich sein, ihr
einen eloquenteren Anwalt als Friedrich Nietzsche zu besorgen.68

O desprezo que Zarathustra dirige ao último homem não é como o antigo desprezo

das massas (ele almeja uma superação do homem através do conceito de Übermensch).

Esse desprezo é a transformação do próprio desprezo da multidão por tudo (Verachtung der

Menge für alles) que ultrapassa seu sistema de valoração em desprezo corretivo e

potencializador. Ou seja, o desprezo é revalorizado verticalmente e dirigido contra aqueles

que são incapazes de se autodesprezar (os últimos homens). Nietzsche, na Genealogia da

Moral, expõe o conflito entre os valores verticais e horizontais, imputando ao filósofo a

tarefa de resolver o problema de valoração:

Die Frage: was ist diese oder jene Gütertafel und »Moral« werth?
will unter die verschiedensten Perspektiven gestellt sein; man kann
namentlich das »werth wozu?« nicht fein genug aus einander legen.
Etwas zum Beispiel, das ersichtlich Werth hätte in Hinsicht auf
möglichste Dauerfähigkeit einer Rasse (oder auf Steigerung ihrer
Anpassungskräfte an ein bestimmtes Klima oder auf Erhaltung der
grössten Zahl), hätte durchaus nicht den gleichen Werth, wenn es
sich etwa darum handelte, einen stärkeren Typus herauszubilden.
Das Wohl der Meisten und das Wohl der Wenigsten sind
entgegengesetzte Werth-Gesichtspunkte: an sich schon den ersteren
für den höherwerthigen zu halten, wollen wir der Naivetät englischer
Biologen überlassen... Alle Wissenschaften haben nunmehr der
Zukunfts-Aufgabe des Philosophen vorzuarbeiten: diese Aufgabe

68
“A incorrigível provocação de Nietzsche consiste no fato de que ele transforma o desprezo da multidão por
tudo o que ultrapasse sua organização no horizonte em material e massa de resistência para um desprezo
corretivo, potencializador. Com a intervenção de Zaratustra o desprezo ganha uma constituição complexa: no
segundo desprezo, um desprezo anterior é dirigido e revalorado contra si mesmo. (...) Necessariamente
aparece duas vezes também o segundo desprezo, ou desprezo composto, uma vez de baixo, como desprezo
ofensivo das elites por parte das novas massas flexibilizadas, que fazem de seu modo de vida a medida de
todas as coisas e querem libertar-se de seu observador que as despreza; e como desprezo das massas e de seu
amplo idioma por meio dos últimos elitistas, que sabem desprezados seus objetivos pela massa e pressentem
que na cultura de massas em organização acabou de uma vez por todas aquilo com que se importam. No que
diz respeito a segunda posição, pelo resto dos tempos será quase impossível arrumar-lhe um defensor mais
eloqüente do que Friedrich Nietzsche”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 56-57.
Tradução: p 68-69.
76

dahin verstanden, dass der Philosoph das Problem vom Werthe zu


lösen hat, dass er die Rangordnung der Werthe zu bestimmen hat.69

Nietzsche explicita que o bem da maioria (das Wohl der Meisten) e o bem dos

poucos (das Wohl der Wenigsten) são valorações opostas, outorgando ao filósofo a tarefa,

nada confortável na contemporaneidade, de resolver o problema do valor (Problem vom

Werthe), que não pode ser resolvido, segundo Nietzsche, de outra forma que não a vertical

(portanto, o filósofo deve definir hierarquias de valores - Rangordnung der Werthe). Neste

sentido, o conflito entre verticalidade e horizontalidade (que é a essência do problema

objetivo de reconhecimento das massas) é representado por duas formas de desprezo: de

um lado, as novas massas flexibilizadas que desprezam ofensivamente as elites (offensive

Verachtung der Eliten durch die neuen flexibilisierten Massen), munidos de seu modo de

vida (way of life) que deve ser o padrão de medida para todas as coisas. Do outro lado, os

últimos elitistas que desprezam as massas e seu modo de valoração (Verachtung der

Massen und ihres breiten Idioms durch die letzten Elitären), cientes de que, para eles, não

há lugar na cultura de massas. Nietzsche é o mais proeminente representante de um

desprezo das massas potencializador, preocupado com as possibilidades de superação do

homem. Mas Sloterdijk fornece também um exemplo de um eloquente representante dos

desprezadores de baixo:

Besondere Erfolge erzielt zur Zeit auf diesem Feld der Philosoph
Richard Rorty, der sich ohne Umschweife ins Lager der letzten

69
“A questão: que vale esta ou aquela tábua de valores, esta ou aquela ‘moral’? deve ser colocada das mais
diversas perspectivas; pois ‘vale para quê?’ jamais pode ser analisado de maneira suficientemente sutil. Algo,
por exemplo, que tivesse valor evidente com relação à maior capacidade de duração possível de uma raça (ou
ao acréscimo do seu poder de adaptação a um determinado clima, ou à conservação do maior número) não
teria em absoluto o mesmo valor, caso se tratasse, digamos, de formar um tipo de homem mais forte. O bem
da maioria e o bem dos raros são considerações de valor opostas: tomar o primeiro como de valor mais
elevado em si, eis algo que deixamos para a ingenuidade dos biólogos ingleses... Todas as ciências doravante
preparar o caminho para a tarefa futura do filósofo, sendo esta tarefa assim compreendida: o filósofo deve
resolver o problema de valor, deve determinar a hierarquia dos valores.”. NIETZSCHE, Friedrich W. Zur
Genealogie der Moral. Erste Abhandlung, § 17, nota final.
77

Menschen stellt – vorausgesetzt daβ diese Amerikaner sind – und


ihre Kritiker von Kierkegaard und Nietzsche zu Heidegger, Adorno
und Foucault unverblümt als anstrengende, unangenehme, heroische
Snobs bezeichnet, obwohl er sie weiter in prominenter Position auf
seiner Lektüreliste führt. Als Verächter von unten der Verächter von
oben predigt der Liberale Rorty, den die Luft von Virginia zum
Sozialdemokraten gemacht hat, eine neue Version des
amerikanischen Traums – den aufrechten Gang in die Banalität und
notfalls eine zweite Trennung von Europa.70

Rorty usa conscientemente a linguagem de Nietzsche contra Nietzsche, assumindo a

posição do último homem e desprezando ativamente a posição representada por

Zarathustra. Na sociedade de massas contemporânea, é cada vez mais a posição de Rorty

que se torna regra, ao passo que o desprezo de Zarathustra pelo último homem passa a

representar a caduca lembrança de uma forma de diferenciação que não mais existe (e,

segundo a cultura de massa, nem deve existir).

Heidegger é o último pensador mencionado por Sloterdijk na sequência de seu

roteiro do desenvolvimento filosófico do desprezo:

Den letzten eminenten Beitrag zum philosophischen Prozeβ um das


Verächtliche und sein Gegenteil hat Martin Heidegger in dem
berüchtigten Man-Kapitel von Sein und Zeit, § 27, beigesteuert. (...)
Zunächst aber hat Heidegger mit einem auβerordentlichen Portrait
das fahle Selbst des Man für die Theorie erschlossen. Was seinem
Portraitisten am Man besonders auffällt, ist die Abwesenheit von
allen Zügen, an denen sich das Eigentümliche, das radikal
Individuelle und Unvertretbare einer zu sich entschlossenen Existenz
aufzeigen lieβe. In bezug auf die manhafte Masse gilt, ihrem
Phänomenologen zufolge, stets die „unversehens schon
übernommene Herrschaft der Anderen. Man selbst gehört zu den
Anderen und verfestigt ihre Macht“. Wem aber sein Selbst auf diese
man- und massenhafte Art gegeben ist – und das sind nach

70
“Nesse campo, hoje em dia, obtém destacados êxitos o filósofo Richard Rorty, que sem rodeios se coloca
no lugar dos últimos homens – pressupondo que estes sejam americanos – e chama cruamente seus críticos,
de Kierkegaard e Nietzsche a Heidegger, Adorno e Foucault, de esnobes cansativos, desagradáveis, heróicos,
embora continuem a fazer parte, em posição privilegiada, de sua lista de leitura. Como desprezador de baixo
dos desprezadores de cima, o liberal Rorty, que os ares da Virgínia transformaram em social-democrata, prega
uma nova versão do sonho americano – o andar aprumado rumo à banalidade e, se preciso, uma segunda
separação em relação à Europa”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 58. Tradução: p 71.
78

Heidegger „zunächst und zumeist“ alle ohne Ausnahme –, kann


diese Einebnung nicht empfinden. (...)
Heidegger listige Evokation des Dasein im Modus des Man bezieht
alle Einselnen ohne Ausnahme in die Verächtlichkeit des vorerst
gültigen Befundes ein: Wir sind ja immer schon von den ihrerseits
unterhöhlten Anderen in solchem Grade unterwandert, daβ wir unter
keinen Umständen imstande sind, zu unserer „eigenen“ Existenz zu
finden. (...) Unter diesen Prämissen muβ Verächtlichkeit als ein
Existential erscheinen, das dem Dasein als solchem eingeprägt ist,
sofern es zunächst nichts anderes sein kann als verfallenes Mitsein
mit verfallenen Anderen. (...) Es ist für Mensch im ersten Angang
daher unmöglich, nicht verächtlich, nicht man-haft, nicht in die
Niemands-Diktatur zerstreut zu leben, weil alle fürs erste nur als
Man zu sich kommen und in der Regel so bleiben.71

A ditadura sem dono do impessoal (das Man) é o retrato que Heidegger faz do ser-

o-aí (Dasein) do último homem de Nietzsche. Embora Heidegger também esteja

interessado, a seu modo, em um projeto filosófico de mudança para o não-desprezo (para

uma existência radicalizada e verdadeiramente nobre), o que é ressaltado por Sloterdijk é

percepção de que todos chegamos primeiramente condicionados no modo impessoal.

Assim, seguindo o roteiro do conceito de desprezo, chegamos com Heidegger a um modo

71
“A última contribuição eminente para o processo filosófico em torno do desprezível e seu contrário foi dada
por Martin Heidegger em seu famoso capítulo acerca do Man* [‘o impessoal’] em Ser e tempo, parágrafo 27.
(...) Primeiramente, porém, com um retrato extraordinário, Heidegger revelou para a teoria o pálido selbst [si
mesmo] do ‘impessoal’. O que especialmente salta aos olhos do retratista, no ‘impessoal’, é a ausência de
todos os traços nos quais se pudesse apontar o característico, o radicalmente individual e insubstituível de
uma existência decidida por si mesma. Em referência à massa do ‘impessoal’ sempre se considera, segundo o
seu fenomenólogo, ‘inopinadamente o domínio já assumido dos outros. O próprio ‘impessoal’ faz parte dos
outros e consolida seu poder’. A quem porém, foi dado o seu ‘si mesmo’ dessa maneira ‘impessoal’ e maciça
– e são, segundo Heidegger, ‘primeira e primordialmente’ todos, sem exceção –, este não pode sentir esse
nivelamento. (...) A evocação astuta de Heidegger acerca do estar-aí [Dasein] no modo “impessoal” inclui
todos os indivíduos, sem exceção, na desprezabilidade do resultado primeiramente válido: estamos mesmo a
tal ponto infiltrados pelos outros, de sua parte já minados, que sob nenhuma circunstância estamos em
condições de ir ao encontro de nossa ‘própria’ existência. (...) Sob tais premissas o desprezo deve aparecer
como um existencial que está fixado na existência como tal, contanto que primeiramente não possa ser outra
coisa que a convivência decaída com outros decaídos. (...) Por isso, no início é impossível as pessoas não
viverem desprezivelmente, não viverem na forma impessoal, não viverem dispersas na ditadura sem dono,
porque todos chegam primeiro somente como ‘impessoal’ e geralmente assim permanecem”. SLOTERDIJK,
Peter. Die Verachtung der Massen, p 59-60. Tradução: p 72-74.
* Em Ser e tempo, Heidegger substantiva a palavra alemã Man a partir do sentido do pronome “se” usado
impessoalmente – como em “diz-se que”. Mas a locução “o se” soa estranho e empregaremos em seu lugar “o
impessoal”, cf. Heidegger: história e verdade em Ser e Tempo, de Jonathan Rée (São Paulo, UNESP, 2000,
p.31. Tradução de José Oscar de Almeida Marques). (N.E.)
79

de existência que se dissolve na publicidade midiática vulgar, uma ditadura do ninguém na

qual estamos todos condicionados existencialmente (pelo menos, a princípio), como

escreve o próprio Heidegger em Ser e tempo no trecho citado por Sloterdijk:

In dieser Unauffälligkeit und Nichtfeststellbarkeit entfaltet das Man


seine eigentliche Diktatur. Wir genieβen und vergnügen uns, wie
man genieβt; wir lesen, sehen und urteilen über Literatur und Kunst,
wie man sieht und urteilt; wir ziehen uns aber auch vom „groβen
Haufen“ zurück, wie man sich zurückzieht; wir finden empörend,
was man empörend findet ... Die Öffentlichkeit verdunkelt alles und
gibt das so Verdeckte als das Bekkante und jedem Zugängliche aus
... Jeder ist der Andere und Keiner er selbst. Das Man ... ist das
Niemand ...72

O trecho citado por Sloterdijk de Assim falou Zaratustra ecoa nas linhas citadas de

Ser e tempo. O último homem, ao descrever as ações e características de sua sociedade, usa

sempre o impessoal73. Nos únicos momentos em que o último homem diz algo em

primeira pessoa (Nós inventamos a felicidade - Wir haben das Glück erfunden), a

afirmação é acompanhada do piscar de olhos. O roteiro filosófico da desprezabilidade

torna-se até mais evidente ao aproximarmos a afirmação de Nietzsche: cada um quer o

mesmo, cada um é igual (Jeder will das Gleiche, Jeder ist gleich) – com o que escreve

Heidegger: cada um é o outro e nenhum é ele mesmo. O Man é o ninguém (Jeder ist der

Andere und Keiner er selbst. Das Man ist das Niemand). A igualdade antropológica,

mobilizada na modernidade para buscar resolver o problema do reconhecimento das

massas, torna-se uma perigosa característica da desertificação do homem. Ao comentar

72
“Nessa impossibilidade de comprovação e incapacidade de constatação, o Man desenvolve sua verdadeira
ditadura. Desfrutamos e nos divertimos como Man desfruta; lemos, vemos e julgamos literatura e arte como
Man vê e julga; mas também nos retiramos do ‘grande monte’ como Man se retira; achamos revoltante o que
Man acha revoltante (...) A opinião pública escurece tudo e entrega o assim oculto como o conhecido e
acessível a cada um (...) Cada um é o outro e nenhum ele mesmo. O Man (...) é o ninguém (...)”.
HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit, p 126-128. [Ed. Bras.: Ser e tempo. São Paulo, Vozes, 2001] IN: Die
Verachtung der Massen, p 60. Tradução: p 73.
73
man braucht; man liebt; man geht; man arbeitet; man sorgt; man wird; man zankt; man versöhnt; man hat;
man ehrt. Ver nota X.
80

sobre a última vontade (a vontade do último homem - letzte Wille), Nietzsche, na

Genealogia da Moral, adverte que o processo cultural de reconhecimento do homem

caminha para uma situação de perigo:

Was zu fürchten ist, was verhängnissvoll wirkt wie kein andres


Verhängniss, das wäre nicht die grosse Furcht, sondern der
grosse Ekel vor dem Menschen; insgleichen das grosse Mitleid mit
dem Menschen. Gesetzt, dass diese beiden eines Tages sich
begatteten, so würde unvermeidlich sofort etwas vom
Unheimlichsten zur Welt kommen, der »letzte Wille« des
Menschen, sein Wille zum Nichts, der Nihilismus. Und in der That:
hierzu ist Viel vorbereitet. Wer nicht nur seine Nase zum Riechen
hat, sondern auch seine Augen und Ohren, der spürt fast überall,
wohin er heute auch nur tritt, etwas wie Irrenhaus-, wie
Krankenhaus-Luft, – ich rede, wie billig, von den Culturgebieten des
Menschen, von jeder Art »Europa«, das es nachgerade auf Erden
giebt. ... Und darum gute Luft! gute Luft! Und weg jedenfalls aus
der Nähe von allen Irren- und Krankenhäusern der Cultur! Und
darum gute Gesellschaft,unsre Gesellschaft! Oder Einsamkeit, wenn
es sein muss! Aber weg jedenfalls von den üblen Dünsten der
innewendigen Verderbniss und des heimlichen Kranken-
Wurmfrasses!... Damit wir uns selbst nämlich, meine Freunde,
wenigstens eine Weile noch gegen die zwei schlimmsten Seuchen
vertheidigen, die gerade für uns aufgespart sein mögen, – gegen den
grossen Ekel am Menschen! gegen das grosse Mitleid mit dem
Menschen!...74

Permitindo-se uma aproximação interpretativa de nojo (Ekel) como desprezo e

compaixão (Mitleid) como adulação, dado que as duas se referem ao ser humano, poder-se-

ia considerar ambos os casos como tentativas de reconhecimento. Mas se, para Sloterdijk, a

74
“O que é de temer, o que tem efeito mais fatal que qualquer fatalidade, não é o grande temor, mas o grande
nojo ao homem; e também a grande compaixão pelo homem. Supondo que esses dois um dia se cassassem,
inevitavelmente algo de monstruoso viria ao mundo, a ‘última vontade’ do homem, sua vontade do nada, o
niilismo. E de fato, muita coisa aponta pra isso. Quem para farejar possui não apenas o nariz, mas também os
olhos e ouvidos, sente, em quase toda parte que vai atualmente, algo semelhante a um ar de hospício, a um ar
de hospital – falo, naturalmente, das áreas de cultura do homem, de toda espécie de ‘Europa’ sobre a terra.
(...) Ar puro, portanto! Ar puro! E afastamento de todos os hospícios e hospitais da cultura! E portanto boa
companhia, nossa companhia! Ou solidão, se tiver de ser! Mas afastamento dos maus odores da degradação
interna e da oculta carcoma da doença!... Para que nós mesmo, meus amigos, ao menos por algum tempo
ainda nos defendamos das duas mais terríveis pragas que podem estar reservadas para nós precisamente – o
grande nojo do homem e a grande compaixão do homem!...”. NIETZSCHE, Friedrich W. Zur Genealogie der
Moral. Dritte Abhandlung, § 14
81

adulação é o desprezo invertido (neste sentido torna-se mais clara a aproximação com os

termos usados na Genealogia, compaixão como um nojo invertido), a tentativa de destruir

todas as relações onde o homem é desprezado acaba por tornar o próprio desprezo um

condicional existencial humano, o resultado poderia ser interpretado como o casamento do

nojo pelo homem com a compaixão pelo homem: trazendo a luz do mundo a sinistra

(Unheimlichsten) figura do último homem, a última vontade do homem (letzte Wille des

Menschen, sein Wille zum Nichts, der Nihilismus), o niilismo, a desertificação. Oswaldo

Giacoia Junior, em um artigo cujo objetivo é estabelecer uma relação entre aspectos

centrais da filosofia da técnica de Heidegger e a figura do último homem de Nietzsche,

comenta sobre esse perigo de desertificação:

Os últimos homens vivem o mais longamente. Eles não são apenas


homens de rebanho e de séries; eles são também numerosos e
minúsculos, como as pulgas. Porque não mais conseguem se elevar
acima de si mesmos e para além de si mesmos, porque são
impotentes para a travessia que os conduziria à verdade de sua
essência, os últimos homens se perpetuam como infinita repetição
do idêntico, eternos clones de si mesmos, numa versão macabra do
eterno retorno nietzscheano. Esse é o perigo de desertificação que
traz consigo a figura inquietante e silenciosamente ameaçadora do
último homem: o perigo da integração sem resíduos nos circuitos
desenfreados e devastadores do consumo e do desgaste técnico de
todo ente ...
Aquilo sobre o que urge refletir é, pois, sobre a vertigem de que
somos presa na era da técnica planetária, sobre a profundidade de
nosso enredamento com essa figura sinistra do último homem;
sobretudo sobre a incapacidade de, unicamente por nossas próprias
forças e meios, conjurarmos essa sombria ameaça que turva o futuro
do homem ... 75

O perigo de desertificação alcança seu cume na medida em que o projeto de

desenvolver a massa como sujeito caminha para seu momento crítico:

75
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. “O último homem e a técnica moderna”. Natureza humana, jun. 1999, vol.1,
no.1, p.50-51.
82

Das Projekt, die Masse als Subjekt zu entwickeln, erreicht sein


kritisches Stadium, sobald wir die Regel aussprechen, daβ alle
Unterscheidungen als Unterscheidungen der Masse vollzogen
werden sollen. ... Sie setzt alle Vokabulare und Kriterien auβer
Kraft, bei deren Gebrauch ihre Beschränkungen ausgesprochen
werden könnten; sie delegitimiert alle Sprachspiele, die sie nicht
gewinnt. Sie zerschlägt alle Spiegel, die ihr nicht versichern, sie sei
die schönste im ganzen Land. ... In diesem Sinn ist das Projekt
Massenkultur auf radikal anti-nietzscheanische Weise
nietzscheanisch: Seine Maxime heiβt Umwertung aller Wertungen
als Umwandlung aller Vertikaldifferenz in Horizontaldifferenz.76

Os valores do último homem seguem um movimento a favor da ditadura do Man,

uma ditadura do ninguém (como escreve Heidegger: Das Man ist das Niemand). O

imperativo da cultura de massa é a dissolver toda diferença vertical possível em diferenças

horizontais. Mas a busca por revalorações baseadas em diferenças horizontais traz consigo

um incontornável problema:

Weil aber, wie gesehen, alle Unterschiede auf der Basis der
Gleichheit, also einer im voraus festgesetzten Ununterschiedenheit,
vorgenommen werden, sind alle modernen Unterscheidungen mehr
oder weniger akut von der Indifferenz bedroth. Der Differenzkult
der aktuellen Gesellschaft, wie er sich von der Mode bis in die
Philosophie ausbreitet, hat seinen Grund darin, daβ man alle
horizontalen Differenzen zu Recht als schwache, widerrufliche,
konstruierte empfindet.77

76
“O projeto de desenvolver a massa como sujeito alcança seu estágio crítico tão logo pronunciemos a regra
de que todas as diferenciações devem ser realizadas como diferenciações da massa. (...) Ela anula todos os
vocabulários e critérios que se prestem à manifestação de suas limitações; ela deslegitima todos os jogos de
linguagem que não ganha. Ela estilhaça todos os espelhos que não lhe assegurem ser ela a mais bela em todo
o país. (...) Nesse sentido, o projeto da cultura de massas é nietzscheano de uma forma profundamente
antinietzscheana: sua máxima chama-se revaloração de todos os valores como transformação de toda a
diferença vertical em diferença horizontal”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 85-86.
Tradução: p 105-106.
77
“Mas já que, como foi visto, todas as diferenças são efetuadas com base na igualdade, portanto em uma
impossibilidade preestabelecida de diferenciar, todas as diferenciações modernas estão em maior ou menor
medida gravemente ameaçadas pela indiferença. O culto à diferença na sociedade atual, expandindo-se da
moda à filosofia, tem seu motivo no fato de que se sente todas as diferenças horizontais, e com razão, como
sendo fracas, revogáveis, construídas”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 86. Tradução: p
106-107.
83

A redução e homogeneização antropológica, o primeiro passo do projeto moderno

caracterizado por Sloterdijk, impõe uma tarefa frívola à contemporaneidade: construir

diferenças com base na igualdade. Se ainda se permitir uma idéia de identidade, também

esta deve ser fundamentada na igualdade, segundo os princípios da cultura de massa:

Wo Identität war, soll Indifferenz werden, sprich eigentlich


differente Indifferenz. Differenz, die keinen Unterschied macht, ist
der logische Titel der Masse. Von nun an müssen Identität und
Indifferenz als Synonyme verstanden werden. ... Masse sein heiβt ...,
sich untersheiden, ohne daβ es einen Unterschied macht.
Differenzierte Indifferenz ist das formale Geheimnis der Masse und
ihrer Kultur, die eine totale Mitte organisiert. Deren Jargon kann
darum kein anderer sein als der eines abgeschliffenen
Individualismus. Wenn wir schwören, daβ alles, was wir tun, um
anders zu sein, in Wahrheit nichts bedeutet, dürfen wir tun, was
immer uns in den Sinn kommt. ... Nur darum haben wir uns im
Laufe des vergangenen halben Jahrhunderts von einer schwarzen
oder molaren Massezu einer bunten molekularen wandeln können.78

Não é por acaso que a publicidade midiática contemporânea gire em torno de

imperativos como “seja diferente, seja você mesmo”. Diferença que não faz diferença

(Differenz, die keinen Unterschied macht), indiferença diferenciada (Differenzierte

Indifferenz), a massa molecular colorida contemporânea gravita e se define nessas

expressões contraditórias. Ao contrário da massa negra e molar, onde todos aparecem

juntos uniformemente iguais, é imperativo que os que formam as massas contemporâneas

não pareçam iguais, deve-se ser o mais diferente possível, mas apenas na medida em que

esse colorido particular não faça nenhuma diferença relevante:

78
“Onde havia identidade, deve aparecer indiferença, ou melhor, indiferença diferente. Diferença que não faz
diferença é o título lógico da massa. De agora em diante identidade e indiferença deve ser entendidas como
sinônimos. (...) ser massa significa diferenciar-se sem que faça alguma diferença. Indiferença diferenciada é o
mistério formal da massa e sua cultura, que organiza um centro total. Por essa razão, seu jargão não pode ser
outro senão o de um individualismo afiado. Quando juramos que tudo o que fazemos para ser diferente em
nada significa, podemos fazer o que sempre nos vem à mente. (...) Somente por isso, no decorrer no último
meio século pudemos sair de uma massa preta ou molar para uma molecular colorida.” SLOTERDIJK, Peter.
Die Verachtung der Massen, p 86-87. Tradução: p 107.
84

Die Massenkultur setzt das Scheitern alles alles Sich-interessant-


Machens, und das heiβt Sich-besser-als-andere-Machens, voraus.
Und dies zu Recht, denn es ist ihr Dogma, daβ wir uns nur unter der
Voraussetzung voneinander unterscheiden machen. Masse
verpflichtet. ... nach dem groβen Aufbruch in die Gleichheit und die
Neuformbarkeit von allem, wollen und sollen wir vor unseren
Unterschieden da sein, sofern diese durchwegs gemacht, nicht
gefunden sind. Die Priorität unserer Existenz vor unseren
Eigenschaften und Werken setzt die Indifferenz als erstes und
einziges Prinzip der Masse in Kraft.79

A massa colorida e gaseiforme da contemporaneidade dita as regras da

configuração humana contemporânea: as diferenciações verticais devem ser desprezadas e

a identidade deve ser sempre buscada sob a forma de uma indiferença diferenciada. Os

defensores das pretensões de desenvolver a massa servil como sujeito, de derrubar todas as

relações de desprezo do homem, não esperavam que o desenvolvimento histórico

desaguasse na sociedade do último homem, na qual é tão impossível reconhecer quanto

diferenciar valores. Ainda assim, Sloterdijk, com um resquício de ironia, não deixa de

admirar a possibilidade de observação desse movimento da história no desenvolvimento do

desprezo:

Unter diesem Gesichtspunkt betrachtet, ist das zu Recht oder


Unrecht so genannte „Projekt der Moderne“ mehr denn je eines der
bewundernswertesten Unternehmen, das in der Geschichte der
Menschheit zu beobachten war. Dies gilt nicht zuletzt im Hinblick
darauf, daβ die Demokratie auf eine beispiellose anspruchsvolle
Weise an die Diskretion ihrer Mitglieder appelliert – an Diskretion
im doppelten Sinn des Worts, als Unterscheidungskraft und als
Taktgefühl, als Sinn für ungeschriebene Rangverhältnisse und als
Respekt für informelle Ordnungen des Guten und des weniger Guten

79
“A cultura de massas pressupõe o fracasso de todo fazer-se-interessante, e isto quer dizer fazer-se-melhor-
do-que-os-outros. E isto com razão, pois é seu dogma que somente nos diferenciemos entre nós sob o
pressuposto de que nossas diferenças não façam diferença. A massa compromete. (...) após a grande investida
rumo à igualdade e a nova capacidade de moldagem de tudo, queremos e devemos existir antes de nossas
diferenças, contanto que sejam feitas diretamente e não achadas. A prioridade de nossa existência ante nossas
qualidades e obras desencadeia a indiferença como primeiro e único principio da massa.” SLOTERDIJK,
Peter. Die Verachtung der Massen, p 87-88. Tradução: p 108-109.
85

– bei ständiger Rücksicht auf Gleichheitsbedürfnisse und


Vergleichungsgewohnheiten.80

A busca pelo reconhecimento de todos é a própria massa fazendo reconhecer-se

como única na sociedade. Mas o que se apresenta como uma simples pretensão revela

novas características quando é submetida ao desenvolvimento histórico. O grande “Projeto

da Modernidade”, desenvolver a massa como sujeito, pode ser lido como o grande projeto

democrático. Consequentemente, a constatação de um reconhecimento recusado (desprezo)

das massas na história desvendaria uma inclinação antidemocrática do pensamento político

ocidental. Pode-se lembrar, em um registro completamente diferente e distante de

Sloterdijk, uma análise que tem como objetivo reconhecer o problema de reconhecimento

da massa. John S. McClelland, em seu livro The Crowd and The Mob: From Plato to

Canetti, defende uma tese diversa de Sloterdijk e busca diretamente o conceito de multidão

na história, tentando assim explicar sua ausência por meio de uma varredura da idéia de

multidão nos escritos filosóficos e políticos da história ocidental (ao contrário de Sloterdijk

que busca no próprio conceito de desprezo essa explicação). Segundo McClelland, a

multidão (the crowd) e a turba (multidão tumultuada, amotinada, violentamente ativa - the

mob), dois fenômenos distintos, são tratadas de forma marginal pela reflexão política

ocidental, como defende na introdução de The Crowd and The Mob:

Histories of political thought concentrate on a succession of


justifications for forms of rule. What is to be ruled, the crowd, and
what threatens rule, the mob, figure only on the sidelines. If the
crowd gets in at all, what a particular thinker has to say about what it

80
“Visto desse ponto de vista, o justa ou injustamente assim denominado “Projeto da Modernidade” é
definitivamente o mais admirável empreendimento observado na história da humanidade. É sempre bom
lembrar que a democracia apela, de modo inédito, para a discrição de seus membros – para a discrição no
duplo sentido da palavra: como força de diferenciação e como sentimento de compasso, como sentido para
inescritas relações de categoria e como respeito por ordens informais do bom e do menos bom – em constante
consideração às necessidades de igualdade e hábitos de comparação”. SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung
der Massen, p 92-93. Tradução: p 114.
86

is like is either accepted at its face value, or dismissed as bias.


Histories of political thought are written from the top looking down;
by this I do not mean that historians of political thought are always
‘on the side’ of rulers, though a case could be made out for that;
what I mean is that by attending to justification for forms of rule,
historians of political thought have usually failed to see that
justification for forms of rule are made that much more convincing if
the ruled can be made out to be at best a crowd, therefore needing to
be ruled, or at worst a mob, therefore threatening rule. This failing in
the histories of political thought is surprising, because the
compulsion to treat the ruled as a crowd and a mob began very early
in the political thought of the West. It could almost be said that
political theorizing was invented to show that democracy, the rule of
men by themselves, necessarily turns into rule by the mob.81

Para McClelland, o que deve ser governado (a multidão) não é o centro da reflexão

política na história ocidental. O pensamento ocidental sempre optou (desde Platão) por

recusar reconhecimento ao coletivo governado. Os historiadores do pensamento político

analisam a multidão a partir de cima, e essa perspectiva já pressupõe um desprezo pelas

massas. Entretanto, este posicionamento superior não ocorre porque o pensador esteja

sempre do lado dos que governam, mas antes porque, se a reflexão política no ocidente é

vista como uma série de justificações de formas de governo, o pensador político percebe

que é mais convincente tratar o objeto do governo (o povo, a massa humana) como uma

multidão que necessariamente precisa ser governada, já que ela pode, facilmente,

transformar-se em uma turba, que ameaça perigosamente qualquer governo instituído.

McClelland vê nesse desprezo teórico pelas massas uma falha do pensamento político

ocidental, e, a partir da genealogia desta falha, ele ousa afirmar que é possível que a

“teorização política” no Ocidente seja concebida para evidenciar que a democracia (the

rule of men by themselves) necessariamente torna-se o governo pela turba (mob rule).

Desta forma, McClelland ilumina uma disposição antidemocrática que nasce com a

81
McMCLELLAND, John S. The Crowd and the Mob: from Plato to Canetti. Pg. 1.
87

reflexão política ocidental e que a acompanharia, segundo ele, até Massa e Poder de

Canetti. Essa disposição funda-se no desprezo das massas, e, portanto, na forma de

reconhecimento recusado de modo unilateral pelos pensadores ao longo da história.

McClelland é um exemplo de como o desprezo das massas normalmente é

associado a posturas antidemocráticas. Sloterdijk gira o argumento ao contrário, expondo

como o conceito de desprezabilidade, característica por definição da massa, ao se mobilizar

na história, alcança sua expressão e estágio crítico nas sociedades democráticas de massas.

Mas ele observa que a democracia na cultura contemporânea de massas não resolve o

problema de reconhecimento, ao contrário, condiciona o próprio existir humano a uma

configuração de desprezabilidade cada vez mais radical.

O processo de reconhecimento da massa na sociedade é um exercício de poder, e,

em outras palavras, um autêntico movimento democrático. A fórmula política citada

atende fragilmente ao requisito de traduzir a idéia do desdobrar subjetivo da massa no

sujeito, e ainda pode obscurecer as conseqüências desse movimento de reconhecimento das

massas pós-modernas. O entretenimento de massas, princípio que rege os programas de

comunicação das multidões da atualidade, produz uma bestialização cotidiana na sociedade

(diferente daquela produzida pelo princípio de líder, que levou a Europa a batalhas

fratricidas sem precedentes). A democracia das massas, no seu processo de valoração

horizontal, leva a sociedade a um suspeito repúdio generalizado pelo desprezo do homem.

No entanto, junto com esse desprezo, perde-se a possibilidade do autodesprezo e caem as

possibilidades de diferenciações relevantes, reduzindo a sociedade a uma multidão de seres

diferentes que não fazem diferença, ou seja, um pluralismo vazio de uma massa gasosa,

colorida e entorpecida em seu próprio entretenimento ordinário.


89

IV - O horizonte dos processos de humanização

Os conflitos entre comunicações verticais e horizontais, que constituem a estrutura

das lutas culturais contemporâneas, são travados em meio ao movimento de

reconhecimento das massas pós-modernas. Pode-se ser que, nessas lutas, também estejam

em jogo formas distintas de influenciar o ser humano. Os meios de comunicação também

funcionam como meios de formação humana: programas de comunicação, mídias de

massa, formam as multidões, seja adulando-as, seja ofendendo-as. Essa idéia do ser

humano como ser influenciável é uma herança do humanismo, tal como Sloterdijk

desenvolve a questão em seu ensaio Regras para o Parque Humano: uma resposta à carta

de Heidegger sobre o humanismo (1999). A relação entre Regras para o Parque Humano e

o problema delineado no Desprezo das Massas fica evidente no seguinte trecho:

Wer heute nach der Zukunft von Humanität und


Humanisierungsmedien fragt, will im Grunde wissen, ob Hoffnung
besteht, der aktuellen Verwilderungstendenzen beim Menschen Herr
zu werden. Dabei fällt beunruhigend ins Gewicht, daß
Verwilderungen, heute wie immer, gerade bei hoher
Machtentfaltung aufzubrechen pflegen, sei es als unmittelbare
kriegerische und imperiale Roheit, sei es als alltägliche
Bestialisierung der Menschen in den Medien enthemmender
Unterhaltung.82

A grande questão contemporânea é saber em que medida as mídias de humanização

(Humanisierungsmedien) são capazes de lidar com as atuais tendências embrutecedoras

(Verwilderungstendenzen) do ser humano. As mídias de massa, enquanto comunicação

82
“Quem hoje se questiona sobre o futuro da humanidade e dos meios de humanização deseja essencialmente
saber se subsiste alguma esperança de dominar as atuais tendências embrutecedoras entre os homens. Quanto
a isto, tem uma perturbadora importância o fato de que o embrutecimento, hoje e sempre, costuma ocorrer
exatamente quando há grande desenvolvimento do poder, seja como rudeza imediatamente bélica e imperial,
seja como bestialização cotidiana das pessoas pelos entretenimentos desinibidores da mídia”. SLOTERDIJK,
Peter. Regeln für den Menschenpark. § 6. Tradução Regras para o Parque Humano, p 16.
90

horizontal regida pelo princípio do entretenimento, produzem uma bestialização cotidiana

(alltägliche Bestialisierung) das pessoas, de forma muito mais eficiente do que qualquer

humanismo presente pudesse cogitar. As massas negras e molares do início do século

passado, organizadas segundo o princípio de líder, produzem tal rudeza imediatamente

bélica e imperial (unmittelbare kriegerische und imperiale Roheit). Hoje, nas mídias para

as massas coloridas e gaseiformes, o que realmente as coordena é o entretenimento

desinibidor de massas (Medien enthemmender Unterhaltung).

A questão dos dias atuais versa sobre a possibilidade de amansamento (Zähmung) e

domesticação (Domestikation) das massas, ou seja, coloca-se inevitavelmente o desafio de

buscar uma resposta à pergunta: que tipo de ser humano é formado frente às multidões cada

vez maiores, frente aos intermináveis conflitos por reconhecimento na sociedade, às mídias

cada vez mais embrutecedoras, ao inexorável avanço tecnológico?

Das Phänomen Humanismus verdient Aufmerksamkeit heute vor


allem, weil es - wie auch immer verschleiert und befangen - daran
erinnert, daß Menschen in der Hochkultur ständig von zwei
Bildungsmächten zugleich in Anspruch genommen werden - wir
wollen sie hier der Vereinfachung zuliebe schlicht die hemmenden
und die enthemmenden Einflüsse nennen. Zum Credo des
Humanismus gehört die Überzeugung, daß Menschen "Tiere unter
Einfluß" sind und daß es deswegen unerläßlich sei, ihnen die
richtige Art von Beeinflussungen zukommen zu lassen. Das Etikett
Humanismus erinnert - in falscher Harmlosigkeit - an die
fortwährende Schlacht um den Menschen, die sich als Ringen
zwischen bestialisierenden und zähmenden Tendenzen vollzieht.83

83
“O fenômeno do humanismo hoje merece atenção antes de mais nada porque nos recorda – embora de
forma velada e tímida – que as pessoas na cultura elitizada estão submetidas de forma constante e simultânea
a dois poderes de formação – vamos aqui denominá-los, para simplificar, influências inibidoras e
desinibidoras. Faz parte do credo do humanismo a convicção de que os seres humanos são ‘animais
influenciáveis’ e de que é portanto imperativo prover-lhes o tipo certo de influências. A etiqueta ‘humanismo’
recorda – de forma falsamente inofensiva – a contínua batalha pelo ser humano que se produz como disputa
entre tendências bestializadoras e tendências domesticadoras”. SLOTERDIJK, Peter. Regeln für den
Menschenpark. § 6. Tradução: p 17
91

O humanismo toma o ser humano como animal influenciável e se dispõe a oferecer

as corretas influências para que este desenvolva sua humanidade, sua plenitude enquanto

humano. Nesse sentido, o humanismo luta ao lado das técnicas de amansamento

(zähmenden) contra as técnicas de bestialização (bestialisierenden). No artigo “Corpos em

fabricação”, Oswaldo Giacoia Junior ressalta a forma como Sloterdijk lida com

problemático binômio amansamento / seleção (Zähmung / Züchtung):

Em julho 1999, quando ainda se comemorava o final do século XX -


e a propósito de apresentar uma resposta à Carta sobre o
"humanismo",de Martin Heidegger -, o autor põe em questão o
sentido e o papel da educação humanista na história do Ocidente,
reformulando o léxico em que até então se formulara o problemático
binômio domesticação (Zähmung) e seleção (Züchtung), entendidas
como cruzamento fundamental no processo antropológico de
autoconfiguração da humanidade. Para Sloterdijk, a história cultural
do Ocidente foi marcada pela tensão entre as técnicas de cultura
seletiva (Züchtung) e as forças civilizatórias de amansamento e
domesticação (Zähmung) do "bicho homem". Para ele, o humanismo
- insuficientemente fulminado pela desconstrução heideggeriana da
metafísica - constitui, em verdade, um longo e importante capítulo
dessa história; com ele se empreende uma colossal tarefa de amansar
as forças selvagens e domesticar o homem pela via da escola e da
leitura: de acordo com sua posição, é em chave antropológica que se
deve complementar a Lichtung (clareira) heideggeriana, entendida
como abertura para a transformação do homem em animal
doméstico (Haustier).84

O humanismo vale-se de técnicas na construção de sua concepção de ser humano:

Das latente Thema des Humanismus ist also die Entwilderung des
Menschen, und seine latente These lautet: Richtige Lektüre macht
zahm.85

84
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. “Corpos em fabricação”. Natureza humana, jun. 2003, vol.5, no.1, p 182.
85
“O tema latente do humanismo é, portanto, o desembrutecimento do ser humano, e sua tese latente é: as
boas leituras conduzem a domesticação”. SLOTERDIJK, Peter. Regeln für den Menschenpark. § 6.
Tradução: 17.
92

A leitura é uma ferramenta técnica do humanismo, leituras corretas conduzem ao

amansamento (macht zahm) e desbrutalização do homem. Em termos práticos, o binômio

amansamento / seleção (Zähmung / Züchtung) significa, para o humanismo, leitura e

seleção (Lesen / Auslesen):

Gewiß war das Lesen eine menschenbildende Großmacht - und sie


ist es, in bescheideneren Dimensionen, noch immer; das Auslesen
jedoch - wie auch immer es sich vollzogen haben mag - war stets als
die Macht hinter der Macht im Spiel. Lektionen und Selektionen
haben miteinander mehr zu tun, als irgendein Kulturhistoriker zu
bedenken willens und fähig war, und wenn es uns bis auf weiteres
auch unmöglich scheint, den Zusammenhang zwischen Lesen und
Auslesen hinreichend präzise zu rekonstruieren, so ist es doch mehr
als eine unverbindliche Ahnung, daß dieser Zusammenhang als
solcher seine Realität besitzt.86

Mas as técnicas de formação humana do Humanismo não obtêm sucessos plausíveis

na atual sociedade de massas, o que significa dizer que o livro não ocupa mais um lugar de

destaque na cultura contemporânea, como observa Sloterdijk:

Durch die mediale Etablierung der Massenkultur in der Ersten Welt


1918 (Rundfunk) und nach 1945 (Fernsehen) und mehr noch durch
die aktuellen Vernetzungsrevolutionen ist die Koexistenz der
Menschen in den aktuellen Gesellschaften auf neue Grundlagen
gestellt worden. Diese sind, wie sich ohne Aufwand zeigen läßt,
entschieden post-literarisch, post-epistolographisch und folglich
post-humanistisch. Wer die Vorsilbe post in diesen Formulierungen
für zu dramatisch hält, könnte sie durch das Adverb marginal
ersetzen - so daß unsere These lautet: Moderne Großgesellschaften
können ihre politische und kulturelle Synthesis nur noch marginal
über literarische, briefliche, humanistische Medien produzieren. ...
Die Ära des neuzeitlichen Humanismus als Schul- und
Bildungsmodell ist abgelaufen, weil die Illusion nicht länger sich
halten läßt, politische und ökonomische Großstrukturen könnten

86
“Certamente, a leitura teve um imenso poder na formação humana – e, em dimensões mais modestas,
continua a tê-lo; a seleção, contudo – seja como for que tenha sido levada a cabo – sempre funcionou como a
eminência parda por trás do poder. Lições e seleções têm mais a ver entre si do que qualquer historiador da
cultura quis ou pôde levar em conta e, ainda que nos pareça impossível por hora reconstruir de forma
suficientemente precisa a conexão entre leitura e seleção, considerar que essa conexão, enquanto tal, possui
algo de real, é mais do que uma simples hipótese descompromissada”. SLOTERDIJK, Peter. Regeln für den
Menschenpark. § 52. Tradução: 43.
93

nach dem amiablen Modell der literarischen Gesellschaft organisiert


werden.87

As mídias de massa formam indivíduos de massa completamente configurados para

viver na multidão. A mudança da massa negra e molar para a massa gaseiforme e colorida

da atualidade permite uma forma de influência muito mais efetiva que a primeira. O

indivíduo não precisa mais ver os outros ao seu lado: basta-lhe participar dos programas de

comunicação em massa para que já faça parte da massa. Hoje, o humanismo parece não

funcionar mais no seu intento humanizador. A Carta sobre o Humanismo, de Martin

Heidegger, pode ser observada como uma última tentativa de salvá-lo:

Sie fragen: Comment redonner un sens au mot «Humanisme»? «Auf


welche Weise lässt sich dem Wort Humanismus ein Sinn
zurückgeben?» Ihre Frage setzt nicht nur voraus, dass Sie das Wort
«Humanisme» festhalten wollen, sondern sie enthält auch das
Zugeständnis, dass dieses Wort seinen Sinn verloren hat.
Es hat ihn verloren durch die Einsicht, dass das Wesen des
Humanismus metaphysisch ist und das heisst jetzt, dass die
Metaphysik die Frage nach der Wahrheit des Seins nicht nur nicht
stellt, sondern verbaut, insofern die Metaphysik in der
Seinsvergessenheit verharrt. Allein eben das Denken, das zu dieser
Einsicht in das fragwürdige Wesen des Humanismus führt, hat uns
zugleich dahin gebracht, das Wesen des Menschen anfänglicher zu
denken.88

87
“Com o estabelecimento midiático da cultura de massas no Primeiro Mundo em 1918 (radiodifusão) e
depois de 1945 (televisão) e mais ainda pela atual revolução da internet, a coexistência humana nas
sociedades atuais foi retomada a partir de novas bases. Essas bases, como se pode mostrar sem esforço, são
decididamente pós-literárias, pós-epistolares e, conseqüentemente, pós-humanistas. Quem considera
demasiado dramático o prefixo ‘pós-‘ nas formulações acima poderia substituí-lo pelo advérbio
‘marginalmente’ – de forma que nossa tese diz: é apenas marginalmente que os meios literários epistolares e
humanistas servem às grandes sociedades modernas para a produção de suas sínteses políticas e culturais. (...)
A era do humanismo moderno como modelo de escola e de formação terminou porque não se sustenta mais a
ilusão de que grandes estruturas políticas e econômicas possam ser organizadas segundo o amigável modelo
da sociedade literária” SLOTERDIJK, Peter. Regeln für den Menschenpark. § 4. Tradução: 14.
88
“O senhor pergunta: Comment redonner uns sens au mot ‘Humanisme’? ‘De que maneira dar novamente à
palavra humanismo um sentido?’ A sua pergunta não pressupõe apenas que o senhor que conservar a palavra
‘humanismo’; ela contém também a confissão de que a palavra perdeu seu sentido. Ela perdeu o sentido, pela
convicção de que a essência do humanismo é de caráter metafísico e isto significa, agora, que a Metafísica
não só coloca a questão da verdade do ser, mas a obstrui, na medida em que a metafísica persiste no
esquecimento do ser. Mas o pensar que conduz a esta compreensão do caráter problemático da essência do
94

Nesta missiva, um dos mais imediatos e relevantes escritos filosóficos pós-1945,

Heidegger adota, segundo Sloterdijk, uma voz trêmula. A pergunta de Jean Beaufret faz

Heidegger refletir sobre a perda de sentido da palavra humanismo (Humanisme).

Entretanto, é a data da carta e a constatação de que o humanismo perdera seu sentido

funcional que são mais relevantes para Sloterdijk do que a proposta feita por Heidegger

para uma re-significação da essência do humano89. A formação do homem pela leitura, em

vista de um projeto de domesticação que forma uma ‘comunidade amigável’, parece ter

encontrado seus limites com o desfecho da Segunda Guerra mundial:

Für Heidegger führt vom Humanismus kein Weg zu dieser


verschärften ontologischen Demutsübung; er meint in ihm vielmehr
selbst einen Beitrag zur Aufrüstungsgeschichte der Subjektivität zu
sehen. Tatsächlich deutet Heidegger die geschichtliche Welt
Europas als das Theater der militanten Humanismen; sie ist das Feld,
auf dem die menschliche Subjektivität ihre Machtergreifung über
alles Seiende mit schicksalhafter Folgerichtigkeit ausagiert. Unter
dieser Perspektive muß sich der Humanismus als natürlicher
Komplize aller nur möglichen Greuel anbieten, die im Namen des
menschlichen Wohls begangen werden können. Auch in der
tragischen Titanomachie der Jahrhundertmitte zwischen
Bolschewismus, Faschismus und Amerikanismus standen sich - aus
Heideggers Sicht - lediglich drei Varianten derselben
anthropozentrischen Gewalt und drei Kandidaturen für eine
humanitär verbrämte Weltherrschaft gegenüber - wobei der
Faschismus aus der Reihe tanzte, indem er seine Verachtung für
hemmende Friedens- und Bildungswerte offener als seine
Konkurrenten zur Schau stellte. Tatsächlich ist Faschismus die
Metaphysik der Enthemmung - vielleicht auch eine
Enthemmungsgestalt der Metaphysik. Aus Heideggers Sicht war der
Faschismus die Synthese aus dem Humanismus und dem

humanismo levou-nos, ao mesmo tempo, a pensar a essência do homem mais radicalmente.” HEIDEGGER,
Martin. Über den Humanismus, p 114-116 (Aubier). Tradução: p 28.
89
Sloterdijk empreendeu uma análise mais precisa da proposta de Heidegger em um texto intitulado “A
domesticação do Ser, por uma clarificação da clareira”. SLOTERDIJK, Peter. Die Domestikation des Seins.
Für eine Verdeutlichtung der Lichtung, IN: „Nicht gerettet. Versuche nach Heidegger“. Frankfurt/M,
Suhrkamp, 2001.
95

Bestialismus - das heißt die paradoxe Koinzidenz von Hemmung


und Enthemmung. 90

O grande objetivo do projeto da modernidade é, para Heidegger, a tomada de poder

sobre todos os seres. Neste sentido, para Heidegger, fascismo, bolchevismo, americanismo,

são formas apenas superficialmente distintas de humanismos militantes. O fascismo errou

por ter mostrado, de forma muito mais explicita do que os outros, seu desprezo por valores

inibitórios. Contudo, Sloterdijk afirma que o fenômeno do humanismo possui significados

que vão além de uma mera formação humana:

Diese Andeutungen machen deutlich: Mit der Humanismus-Frage ist


mehr gemeint als die bukolische Vermutung, daß lesen bildet. Es
geht in ihr um nicht weniger als um eine Anthropodizee - das heißt
eine Bestimmung des Menschen angesichts seiner biologischen
Offenheit und seiner moralischen Ambivalenz. Vor allem aber ist
die Frage, wie der Mensch zu einem wahren oder wirklichen
Menschen werden könne, von hier an unausweichlich als eine
Medienfrage gestellt, wenn wir unter Medien die kommunionalen
und kommunikativen Mittel verstehen, durch deren Gebrauch sich
die Menschen selbst bilden zu dem, was sie sein können und sein
werden.91

90
“Para Heidegger, esse intenso exercício ontológico de humildade não é alcançado por nenhum caminho que
parta do humanismo; o que ele julga ver neste último é, mais propriamente, uma contribuição a história do
armamento da subjetividade. De fato, Heidegger interpreta o mundo histórico da Europa como o teatro dos
humanismos militantes; ele é o campo no qual subjetividade humana leva a cabo, com fatídica conseqüência,
sua tomada de poder sobre todos os seres. Sob essa perspectiva, o humanismo se oferece como cúmplice
natural de todos os possíveis horrores que podem ser cometidos em nome do bem humano. Mesmo na trágica
titanomaquia da metade do século entre bolchevismo, o fascismo e o americanismo exibiram-se, na visão de
Heidegger, somente três variações dessa mesma força antropocêntrica e três candidaturas a um domínio
humanitariamente ornado de mundo – dentre as quais o fascismo errou o passo ao exibir mais abertamente
que seus concorrentes seu desprezo por valores inibitórios pacíficos e educacionais. De fato, o fascismo é a
metafísica da desinibição – talvez mesmo uma forma desinibida da metafísica. Na visão de Heidegger, o
fascismo foi a síntese do bestialismo e do humanismo; isto é, a paradoxal confluência de inibição e
desinibição” SLOTERDIJK, Peter. Regeln für den Menschenpark. § 25. Tradução: 30-31.
91
“Estas considerações deixam claro que a questão do humanismo significa mais que a bucólica suposição de
que a leitura forma. Ela envolve nada menos que uma antropodicéia – isto é, uma definição do ser humano em
face de sua abertura biológica e de sua ambivalência moral. Acima de tudo, porém, a questão de como o ser
humano poderia se tornar um ser humano verdadeiro ou real está daqui em diante inevitavelmente colocada
como uma questão de mídia, se entendermos por mídias os meios comunitários e comunicativos pelos quais
os homens se formam a si mesmos para o que podem, e o que vão, se tornar”. SLOTERDIJK, Peter. Regeln
für den Menschenpark. § 8. Tradução: 19-20
96

O futuro da humanidade, o futuro do que será conhecido como humano, é uma

questão de mídia. Essa afirmação ganha ecos catastróficos quando inserida nos dias atuais,

em que cada vez mais o comportamento de massa é desenvolvido subjetivamente pelo

indivíduo92, onde, para usar as palavras de Zarathustra: o deserto cresce. A massa

gaseiforme e colorida, como Sloterdijk a descreve, é a expressão do resultado histórico do

desdobrar subjetivo da massa na modernidade. Entretanto, a atualidade continua sendo um

cenário de conflito entre os partidários das influências domesticadoras (em certo sentido,

humanizadoras) e os partidários das influências bestializadoras (evolucionistas e

sedutores). Sloterdijk, ao comentar sobre a possível relevância futura do pensamento de

Nietzsche, observa que já na contemporaneidade travam-se lutas titânicas entre os

representantes da verticalidade e da horizontalidade:

Etwas hiervon war Nietzsche gegenwärtig, als er es wagte, sich


selbst im Ausblick auf seine Fernwirkungen als eine force
majeure zu bezeichnen. Man kann das Ärgernis, das durch diese
Äußerung in die Welt gesetzt wurde, auf sich beruhen lassen, da es
zur Beurteilung solcher Prätentionen um viele Jahrhunderte, wenn
nicht um Jahrtausende zu früh ist. Wer hat Atem genug, sich eine
Weltzeit vorzustellen, in der Nietzsche so historisch sein wird, wie
Plato es für Nietzsche war? Es genügt, sich klarzumachen, daß die
nächsten langen Zeitspannen für die Menschheit Perioden der
gattungspolitischen Entscheidung sein werden. In ihnen wird sich
zeigen, ob es der Menschheit oder ihren kulturellen Hauptfraktionen
gelingt, zumindest wirkungsvolle Verfahren der Selbstzähmung auf
den Weg zu bringen. Auch in der Gegenwartskultur vollzieht sich
der Titanenkampf zwischen den zähmenden und den
bestialisierenden Impulsen und ihren jeweiligen Medien. Schon
größere Zähmungserfolge wären Überraschungen angesichts eines
Zivilisationsprozesses, in dem eine beispiellose Enthemmungswelle
anscheinend unaufhaltsam rollt.93

92
A obra The Lonely Crowd (1950), do sociólogo americano David Riesman, oferece um rico estudo sobre o
desenvolvimento subjetivo de comportamentos de massa pelos americanos.
93
“Nietzsche já tinha algo disso em mente quando ousou designar-se a si mesmo, tendo em vista seu
pensamento, como uma force majeure. Podemos deixar de lado a irritação provocada mundo afora por essa
observação, já que falta ainda muito tempo – séculos, se não milênios – para o julgamento adequado de tais
97

O gênero humano (Menschheit) encontra-se na alvorada de um período em que

decisões políticas quanto à espécie (gattungspolitischen Entscheidung) serão

incontornáveis 94. Já nos dias atuais, observam-se lutas culturais titânicas entre os impulsos

de amansamento (zähmenden) e os bestializadores (bestialisierenden) e suas respectivas

mídias, embora, frente às vitórias cada vez mais certas das mídias horizontais de massas e a

onda desinibidora (Enthemmungswelle) que as acompanha, seja muito difícil imaginar a

obtenção de novos sucessos em técnicas de amansamento. Fato consumado é que a mera

leitura não funciona como mídia com poder de influenciar (amansar) de modo geral a

sociedade. O humanismo já não é mais eficaz no propósito de domesticar o ser humano.

Frente a essa constatação, convém avaliar se ainda existem chances para algum processo de

humanização, se esse conflito não estaria perdido frente à bestialização cotidiana dos

homens na sociedade atual. Esse é o desafio que o século XXI nos apresenta. A polêmica

gerada em torno do texto Regras para Parque Humano95 no establishment filosófico

pretensões. Quem teria o fôlego suficiente para imaginar uma época do mundo em que Nietzsche será tão
histórico como Platão o era para Nietzsche? Basta que tenhamos a noção de que as próximas grandes etapas
do gênero humano serão períodos de decisão política quanto à espécie. Nelas se revelará se a humanidade ou
suas elites culturais conseguiram pelo menos encaminhar procedimentos efetivos de autodomesticação. Na
própria cultura contemporânea trava-se uma luta titânica entre os impulsos domesticadores e os
bestializadores, e seus respectivos meios de comunicação. Seria surpreendente a obtenção de sucessos mais
significativos no campo da domesticação, diante de um processo de civilização em que uma onda desinibidora
sem precedentes avança de forma aparentemente irrefreável”. SLOTERDIJK, Peter. Regeln für den
Menschenpark. § 55. Tradução: 45-46
94
Interessante notar que no mesmo ano da publicação do Regras do Parque Humano, 1999, Suzan George
publica na França O Relatório Lugano. Trata-se de eloqüente exemplo de como decisões políticas quanto à
espécie humana tornam-se problemas viscerais no alvorecer do século XXI. Como destacado por Laymert
Garcia dos Santos no prefácio à edição brasileira, Suzan George revela com precisão a lógica contemporânea
da globalização: lógica do extermínio.
95
Sobre o affaire Sloterdijk: “É verdade que certas discussões científicas que se realizam pacificamente nos
Estados Unidos ou na Inglaterra enfrentam, na Alemanha, dificuldades e constrangimentos peculiares.
Embora os programas eugenistas tenham sido aceitos por biólogos de todo o mundo e das mais variadas
tendências ideológicas até a Segunda Guerra Mundial, foram sobretudo as práticas nazistas que trouxeram à
idéia de melhoria genética o opróbrio do qual não conseguem se livrar. (...) É compreensível, então, que o
trabalho de Sloterdijk tenha ferido susceptibilidades. Mas, mesmo levando-se isso em conta, a magnitude da
reação indica que há outros interesses mais profundos em jogo. E, de fato, o que se processa, de forma não
muito disfarçada, é uma guerra de sucessão no establishment filosófico universitário alemão. Sloterdijk não
poupa críticas à presente situação da Teoria Crítica e dos herdeiros da Escola de Frankfurt que, para ele, não
98

alemão traduz a própria preocupação de Sloterdijk com a forma que a sociedade reagiria a

essas questões, pois o avanço tecnológico entra como um fator decisivo, como escreve

Sloterdijk:

Es ist die Signatur des technischen und anthropotechnischen


Zeitalters, daß Menschen mehr und mehr auf die aktive oder
subjektive Seite der Selektion geraten, auch ohne daß sie sich
willentlich in die Rolle des Selektors gedrängt haben müßten. Man
darf zudem feststellen: Es gibt ein Unbehagen in der Macht der
Wahl, und es wird bald eine Option für Unschuld sein, wenn
Menschen sich explizit weigern, die Selektionsmacht auszuüben, die
sie faktisch errungen haben.96

O desenvolvimento tecnológico começa a abrir possibilidades antes impensáveis em

relação ao próprio desenvolvimento do gênero humano. Ao aproximar as idéias de

Sloterdijk aos problemas mais importantes da filosofia de Nietzsche, Oswaldo Giacoia

Junior reforça que a questão da autodeterminação da moderna consciência científica é uma

das preocupações centrais da filosofia nietzscheana, como evidencia no trecho:

Se, depois da "morte de Deus", não se pode mais acreditar nem


numa legalidade na natureza, nem numa ordenação moral do mundo
- universalmente gravada nas tábuas de carne dos corações humanos
-, então os "espíritos livres, muito livres" - como legítimos e
cumulados herdeiros da emancipação iluminista - terão de tomar em
suas próprias mãos a instituição de novas tábuas de valor, que darão
sustentação à legislação para os próximos milênios. Também para
Nietzsche o homem moderno não tem mais escolha: já não lhe é
possível recuar dos limiares de autodeterminação definitivamente
conquistados; o caminho é para frente e ascendente: o "último
homem" deve ser superado, o homem deve superar a si mesmo,

mais possuem respostas para as questões que se colocam para a terceira geração do pós-guerra. A figura
emblemática de Jürgen Habermas se apresenta, para Sloterdijk, desgastada e em franco declínio. Rei morto,
rei posto. Nos três anos passados desde a conferência de Elmau, não há muitas dúvidas de que Peter
Sloterdijk, principalmente por sua hábil exposição midiática, surge hoje como o mais visível nome dos meios
filosóficos na Alemanha”. MARQUES, José Oscar de A. “Sobre as Regras para o Parque humano de Peter
Sloterdijk”. Publicado em Natureza Humana. Vol. IV, 2002, pág. 363-381.
96
“É a marca da era técnica e antropotécnica que os homens mais e mais se encontrem no lado ativo ou
subjetivo da seleção, ainda que não precisem ter se dirigido voluntariamente para o papel do selecionador.
Pode-se ademais constatar: há um desconforto no poder de escolha, e em breve será uma opção pela inocência
recusar-se explicitamente a exercer o poder de seleção que de fato se obteve”. SLOTERDIJK, Peter. Regeln
für den Menschenpark. § 54. Tradução: 44-45.
99

dando lugar ao Além-do-Homem. No capítulo sobre a "Auto-


Superação", do segundo livro de Assim falou Zaratustra, Nietzsche
afirma que lá onde há vida, há também obediência. Entretanto,
obediência sempre pressupõe comando: "Mas, onde encontrei
viventes, lá ouvi também o discurso sobre obediência. Todo vivente
é alguém que obedece. E o segundo é isso: manda-se naquele que
não pode obedecer a si próprio"*.97

Embora o último homem deva ser superado, não escapa a Nietzsche que a

sociedade de últimos homens reproduz indefinidamente um projeto de ser humano nivelado

por baixo, castrando a própria possibilidade de seu futuro. Para Nietzsche, é evidente que o

processo civilizacional europeu caminha para a desertificação. Essa era antropotécnica já é

genialmente intuída, no fim do século XIX, em Além do Bem e do Mal:

Nenne man es nun "Civilisation" oder "Vermenschlichung" oder


"Fortschritt", worin jetzt die Auszeichnung der Europäer gesucht
wird; nenne man es einfach, ohne zu loben und zu tadeln, mit einer
politischen Formel die demokratische Bewegung Europa's: hinter all
den moralischen und politischen Vordergründen, auf welche mit
solchen Formeln hingewiesen wird, vollzieht sich ein ungeheurer
physiologischer Prozess, der immer mehr in Fluss geräth, - der
Prozess einer Anähnlichung der Europäer, ihre wachsende
Loslösung von den Bedingungen, unter denen klimatisch und
ständisch gebundene Rassen entstehen, ihre zunehmende
Unabhängigkeit von jedem bestimmten milieu, das Jahrhunderte
lang sich mit gleichen Forderungen in Seele und Leib einschreiben
möchte, - also die langsame Heraufkunft einer wesentlich
übernationalen und nomadischen Art Mensch, welche, physiologisch
geredet, ein Maximum von Anpassungskunst und -kraft als ihre
typische Auszeichnung besitzt.98

97
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. “Corpos em fabricação”. Natureza humana, jun. 2003, vol.5, no.1, p.175-
202.
* NIETZSCHE, F. Also Sprach Zarathustra II. Von der Selbst-Überwindung. IN: KSA 4, p 147.
98
“Chame-se ‘civilização’, ‘humanização’ ou ‘progresso’ àquilo em que se vê a distinção dos europeus;
chame-se-lhe, simplesmente, sem louvar ou censurar, e utilizando uma fórmula política, o movimento
democrático da Europa: por trás de todas as fachadas morais e políticas a que remetem essas fórmulas, efetua-
se um tremendo processo fisiológico, que não pára de avançar – o processo de homogeneização dos europeus,
seu crescente libertar-se das condições em que surgem as raças ligadas a clima e classe, sua independência
cada vez maior de todo meio determinado, que durante séculos se inscreveria com exigências iguais no corpo
e na alma - ou seja, a lenta ascensão de um tipo de homem essencialmente supranacional e nômade, que
fisiologicamente possui, como marca distintiva, o máximo em força e arte de adaptação”. NIETZSCHE,
Friedrich W. Jenseits von Gut und Böse. § 242.
100

O processo histórico de desenvolvimento da massa como sujeito encontra uma fiel

descrição nas palavras de Nietzsche: o processo de uniformização, homogeneização do

europeu (der Prozess einer Anähnlichung der Europäer). Civilizar, humanizar, progredir,

democratizar, são os imperativos do movimento cultural de reconhecimento das massas.

Nesse sentido, a cultura de massas envolve o problema do tipo de seres humanos que

devem ser produzidos. Em Nietzsche, é possível discernir as características gerais deste

processo. No parágrafo 242 de Além do bem e do Mal, ele distingue dois tipos de

indivíduos (dominados e os dominadores) produzidos no horizonte do europeu em

evolução:

Die selben neuen Bedingungen, unter denen im Durchschnitt eine


Ausgleichung und Vermittelmässigung des Menschen sich
herausbilden wird - ein nützliches arbeitsames, vielfach brauchbares
und anstelliges Heerdenthier Mensch -, sind im höchsten Grade dazu
angethan, Ausnahme-Menschen der gefährlichsten und
anziehendsten Qualität den Ursprung zu geben. Während nämlich
jene Anpassungskraft, welche immer wechselnde Bedingungen
durchprobirt und mit jedem Geschlecht, fast mit jedem Jahrzehend,
eine neue Arbeit beginnt, die Mächtigkeit des Typus gar nicht
möglich macht; während der Gesammt-Eindruck solcher zukünftiger
Europäer wahrscheinlich der von vielfachen geschwätzigen
willensarmen und äusserst anstellbaren Arbeitern sein wird, die des
Herrn, des Befehlenden bedürfen wie des täglichen Brodes; während
also die Demokratisirung Europa's auf die Erzeugung eines zur
Sklaverei im feinsten Sinne vorbereiteten Typus hinausläuft: wird,
im Einzel- und Ausnahmefall, der starke Mensch stärker und reicher
gerathen müssen, als er vielleicht jemals bisher gerathen ist, - Dank
der Vorurtheilslosigkeit seiner Schulung, Dank der ungeheuren
Vielfältigkeit von Übung, Kunst und Maske. Ich wollte sagen: die
Demokratisirung Europa's ist zugleich eine unfreiwillige
Veranstaltung zur Züchtung von Tyrannen,- das Wort in jedem
Sinne verstanden, auch im geistigsten.99

99
“As mesmas novas condições em que se produzirá, em termos gerais, um nivelamento e mediocrização do
homem – um homem animal de rebanho, útil, laborioso, variamente versátil e apto -, são sumamente
adequadas a originar homens de exceção, da mais perigosa e atraente qualidade. Pois enquanto essa tal força
de adaptação, que está sempre a testar condições cambiantes e começa um novo trabalho a cada geração, cada
decênio quase, não permite em absoluto a pujança do tipo; enquanto a impressão geral causada por esses
futuros europeus será, provavelmente, a de trabalhadores bastante utilizáveis, múltiplos, faladores e fracos de
101

Por trás do rótulo de democratização, existe uma profunda diferenciação de tipos e

funções de indivíduos na sociedade de massas. A produção e formação do ser humano,

mesmo neste sentido massificado, são uma questão de poder (democracia é uma questão de

tomada de poder da multidão sobre si mesma), como observa Sloterdijk, ao comentar as

observações de Zarathustra sobre a cidade onde tudo ficou menor:

Wenn Zarathustra durch die Stadt geht, in der alles kleiner geworden
ist, nimmt er das Ergebnis einer bislang erfolgreichen und
unumstrittenen Züchtungspolitik wahr: Die Menschen haben es - so
scheint es ihm - mit Hilfe einer geschickten Verbindung von Ethik
und Genetik fertiggebracht, sich selber kleinzuzüchten. Sie haben
sich selbst der Domestikation unterworfen und eine Zuchtwahl in
Richtung auf haustierliche Umgänglichkeit bei sich selbst auf den
Weg gebracht. Aus dieser Einsicht entspringt Zarathustras
eigentümliche Humanismus-Kritik als Zurückweisung der falschen
Harmlosigkeit, mit der sich der neuzeitliche gute Mensch umgibt.
Tatsächlich, es wäre nicht harmlos, wenn Menschen Menschen in
Richtung auf Harmlosigkeit züchteten. 100

A verdadeira estrutura da desprezabilidade do programa hegeliano-marxista de

reconhecimento do ser humano, almejando destruir todas as relações de desprezo em que o

homem é considerado rebaixado e servil, vem à tona na constatação de que não é inócuo

que homens criem homens com vista à inocuidade (es wäre nicht harmlos, wenn Menschen

Menschen in Richtung auf Harmlosigkeit züchteten). Dessa forma, também se revela que o

vontade, necessitados do senhor, do mandante, como do pão de cada dia; enquanto a democratização da
Europa resulta, portanto, na criação de um tipo preparado para a escravidão no sentido mais sutil: o homem
forte, caso singular e de exceção, terá de ser mais forte e rico do que jamais foi (...). Quero dizer que a
democratização da Europa é, simultaneamente, uma instituição involuntária para o cultivo de tiranos –
tomando a palavra em todo sentido, também no mais espiritual”. NIETZSCHE, Friedrich W. Jenseits von Gut
und Böse. § 242.
100
“Quando Zaratustra atravessa a cidade na qual tudo ficou menor, ele se apercebe do resultado de uma
política de criação até então próspera e indiscutível: os homens conseguiram - assim lhe parece – com ajuda
de uma hábil combinação de ética e genética, criar-se a si mesmos para serem menores. Eles próprios se
submeteram à domesticação e puseram em prática sobre si mesmo uma seleção direcionada para produzir uma
sociabilidade à maneira de animais domésticos. Dessa percepção se origina a peculiar crítica ao humanismo
de Zaratustra, como rejeição da falsa inocuidade da qual se cerca o bom ser humano moderno. Não seria
inócuo que homens criassem homens com vista à inocuidade” SLOTERDIJK, Peter. Regeln für den
Menschenpark. § 49. Tradução: p 40.
102

humanismo, para além de seu mero aspecto pacificador, funcionou como uma forma ativa

de antropotécnica. Portanto, frente ao fracasso do projeto do humanismo, deve-se observar

de que forma essa antropotécnica poderia subsistir. É nesse sentido que Sloterdijk expressa

a seguinte preocupação:

Aber sobald in einem Feld Wissensmächte positiv entwickelt sind,


machen Menschen eine schlechte Figur, wenn sie - wie in den Zeiten
eines früheren Unvermögens - eine höhere Gewalt, sei es den Gott
oder den Zufall oder die Anderen, an ihrer Stelle handeln lassen
wollen. Da bloße Weigerungen oder Demissionen an ihrer Sterilität
zu scheitern pflegen, wird es in Zukunft wohl darauf ankommen, das
Spiel aktiv aufzugreifen und einen Codex der Anthropotechniken zu
formulieren. Ein solcher Codex würde rückwirkend auch die
Bedeutung des klassischen Humanismus verändern - denn mit ihm
würde offengelegt und aufgeschrieben, daß humanitas nicht nur die
Freundschaft des Menschen mit dem Menschen beinhaltet; sie
impliziert auch immer - und mit wachsender Explizitheit -, daß der
Mensch für den Menschen die höhere Gewalt darstellt. 101

Com o desenvolvimento de uma antropotécnica será necessário que o homem

assuma de forma ativa a tarefa de implementá-la. Se não assumir, quem inevitavelmente irá

ditar as regras para o que o homem deve ser tornar será a massa subjetivamente

desenvolvida no indivíduo (ou, usando a terminologia de Heidegger: das Man). A massa

produzirá indivíduos de massa, com consciências de massa. Se, de fato, a tecnologia vier a

nos propiciar uma intervenção mais radical na domesticação e amansamento do ser

humano, a que interesses (ou interesses de quem) servirá essa intervenção? Se a forma

consciente for negligenciada, assumirão o controle os interesses regulados segundo a

cultura de massas, com todas as características dessa cultura de massas midiatizadas pós-
101
“Mas tão logo poderes de conhecimento se desenvolvam positivamente em um campo, as pessoas farão
uma má figura se – como na época de uma anterior incapacidade – quiserem deixar agir em seu lugar um
poder mais elevado, seja ele Deus, o acaso, ou os outros. Já que as meras recusas ou abdicações costumam
falhar devido a sua esterilidade, será provavelmente importante, no futuro, assumir de forma ativa o jogo e
formular um código das antropotécnicas. Um tal código também alteraria de forma retroativa o significado do
humanismo clássico – pois não inclui só a amizade do ser humano pelo ser humano; ela implica também – e
de maneira crescentemente explícita – que o homem representa o mais alto poder para o homem”.
SLOTERDIJK, Peter. Regeln für den Menschenpark. § 54. Tradução: p 45.
103

moderna. Isso equivaleria, para usar a sinistra figura da desertificação, a produção em

massa do último homem:

Rund, rechtlich und gütig sind sie mit einander, wie Sandkörnchen
rund, rechtlich und gütig mit Sandkörnchen sind.102

Ao visualizar o último homem como um grão de areia, a imagem de um deserto

que cresce inexoravelmente serve como retrato da sociedade midiática de massas do século

XXI. Ecoa a afirmação de Zarathustra: o deserto cresce. O aviso vem de uma aparente

característica da massa ressaltada pelo fenomenólogo do espírito das massas humanas,

Elias Canetti:

Es ist wichtig, als erstes einmal festzustellen, daβ die Masse sich nie
gesättigt fühlt. Solange es einen Menschen gibt, der nicht von ihr
ergriffen ist, zeigt sie Appetit. Ob sie diesen auch behalten würde,
wenn sie wirklich alle Menschen in sich aufgenommen hätte, kann
niemand sicher sagen, doch ist es sehr zu vermuten.103

Sloterdijk, ao comentar sobre a situação da Arte na atual cultura da uniformidade,

coloca em questão se o progresso da desertificação não tardará em iniciar uma campanha

contra o extraordinário:

Ich sehe in all dem Spuren eines immer selbstsicherer werdenden


Hasses gegen die Ausnahme, die noch eine Ausnahme im älteren
Sinne darstellt, Spuren eines Grolls gegen das, was in seiner Art nie
zu ersetzen sein wird und was man eben darum erst recht so rasch
und würdelos wie möglich ersetzen will – weil nur das
Austauschbare die Norm der Indifferenz erfüllt; darüber hinaus auch
Spuren einer verlegenen Verzweiflung, die sich regt angesichts von
allem, was an das verlorene Reich der Gnade erinnert. Vielleicht
sollte man es, so wenig opportun es sein mag, noch einmal sagen: In
der Welt nach der Gnade war die Kunst das Asyl der
übriggebliebenen Ausnahmen. Sie war ein Feld im abendlichen

102
“São corretos, leais e benévolos uns para com os outros, como são corretos, leais e benévolos entre si os
grãos de areia” NIETZSCHE, F. Also sprach Zarathustra. Von der verkleinernden Tugend, § 2.
103
“É importante estabelecer, antes de tudo, que a massa jamais se sente saciada. Enquanto houver alguém
que não se tenha deixado apanhar por ela, ela demonstrará apetite. Se seguiria demonstrando-o, uma vez
tendo realmente absorvido a totalidade dos homens, isso ninguém pode afirmar com certeza, embora seja de
se supor que sim”. CANETTI, Elias. Masse und Macht, p 13. Tradução: p 17.
104

Himmel, in dem von Zeit zu Zeit ein tanzender Stern aufging. Wen
wundert es nach der vorgetragenen Analyse, wenn die entschlossen
vorrückende Einheitskultur, die nur noch beliebige Differenzen vor
dem Hintergrund von Ununterschiedenheit gelten lassen kann, jetzt
Anstalten trifft für ihre nächsten Schläge in dem unbefristeten
finalen Feldzug gegen das Auβerordentliche?104

A cultura de massas compromete qualquer tentativa de diferenciação relevante.

Porém, o deserto cresce dentro de nós. Sloterdijk demonstra uma preocupação com essa

massificação no interior do próprio homem no desfecho de seu texto O Desprezo das

Massas, quanto ressalta o conceito de cultura:

Kultur in dem normativen Sinn, na den zu erinnern nötig ist wie nie
zuvor, umfaβt den Inbegriff von Versuchen, die Masse in uns selber
herauszufordern, sich gegen sich selbst zu entscheiden. Sie ist eine
Differenz zum Besseren, die es, wie alle relevant Unterscheidungen,
nur gibt, sooft und solange sie gemacht wird.105

É necessário rejeitar a simples adulação da massa. É, antes, melhor provocá-la,

desafiá-la. Só que provocar essa massa pós-moderna é provocar nossa própria subjetividade

contra nós mesmos. A massificação do ser humano dissolve todas as diferenças relevantes

(a massa colorida, fragmentada) e bestializa a democracia como um perigoso governo pela

turba. A cultura é essa diferença relevante que só existe enquanto um exercício de

provocação, não de adulação. Em suma, o século XXI parece nos descortinar uma

104
“Vejo em tudo isso vestígios de um ódio que se torna cada vez mais seguro de si, para com a exceção que
ainda representa uma exceção no sentido mais antigo, vestígios de rancor daquilo que em sua maneira nunca
poderá ser substituído e que justamente por isso se quer substituir de forma tão rápida e indigna quanto
possível – porque somente o permutável preenche a norma da indiferença; além disso, vejo ainda vestígios de
um desespero embaraçado, que se move sobretudo em vista daquilo que lembra o reino perdido da graça.
Talvez, por menos oportuno que possa parecer, se devesse dizer mais uma vez: no mundo que sucedeu à
graça, a arte foi o asilo das exceções que restaram. Ela foi um campo no céu noturno, no qual de tempos em
tempos nascia uma estrela. Exposta a análise, a quem admiraria se a cultura da uniformidade em franco
progresso, que só suporta determinadas diferenças diante do pano de fundo de indiferenciabilidade, agora
prepare os próximos golpes da derradeira e sem data marcada campanha contra o extraordinário?”
SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 94. Tradução: p 116.
105
“Cultura no sentido normativo, é mais do que nunca necessário lembrar, abrange a quintessência das
tentativas de provocar a massa em nós mesmos para decidir-se contra si mesmo. Ela é uma diferença para
melhor que, como todas as diferenciações relevantes, somente perdurará enquanto e sempre que for feita”.
SLOTERDIJK, Peter. Die Verachtung der Massen, p 95. Tradução: p 117.
105

sociedade futura do último homem. Se é verdade que o deserto cresce, também é verdade

que vivemos no seio de um conflito em que nada foi decidido, nem nada é certo. Torna-se

necessário, portanto, interpretar e compreender as forças em conflito e as consequências

deste para o que conhecemos como humanidade. A preocupação com o desenvolvimento e

o gerenciamento do gênero humano, no século XXI, não pode ser negligenciada e, nesse

sentido, torna-se necessária uma maior compreensão da possibilidade de superação da

cultura de massas. Uma abordagem positiva do fenômeno das massas humanas é possível,

ela se inicia ao reconhecermos seriamente que as multidões proporcionam um grande

desafio ao pensamento filosófico.


107

Posfácio

In Frankfurt zum erstenmal war ich ihr ohne Widerstand verfallen.


Seither war mir immer bewuβt geblieben, wie gern man der Masse
verfällt. Eben das war mir zum Gegenstand des Staunens geworden.
Ich sah Masse um mich, aber ich sah auch Masse in mir ....
Elias Canetti, Die Fackel im Ohr 106

Aos 20 anos, o jovem Elias Canetti, depois de um passeio pelas montanhas, reserva,

durante uma semana, todas as manhãs para o início de seu projeto: escrever um livro sobre

as massas. Escolheu para essas manhãs a leitura da Psicologia das Massas e análise do Eu,

de Sigmund Freud. O livro em nenhum momento parecia coerente com a lembrança que o

próprio Canetti tinha do arrebatamento da massa; nada havia, no ensaio de Freud, que

indicasse um reconhecimento do fenômeno. Isto o fez compreender que uma abordagem

competente das massas consistia um desafio muito maior do que havia imaginado. Somente

35 anos mais tarde Canetti daria a público Massa e Poder. Certamente não foi a arrogância

que o fez observar posteriormente sobre seu livro: “acredito que peguei o século pela

garganta” 107.

106
“Em Frankfurt eu sucumbira a ela pela primeira vez, sem oferecer resistência. Desde então sempre estive
ciente do quanto se gosta de sucumbir à massa. Era isto, precisamente, o que me causara tanto espanto. Eu via
a massa ao meu redor, mas também via a massa dentro de mim (...)”. CANETTI, Elias. Die Fackel im Ohr.
Lebensgeschichte 1921-1931. p 143. Tradução: p 139.
107
“Gestern ist das Manuskript von Masse und Macht nach Hamburg abgegangen. 1925, vor vierunddreiβig
Jahren, hatte ich den ersten Gedanken zu einem Buch über die Masse. Aber der wirkliche Keim dazu war
noch früher: eine Arbeiterdemonstration in Frankfurt anläβlich des Todes von Rathenau, ich war siebzehn
Jahre alt. Wie immer ich es ansehe, mein ganzes erwachsenes Leben war von diesem Buche erfüllt, aber seit
ich in England lebe, also seit über zwanzig Jahren, habe ich, wenn auch mit tragischen Unterbrechungen,
kaum an etwas anderem gearbeitet. War es diesen Aufwand wert? Sind mir viele andere Werke so entgangen?
108

Peter Sloterdijk, o pensador no palco, é hábil em exposições e intervenções

midiáticas. O texto Desprezo das Massas originou-se da polêmica intitulada “Sintoma de

Munique”108, que girava em torno da mudança de um cargo público de direção de teatro.

Sloterdijk enxergou neste momento um sintoma do espírito do tempo e algum tempo depois

publicou o ensaio. O texto Regras do parque humano não teve a mesma oportunidade de

uma tranqüila maturação: foi publicado em jornal tão logo iniciou-se a polêmica em torno

de seu discurso, sob a justificativa de que, em alguns momentos, o interesse público deve

prevalecer sobre o interesse do autor.

Wie soll ich es sagen? Ich muβte tun, was ich getan habe. Ich stand unter einem Zwang, den ich nie begreifen
werde. Ich habe davon gesprochen, bevor viel mehr als die Absicht zu dem Buche da war. Ich habe es mit
dem gröβten Anspruch angemeldet, um mich besser daran zu ketten. Während jeder, der mich kannte, mich
dazu antrieb, es zu vollenden, habe ich es nicht um eine Stunde früher abgeschlossen, als mir richtig schien.
Die besten Freunde, die ich hatte, verloren in den Jahren ihren Glauben an mich, es dauerte zu lange, ich
konnte es ihnen nicht verargen. Jetzt sage ich mir, daβ es mir gelungen ist, dieses Jahrhundert an der Gurgel
zu packen”. [Ontem, o manuscrito de Massa e Poder foi enviado para Hamburgo. Em 1925, há trinta e quatro
anos atrás, tive a primeira idéia de um livro sobre a massa. Mas, seu verdadeiro gérmen era ainda mais
anterior: uma manifestação de trabalhadores em Frankfurt, por ocasião da morte de Rathenau; eu tinha
dezessete anos. Como constato continuamente, toda minha vida de adulto está ocupada por este livro; mas
desde que eu vivo na Inglaterra, ou seja, há mais de vinte anos, salvo algumas trágicas interrupções, eu mal
trabalhara em qualquer outra coisa. Valeu a pena este esforço? Não perdi assim muitas outras obras? Como
devo dizê-lo? Eu tive que fazer o que fiz. Eu estava sob uma coação que nunca vou entender. Já falava deste
livro quando não havia nada mais do que apenas a intenção de escrevê-lo. Anunciei-o como uma obra de
enormes pretensões a fim de que me atasse mais a ele. Apesar de que todos que me conheciam me impeliam a
terminá-lo, eu não o terminei nem uma hora antes do que me pareceu que devia ser. Durante todos esses anos,
meus melhores amigos perderam sua fé em mim, demorou muito tempo, eu não poderia culpá-los. Agora digo
a mim mesmo que eu consegui agarrar este século pela garganta]. CANETTI, Elias. Die Provinz des
Menschen. Aufzeichnungen 1942-1972. p 242-243.
108
Em 1999, o novo Kulturintendent de Munique, Julian Nida-Rümelin, recusou-se a renovar o contrato de
Dieter Dorn, diretor de longa data do Münchner Kammerspiele, substituindo-o por Frank Baumbauer. Em 15
de fevereiro, a crítica de teatro Christine Dössel escreve um artigo no Süddeutsche Zeitung defendendo que a
era de Dieter Dorn chegara ao final e que não havia nenhum problema nessa substituição. Alguns dias depois,
Sloterdijk publica no Süddeutsche Zeitung um artigo intitulado “Das Münchner Symptom”, identificando o
episódio e o artigo de Christine Dössel como um sintoma das lutas culturais dos tempos modernos (entre a
high-culture e low-culture). Em 6 de março, Julian Nida-Rümelin responde com um artigo intitulado:
“Tertiärphilosophie: Ist Peter Sloterdijk high? - Der Artikel des Kollegen Sloterdijk zum intendantenwechsel
an den Kammerspielen ist der bisher ahnungsloseste Kommentar zum Thema” [Filosofia-terciária: Peter
Sloterdijk está alto? O artigo do colega Sloterdijk sobre a mudança feita pelo intendente no Kammerspielen é
o comentário mais ‘sem noção’ sobre o tema]. Em primeiro de julho de 1999, Sloterdijk, convidado pela
Bayerische Akademie der Schönen Künste de Munique, profere uma palestra onde já expõe as bases do ensaio
Die Verachtung der Massen, publicado pela Suhrkamp no ano seguinte.
109

Ao mobilizar as leituras destes textos de Canetti e Sloterdijk, as conclusões em

relação ao horizonte de possibilidades da humanidade costumam ser catastróficas. Porém,

de formas distintas, os dois pensadores tornam-se contra-exemplos das próprias conclusões

que às vezes somos levados a tirar. Ainda que se reconheça a massa ao olhar para si

mesmo, ainda é possível ser provocativo e almejar o extraordinário.


111

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SPINOZA, Baruch. Ethica Ordine Geometrico Demonstrata, IN: “Spinoza Opera”,


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TARDE, Gabriel. L’Opinion et la Foule, Paris, Presses Universitaires, 1989.

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