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domingo, 10 de dezembro de 2023

A SOMBRA DE UMA FRASE HONRADA E JUSTA

 

A SOMBRA DE UMA FRASE HONRADA E JUSTA

A minha opinião sobre uma boa parte das posições políticas táticas assumidas por Mariana Mortágua é negativa. Na verdade, globalmente, ela não é alguém que mereça a minha concordância  política. Dito isto, tem significado acrescido o seguinte. 

Numa entrevista que ela deu recentemente, a jornalista com quem conversava fez uma referência ao seu pai, o conhecido combatente pela liberdade Camilo Mortágua. Caracterizou-o como um “homem polémico”. Na resposta, com serena naturalidade Mariana Mortágua retorquiu: “Não, o meu pai não foi um homem polémico. O meu pai foi um gigante antifascista”.

Há gestos, frases, atitudes que marcam a nossa vida. Explosões de dignidade que nos elevam para sempre. Esta frase de Mariana Mortágua é assim.

Quanto a isso e por isso, não escapa à minha profunda admiração.

quarta-feira, 4 de maio de 2022

DOS SOCIALISTAS EM FRANÇA.

 

 


DOS  SOCIALISTAS  EM  FRANÇA.

Uma resistência à entrada do Partido Socialista Francês na grande coligação de esquerda liderada pela França Insubmissa ecoa lugubremente na comunicação social francesa.

 É especialmente  protagonizada por alguns dos seus notáveis de má memória. De facto. alguns dos  coveiros mais ostensivos do socialismo francês parecem não querer admitir qualquer tentativa séria para o desenterrar. Uns, como Manuel Valls, assumem e aprofundam sem rebuço uma deriva de traição que iniciaram há anos  juntando-se à estéril nebulosa “macroniana”. Outros erguem-se penosamente da sepultura política em que caíram e procuram evitar com desespero que o PSF retome um protagonismo político relevante. Não se percebe se resistem a sair do buraco em que Anne Hidalgo os meteu nas recentes eleições presidenciais ou se sonham  nunca lá terem caído.

Quase miraculosamente o que resta do Partido, como um quadrado de raiva, parece querer resistir. No horizonte, cresce a probabilidade da sua adesão a uma União Popular Social e Ecológica que congregue toda a esquerda francesa.

Registe-se, entretanto,  a posição assumida no twitter  pelo candidato do PS às eleições de 2017, Benoit Hamon:

“Afastei-me da vida política nacional  mas , a título pessoal, neste dia de aniversário da vitória da Frente Popular,  afirmo que a aliança em torno da União popular é uma excelente notícia”.

Haverá esperança ?



sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

"Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia"

 

 

"Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia"

1- Os factos

- uma conjugação dos votos de todas as direitas e do BE, do PCP e dos Verdes chumbou o orçamento logo na votação na generalidade.

- esse chumbo foi precedido por negociações entre o PS ( único partido com responsabilidade governamental directa e que dispõe de um apoio eleitoral bastante superior ao de cada um dos outros partidos) e os outros partidos de esquerda, tendo as que ocorreram  com o PCP e os Verdes decorrido até à véspera do votação.

- nessas negociações foram alcançados resultados que se traduziram numa proposta de orçamento claramente mais próxima das posições das esquerdas não PS do que os anteriores, especialmente no que diz respeito às posições do PCP e dos Verdes.

- a direita sozinha não tinha força para chumbar o Orçamento.

- a parte mais significativa das razões invocadas pelas esquerdas que chumbaram o orçamento  não dizia respeito directamente ao conteúdo do orçamento

2. A fantasia

- quem chumbou a proposta de orçamento foi o PS, único partido que votou a favor, e não aqueles que votaram realmente  a sua reprovação.

- ou seja, para a fantasia : o PS manipulou os outros partidos, induzindo-os a votar contra a proposta de orçamento, tal como a ele lhe convinha que votassem; e assim, contra aquilo que falsamente  dizia querer aprovar;

- pelo que as negociações havidas foram um mero exercício de hipocrisia política;

- o ilusionista chefe que tudo urdiu foi António Costa, que é nessa medida  um actor de comédia disfarçado e não um dirigente político nacional e internacionalmente prestigiado, hábil e consistente.

- mas esse ilusionista não avaliou bem os riscos que corria ao praticar o seu golpe de mágica pelo que até pode perder as eleições.

3.Uma lógica de geleia

- os partidos de esquerda que se juntaram à direita, vítimas da extrema perversidade de os fazerem tomar uma posição que só os prejudicava, respondem a esse golpe de ilusionismo, apelando ao não voto no PS sob a desculpa de assim estarem a esconjurar o demónio de uma maioria absoluta do PS, mas esperam que ele possa formar um governo que realize as medidas que eles inscrevem nos seus programas.

- embora aleguem ter sido  vítimas da perversidade ilusionista do PS as outras esquerdas ciciam estar abertas a dialogar com ele após as eleições, dando a entender que preferem um governo do PS do que um de direita

4. Moralidade Esquisita

- os culpados aparentes estão inocentes, o inocentes ostensivos são afinal culpados

5. Evocando Eça de Queirós

-“Sob o manto diáfano da fantasia, a nudez forte da verdade”

 

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

UMA LINHA POLÍTICA CLARA E TRANSPARENTE

 

UMA LINHA POLÍTICA CLARA E TRANSPARENTE

1-AUTONOMIA ESTRATÉGICA

Na actual campanha, a linha estratégica do BE (gritante) e do PCP (menos trovejante) pode resumir-se em dois apelos dirigidos ao eleitorado que possa votar no PS:

- Não votem no PS para ele não ter maioria absoluta!

- Votem no PS para ele governar, de modo a poder tomar as medidas que nós achamos que devem ser tomadas.

2- REQUERIMENTO DO ELEITORADO, ALGO CONFUNDIDO:

- Vimos respeitosamente pedir a Vossas Excelências o obséquio de nos indicarem quais de nós devem votar e quais de nós não devem votar no PS.

3- PERGUNTA INCONVENIENTE DE UM ELEITOR DE LISBOA ESCALDADO:

- Nas mais recentes eleições autárquicas em Lisboa segui religiosamente as vossas instruções e o resultado foi o que se conhece: ganhou a direita. Têm a certeza que não acontecerá o mesmo, à escala nacional, se continuar a obedecer-vos?

 4- RESPOSTA ESOTÉRICA DOS PERGUNTADOS:

- Fomos à bruxa que alegadamente tem ajudado o FCP a ganhar campeonatos e ela garantiu-nos que com um pouco de sorte isso não ia acontecer.

5- MORALIDADE EM JEITO DE PERGUNTA:

- Se o PS não existisse a quem pediriam os partidos acima mencionados para lhes executarem as suas políticas?

 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Cuidado com o Anjo da História!

 


Cuidado com o Anjo da História!

Quando na Alemanha o nazismo já começava a tornar-se visivelmente perigoso, o Partido Comunista Alemão recusou qualquer concertação com os socialistas do SPD, baseando-se numa linha política simples que se traduzia em “enterrar o nazismo sob o cadáver da social-democracia”.
O Anjo da História adormeceu e o nazismo não foi enterrado, floresceu. Uniu, nos campos de concentração e nos obituários do seu poder, comunistas e socialistas. Vários povos, a começar pelo povo alemão, sentiram-lhe o peso insuportável .
A água continuou a passar por debaixo das pontes e o Anjo da História foi acordando lentamente sem deixar de passar por múltiplas distrações. O nazismo pereceu nas caves mais fundas da indignidade e da ignomínia. O Partido Comunista Alemão já não existe. O SPD prepara-se para liderar o próximo governo por escolha democrática dos alemães.
A História não se repete mas é saudável não a esquecer. O seu Anjo não pára de nos surpreender

domingo, 24 de outubro de 2021

FÁBULA CANSADA

 



Em 31 de Dezembro de 2019 publiquei no meu blog  O Grande Zoo este poema. Infelizmente faz sentido recordá-lo.

 

Fábula Cansada

 

A esquerda atravessa o rio,

um sapo sob um lacrau.

 

O lacrau para ser lacrau

só pode sempre morder.

 

O sapo vai afundar-se

vencido pelo veneno?

 

O lacrau vai afogar-se

porque não pode nadar?

 

Que importa, clama o sapo,

este  caminho é o meu.

 

Que importa, diz o lacrau,

antes ser eu e morrer

do que pensar e viver.

 

Com o sapo e o lacrau

muito povo vai morrer.

 

Pergunto sem ironia,

não era melhor chegar?

          

                              [Rui Namorado]

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

PENSANDO UM POUCO SOBRE O PRESENTE


A política não é uma sucessão de julgamentos morais em que se distribuam condenações, absolvições e louvores. Aproxima-se mais de ser uma pugna entre quem quer conservar o inigualitarismo social atualmente dominante e quem o quer combater e erradicar. Em Portugal, as esquerdas todas juntas( que são tendencialmente o primeiro desses dois lados) não têm por enquanto força suficiente para protagonizarem um processo de transformação social efetivo e duradouro. Depende de cada uma delas e do seu potencial de conjugação o aumento dessa força. Ao lutarem entre si não caminham no sentido do seu reforço, ficando mais longe de conseguirem uma efetiva mudança social que traga justiça e igualdade; ficam mais longe de responderem na prática às aspirações da respetiva base social. Aumenta assim o risco de explosões sociais dissipativas, que deixem o campo institucional aberto a um prolongamento da hegemonia da direita. E consequentemente aumenta o risco de um esvaziamento do envolvimento político-social do povo na resistência ao tipo de sociedade em que vivemos; ou seja das suas vítimas. E isso leva a um risco de anulação dos partidos de esquerda.
Será depois irrelevante apurar-se quem teve culpa do descalabro histórico, mas Portugal se isso acontecer cairá num severo buraco histórico; os portugueses ficarão bem longe dos seus mais legítimos anseios. É isto que está hoje em causa e não a esgrima florentina de lugares comuns, ainda que impregnados por uma aparente generosidade. A repetição de slogans previsíveis numa dialética inócua, um dia a dia previsível de diatribes cruzadas e cansativas.

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

A força do destino…

 

A força do destino…

O actual panorama político mostra as direitas mais perto de uma frente comum pré-eleitoral do que as esquerdas. Apenas a  eclosão do Chega perturba essa tendência. E as esquerdas não se mostram apenas longe de uma frente pré-eleitoral, mostram-se distantes de qualquer tipo de frente. A manutenção desta diferença parece ser a única esperança de a direita ganhar legitimidade democrática para governar em Portugal.

Se cada uma das esquerdas se limitar a mostrar que a culpa da dispersão é das outras, tudo tenderá a ir-se complicando cada vez mais. Mas este bloqueio não é um mero jogo de xadrez político. Por enquanto, tudo indica que há uma maioria social e eleitoral de esquerda. Mas a maioria social pode deixar de ser uma maioria eleitoral, se os partidos da esquerda insistirem em resistir a uma conjugação estável de esforços que conduza a entendimentos ou alianças com ambição duradoura. Eleitoralmente podem pagar caro a persistência na divisão, dando ainda um inestimável presente às direitas; abrindo-lhes desastradamente as portas da governação.

Recordemos, aliás, as consequências da incapacidade de nos anos 80, o PS, o PCP e o PRD se entenderem para governar. Estruturalmente, ela gerou o “cavaquismo” e a prazo  levou à extinção do PRD. O PS e o PCP foram subalternizados durante uma década. Todos deveriam ter aprendido.

É claro que, atendendo à nossa história pós 25 de Abril , não será simples nem fácil. Podem ser diversas as eventuais resistências de cada um. Compreensíveis. Mas não há outro caminho que corresponda politicamente à actual relação de forças na sociedade portuguesa e que limite os riscos inerentes ao futuro incerto que temos pela frente.

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Frutos amargos

 

Mais tarde, poderei vir a fazer um comentário político global aos resultados das recentes eleições autárquicas. Deixemos assentar a poeira. Hoje, vou-me limitar a um comentário muito circunscrito, sem pretensões que transcendam o seu conteúdo visível. Vou falar muito genericamente da campanha do BE e dos seus resultados.

Se olharmos para o seu conteúdo, podemos dizer que as suas propostas estiveram em linha com o essencial da sua linha política. Mas esse conteúdo  foi expresso no quadro de uma estratégia que visou dois objectivos principais: aumentar o número de vereadores eleitos pelo BE e impedir maiorias absolutas do PS nos casos em que esse perigo  (na perspectiva do BE) existisse.

O primeiro objectivo falhou, já que o BE perdeu mais de metade das cerca de duas dezenas de vereadores que tinha.

O segundo, como o caso de Lisboa documenta, foi mais do que atingido: o PS mais do que não ter chegado à maioria absoluta não chegou sequer a uma maioria; perdeu as eleições. Tornou-se impossível assim ao BE obrigar o PS a comportar-se de acordo com as suas virtuosas indicações. Pelo que nos podemos interrogar sobre se este resultado é o pleno cumprimento do objectivo do BE ou a sua absoluta frustração.

Podemos andar às voltas de tudo isto com a imaginação própria das preferências de cada um de nós. Mas dificilmente podemos deixar de constatar que, se é certo que se pode envolver em subtis justificações a relação entre os resultados pretendidos e os conseguidos pelo BE, parece claro que com o modo como essa estratégia se concretizou a direita lucrou fartamente.

Os entusiasmos de Catarina tiverem pois alguns frutos, mas certamente amargos. Os vereadores salvadores com que ambicionava polvilhar as governações do PS de vários municípios não vão poder agir; ou porque não chegam a existir ou porque é a direita que está no poder.

Faço a justiça ao BE ao imaginar que estes frutos lhe são amargos.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

PEDIR POUCO

 

Enérgica e perentória, Catarina apela à eleição de mais um vereador para o BE, em Lisboa ou noutro lugar, para assim abrir as portas  às coisas boas que os aturdidos munícipes já não esperavam .Uma chama incendeia-lhe o olhar, a felicidade está ao alcance das nossas mãos. Deem mais um vereador a Catarina e tudo será diferente.

É certo que podia pedir uma maioria absoluta para o BE, que assim teria os meios para realizar as suas esperanças. Mas Catarina é modesta. Tão modesta quanto entusiasta: não quer tanto, basta-lhe mais um vereador.

E é tão modesta que se inibe de ostentar toda a extensão do que nos promete. De facto, o seu contido desejo de mais um vereador, para além de poder ser a chave de uma boa fortuna, é muito mais do que isso, o princípio de um milagre. Não tão extraordinário, é certo, como o das rosas, mas seguramente também notável.

De facto, de um PS pesadão e relapso,  alérgico à abertura das generosas portas de Catarina, rumo a um início de respiração do paraíso, ela fará uma coleção de arcanjos, vocacionados para  o cometimento de todas as propostas  almejadas pelo BE. E afinal com uma condição muito simples: mais um vereador  para Catarina.  E, já agora, se não for pedir muito, não concedam ao PS maiorias absolutas.

Um cético oráculo da Grécia antiga talvez insidioso  encolhesse os ombros e regougasse : “Delírio, puro delírio”. Mas eu que sou um otimista do século XXI , generoso para com a alma humana ,afirmo com firmeza: “ Nada disso. Entusiasmo, voluntarismo , sonho  “.

segunda-feira, 12 de abril de 2021

O Brasil e o Partido dos Trabalhadores ─ perspectivas

 

                                                                                                      ALOIZIO MERCADANTE

O Brasil e o Partido dos Trabalhadores                                                 perspectivas

Identificando-se a si próprio,  Brasil 247  considera-se como sendo “um dos maiores sites de notícias do Brasil e defende a democracia plena, ideais progressistas, valores humanistas, o desenvolvimento da economia nacional, o multilateralismo na política externa e a informação como um direito de todos os cidadãos”.

 Dele transcrevo o texto (de 09/04/21) que se segue. Contém posições de Aloizio Mercadante, destacado dirigente do PT [Partido dos Trabalhadores] que desempenhou um papel de relevo nos governos deste partido. É um documento esclarecedor sobre o atual posicionamento do PT na complexa conjuntura que o Brasil atravessa. Eis o texto.

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Aloizio Mercadante foi entrevistado no programa 20 Minutos Entrevistas, em 07/04/ 21, pelo  jornalista Breno Altman. O entrevistado é atualmente presidente da Fundação Perseu Abramo, instituto de estudos e formação vinculado ao Partido dos Trabalhadores. E coordenou a construção do Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil, lançado pelo PT em setembro do ano passado.

Segundo ele, o programa é o ponto de partida para convocar uma assembleia constituinte, que “é o nosso ponto de chegada”. 

“Precisamos construir as condições para convocar as assembleias constituintes e realizar mudanças que, se não fizermos, não vamos avançar”, defendeu. A constituinte permitiria revogar as reformas neoliberais promovidas no país desde o golpe contra Dilma Rousseff apenas com maioria parlamentar simples.

Muitos líderes de esquerda, no entanto, se opõem à convocação, apesar de todos concordarem que a Constituição brasileira já não é suficiente. O temor é que se chegue a um texto constitucional mais retrógrado, devido ao atual momento político do país.

Por isso, Mercadante reiterou que o programa do PT - que é apenas estratégico, não eleitoral - é o ponto de partida para criar essas condições. A proposta tem três dimensões, segundo explicou o também ex-senador e ex-ministro: urgência, reconstrução e transformação.

A urgência diz respeito à pandemia e refere-se não somente à proteção da vida, com vacina e auxílio emergencial, mas também a alternativas de reconstrução para sair da crise provocada pelo coronavírus.

“Não há saída para o país sem enfrentar a pandemia. Não há retomada da economia enquanto a pandemia não for superada e o Brasil tem todas as condições de enfrentar essa crise”, afirmou.

O ponto de reconstrução, por sua vez, trata de retomar projetos levados a cabo pelo PT durante os governos Lula e Dilma e que foram desmontados após o golpe de 2016. “Asseguramos o prato de comida no nosso governo, e agora tem gente passando fome”, afirmou.

Por fim, a categoria de transformação diz respeito aos novos desafios da atualidade. “É o momento da indústria 4.0, do 5G, em que falar de transição ecológica e realidade digital são pautas novas para o Brasil”, disse.

Segundo ele, o programa também contempla a necessidade de lutar para revogar medidas instauradas pelos governos Temer e Bolsonaro. Como exemplos, o presidente da Fundação Perseu Abramo citou a independência do Banco Central e o teto de gastos.

“Mas isso depende da correlação de forças no Congresso”, retomou. “Não basta votar no Lula, precisamos fazer bancada. Não é só vontade do governo. A esquerda precisa criar uma unidade mais ampla e mobilizar a população para ir às urnas”, argumentou.

Reforma tributária e bancária

Aprofundando-se em temas específicos do plano, Mercadante falou sobre a urgência de uma reforma tributária “justa e sustentável”, algo que ele considera “fundamental para sair da crise”.

Para ele, no entanto, uma reforma bancária não é necessária, pois três dos cinco principais bancos no Brasil são públicos: o Banco do Brasil, a Caixa e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). “O problema é que os instrumentos que nós tínhamos para garantir que essas entidades evitassem o monopólio do crédito por parte dos bancos privados estão sendo desmontados”, justificou.

“É necessário que a Caixa Econômica Federal, por exemplo, seja estatal, apesar de ser de capital misto, porque ela cumpre funções que uma instituição privada não poderia cumprir. Ela financia prefeituras, tem o cadastro do auxílio emergencial, é fundamental para o acesso do Bolsa Família. Tudo isso tem que ficar sob controle do Estado. Não é preciso que seja 100% pública, apenas a empresa-mãe deve sê-lo, e, neste caso, já é”, afirmou Mercadante.

‘O problema do SUS está no financiamento’

O presidente da Fundação Perseu Abramo também comentou sobre a questão da saúde, outro importante ponto do programa, e foi taxativo: “O problema do SUS está no financiamento” - não em como o sistema foi concebido.

“Se você mudar a arquitetura do sistema e não mudar o problema, vamos ter um cenário ainda mais grave. Passada a pandemia, vai aumentar muito a demanda, porque há uma demanda reprimida de cirurgias eletivas e tratamentos. Além das pessoas que perderam o emprego, por exemplo, e perderam o plano de saúde, então vão ter que passar a usar o SUS. E aí é evidente que a cobertura do SUS vai ser insatisfatória se não houver financiamento”, ponderou Mercadante.

Ele retomou a necessidade de uma reforma tributária, com tributação sobre lucros e dividendos, grandes fortunas e heranças, como forma de garantir o financiamento adequado.

Insuficiências do programa

O programa do PT não menciona, entretanto, a questão militar no país: “É uma insuficiência de uma formulação para a qual não temos respostas viáveis e promissoras”, afirmou Mercadante, que, por outro lado, reconheceu que a tutela militar do Estado “é um dos mais graves problemas da democracia brasileira”.

Ele afirmou que a revogação do artigo 142 da Constituição não seria o suficiente para resolver o problema. “Você pode revogar o artigo e ter golpe. Acho ingênuo achar que se muda toda uma instituição apenas com a revogação dessa emenda”, considerou.

O texto define as Forças Armadas como instituições nacionais permanentes e regulares que “se destinam à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Bolsonaro e seus apoiadores interpretam o trecho como sendo uma autorização para a intervenção militar no país.

“É um problema muito mais profundo. O nível de controle de cima para baixo da instituição dificulta qualquer mudança. Teremos de negociar com os setores mais democráticos e compromissados com a nação dentro das entidades para realizar qualquer tipo de mudança”, defendeu.

Eleições de 2022

Mercadante relembrou que o programa do PT não é eleitoral, mas que ele estimula debates programáticos entre partidos, o que considera essencial, “porque acho que temos que construir uma aliança de esquerdas e um programa unitário. O PT não vai ter maioria nem para desfazer o que foi feito, quanto mais transformar, então precisamos dessa frente”.

Nesse programa único, ele ressaltou a importância de que constem reformas estruturais e o fortalecimento do Estado para poder lidar com as mudanças, sobretudo tecnológicas, do futuro e “alavancar o estado brasileiro” no cenário internacional.

“Vamos ganhar as eleições tendo uma direita golpista, armada, dentro das instituições, da polícia, das forças armadas. Precisamos de uma grande frente democrática, apoio popular e uma esquerda unida para enfrentar esse cenário. E Lula é parte da solução para os problemas. Não sei se ele será o candidato, mas tem uma grande capacidade de mudança e de unir a esquerda”, concluiu.

 

domingo, 4 de abril de 2021

25 de abril, sempre: cumprir e fazer cumprir a Constituição

 


25 de abril, sempre: cumprir e fazer cumprir a Constituição

1. O art.º 167 da Constituição da República Portuguesa que regula a “iniciativa da lei e do referendo” dispõe no seu nº 2 : “ Os Deputados, os grupos parlamentares, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas e os grupos de cidadãos eleitores não podem apresentar projetos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento.”

É o disposto neste preceito que está em causa na controvérsia pública acerca da chamada lei-travão. Como se pode ver, propostas de aumento de despesas ou diminuição de receitas do Estado previstas num Orçamento durante a sua vigência não devem sequer ser apresentadas, logo, por maioria de razão, não podem ser aprovadas, sob pena de serem inconstitucionais.

 Esta mensagem normativa é como se vê clara, não dando espaço a outra interpretação que não seja a que ressalta da “primeira evidência” do texto legal. E essa evidência é tão gritante neste caso que qualquer tentativa de ilusionismo jurídico que sugira o contrário é apenas uma inútil tentativa de ocultação de um grosseiro desrespeito pelo disposto na Constituição.

Na verdade, há inconstitucionalidades geradas por ressonâncias constitucionais, cuja complexidade torna compreensível a diversidade de interpretações. A diversidade de posições será então natural. Mas neste caso, como se viu, isso não acontece. É impossível que quem aqui desrespeitou a Constituição não tenha sabido que o estava a fazer, que não o tenha querido ou que não se tenha importado em fazê-lo.

[É certo que o desenvolto constitucionalista Francisco Louçã, juridicamente arguto e sempre imaginativo, inventou uma outra norma constitucional em que apenas se proíbe que sejam feitas propostas que furem um alegado teto de despesas presente no orçamento. Munido desse milagroso teto, mostrou com exuberância como António Costa (e todos os constitucionalistas realmente existentes que se pronunciaram no sentido de as leis em causa serem inconstitucionais) estavam rotundamente errados. Na verdade, se a norma constitucional por ele alegada existisse realmente, teria razão. Mas como não ela existe, apenas estivemos perante um malabarismo televisivo mistificatório. Enfim, um verdadeiro “Momento Zen” que talvez não nos seja mostrado. Mas encerremos este esotérico momento Louçã e voltemos ao cerne da questão.]

Como se viu, o disposto na Constituição impede que os deputados proponham aumento de despesas ou diminuição de receitas, mas não abrange o Governo nessa proibição; nem calibra, atenua ou relativiza essa proibição em função de uma hipotética bondade das razões ou motivos invocados para a justificarem; nem a faz ceder perante a hipótese do acréscimo da despesa ou a diminuição da receita poderem ser acomodados pelo Governo no orçamento em vigor. Tudo isto é claro e inequívoco

Portanto, todos os porta-vozes partidários, todos os comentadores políticos, todos os jornalistas, todos os neo-constitucionalistas de ocasião que congestionaram o espaço público com a sôfrega tentativa de enfraquecer a posição de António Costa nesta questão e de salvarem Marcelo R. de Sousa do seu inesperado dislate constitucional , invocando qualquer das três ordens de razões acabadas de mencionar, apenas enxovalharam a imagem da sua própria argúcia. Não foram espelhos de criatividade argumentativa, mas simples megafones insalubres de claros dislates jurídico-constitucionais.

2. Embora mereça apuração autónoma e uma análise substancial o conteúdo das propostas inscritas nas leis em causa, de modo a poder verificar-se a real dimensão da sua novidade, em comparação com as medidas tomadas pelo Governo, não é disso que se trata, quando se discute a sua inconstitucionalidade. E mesmo que essa novidade fosse realmente significativa e compatível com as possibilidades efetivas de serem postas em prática no imediato num país com o nosso nível de desenvolvimento, haveria outras maneiras de repercutir essa diferença de posições nos comportamentos políticos dos vários órgãos e partidos. Nunca ignorar a Constituição.

 Não encontrando outro caminho, no limite, se as oposições se entenderam para aprovar essas leis e se as acham suficientemente importantes para , por causa delas, ignorarem o normativo constitucional, por que razão não derrubam este Governo e se juntam numa solução alternativa que realize as políticas que executem as medidas a que dão tanta importância? Resposta embaraçosa? Decerto; mas o embaraço, que  tolha  as possibilidades de uma resposta a esta pergunta, indicia bem, principalmente quanto às oposições que sejam de esquerda, a irracionalidade do caminho trilhado.

 

3. Mas, neste caso, as oposições claramente exteriores ao hemisfério direito do espaço político (PCP, Verdes e BE) cometeram um erro ainda mais relevante. Na verdade, permitindo-se relativizar a essencialidade do respeito pela Constituição, quando se dispuseram a desrespeitá-la tão ostensivamente, desferiram-lhe objetivamente um golpe profundo. Foi a Constituição como um todo que foi ferida e não apenas um dos seus aspetos.

A alergia da direita à Constituição, por mais calculadamente discreta que seja e ainda que mais ou menos exacerbada ao sabor das conjunturas, é uma das traves mestras do seu modo de se integrar no processo democrático iniciado no 25 de abril. Por isso, não perderá certamente o sono perante episódios de deslegitimação simbólica da Constituição, como este é.

Mas as esquerdas situam-se no polo oposto. Para todas elas a Constituição é um elemento central da sua identidade histórica e dos horizontes que as fazem mover, numa comunhão quanto ao essencial que não impede uma diversidade de leituras. Por isso, quando a enfraquecerem estar-se-ão necessariamente a enfraquecerem-se a si próprias. E fazerem isso partilhando uma iniciativa com a direita, só agrava a incongruência desse seu comportamento.

Este lamentável episódio teve ainda um efeito profundamente insalubre no espaço público, quando se tentou justificá-lo com argumentos falaciosos imbuídos de uma intensa irracionalidade. E assim se agravou a atmosfera do espaço público esvaziando de lógica o debate político e dando mais um passo rumo a um estéril vale tudo que empobrece realmente a democracia e torna os discursos patetas e mistificatórias um moeda cada vez mais corrente. E nesta atmosfera deletéria seguramente que podem florescer  os discursos de ódio e as crispações gratuitas, mas certamente  esmaecem as cores da esperança nos horizontes que buscamos.

quinta-feira, 18 de março de 2021

LULA ─ um discurso histórico

 

 


LULA ─ um discurso histórico

 

O ex-Presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva proferiu no passado dia 10 de março um discurso inteligente, humano e vibrante, que fará história e merece ser conhecido pelo portugueses. Fê-lo na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista, em São Bernardo do Campo (SP).

Uma decisão não definitiva no Supremo Tribunal Federal anulou na véspera  as principais  condenações da Lava Jato que impendiam sobre ele. Está prestes a ser tomada uma outra que, se também lhe for favorável, pode acentuar mais a evolução favorável da  situação judicial com que procuraram tolhê-lo.

Tudo se radica  no escândalo inenarrável das revelações feitas há tempos atrás, desencadeado pela divulgação pública de conversas entre vários protagonistas do poder judiciário. Elas mostraram que tudo o que os advogados de Lula haviam dito sobre a parcialidade do juiz Moro e sobre as ilegalidades cometidas pela Polícia Federal e pelo MP brasileiro contra Lula era justificado e verdadeiro.

E embora não existam ainda decisões definitivas, o reconhecimento público de uma perseguição tão arbitrária, tão grosseiramente motivada politicamente contra Lula torna impossível elas não lhe serem favoráveis. Se assim não fosse  o poder judicial brasileiro já tão desprestigiado por essa perseguição evidente ficaria mergulhado na lama.

Lula falou em público pela primeira vez após a decisão do juiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), que anulou as condenações proferidas pela 13ª Vara Federal de Curitiba, devolvendo-lhe os direitos políticos.

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Eis os aspetos mais significativos do extenso discurso de Lula:

[Depois de uma breve frase introdutória, Lula começa por fazer uma pedagogia de cautela sanitária num expressivo contraponto à lendária irresponsabilidade criminosa do atual  presidente do Brasil .]

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“Eu acho que o seguinte: primeiro, espero que todo mundo esteja de máscara aqui, que todo mundo esteja se cuidando, espero que brevemente todos vocês tenham tomando vacina. Eu queria falar com o médico aqui, se eu posso tirar minha máscara pra falar. Eu estou a dois metros de distância, vocês todos já fizeram o teste. Vocês todos estão livres. Então, eu gostaria de tirar minha máscara para poder falar com vocês.”

[De imediato, Lula evoca a sua prisão.]

“Bem, faz quase três anos que eu saí da sede desse sindicato para me entregar à Polícia Federal. Eu fui, obviamente, contra a minha vontade, porque sabia que estavam prendendo um inocente. Muitos dos que estavam aqui não queriam que eu fosse me entregar.

Eu tomei a decisão de me entregar porque não seria correto, um homem na minha idade, um homem com a construção da história construída junto com vocês, pudesse aparecer na capa dos jornais e na televisão como fugitivo. 

Como eu tinha clareza das inverdades contadas sobre mim. Eu então tomei a decisão de provar a minha inocência dentro da sede da Polícia Federal, perto do juiz [Sergio] Moro. 

Antes de eu ir, nós tínhamos escrito um livro. Eu fui a pessoa que dei a palavra final no título do livro, que é A Verdade Vencerá. Eu tinha tanta confiança e tanta consciência do que estava acontecendo no Brasil, que eu tinha certeza de que esse dia chegaria. E ele chegou. “

 

[De seguida, Lula evoca as suas raízes.]

 

“Queria dizer para vocês que eu nasci politicamente nesse sindicato. Em 1969, eu virei delegado de base desse sindicato, trabalhando na Villares. Em 1972, eu virei primeiro secretário, e cuidava da previdência social. Na verdade, eu cuidava dos velhinhos aqui. Em 1975, eu virei presidente. Em 1978, nós fizemos as primeiras greves desde as greves de Osasco e de Contagem, em 1968. E depois vocês já conhecem a história. Veio a criação de muitos dos movimentos que estão aqui, e eu participei de quase todos eles.

E o movimento mais importante foi a minha tomada de consciência de que, através do sindicato, eu não iria conseguir resolver os problemas do país. Eu poderia, no máximo, conseguir alguma conquista dentro da fábrica, mas era uma luta muito economicista. É aquela que você ganha uma hoje, e perde amanhã com a inflação. É aquela que você pensa que está ganhando, e daqui a pouco a empresa fecha, como fechou a Ford aqui, sem prestar contas a ninguém. .

Então, resolvi que era necessário entrar na política e construir uma consciência política no país. Eu digo sempre que eu sou, na política, um resultado da consciência política da classe trabalhadora brasileira. Na hora que ela evoluiu, eu evoluí. E eu acho que isso justifica o convite que eu fiz a vocês para estarem aqui.”

[Depois de algumas frases, evocando a solidariedade que tantos lhe prestaram, Lula aproxima-se um pouco mais do povo, evocando o que sofreu, mas para logo sublinhar como é muito maior no dia-a-dia o sofrimento do povo brasileiro.]

“Quando resolvi marcar esta entrevista, muita gente ficou preocupada com o meu humor. "Como é que o Lula vai estar? Ele vai estar bravo? Ele vai estar xingando alguém? Ele vai falar palavras de esperança?".

E, às vezes, eu me sentia como a história de um escravo que eu li num livro. O escravo foi condenado a tomar 100 chibatadas. Depois que o cara da chibata deu 98, chegou pra ele e falou: "eu vou parar de dar chibatada se você agradecer ao seu dono. Se você agradecer ao seu dono, eu não dou mais as duas que faltam." E o cara falou: "como é que eu vou agradecer? Eu já estou todo arrebentado. Por que eu vou parar? Me dê as outras duas."

Então, se tem um cidadão que tem razão de estar magoado com as chibatadas, sou eu. Não estou. As pessoas pensam que depois de dar chibatadas, joga um pouco de sal e pimenta e a pessoa vai se curar ao longo do tempo. Não importa as cicatrizes que ficam nas pessoas. 

Eu sei que fui vítima da maior mentira jurídica contada em 500 anos de história. E que a minha mulher, a Marisa, morreu por conta da pressão, e o AVC [Acidente Vascular Cerebral] se apressou.

Eu fui proibido até de visitar o meu irmão dentro de um caixão, porque tomaram uma decisão que queria que eu visse para São Paulo, que eu fosse para o quartel do 2º Exército, no Ibirapuera, e meu irmão, dentro do caixão, fosse me visitar. E ainda disseram que não podia ter nenhuma fotografia.

Então, se tem um brasileiro que tem razão de ter muitas e profundas mágoas, sou eu. Mas não tenho. Sinceramente, eu não tenho porque o sofrimento que o povo brasileiro está passando, o sofrimento que as pessoas pobres estão passando neste país é infinitamente maior do que qualquer crime que cometeram contra mim. É maior do que cada dor que eu sentia quando estava preso na Polícia Federal.

Porque não tem dor maior para um homem e mulher em qualquer país do mundo do que levantar de manhã, e não ter a certeza de um café e um pãozinho com manteiga pra tomar. Não tem dor maior para um ser humano do que ele chegar na hora do almoço, e não ter um prato de feijão com farinha para dar pro seu filho. Não tem nada pior do que o cidadão saber que ele está desempregado, e que, no final do mês, ele não vai ter o salário para sustentar a sua família.

É essa dor que a sociedade brasileira está sentindo agora que me faz dizer pra vocês: a dor que eu sinto não é nada, diante da dor que sofre milhões e milhões de pessoas.

É muito menor que a dor que sofrem quase 270 mil pessoas que viram seus entes queridos morrerem. Seus pais, seus avós, sua mãe, sua mulher, seu marido, seu filho, seu neto, e sequer puderam se despedir dessa gente na hora que nós sempre consideramos sagrada: a última visita e o último olhar na cara das pessoas que a gente ama. 

E muito mais gente está sofrendo. E por isso eu quero prestar a minha solidariedade nesta entrevista às vítimas do coronavírus. Aos familiares das vítimas do coronavírus. Ao pessoal da área da saúde, sobretudo. De toda a saúde, privada e pública.

Mas sobretudo dos heróis e das heroínas do SUS, que durante tanto tempo foram descredenciados politicamente. Foram descredenciados no exercício da sua profissão. Porque só mostravam as coisas ruins que aconteciam no SUS, e quando veio o coronavírus, se não fosse o SUS a gente teria perdido muito mais gente do que perdeu. Apesar de o governo tirar tanto dinheiro do SUS e de o governo ser um verdadeiro desgoverno no trato à saúde. “

[Depois desta referência severa ao atual poder político brasileiro, Lula acentua o contraponto em face da sua deriva insalubre.]

“Vocês sabem que a questão da vacina não é uma questão se tem dinheiro ou se não tem dinheiro. É uma questão se eu amo a vida ou amo a morte. É uma questão de saber qual é o papel de um presidente da República no cuidado do seu povo. Porque o presidente não é eleito para falar bobagem e fake news. Ele não é eleito para incentivar a compra de armas, como se nós tivéssemos necessitando de armas.

Quem está precisando de armas são as nossas forças armadas. Quem está precisando de arma é a nossa polícia, que muitas vezes sai pra rua pra combater a violência com um 38 velho todo enferrujado. Mas não é a sociedade brasileira.

Não são os fazendeiros que estão precisando de armas para matar sem terra ou para matar pequenos proprietários. Não são milicianos que estão precisando de armas para fazer um terrorismo na periferia deste país. Para matar meninos e meninas, sobretudo, meninos e meninas negras, que são as maiores vítimas das armas e das balas perdidas neste país. “

[ Em seguida, Lula agradece  os muitos apoios que teve, num quadro de honra com uma diversidade em si própria eloquente e com um peso cívico, político e simbólico da maior relevância. ]

“Nós, então, estamos vivendo um momento delicado. E eu vou querer conversar um pouco com vocês sobre isso. Mas, antes de conversar, eu queria continuar os meus agradecimentos, Wagner.

Primeiro a você, agradecendo, mais uma vez, esse sindicato por ceder esse espaço democrático para que a gente possa fazer essa conversa.

Não poderia deixar de agradecer ao presidente Alberto Fernandez, da Argentina, que teve a decência de, enquanto candidato a presidente da república do seu país, contra a extrema direita, ele teve a coragem de ir à Polícia Federal de Curitiba me visitar. E mais ainda. Eu até pedi pra ele não dar entrevista pra não ser prejudicado pela direita na Argentina. Ele me disse: “Lula, não tenho nenhum problema com o que a direita vai falar. O meu problema é o que eu vim fazer aqui. Eu vim aqui ser solidário a você, porque acredito que você está sendo vítima da maior mentira política já havida na América Latina".

Então, ao presidente Alberto Fernandez, que foi a primeira pessoa a me ligar depois da decisão do Fachin, e ao povo argentino solidário, os meus agradecimentos. 

Meus agradecimentos ao nosso querido papa Francisco. Não só porque ele mandou uma pessoa me visitar em Curitiba, me entregar uma carta, que a Polícia Federal não deixou entrar, porque achou que ele era um "embusteiro", que ele não era representante do papa, e ele era representante do papa. E depois eu recebi a carta do papa, além dos belos pronunciamentos do papa, em vários momentos.

E o fato do papa ter a coragem de me receber no Vaticano, e termos uma longa conversa, não sobre o meu caso, mas sobre a a luta contra a desigualdade, que é o maior mal que hoje paira no planeta Terra, um planeta que é redondo, que não é retangular ou não é quadrado. E o Bolsonaro não sabe disso.

Portanto, é sempre importante reiterar, quem puder: o planeta é redondo. Ele tem um astronauta no governo. O ministro Pontes, da Ciência e Tecnologia, sobrevoou num foguete russo quando eu era presidente. Se ele não dormiu, ele viu que o planeta era redondo.

Então, ele poderia dizer para o presidente dele: "Ô, presidente, não fala mais essa bobagem, não. Não acredita no tal do Olavo de Carvalho, sabe? Assume que o mundo é redondo". Eu, então, sou grato, porque o papa Francisco é, inegavelmente, o religioso mais importante que temos neste momento.

Quero agradecer às pessoas, companheiro Aloizio Mercadante, do Grupo de Puebla. Líderes da América Latina inteira, que foram solidários e confiaram na minha inocência. Quero agradecer ao Foro de São Paulo, que é uma organização da esquerda latino-americana. E quero agradecer a muitos líderes políticos. Eu não poderia deixar de citar aqui o companheiro Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai, uma das pessoas mais extraordinárias que conheci.

Não poderia deixar de reconhecer aqui a solidariedade do Bernie Sanders, um companheiro senador dos Estados Unidos, quase candidato a presidente da república, e que se afastou da campanha. 

Quero reconhecer com muito carinho o comportamento da prefeita Anne Hidalgo, prefeita de Paris, que na disputa da eleição dela, teve a coragem, quando a direita escrevia artigos nos jornais que ela iria perder as eleições porque tinha me levado lá, falou: "Lula, pra mim, a solidariedade vale mais do que uma eleição. Eu trouxe você aqui pra dar um prêmio de cidadão parisiense pra você, e vou ganhar as eleições por conta desse meu gesto". E ganhou as eleições. Por isso, eu quero agradecer à nossa querida prefeita de Paris.

Quero agradecer ao companheiro [José Luis Rodríguez] Zapatero, ao companheiro Evo Morales, à monja Coen, ao nosso querido Martinho da Vila, o nosso querido Chico Buarque, o nosso querido Noam Chomsky, um dos maiores intelectuais vivos, hoje, na humanidade.

Quero agradecer ao meu querido, velhinho... Antes de falar o nome dele, esse companheiro passou quatro anos querendo dar uma fazenda dele no interior de São Paulo para a USP fazer um campus lá. E a USP passou quatro anos sem dar respostas. Quando foi um dia, ele me procurou, através de um assessor dele, que ele tinha uma fazenda pra doar pra fazer uma universidade.

Em menos de 20 horas, o companheiro Fernando Haddad, que está aqui, aceitou o terreno, e nós pegamos o terreno. E esse companheiro, eu tive o prazer de visitar a universidade com ele, já funcionando. Não sei como ela está hoje, depois da destruição do [Michel] Temer e do Bolsonaro, mas é o meu querido companheiro Raduan Nassar. Companheiro que já está com mais de 80 anos. 

Quero agradecer o companheiro, o meu biógrafo, que nunca termina o meu livro, o companheiro Fernando Morais. Quero agradecer o Martin Schulz, que é ministro na Alemanha e representa a social democracia. O Roberto Gualtieri, do Podemos espanhol, e o ex-primeiro ministro italiano [Massimo] D'Alema. 

Quero agradecer, de coração, o pessoal da vigília. Aqui tem muita gente que foi na vigília, aqui tem muita gente que ficou muito tempo na vigília, mas aquelas pessoas enfrentaram loucuras da Polícia Federal. 

Tinha um delegado, que eu não sei se ele era saudável ou não, se ele bebia ou não, mas ele provocava a vigília. Chegou a atirar pra fazer medo à vigília.

Tinha polícia, tinha vizinhos que ofendiam gente da vigília todo dia. E esse pessoal ficou lá 580 dias. Todo santo dia de manhã, de domingo a domingo, gritando "presidente Lula", almoçando e gritavam "presidente Lula", às duas horas da tarde. E às sete horas da noite, gritavam "presidente Lula". E todo santo dia. Eu acordava, almoçava e dormia com mulheres e homens do Brasil inteiro gritando o meu nome. 

Então, a cadeia não foi o sofrimento que eu pensava que fosse, porque eu não sei quantos presos na história da humanidade tiveram tanta gente. 

E aí eu tenho que agradecer ao movimento sindical. Agradecer, João Paulo, ao Movimento Sem Terra, porque o companheiro Baggio, lá no Paraná, foi um herói.

Agradecer aos companheiros do MAB [Movimentos dos Atingidos por Barragens], que trabalharam de forma extraordinária, e aos companheiros dos partidos de esquerda que estão aqui. Eu lamentavelmente não tenho o nome de todas as pessoas, mas eu tenho que agradecer.”

[ Lula denuncia então, com simplicidade e força, a comunicação social dominante pela sua duplicidade. Pela sua incapacidade de mesmo agora dar por completo o braço a torcer. ]

“Antes de agradecer aos meus advogados, e aos outros advogados, que não sendo meus advogados no processo, foram advogados, participaram de solidariedade, fizeram muita coisa nesse país. 

Eu quero agradecer a uma pessoa, que eu não conheço, mas é uma pessoa chamada Claudio Wagner. Esse é o perito que está investigando todas as mensagens do hacker pra provar a veracidade da denúncia. 

O que é engraçado é que durante longos cinco anos, amplos setores da imprensa não exigiram nenhuma veracidade do Moro. Não exigiram nenhuma veracidade dos procuradores, não exigiram nenhuma veracidade da Polícia Federal para divulgar as mentiras que eles contavam ao meu respeito.

Mas agora nós estamos com perito, fazendo investigação nos documentos, que está na Polícia Federal. Portanto, não é uma coisa do PT, é da Polícia Federal, autorizado pelo ministro da Suprema Corte. E, mesmo esse perito avalizando, vocês acompanham a imprensa.

E eu acho muito engraçado porque o Moro fala "não reconheço essa veracidade". Os procuradores falam "não reconheço", mesmo tendo uma peritagem, e a divulgação sendo autorizada pela Suprema Corte. 

No meu caso, eles nunca pediram autorização. Era até engraçado porque muitas vezes eu ia fazer o inquérito, e a maior preocupação do delegado que ia fazer o inquérito não era com a pergunta, era com o vazamento. E o vazamento era selecionado. 

Tinha jornalista específico na Folha; jornalista específico no Estadão; jornalista específico na Época, na Veja, na IstoÉ; jornalistas específicos em vários canais de televisão. E todo mundo se lembra.

Quantas e quantas matérias do principal jornal da televisão aparece um oleoduto, uma gasoduto saindo dinheiro, para falar vinte ou trinta minutos das denúncias dos procuradores, sem nenhuma prova.

[ E indo ao fundo do que verdadeiramente move o cerco que lhe é feito, a hostilidade raivosa que o rodeia, Lula faz-se ouvir pelos seus ,  falando a partir do sofrimento do povo. De um sofrimento que ele experimentou também  pessoalmente, dentro do qual ele próprio nasceu. Por isso, nele os pobres e os excluídos veem sempre um dos seus. E é essa sua  força terrível e magnífica que mais assusta os seus inimigos. ]

“Mas eles colocavam. Contra o Lula não precisava provar que o documento tinha seriedade. Era preciso destruir. Afinal de contas, um torneiro mecânico, sem dedo, já tinha feito demais nesse país. Era preciso evitar que esse cidadão pensasse em voltar a governar o país.

Porque a América Latina nunca trabalhou em 500 anos com política de inclusão social. A inclusão social é pra 35% da sociedade. Quem pode ir a teatro é uma parte pequena da sociedade. Quem vai a cinema é uma parte pequena. Quem vai a restaurante é uma parte pequena. Quem vai aos parques bonitos, quem vai às vernissages nesse país, quem vai às exposições é só uma parte pequena. 

À maioria, fique no seu lugar. Afinal de contas, o papel do trabalhador é trabalhar. E o papel dos pobres é esperar as políticas de ajuda do governo quando ela vem.

E, por conta disso, eu digo pra vocês, anteontem foi um dia gratificante. Eu sou agradecido ao ministro Fachin porque ele cumpriu uma coisa que a gente reivindicava desde de 2016.

A decisão que ele tomou, tardiamente, cinco anos depois, foi colocada por nós desde 2016. “

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[Mais adiante, Lula fala da comunicação social com a força da simplicidade e da razão.]

“Eu fiquei muito feliz porque, depois da divulgação de tanta mentira contra mim, ontem [terça-feira] eu acho que nós tivemos um Jornal Nacional épico. Ontem, eu acho que quem assistiu televisão não estava acreditando no que estava vendo. Pela primeira vez, a verdade prevaleceu.

Dita, não por alguém do PT, dita pelo presidente da segunda turma do STF no discurso do Gilmar Mendes; dita pelo Ricardo Lewandowski e dita até pela Carmen Lucia, que nunca tinha visto nada igual àquilo. 

E eu, como acho que tenho um pouco de experiência, fiquei feliz com a verdade, porque é pra isso que servem os meios de comunicação. Jornalista não existe pra sair pra rua pra cumprir a ordem do editor.

Vocês não sabem, mas aqui nesta sala não tem ninguém que tenha lidado com a imprensa 10% do que eu lidei. Desde 1975 eu lido com a imprensa, e com muita imprensa. E eu sempre disse que o papel da imprensa, quando o jornalista sai pra rua, ele sai com o compromisso de dizer a verdade. A verdade nua e crua.

Não tem importância que ela seja contra o PT, contra o PCdoB, contra o PSOL, contra o PMDB, contra qualquer um. A verdade nua e crua, é pra isso que nós precisamos de imprensa livre.

Não é uma imprensa que divulga aquilo que politicamente ou que ideologicamente ela quer. A ideologia da notícia, do jornal, da televisão ou da revista deve ser colocada num cantinho, no editorial, como pensamento da revista. Mas vocês, jornalistas, precisam ser livres. E o compromisso de vocês é escreverem o que vocês viram. É escreverem o que as pessoas falaram pra vocês, e não escrever o que o editor quer que vocês escrevam.

Portanto, eu fiquei feliz porque eu espero que a verdade, a verdade versada pela Globo ontem, seja o novo padrão de comportamento da Globo com a verdade.

Globo não tem que gostar ou não gostar de presidente. Ela não tem que gostar ou não gostar de partido. Isso ela decide na hora de votar. Mas na hora de informar, tem que informar a verdade, e apenas, somente, a verdade.

E ontem eu fiquei feliz porque eu vi a verdade proferida na íntegra por dois ministros da Suprema Corte. E eu espero que continue assim. Porque antes o Gilmar [Mendes] também não aparecia. Antes, o Lewandowski também não aparecia. Apareciam os acusadores durante meia hora, e, às vezes, o Gilmar e o Lewandowski, que se votassem contra os acusadores, tinham 30 segundos.

Os meus advogados eu nem falo, porque o esforço para que meus advogados aparecessem 30 segundos era monumental, e nem sempre apareciam. Mesmo assim eu continuo dizendo que a liberdade de imprensa é uma das razões maiores pela manutenção da democracia em qualquer país do mundo, em qualquer lugar do planeta Terra.”

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[ E depois de agradecer aos seus advogados a quem elogiou e de tecer mais algumas considerações relacionadas com os processos que enfrenta, continuou.]

“Eu estou muito tranquilo. O processo vai continuar? Vai. Tudo bem, eu já fui absolvido de todos os processos fora de Curitiba. Mas nós vamos continuar brigando para que o Moro seja considerado suspeito. Porque ele não tem o direito de se transformar no maior mentiroso da história do Brasil, e ser considerado herói por aqueles que queriam me culpar. Deus de barro não dura muito tempo. 

Eu tenho certeza que hoje ele deve estar sofrendo muito mais do que eu sofri. Eu tenho certeza que o [procurador Deltan] Dallagnol deve estar sofrendo muito mais do que eu sofri. Porque eles sabem que eles cometeram erros, e eu sabia que eu não tinha cometido erro.

Então, meus agradecimentos aos meus advogados. E meus agradecimentos a todos os advogados do Brasil que foram solidários. Todos. Teve muita gente que foi solidária a mim, muitos documentos assinados, e eu sou, sinceramente, agradecido a todo mundo. 

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[E mais adiante, criticando o conluio entre a gande comunicação social e o aparelho judicial, salientou:]

“A gente não pode ficar divulgando o nome das pessoas antes de ter prova. A gente não pode tentar criminalizar as pessoas antes de provar que cometeram um crime. E foi o que aconteceu. A Lava Jato fez um pacto com o setor da mídia. E que era preciso, porque essa era a teoria do Moro, num artigo que ele escreveu em 94 em que ele dizia: "só a imprensa pode ajudar condenar as pessoas." E aí vale qualquer coisa. “

[ E adiante falou de algo extraordinário.]

“Eu ganhei duas amizades extraordinárias, pessoas que eu não conhecia, dois advogados de Curitiba que me visitaram durante 580 dias, todo santo dia. Um ia de manhã e o outro à tarde. Só não ia de sábado e domingo. Mas imagina o que que é duas pessoas irem me visitar todo santo dia. 

Um chegava com almoço, mandado pela Janja, e outro chegava à tarde pela janta mandada pela Janja. Sabe, às vezes a comida chegava fria, mas eu comia e não reclamava, porque sabia que o povo estava passando fome lá fora. Eu esquentava porque eu tinha um negocinho de esquentar comida. Peão de fábrica sabe como esquentar marmita. Então, eu não comi comida fria não, era toda quentinha.”

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[ Trazendo à colação a situação dramática que o Brasil vive , afirmou:]

Eu quero agradecer os governadores Rui Costa, Wellington Dias, Camilo Santama, Fátima Bezerra e todos os governadores do Nordeste que estão brigando, sabe, e do país inteiro, para dar vacina.

É uma luta titânica contra um governo incompetente, contra um ministro da Saúde incompetente e contra as pessoas que não respeitam a vida. Então aos governadores, a minha solidariedade”.

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[Revelando bem o seu perfil político, generoso e democrático, dirigiu-se à imprensa, essa imprensa que na sua maioria tanto ajudou a vilipendiá-lo.]

“E quero agradecer a vocês, a imprensa brasileira, porque depois de tudo que falei aqui, vocês podem ter certeza que nem o João Roberto Marinho gosta mais da imprensa do que eu. Nem ele quer mais democracia do que eu na imprensa, e muito menos o presidente da República.

Meus agradecimentos a vocês. Porque eu sei que vocês vão continuar trabalhando para tentar melhorar o papel da imprensa na construção da democracia brasileira.”

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[ Lula então falou dele como pessoa, mas  para fazer pedagogia de saúde pública , demarcando-se frontalmente do cretinismo bolsonarista.]

“Eu tenho 75 anos de idade. Eu falo brincando que eu tenho energia de 30 e tesão de 20. Eu acho que é por isso que eu não tomei vacina ainda, porque o pessoal não sabe se é 30, se é 20 ou 75. Então, agora eu estou dizendo que é 75 e na semana que vem, se Deus quiser, eu vou tomar a minha vacina. Vou tomar a minha vacina. Não me importa de que país, não me importa se é duas ou uma só; sabe, eu vou tomar minha vacina e quero fazer propaganda pro povo brasileiro.

Não siga nenhuma decisão imbecil do presidente da República ou do ministro da Saúde. Tome vacina. Tome vacina porque a vacina é uma das coisas que pode livrar você do covid.

Mas mesmo tomando vacina, não ache que você possa tomar vacina e já tirar a camisa, já ir pro boteco e pedir uma cerveja gelada e ficar conversando, não! Você precisa continuar fazendo o isolamento, e você precisa continuar utilizando máscara e utilizando álcool em gel. Pelo amor de Deus.

Esse vírus, essa noite, matou quase 2 mil pessoas. É que as mortes estão sendo naturalizadas, porque a gente ouve de manhã, de tarde e de noite, a gente liga um canal de televisão, lê um jornal, liga um rádio, ou seja, é falando da morte, então você vai naturalizando na cabeça das pessoas, mas eram mortes que, muitas delas, poderiam ser evitadas. Evitadas se a gente tivesse um governo que tivesse feito o elementar.

Você sabe que a arte de governar não é fácil; é a arte de saber tomar decisão. Então, o presidente da República que se respeitasse e que respeitasse o povo brasileiro, a primeira coisa que ele teria feito em março do ano passado, era criar um comitê de crise. 

Envolvendo o seu ministro da Saúde, envolvendo secretários da Saúde dos estados, envolvendo cientistas da Fiocruz, cientistas do Butantan e outros cientistas. E toda semana orientar a sociedade brasileira sobre o que fazer.

Era preciso priorizar o dinheiro e comprar as vacinas que pudesse comprar em qualquer lugar do planeta Terra. Nós tivemos momentos que teve vacina que a gente sequer aceitou. A própria Pfizer tentou oferecer vacina, e a gente não quis, a Organização Mundial da Saúde.

Porque nós tínhamos um presidente que inventou uma tal de cloroquina. Nós tínhamos um presidente que falava que quem tem medo do covid é maricas, que o covid era uma gripezinha, que o covid era coisa de covarde, que ele era ex-atleta, e que portanto ele não ia pegar. Esse não é o papel, no mundo civilizado, de um presidente da República.

Um presidente da República deveria ter esse comitê de crise, e toda semana ter uma voz oficial do comitê de crise orientando a sociedade, visitando os estados, visitando as cidades, vendo as condições dos hospitais, trabalhando pra fazer hospital de campanha onde não tivesse hospital. Tentando evitar que faltasse oxigênio como faltou em Manaus. Esse era o papel do presidente da República.

Agora, ele não sabe o que é ser presidente da República. Ele a vida inteira não foi nada. Ele não foi nem capitão. Era tenente e foi promovido porque se aposentou. E se aposentou porque queria explodir quartel, porque ele virou um dirigente sindical dos soldados, queria mais aumento de salário.

Depois que ele se aposentou, ele nunca mais fez nada na vida. Ele foi vereador e deputado durante 32 anos. Exerceu o mandato e conseguiu passar pra sociedade a ideia de que ele não era político”.

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[Lula sintetiza o contraponto entre o seu tempo e o presente bolsonarista.]

“Quando esse país tinha como presidente da República um metalúrgico em 2008, a indústria automobilística vendia 4 milhões de carros por ano nesse país. Passados 13 anos, esse país vende 2 milhões de carros. Ou seja, hoje a indústria automobilística é metade do que era em 2008. Porque não há possibilidade de investimento se não houver demanda. Para ter demanda, tem que ter emprego. 

Porque vocês acham que o PT está brigando por um salário emergencial de R$ 600? Não é porque a gente acha que o Estado tem que pagar R$ 600 a vida inteira. É porque o Estado só pode deixar de pagar quando o Estado tiver gerando emprego e as pessoas tiverem obtendo renda, às custas do seu trabalho, aí não precisa do salário emergencial.

Mas, enquanto o governo não cuida de emprego, não cuida de salário, não cuida de renda, você tem que ter um salário emergencial para que as pessoas não morram de fome. Isso não precisa ler Marx pra entender, não precisa artigo do Delfim Neto pra entender. É a lógica da casa de vocês.

Se a mulher tiver dinheiro, a mulher de vocês e a família tiver dinheiro, ela vai no supermercado, vai na feira, vai comprar um caderno novo, vai comprar um sapato, vai comprar uma camisa e tudo começa a funcionar. Se não tem, ela fica em casa prostrada, na frente de um fogão esperando: “quando é que eu vou ter dinheiro pra comprar alguma coisa?”.

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“Eu tinha um conselho com 100 pessoas. Participavam os dirigentes dos sindicatos, os grandes empresários, participava índio, participava pastor da igreja evangélica, participava padre, participava bispo, participava negro. Porque eu queria ouvir a sociedade. Nós fizemos, no meu mandato, 74 conferências nacionais pra ouvir o que a sociedade queria.

O Bolsonaro não junta ninguém. Ele junta os milicianos. Não mostra a cara nas entrevistas. Na saída do Palácio, para pra dizer: “Tô liberando armas, tô liberando mais quatro armas, mais dois fuzil, logo logo vai ter canhão pra todo mundo”. 

Esse povo não está precisando de armas, David. Esse povo está precisando de emprego, de carteira profissional, de salários, de livros, de educação. O Estado precisa estar presente na periferia desse país. O Estado tem que estar lá com educação, com cultura, com saúde, com política de assistência social. É esse o papel de um presidente da República”.

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“Por último, companheiros e companheiras, eu queria dizer pra vocês, que quando você chega na idade que eu cheguei e quando você obtém de Deus a generosidade que eu recebi, não há mais espaço pra guardar ódio, não há mais espaço pra perder tempo remoendo, eu diria, raiva ou ódio. Eu sou abençoado por Deus por muitas coisas.

Se a gente for olhar do ponto de vista sociológico ou filosófico - gostou Boulos, de eu falar sociológico? - se a gente fosse analisar Haddad, por conta disso, a gente não teria feito aqui, ô Nobre, a revolução da criação do novo sindicalismo em 78, porque era impossível criar qualquer coisa, e a gente criou.

A gente não teria criado a liberdade de organização partidária, e eu não teria tido o prazer de criar o partido mais importante da esquerda latino americana. E muito menos eu ser presidente.

Vocês lembram com quem eu disputei a primeira eleição, com dr. Ulisses Guimarães, com dr. Leonel de Moura Brizola, com dr. Paulo Salim Maluf, com dr. Mario Covas, com dr. Afif, com dr. Aureliano... era só doutor.

O único cara que não era doutor era eu. E fui pro segundo turno.  E não ganhei porque a Globo me roubou. A Globo fez aquela mutreta do debate, reconhecido pelos diretores da Globo da época. 

Bem, então eu sou abençoado por Deus, então quero terminar dizendo pra vocês o seguinte: eu tô muito de bem com a vida. A Lava Jato desapareceu da minha vida. Eu não espero que as pessoas que me acusam parem de me acusar, não espero.

Eu estou satisfeito que tenha sido reconhecido aquilo que os meus advogados vêm dizendo há muito tempo: o presidente é inocente, o presidente não é dono do apartamento.

Nós derrubamos 11 ações ao longo de cinco anos. Ou seja, nós tivemos 100% de êxito na decisão do Fachin. De repente, eu tinha quatro processos e eles desapareceram. Por que o Fachin não fez isso antes? Eu estou dizendo isso há cinco anos.

Eu sei que é constrangedor para muita gente que me acusou, parar de acusar. É duro, porque quando você envereda no caminho da mentira, é difícil voltar atrás. Mas olha como eu estou muito mais sereno do que o William Bonner ontem dando a notícia. Ó como eu estou com o semblante tranquilo, de que a verdade venceu, de que a verdade vai continuar vencendo.

Por isso, companheiros e companheiras, eu quero dizer para vocês: eu quero dedicar o resto de vida que me sobre, e eu espero que seja muita, muita eu espero. A gente começa a gostar da vida quando está mais próximo do céu. Eu quero voltar a andar por esse país para conversar com esse povo.

O povo não tem o direito de permitir que um cidadão que causa os males que o Bolsonaro causa ao país continue governando e continue vendendo o país. Eu não sei qual é a atitude, mas alguma atitude nós vamos ter que tomar, companheiros, para que esse povo possa voltar a sonhar.

Esse país já sonhou, esse país já realizou. Ô, gente, a gente sonhava em fazer esse país ser grande. Nós construímos e fortalecemos o Mercosul. Nós construímos a Unasul, porque a gente queria criar um grande bloco econômico latino americano, um bloco de 400 milhões de habitantes, de um PIB razoavelmente grande, para negociar em condições de igualdade com a Europa.

Porque a Europa só quer negociar para eles venderem os produtos industriais deles e a gente vender os produtos agrícolas. Não. A gente não quer fazer do agronegócio, a gente respeita o agronegócio, eu acho que o agronegócio tem muita tecnologia, é muito importante, mas o Brasil quer ser um país industrializado. O Brasil quer ter novas indústrias, o país quer ter novas tecnologias.

A gente sonhava com isso. Nós criamos os Brics, nós criamos o banco dos Brics, nós criamos o banco do Sul. O Brasil tinha um projeto de nação, o Brasil tinha um projeto de soberania. Porque faz 500 anos que nós fomos descobertos.

Quando é que nós vamos tomar conta do nosso nariz? Quando é que eu vou acordar de manhã sem ter que pedir licença pra respirar para o governo americano? Quando é que eu vou levantar de manhã sabendo que o meu povo está tomando café, que ele vai almoçar e vai jantar, que as crianças estão na escola, que as crianças estão tendo acesso à saúde e à cultura? Quando é que nós vamos acordar? Isso é possível. Nós provamos isso.

Então, companheiros e companheiras, é pela construção desse sonho e ajudar a torná-lo realidade que eu me sinto muito jovem. Me sinto jovem para brigar muito. Então, eu queria que vocês soubessem: desistir, jamais; a palavra desistir não existe no meu dicionário.

Eu aprendi com a minha mãe: lute sempre, acredite sempre, tente sempre, porque se a gente não acreditar na gente, ninguém vai acreditar. Se você não se respeitar, ninguém vai ter respeitar. 

Às pessoas que me destratam durante todos esses anos, eu quero dizer pra vocês. Eu quero conversar com a classe política. Porque, muitas vezes, Haddad, muitas vezes, Boulos, muitas vezes, a gente se recusa a conversar com determinados políticos; é da nossa natureza.

Mas veja, eu gostaria que no Congresso Nacional só tivesse gente boa, gente de esquerda, gente progressista, mas não é assim. O povo não pensou assim. O povo elegeu quem ele quis eleger. Nós temos que conversar com quem está lá para ver se a gente conserta esse país. 

Eu preciso conversar com os empresários. Eu quero saber aonde é que está a loucura deles de não perceberem que, se eles quiserem crescer economicamente, se eles quiserem que a bolsa cresça, se eles quiserem que a economia cresça, é preciso garantir que o povo tenha emprego, que o povo tenha renda, que o povo possa viver com dignidade, senão não há crescimento.

Será que é difícil ou será que nós vamos ficar reféns do “Deus mercado”, que só quer ganhar dinheiro não importa como?

Nós já vimos a experiência da crise de 2008, com o subprime americano e, depois, com a quebra do Lemman Brothers. E quando eles quebram, quem é que coloca dinheiro para salvá-los? O Estado! O Estado que eles repudiam, o Estado que eles destroem. Quando eles quebram, quem põe dinheiro é o Estado pra salvá-los.

Nos Estados Unidos, quando quebrou o sistema habitacional pela bolha, com o subprime, eles ajudaram primeiro os bancos, para somente depois pensar nos coitados que perderam as casas. Quando é que a gente vai pensar nos debaixo primeiro?

 

 

Então, não tenham medo de mim. Eu sou radical. Eu sou radical porque eu quero ir à raiz dos problemas desse país.

Eu sou radical porque eu quero ajudar a construir um mundo justo. Um mundo mais humano. Um mundo em que trabalhar e pedir aumento de salário não seja crime. Um mundo em que a mulher não seja tripudiada por ser mulher. Um mundo em que as pessoas não sejam tripudiadas por aquilo que querem ser. Um mundo em que a gente venha a abolir definitivamente o maldito preconceito racial nesse país. Um mundo que não tenha mais bala perdida. Um mundo em que o jovem possa transitar livremente pelas ruas de qualquer lugar sem a preocupação de tomar um tiro. 

Um mundo em que as pessoas sejam felizes onde quiserem ser, que as pessoas sejam o que elas decidirem. Um mundo em que a gente tem que respeitar a religiosidade de cada um, cada um é o que quer, cada um tem a espiritualidade que quiser. Ninguém é obrigado a ser da minha religião, seja a que você quiser, a que você acredita. As pessoas podem ser LGBT, e a gente tem que respeitar o que as pessoas fazem. Esse mundo é possível, esse mundo é plenamente possível.

[ E Lula conclui com uma ressonância da conjuntura, fraterna, preocupada, pedagógica, gritando objetivamente a sua diferença de natureza em face do bolsonarismo reinante. ]

“E é por isso que eu convido vocês para a gente lutar nesse país para garantir que todo, todo, todo brasileiro, independentemente da idade, tome vacina.

E, para isso, a gente tem que obrigar o governo a comprar a vacina, mas, ao mesmo tempo, nós temos que brigar pelo salário emergencial, e ao mesmo tempo brigar por investimento em geração de emprego, sobretudo a partir de infraestrutura.

Temos que brigar por uma política de ajuda aos microempreendedores, ao pequeno empresário brasileiro, que não se suporta e quebra. Quantos restaurantes estão fechando? Quantas farmácias estão fechando. Quantas lavanderias estão fechando. Quantos institutos de beleza estão fechando? Para que que existe governo? É para tentar encontrar solução para essa gente. 

Então, gente, eu agora quero pedir desculpas a vocês, porque como o Gilmar Mendes falou muito ontem, eu também falei muito hoje, mas vocês hão de convir que faz cinco anos que eu não falo com a imprensa.

Você sabe qual foi a última vez que dei uma entrevista pra televisão? Foi pro Roberto D'avila, na Globonews, há uns 5 ou 6 anos atrás. Uns 4 anos atrás.

Eu virei uma espécie de vírus: não encosta no Lula, não ouça o Lula. Uma vez eu fui condenado a três anos de cadeia em Manaus. Sabe qual era a minha arma? O juiz disse que eu tinha a língua felina. Então, eu quero dizer pra vocês, para defender o povo brasileiro, para defender as coisas que vão salvar esse país, vou continuar com minha língua felina.

E quero agradecer porque, se não fossem vocês, possivelmente eu não teria chegado aqui. Muito obrigado.”