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Olhar Português em África: Um Ensaio sobre a Lusofonia

Em 1996 assisti em Maputo, a um espectáculo de José Mucavele, porventura o mais reconhecido músico moçambicano. Numa das últimas canções, África, entoou enfaticamente o verso "Eu sou moçáfono do Índico!". O público, que enchia a sala, sobrepôs-se ao artista, aplaudindo-o. Apreço ainda mais notório se considerando que as audiências moçambicanas, mesmo as urbanas, são pouco atreitas a expressar a sua satisfação com as expressões artísticas através do aplauso. O momento foi-me suficientemente simbólico, expressão do mal-estar com a recorrente retórica portuguesa que na época acompanhava o estabelecimento da CPLP. Anos passaram. Cabia-me, como funcionário contratado, também representar em Moçambique um organismo estatal português de política externa, dedicado aos âmbitos culturais e educacionais. Em 1998 e em 1999 decidiu este realizar grandes encontros internacionais entre agentes pertencentes aos países da CPLP. A participação moçambicana na iniciativa decorrida em Lisboa em 1998 fora constrangida pela oposição governamental, o que se complicou no ano seguinte, quando, à revelia do Estado moçambicano, essa instituição portuguesa decidiu organizar em Maputo a segunda edição do certame Pontes Lusófonas. 2 Para tal fez deslocar de Portugal uma enorme comitiva cultural, na qual pontificavam escritores (entre os quais Saramago, celebrizado pois então recém-Nobel de Literatura) e músicos de renome, para além de académicos e jornalistas. A reacção moçambicana aos preparativos fizera-se sentir, eu fora contactado pelas mais altas instâncias do sector cultural e académico (ministros, reitores, directores de serviços universitários e de departamentos estatais), transmitindome mal-estar com a iniciativa. Um ministro avisara-me explicitamente que o presidente da República não proibira a iniciativa porque "temos eleições este ano e não queremos problemas com Portugal". Todas estas demonstrações de desagrado, relatadas aos serviços estatais de Lisboa, destes colhiam silêncio. Tornava-se óbvio que a peculiar dinâmica do organismo estatal português actuante nesta matéria dependia não das

O Olhar Português em África (Ensaio Sobre a Lusofonia) José Pimentel Teixeira1 Em 1996 assisti em Maputo, a um espectáculo de José Mucavele, porventura o mais reconhecido músico moçambicano. Numa das últimas canções, África, entoou enfaticamente o verso “Eu sou moçáfono do Índico!”. O público, que enchia a sala, sobrepôs-se ao artista, aplaudindo-o. Apreço ainda mais notório se considerando que as audiências moçambicanas, mesmo as urbanas, são pouco atreitas a expressar a sua satisfação com as expressões artísticas através do aplauso. O momento foi-me suficientemente simbólico, expressão do mal-estar com a recorrente retórica portuguesa que na época acompanhava o estabelecimento da CPLP. Anos passaram. Cabia-me, como funcionário contratado, também representar em Moçambique um organismo estatal português de política externa, dedicado aos âmbitos culturais e educacionais. Em 1998 e em 1999 decidiu este realizar grandes encontros internacionais entre agentes pertencentes aos países da CPLP. A participação moçambicana na iniciativa decorrida em Lisboa em 1998 fora constrangida pela oposição governamental, o que se complicou no ano seguinte, quando, à revelia do Estado moçambicano, essa instituição portuguesa decidiu organizar em Maputo a segunda edição do certame Pontes Lusófonas.2 Para tal fez deslocar de Portugal uma enorme comitiva cultural, na qual pontificavam escritores (entre os quais Saramago, celebrizado pois então recém-Nobel de Literatura) e músicos de renome, para além de académicos e jornalistas. A reacção moçambicana aos preparativos fizera-se sentir, eu fora contactado pelas mais altas instâncias do sector cultural e académico (ministros, reitores, directores de serviços universitários e de departamentos estatais), transmitindome mal-estar com a iniciativa. Um ministro avisara-me explicitamente que o presidente da República não proibira a iniciativa porque “temos eleições este ano e não queremos problemas com Portugal”. Todas estas demonstrações de desagrado, relatadas aos serviços estatais de Lisboa, destes colhiam silêncio. Tornava-se óbvio que a peculiar dinâmica do organismo estatal português actuante nesta matéria dependia não das 1 [email protected]. (2022). Versão extensa de uma comunicação com o mesmo título apresentada ao IX Congresso Ibérico de Estudos Africanos (Coimbra, Setembro de 2014). 2 Para uma abordagem institucional a esta linha de acção ver Instituto Camões (1999). 1 questões de política externa que lhe eram móbil institucional, mas sim de estratégias de uma afirmação interna. Em Setembro de 1999 ocorreu a iniciativa. Eximo-me à descrição detalhada dos seus meandros. Os académicos e artistas moçambicanos haviam sido convocados pelas hierarquias oficiais para se demarcarem das actividades, o que veio a ser torneado apenas por alguns académicos, mais como afirmação de uma autonomia individual e corporativa, pois também eles críticos do molde, ideológico e executivo, da iniciativa. Mas o realmente relevante foi a sua cerimónia inicial. O certame ocorreu numas instalações privadas, alugadas para o efeito pela instituição estatal portuguesa. O ministro moçambicano da Cultura, Juventude e Desportos fora convidado para o inaugurar. Nenhum dos organizadores considerara a radical incorrecção, na linguagem protocolar local, de uma organização estatal portuguesa promover tal tipo de evento internacional limitando-se a convidar o ministro nacional da tutela. Este era um académico reputado, linguista doutorado no estrangeiro, e então aventado como presidenciável, até pelas suas origens nortenhas. Meses antes, expressara-me o seu profundo desagrado com esta iniciativa e com os contactos tidos por Lisboa com “os meus quadros”, sem seu conhecimento e consentimento prévios, nem qualquer participação dos seus serviços na realização. Estive presente na inauguração, acompanhando o meu chefe, o embaixador de Portugal, então recente no país. À chegada do ministro logo o embaixador me perguntou, algo surpreso (tal como eu ficara) e preocupado, “Zé, o que é isto?”, ao que respondi, coloquialmente, “vai ser do pior...”. Pois o ministro vinha com vestes “arábicas”, muito adoptadas no Noroeste africano, mas trajes absolutamente inusitados no poder moçambicano quando em cerimónias oficiais. Com efeito, nesse tipo de eventos o traje masculino sempre era (e continuou a ser) ou o fato-e-gravata europeu ou a balalaica, esta típica do poder frelimista da I República, ainda que esta já algo em desuso e mais presente se em contextos rurais. Uma veste “arábica”, aludindo ao contexto suaíli, usada por um ministro moçambicano? Que é de origem católica, o que até é pormenor em termos gerais, naquele contexto? Era uma encenação absolutamente liminar, de um simbolismo extremo. O ministro ascendeu ao palanque para discursar. Foi gentil, elevado e ... cortante. Culminou com uma formulação que me foi inesperada, porque ainda me fora inaudita, mas que me era óbvia conceptualmente, e também guia implícita da minha percepção do país e da minha actividade. “Nós, em Moçambique, somos bantófonos, somos um país 2 da bantofonia”. Desceu, ante o morno aplauso dos viajantes, ali incompreendendo, e os entreolhares dos poucos moçambicanos presentes. E logo fez menção de partir. Fui até ele, por dever de ofício, por ser eu ali o responsável do organismo estatal organizador, mas não só, dado que toda aquela situação me era dolorosa, pessoal e profissionalmente, pois preparada à minha revelia e com metodologia e pressupostos de que eu muito discordava. E concordando com o que acabara ele de dizer. Assim disse-lhe, comovido, apenas um “koshukuro vanjene, senhor ministro”. Ele não percebeu, decerto devido ao meu pobre sotaque, franziu o sobrolho e inquiriu “o quê?!”. E eu repeti, “koshukuro vanjene”, o meu “muito obrigado” em macua. Ele riu-se, deu-me uma afável palmada no ombro, como um mais-velho faz ao mais-novo. E saiu. Depois, algumas horas mais tarde, o embaixador perguntou-me “Zé, o que pensa que eles acharam disto tudo?”. Referia-se aos nossos patrícios, contentes e ufanos na sua “embaixada cultural” lusófona. “Não perceberam nada, senhor embaixador” respondi. E não haviam percebido. Nem vieram a perceber. Até hoje. 1. Em A Situação Colonial Balandier (1951) afirmou a imbricação dos contextos abarcados pelo sistema colonial, refutando o isolamento das sociedades colonizadas e entendendo que a sua análise deveria atender às dinâmicas provocadas pelas suas inserções nos sistemas administrativos e económicos que as subjugavam. Se, de facto, o texto não é fundacional de uma mais complexa abordagem da antropologia aos contextos colonizados,3 foi um marco nessa via, e encetou a possibilidade da análise dos contextos colonizadores enquanto também moldados pelas relações de poder dirimidas nos regimes coloniais (Cooper 2004b). Nesse sentido, Saada (2001) comemorou o cinquentenário do simbólico texto convocando-o para reflectir sobre como as dinâmicas englobantes emersas nos regimes coloniais continuaram a influenciar a(s) antiga(s) sociedade(s) metropolitana(s),4 suas formulações identitárias e projectos políticos. Trata-se da extensão da proposta de uma antropologia do colonialismo, conjugando num único campo analítico (ex)metrópoles e (ex)colónias. Encarando as produções identitárias e os processos políticos contemporâneos, enquanto moldes de subjectividades, como ainda impregnados de uma cultura colonial, e (re)produzindo-a, sem com isso resumir o actual global a uma entidade “pós-colonial”, pois muitos dos 3 4 Abordo esta questão no capítulo III. O texto referido incide sobre a sociedade francesa. 3 seus processos independem do passado colonial (Apter 1999, Cooper, Stoler 1989, Thomas 1994). Aqui abordo como esse processo moldou as auto-imagens portuguesas. E, sem presumir a produção identitária moçambicana dependente dos processos homólogos portugueses, aludo a como estes se refractaram entre os (ex-)colonizados, constituindo feixes de mútuas representações. O meu interesse é a actualidade dessas auto-representações portuguesas, em particular como podem elas influenciar a minha abordagem. Isto sem intuitos de “denúncia”, não reduzindo este feixe de (auto-)representações identitárias a uma perversão ideológica que tenha sido produzida para escamotear a realidade histórica e presente. É certo que elas foram e são matéria-prima para elaborações estratégicas ao longo da história mas, como sobre esta matéria diz Onésimo de Almeida (2002: 12): “At the very least, not everything is invented”. Ou seja, essas representações são comunhões relativas de ideais e sentimentos, por vezes congregadas em ideários, reutilizadas através de fluídas reinterpretações do passado, e veiculadas por indivíduos no seio dos seus grupos de pertença. Constituem mundividências e, nessa condição, são performativas, contributos efectivos à estruturação das interacções (Fry 2005a). Subalternizar essa sua dimensão real, sob um qualquer afã denunciatório, é tombar no “equívoco da narrativa de uma história do ressentimento” (Martins 2014: 26), algo comum na actualidade e que conduz ao empobrecimento da compreensão dos fenómenos devido a um viés positivista. De modo mais abrangente, o que me é relevante são as suas dimensões epistemológicas no presente, nas análises aos processos de interacção colonial e póscolonial, bem como nas esferas de actividade política e diplomática – que também alimentam as disponibilidades para a investigação. Ressalvo que não entendo esta questão determinante nas modalidades de estabelecimento de uma tradição disciplinar da antropologia nacional, nos enquadramentos teóricos e nos constrangimentos políticos e administrativos que lhe moldaram os rumos constituintes de uma relativa particularidade, e menos ainda nas suas práticas actuais.5 Mas considero-a como tendo uma dimensão estruturante no difuso ambiente intelectual nacional, e estando presente no exercício de outras 5 Sobre as diferentes particularidades nacionais na antropologia ver, p. ex., Barth, Gingrich, Parkin, Silverman (2005) relativamente às “escolas” nacionais ditas dominantes, e para a crítica destas ver Restrepo, Escobar (2004). E as colectâneas de Vermeulen, Roldan (1995a), sobre a diversidade europeia, e de Van Bremen, Ben-Ari, Alatas (2005), sobre a asiática, ou, Guber, Visacovsky (2006) para o caso argentino. 4 disciplinas das ciências sociais com as quais a antropologia dialoga,6 de modo mais ou menos interdisciplinar. Em assim sendo, este conjunto de auto-representações nacionais participa na delimitação dos processos de investigação e, muito em especial, está subjacente às práticas metodológicas individuais, nisso exigindo uma depuração. 2. Ser-se português implica uma exposição, impregnante, a um imaginário social que refracta o discurso identitário nacional. Neste subsiste uma panóplia de itens congregados numa mundividência que integra “comportamentos, expressões e silêncios (…) imagens, mitos e valores reconhecidos ou suportados pela sociedade global” (Mandrou 1988: 67), tornada colectivo “inconsciente transcendental (…) histórico” (Bourdieu 2004: 120). E mesmo que os seus constituintes – feixes de representações por vezes congruentes, por vezes conflituais e até antagónicas – e o seu historial estejam dissecados, persiste a sua eficácia social, numa contínua invocação, inconsciente ou estratégica. O cerzir da identidade nacional afirma, em registo essencialista, um carácter colectivo que lhe é base,7 uma amálgama de características dos portugueses e que de outros os distinguem.8 Subsiste o ideário de uma excepcional e benfazeja tendência multicultural, antes dita multirracial. A perenidade desta auto-percepção no discurso público e nas representações colectivas não se limita ao senso comum, pois perdura em vários nichos académicos e literários, replicada pelas instâncias estatais e privadas, influentes no financiamento de vários tipos de investigação (Falconi 2013), e na sua divulgação e canonização. Esses pressupostos nocionais, explícitos ou implícitos, seja nas suas formulações tradicionais, seja nas suas matizadas refracções actuais, habitam na aparente naturalidade das agendas de pesquisa ou escolha dos contextos onde estas decorrem,9 e os seus corolários são veiculados por parte significativa da academia e dos discursos públicos que com ela interagem.10 6 Bethencourt, Curto (2010: 13) referem como a crença na especificidade portuguesa ressurge na análise actual de fenómenos que invocam contactos interculturais. Para exemplo da permanência dessa crença ver a colectânea organizada por Rocha-Trindade (1998). 7 Para a distinção entre identidade nacional, carácter nacional e características nacionais ver Almeida (2017a: 71-92). 8 Sobre o historial desta configuração identitária ver Alexandre (2000a, 2004), Almeida (2000: 161-184, 2002, 2008b), Castelo (1998, 2014), Henriques (1997: 34-49, 83-91), Leal (2000, 2006e), Lourenço (1992d). 9 O meu trabalho de terreno inicial numa ex-colónia portuguesa surgiu como uma opção “natural”, pois indiscutida. O enfoque da pesquisa nas ciências sociais portuguesas no antigo 5 Mesmo sem reduzir esse discurso identitário a uma intenção estratégica, a contínua alusão implícita à noção de “portugalidade”, vigorosa no Estado Novo e actualizada no discurso da “lusofonia”,11 comporta uma visão da história e das componentes da sociedade contemporânea, e tende a assumir estatuto explicativo e projectivo do devir nacional. O seu uso institucional procura a construção de um espaço específico nas relações internacionais, nisso demarcando a percepção dos portugueses sobre si próprios, a sua história e o tipo de relacionamento presente, possível e desejável com as sociedades (ex-)colonizadas, e com o mundo em geral, sendo assim uma elaboração identitária como projecto de futuro, moldando práticas públicas e privadas.12 3. Não intento uma história do questionamento identitário português, a sua ideogénese, mas apenas aflorar como este molda os discursos e práticas vigentes. A afirmação de uma identidade própria, diferenciadora dos contextos vizinhos, alimentouse da extroversão ultramarina, entendida como devir natural do país e evidenciando a sua essência, muitas vezes dita como vocação. E compôs-se no processo histórico de crescente reclamação de uma superioridade cultural e racial sobre populações nãoeuropeias,13 e de uma especificidade cultural positiva face às restantes populações da império continua a ser notório, e indiscutido, como o exemplifica o projecto patente em Rossa, Ribeiro (2015). 10 Para a concordância actual das características centrais dessa visão identitária entre “senso comum das elites culturais” e “senso comum popular” ver Rosado, Faísca, Jesuíno (1996). Para exemplo actual, sob capa “científica” (genética), ver os discursos comemorativos do 10 de Junho de 2017 (Simões 2017). 11 Sobre os liames dessas noções, ainda que programaticamente se queiram distintas, ver Margarido (2000a) que os afirma, e Sousa (2013, 2015), que os aparta. 12 Para identificação e crítica destes traços ver Lourenço (1999a, 1999c, 1999d, 1999e, 2014a), Margarido (2000a, 2000b). Para exemplos dessas concepções entre as “figuras gradas” do actual regime ver um artigo do então presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, José Jorge Letria (2011): “Mais do que um legado linguístico do passado, a lusofonia deverá ser entendida e tratada como um projecto global apontado para um futuro que já é presente. Esse futuro tem na sua essência as afinidades de natureza cultural que aproximam e tornam fraternos e cúmplices povos que, na sua exaltante multiculturalidade, serão muito mais fortes e empreendedores neste mundo global se souberem caminhar juntos e pensar conjuntamente o tempo que está para vir". Sob o mesmo viés, crente numa “lusofonia” assente no “humanismo” e “universalismo” português que seja motor de associação económica e geoestratégica, ver Pereira (2011), em tese tutelada pelo antigo ministro da II República, Ernâni Lopes. 13 Horta (1991a, 1991b, 1991c, 1994, 2011) refere que, no dealbar da expansão ultramarina, as representações portuguesas sobre as populações africanas diferenciavam-se das restantes europeias (2011: 413), centradas em categorias religiosas e não raciais, e sendo mais inclusivas, pois menos dependentes de outros estereótipos europeus, assentes no radical desconhecimento. E explicita como após as primeiras décadas desses contactos se sedimentaram representações mais desvalorizadoras dos contextos africanos não-islâmicos, por influência da conflitualidade crescente e da comercialização escravista. 6 Europa cristã, algo fundado na crença da dimensão providencial portuguesa, 14 e sua concomitante missão evangelizadora e, posteriormente, civilizadora em áreas ultramarinas e colonizáveis (Garcia 2011: 593), dinamizada pelo voluntarismo congénito de contacto com a alteridade. Essa expectativa, veiculada na literatura sob diversas formas, cruzou os séculos desde quinhentistas como João de Barros e Camões até aos vintistas Pessoa e Pascoaes, passando por Vieira, apartando e sobrevalorizando os portugueses face às outras identidades, em particular aos espanhóis,15 e reforçou a sua eficácia social como legitimação colonial em XIX. Ou seja, trata-se de um legado radicado em discursos com aspirações políticas, centrados em estratégias de afirmação da soberania, que remetem para uma difusa psicossociologia a-histórica, molde da sua naturalização, como se sacralização. A sua tendencial imunidade à análise crítica reforçou-se no tardio sedimentar das ciências sociais no país (Mattoso 1998: 56), mas radicou nos conteúdos políticos e ideológicos dos nacionalismos de XIX e XX. Após a independência do Brasil impôs-se, com diferentes ênfases,16 a ideia da necessidade do reforço do domínio colonial africano, entendido como legado histórico adquirido e legítimo, e antevisto como vasto manancial de recursos, um verdadeiro “mito de Eldorado” (Alexandre 1995a: 232). A motivação oscilava desde o ideal de potenciar o país até à crença de que este, sem possessões ultramarinas, seria anexado pela Espanha (Alexandre 2000d, Martins 1998: 49), algo sublinhado pela noção da similitude, no contexto europeu, das condições estruturais de ambos os países (Godinho 1969). Certo que figuras cruciais na história intelectual do país, como Herculano, Oliveira Martins e António Sérgio,17 não só 14 Uma autoconsciência portuguesa, para além do particularismo político, identificável pelo menos desde Fernão Lopes em XV (Bethencourt 1990, Gil 2015: 91-112, Mattoso 1998), já afirmando a sua dimensão providencial, consagrada pela integração do “milagre de Ourique” na etiologia nacional, encetada nessa época, e que ainda veio a ser tema crucial em XIX, no debate sobre os constituintes da nação (Buescu 2013, Carmelo 1999, Matos 2002). 15 Ver Rebelo (1998: 132), Saraiva (1995e, 1996b), Sobral (2003: 1115, 2012: 50). 16 Ramos (1997, 2007) explicita não ter havido durante esse século e meio uma unânime “ideologia colonial” no país. Dias Santos (2003) salienta que em finais de XIX o afã colonialista se encontrava fundamentalmente em franjas do oficialato e não tanto nas elites políticoeconómicas e intelectuais, ao invés do que acontecia nos outros (futuros) impérios coloniais europeus. Não negando o impacto desse fervor patriótico militarista é importante ressalvar a presença, pelo menos desde finais do terceiro quartel de XIX, de efectivo pendor colonial no poder político e nas elites intelectuais, mescla patenteada na criação da Sociedade de Geografia de Lisboa (Cantinho Pereira 2005, Guimarães 1984). 17 Sobre as posições de Herculano e Oliveira Martins ver Ramos (1997: 125-126), que filia as posições críticas desses autores na sua adesão ao republicanismo clássico. Para a crítica da 7 criticaram os efeitos societais da expansão portuguesa como foram avessos à extroversão africanista, nisso valorizando uma ênfase da nação na metrópole,18 o que demonstra não ter sido unânime o pendor colonial na intelectualidade portuguesa em XIX e mesmo no XX. Mas essas posições, e apesar da relevância dos seus locutores, entre finais de XIX até aos 1960s foram excêntricas às posições politicamente dominantes, e não foram estruturantes da auto-representação nacional.19 Assim, o ideário da salvaguarda da independência do país, que abarcou os nacionalismos da monarquia constitucional, do republicanismo e do Estado Novo, implicou-os no projecto de extroversão colonial desde os finais de XIX.20 Daí que a crítica ao colonialismo tenha sido externa à história intelectual portuguesa (Margarido 2000a: 57, Martins 1998: 49), mantendo-se a imagem do país como propenso e virtuoso colono (Lourenço 1992d: 50), o que promoveu uma “inacreditável inconsciência crítica e moral” (Saraiva 1995c: 36). No actual regime mesmo uma enfática, ainda que tardia, crítica dessas ditas características do “ser português”21 pode ser entendível como afrontando o país e ainda incorre no risco de ser atribuída àqueles que “ritualizavam o novo mito negro do povo opressor, sedento de bens alheios, escravista e obcecado da evangelização fanática” (Godinho 1990: 13). Por ora predomina a configuração tardo-colonial dessa constelação mítica, contendo uma peculiar, ainda que ambivalente, visão do processo colonizador, o que denota a continuidade da importância do factor ultramarino na interpretação e (re)construção identitária nacional. Para a sua eficácia social são convocadas operações intelectuais e historiográficas que veiculam uma visão apaziguada da história – economia e cultura da expansão em Sérgio, explicitamente entroncada nos anteriores autores, e que viria a influenciar a oposição final ao Estado Novo, ver Sá (1979: 71-80). 18 O impacto destas posições, defendidas por Mouzinho da Silveira, na contradição entre a retórica colonial e o efectivo estabelecimento em África durante XIX – demonstrado por exemplo em Capela (2014a) – é temática que ultrapassa a minha competência, mas julgo que poderá ser abordada através do cotejar das obras de Valentim Alexandre (2000a) e João Pedro Marques (1999). 19 Foram específicas as posições minoritárias do anarco-sindicalismo e do posterior partido comunista. Este ecoou o evolucionismo do movimento comunista internacional, tendo a sua primeira expressão anticolonial só em 1934, a qual apenas em 1957 se tornou a posição oficial (Manya 2004: 121). Para uma complexificação das posições do PCP sobre o regime colonial, avessa a uma visão simplesmente cronológica da sua deriva, referindo as suas ambivalências e, em particular, ligações formativas dos seus dirigentes ao contexto republicano, vincadamente colonialista ver Neves (2006). 20 Para a inflexão enfatizando o afã colonial no Estado Novo ver, p. ex., Alexandre (2006). 21 A ideia da específica benevolência histórica fora refutada (Boxer 1988 [1963], 1992 [1969]), mas a sua crítica interna foi muito tardia. Sobre essas críticas ver ainda Curto (2013), Thomaz (2001). 8 refractando traços estruturantes da pretérita crença na superioridade cultural portuguesa e elidindo a sua componente racialista e racista –, incrustada desde XIX na ciência do país.22 Noutro âmbito, subalterniza-se a importância do escravismo na expansão portuguesa,23 e das suas transformações desde meados de XIX sob modalidades de utilização do trabalho compulsivo formalmente livre (Jerónimo 2009a, Seixas 2015, Zamparoni 2004a), obscurecendo as dimensões económicas estruturantes do regime colonial. Do mesmo modo, é ignorado o peso das categorizações antropológicas e legais que sustentaram, formalmente até meados de XX, o segregacionismo colonial (Silva 2009d). Nisso se elide o quanto estas combateram, legislativa e culturalmente, a coabitação e a miscigenação raciais, desvalorizadas por implicarem riscos de degenerescência cultural, na “cafrealização” dos colonos, e racial, na produção de “mulatos”, considerados desvalidos social e psicologicamente.24 E, simultaneamente, favoreceram a discriminação das pequenas sociedades coloniais urbanas, existentes no início da colonização efectiva, reforçando barreiras que apartassem os grupos constituintes desses contextos mesclados, racial e culturalmente.25 De facto, trata-se da perenidade do que Renan (1991 [1882]: 34) bem identificou: “L'oubli, et je dirai même l'erreur historique, sont un facteur essentiel de la création d'une nation, et c'est ainsi que le progrès des études historiques est souvent pour la nationalité un danger.” 23 Abordo esta questão no capítulo VI. 24 No final da I República Quirino de Jesus e Ezequiel de Campos, este futuro ministro republicano, apelavam à competência colonizadora: “Deve-nos servir de acertado aviso todo o nosso passado e presente dos cruzamentos ineficazes com a raça africana … e de exemplo a seguir, a política da África do Sul nêste assunto.” (Jesus, Campos 1923). Trinta anos passados Campos insistia numa “Segregação absoluta dos elementos humanos europeus dos outros indígenas, cuidando-se do aperfeiçoamento de cada raça isoladamente … sem mestiçamento de grupos diferenciados ou em decadência. … proporcionar a constituição de famílias exclusivamente brancas dos colonos (…). À eugenia cuidada da nossa raça (…) juntemos, em completa separação, o aperfeiçoamento das massas gentílicas. Tal separação não embaraça nada o convívio dos vinte milhões de portugueses pelo mundo, em solidariedade fraterna no seu destino de Nação; nem estorvará o zelo e os direitos dos mestiços que infelizmente apareçam, por excepção à endogamia. E Portugal continuará a ser o grande civilizador dos povos indígenas.” (Campos 1952: 179-182). Moutinho (2000: 19-78) reproduz declarações de Salazar e de Caetano explicitamente racistas e adversas à miscigenação. 25 Bender (1980), Braga-Pinto (2014), Capela (2010f), Mendonça (2006, 2014a), Neves (2000), Penvenne (1989, 1993b, 1993c). Sobre essa legislação e as categorizações antropológicas implicadas ver Meneses (2009a, 2010), Silva (2006, 2009b, 2009d, 2009e). Para a ligação do liberalismo com esse processo ver Silva (2008, 2009c). Para a apologia do segregacionismo racial na antropologia portuguesa ver Almeida (2008), Moutinho (1982), Thomaz (2001). 22 9 4. A disseminação do pensamento racialista em Portugal, desde finais de XIX, reflectiu a influência nos meios científicos da escola de antropologia de Paris.26 Esse apelo racial, crente nas distinções psicológicas entre os grupos escrutinados, também derivou da concepção, generalizada naquela época, que apunha uma correlação entre particularismo nacional e uma especificidade racial que o suportasse (Stocking 1988: 67). Nesse sentido, desde o segundo quartel desse século, e mais nos seus finais, várias estratégias de investigação, fazendo confluir os legados filosóficos do iluminismo e do romantismo com os emergentes positivismos, conjugaram-se para essa fundamentação, e legitimação, naturalista da nação. Nisso procurando estipular-lhe um fundo racial – delimitado de modo variável pelos autores –, e em alguns casos associando-lhe um determinismo geográfico, este das especificidades do território também fazendo emanar particularidades psicossociológicas, componentes que teriam composto um percurso histórico único. Nesse complexo, racial e também geográfico, ter-se-iam assim caldeado os traços comportamentais coerentes e específicos, o “espírito do povo”, o Volkgeist típico do nacionalismo romântico,27 contendo vocação e missão próprias aos portugueses, estas presumidas e desejadas como factores de regeneração da nação (Branco 1999: 27-29).28 Esse racialismo reforçou-se pela alargada e perene repercussão do pensamento de Oliveira Martins.29 As interpretações da sua obra oscilam, pois se Saraiva (1995d: 189) o diz dotado de “unidade e coerência … desde o primeiro ao último livro”, Alexandre (2000g) vê-o oscilando-o entre a aplicação de dois modelos analíticos sobre o país e, por arrastamento, sobre o social. Pois, ainda que não tenha radicado a nação numa génese étnico-racial mas num voluntarismo, como uma entidade moral, assim ecoando a concepção de Herculano, já à sua virtude orgânica, às potencialidades de Portugal, viu-a fruto da mescla dos seus constituintes étnicos. Cultor de um evolucionismo racialista (Martins 1893), hoje legível como de teor racista, e ainda que crente na pluralidade originária da nação, enfatizou o que julgou o elemento ariano 26 Ver Cantinho Pereira (2005), Matos (2006, 2017), Rui Mateus Pereira (2006a), Ana Roque (2010), Ricardo Roque (2006a, 2006b), Santos (2005). 27 Para a influência geral deste conceito ver Bunzl (1996), Gingrich (2005). 28 Ver Catroga (2010), Gil (2015: 131-152), Matos (2017), Mattoso (1998), Sobral (2003, 2004). 29 Sublinhada pela sua consagração, como superior e até única reflexão global sobre o destino português, por Eduardo Lourenço (1992d [1978]), em texto que no actual regime se tornou crucial, até charneira, para a reflexão sobre a identidade nacional. 10 (celta) do complexo português,30 e desprimorou outras ascendências por haverem fragilizado o tipo específico de personalidade nacional. Desse modo influenciou eixos da intelectualidade e da administração colonial,31 desde o relevante António Enes (1971) ao integralismo lusitano que muito impregnou as elites e o pensamento do Estado Novo (Cruz 1982, Oliveira 2012), alimentando tanto o propagandear de uma raça portuguesa como a radical desvalorização dos negros32 - numa conjugação com a defesa da fundamentação católica do país (Proença 1964, Valente 2001, 2006), assim implicitamente concomitante a uma oposição à elevação cívica dos crentes em religiões africanas - e a aversão à mistura racial, sedimentando perspectivas e metodologias racialmente hierarquizadoras no seio da propalada missão civilizadora.33 A apreensão corrente deste autor encaixa na relativa elisão da problemática colonial e racialista. Vulto maior da “geração de 70”, crucial na história intelectual portuguesa, feito símbolo de inconformismo intelectual, íntimo de Queirós - figura emblemática da literatura nacional, e com o qual partilhou projectos e concepções (Saraiva 1995b) –, Martins é acolhido, e divulgado, por análises que o expurgam (e, por conseguinte, à sua “geração”) das suas vertentes racistas mais radicais, esmaecidas por suaves alusões ao seu darwinismo social34 e inicial “afro-pessimismo”.35 Este é um exemplo da actual sublimação de linhas intelectuais e políticas de produção identitária nacional que foram dominantes no discurso público de finais de 30 Tendo integrado o debate sobre a ancestralidade lusitana, tese que predominou até ao Estado Novo, a valorização das origens arianas ecoava o racialismo oitocentista europeu (Leal 2000: 65, Sobral 2004: 263-265, Matos 2017, Wieviorka 1995a: 9), e que era avessa à decadência que adviria das mesclas com outras raças. Para a actualidade do pendor arianista, e seus corolários políticos, notáveis na recepção da obra de Georges Dumézil, ver Olender (1995). 31 Neves (2016) explicita como a crença encomiástica numa peculiar raça portuguesa, associada ao culto dos antecedentes arianos e a uma desvalorização racial dos africanos, era comum no oficialato e na administração colonial. No mesmo eixo de análise ver Dias Santos (2003). 32 É importante referir que a desvalorização racialista não era universal, como o exemplifica Brito Camacho (1936), que numa publicação propagandística do esforço colonial (a colecção Cadernos Coloniais) contestava a superioridade rácica, considerando apenas estádios civilizacionais diferentes e assumindo uma atitude que hoje seria dita desenvolvimentista. 33 Ver Almeida, Brás (2012: 48-49), Amante (2011: 12), Barbeitos (2000), Leone (2005), Martins (1998), Matos (1994; 2002: 127), Matos (2017: 127-128), Meneses (2010), Pereira (1992), Saraiva (1995d: 180, 1995e: 100, 1996b: 100). 34 Ver Matos (1994), Saraiva (1995c, 1995d, 1995e). Sobre a “geração de 70” ver Saraiva (1995a). 35 Martins viria a defender, em contracorrente ao ideal da época, a venda das possessões africanas, por as considerar infrutíferas. Ideia que veio a alterar, após a sua integração políticopartidária. Sobre essas posições ver Pereira (2006a: 151-152). 11 XIX, I República e décadas iniciais do Estado Novo.36 Através desta peneira actual, a crença na superioridade racial e cultural surge como tendo sido vivida benevolentemente, isenta de preconceitos e más-práticas entre os portugueses (Leal 1961: 63), imersos numa visão universalista e solidária, assim mais humanitária do que o das outras nações coloniais. Reforçou-se ainda a ideia de uma propensão para o convívio e para a miscigenação inter-racial, consagrada desde meados de XX, e muito devido ao contexto internacional, pela refracção utilitarista que o Estado Novo tardio, e as elites intelectuais nacionais, fizeram da elaboração luso-tropicalista de Gilberto Freyre (1952a, 1953, 1958), especificamente dedicada ao império colonial português.37 Uma miscigenação inter-racial que sempre é considerada como fruto de afectos imanentes aos portugueses, visão que se funda numa mera erotização do social, assim despojada do seu real conteúdo social, produto que foi das relações de poder político (e militar), económico e de género (Neves 2017). Esta visão, plácida e dulcificada, da história tornou-se discurso político e representação social dominante, afirmando um especial “modo de ser português”, de facto um modo especial de ser colono.38 Mas se a influência de Freyre foi crucial na época tardo-colonial, a eficácia do tópico “miscigenação” inserido num âmbito da crença na superioridade racial e cultural, entroncou no anterior debate sobre a origem e a originalidade portuguesa, indagando a etnogénese da nação (Leal 2000), a qual teria resultado num húmus racial peculiar do qual emanaria uma psicologia própria, benfazeja. Entre outros autores, Teófilo Braga, de modo algo contraditório ao longo da sua obra, crera que factores geográficos se teriam associado a antecedentes étnicos, estes concebidos como uma mescla entre a qual valorizou o factor norte-africano, e produzido um tipo racial, e como tal psicológico e cultural, específico.39 Também Mendes Correia, figura maior da antropologia física nas 36 Russo (2005) diz que Pessoa, ao recusar a via da acção civilizadora inserida no paradigma europeu moderno, influenciou a reflexão identitária portuguesa. Mas, de facto, nisso o autor não refutava a especificidade portuguesa, mas sim extremava-a, dizendo-a desadequada àquele formato colonial. 37 O tópico “miscigenação” não foi só artefacto justificativo colonialista, pois a formulação freyriana inicial dirimia a questão multirracial brasileira (Almeida 2008b, Enders 1997) e afrontava a ideia da superioridade do modelo sociocultural norte-americano. Para a sua similitude com o trabalho prévio do mexicano José Vasconcelos ver Bethencourt (2011: 56). 38 Ver Almeida (2008b), Bastos (2015), Castelo (1998, 2014, 2015), Leonard (1997), Lucas (1997), Thomaz (1996). 39 Ver Leal (2000: 68-69, 86-90, 2006a, 2006b, 2006c, 2006d), Matos (1994, 2002), Meireles (2011). 12 décadas subsequentes, inseriu a racialidade portuguesa num estoque mesclado,40 no qual confluiriam saelianos e europeus austrais, uma via adequada ao nacionalismo pois refutando a sua subalternização no contexto europeu, face a nações que propalavam uma ascendência considerada mais válida, em particular a ariana.41 Estas correntes intelectuais abrigaram a ideia de uma hibridez fundacional, constitutiva de uma essência psicossociológica particularmente cosmopolita. Jorge Dias (1986 [1950]: 7) veio a sumariá-la, estipulando um “fundo temperamental”, fecundado num “encontro das mais variadas raças”, que seria a única constante dos portugueses, subjacente às variações regionais que estes integrariam (Sobral 2004).42 Esse encontro teria proporcionado uma “cultura expansiva”, cujas virtudes potenciariam a capacidade de cumprir o destino imperial, afirmação identitária que serviu para tornear as teses decadentistas sobre o percurso histórico nacional (Lourenço 1999c, 2010). Adicionalmente, foi bálsamo para opor ao racismo norte-europeu, desvalorizador das condições socioeconómicas metropolitanas e coloniais portuguesas, o qual veio a alimentar a crítica ao colonialismo português devido às suas mesclas socioculturais em África (Bender 1980, Clara 2006, Fry 2005a), dizendo-o ainda como místico pois quimérico, um mero “colonialismo reflexo” dado que desprovido de fundamentação económica, assim uma verdadeira irracionalidade, condicente com as características menores da população portuguesa (Alexandre 1995a).43 40 Matos (2013) aborda a ambivalência deste autor face à mestiçagem no Brasil, desde a sua oposição até à sua adesão já no pós-II Guerra Mundial, em que a valorizou enquanto marca da colonização portuguesa. 41 Ver Leal (2000: 91-94, 2006: 57-58), Sobral (2004: 260-262, 271-273). Martins (2011: 332, 340) nota o mesmo viés nacionalista na arqueologia portuguesa, de finais de XIX e primeira metade de XX, avessa à valorização que as suas congéneres europeias faziam dos contributos das migrações germânicas, e seus impactos culturais, em detrimento dos processos de difusão cultural dos restantes povos. 42 Thomaz (2001) e Sobral (2007: 485-500) sinalizam a importância de Dias na antropologia portuguesa, salientando ter ele efectuado a transição do argumento racialista para o questionamento culturalista. Mas sobre a formação das características portugueses o autor seguiu linhas orientadoras anteriores, fundando a “personalidade psicossocial do povo português” na “fusão de elementos étnicos”, num “encontro das mais variadas raças” (Dias 1986 [1950]: 7). Para o enquadramento da sua visão sobre os antecedentes portugueses ver Martins (2011), em particular sobre a sua ligação com a pesquisa arqueológica sobre a matéria, e Leal (2000: 95-100), referindo a sua ligação ao estudo dos caracteres nacionais do culturalismo americano articulado com a influência da filosofia da saudade, em particular Pascoaes. Macagno (2002) traça as formas como Dias extrapolou as formas de fraternidade que estipulou nos seus trabalhos etnográficos na ruralidade portuguesa, considerando-as arquétipo das práticas presentes na extroversão ultramarina. 43 Ver, como exemplos, Anderson (1966), Hammond (1977), Munslow (1980). 13 Neste ambiente intelectual, nas suas últimas décadas o regime colonial português propagandeou-se e legitimou-se por um discurso culturalista, como acção de um povo cuja personalidade de base tendia à interacção empírica, pois congenitamente cosmopolita e dadivosa, com enorme e única plasticidade, e que. a conduzira numa matriz de convívio, numa paternal superioridade ôntica, sob uma ênfase evangélica, em práticas despreconceituosas e miscigenadoras, propensas à assimilação, esta entendida como necessário vector de progresso dos africanos. Afirmava-se assim a demanda do alheio, o conúbio com a alteridade, como destino histórico, passado, presente e utópico da lusitanidade ou portugalidade.44 5. Essa constelação tardo-colonial é uma perspectiva política perene, como o mostram as suas refracções pós-Estado Novo nas correntes ideológicas ditas progressistas e anticolonialistas. Por vezes inconscientes, por vezes estratégicas, todas essas invocações denotam que tais noções continuam a ter eficácia social e a produzir práticas políticas (e privadas), no fundo refractando uma (ansiosa) problemática continuada, a da viabilidade nacional (Pina-Cabral 2023: 292). Mostraram-no Barradas de Carvalho (1974a) no seu Rumo de Portugal: a Europa ou o Atlântico, apelando à desinserção portuguesa do espaço europeu através da constituição de uma comunidade luso-brasileira, que viesse a integrar os (então desejáveis) novos países africanos, como única forma de obstar à absorção pela Espanha.45 E, já no ano da integração na à época CEE, a aclamada publicação de Jangada de Pedra (Saramago 1986), evidente manuseio do mesmo imaginário, no caso situando na Europa (capitalista) a ameaça à independência. Concepção também veiculada numa edição do prestigiado Boletim Cultural da então tão relevante Fundação Calouste Gulbenkian, dedicado ao mundo literário lusófono e significativamente intitulado “Outras Vozes Também Nossas”. 44 Denotativo da abrangência nacional destas concepções, que extravasavam estritas filiações ideológicas, é um breve opúsculo de Armando Cortesão (1962), atendendo perfil do autor – dirigente da Agência Geral das Colónias no período final da I República, depois oponente político e exilado durante o Estado Novo, profissional na então emergente UNESCO e posteriormente reintegrado no escol académico nacional, e figura relevante no panorama historiográfico em torno das Comemorações Henriquinas de 1960. Nesse texto não só explicita os traços identitários fundacionais da benfazeja particularidade colonial lusa, como neles funda a necessidade de um adiamento (geracional) das independências africanas, nisso vituperando as potências coloniais devido aos processos de independências africanas em curso, que transformavam a ONU no palco de povos “bárbaros” e “selvagens”, um verdadeiro “batuque desvairado” (Cortesão 1962: 18) devido à cessação da missão civilizadora ocidental. 45 Este ideário terá ligações ao “terceiro-mundismo” da primeira década da democracia portuguesa, hipótese que exigirá uma análise dedicada. 14 Nesse David Mourão-Ferreira (1990: 3), seu director, apelava ao “fortalecimento dos laços de parentesco” e aos comuns “inúmeros valores no domínio da afectividade e do imaginário” no universo lusófono, “afinidades” essas que “apenas toscos e áridos eurocratas haverão de negar que são bem mais profundas” do que as que uniriam os cidadãos da União Europeia, isto tudo para evitar que o português – de facto, Portugal, pois é do país que o autor falava e não do restante amplexo internacional, como se denota na formulação textual – “não ser mais do que uma periférica língua de pobres numa arrogante Europa de ricos”. E mostrou-o também a admiração generalizada por Agostinho da Silva, que chegou até à literatura internacional best-seller (Le Carré 1989), na sua mística proposta de um Portugal-língua sob modalidade (destino) de comunidade lusófona, que fosse palco de uma identidade comungada e harmónica – de facto apenas uma actualização da aspiração do V Império de António Vieira - tão mediatizada na década anterior ao estabelecimento da CPLP.46 Por ela se agita ainda a figura do português pragmático, pouco dado a elaborações intelectuais ou planificações lucrativas (Godinho 1990: 9, Saraiva 1996b: 98) – o que tanto justificou o colonial dito como missão desinteresseira -, prenhe de afectos, como tal dado à “miscigenação” multirracial, negando qualquer deriva racista (p. ex. Antunes 2005,47 Saraiva 1996b: 96, Carvalho 1998: 118). Nessa rememoração sublinha-se a propensão afectiva-emotiva, crismada na “filosofia portuguesa” herdeira de Pascoaes,48 e refractada em algum exercício das ciências sociais no Portugal actual, valorizador e higienizador do passado, exsudando uma visão convivencial dos processos históricos. Estas formulações, comuns na elite intelectual e académica portuguesa, não ecoam apenas desconhecimento pois demonstram dimensões programáticas que implicam a reconstrução da história, como o exemplificou Mega Ferreira (2007: 20), homem crucial na história das instituições culturais do actual regime: “nos últimos quatro séculos, sempre nos relacionámos com os outros quando eles vinham ter connosco e não porque os procurássemos”. 46 Instituída a 17 de Julho de 1996. Para a crítica do pensamento de Agostinho da Silva ver Carrilho (1995: 161-62). Sobre a ligação entre Agostinho da Silva e Darcy Ribeiro e José Aparecido Oliveira, brasileiros relevantes na conceptualização da CPLP ver Freixo (2007). Sobre a ligação entre CPLP, noção de lusofonia e política externa brasileira ver Faraco (2012). 47 “… foi a assimilação – profunda ou apenas superficial – das culturas mais heterogéneas, foi a missionação como transmissão daquilo que julgávamos possuir de melhor - a mensagem de Cristo – foi a ausência, senão total, pelo menos acentuada de preconceitos raciais, em contraste nítido com outros povos … Dentro da vocação geral de todos os povos à universalidade, o Povo português constitui uma grande, uma clamorosa excepção” (Antunes 2005: 59-60). 48 Ver Almeida (2017b), Leone (2005). 15 Esta auto-concepção apazigua os processos históricos, (re)apresentando uma visão distorcida da realidade colonial, assente na mitologia de um idílico nacional (Lourenço 1992a: 75). Trata-se de uma reconstrução irenista da história, apresentada como um “encontro colonial” (Moreira 2004), ou sob similar expressão neutral, cuja retórica procura elidir as dimensões de violência sistémica, estruturante das relações acontecidas e das categorizações que envolveram. E tem um corolário no discurso político português e/ou lusófono, a de uma verdadeira comunhão entre os povos que pertenceram, administrativamente, ao império português: “a Comunidade [CPLP] “existe” há 500 anos; o que faltava era a sua institucionalização” (Alves 1998: 21). 49 6. Quando em 1872 Jules Verne enviou o seu arquétipo de britânico fleumático, Phileas Fogg, junto ao mais sanguíneo francês Passepartout, na sua Volta ao Mundo em Oitenta Dias, cruzou dois temas centrais da sua obra, o progresso tecnológico, do qual era veemente cantor, e o mundo colonial, do qual tinha um olhar mais desapaixonado, sendo legítimo indagar sobre os múltiplos sentidos que dele se poderão extrair, as sombras da auto-devastação, nisso as das incógnitas sobre o futuro e a justeza do presente (Carroll 2013, Ousselin 2014). Mas se esse roteiro, até implicitamente problematizador, é apresentado num feixe de estereótipos culturais, é certo que não tem como fito debater a reclamação identitária portuguesa, essa tendencial adequação à coalizão com o outro. A qual surge, inopinada, quando Fogg se depara, no “muito carregado vapor” que o transporta de Singapura a Hong Kong com “hindus, chineses, malaios, portugueses”, congregados nos “lugares inferiores” (Verne 2018 [1872]: 111) e assim diferenciados os últimos dos congéneres (raciais) europeus, na sua vivência menos sujeita a barreiras (raciais) sociais. Algo que ressurge no seu menos conhecido Aldeia Aérea, um romance darwiniano pois uma busca do elo perdido na evolução humana.50 O qual integra, ainda que contendo um inusitado, para a época, resguardo face ao colonialismo (Pelckmans 1995), um explícito repto europeu aos Estados Unidos para a participação na partilha de África. Pois “E o Congo americano? Não se trata dele A continuidade dessa visão de uma “personalidade de base” portuguesa - que tende ao elidir das componentes da história ultramarina - no seio dos letrados nacionais é patente na selecta de textos de cerca de 40 autores que se dedicaram ao assunto durante o século XX, apesar da “diversidade” de itens anunciados pelo seu organizador Mourão-Fereira (1990). 50 Para a articulação do estudo dos primatas com o debate entre as teses racialistas, monogenistas e poligenistas, e a temática hipotético “elo perdido” após a popularização do darwinismo, e a sua presença na antropologia física e na literatura desde XVIII ver Barnard (1995; 2004: 19-20) e Correa (2015). 49 16 por enquanto?” (Verne 1982 [1901]: 7) é a questão de abertura, posta por Max Huber, o francês apologista das potencialidades continentais, a John Cort, o norte-americano, curioso mas de uma afrofilia algo renitente. Ora os dois protagonistas desse grande safari colonial - que é de facto uma viagem iniciática, tanto para os protagonistas como para as nações de que ali são símbolos - são inicialmente escoltados e guiados por um outro europeu, Urdax, português veterano das selvas africanas, fluente nos usos e línguas, ali algo tutor e intermediário cultural. O italiano Emilio Salgari foi outro dos populares escritores de finais de XIX, divulgador das paragens longínquas onde decorria a expansão europeia, ainda que portador de uma visão nada moralista e crítica das práticas europeias nas colónias (Catafalmo 2014, Gallo, Bonomi 2016), comportando um implícito anticolonialismo avant la lettre. As suas obras mais célebres constituíram o ciclo de aventuras do guerreiro malaio Sandokan, sendo interessante que o fraterno parceiro do herói fosse o corsário português Yañez de Gomera.51 Como é óbvio Verne e Salgari não participavam no debate identitário nacional, nem tinham como objectivo desvalorizar (ou valorizar) os portugueses. De facto, são exemplos entre tantos outros, na literatura portuguesa e estrangeira desde XVII, de representações sobre os portugueses, em termos comportamentais que os distinguiam dos outros povos europeus e não só, tanto ao nível das práticas culturalmente induzidas como ao dos seus constituintes psicológicos, as quais lhes implicavam diferentes modalidades de interacção com os povos ultramarinos (Mattoso 1998). 7. Não tenho competências para analisar a sociogénese dessas representações, a das modalidades históricas de construção e impregnação de uma autoconsciência nacional e a das concepções exógenas, decerto que com aquela imbrincada, todas anunciando características psicológicas e existenciais típicas dos portugueses, em particular aquelas que estiveram presentes nas interacções ultramarinas, que configuraram a referida crença numa imanente tendência para a articulação harmoniosa e miscigenadora. Mas julgo que as reflexões sobre estas auto-representações vêm exagerando os efeitos causais do ensaísmo identitário, em especial o produzido nos finais de XIX e em XX, que as propuseram e sistematizaram, remetendo a sua fundamentação, de forma 51 As traduções portuguesas apresentavam a personagem sob o nome de Gastão, torneando o nome espanhol que Salgari lhe atribuíra. 17 implícita ou explícita, para o substrato étnico-racial do país. Ora, e mesmo considerando os efeitos homogeneizadores da “republicanização do país” (Branco 1999: 44), em termos da construção da cidadania por meios institucionais e transformações culturais produzida desde finais de XIX, e nisso a elevação dos níveis de literacia portugueses (Ramos 1994) e a posterior influência disseminadora da adopção estatal e pelas elites intelectuais desses discursos, a perenidade dessas representações terá outro fundamento, o dos processos históricos de interacção ultramarina e colonial. Ou seja, ainda que potenciado pela disseminação desse corpo ensaístico, e do literário que o perseguiu,52 este ideário sobre a especificidade portuguesa ancorará, de modo mais profundo, em características estruturais. Tratar-se-á dos efeitos da refracção sociocultural das estratégias político-administrativas estatais assumidas durante as diferentes configurações do império, no Oriente, Brasil e África, e que algo apartava a tipologia das práticas portuguesas da dos outros processos coloniais europeus (Alexandre 2006, Bethencourt 1990, 2000, Hespanha 2019, Mattoso 1998), mesmo que não possa ser considerada exemplar único (Hespanha 2019: 32-34). A condução de um império fragmentado, em termos territoriais e cronológicos, implicou uma cultura organizacional própria, relativamente apartada da dos outros impérios europeus, uma tradição imperial incluindo métodos administrativos descentralizados e autonomias locais, recorrendo a efectivas estratégias de evangelização articuladas à constituição de pequenas comunidades crioulas, elites locais que mantinham relações com parentelas metropolitanas, configurando a tal miscigenação (Bethencourt 2000: 17, 31-33, 2011: 58, Hespanha: 21-25, 35-37), ainda que em moldes sociologicamente bem diversos daquela que veio a ser consagrada como ideal da expansão portuguesa. Friso que não trato de propor uma excepcionalidade histórica portuguesa benfazeja e irenista, e que estas modalidades não foram homogéneas mas existentes numa miríade de formulações diferenciadas, consoante locais, épocas, e, também, os núcleos sociais dos portugueses neles envolvidos (Bethencourt, Curto 2010: 13-14).53 Neste molde, que foi traço continuado da realidade imperial, se constituíram (auto-)representações no tempo longo histórico, formando um conteúdo cultural legitimamente passível de activar. Deste modo, as suas origens são anteriores aos 52 Para o impacto na literatura do nacionalismo colonialista de finais de XIX ver Coelho (1996). Para uma visão das diferenças dos enquadramentos jurídico-administrativos tendencialmente estabelecidos para a colónia moçambicana, face aos procedimentos imperiais, ver Guimarães (1989). 53 18 processos do colonialismo moderno, e da ocupação efectiva dos territórios continentais africanos, os quais foram coetâneos dos discursos identitários mais celebrados, mas que assentaram exactamente no extirpar dessa legitimidade “crioulizadora”.54 Poder-se-á então entender que o discurso tardo-colonial, recuperando o ideal miscigenador, não foi apenas uma legitimação ideológica, agora a denunciar, se num viés analítico anticolonial de aparência positivista, ou a replicar, se sob uma vontade nacionalista consagradora da bonomia nacional. Mas que se tratou do manusear de perspectivas culturais, e não apenas literatas, advindas de práticas históricas com dimensões administrativas, manuseando estratégias de parentesco, económicas, políticodiplomáticas e religiosas, bem prévias às elaborações textuais contemporâneas que as consagraram. Essa apreensão da presença, política, social e cultural, destas práticas no tempo longo imperial português, permite compreender a sua perenidade, pois de outro modo será de crer que seriam elas muito mais esfumáveis face à demonstração da sua desadequação para o entendimento das realidades do colonialismo português de XX. Assim sendo, e se é evidente que houve uma conjugação, também induzida e estrategizada pelo Estado, com a abordagem luso-tropical (Cahen, Matos 2018), esta perenidade de representações portuguesas ultrapassa esse laço com a obra de Freyre, cuja dimensão estruturante julgo ter vindo a ser demasiadamente enfatizada. E foi também para realçar esse exagero que tanto me alonguei na atenção sobre o processo histórico destas formulações. 8. A perenidade desta arquitectura identitária, nos seus vários matizes, é assim resultante da tradição imperial, um vestígio do saber colonial (Almeida 2000: 363), e não apenas o corolário das suas finais construções legitimadoras. A sua persistência não reflecte apenas a preservação de uma “boa consciência colonial” (Cahen 1991), mas também implica a elisão da distância social face aos contextos alheios, em particular a África ex-colonial, pelo que tem repercussão epistemológica, funcionando como agente de desconhecimento. Pois a crença na excepcionalidade portuguesa, na tendência inata para a convivencialidade, na idiossincrática capacidade de integração presente na história e na actualidade, que teria optimizado a missão colonial, é uma deriva 54 Farré (2015) alude a essa excisão do mundo crioulo, na sua referência ao jornalista laurentino João Albasini – protagonista do romance de Borges Coelho (2010), onde se aborda a mesma problemática – como exemplo da tensão existente no mundo crioulo, nos mulatos, dada a sua repugnância em serem desvalorizados enquanto “assimilados”, assim retirados do contexto português, para o qual se passava a exigir uma pureza racial. 19 culturalista que invoca um particular capital cognitivo sobre essas realidades, e que seria oriundo de uma predisposição compreensiva, anunciada como vantagem comparativa da sociedade portuguesa e até sua constitutiva (Lourenço 2014b). Essa crença alimenta-se da continuidade do “paradigma multissecular da presença colonial portuguesa” (Torres 1991), argumento legitimador aquando do processo de partilha continental.55 Sinaliza-se no uso habitual do termo “colonial” (e seus derivados) para o período anterior ao da administração efectiva. E no uso do tópico “cinco séculos em África”, tão resistente que impregnou as retóricas nacionalistas africanas (Mondlane 1995: 25, 31-34)56 e algumas abordagens aos processos subsequentes (Ngoenha 1992).57 Este exagero da dominação portuguesa,58 que é sua exegese, elidindo o seu lento estabelecimento em XIX após a independência brasileira, e até às duas primeiras décadas de XX, sobredimensiona a apreensão cognitiva havida ao longo da história, imaginando-a mero resultado directo do dito longo processo conjunto, promovendo a crença no empirismo59 (do longo contacto) como base de conhecimento (privilegiado). Estes pressupostos culturalistas e empiricistas, anunciando uma predisposição cognitiva de índole psicossociológica, encapuzam as condições epistemológicas, imaginando o conhecimento como construído no imediatismo da interacção decorrida sob essas características, e consagrando o legado existente, construído sob esses parâmetros. A auto-valorização da presença lusa, e do seu olhar, implica ainda a redução da pluralidade dos contextos, percebidos como amálgama homogénea, qual 55 Ver Alexandre (1979: 189-193, 2000a: 147-162), Coelho (2000), Guimarães (1984), Madureira (1988). 56 De facto, nesse seu texto fundacional, Mondlane contradiz-se, pois tanto nega a anterioridade da dominação portuguesa como a alonga, replicando o tópico dos “cinco séculos”. 57 O que continua a poluir a investigação actual, como é exemplo Bertelsen (2009: 214). A filiação a essa mitologia colonial influencia as análises, como o ilustra Anstey: considera que nos países da região as políticas e legislações promovem a mudança social, dado os seus Estados funcionarem através de relações impessoais, dada a influência da colonização por europeus boreais, ao invés da ineficiência moçambicana, onde o Estado funciona através de práticas pessoalizadas, típicas da tradição estatal ibérica, ali presente devido à colonização de 500 anos (Anstey 2007:1). Este tipo de consagração de uma especificidade moçambicana, causada pelos “cinco séculos” coloniais é recorrente. 58 Thomaz (1996) aborda o discurso científico no Estado Novo que consagrou esta ideia. 59 “Todo o empirismo tem tendência para reduzir a análise das sociedades à colocação em evidência dos traços visíveis do seu funcionamento e depois a reagrupar estas sociedades sob diversos conceitos, de acordo com a presença ou a ausência de alguns destes traços escolhidos como pontos de comparação (…) Ao empirismo, sob todas as suas formas critica-se a sua tendência para reduzir o funcionamento de uma sociedade a um conjunto de traços manifestos ou latentes e depois, de se fechar, quando compara diversas sociedades, no dilema sem saída da excepção e da regra.” (Godelier s/d [1973]: 153-154). 20 “África” ou “África lusófona” de características globais similares (Dias, Ribeiro, Trajano Filho 2008, Meneses 2012a: 124), como se submersa(s) por uma unicidade ontológica. Corolário desta indiferenciação é a relativa desconsideração das dinâmicas particulares, e a ênfase em causas exógenas das transformações históricas. 9. Esta amálgama nocional tem vigor social, sendo transversal ao “olhar português” sobre África e sobre si mesmo. Ilustro essa presença abrangente na sociedade portuguesa com exemplos extraídos de diversos eixos ideológicos do contexto intelectual e político. Faço-o sem qualquer deriva ad hominems, nem qualquer intuito de avaliação ou hierarquização meritocrática das respectivas argumentações, apenas para salientar a omnipresença dos pressupostos referidos. Enceto por aquele que entendo como o “eixo saudoso”,60 um âmbito polimorfo que conflui na visão da ligação histórica de Portugal a África como um processo positivo, sob a teleologia evolucionista da ideia do progresso. Veicula, de forma encomiástica (Ribeiro 2012a: 48-57, 2013) ou apenas difusa, o tema da “missão civilizadora” colonial.61 Tem o seu pólo político no ainda usual lamento sobre o “espoliamento do ultramar” de 1974-1975 (Moreira 2010), ligado a posições políticas ditas de “direita”,62 numa ênfase nacionalista que (sobre)valoriza o passado pátrio. Está presente numa vasta historiografia (e abordagens adjacentes) lusocentrada, 63 focada nas suas dinâmicas, processos, objectivos e periodizações, traduzindo a desvalorização das realidades socioculturais, económicas e políticas locais, tanto as africanas como as exógenas ali afluentes, as quais, se abordadas, surgem como se encapsuladas no “tempo longo” ou “espaço vasto” da presença portuguesa, nisso denotando uma continuidade com as análises do período colonial (Meneses 2012a: 125). Não por o encerrar no legado na “filosofia da saudade” (Leal 2000: 91-94) mas para denotar, na diversidade dos seus locutores, o seu vínculo afectivo e ideológico ao passado colonial. 61 Uma missão civilizadora que foi pensada como centrada na evangelização e, desde XIX, como assente na dinamização do conhecimento científico e sua aplicação (Costa 2013). Sobre a influência desse ideário no projecto colonial ver Jerónimo (2009a). Testemunha da perenidade desse ideário é a reclamação da prática colonial “civilizadora” nas intervenções parlamentares já na década de 1950 de Jorge Jardim (1959: p. ex. 191-194). 62 Utilizo aqui o par “esquerda” / “direita” no sentido proposto por Bobbio (1995), mas decerto que concordante com hipotéticas autodefinições dos autores a que de seguida aludirei. 63 A historiografia portuguesa sobre África não se reduz a este tipo de abordagem (veja-se, p. ex., o seu invés em Henriques 1997). Mas é sua característica a incidência em antigos territórios ou entrepostos portugueses, o que exemplifico com as actas da III Reunião de História de África (Santos 2000): 25 anos após o início das independências africanas, em 56 artigos apenas 8 não incidiam sobre ex-colónias portuguesas e, ainda assim, desses alguns referiam-se às ligações entre África e a ex-colónia brasileira. 60 21 E revitaliza-se pelo crescimento de um corpo literário peculiar que colhe atenção pública: o relativamente recente fluxo de ficção histórica sobre o contexto colonial português em África, que julgo ainda expurgado nas análises literárias, assim como que ilegitimado por critérios meritocráticos (Ribeiro 2016), e o memorialismo – este já abordado, ainda que de forma polarizada e basto enviesada, por Calafate Ribeiro (2012b) e Thomaz (2012a), aos quais se pode associar o memorialismo iconográfico tendencialmente laudatório do passado.64 Expressa-se também em vários blogues dedicados e inúmeras páginas na Internet (especialmente no facebook).65 Um espectro textual no qual vigora, explícita, uma “nostalgia imperialista” (Rosaldo 1989), placidamente elidindo as rugosidades das relações sociais constituintes do regime colonial. Se este exaltante “nacionalismo discursivo” (Lourenço 1992d: 27), num registo explícito, não será dominante na academia, tendo até alguns custos estatutários se enunciado, a sua subalternização não é absoluta. Implica um corolário que, de modo explícito ou implícito, surge em muitas estratégias metodológicas assumidas em ambientes distintos, disciplinar e ideologicamente: a crença no profundo conhecimento empírico e científico português das realidades africanas. Assente no tal pressuposto da secular e positiva intimidade com esses contextos, ecoando um empiricismo66 que emana de uma enviesada leitura da história, e ainda numa irreflexão sobre as condições sociológicas da produção desse saber. E reclama uma gravitas académica. 64 Sobre Moçambique ver Gama (2005, 2006), Loureiro (1997, 2005), Vieira (2005, 2006). Algo sobre o qual desconheço análises, apesar das aproximações a este universo num âmbito de reflexão sobre esse contexto sociopolítico histórico (Martins, Cabecinhas e Macedo 2010, 2011). 66 Não digo um “empiricismo” em sentido literal, mas também não apenas metafórico. Pois estas interpretações, quando advindas das ciências sociais e humanidades – mesmo não reclamando um “método” naturalista - comportam traços constantes das abordagens empiricistas. De facto, nos discursos “naturalizadores” da identidade portuguesa e das relações benfazejas com os contextos coloniais poder-se-á encontrar: “the reductionist theory of meaning, the real content of science is reduced to (or reconstructed from) atomistic facts apprehended – or stated – in sense experience. And (…) the reified theory of facts, these facts are treated as identical to – or in isomorphic correspondence with – the objects to which the referring expression, in the sentence with which they are stated, refers. Thus science, reduced to atomistic facts, comes to be treated as identical to – or in isomorphic relationship with – the objects apprehended by science in the fact-stating moment, so that the former is, as it were, assimilated into (or turned into an epiphenomenon of ) the latter. In this way knowledge ceases to be viewed as properly speaking social and properly speaking produced” (Baskhar 2018: 4041). E, no fundo, as análises orientadas por estas visões tendem a encerrar-se em enquadramentos institucionais que correspondem ao anunciado por Wright Mills (2000 [1959]: 56) para este tipo de abordagens: “This style of re search, in brief, is accompanied by an administrative demiurge which is relevant to the future of social study and to its possible bureaucratization”. 65 22 Uma obra que sumariza esta continuidade discursiva é um doutoramento em XXI, A Construção da Nação em África: Ambivalência Cultural de Moçambique (Graça 2005).67 Anunciando uma visão “descomplexada relativamente ao passado colonial e descomprometida do ponto de vista político-ideológico” produzida “numa Universidade como instituição privilegiada da liberdade de pensamento e da procura da verdade” (15) aborda a constituição da ideia de “Nação” em Moçambique restringindo-a a efeito da acção do regime colonial. É certo que em África o artefacto “nação” foi moldado no período colonial e nas formas assumidas pela luta anti-europeia, e se sedimentou no ordenamento político internacional.68 Mas nesta obra a questão serve de húmus a um absoluto lusocentrismo, desconsiderando realidades outras, como prova a sua referência à conhecida História de Moçambique de Newitt (1997), sobre a qual refere: “… o período após a independência resume-se a 36 páginas num total de 577 de texto, sendo por isso na verdade um estudo de História Colonial de Portugal” (123), assim restringindo as dinâmicas históricas locais a um subproduto da história portuguesa, absolutizando a efectividade da presença (e dominação) portuguesa ao longo de séculos.69 A análise aos limites epistemológicos do conhecimento produzido em contexto colonial é considerada pura “crítica anti-portuguesa” (101), elencando até os investigadores nela envolvida (concerned scholars), como se para serem evitados (122-123). À produção científica portuguesa assume-a indiscutível e imediata, pois “a cientificidade dos estudos coloniais portugueses” remonta a Vasco da Gama, tendo sido desenvolvida a partir de um “padrão”,70 de “uma base sólida de “familiarização” com 67 A obra é de um professor do ISCSP, orientada e prefaciada por Adriano Moreira, e publicada pela Almedina, editora de referência, o que sublinha não se tratar de uma marginalidade académica, até despicienda, mas do cerne da reprodução do sistema intelectual nacional. Na mesma linha de reflexão ver Graça (2004, 2009). 68 Há uma vastíssima literatura sobre a temática. Para o caso moçambicano ver, por exemplo, a problematização do estatuto da nação em Cahen (1992, 1994). 69 Algo paradoxalmente em Graça (2000) o autor considerara falsa a ideia da antiguidade da ocupação portuguesa do território 70 Um padrão que o autor considera “pode ser visto no contacto com o Reino do Congo e com os índios do Brasil, ou mesmo em Rafael Hitlodeu, a personagem principal da Utopia de Thomas More, que cristaliza essa maneira específica de ser e de conviver dos portugueses, tão diferente da espanhola, francesa, holandesa e inglesa” (Graça 2005. 103). Há que notar que a publicação de Utopia foi em 1516, anterior ao conhecimento europeu sobre as características da presença espanhola na América (e num saber humanístico desconhecedor do conteúdo da intervenção nas Canárias) e à expansão ultramarina dos outros países referidos, o que demonstra o carácter descontrolado desta afirmação comparativa, historicamente impossível de apor ao pensamento de More. Por outro lado, obscurece as transformações ocorridas nas interacções – e nas concomitantes classificações antropológicas – no Congo, entre a afirmação de uma 23 África que remonta ao Século XV. Esta, no que respeitava às relações sociais com os designados gentios, radicava numa matriz humanista e universalista que enformava já então a Cultura Portuguesa, tributária quer de um passado de miscigenação biológica e cultural (moçárabes) quer dos valores do Infante D. Henrique e da Ordem de Cristo, continuadora da Ordem dos Templários” (103, sublinhados no original). Como corolário deste processo histórico “a sociedade colonial não era estruturalmente racista … Desde logo porque … a matriz da Cultura Portuguesa em ambientes tropicais é a de convivência social. … A Cultura Portuguesa é inclusiva, ao contrário de outras, como a inglesa, a francesa e a espanhola, que são exclusivas, isto é, muito pouco abertas às culturas estrangeiras … a Cultura Portuguesa e a Cultura Africana de uma maneira geral de uma maneira geral são idênticas, integrando os elementos estrangeiros de forma muito natural.” (205-206, sublinhados no original). Está aqui (quase) tudo sobre este eixo discursivo: a “naturalização” da argumentação própria (a ciência que busca a “verdade” purificada de qualquer “ideologia”); o radical lusocentrismo, imbuído de um misticismo esotérico constitutivo da “portugalidade”; a passividade e a homogeneização das realidades africanas (a tal “Cultura Africana”); a extensão longa do regime “colonial” como se contemporâneo das grandes navegações de XV-XVI; a convivencialidade inata e integradora portuguesa, fruto de uma feliz e única mescla biológico-cultural originária; o total empirismo elevando esta convivencialidade, potenciada pela inexistência de exclusão racial no contexto cultural português, como fonte desproblematizadora da ciência e dos processos cognitivos. Em tudo se afirmando um indiscutível conhecimento nacional sobre África.71 10. À presença desta auto-representação nacional num contexto ideológico mais amplo, que nomeio como eixo “institucional”, ilustro-a através de uma obra de importância simbólica, Portugal. Língua e Cultura (Júdice 1992). Trata-se de uma publicação de regime, produzida para a representação nacional na emblemática Exposição de Sevilha de 1992, arranque internacional das comemorações portuguesas de final de XX (Oliveira 2003), tão relevantes na produção identitária nacional da actual homogeneidade inicial (sufragada no bispo negro de 1525) e um célere processo de desvalorização (Bethencourt 2011, Horta 1991c). 71 Ver, como ilustração, a extrema similitude desta argumentação com o inscrito num texto da época da ascensão do ideário lusotropical, O tradicional anti-racismo da acção civilizadora portuguesa (Andrade 1953). 24 II República, e culminadas na realização da Expo-98 em Lisboa.72 Nas quais se frisou a importância actual do imaginário da expansão portuguesa pós-medieval na produção identitária (Polanah 2011, Sieber 2001). Assim, décadas decorridas após a introversão ex-colonial, se continuaram a ecoar feixes do discurso nacionalista do Estado Novo, verdadeiro produtor do espaço colonial africano português e da imagética dele propagandista que se tornou sobrevivente. Essa obra tem as características de súmula do percurso histórico a disseminar popularmente. Nela a identidade nacional, tal como a sua autoconsciência e o próprio patriotismo, surgem como realidades ônticas, produtos imediatos como se imanentes, pois presentes desde a formação do reino (Júdice 1992: 87). Essa identidade é apresentada como uma automática tendência para a miscigenação, esta causada pelo conteúdo moçárabe no “ser português”: “…esse momento original de convívio, em que os vencedores cristãos acabaram por se deixar vencer por alguns aspectos da civilização dos vencidos árabes. Trata-se de um traço civilizacional que acompanha a história do povo português, o qual se revela facilmente receptivo a outras culturas e a uma miscigenação…” (Júdice 1992: 25). Paula Medeiros (2005) analisou um corpo textual do final de XX, incluível neste contexto intelectual e institucional da produção discursiva na elite política portuguesa, e em algum jornalismo adjacente, aquando da formação da CPLP. É ali patente que a menção da língua (dita) comum invoca, para os países integrantes do antigo Estado colonial português, uma comunhão de “afectos”.73 A qual será potenciada pela língua mas é também (sub?)entendida como prévia. E surge convocada com efeitos pragmáticos, como base para a cooperação e articulação política entre estados e sociedades. Esse foi o período do propagandear da noção de lusofonia,74 como 72 Este pendor já marcara os grandes eventos culturais do novo regime, como a XVII Exposição Europeia de Arte Ciência e Cultura, com o tema “Os Descobrimentos Portugueses e a Europa do Renascimento”, em 1983, ou a verdadeira embaixada cultural na exposição Europália de 1991, ocorrida em Bruxelas. 73 Veja-se, como exemplo, as declarações de Fernando Cristóvão (2008), antigo presidente do ICALP – depois Instituto Camões -, que bem notam a relação umbilical entre a reforma ortográfica e o desígnio lusófono: “A maior desgraça da língua portuguesa é ter mais do que uma ortografia… Fazemos parte de uma comunidade em que tudo deve ser comum, a começar pela língua. Só que nenhuma língua tem duas ortografias e só a nossa tem essa desgraça”. 74 Faraco (2012: 42) aborda as dinâmicas do poder brasileiro, desde meados da década de 1980, assumindo o mesmo tipo de ideal, centrado numa visão plácida do passado e da comunhão linguística, inscrevendo-o na política externa pós-ditadura, promovendo a articulação no MercoSul e na CPLP. 25 instrumento deste núcleo político-intelectual, o que demonstra como o seu conteúdo ultrapassa a mera descrição linguística e comporta uma concepção programática. 11. Com conteúdos políticos diversos há outro núcleo discursivo, que digo um eixo “revolucionário”, inserível no pólo político-ideológico de “esquerda”, o qual expõe uma visão crítica do colonialismo e a consciência dos limites e condicionantes sociológicos dos saberes produzidos nesse contexto histórico. Mas que comunga, de modo implícito ou explícito, da crença na benéfica, cognoscente e até imediata convivencialidade dos portugueses aquando em África, por ela absorvendo os seus corolários metodológicos. A poluição que os eixos discursivos anteriores implicam é relativamente reconhecível no seio da nossa corporação. Mas não o é tanto a produzida neste último. Pois o ideário solidário (ou, tantas vezes, o libertário) que nele grassa é muito compatível com as ideologias dominantes na corporação profissional antropológica - e nas de outras disciplinas das ciências sociais - e com o actual paradigma da reflexividade, produzindo uma moralização das abordagens, ancorando-as na reclamada benevolência dos seus objectivos, o que potencia a sua aceitação. Nesta linha de reflexão são centrais as formulações de Sousa Santos, que apresenta a identidade cultural portuguesa como “cultura de fronteira”, forma sem conteúdo, produto de uma sociedade historicamente semiperiférica no sistema mundial.75 Por isso seria provida de um Estado frágil, relapso ao estabelecimento de projectos, assim incapaz de homogeneizar práticas internas delimitadoras de diferenciações identitárias (hierarquizadas), e de fundar uma violência programática derivada dessas hierarquizações - que instaurasse e reforçasse identidades opositivas (Santos 1994a, 1994b).76 Como corolário dessa incapacidade estatal, e social, esse autor afirma os percursos coloniais nacionais compostos de processos espontâneos, dir-se-iam rizomáticos, quais provindos de uma condição humana hobbesiana: “[Neles] Há violência, obviamente, mas é uma violência babélica, isto é, não é uma violência institucional” (em Silva, Jorge 1993: 36). Isto porque o português está desprovido das tais identidades opositivas que comportariam barreiras culturais efectivas face às 75 Para uma crítica a esta visão da sociedade colonial portuguesa, como semiperiférica, apontando-lhe a incapacidade para conceber a heterogeneidade e assimetria de um centro imperial e colonial, ver Morier-Genoud, Cahen (2013: 1-7). 76 Para a crítica a essa concepção de “Estado fraco” para o império português ver Bethencourt, Curto (2010: 12-14). 26 alteridades que encontra, assim sendo transfronteiriço pois propenso à interacção convivencial, à própria fusão existencial, cultural e cognitiva: “Isto é: nós somos, e no nosso trajecto histórico-cultural muitas vezes fomos, o outro: fomos o índio, fomos o selvagem” algo por via “[d]esta adaptabilidade que nós tivemos” (em Silva, Jorge 1993: 29).77 Estas são noções com larga aceitação social, reforçadas pela importância académica do autor no país e, também, no seio da interacção científica com África (Leite 2013).78 Essa aceitação denota o quanto elas ecoam os discursos identitários portugueses, apesar de terem sido peneiradas pelo escol da antropologia nacional, que lhes afirmou limites, essencialismo, normatividade (e teleologia) para a questão estatal e a das identidades sociais afloradas (Almeida 2000, 2007: em particular 81-89, Leal 2000: 101-104, 2006d, Pina-Cabral 2004a), e embora seja notório que secundariza a história social da emigração colonizadora (Castelo 2004, 2007, Medeiros 1990). O autor tem dois outros argumentos assentes na crença da superior potencialidade cognitiva da portugalidade em contextos africanos. Em primeiro lugar, entronca a diferença identitária portuguesa na crítica à captura da modernidade pelo capitalismo. Nesta considera a ascensão da subjectividade universal e abstracta (cartesiana) e da subjectividade individual, em detrimento das subjectividades contextuais e das comunais, como fundamental para o predomínio da teoria política liberal e dos valores mercado e propriedade individual. Isso teria permitido às forças de ordenação social encapsularem as de emancipação social – o que entende como a grande tensão do advento da modernidade –, nisso provocando a polarização e descontextualização dos fenómenos de (produção de) identidade. Ora a esta ascensão do capitalismo ordenador/repressor após XVII di-la firmada em “uma nova era de fanatismo, racismo e centrocentrismo”, que “dispensa a intervenção transformadora dos contextos, da negociação e do diálogo”, as tais subjectividades contextuais e comunitárias que antes balizariam os processos identitários. Nisso esmagou o “tolerante” “iluminismo mouro e judaico”, possível num Visão algo similar à análise dos prazeiros portugueses do Zambeze como “trans-raianos” culturais (Isaacman, Isaacman 1991), cujos lassos elos e grande distância com a sociedade de origem predisporiam a uma transumância geo-político-cultural, culminável com a fusão nos contextos vivenciados. Mas não só a extrapolação desse caso para a multiplicidade espáciosocio-temporal da expansão portuguesa é muito falível, como a complexidade do contexto histórico dos Prazos do Zambeze impede que se utiliza a categoria “portugueses” sem que se a problematize (p. ex. Capela 1995 b, 2010g). Sobre processos de construção luso-africana no noroeste africano ver Horta (2000, 2009). 78 Para o caso de Moçambique ver Santos, Trindade (2003) e Santos, Silva (2004). 77 27 Islão germinado pelo legado das civilizações africanas e o qual até originou o Renascimento cristão (Santos 1994b: 120-123). Ou seja, a modernidade capitalista, predomínio das forças de ordenação social, exigiu a excisão das positivas componentes político-culturais de origem africana (e, secundariamente, asiáticas), fontes das solidariedades contextualizadoras e comunais, tendentes às forças da emancipação social.79 Para o autor, este predomínio capitalista e das forças de ordenação social resultou de um processo produzido através das organizações estatais. Conjugando essa visão com o seu entendimento da história portuguesa, infere-se que a reclamada fragilidade histórica do Estado português implicou não só o cultural “trans-raiano”, dado à transumância sociocultural e à osmose cultural, mas também permitiu a sobrevivência de maiores forças vocacionadas para a negociação identitária contextual (as subjectividades comunais) e, assim, ao predomínio das forças de emancipação social. Podem-se assim reconhecer três itens discursivos: (a) a translação, oblíqua, da valorização corrente no inicial modernismo português do contexto “moçárabe”, agora mais alargado, visto como um “tolerante” islão africano potencialmente emancipatório, expressão mais próxima de um “afrocentrismo” e de um “indigenismo”; (b) a ideia de que as características culturais portuguesas derivam de uma fragilidade estatal sendo, por isso, mais dotadas de potencial emancipatório, pelo que positivas, no âmbito ideológico do autor; como corolário, (c) a suposição de que, por essa capacidade de negociação identitária e maior permeabilidade às forças de emancipação social, os portugueses serão dotados de uma maior predisposição cognitiva, negocial. Em segundo lugar, é visível como a sua postura metodológica implica a crença na superioridade potencial do contexto cultural português. Afirma a ciência como mais válida se produzida “numa relação eu/tu (a relação hermenêutica) do que numa relação eu/coisa (a relação epistemológica) e que, nessa medida, se transforma num parceiro da contemplação e da transformação do mundo” (Santos 1989: 11). Assim, as características culturais portuguesas - a tal forma transfronteiriça, predisposta à negociação transumante - surgem como mais propensas a estabelecer uma “relação É significativo o viés, pois se refere a importância do “iluminismo judeu e mouro” cinge-se à contribuição islâmico-africana, sendo notável que se fundamenta com uma única fonte, Black Athena de Bernal, manifesto ideológico - então em voga - da origem afro-egípcia do contexto grego-ocidental (Santos 1994b). Para uma súmula das críticas a Bernal ver Howe (1998: 193211) e ainda Lewis (1999: 725-6). 79 28 hermenêutica” (eu/tu) do que aquelas provenientes dos contextos culturais (mais) substantivos, objectivadores. Pois estes seriam mais moldados pelos Estados ordenadores, portanto menos dados à negociação e, como tal, tendentes à relação epistemológica, objectivizadora (eu/coisa), assim menos propícios às forças emancipatórias, à transformação social, inclusive através da acção científica. Reina a noção da identidade portuguesa e uma leitura da sua secular expansão que salientam a capacidade negocial, adaptativa e, assim, cognitiva dos portugueses, elidindo os processos programáticos de violência e exclusão colonizadora e colonialista. De facto, e pela conjugação de argumentos aparentemente díspares, encontra-se a reclamação da sua superioridade civilizacional (para utilizar a antiga terminologia, que não é assumida pelo autor) face aos seus congéneres europeus, ex-colonizadores. Esta visão da especificidade colonial portuguesa, como palco de menor violência que a verificada entre os outros colonialismos coetâneos e miscigenadora, num “colonialismo de cama” produtor de relações afectivas especiais, tem para Sousa Santos dimensões políticas e pragmáticas, nisso potenciando as articulações com os contextos africanos, e explicitamente a actividade científica: “Os portugueses sempre se misturam mais, embora isto não queira dizer que não tenham sido racistas como outros povos colonizadores, mas actuaram de modo diferente. Nós somos o único país colonizador em que, por vezes, adoptámos os hábitos indígenas, vivemos com indígenas e, como se diz em África, nos ‘cafrializámos’. Não se imagina, por exemplo, um inglês que se fizesse isso. Portanto, houve muito mais mistura. Obviamente que o mulato e a miscigenação de raças (o ‘colonialismo de cama’, como se costuma dizer) é uma criação deste espaço lusófono e é sobre tudo isto que a minha intervenção procura reflectir, desafiando as pessoas a pensarem que as relações pós-coloniais têm que ser diferentes e, logo, que o nosso relacionamento – enquanto comunidade científica – também deve ser distinto” (entrevista a Sousa Santos em Ferraz 2004: 4). Ou seja, estas putativas características deveriam orientar o nosso presente, no reforço da interacção académica e científica. A argumentação, e seus desígnios políticos (académicos), desnuda o quanto estas formulações transportam uma visão culturalista. Nisso implica um discurso sobre o destino de Portugal, a propensão para a interacção 29 com o – agora – “Sul”, favorecedora da libertação social.80 É notável a similitude com as narrativas identitárias prévias. 12. Apesar de tão distintos, ideológica e até socialmente, estes três eixos de promoção identitária congregam-se, incrustados nos organismos estatais e nas instâncias intelectuais. As suas crenças, as latentes e as explícitas, coligaram-se na adesão generalizada à noção “lusofonia”81 - disseminada desde a década de 1980s e depois tornada tópico central no discurso público82 -, na relação entre academia e poder político, nas instâncias culturais estatais e suas ramificações, e no quadro institucional, estatal e não-governamental, ligado à ajuda pública ao desenvolvimento, a “cooperação”,83 relevante na concepção e execução da política externa, especialmente com as antigas colónias. É certo que esta lusofonia não corresponde a uma narrativa obscurecedora de projectos neocoloniais de índole económica, de facto inexistentes em termos de efectivas dinâmicas nacionais (Cravinho 2005, Cunha 2010). Mas ao convocar, explicitamente ainda que quantas vezes utilizando uma retórica de implícitos feita, um conúbio cultural como sedimento de uma comunidade de interesses (Lourenço 1999b), ela não se restringe à mera descrição do conjunto dos falantes da língua ou à dos países de língua oficial portuguesa, como clamam alguns simplificando: “Quedemo-nos pelo significado das palavras e não criemos complicações onde elas não existem. (...) não criemos complicações onde elas não existem. (...) recordo que um lusófono é um falante da língua portuguesa” (Almeida, 2015).84 Essa é uma aparente definição cuja platitude Para uma condensação dessa visão, consagrando uma lusofonia como um espaço de “Sul” anti-hegemónico ver Gaivão (2015). 81 Para os seus pressupostos ideológicos e conteúdos políticos programáticos ver p. ex. Gomes (circa 2006), V. Santos (2004, 2005). Para exemplo do ideário multirracialista e miscigenador transitado para o domínio da língua, no seio da lusofonia, ver Pfeifer (2011). Sousa (2015) faz um extenso apanhado das posições sobre a questão. 82 Para a sua disseminação em articulação com o estabelecimento da CPLP ver Leonard (1995). 83 Para uma visão técnica desta ver Cravinho (2002). Para uma visão da relação existente entre Portugal e Moçambique nessa era, de início do regime liberal moçambicano e de estruturação do sector português de APD, coetâneo ao processo de institucionalização da CPLP, ver Oppenheimer (1994). É relevante que as formas de gestão da ajuda pública ao desenvolvimento em Portugal tenham estado, ao longo de décadas, disseminadas nos múltiplos sectores estatais (e municipais), o que implica que os agentes intervenientes não sejam especialistas de relações de cooperação internacional, sendo assim menos propícios à adesão a um pensamento crítico e mais atreitos à vocalização do ideário presente no senso comum nacional. 84 Surpreende que um intelectual da dimensão de O. Almeida negue esta evidência (2015, 2017c, 2017d, 2017e, Almeida, Braz 2012: 63-64). Mais do que a sua recusa do “complexo Lee-Whorf”, o qual vê como causa para a atribuição de outros sentidos à noção de lusofonia, ou 80 30 contém uma dimensão programática, pois inquestiona a condição lusófona alheia (Cahen 1990) e, em última análise, indiscute a questão linguística. Pois por ela se elide a heterogeneidade linguística dos países aludidos e as dimensões sociológicas dessa realidade, implicadas pelas diferentes apreensões e uso(s) da(s) língua(s) em cada sociedade e pelas estratégias de aquisição linguística que ocorrem, como se essas fossem questões culturais e políticas despiciendas.85 A ênfase na comunhão linguística, entendida com esta superficialidade sociológica, propagandeia-se no ideal do prestígio da língua portuguesa no mundo, com constantes referências à sua dimensão quantitativa, avaliada somando acriticamente o número de habitantes dos países CPLP (p. ex. Gomes circa 2006).86 Trata-se da apologia, como se de um dado “natural”, do português como grande língua internacional, assim entendida como cosmopolita, uma língua de “civilização”, para usar o termo anteriormente em voga. Discurso que transporta a, sempre indizível, desvalorização das outras línguas nacionais, assim consideradas deficitárias como instrumentos de conceptualização do real e de interacção no palco cosmopolita, dito globalizado. Algo que ecoa, ainda que sob moderna terminologia, a sua anterior subalternização enquanto meros “dialectos”.87 Nesta utilização da noção lusofonia é notório, e recorrentemente explicitado, o pressuposto de uma ligação privilegiada, uma tendencial comunhão actual, entre os seja, para a despromoção de conceito linguístico em noção política (Almeida 2017e), será o seu perfil biográfico que a isso conduz. A sua inclusão, mesmo que sociologicamente muito matizada, numa “minoria” nos EUA aparta-o de um espaço onde o termo denota uma “maioria”, até malquista, em termos de recursos históricos. Pois a relativa pertença identitária a uma imigração socialmente (auto)desvalorizada (Almeida 1987, 2018), e a ênfase na afirmação dos “estudos portugueses e brasileiros”, depois “lusófonos”, na universidade norte-americana, descentra-o da dimensão política, nisso real (e não “errada”, como reclama), que o termo e as práticas que induz contêm. 85 Sobre a heterogeneidade linguística de Moçambique e as dimensões sociológicas e políticas que acarreta ver Firmino (1998), Lopes (1997, 2002). Ver ainda Figueira (2010) sobre os processos de apreensão de línguas europeias no país e suas dimensões sociológicas actuais. 86 Em XXI a esse “prestígio” associou-se a sua valorização como item económico (Reto 2012). 87 Esse evolucionismo nota-se num feixe atitudinal. É muito relevante a inexistência de uma tradição de estudos de línguas africanas em Portugal – apesar de essa ter sido uma intenção propalada no período antecedente à “ocupação efectiva”, como o demonstrava Luciano Cordeiro (1934 [1868]) ao propor o conteúdo do “Curso Colonial” na Sociedade de Geografia de Lisboa, a inexistência de uma investigação linguística em África foi uma constante (Nogueira 1958: 17). Algo que se mantém, pois com a ausência de receptividade dos organismos públicos em apoiarem as políticas linguísticas de valorização das línguas africanas nas sociedades da CPLP. E a de qualquer preocupação na intelectualidade portuguesa relativamente ao glotocídio. E, apesar das perspectivas que remetem para a lusofonia como espaço de comunicação a desenvolver na globalização digitalizada (Martins 2014), não haver qualquer consideração da introdução das línguas bantas nesse contexto. 31 falantes e entre as suas sociedades. Ou seja, a língua (algo) comum é entendida como dínamo de interacções e também como sedimento de uma identidade comungada, produtora de coalizões de mundivisões, até da sua osmose.88 É uma crença veiculada por generalizações de puro senso comum, quantas vezes embuçadas por retóricas sob “exaltação lírico-romântica” (Faraco 2012: 41), cuja tonitruância procura assegurar um estatuto de indiscutibilidade. Uma superficialidade condensada de modo exemplar neste trecho do escritor moçambicano Mia Couto (2007): “Coexiste em nós, lusófonos, uma certa sabedoria que nos diz que a felicidade se constrói, sim, mas que também se pode ser feliz só por preguiça. (…) nós não falamos apenas uma mesma língua. Nós sentimos de modo semelhante aquilo que não pode ser dito em língua nenhuma: o peso do Tempo, o sentido da existência, uma certa ideia da eternidade.”89 É assim transparente que a noção de lusofonia secundariza as conflitualidades históricas e as multiplicidades contemporâneas. Nisso reactiva a lenda convivencial, a crença na benevolência colonial portuguesa como origem dos vínculos afectivos e culturais que propiciarão a propalada conjugação de mundivisões, como tal de sentimentos e propósitos actuais.90 88 Ver a actual defesa de lusofonia por Castro Mendes, então ministro da cultura português (Silva 2017). 89 Nessa deriva ideológica o autor retoma as teses moçarabófilas de XIX: “A comunhão linguística … trata-se de uma questão portuguesa é também africana. O que seria do idioma português se não tivesse beneficiado das contribuições linguísticas dos árabes que ocuparam e viveram na Península Ibérica? Esses árabes ajudaram a tecer este grande tapete onde se deitam as nossas almas. Esses árabes são africanos, tanto como nós, os que habitamos mais a Sul. Há séculos que o idioma lusitano é filho mestiço de namoros feitos entre as duas margens do Mediterrâneo.” A recepção entusiástica da sua obra em Portugal reflecte, para além do peculiar imaginário sobre uma “África” que nela se (re)produz, esta comunhão, irenista, entre a peculiar “poética” coutiana e a “sensação” portuguesa sobre o pós-império, estatalmente veiculada e produzida pelas elites intelectuais portuguesas. 90 Pina-Cabral prefere recorrer ao termo “lusotopia”, nisso querendo desmontar o vínculo entre língua, cultura e nação, procurando retirar a dimensão espacial, cartografável – de facto, tentando elidir a dimensão política – ao termo alternativo “lusofonia”. Nessa “lusotopia”, uma noção “mole”, alude a uma rede, preferencial pois mais intensa, de intercomunicação humana, fundada em emoções, dado que constituída por uma “identidade continuada” – isto é, uma susceptibilidade para reconhecer certa proximidade movida por um passado comum” (PinaCabral 2010a: 13), derivada da história portuguesa, mas exercida optativamente. Apresentada como tal a noção é completamente infalsificável. Ou seja, pessoas (ou grupos) que tenham tido alguma conexão histórica com a expansão portuguesa – mesmo que não dominem a língua – podem optar (ou não) por ter interacções mais amistosas com outras que partilhem dessa condição. Não se pode negar isto. Muito mais interessante do que esta aparente placidez irenista é atentar como o texto é construído: mais uma vez a tal lusotopia é vista como uma alternativa à globalização, avessa à unipolaridade (esse fantasma que perseguiu os intelectuais no mero quarto de século após a queda do mundo comunista e que estará na actualidade a entrar em pousio, com a elevação de outras potências). E nela surge também, apesar de aparentar retirar a noção do âmbito 32 13. A propriedade da noção lusófona de colher em Portugal a adesão em díspares eixos ideológicos advém de como nela se congrega parte significativa dos discursos identitários portugueses. Esse caldear assenta na relativa confluência das interpretações sobre a situação colonial durante o período final do Estado Novo. A resistência do regime em prescindir das colónias91 foi acompanhada, até um período muito tardio, da relutância da oposição não-comunista em considerar o fim do império, ainda que disseminando posturas pacifistas (Bebiano 2002, Ramos 2007).92 Os diferentes eixos analíticos confluíram em extirpar do regime colonial a dimensão de apropriação económica, como se que retirando aos portugueses uma racionalidade lucrativa em contextos africanos. Operação que tendia a consagrar, por diferentes meios, uma homologia, verdadeira comunhão, entre portugueses e populações colonizadas. Esta interpretação teve matizes, pois em alguns meios oposicionistas vingou a ideia de que as forças motrizes do regime colonial não eram dinâmicas económicas endógenas, reduzindo o país a mero intermediário sob o jugo das potências estrangeiras. Algo que Ramos (2007: 451-454) ancora nas ideias de Cunhal, expressas em meados de 1960s, e presente na historiografia que aventava o papel constritor de desenvolvimento nacional que a expansão ultramarina havia tido.93 O que alimentou as análises dependentistas posteriores, centradas no estatuto, pretérito e actual, dominado e semiperiférico português. O corolário daquela visão foi, e continua a ser, a afirmação de uma similitude entre colonizados e portugueses, ambos vitimizados pela história. Foi nesse contexto intelectual que o primeiro-ministro português Gonçalves reclamou, na cerimónia da independência de Moçambique, a inexistência de racismo e a de qualquer linguístico, a mistificação dos efeitos positivos – frutificadores - dessa “comunidade” (destas associações voluntárias) na língua e no sentimento comum: “Por exemplo, nos últimos dez anos a melhor ficção escrita em português não tem vindo de Portugal ou do Brasil, mas sim da África.” (17), uma elaboração sem qualquer fundamento. Tudo sedimentado num manifesto de registo onírico: “Assim, quando um bebê no Brasil balbucia as suas primeiras palavras, estas produzem ecos que reverberam por todo o mundo e que, por assim dizer, constituem harmonias sempre que ocorre lusotopia.” (15). De facto, e basta atentar em todos os exemplos que apresenta, radicalmente luso-centrados, do que o autor fala é das inter-relações entre os portugueses actuais e indivíduos e/ou grupos que integrem sequelas da expansão portuguesa. E em assim sendo é possível que as memórias históricas possam servir para intensificar interacções. Ou não … Mas de fora da sua reflexão, e do feixe de ilustrações que a suporta, ficam todos os outros feixes de possíveis interacções. 91 Ainda que na sua cúpula existissem defensores do alijar das colónias, por razões pragmáticas (Ramos 2007: 436-7). 92 Sobre a posição comunista ver nota 19. 93 Concepções associáveis às teses de então do “colonialismo reflexo”. Ver nota 43. 33 objectivo económico português pretérito, dado que “O povo português também foi colonizado por Salazar e Caetano", homologia que o irmanava com as ex-colónias, num “temos um destino comum” (Ramos 2007: 457, 472).94 Destino comum que havia sido também proclamado pelo Estado Novo no período tardo-colonial. Salazar - adoptada que fora a extrapolação luso-tropicalista que Freyre fizera da sua análise à história brasileira - anunciara que a articulação colonial independia da dominação política, resumindo-a a projecto sociocultural, constitutivo de "uma forma de vida e um estado de alma … [uma] convivência amigável". Tratava-se de uma interculturalidade solidária, na qual restava aos portugueses a liderança – presumivelmente temporária – no processo de maturação dos povos, a assimilação que os ascenderia à condição de cidadãos de um Estado multicultural. O futuro estaria além da ordem jurídico-política imperial, a qual, a seu tempo, se tornaria desnecessária, e seria o da inter-relação preferencial, uma comunhão espiritual calibrada – como anunciava Francisco Cunha Leal - pela continuidade da tarefa assimiladora, uma “obra civilizadora” consistindo inclusive na “criação de novas nacionalidades”, sendo isso “um direito [pátrio] que é também um dever” e “nova finalidade histórica”, “a criação de uma Comunidade de Estados” (Leal 1961: 23-24). Comunhão cujo sedimento já não seria o poder político, mas sim a partilha da língua portuguesa (Ramos 2007: 451-475). 14. É notória a transição destes feixes nocionais para o ambiente intelectual (e político) português após o final do regime colonial, coligadas sob o epíteto da lusofonia, esta entendida como matriz de relacionamento com o ex-império. No seu âmago é uma deambulação do nacionalismo português, desde há séculos ocupado, nas suas diversas formas – e como referi acima –, em fundamentar-se através da extroversão pátria. E que surge, nesta época história, mesmo quando sob veemente retórica anticolonial (Neves 2000, 2003), a dirimir a preocupação com o país como se este mirrado após o ocaso colonial.95 Este fruto da cópula entre o pensamento do Estado Novo e o da sua oposição, sobre um leito de auto-representações seculares, tratou de instituir algo como um tardio “novo império da geolinguística compensatória” alimentado de um “luso-tropicalismo genérico” (Almeida 2000: 182, 2007: 102), sobre o qual se nidifica um anseio sobre o conteúdo do relacionamento internacional, instaurando-se o vínculo linguístico - neste Para a utilização do mesmo mote dentro desse arco político-ideológico, apresentando o povo português como colonizado, ver p. ex. Coelho (1975). 95 Ver Almeida (2000), Cahen (2010b), Margarido (2000a), Lourenço (1999b, 1999c, 1999e). 94 34 caso a noção lusófona -, como verdadeiro artefacto de acção política (Bourdieu 1998b: 135). Já referi que a construção da imagem portuguesa na iconografia da lusofonia convoca, retóricas à parte, o esquecimento das dimensões sociopolíticas de apropriação da língua, bem como assume que esta implica a partilha de um qualquer património cultural, e sentimental. Trata-se de uma perspectiva reificada de cultura, como se esta seja um item patrimonial e não um feixe de relações, enquanto fenómeno social. E, num outro âmbito, exige uma higienização da história, na elisão das componentes de exacção económica, de dominação política, de disrupção cultural e religiosa, de opressão racial. Processos que permitem o anúncio da homologia dos estatutos actuais dessas sociedades, unidas por afectos históricos mas também pela mesma situação vitimizada face à exploração “estrangeira”, a globalização. Essa fusão das representações tardocoloniais, actualizada para o discurso actual, surge condensada neste tom onírico: “O que se espera dela [lusofonia] é que seja mátria, e também frátria, como espaço de iguais, por terem a mesma origem (...) tem virtualidades estratégicas, para (...) povos que falam Português. Os países lusófonos encontram-se, hoje, do mesmo lado da barricada, de países dominados e em permanência empurrados para a periferia da globalização hegemónica. Comum subalternidade que deveria levar a uma circumnavegação ...” (Martins 2017). Ou seja, nestas operações se pacifica o passado e obscurece o presente. Nisso se querendo iluminar o futuro … Tudo isto reflecte um nítido caso de nostalgia colonial,96 quantas vezes inconsciente, um profundo mal-estar com a diluição do papel de referência de Portugal. Consiste num finca-pé irrealista, por mais rebuscadas que sejam as retóricas multiculturalistas, esses epígonos da velha crença multirracial, quanto à sua condição tutelar no relacionamento com os países emanados do antigo império. De facto, trata-se da tradicional aversão portuguesa ao pensamento liberal, da incapacidade de aceitar, face a cada um desses países, aquilo que já em 1796 George Washington (2009 [1796]: 60) diagnosticara para os contextos posteriores aos regimes coloniais: “Uma ligação apaixonada de uma nação a outra produz uma série de males. A simpatia pela nação favorita, facilitando a ilusão de um interesse comum imaginário (…) leva a conceder à nação favorita privilégios que são negados a outras, o que prejudica (…) a nação que faz as concessões”. Algo que está na base do entendimento das relações internacionais 96 Sobre “nostalgia colonial” ver Bissell (2005). 35 actuais, mas que o mito lusófono, em contraciclo com a efectiva deriva portuguesa, resiste a compreender. É certo que, na realidade, este sentimento de perda e concomitante ladainha identitária nem sequer vêm sendo monopólio português, pois trata-se de um resquício pós-imperial, dado que este tipo de formulações sempre remete, à escala, para o que V. S. Pritchett (2003: 11) escreveu em 1962: “[London] it has been, until a mere fifteen years ago, the capital of the largest world empire since the Roman and, even now, is the focal point of a vague Commonwealth. It is the capital source of a language now dominant in the world. Great Britain invented this language; London printed it and made it presentable. At the back of their minds (...) Londoners are very aware of these things and are weighed down by them rather than elated.”. 15. Duas décadas após o processo da institucionalização da CPLP e do propagandear da noção lusófona, Real (2012) refere de que sobre ela já tudo foi dito e que só falta realizá-la, facto ao qual se poderá ligar a complexidade do seu conteúdo (Falconi 2013).97 De facto, a noção desde cedo, já em finais de XX, foi criticada por Lourenço e Margarido de uma forma algo suficiente. E desde então originou vastíssima literatura,98 como efeito da ênfase das instituições estatais na temática e da voga de análises das representações no meio académico. O que tornará este excurso que aqui adianto algo espúrio. Mas o qual me é necessário para enquadrar a minha concepção, a de que não considero a aludida lusofonia como complexa. Mas sim indefinida, pois sujeita a derivas voluntaristas, dado que utilizada consoante o locutor, desde a mais neutral agregação de falantes (Almeida 2015), passando pela transposição de uma comunidade de Estados (Guedes 2012) ou um sonho irenista de conjugação das sociedades civis desprovida de centralidade portuguesa (Martins 2014). Entendo que a lusofonia não está por realizar nem é complexa. Existe, realizada, pois, de facto, consiste apenas na constante activação destas auto-representações identitárias portuguesas. A história que a compôs foi complexa, os fenómenos sociais em que decorre são complexos, mas em si mesma não se trata mais do que os efeitos estruturantes deste conglomerado nocional nas práticas existentes. E, também, nas múltiplas versões da projectada “lusofonia”, enquanto veras práticas ideais. Por isso 97 98 Ideias realçadas por Sousa (2013: 92). Ver Sousa (2015) para uma análise extensa. 36 referi acima ser esta temática ainda abordável no âmbito de uma antropologia do colonialismo. É interessante que um ponto fundamental para a sua real activação seja a reclamação pelos seus defensores de que é necessário abandonar as velhas categorias, os elementos conflituais da memória histórica. E se para outros agentes sociais essa noção surge como inaceitável – como para os contextos africanos frisam Cahen, Matos (2018) –, pois se recusam a perfilar-se na comunidade cultural, de sentimentos, memórias e objectivos que ela postula, os locutores dessa difusa e polimorfa lusofonia, consideram que tal se deve apenas a um “ressentimento” – ou mesmo uma freudiana denegação (Pina-Cabral 2010a: 10). Qual efeito de um atavismo africano incapaz de ultrapassar o peso da história. Ou seja, os crentes e paladinos de uma noção – a lusofonia - cujo substrato é a sobrevivência das antigas (auto-)representações e da visão da história que estas transportam, exigem aos outros (às alteridades desejáveis) que abandonem as suas auto- e exo-representações. Em suma, que se assimilem. Ao pensar e sentir lusófono, português. Como espaço cosmopolita, alter-globalista. Entenda-se, como civilização, porque é disso que se trata. A perenidade da mundivisão é, essa sim, evidente. E abissal, em termos epistemológicos. É também nesse sentido que as reacções à utilização da noção são inseríveis no mesmo âmbito, o de uma antropologia do colonialismo, pois refractam (e mesmo reflectem) as experiências históricas no seio da “comunidade imperial”. Na vinheta com que encetei este texto referi a emergência da noção de bantofonia, brandida como reacção ao postulado lusófono. Raras vezes a encontrei explicitada, para além da mera descrição linguística - e mesmo nesse sentido é raro ser usada. E não faz parte dos conceitos elaborados para descrever ou imaginar comunidades internacionais africanas, não surge como sucedâneo dos ideários que elevaram o pan-africanismo ou a negritude, ou mesmo o mais recente conglomerado ideológico da “renascença africana”. 99 A sua emergência, em contextos moçambicanos, surge apenas em registo confrontativo face às proclamações lusófonas. E isso significa que é a insistência portuguesa na proposta lusófona que faz activar outros recursos identitários, e mesmo à sua criação. 99 Para uma rara proclamação passada a texto ver as declarações de Nataniel Ngomane em Fortuna, Ngomane (2011). Essa escassez de referências pode ser ilustrada pela ausência do conceito na recente colectânea sobre pensamento africano (Macedo 2016). Sobre a “renascença africana” ver Mangu (2006). 37 16. Ao longo dos anos, nas minhas actividades como funcionário estatal, consultor ou cooperante do Estado português, ou apenas como cidadão observador, muitas vezes deparei com a miopia, a hipermetropia e o astigmatismo produzidos pelo ideário lusófono, seus radicais desajustes atitudinais e corolários de desentendimento analítico e de condução de projectos falhados, exsudando uma profunda incapacidade de compreensão do real circundante. Essa experiência poderia convocar a realização de uma “etnografia da lusofonia”, a “descrição densa” das interacções decorridas sob a influência desse ideário, descentrando-me da análise das representações em prol de uma (necessária) abordagem às práticas que delas derivam. E as fazem sobreviver. Ou então apenas socorrer-me da miríade, quase infinda, de episódios que a mais distraída visita às minhas memórias logo convocam. E nisso ornamentar o texto com ilustrativas “vinhetas etnográficas”. Uma opção que, em termos estilísticos, poderia ser interessante. Mas seria espúrio como modalidade de diálogo com os adeptos da causa lusófona. Pois ela não só é indeterminada, num “a cada cabeça a sua sentença”, como é radicalmente infalsificável. Não há como negar uma fé. A não ser que o crente já descreia. Ou o clérigo vá já reformado – até porque muito do afã defensor desta noção advém das remunerações económicas e estatutárias destinadas aos clérigos, e devidas e promovidas pelo interesse estatal neste eixo discursivo. E assim sendo, tudo o que se possa aduzir enfrentará sempre a simples negação por parte dos militantes crentes, a de que “isso”, aquilo que se refere, ao que alude, “não é a lusofonia”, que quando muito serão “erros” alheios ao cerne da proposta. De facto, tudo isto se trata apenas o raciocínio típico de uma imaginação émica que se julga e reclama ética, para se usar os velhos termos. Ainda assim deixo, como quase conclusão, uma vinheta, que condensa o que procuro dizer: *** Em finais de XX uma comitiva de sete artistas plásticos portugueses, integrantes da associação Lugar do Desenho e encabeçados por Júlio Resende, apresentou uma exposição em Maputo.100 Por obrigação profissional estive presente na inauguração. 100 A exposição Desenho como Dizer, com obras de Armando Alves, Francisco Laranjo, Júlio Resende, Manuel Casal Aguiar, Marta Resende, Victor Costa e Zulmiro de Carvalho, apresentada em 1999 no Instituto Camões de Maputo. 38 Para a inauguração havia sido convidado o ministro da Cultura, o mesmo que aludi no início, Mateus Kathupa. Proferiu um breve, simpático e caloroso, discurso de inauguração, num ambiente muito agradável, e até sublinhado por se saber que os artistas seguiriam para a Ilha de Moçambique para nela trabalharem, isto num período em que esta era assunto em voga, dado que a UNESCO preparava um projecto para a sua reabilitação, inscrito na então ainda recente classificação como património mundial. Perto do final do seu discurso o ministro referiu, sorridente, que “muitos dizem que nós [moçambicanos e portugueses] somos irmãos. Mas nós não somos irmãos, somos cunhados …”. Julguei deliciosa essa formulação, e preenchida de sageza. Depois seguiu-se o tradicional beberete e, após breve convívio, o ministro partiu. Fui então abordado por vários compatriotas ali presentes, até em número inusitado, que haviam sido atraídos à iniciativa pelo prestígio dos artistas presentes. Logo comentaram a(quela)s palavras do ministro, que haviam colhido o generalizado apreço. E delas tinham tirado a óbvia conclusão, a de que ele tinha, com afabilidade e até ironia, “piscado o olho” à histórica tendência miscigenadora dos portugueses, despreconceituosos “inventores da mulata” que somos, pois dotados da “pica moçárabe”. Ali os desiludi. Dizendo-lhes que “o homem é macua” – não tendo considerado ser o sítio e o momento para fugir ao senso comum, e elaborar sobre o quão rústico é invocar identidades étnicas de modo tão simplista. E adiantei que entre os macuas a norma residencial é matrilocal (deixando o termo “uxorilocal” para os textos intracorporativos). Mas ainda assim coube-me explicar o sentido do termo, ali por todos desconhecido. “Ah, pois é, ainda têm matriarcado”, foi o que recebi de volta, habituais que são esses resquícios do evolucionismo, avivados pelo feminismo mais superficial que vai grassando. Lá repliquei, brevemente, que nem tanto, mas nem consegui adensar a interpretação, sublinhar o que aquelas breves palavras implicitavam, aquilo do “ser cunhado” em contexto uxorilocal, dito entre homens como é óbvio, isso de “estar na casa alheia”, de viver na terra dos outros, de com eles negociar constantemente a permanência e nisso ir aceitando os constrangimentos impostos. Nada disso avancei, pois a conversa seguiu outros rumos. Mas ficou-me a memória do momento. Que tal declaração, simpática mas também de elegante profundidade, fosse acolhida como uma mera da erotização do social. E que, em sendo algo explicitada, convocasse a exotização. E nesta avivando os estereótipos, quase sempre eivados de evolucionismo. 39 Ficou então por explicar que se somos “cunhados” o que nos une não é uma comunhão espiritual prévia, um feixe de afectos. Presume-se a existência de códigos algo partilhados, que permitam a constituição de relações de aliança segundo os objectivos perseguidos, comuns ou até divergentes. Alianças negociáveis, e rompíveis, no curto e no longo prazo. A propensão para as realizar depende, em grande medida, das representações existentes sobre os outros, construídas na vizinhança e na história, que a uns farão preferenciais e a outros até proibitivos. E uns dos vectores das ponderações sobre que tipo de opções estratégicas assumir na constituição de um feixe plural de aliados são as formas como esses outros se adequam a essas categorizações, delas estão conscientes, a elas as ultrapassam ou aprimoram. Ou seja, com os “cunhados”, com os aliados, temos relações políticas, não um magma de afectos mas um conjunto constantemente reanimado de interesses potencialmente comuns ou conflituais. E nessas relações políticas até podemos criar afectos. Mas esses vêm depois. É esta a única vinheta que julgo necessária. *** 17. A minha repulsa pela noção lusofonia não se me ancora em posições éticas ou político-ideológicas. É-me uma posição pragmática, devida à sua incompetência analítica, produtora de desconhecimento sobre as realidades actuais. Salientei que tem uma dimensão política, ou seja, que promove prejuízos políticos,101 ao presumir uma trans-afectividade e uma comunhão de objectivos entre os contextos de língua portuguesa. Mas, de facto, essa é-me uma questão secundária no âmbito deste trabalho. Como acima referi o que me é verdadeiramente relevante, e por isso convoquei este tema, é o modo como este perene misticismo sobre a “originalidade” nacional alimenta a noção, quantas vezes inconsciente, de uma peculiar propensão cognitiva portuguesa, de capacidades sobre-apreendedoras do real devido ao seu capital afectivo disponível. Assim mitifica o campo de investigador de terreno, manipulando uma concepção de conhecimento como produzido numa relação marcada pela crença Para uma crítica emanada do contexto diplomático, invectivando a “puerilidade” da noção e o “dogmatismo” com que continua a ser acolhida, incapaz de compreender as diversidades contextuais e de reconhecer o “sub-texto histórico” que transporta, ver Lourenço (2015). 101 40 culturalista e reforçada na perspectiva empiricista, esta reforçada até à exaustão pela tal ideia de convivencialidade portuguesa.102 Pois, de facto, o fundamental é olhar criticamente para o que tantas vezes ouvi – e o qual surge, sistematicamente, expurgado dos textos - aquilo do ““eles” connosco abrem-se mais...”. Um “eles” que é, como é tão óbvio, um verdadeiro programa ideológico. Inconsciente. E um pântano, intelectual. Lusófono. E foi a disciplina necessária para isso evitar, para disto me expurgar, que eu aqui, desta torturada maneira, recordei. Sabendo que, por muitos insucessos que me tenham ocorrido, nesta matéria não falhei. Referências Bibliográficas Alexandre, Valentim, 1979, Origens do Colonialismo Português Moderno. Lisboa: Sá da Costa. Alexandre, Valentim, 1995a, “A África no imaginário político português, (séculos XIXXX)”, Actas do Colóquio “Construção e Ensino da História de África”, Lisboa: Grupo de Trabalho do Ministério de Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 231-244. Alexandre, Valentim, 2000a, Velho Brasil, Novas Áfricas: Portugal e o Império (18081975). Porto: Afrontamento. Alexandre, Valentim, 2000d (1998), “O império colonial no século XX”, Velho Brasil, Novas Áfricas: Portugal e o Império (1808-1975). Porto: Afrontamento, 182-198. Alexandre, Valentim 2000g (1996), “Questão nacional e questão colonial em Oliveira Martins”, Velho Brasil, Novas Áfricas: Portugal e o Império (1808-1975). Porto: Afrontamento, 163-179. 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