O reformismo transformou-se numa retórica que assombra a vida política portuguesa, tendendo a ser, cada vez mais, uma estratégia de ocultação do verdadeiro sentido das decisões políticas que mais dificilmente possam ser justificáveis em si próprias, por não serem compatíveis com o interesse público, nem coincidentes com os interesses legítimos da maioria dos cidadãos. E isso ocorre, não porque o reformismo seja um método de transformação social que a História tenha desqualificado, mas porque essa palavra passou a ser impropriamente usada, como invólucro virtuoso de qualquer medida política e como qualificativo elogioso de qualquer político e de qualquer política, independente do conteúdo dessas medidas e dessas políticas. De qualquer político e de qualquer política, especialmente, quando nada têm de verdadeiramente reformista, não passando de factores e elementos de uma estratégia de conservação do tipo de sociedade em que vivemos, não passando, portanto, de acções que visam a defesa e a perpetuação do tipo de organização económico-social dominante. Ou seja, não passando de peças de uma estratégia globalmente conservadora que, nessa medida, mais apropriadamente se deveriam designar por contra-reforma.
Na verdade, o reformismo surgiu historicamente, enquanto dinâmica socialmente consistente, na medida em que era protagonizada por actores sociais relevantes, como método de transformação da sociedade, distinto do método revolucionário. Distinto, ainda que podendo ser encarado como essencialmente alternativo à revolução, apenas como circunstancialmente preferível, ou até como complementar.
Ou seja, o reformismo surgiu como expressão da ideia de que era possível e desejável superar o capitalismo e alcançar o socialismo, através de uma sucessão articulada de reformas levadas a cabo num quadro democrático, por governos socialistas. Portanto, o verdadeiro reformismo há-de projectar-se necessariamente num horizonte pós-capitalista. Há-de guiar-se, em última instância, pela qualidade de vida dos cidadãos e pela justiça na distribuição das riquezas e dos ócios entre todos eles, e não apenas por números que simultaneamente exprimem e ocultam a simples reprodução alargada dos privilégios estruturais que estão no cerne do capitalismo.
Durante um primeiro período, o reformismo viu a sua força diminuída pela falta de resultados decisivos, embora tivesse tido os resultados suficientes, quanto ao bem-estar dos trabalhadores, para garantir uma base social sólida e um peso eleitoral significativo e duradouro, apesar de naturalmente variável. Por outro lado, ele competia com o modelo soviético que, identificando-se como anti-capitalista, representava uma alternativa revolucionária ao capitalismo, inscrevendo no seu código genético uma desconsideração radical da democracia política como condição necessária a um pós-capitalismo socialista. Falhando como construtor de uma democracia, gerara, no entanto, uma autonomia estratégica, em face dos centros de poder dominantes do capitalismo mundial, que o tornava popular entre os que sofriam e rejeitavam esse sistema. Por outro lado, generalizara o acesso aos bens de primeira necessidade, chegando a níveis que poucos países no mundo haviam já alcançado. Por último, o reformismo era , tal como o revolucionarismo soviético acabara por ser, a expressão de um protagonismo político quase exclusivamente estatal. Ou seja, uma via trilhada apenas por actores públicos, isto é, pelo aparelho de Estado.
Numa conjuntura mundial bipolarizada, o reformismo, predominantemente adoptado por países do primeiro mundo, colocou-se ao lado das várias expressões políticas do capitalismo hegemonizadas pelos USA. Aí, tinha como uma das mais relevantes funções a fixação do apoio dos trabalhadores, contribuindo assim decisivamente para evitar que reforçassem muito as organizações que se identificavam com o modelo soviético. A sua força convinha , por isso, também de algum modo a todos os outros parceiros desse mesmo bloco e, portanto, de algum modo aos próprios interesses estratégico do sistema no seu todo.
Com o desmoronamento do modelo soviético, os socialistas reformistas adquiriram a vantagem de ficar objectivamente evidenciado o equívoco do atalho que fora utilizado para afirmar esse modelo, ficando, além do mais, claro que uma solução revolucionária não é necessariamente irreversível. Tudo isso, potenciado por se ter tratado de uma implosão e não da consequência de uma derrota militar.
Mas, ficaram perante uma nova dificuldade: deixara de haver objectivamente lugar para que continuassem a ser aliados dos sectores hegemónicos do capitalismo mundial. Pelo contrário, independentemente da sua vontade, haviam passado a ser, no longo prazo, o mais poderoso foco potencial de alternatividade estratégica ao capitalismo. Por outro lado, os sectores mais conservadores dos partidos nucleares do sistema, hegemónicos nos centros decisivos do poder mundial, consideraram que era agora possível reverter as concessões que tinham sido obrigados (ou que tinham achado conveniente) fazer aos trabalhadores e aos cidadãos subalternos, no decurso da guerra fria. É este o sinal estratégico do "reaganismo", que hoje é designado pelo vocábulo ambíguo de neoliberalismo, que ao contrário da verdadeira tradição liberal, ancorada no liberalismo histórico, é culturalmente conservador, politicamente desconsiderante da necessidade de aperfeiçoar permanentemente a democracia, economicamente desregulador, socialmente indiferente e internacionalmente imperial.
E, assim, foi-se construindo uma mistura política aglutinadora de medidas normais de ajustamento às inovações tecnológicas e organizacionais, com medidas de regressão social, destinadas a transferir uma parte dos rendimentos do trabalho, para rendimentos do capital, o que se traduziu, no quotidiano dos trabalhadores, numa perda concreta de direitos sociais e económicos e, desses modo, num agravamento das suas condições de vida. Tudo isso, umbilicalmente ligado ao correspondente acréscimo dos lucros atribuídos ao capital.
Para justificar essa mistura de medidas, era ostentada como motivação central a modernização tecnológica e organizativa, designada apenas como modernização, sendo cuidadosamente escondida a vertente de contra-reforma, que é a verdadeiramente dominante. Este caldo de cultura ideológico, blindou-se com um discurso tecnocrático de cariz económico e ambição economicista, para se fazer passar por pura ciência, neutra e, portanto, imune a qualquer inquinamento político ou ideológico. Procurou caminhar-se, com o firme apoio e envolvimento das grandes organizações económicas internacionais, para uma situação em que as medidas políticas de que depende o reforço ou reversão dos privilégios, saber quem vive bem e quem vive mal, quem vive arrastando-se e quem vive sorrindo, fossem resultados automáticos de conclusões dessa ciência económica que os políticos se deviam limitar lucidamente a cumprir.
A essa contra-reforma chamaram reformas estruturais; e qualquer medida notoriamente anti-social e geradora de transferências de rendimentos do factor trabalho para o factor capital, foi zelosamente protegida com o epíteto pomposo de reforma.
Por isso, hoje há que distinguir bem os meros cabazes de medidas avulsas das verdadeiras reformas. E, ao falar-se destas, há que aprender a perceber, quando se está perante simples medidas de regressão social integradas na grande ofensiva neoliberal e quando se está perante medidas modernizadoras do tecido social, conducentes a uma maior justiça social rumo a um horizonte pós-capitalista. Reformismo é uma palavra que apenas pode ser aplicada com propriedade a estas últimas. Aplicá-la a qualquer outro tipo de medida é pura mistificação ideológica ou simples propaganda política.
Aliás, se um Governo de esquerda quiser assumir de facto uma estratégia global reformista, para além de ter que estar bem ciente da problemática atrás esboçada, não se pode limitar a usar as alavancas do aparelho de Estado. Tem que conseguir envolver nas suas políticas sociais, os movimentos sociais e todas dinâmicas organizativas que nem sejam estatais, nem de natureza privada lucrativa. Deve seguir uma política sistemática de estímulo às organizações da economia social, tornando-as seus parceiros estratégicos na via reformista que assuma. Em suma, sem ignorar a centralidade do protagonismo estatal na construção do novo percurso terá de o conjugar com o protagonismo de toda uma constelação de organizações sociais, materializando assim parcelarmente uma renovação civilizacional ambientalmente sustentável.
Se assim não fizer, qualquer governo resultante de um ou vários partidos de esquerda, por melhores que sejam as intenções dos seus protagonistas, poderá não conseguir ser mais do que um honesto gestor da conjuntura, distante de qualquer interferência no jogo de forças que real e estruturalmente molda o devir da sociedade. E por mais generoso que seja o seu activismo, por mais enérgico que seja seu empenhamento, pouco poderão fazer na ausência de uma consistência estratégica apontada para o longo o prazo e consistentemente alternativa ao que de essencialmente injusto assinala geneticamente as sociedades em que vivemos.
Voltando ao princípio: há uma retórica do reformismo que assombra a vida política. Não porque o reformismo seja algo de negativo, mas porque uma boa parte dos seus arautos são afinal anti-reformistas que se desconhecem, e uma outra, são, simplesmente, agentes dissimulados da contra-reforma. Quanto a verdadeiros reformistas se os procurarmos pacientemente, à lupa, talvez encontremos alguns.