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2024, n. 41 (2024): Derrida Hoje: Perspectivas da Desconstrução Vol. II

https://doi.org/10.59488/itaca.vi41

O objetivo deste artigo é provocar uma reflexão para a questão do sujeito, a partir da entrevista ‘Il faut bien manger’ ou le calcul du sujet de Jacques Derrida, concedida a Jean-Luc Nancy e publicada no ano de 1989 na revista francesa Cahiers Confrontation n° 20. Para cumprir nossa proposta, inicialmente apresentaremos as reflexões de Derrida sobre a pergunta “Quem vem depois do sujeito?”. Veremos em que sentido o pensamento de Derrida diverge dos discursos que proclamam a liquidação do sujeito. Posteriormente, pretendemos mostrar que o deslocamento da questão do sujeito pode resultar na necessidade de repensar as fronteiras que separam o animal humano do animal não-humano. Dessa forma, a questão concernente ao sujeito aparece intrinsecamente associada às estruturas que asseguram os limites entre o ser humano e o animal. É a partir deste ponto que desenvolvemos a noção de metonímias do comer bem. Para isso, entendemos ser de extrema importância trazer para nosso diálogo a obra Paixão segundo G.H., da escritora Clarice Lispector, para compreendermos a abertura que Derrida e Clarice oferecem para pensarmos o tema da alteridade, hospitalidade e, de forma mais específica, as metonímias do comer bem.

DERRIDA E LISPECTOR: AS METONÍMIAS DO COMER BEM DERRIDA E LISPECTOR: AS METONÍMIAS DO COMER BEM Adriano Negris1 e Pâmela Bueno Costa2 RESUMO O objetivo deste artigo é provocar uma reflexão para a questão do sujeito, a partir da entrevista ‘Il faut bien manger’ ou le calcul du sujet de Jacques Derrida, concedida a Jean-Luc Nancy e publicada no ano de 1989 na revista francesa Cahiers Confrontation n° 20. Para cumprir nossa proposta, inicialmente apresentaremos as reflexões de Derrida sobre a pergunta “Quem vem depois do sujeito?”. Veremos em que sentido o pensamento de Derrida diverge dos discursos que proclamam a liquidação do sujeito. Posteriormente, pretendemos mostrar que o deslocamento da questão do sujeito pode resultar na necessidade de repensar as fronteiras que separam o animal humano do animal não-humano. Dessa forma, a questão concernente ao sujeito aparece intrinsecamente associada às estruturas que asseguram os limites entre o ser humano e o animal. É a partir deste ponto que desenvolvemos a noção de metonímias do comer bem. Para isso, entendemos ser de extrema importância trazer para nosso diálogo a obra Paixão segundo G.H., da escritora Clarice Lispector, para compreendermos a abertura que Derrida e Clarice oferecem para pensarmos o tema da alteridade, hospitalidade e, de forma mais específica, as metonímias do comer bem. PALAVRAS-CHAVE Metonímias do comer bem; Alteridade; Derrida; Clarice Lispector. RESUMEN El objetivo de este artículo es suscitar una reflexión sobre la cuestión del sujeto, a partir de la entrevista ‘Il faut bien manger’ ou le calcul du sujet de Jacques Derrida, concedida a Jean-Luc Nancy y publicada en 1989 en el número 20 de la revista francesa Cahiers Confrontation. Para cumplir nuestra propuesta, presentaremos inicialmente las reflexiones de Derrida sobre la pregunta “¿Quién viene después del sujeto?”. Veremos en qué sentido el pensamiento de Derrida diverge de los discursos que proclaman la liquidación del sujeto. Posteriormente, pretendemos mostrar que el desplazamiento de la cuestión del sujeto puede dar lugar a la necesidad de repensar las fronteras que separan al animal humano del animal no humano. De este modo, la cuestión del sujeto aparece intrínsecamente ligada a las estructuras que aseguran los límites entre el hombre y el animal. Es a partir de este punto que desarrollamos la noción de metonimia del comer bien. Para ello, nos parece sumamente importante introducir en nuestro diálogo La pasión según G.H., de Clarice Lispector, con el fin de comprender la apertura que Derrida y Clarice ofrecen para pensar el tema de la alteridad, la hospitalidad y, más concretamente, las metonimias del comer bien. 1 Doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor Adjunto do Departamento de Educação da Faculdade de Formação de Professores – FFP-UERJ. Professor colaborador do Programa de Pós-graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva - PPGBIOS. 2 Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 199 Adriano Negris e Pâmela Bueno Costa PALABRAS CLAVE Metonimias del comer bien; Alteridad; Derrida; Clarice Lispector. Jamais se come totalmente sozinho, eis a regra do “é preciso comer bem”. É uma lei de hospitalidade infinita. (Jacques Derrida) A barata me tocava toda com seu olhar negro, facetado, brilhante e neutro (Clarice Lispector) Notas preliminares Na longínqua época dos anos 1980 o filósofo Jean-Luc Nancy organizava uma pesquisa em torno da questão da subjetividade. O seu objetivo era refletir, principalmente, sobre um tempo em que se proclamava a morte do sujeito, mas, de forma paradoxal, ainda se identificava um retorno de discursos acerca da subjetividade, cada vez mais revitalizados. O projeto de Nancy sobre a subjetividade tinha como fio condutor a pergunta “Who comes after the subject?” (“Quem vem após o sujeito?”). A partir dessa pergunta central, Nancy procurava instigar a comunidade filosófica ao debate sobre os limites, o valor e a estrutura da questão do sujeito, bem como sobre o alcance de um discurso que decretava simplesmente a liquidação do sujeito. Na esteira desse questionamento (Quem vem depois do sujeito?), se manifestaram Etienne Balibar, Gilles Deleuze, Maurice Blanchot, Philipe Lacoue-Labarthe, Sarah Kofman, Jean-François Lyotard, Jacques Ranciére, Jean-Luc Marion, entre outros. O filósofo franco-argelino Jacques Derrida apresentou sua resposta a pergunta de Jean-Luc Nancy sob a forma de entrevista, que foi intitulada “Il fault bien manger” ou le calcul du sujet3, publicada no inverno de 1989 na revista francesa Cahiers Confrontation n° 20. Ao tomar em consideração as reflexões feitas por Derrida em Il fault bien manger ou le calcul du sujet, neste trabalho apresentaremos algumas considerações acerca daquilo que denominamos de metonímias do comer bem. Para realizar a tarefa proposta, dividiremos nossa abordagem em duas etapas. 3 O “Il fault bien manger” o le calcul du sujet (É preciso comer bem ou o cálculo do sujeito) é um dos textos que integra o opúsculo Points de suspension (1992). O referido texto é redigido na língua francesa e todas as citações diretas do texto original foram traduzidas para o português (tradução nossa). 200 Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 DERRIDA E LISPECTOR: AS METONÍMIAS DO COMER BEM Na primeira parte deste texto, pretendemos apresentar as reflexões de Derrida sobre a pergunta “Quem vem depois do sujeito?”. Veremos que Derrida se mostrará muito mais inclinado não para a eliminação do sujeito, mas para um discurso de deslocamento de uma concepção tradicional desse conceito. Desse modo, ao que parece, Derrida diverge de outros discursos filosóficos que sustentam o simples ultrapassamento ou a liquidação do sujeito. Contudo, notamos que Derrida tenta entender o que ainda persiste da estrutura do sujeito clássico e o que é continuamente requisitado pela pergunta “quem?”. Observamos, ainda, que a preocupação do filósofo franco-argelino se concentra em verificar na pergunta “Quem vem depois do sujeito?”, quem ou o quê é que “responde” à pergunta “quem?” Na segunda parte deste trabalho, buscamos apontar como o deslocamento da questão do sujeito pode resultar na necessidade de repensar não só os limites que circunscrevem as noções de ser humano e humanidade, mas também as fronteiras que separam o animal humano do animal não-humano. Dessa forma, a questão concernente ao sujeito se mostrará intrinsecamente ligada ao animal, bem como as demais estruturas de hierarquização e violência que asseguram os limites entre o ser humano e o animal. É a partir deste ponto que desenvolvemos a noção de metonímias do comer bem. Para isso, entendemos ser de extrema importância trazer para nosso diálogo a obra Paixão segundo G.H., da escritora Clarice Lispector, para compreendermos a abertura que Derrida e Clarice oferecem para pensarmos os temas da alteridade, hospitalidade e, de forma mais específica, as metonímias do comer bem. Quem vem depois do sujeito? Na pergunta feita por J-L. Nancy (“Quem vem depois do sujeito?”) Derrida, desde logo, aponta a inserção de duas fórmulas que se fazem problemáticas. A primeira consiste no fato de que na pergunta “Quem vem depois do sujeito?”, o “quem” poderia vir a representar uma gramática que não mais estaria submetida ao sujeito. A segunda fórmula, segundo Derrida, é aquela que aponta para um discurso que conclui pela liquidação do sujeito4. 4 O filósofo franco-magrebino identifica mais comumente dois tipos de discursos que são igualmente confusos. Existem aqueles que supõem a identificação do sujeito, bem como aqueles que sustentam a superação desse sujeito. Pelo menos desde meados do século XX, a questão do sujeito foi tratada das mais diversas formas, contudo, não se buscou eliminar ou liquidar o sujeito como tal. Defender a ideia de uma liquidação do sujeito conduz não só a um equívoco ou ilusão, mas também exige uma performatização da promessa de reabilitação do sujeito. Derrida menciona, por exemplo, que nos discursos de Lacan, Althusser e Foucault (e os pensamentos que esses três filósofos privilegiam: Freud, Marx e Nietzsche), o sujeito aparece como algo re-inscrito, mas certamente não liquidado (DERRIDA, 1992, p. 271). Lembra Derrida que o mesmo fenômeno se passa com Heidegger. A interrogação ontológica que trata do subjectum em suas formas cartesianas e pós-cartesianas é tudo, menos uma liquidação do sujeito. Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 201 Adriano Negris e Pâmela Bueno Costa Então, poderíamos dizer que há dois problemas que se inscrevem de forma sub-reptícia na pergunta de Nancy: 1) o que diria o “quem” fora de uma gramática subordinada ao sujeito e 2) a possibilidade de eliminação efetiva do sujeito. Sobre o tema do sujeito e sua suposta liquidação, Derrida aponta a existência de uma espécie de efeito dóxico (l´effet doxique), uma espécie de doxa, que insistiria numa afirmação que atuaria como uma palavra de ordem5. Para os que propagam esse efeito dóxico diagnosticado por Derrida, os discursos de Lacan, Althusser, Foucault, principalmente o de Heidegger, teriam colocado o sujeito para trás deles, o que significa dizer que esses pensadores superaram ou ultrapassaram o sujeito, liquidando-o. Assim, para Derrida, essa espécie de doxa se apropria do discurso de alguns pensadores para proclamar, de forma apressada, a liquidação do sujeito. Todavia, em que pese a força desse efeito dóxico, é preciso estar atento às sutilezas e armadilhas que envolvem a questão do sujeito e, por isso, Derrida lembra que: O Dasein é irredutível a uma subjetividade, certamente, mas a analítica existencial conserva ainda os traços formais de toda a analítica transcendental. O Dasein e aquilo que responde a pergunta “quem?”, vem, deslocando certamente muitas coisas, a ocupar o lugar do “sujeito”, do cogito ou do “Ich denke” clássico. Ele preserva certos traços essenciais (liberdade, decisão-resoluta, para retomar esta velha tradução, relação ou presença a si, “apelo” (Ruf) sobre a consciência moral, responsabilidade, imputabilidade ou culpabilidade originária (Schuldigsein), etc.). E quaisquer que tenham sido os movimentos de Heidegger depois de “Sein und Zeit” e depois da analítica existencial, nada foi deixado “para trás”, “liquidado” (Derrida, 1992, p. 272) Para além de uma leitura equivocada sobre a liquidação do sujeito, Derrida entende pela necessidade de um desvio, de tal modo que o foco se mantenha centrado em outras questões, tais como: o que ocorre com as problemáticas que pareciam pressupor uma 5 Sobre a opinião filosófica que gravita em torno da questão do sujeito, segue o esclarecimento de Paulo Cesar Duque-Estrada: Seria de se esperar então que, em resposta à pergunta de Nancy – quem vem após o sujeito? –, Derrida viesse a oferecer um outro sujeito, modificado, ressituado, renovado após o seu questionamento. No entanto, [...] Derrida irá, ao invés, problematizar o “quem” da pergunta de Nancy, recusando-se a oferecer um discurso que incida diretamente sobre o sujeito, seja antes ou depois do seu questionamento. A razão de tal procedimento é também antecipada, de imediato, por Derrida. Segundo ele é preciso se precaver contra uma doxa que comanda a própria formulação da questão [...] É preciso, portanto, evitar o pensamento confuso de uma doxa, de uma “opinião filosófica”, como ele diz. O cerne da confusão consiste em permanecer e insistir na consideração de um suposto algo como O Sujeito. Ora, dirá Derrida, “jamais houve para quem quer que seja O Sujeito”. Talvez o texto que melhor aponte para o embasamento desta sua afirmação seja Voz e Fenômeno, dedicado a uma leitura de Husserl. Pode-se dizer que Derrida se propõe ali a explicitar as várias formas de não presença que são constitutivas da suposta presença a si do sujeito husserliano (Duque-Estrada, 2010, p. 6). 202 Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 DERRIDA E LISPECTOR: AS METONÍMIAS DO COMER BEM determinação clássica do sujeito? Quem ou o quê é que “responde” a pergunta “quem?”, ou seja, Derrida está preocupado em problematizar o “quem” da questão, deixando de lado uma investigação sobre um posicionamento preciso para o sujeito. Com efeito, a crítica de Derrida se dirige muito mais àquelas filosofias que concluíram pela liquidação do sujeito de maneira muito apressada. E, quando indagado se pretendia reformular a questão (Quem vem depois do sujeito?), conservando na palavra “sujeito” um uso positivo, Derrida responde que desejaria manter provisoriamente essa palavra como um índice da questão (questão do sujeito). No entanto, Derrida não vê necessidade de se conservar a qualquer preço a palavra sujeito, “sobretudo se o contexto e as convenções dos discursos correrem o risco de reintroduzir aquilo que está justamente em questão” (Derrida, 1992, p. 274). Assim, o filósofo da desconstrução parece estar inclinado para a ideia de um deslocamento do conceito de sujeito; porém, ao mesmo tempo, ele tenta entender o que ainda persiste da estrutura do sujeito clássico e o que é continuamente requisitado pela pergunta “quem?”. Não obstante a necessidade de deslocar a palavra “sujeito” do registro da tradição metafísica, para filósofo franco-magrebino ainda seria necessário “salvar” ou extrair de sua definição clássica a noção de uma certa responsabilidade. Essa noção de responsabilidade não poderia ser olvidada pelo trabalho da desconstrução. Embora a desconstrução venha a deslocar a questão do sujeito para outro “espaço”, a noção de responsabilidade, associada ao sujeito, deve se manter como índice de cálculo, principalmente, nas relações ao direito e nas diversas demandas ético-políticas. Assim, mesmo preservando a responsabilidade, o deslocamento do sujeito forçaria o aparecimento de uma singularidade, aquilo que no trabalho de Derrida vem sendo compreendido como ex-apropriação ou differánce6. Sobre essa singularidade que se apresenta no regime de ex-apropriação ou différance, Derrida comenta: A singularidade do “quem” não é individualidade de uma coisa idêntica a ela mesma, ela não é um átomo. Ela se desdobra ou se divide ao ajuntar-se para responder ao outro, cujo 6 Diferença em francês se escreve différence (com e). Derrida troca o e pelo a, cunhando a palavra différance (que não mais pode ser traduzida meramente como diferença). O neografismo de Derrida nomeia provisoriamente o operador différance, que não é uma letra, palavra ou mesmo um conceito. A diferença entre as duas notações (“a” e “e”) permanecem gráficas, podendo se escrever ou ler, mas não ouvir. Derrida no texto La Différance (Derrida, 1991) relembra que o verbo diferir, que provém do verbo latino differre, comporta o sentido de diferir, demorar, dilatar, adiar, prorrogar, delongar, esperar ou aguardar. Segundo Derrida, esse sentido está ligado à ideia de tempo, pois, diferir se liga a tudo relativo ao tempo e aquilo que se dá no tempo; diferir e temporizar seriam termos equivalentes. Assim, a différance indica uma mediação temporal que sempre suspende a consumação do desejo de totalização da presença; é o desvio que impede que algo seja por si, enquanto tal. Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 203 Adriano Negris e Pâmela Bueno Costa apelo precede, por assim dizer assim, a sua própria identificação consigo mesma, porque a este apelo não posso senão responder, haver já respondido, inclusive se creio responder “não” (pretendo explicar isso em outra parte, especialmente em Ulysse Gramophone) (Derrida, 1992, p. 276). Nesse sentido, o “quem” que está aqui sendo colocado sob suspeita não mais apareceria em sua correspondência com o sujeito enquanto uma individualidade soberana, fechada em si, mas como uma singularidade em regime de différance, que certamente não mais respeitaria as funções gramaticais e ontológicas do sujeito. Segundo a proposta de derridiana, toda a tentativa de reapropriação de si se faz como uma ex-apropriação. A ex-apropriação produz necessariamente o contrário daquilo que aparentemente pretende (ou seja, veda o fechamento em si, a presença a si e a ideia de síntese ou totalização), inviabilizando, portanto, uma conclusão sobre o que poderíamos determinar como o próprio do homem. Pode-se reconhecer na ex-apropriação, como comenta Derrida, as figuras diferenciais enquanto há relação a si nesta forma mais “elementar” (mas não há nada de elementar por esta mesma razão) (Derrida, 1992, p. 283). A relação a si neste contexto quer dizer, différance, alteridade (Derrida, 1992, p. 275). Paulo Cesar Duque-Estrada nos explica o que acaba de ser dito em outras palavras: Em outras palavras, toda a relação a si comporta uma estrutural abertura à exterioridade que a impede de se fechar sobre si mesma. Assim, todo o movimento de re-apropriação – de si mesmo, de uma cultura, de uma tradição, de um argumento filosófico ou de qualquer outra ordem etc. – é sempre e já um movimento, diz Derrida, de ex-apropriação; movimento errante, despossuído, diferente e diferido de si mesmo, em sua origem e destino. Poderíamos dizer, de um modo sucinto, que a afirmação a que estamos nos referindo aqui diz respeito a este movimento, tão instável quanto produtor, nem humano, nem inumano, nem subjetivo, nem desprovido de subjetividade, da ex-apropriação. É desta afirmatividade ex-apropriadora que, diz Derrida, “algo como o sujeito, o homem ou o que quer que seja pode tomar figura”. Neste movimento ex-apropriador nada se estabiliza, vale dizer, nada se apresenta enquanto tal. A estabilização aqui só pode ser provisória, já que ela é um efeito, a resultante, de uma denegação de sua intrínseca exposição à alteridade. [...] Poderíamos dizer ainda, para concluir, que, justamente pelo seu caráter ex-apropriador, tal afirmação se inscreve como uma afirmação infinitamente irredutível, uma vez que sua intrínseca e radical abertura à alteridade impede que se possa reduzi-la, em sua gênese, ao que quer que seja; o homem, a razão, Deus, o ser, enfim, a presença em qualquer uma de suas formas (Duque-Estrada, 2008, p. 23). De acordo com Derrida, aquilo que buscamos por meio da pergunta “quem?” talvez não venha a substituir nada mais do que uma gramática, que reenvia sempre à função gramatical do sujeito. Se é assim, então Derrida se pergunta de que forma podemos desfazer esse contrato entre a gramática do sujeito (ou do substantivo) e a ontologia da substância 204 Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 DERRIDA E LISPECTOR: AS METONÍMIAS DO COMER BEM ou do sujeito (Derrida, 1992, p. 277). A singularidade em différance talvez não corresponda à forma gramatical “quem”, numa estrutura segundo a qual o “quem” é o sujeito de um verbo que vem depois do sujeito. Vimos acima a ideia de uma singularidade em regime de ex-apropriação. Apesar de empregar a palavra “singularidade”, o próprio Derrida alerta que não é seguro e nem a priori necessário que essa “singularidade” se traduza pelo “quem” ou retenha qualquer privilégio do “quem”. Derrida lembra que Nietzsche e Heidegger assinalaram suas desconfianças em relação à metafísica substancialista ou subjetivista, cada qual a seu modo; no entanto, eles continuaram conferindo créditos a pergunta “quem?” e subtraindo o “quem” da desconstrução do sujeito. Diante de todos os problemas gramaticais e ontológicos que a palavra “quem” carrega e desenvolve, Derrida prefere utilizar a expressão “efeito de subjetividade” para evitar o uso da palavra sujeito, já que dela é recomendável manter a noção de responsabilidade. Derrida identifica nos discursos sobre o sujeito uma necessidade de unir a noção de subjetividade à figura do ser humano – metafisicamente determinado como animal racional. A intensidade dessa ligação se passa de tal maneira que mesmo reconhecendo que o animal é capaz de auto-afetação, esses discursos jamais admitiram uma subjetividade ligada ao animal. É justamente nesse ponto do debate que Derrida constata o inevitável retorno à distinção dogmática entre a relação a si humana (ou seja: um ente capaz de consciência, de linguagem, de uma relação com a morte como tal, etc.) e uma relação a si não-humana, incapaz do como tal fenomenológico, como ensina Heidegger (Derrida, 1992, p. 283). Como exemplo do que acaba de ser dito, Derrida frisa que a distinção entre o animal (que tem não tem Dasein) e o ser humano jamais foi tão radical e rigorosa como é em Heidegger. Para Heidegger, diz Derrida, o animal não será jamais um sujeito ou um Dasein. Tampouco tem inconsciente (Freud), nem relação com o outro, uma vez que o animal é desprovido de rosto (Lévinas) (Derrida, 1992, p. 283). Por isso, vemos em Derrida a urgência de se pensar uma subjetividade que esteja deslocada da metafísica da presença, ou seja, deslocada da ideia de que uma subjetividade que possa se apresentar enquanto tal. Aqui, mais uma vez, a lição de Paulo Cesar Duque-Estrada nos será extremamente útil, ele diz: Mesmo no caso dos autores que falam do sujeito como não coincidente consigo mesmo e que reconhecem a sua constitutiva inadequação, ainda assim, Derrida não os acompanha. E isto justamente pelo fato de tais autores ainda “continuarem a ligar a subjetividade ao homem”. Ao procederem desta forma, tais autores não apenas permanecem apoiados em uma distinção dogmática – entre, de um lado, os homens e, de outro, todo o resto –, prolongando, desta forma, o centralismo do sujeito que eles pretendem refutar; como Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 205 Adriano Negris e Pâmela Bueno Costa também, dogmaticamente, seguem associando os seus respectivos esquemas de uma subjetividade descontínua, partida, não coincidente a si, à totalidade de um “nós”, seres humanos. Em contrapartida a esta imposição – do todo, do uno, do “enquanto tal” – o pensamento da desconstrução irá propor uma defesa incondicional da singularidade do que nunca se mostrou, e jamais se mostrará, enquanto tal (Duque-Estrada, 2010, p. 12). Ao considerar tudo o que foi exposto até o momento, ainda poderia haver a suspeita de que Derrida venha a reservar um espaço para manutenção da pergunta “quem?”. Quanto à essa suspeita, Derrida responde que talvez seja necessário não desfazer, mas sim deslocar o discurso sobre o sujeito (e também do direito, da política) através da experiência da desconstrução, que, como diz nosso autor, “não é negativa, nem niilista, nem mesmo um niilismo piedoso” (Derrida, 1992, p. 287). Não obstante, o fator que parece mais preocupante a Derrida é como fazer para conjugar a noção de responsabilidade, ainda atrelada ao conceito clássico de sujeito, e a necessidade de desconstrução desse mesmo conceito. Essa problemática mencionada por Derrida passa pela tensão entre uma responsabilidade marcada por uma desmesura essencial, que não se regula nem pelo princípio de razão, e um conceito de sujeito que está ligado ao cálculo7. Traduzindo em termos derridianos, poderíamos dizer que há, na verdade, uma constante tensão entre o calculável e o incalculável8. Derrida arrisca a dizer então que o sujeito é um princípio de calculabilidade, presente tanto no direito, na política e na moral. Sobre esse tópico, Derrida faz questão de ressaltar o seguinte: É necessário o cálculo e eu jamais tive contra o cálculo [...]. Porém o cálculo é o cálculo. E se falo frequentemente do incalculável e do indecidível, não é por simples gosto do jogo ou para neutralizar a decisão: eu creio que não há responsabilidade nem decisão ético-política que não deva atravessar a prova do incalculável ou do indecidível. Não haveria, do contrário, mais que cálculo, programa, causalidade, ou melhor, “imperativo hipotético” 7 Geoffrey Bennington comenta que Derrida deseja pensar uma responsabilidade que excede a ordem da subjetividade, uma vez que deseja uma responsabilidade infinita, para além do cálculo do sujeito. Nas palavras de Bennington: Derrida argumenta que o conceito de responsabilidade [...], excede os recursos do conceito de sujeito em tal medida que o sujeito funciona como um conceito des-responsabilizador, um conceito que encerra a natureza infinita da responsabilidade, que Lévinas teve o mérito de trazer tão poderosamente (Bennington, 2004, p. 27). 8 A ordem do cálculo não seria apenas um produto, mas o próprio modo de ser da razão. Aqui, a palavra razão está sendo empregada no sentido de ratio (de origem latina), significando medida, proporção. Tudo aquilo que está circunscrito no âmbito da razão nos remete a um sistema de pensamento regido pela necessidade do universal e do necessário, o qual deve, mediante explicações evidentes, não-contraditórias, coerentes e suficientes, prestar contas sobre tudo o que existe. A razão é essencialmente isto: cálculo. O incalculável extrapola a ordem do cálculo para se inscrever num registro fora da regra, do controle, do programável e da previsibilidade, permitindo abrir um campo para se pensar vinda do imprevisível, do incondicional e do impossível. 206 Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 DERRIDA E LISPECTOR: AS METONÍMIAS DO COMER BEM (Derrida, 1992, p. 287). Assim sendo, uma vez repensada a questão do sujeito em termos de différance, não podemos mais nos articular com a concepção clássica de um sujeito, perfeitamente cerrado em si, ao qual já pudesse ser apresentado mesmo antes da pergunta “quem?” ou, ainda, que viesse a ocupar o lugar de um ‘quem”. É uma certa noção de “clausura de identidade” que confere ao sujeito um “efeito dogmático”. Tudo isso faz Derrida concluir que “o sujeito, se deve haver um, vem depois” (Derrida, 1992, p. 287). Talvez, para melhor atender os propósitos do pensamento desconstrutor, devêssemos entender a subjetividade como um efeito - “efeito de subjetividade”. De forma mais significativa, o movimento de desconstrução busca contestar a autoridade de uma suposta essência relativa a subjetividade, bem como todo consectário de estratagemas que ligam a subjetividade e o ser humano, a de um próprio do ser humano e o que, como veremos adiante, Derrida chama de estrutura sacrificial, que viabiliza o sacrifício de todo vivente não-humano. Não podemos esquecer que a desconstrução acontece nos limites das fronteiras dos processos de identificação (nós-os-homens) e, ao mesmo tempo, de exclusão (o que está fora do humano, o animal, o inumano). Nesse sentido, os registros de différance, ex-apropriação, devem conduzir a questão do sujeito para os limites que conferem os contornos da humanidade do ser humano. O discurso deslocado do sujeito a partir da différance nos faz repensar o próprio do humano, a moral, o direito e o animal. As questões do sujeito e da subjetividade estão intrinsecamente ligadas não só à ideia de ser humano, mas também à questão do animal e as estruturas que autorizam a distinção entre homem e animal. Sem dúvida, a questão do sujeito solicita o estudo da dicotomia ser humano-animal; par conceitual que se mantém vigente ao longo dos séculos, mas que em seu próprio limite segue pouco explorado pela filosofia. Portanto, para compreendermos os limites do ser humano com o animal (ou também poderíamos dizer o “vivente não-humano”), vamos dialogar com a imagem-questão de G.H., no romance de Clarice Lispector, e dessa forma, refletir sobre as metonímias do comer bem, assim como os limites e fronteiras na relação do humano e do vivente não-humano. Derrida e Lispector: as metonímias do comer bem Escuta, diante da barata viva, a pior descoberta foi a de que o mundo não é humano, e de que não somos humanos [...] Para iniciar a tematização deste tópico, apresentamos ao leitor dois questionamentos: 1) Qual é o limite entre o ser humano e o animal? e 2) Quais estranhezas do jogo de distanciamento-apro- Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 207 Adriano Negris e Pâmela Bueno Costa ximação que se dão na fronteira entre o ser humano e o animal? Deslocar é preciso, e assim, nos rastros de Derrida um desvio acontece. Esse desvio coloca em perspectiva a relação com o outro, bem como as nuances de apropriação (violentas ou simbólicas) que se instituem no movimento de compreensão do outro como alteridade. É nesse desvio que se pretende mostrar em que medida o acolhimento deste completamente outro se perfaz em termos de hospitalidade. Para compreendermos a relação de hospitalidade com o outro (o animal, uma coisa) e aquilo que mais adiante indicaremos como o comer bem, trazemos para o diálogo a imagem-questão9 a literatura de Clarice Lispector, notadamente sua personagem G.H., do seu romance A paixão segundo G.H. G.H., a personagem clariceana, vai experimentar um deslocamento do ordinário cotidiano mediante o aparecimento de uma alteridade radical. No seu encontro com a barata, G.H. é lançada na experiência violenta de uma abertura para o outro. De um lado, temos a personagem que é descrita com as iniciais da mala - dupla relação com o objeto - sendo uma mulher de classe social alta, escultora que vive em uma cobertura, dilacerada por um abandono amoroso e sem a empregada, Janair, que também foi embora. De outra banda temos o outro, a barata, um indício da estranheza do que é mais comum, mas, ao mesmo tempo, nos remete à estranheza daquilo que é opaco. Trata-se de um encontro permeado pela violência: “eu sabia que estava entrando na bruta e crua glória da natureza” (Lispector, 2015, p. 55). A narrativa de A paixão segundo G.H. gira em torno de uma escrita dilacerante, feita a cortes de navalhas, que espelha a morada da condição humana e suas questões existenciais, permeadas pela dor de estar no mundo. O romance aborda uma situação extrema a partir dos limites entre o humano e o animal. A imagem-questão de G.H. é violenta, pois é “a sombra daquilo que é difícil de suportar”; e como reflete Clarice: “eu havia humanizado demais a vida” (Lispector, 2015, p.11). Nessa humanização da vida, abandona-se o outro, uma vez que para manter os limites seguros da condição antropocêntrica, faz-se necessário 9 Manuel Antônio de Castro em A arte em questão: As questões da Arte, influenciado por uma visão ontológica de mundo heideggeriana afirma que a imagem-questão, nos convoca para a escuta das grandes questões. Nos permite aprender a ver, mas não de fora para dentro, mas o processo inverso. A imagem-questão é poiesis, isto é, uma questão fundante, pois não representa, funda. E nela encontramos uma ambiguidade vigente, fonte inaugural e originária de tempo e mundo, possibilitando sempre novas leituras e interpretações. E assim, de acordo com essa visão, podemos dizer que as obras literárias criam imagens-personagens-questão. Segundo Castro “A imagem-questão é a imagem-poética con-vocando-nos para a escuta das grandes questões, onde essa escuta é a condição fundamental de todo diálogo e de todas as interpretações”. Ver: CASTRO, Manuel Antônio. A arte em questão: As questões da Arte. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2005. 208 Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 DERRIDA E LISPECTOR: AS METONÍMIAS DO COMER BEM a exclusão e a imunização frente àquilo que se mostra como diferente, estranho, esquisito - o totalmente outro. Antes de mais nada, é interessante frisar que a experiência da personagem é uma abertura para o mundo animal, ela provoca um movimento de ‘des-humanizar’ o humano, num mergulho existencial e de abertura ao outro. A mulher G.H. começa um relato, segurando a mão de alguém; a experiência do desejo de matar e comer mexe com sua subjetividade, e daí eclode um conflito. A partir dessa tensão, G.H. nos faz um convite para acompanhar seu processo de transformação de uma entrega para a experiência de comer o outro. A obra clariceana é permeada de questões que dialogam com os limites do que é humano, bem como sobre o abismo que o afasta da dimensão do animal. Nesse jogo de relação entre o ser humano e o animal existem muitas fronteiras, mas em A paixão segundo G.H., Clarice torna essas demarcações oscilantes, sujeitas a constantes abalos, fazendo-as aparecer muito mais como um jogo de indecidíveis. Nesse ponto é importante destacar que a ideia de humano (o animal racional, o zoon politikon) é garantida por uma oposição (ser humano-animal), traçada mediante pressupostos metafísicos que operam como verdadeiras barragens, obstruindo de forma truculenta uma abertura para o outro. Neste limiar, a obra de Clarice aponta os animais como uma espécie de apelo para desconstruir as barreiras impostas pelo pensamento ocidental acerca dos limites entre humano-animal. No texto “Pode o animal falar?”, enfatizamos esses limites da tradição filosófica sob a ótica do pensamento derridiano: podemos dizer que uma das críticas mais incisivas de Derrida ao pensamento da tradição consiste na impossibilidade de se admitir a unicidade de fronteira entre o Homem e o Animal, como se fosse possível considerar o homem de um lado e de outro lado toda a diversidade de vida não humana. Para Derrida deslocar esse registro é imprescindível e significa: denunciar que a questão do animal é permeada pelo logocentrismo e pensar a existência de limites heterogêneos que traçam a diferença entre o homem e o animal (Negris, 2014, p. 162). Tal como Derrida coloca em questão os limites que garantem a “essência” da humanidade do ser humano, Clarice, por meio da literatura, nos convida a experienciar justamente o abalo dessa suposta unicidade de fronteira entre o ser humano e o animal. Como observa Evando Nascimento, não se trata de “psicanalisar as relações entre homens e bichos, segundo Clarice, mas de compreender como certo estranho familiar perpassa a visão dessa nossa alteridade” (Nascimento, 2012, p.16). Essa percepção é fundamental para compreendermos a cena de G.H. com a barata, como veremos mais adiante. Assim sendo, notamos que uma quebra do limite entre o vivente humano e o vivente não-humano acontece em A Paixão segundo G.H., principalmente quando observamos com Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 209 Adriano Negris e Pâmela Bueno Costa atenção as ações conduzidas pela personagem principal. Nesse sentido, a leitura de Clarice nos conduz à necessidade de questionar essa dicotomia tão sedimentada entre o ser humano e o ser animal, pois, como ensina a escritora, não se deve lutar contra a alteridade, mas, ao contrário, devemos nos abrir a essa chegada do “totalmente outro”: “parece que não sei quem é mais a criatura, se eu ou o bicho. E confundo-me toda. Fico, ao que parece, com medo de encarar instintos abafados que, diante do bicho, sou obrigada a assumir” (Lispector, 1998, p. 50). É no encontro com o outro, considerado o estranho, que o bestiário clariceano fornece um vislumbre da desconstrução da barreira imunitária contra aquilo que excede o humano. Esse encontro com a alteridade nos coloca diante da “animalidade naquilo que esta se comunica com o mistério da diferença humana. Isso leva a problematizar a delimitação metafísica desses dois grandes territórios” (Nascimento, 2012, p.17). Não é por outro motivo que Evando Nascimento diz que: O pensamento da relação homem-animal é o pensamento do limite, das zonas fronteiriças e da impossibilidade de separar completa e simetricamente os dois blocos. É certo animal no homem e certo homem no animal que é visado, sem identidades definitivamente constituídas. Questão, mais uma vez, de devir e de tornar-se, em lugar de identidade (Nascimento, 2012, p. 17). Na esteira de nossas reflexões, entendemos que pensar uma limitrofia a partir do diálogo entre Clarice e Derrida oferece uma abertura para indagarmos o que é o ‘ser humano’, o que, inevitavelmente, requisita uma abertura para chegada do outro: “O tornar-se-homem passa necessariamente por um tornar-se-mulher, tornar-se-animal, tornar-se-cão, tornar-se-galinha, tornar-se-galo, tornar-se-búfalo, tornar-se-vaca. E tornar-se barata” (Nascimento, 2012, p. 26). Vamos nos deter na lida com esse último animal rastejante: a barata. A personagem G.H. na experiência de alteridade comerá o outro, o chegante. Nesse acontecimento, sua vida e os seus sentidos são colocados em questão, a partir de um incidente em seu quarto, a vida da personagem passa por um acontecimento de horror. Com sua escrita, Clarice anuncia a chegada do outro por meio do transbordamento de sua “fauna nos mais diversos textos, constituindo uma verdadeira zoo-grafia, termo que em grego designava a pintura do vivo” (Nascimento, 2012, p.26). Por conseguinte, um dos elementos para se pensar esse contato com o outro é o olhar (sentido que é, desde Platão, privilegiado na história da metafísica), por ser um dos sentidos que nos coloca numa abertura a partir da qual a estranheza do outro aparece. Em contraste com o outro, um estranho-familiar, a personagem G.H. vai questionar a sua 210 Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 DERRIDA E LISPECTOR: AS METONÍMIAS DO COMER BEM própria natureza humana: Minha vida não tem sentido apenas humano, é muito maior - é tão maior que, em relação ao humano, não tem sentido. Da organização geral que era maior que eu, eu só havia até então percebido os fragmentos. Mas agora, eu era muito menos que humana - e só realizaria o meu destino especificamente humano se me entregasse, como estava me entregando, ao que já não era eu, ao que já é inumano (Lispector, 2015, p.154). “A vida não tem apenas um sentido humano” - nessa epifania, G.H. sente vontade de comer o outro, o estranho que agora fazia parte dela, desejava ser a barata, o animal inumano. Desejou tocar e ser tocada pelo animal. Ela lutou a vida toda pelo profundo desejo de ser tocada pelo outro, mas, quando parou de lutar e se deixou misturar com a animalidade do outro, a abertura aconteceu. Derrida em 1997, no colóquio de Ceresy, proferiu a aula “O animal que logo sou (A seguir)”. Em sua fala, Derrida descreve a experiência de se deixar tomar pelo olhar de um outro, um animal. A sensação do infamiliar é atravessada pelo olhar. Diante do seu corpo nu, encontra-se o gato. Derrida é surpreendido pelo olhar de um animal e nesse entrelace de olhares, reverbera um sentimento; um sentir que é resultante de um incômodo: “como se eu tivesse vergonha, então, nu diante do gato, mas também vergonha de ter vergonha” (Derrida, 2002, p. 16). Como ele mesmo diz: o que se passa quando um animal, e falo aqui tanto dos animais quanto dos homens, destes animais que são também os homens, o que se passa não apenas quando um animal é visto por mim, mas quando vejo um animal me olhar, eventualmente cruzar meu olhar, me olhar, como se diz, nos olhos? (Derrida, 2012, p. 72). Então, no encontro com o animal, o olhar merece destaque10. Vale lembrar que em consonância com o filósofo, Clarice, através da personagem do livro Água Viva, também descreve sua experiência de alteridade com um gato. Dois textos, em dois registros distintos, mas que deixam a pensar segundo o rastro de um duplo cruzo de olhares. Não obstante as peculiaridades de cada texto, em ambos, Derrida e Clarice fazem sobressaltar o pavor e o espanto do gesto de se permitir ser arrebatado pelo olhar do outro - do totalmente outro. 10 Isso porque os olhos como órgãos integrantes de um sistema corporal, seja no homem ou em alguns animais, teriam entre suas mais diversas funções o ver vir. Nesse sentido, um dos modos do ver apresenta a seguinte configuração: o ver garante uma proteção contra algo que vem, no qual o proteger é realizado por um modo de antecipação, um antever, ver com antecipação – (pré)ver para ver aquilo que nos ameaça. Também não é insensato atribuir à antecipação o sentido de “apoderar-se previamente”, remetendo-nos, assim, aos mais diversos modos de captura, arrebatamento ou apreensão do outro (NEGRIS, 2014, p.152). Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 211 Adriano Negris e Pâmela Bueno Costa Voltando à cena de G.H, é no contato com o olhar da barata que a personagem é atravessada pela “natureza” da barata. O olhar da barata coloca em questão toda a humanidade da personagem. O olhar da barata é ameaçador, e se deixar perceber por esse olhar já é um passo em direção à desmontagem de nossos limites quanto ao que venha ser o próprio do humano. O gesto de se perceber no olhar do animal, e em seus olhos enxergar o reflexo do humano, escancara a fragilidade e os limites do que é próprio do humano. Nesse jogo de ver e deixar-se ver, as fronteiras que separam o humano do animal vão se mostrando tênues, de modo que o binômio distância-proximidade já não pode se fazer tão claro. Nesse cruzo com o olhar do bicho, G.H. é escancarada para as incertezas dos limites quanto ao que seja o humano, bem quanto ao que seja o animal. Diante do mais ordinário, no cruzo de olhares, algo vem. Esse cruzamento já deixa todo o rastro para o acontecimento do extraordinário: deixar-se ver e deixar vir o outro que vem. Ao bater à porta na barata, um grito oco para dentro ecoa, os olhares se entre-cortam: “sem desfitar a barata, fui me abaixando até sentir que meu corpo encontrava a cama e, sem desfitar a barata, sentei-me. Agora era com os olhos erguidos que eu a via. Agora, debruçada sobre a própria cintura, ela me olhava de cima para baixo” (Lispector, 2015, p.64). Na visão da personagem, ela havia capturado diante de si o imundo do mundo: “A barata não me via diretamente, ela estava comigo. A barata não me via com os olhos, mas com o corpo (Lispector, 2015, p.65). Sem desviar o olhar em um movimento olhar-corpo, a abertura para o rosto do outro acontece: “de encontro ao rosto que eu pusera dentro da abertura, bem próximo de meus olhos, na meia escuridão, movera-se a barata grossa. Meu grito foi tão abafado que só pelo silêncio contrastante percebi que não havia gritado - o grito ficara me batendo dentro do peito” (Lispector, 2015, p.41). Para Lispector, há diversas formas de ver. Pode ser um olhar sem ver, um possuir o outro, um comer o outro, um jogo entre o visível e o invisível. Neste caso, ela destaca: a barata com a matéria branca me olhava. Não sei se ela me via, não sei o que uma barata vê. Mas ela e eu nos olhávamos, e também não sei o que uma mulher vê. Mas se seus olhos não me viam, a existência dela me existia - no mundo primário onde eu entrara, os seres existem os outros como modo de se verem. E nesse mundo que eu estava conhecendo, há vários modos que significam ver: um olhar. O outro sem vê-lo, um possuir o outro, um comer o outro, um apenas estar num canto e o outro estar ali também: tudo isso também significa ver (Lispector, 2015, p. 41, grifo nosso) Derrida diz que o acontecimento é mistério, algo que rompe a lógica do cálculo e da previsibilidade. É algo imprevisível e, em algum sentido, é igualmente impróprio. Algo que surge e, ao surgir, surpreende. Nesse sentido, o acontecimento é antes de mais nada 212 Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 DERRIDA E LISPECTOR: AS METONÍMIAS DO COMER BEM tudo aquilo que não se compreende. O acontecimento do outro carrega em seu rastro a imprevisibilidade, a inapreensão e a inacessibilidade. A força desse acontecimento recai sobre o horizonte da personagem de Clarice, que mediante assombro se pergunta: “até que ponto vou suportar nem ao menos saber o que me olha? A barata crua me olha, e sua lei vê a minha. Eu sentia que ia saber” (Lispector, 2015, p. 82). Eis que o acontecimento se dá; acontecimento esse que se liga à imprevisibilidade do outro, escapando a qualquer ordem do cálculo. Dentro de uma atmosfera de angústia, G.H. levanta questões importantes: “ah, será que nós originalmente não éramos humanos? E que, por necessidade prática, nos tornamos humanos? Isso me horroriza, como a ti” (Lispector, 2015, p.103). A personagem sente que comeu também outra vida: “Então, pela porta da danação, eu comi a vida e fui comida pela vida. Eu entendia que meu reino é deste mundo” (Lispector, 2015, p.103). Então algo estremece e foge do cálculo: “pois a barata me olhava com sua carapaça de escaravelho, com seu corpo arrebentado que é todo feito de canos e de antenas e de mole cimento - e aquilo era inegavelmente uma verdade anterior a nossas palavras, aquilo era inegavelmente a vida que até então eu não quisera” (Lispector, 2015, p. 99). De fato, a alteridade radical experimentada com o vivente não-humano faz com que G.H. se debruce e cruze com o animalesco, ou seja, com o outro-mundo. Diante desse outro não-humano pulsa firmemente uma vontade de matar, permanecendo latente o desejo de transbordamento e aniquilação. No face-a-face com a barata, G.H. já não sabe mais o que lhe é mais próprio, o que a determina como humano; então vem o instante do choque e ela dispara: “que fizera eu de mim? Com o coração batendo, as têmporas pulsando, eu fizera de mim isto: eu matara” (Lispector, 2015, p.47). G.H. é arrebatada por uma anunciação, um movimento de experimentar o outro, despertado pela fome do outro. A barata também provoca em G.H. um movimento de introspecção; a partir dos olhares entrecruzados, G.H. percebe a cara do bicho sujo com as entranhas de fora e conclui que, em algum momento, já havia sentido essa estranheza: “era a mesma que eu experimentava quando via fora de mim o meu próprio sangue e eu o estranhava” (Lispector, 2015, p. 51). A estranheza do outro chama a atenção e causa espanto. É nesse acontecimento do outro que se instaura o inesperado e se inaugura todo o pensar. A violência dessa chegada do outro desloca todo sentido do ordinário, esvazia toda “propriedade”, e acaba por dissolver todas as certezas sobre os limites entre o ser humano e o animal. G.H. e a barata estão nuas, uma de frente para a outra, assim como Derrida ficou diante do gato; ambos se vêem despidos de todas as verdades que asseguram uma suposta clareza das determina- Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 213 Adriano Negris e Pâmela Bueno Costa ções daquilo que reconhecemos como “nós-os-homens”. G.H. experimenta o contato com o seu lado bicho, deixando de lado sua civilização e domesticação. Nesse movimento violento, encara o animal diante de seus olhos: vida e morte confluem. O jogo oscilante do úmido, a gosma branca que escorre da barata, provoca o desejo que dissemina em G.H. Quanto mais perto está do seu ato, muitos pensamentos tomam conta, e uma vontade perturbadora e insaciável atravessa seu corpo: comer o outro. Entretanto, existe um impedimento ao seu amor e à sua união à barata: o seu nojo. A partir do momento que G.H. rompe com as verdades e as moralidades instituídas, saindo desse estágio, acessa outra forma de estar no mundo: “entrando na delicadeza das coisas vivas” (Lispector, 2015, p. 131). E diz: Porque também sei que, em plano somente humano, inocência é ter a crueldade que a barata tem consigo própria ao estar lentamente morrendo sem dor; ultrapassar a dor é a pior crueldade. E eu tenho medo disso, eu que sou extremamente moral. Mas agora sei que tenho de ter uma coragem muito maior: a de ter uma outra moral, tão isenta que eu mesma não a entenda e que me assuste (Lispector, 2015, p. 131). Unir-se com a barata foi a sua salvação, dissolvendo um eu humano que é separado da sua animalidade. Em diálogo com Derrida, vemos que, em termos éticos, devemos nos ater ao fato de que o relacionar-se com o outro também implica uma espécie de introjeção, ainda que simbólica, desse outro. Introjetamos não só a carne, o alimento, mas também assim agimos quando por meio da razão apreendemos outro (humano ou não-humano). Essa metáfora da introjeção não escapa ao olhar do filósofo da desconstrução. Na história de Kleist (1808), mencionada por Derrida, temos Pentesiléia, a rainha das Amazonas, e a narrativa de sua paixão fulminante por Aquiles. É uma antiga tragédia que descreve o assassinato do herói Aquiles, sendo o enredo constituído por um grande desejo de devorar o outro e uma paixão de amar que leva à destruição de si mesma e do seu amado. Essa perspectiva violenta do amor também não passa despercebida por Derrida, que aponta: “caso amem, pelo menos, pois é a tentação do próprio amor. Um pensamento aqui para a Pentesiléia de Kleist. Ela foi um dos grandes personagens de um seminário que dediquei há anos a exatamente isto: ‘comer o outro’ (Derrida, Roudinesco, 2004, p. 87). Essa ideia de introjeção e de sacrifício do outro também pode ver vista na literatura de Clarice. Na obra Água Viva, a personagem está diante da gata, da mãe que come a própria placenta: “Disseram-me que a gata depois de parir come a própria placenta e durante quatro dias não come mais nada” (Lispector, 1998, p.31). Nesse encontro com o outro-animal, diz: “Já assisti, gata parindo. Sai o gato envolto num saco de água e todo encolhido dentro. A mãe lambe tantas vezes o saco de água que este enfim se rompe e eis 214 Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 DERRIDA E LISPECTOR: AS METONÍMIAS DO COMER BEM um gato quase livre” (Lispector, 1998, p.34). Podemos notar uma identificação da personagem ao fato narrado, evidenciando o processo transformador e violento do nascimento. Essa ferida é justamente a abertura para o outro, a cena do parto, a cena do vir ao mundo, é a cena do rasgo, da ferida, da ruptura que causa dor, mas, ao mesmo tempo, outra vida é outro mundo. Essa doação realizada através do corte deixa vir o outro. Deixar vir-ver o outro nessa abertura para o mundo. Nesse sentido, o corte e o rasgo fazem-se caminho para a alteridade: “então a gata-criadora rompe com os dentes esse cordão e aparece mais um fato no mundo. Esse processo é it” (Lispector, 1998, p. 35). Estar lançado no mundo, sendo rompido o saco de água e o cordão umbilical, notamos as aproximações entre o ser humano e o animal, viventes lançados ao mundo buscando a sua liberdade de ser. É provável que a personagem clariciana de Água Viva, ardendo em seu corpo, come sua própria placenta, se alimentando tal como o bicho, tal como a gata, para não precisar de alimento exterior, mas sim de si mesma, comendo a si mesma: “comi minha própria placenta” (Lispector, 1998, p. 35). Ato extremo, notadamente mistura sua natureza de humano civilizado ao mundo do vivente não-humano, ela come sua própria placenta, sobretudo, porque no ato de comer existe uma transformação e uma união. Outro eu-no-mundo nasce da ruptura. Assim como no mundo animal, a mulher-gata vivencia o comer, come a própria placenta para sobreviver. Notamos uma incessante busca pelo reconhecimento de quem se é marcada pelo desejo em se aprofundar em si. Nesse desdobramento, a personagem encontra o que deseja, ânsia por uma vida sangrenta: “minha fome se alimenta desses seres putrefatos em decomposição” (Lispector, 1998, p. 41). Há fome; fome de quê? De comer a si mesma e ao outro, assim como no amor, uma vontade de aniquilação. É por meio desse movimento de introjeção, simbólico ou real, que estamos sempre desejando apreender o outro. Apreensão que pode ser vista sob duas perspectivas: o comer e o sacrificar o outro. Desse modo, se estamos sempre condenados a comer o outro então, se for assim, devemos comê-lo bem. Ao ensaiar um deslocamento da estrutura sacrificial, Derrida dirá que é preciso comer bem. Nesse registro, a palavra de ordem “é preciso comer bem” indica a proposta de submissão a outra lei, a lei da hospitalidade. Para comer bem, como diz Derrida, é preciso compartilhar e a aprender-a-dar-de-comer-ao-outro. O compartilhar e o dar de comer ao outro, segundo nosso entendimento, são condutas que demarcam um limite para toda a tentativa de assimilação e apropriação do outro. Assim, para não “comer mal”, não se deve subjugar o outro que chega às condições daquele que o recepciona. Toda a ideia de submissão do outro surge justamente a partir de um “quem” Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 215 Adriano Negris e Pâmela Bueno Costa como uma subjetividade fechada em si, autônoma e capaz de ser sujeito de direitos. É sempre a partir de um sujeito que se torna viável a apropriação do outro, introjetando-o, incorporando-o àquele mesmo sujeito. Para evitar “comer mal”, é preciso não só comer o outro, mas também é preciso dar de comer ao outro. E como damos de comer ao outro? Acreditamos que o aprender-a-dar-de-comer-ao-outro é estar incessantemente atento ao apelo de uma hospitalidade infinita ou incondicional. Somente para fins de uma explanação breve, a hospitalidade passaria a ditar a lei da “casa”, do ethos, do ético. Uma hospitalidade incondicional, como uma lei incondicional ou modo de refinamento sublime em respeito ao outro, manda que se receba o outro sem perguntar por “quem” chega. Aqui o outro que chega não deve ser assimilado a qualquer tipo de identidade, identificação ou ainda outras condições. Nesse sentido, já não falaríamos mais de uma responsabilidade fundada no cálculo do sujeito, ou seja, conforme os ditames de uma subjetividade forçosamente regulada pelo cálculo, pela ordenação e a previsibilidade. A lei da hospitalidade evocada por Derrida nos convoca a pensar uma responsabilidade infinita e “que não seja surda às injunções do pensamento” (Derrida, 1992, p. 287); pois uma responsabilidade limitada, mensurável, calculável é o “devir-direito da moral” do sujeito e que não chega a alcançar a alteridade (Derrida, 1992, p. 300). Enfim, aprendemos a dar-de-comer-ao-outro quando nos mantemos receptivos à acolhida do outro que chega à nossa casa, sem dizer seu nome ou anunciar sua proveniência. É nesse sentido que G.H. depara-se com o estranho-familiar em sua casa: “e que ali dentro de minha casa se alojara, a estrangeira, a inimiga indiferente” (Lispector, 2015, p. 37). Janair também continuava presente, mesmo em sua ausência. Notamos que a barata e Janair eram os verdadeiros habitantes do quarto. Nessa hospitalidade, G.H. tem um instinto animal, sua animalidade é aflorada: “Eu que pensara que a maior prova de transmutação de mim em mim mesma seria botar na boca a massa branca da barata. E que assim me aproximaria do... divino? do que é real? O divino para mim é o real” (Lispector, 2015, p. 143, grifo nosso). Por consequência da experiência radical de comer o outro, isto é, vislumbrando a impossibilidade de retorno àquilo que se era antes do encontro com a barata, G.H. é arrancada do seu cotidiano banal. Dessa forma, torna-se bicho-humano, ao extrapolar os limites impostos pela moralidade, ela passa a ser outra mulher: “a vida se me é”, frase repetida ao final, diversas vezes, uma vez que sua entrega é à vida, ao outro; uma vida que não se compreende, mas se entrega ao mistério. Salientamos que Derrida analisou as fronteiras conceituais entre o ser humano e o animal. É igualmente importante frisar que Derrida toma como fio condutor o discurso heideggeriano para investigar os limites que separam o binômio conceitual homem-animal. 216 Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 DERRIDA E LISPECTOR: AS METONÍMIAS DO COMER BEM Como Derrida faz notar, o discurso de Heidegger sobre o animal é violento, embaraçoso e por muitas vezes contraditório. Explica que Heidegger não disse simplesmente “o animal é pobre em mundo”, porque, diferente da pedra, ele tem mundo. Heidegger, na verdade, diz: o animal tem mundo no modo de não-ter. Derrida nesse ponto ressalta que o não-ter do animal instituído por Heidegger não é tomado como uma indigência, no sentido de uma carência do mundo humano. Ora, então, indaga: “Por que essa determinação negativa de um não-ter? De onde ela provém?” (Derrida, 1992, p. 291-292). Certamente, segundo a tese heideggeriana, o animal tem mundo, mas não no modo de ter como o ser humano. O ser humano está no aberto, desdobra sua existência na verdade, tem modo de compreensão da linguagem e do ser do ente como tal. O ser humano é fazedor de mundo. É justamente desse modo de ser que o animal é privado. É por meio da identificação desses limites estabelecidos por Heidegger que Derrida concluirá o seguinte: O animal responde? Questiona? E, sobretudo, o apelo que o Dasein entende pode, em sua origem, vir ao animal ou vir do animal? Existe uma vinda do animal? A voz do amigo pode ser a de um animal? Existe amizade possível para o animal, entre animais? Como Aristóteles, Heidegger dirá: não. Tem-se uma responsabilidade para com o vivente em geral? A resposta é sempre não, e a questão é formulada, posta de tal maneira que a resposta seja necessariamente “não” em todo o discurso canonizado ou hegemônico das metafísicas ou das religiões ocidentais, incluindo as formas mais originais que esse discurso pode assumir hoje em dia, por exemplo, em Heidegger ou em Lévinas (Derrida, 1992, p. 292). Ao prosseguir em sua análise, Derrida chamará a atenção para um fenômeno que denomina de “estrutura sacrificial”. Essa estrutura gira em torno da questão do animal e envolve aqueles discursos que estão na linha do vegetarianismo, do ecologismo e das sociedades protetoras dos animais. A estrutura sacrificial de que Derrida nos fala é muito mais um “espaço livre” que se encontra no interior dos discursos sobre os animais. Esse espaço livre revela uma permissividade quanto ao ato de matar, colocando esse mesmo gesto para fora da alçada do crime (do direito), autorizando, assim, a ingestão, incorporação ou a introjeção do cadáver. A permissividade de um matar não-criminal traduz-se numa operação real e simbólica quando o cadáver é de um animal, é uma operação simbólica quando o cadáver é humano. Para prosseguir nessa linha de argumentação, o filósofo busca investigar, ainda que de forma breve, o discurso do filósofo Emmanuel Lévinas sobre a subjetividade. Segundo Derrida, a subjetividade em Lévinas é constituída primeiramente à maneira de um refém. Assim concebida, a subjetividade (como refém) será entregue ao outro na abertura sacra da ética, na origem da santidade11. O sujeito será responsável pelo outro antes mesmo dele 11 Para melhor explicar o termo santidade em Lévinas, fazemos remissão aos comentários de Rafael Ha- Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 217 Adriano Negris e Pâmela Bueno Costa se constituir como um “eu”. Essa responsabilidade do outro, pelo outro, comenta Derrida, advém, por exemplo, do “Não matarás em absoluto”; não matarás em absoluto teu próximo (Derrida, 1992, p. 293). Dessa forma, Derrida argumenta que em Lévinas o outro (o próximo, o amigo) é o distanciamento infinito da transcendência. Assim, segue Derrida, o “Não matarás em absoluto” se dirige a esse outro e o supõe; é referente a esse outro que o sujeito é em primeiro lugar refém. Então, não fica difícil concluir que o “Não matarás em absoluto” nunca foi compreendido na tradição judaico-cristã como um “não exporás à morte o vivente em geral”. O postulado ético do “Não matarás” obviamente tomou um sentido que atendesse às exigências das culturas religiosas para as quais o sacrifício carnívoro é essencial (Derrida, 1992, p. 293). Portanto, em Lévinas: O outro tal como se deixa pensar conforme o imperativo da transcendência ética, é já o outro homem: o homem como outro, o outro como homem. Humanismo do outro homem, é um título no qual Lévinas suspende justamente a hierarquia do atributo e do sujeito. Mas o outro homem é o sujeito (Derrida, 1992, p. 293). Ao apreender o horizonte das questões de Heidegger e de Lévinas, Derrida reconhece as diferenças marcantes entre esses pensadores; porém, em que pese a originalidade de suas respectivas filosofias, existe um ponto em comum entre eles quanto à temática do animal que os religa e os aproxima. Na concepção de Derrida, Heidegger e Lévinas promovem um deslocamento do humanismo tradicional. Todavia, o que se percebe na subjetividade levinasiana e no Dasein heideggeriano é a existência de “homens” num mundo onde o sacrifício é possível e onde não é proibido atentar contra a vida em geral. Somente é proibido atentar contra a vida do ser humano, do outro próximo, do outro como Dasein. Nesse sentido Heidegger e Lévinas se aproximam, pois, se seus discursos deslocam o conceito clássico de humanismo, mas re-inscrevem um humanismo num sentido mais profundo, na medida em que eles não abandonam a possibilidade de sacrifício da vida em ddock-Lobo sobre o assunto. Nesse sentido o referido autor diz: Para Lévinas, a linguagem está fundada em uma relação anterior à relação de compreensão com os entes, relação essa que seria constituinte da própria razão e que constitui nossa relação com o outro. Esta, por sua vez, consiste em um empreendimento gnosiológico, ou seja, consiste em querermos compreender esse outro. No entanto, o que de fato ocorre é que a relação excede a compreensão, nos ultrapassa, posto que, para Lévinas, o rosto do outro é um rosto sem face, intematizável e que traz estampado em sua face o chamado de Deus. A essa relação Lévinas dá o nome de santidade, como um substituto para o termo grego ética e em oposição ao que ele chama de sagrado. [...] com a oposição e o deslocamento que Lévinas opera do sagrado rumo ao santo, ele visa também o apontamento de que a sua ética situa-se para além do religioso, das instituições morais teológicas, e caminha próxima a uma noção de religiosidade absoluta, aberta e não institucional (Haddock-Lobo, 2004, p. 168 – grifos do autor). 218 Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 DERRIDA E LISPECTOR: AS METONÍMIAS DO COMER BEM geral, principalmente do animal12. Como Derrida diz, malgrado as diferenças que separam Heidegger e Lévinas, ambos não sacrificam o sacrifício (Derrida, 1992, p. 294). O que podemos notar na exposição de Derrida é a tentativa de unir a questão do “quem” ao “sacrifício” através daquilo que ele denomina de estrutura sacrificial. Para Derrida, esse esquema sacrificial parece definir o contorno invisível de todos os discursos clássicos ligados ao sujeito e que persistem mesmo ainda em Heidegger ou Lévinas. Essa estrutura sacrificial representaria o esquema carno-falo-logocentrico que vigora e domina a questão do sujeito em toda sua extensão. Toda essa trama densa e complexa é assim explicada por Derrida: Não se trataria somente de evocar a estrutura falogocentrica do conceito de sujeito, ao menos, seu esquema dominante. Eu gostaria um dia demonstrar que esse esquema implica a virilidade carnívora. Eu falaria de um carno-falogocentrismo se isto não fosse um tipo de tautologia ou melhor de uma hetero-tautologia como síntese a priori, tu poderias traduzi-la por “idealismo especulativo”, “devir sujeito da substância”, “saber absoluto” passando pela “sexta-feira santa especulativa”: basta tomar seriamente a interiorização idealizante de phallus e da sua necessidade de sua passagem pela boca, que se trata das palavras ou das coisas, das frases, do pão ou do vinho cotidiano, da língua, dos lábios ou do seio do outro. Se protestará: Há (reconheci há pouco, tu sabes bem) sujeitos éticos, jurídicos, políticos, cidadãos em parte (quase) inteiros que são também mulheres e/ou vegetarianos! Mas isso não é admitido no conceito, e no direito, senão há pouco e justamente no momento onde o conceito de sujeito entra em desconstrução. Isso é fortuito? E isso que eu chamo aqui esquema ou imagem, isto que liga o conceito à intuição, instala a figura viril no centro determinante do sujeito. A autoridade e a autonomia (porque ainda sim esta se submete a lei, esta sujeição é liberdade) são, por este esquema, melhor concedidas ao homem (homo e vir) que a mulher, e melhor a mulher do que ao animal. E, bem entendido, melhor ao adulto do que a criança. A força viril do varão adulto, pai, marido e irmão (o cânone da amizade, eu mostrarei em outra parte, privilegia o esquema fraternal) corresponde ao esquema que domina o conceito de sujeito. Este não se deseja somente senhor e possuidor ativo da natureza. Em nossas culturas, ele aceita o sacrifício e come a carne. Como nós não temos nem muito tempo nem muito espaço [...], eu te pergunto: em nossos países, quem teria al12 Derrida entende que a violência contra os animais é uma nota marcante de nossa cultura, sendo esse fato verificável ao longo dos textos da tradição greco-romana-judaico-cristã (basta dizer que render homenagens aos Deuses ou provar a fé em Deus muitas vezes envolvia o sacrifício do animal). Deve-se destacar que o discurso da tradição filosófica não contestou essa violência dirigida aos animais, mas, ao contrário, reforçou os axiomas que intensificaram essa mesma violência. Esse movimento se desenvolveu de tal maneira que atualmente praticamos uma violência diária contra os animais e numa escala sem precedentes. Para demonstrar como essa violência se inscreve no dia-a-dia do humano, é suficiente mencionar a gigantesca escala de abate de animais voltada para o consumo humano, o que envolve ainda técnicas de intervenção genética no animal para o aumento da produção. A violência não só está presente na criação industrial, como também se estende nas práticas de experimentação com animais, na utilização de animais para o entretenimento humano, bem como nas muitas maneiras de domesticação do animal. Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 219 Adriano Negris e Pâmela Bueno Costa guma possibilidade de chegar a chefe de Estado, e aceder assim “a cabeça”, declarando-se publicamente, e então exemplarmente, vegetariano? O chefe deve ser devorador de carne (em vistas a ser, por outra parte, ele mesmo “simbolicamente” – ver mais alto – devorado). Para não dizer nada do celibato, da homossexualidade, e mesmo da feminilidade [...]. Contrariamente do que se crê frequentemente, a “condição feminina”, particularmente desde do ponto de vista do direito, se deteriorou desde século XIV ao XIX na Europa, atingindo o pior momento quando o código napoleônico inscreveu no direito positivo o conceito de sujeito no qual nós falamos (Derrida, 1992, p. 294-295). Na tentativa, já em andamento, de se pensar um deslocamento do sujeito, Derrida vai demonstrando que a esse conceito estão associadas as ideias de virilidade e comando, representadas pelo simbolismo do falo. Está subjacente ao conceito de sujeito uma miríade de “vetores de força” que o sustenta e o domina. Essa confluência de forças pode ser representada através das noções de autonomia, autoridade, virilidade e, ainda, por meio da permissividade do sacrifício – com a consequente introjeção da carne, seja ela efetuada de forma simbólica ou não. Esse esquema, para Derrida, representa uma configuração do dominante, “o denominador comum do dominante”, enfim, “o esquema dominante da subjetividade” (Derrida, 1992, p. 296). Ao considerar esse estado de coisas, Derrida reflete então sobre o “Bem” de todas as morais. Agora, o “Bem” da questão moral (e ética, diríamos nós) passaria pela necessidade de se reconhecer a melhor e a mais respeitosa maneira de se relacionar com o outro e o outro consigo mesmo. Por outro lado, não podemos esquecer que a todo modo de se relacionar com (ser-com) corresponde, também, uma metonímia da introjeção. Nesse hiato, diz G.H: agora eu ia ter que comer a barata mas sem a ajuda da exaltação anterior, a exaltação que teria agido em mim como uma hipnose; eu havia vomitado a exaltação. E inesperadamente, depois da revolução que é vomitar, eu me sentia fisicamente simples como uma menina. Teria que ser assim, como uma menina que estava sem querer alegre, que eu ia comer a massa da barata (Lispector, 2015, p. 141, grifo nosso). Se necessariamente comemos o outro, há de se comê-lo bem. Agora estamos falando sobre uma metonímia do “comer bem” (métonymie du “bien manger”). A respeito disso, Derrida nos expõe a seguinte ordem de ideias: A questão não é mais saber se é “bom” ou “bem” comer o outro, e qual outro. Come-se o outro de todas as maneiras e deixamos nos comer pelo outro. [...] A questão moral não é mais, jamais foi: é preciso comer ou não comer, comer isso e não aquilo, o vivente ou não-vivente, o homem ou o animal, mas já que é preciso comer bem de todas as maneiras e que isso é bem, e que isso é bom, e que não há outra definição do bem, como é preciso comer bem? [...] A questão infinitamente metonímica ao sujeito do “é preciso comer bem” 220 Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 DERRIDA E LISPECTOR: AS METONÍMIAS DO COMER BEM não deve ser nutrida somente por mim, por um eu, que então comeria mal, ela deve ser compartilhada, como dirá talvez, e não somente na língua. “É preciso comer bem” não quer de início dizer tomar e compreender em si, mas aprender e dar de comer, aprender-a-dar-de-comer-ao-outro. Não se come jamais tudo sozinho, eis a regra do “é preciso comer bem”. É uma lei de hospitalidade infinita [...]. O refinamento sublime em respeito ao outro também é uma maneira de “comer bem” ou do “comer o bem”. O bem também se come. É preciso comer bem (Derrida, 1992, p. 296-297, grifo nosso). Para compreendermos melhor o significado do “comer bem” é importante voltarmos ao que vínhamos expondo até aqui e religar alguns pontos. Conforme vimos acima, a estrutura sacrifical comentada por Derrida atua como um ponto de interseção segundo o qual promove a união do “quem” ao conceito de subjetividade, sendo certo que ambos serão religados ao ser humano. A partir dessa rede conceitual será instituído o postulado ético do “não matarás”, dirigido somente ao outro como outro ser humano, deixando o animal e o vivente em geral fora de seu âmbito de proteção. Ora, excluindo o animal, torna-se permitido matá-lo sem que esse gesto seja rotulado como crime (como ocorre de fato na maioria das vezes). É justamente esse esquema que legitima a experiência incontornável da introjeção (real ou simbólica) da carne, seja do humano, seja do animal. Vimos anteriormente que a subjetividade, ainda que pensada de maneira diferenciada por Heidegger e Lévinas, requisita ou chama a comparecer prontamente o homem. A subjetividade enquanto tal jamais é conferida ao animal. Essa constatação põe em foco os limites da distinção entre ser humano-animal13, o vivente e o não-vivente. Ainda mais, esse enlace entre a subjetividade e o ser humano, em termos éticos, faz aparecer, conforme observamos em Derrida, um esquema sacrificial. O modo de ser-no-sacrifício, como modo de ser do ser humano, estabelece como postulado ético maior o “não matarás”, que é dirigido ao outro como outro, ao outro como ser humano. Além disso, a estrutura sacrificial nos coloca de frente com a experiência incontornável da introjeção (real ou simbólica) da carne, do cadáver, do outro. Como diz Derrida, se deixa fazer aparente na incessante repetição do comer-falar-inte13 Quanto ao limite que divide o homem e o animal, Derrida é incisivo ao informar que sua proposta não tem a pretensão de contestar a tese da existência de uma ruptura ou abismo que separa o homem do animal. Como ele mesmo alerta, todo mundo está de acordo com essa tese, tanto o senso comum como o sentido filosófico. O interesse de Derrida caminha no sentido de analisar a limitrofia. Isso implica investigar não só o que nasce e cresce no limite, mas também do que alimenta o limite, multiplicando-o e complicando-o. O resultado dessa investigação é, antes de tudo, desfazer a linearidade do limite, fazendo-o crescer e multiplicar. O motivo dessa investigação gira em torno da descrença de Derrida em uma continuidade homogênea entre o que se chama o homem e o que ele chama o animal (Derrida, 2002, p. 59). Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 221 Adriano Negris e Pâmela Bueno Costa riorizar o/ao outro. Sob o mesmo ponto de vista, diz G.H.: “a tentação é comer direto na fonte. A tentação é comer direto na lei. E o castigo é não querer mais parar de comer, e comer-se a si próprio que sou matéria igualmente comível. E eu procurava a danação como uma alegria” (Lispector, 2015, p. 110). Comer e dar de comer, interiorizando o outro, G.H. rompe com o que é naturalmente humano, com as fronteiras da lei do sagrado, “entendi que, botando na minha boca a massa da barata, eu não estava me despojando como os santos se despojam, mas estava de novo querendo o acréscimo. O acréscimo é mais fácil de amar” (Lispector, 2015, p. 145). Dito de outro modo, relacionar-se com o outro já representa uma concepção-apropriação-assimilação do outro (Derrida, 1992, p. 296). Diante de toda essa correlação, Derrida, em pleno movimento de deslocamento, deixa entender que pelo fundo de toda questão moral transpassa uma necessidade de assimilar o outro e, para melhor atender a esse imperativo, dever-se-ia estar sempre atento à regra do “comer bem” (“bien manger”). Esse desejo de assimilar o outro também é descrito por Clarice: eu sabia que não era assim que eu deveria fazer. Sabia que teria que comer a massa da barata, mas eu toda comer, e também o meu próprio medo comê-la. Só assim teria o que de repente me pareceu que seria o antipecado: comer a massa da barata é o antipecado, pecado seria a minha pureza fácil (Lispector, 2015, p.140, grifo nosso). Uma vez que a instância moral e ética implica a lida com o outro, e que se relacionar com o outro envolve o movimento de introjeção (seja na concepção-apropriação-assimilação do outro), devemos fazer isso da forma mais respeitosa ao outro. Esse outro, a barata - o vivente não-humano, é um acontecimento na vida de G.H, pois se torna o outro. Em seu primeiro olhar vai desprezar, sentir nojo do animal, mas em um movimento de transcendência vai desejar ser o outro, dito de outra maneira, seu desejo é querer o outro, quando se ama, como vimos em Pentesiléia, existe o desejo de apropriação, seja para compreender ou para “engolir” o outro amado. Desse modo, ainda, que a necessidade de “comer bem” (pois “é preciso comer bem”) indica a proposta de submissão a uma lei de hospitalidade, voltada a reger o relacionamento com o outro. Assim, por meio da desconstrução da estrutura dominante (e também dominadora) que compõe uma subjetividade carno-falo-logocêntrica, foi possível aflorar o pensamento de um tratamento mais apropriado para alteridade, o torna-se outro. Nesse novo espaço que surge através da desconstrução do humanismo, o ético no sentido de ser o locus primeiro de recepção e abertura para o outro como alteridade. Dito de forma diferente, em termos clariceanos, essa abertura acontece na forma de um ato epifânico, no qual G.H. come a gosma branca da barata: 222 Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 DERRIDA E LISPECTOR: AS METONÍMIAS DO COMER BEM levantei-me e avancei de um passo, com a determinação não de uma suicida, mas de uma assassina de mim mesma. (...) Pois minha raiz, que só agora eu experimentava, tinha gosto de batata-tubérculo, misturada com a terra de onde fora arrancada. No entanto esse gosto ruim tinha uma estranha graça de vida que só posso entender se sentir de novo e só posso explicar de novo sentindo (Lispector, 2015, p.140). Essa estranha graça de vida, o tornar-se outro, como diz Derrida (1992), por tudo que se passa na borda dos orifícios (da oralidade mas também da orelha, do olho – e de todos os “sentidos” em geral) a metonímia do “comer bem” seria sempre a regra. Logo, em conformidade com o filósofo a questão não é mais saber se é “bom” ou “bem” “comer” o outro, e qual outro. Come-se de todo modo e deixa-se comer por ele. Alguns apontamentos finais … estamos sempre lidando com as possibilidades de interpretação. Nesse sentido, a conclusão entra em um jogo de im-possibilidade, pois estamos sempre lidando com algo que pode nos escapar. E, nesse contexto, o outro sempre escapa, e neste caso, como vimos, o sujeito escapa a uma liquidação. Derrida deslocou a questão proposta por Nancy, diferente dos demais pensadores que partiram de uma problematização e reinterpretação de maneira tradicional. A partir dos rastros da desconstrução, Derrida busca embaralhar as estruturas binárias de nossa linguagem metafísica para que venha aparecer “aquilo” que se furta da “coisa mesma”. Segundo Rafael Haddock-Lobo (2007, p. 86), a estratégia geral da desconstrução seria a neutralização das oposições binárias da metafísica, jogando luz sobre o que está “recalcado, reprimido, abafado, marginalizado”. Afirmando que o sujeito está reinterpretado, deslocado, reinscrito, porém, não está liquidado. Em consonância com o pensamento derridiano, o pretenso diagnóstico de liquidação do sujeito denunciaria a ilusão de uma reabilitação, uma promessa de salvação. Derrida em alguns gestos, reconhece a importância de Heidegger na abordagem sobre o Dasein, demarcando que não pode ser reduzido a uma subjetividade, mas, em contrapartida, o Dasein ainda é aquilo que responde à questão do “quem?”. O método fenomenológico empregado por Heidegger irá demonstrar que o ente que possui como modo de ser o questionar e a compreensão para o sentido de ser é o ente que a cada vez nós somos – o Dasein. É a proximidade a si, ou a presença a si desse ente que permite eleger o Dasein como ente privilegiado para a compreensão do ser. Neste sentido, o modo de acesso à questão do ser necessita de uma analítica prévia do modo de ser desse ente que nós somos. Logo, a analítica existencial do Dasein – que permitiu inúmeros desvios antropológicos na obra de Heidegger – torna-se imprescindível. Contudo, se esse ente que nós próprios somos é a via de acesso privilegiada à questão Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 223 Adriano Negris e Pâmela Bueno Costa do sentido do ser, não é menos verdadeiro que o signo “homem” deve ser entendido e preservado entre aspas para indicar o liame entre o discurso metafísico e o Dasein heideggeriano. Como observa Derrida, se o Dasein não é o ser humano, não pode deixar de ser outra coisa senão o ser humano. O Dasein é uma repetição da essência do homem que permite recuar aquém dos conceitos metafísicos da humanitas (Derrida, 1991, p. 167). Assim sendo, apesar de todos os deslocamentos e abalos que Heidegger provoca sobre o edifício metafísico e, em particular, sobre o próprio conceito de sujeito. O Dasein heideggeriano, este ente que nós somos e que se caracteriza, essencialmente – isto é, naquilo que lhe é mais próprio –, pela compreensão do ser, acaba ocupando o lugar do sujeito, preservando deste último certos traços que lhe são essenciais, como, por exemplo, e em primeiro lugar, aquele da relação a si. Como Derrida acentua em Il faut bien manger, os discursos Heidegger e de Emmanuel Lévinas descolam as bases do humanismo tradicional. No entanto, o que parece mais relevante para o filósofo da desconstrução é que tanto em Heidegger como em Lévinas não renunciam a uma certa estrutura sacrificial. Por esse motivo, Derrida diz que o sujeito (no sentido de Lévinas) e o Dasein são “homens” em um mundo onde o sacrifício é possível e onde não é proibido atentar contra a vida de uma maneira geral, exceto à vida do homem, do outro próximo, do outro como Dasein (Derrida, 1992, p. 296). O diálogo entre Derrida e a personagem G. H., de Lispector nos possibilitou refletirmos sobre o “não sacrifício do sacrifício” e as metonímias do comer bem. O “comer” é uma metonímia, referindo-se à apropriação, ligado à estrutura sacrificial e a definição do que é um ser-vivente. A regra do comer bem está diretamente ligada ao “refinamento sublime” no respeito ao outro. Num alumbramento de questões, o mais banal cotidiano se tornou um encontro com a experiência de alteridade. Em Clarice: “o humano só pode ser verdadeiramente pensado em sua perspectiva com o não humano” (Nascimento, 2021, p. 52). Os limites entre o humano e o não-humano atravessam as obras de Derrida e Lispector, colocando em cena e desconstruindo um olhar carno-falo-logocentrico que vigora e domina a questão do sujeito em toda sua extensão. Como vimos, G.H. produz um mergulho na condição humana, quando deslocada de sua banal condição, seus instintos afloram, e dessa forma, se aproxima e rasga as barreiras impostas por uma sociedade que nega os viventes não-humanos. Nesse cruzamento com a obra clariceana, nos deparamos com o estranho familiar, com o poeirento e rastejante mundo da barata. Nessa imagem-questão, G.H. nos convoca a pegar as suas mãos e mergulhar no úmido mundo não-humano. Ela é um corpo pulsando desejo de ser. Nesse embalo, notamos um corpo com uma estranha vontade do 224 Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. II | n.41 | 2024 DERRIDA E LISPECTOR: AS METONÍMIAS DO COMER BEM desconhecido e de acessar o proibido de um mundo misterioso - o mundo animalesco. O horror diante de um rosto, o estranho sempre habita o ser humano, o constitui, repete-se, retorna, mesmo no recalcamento, o estranho aparece, surge, brota e desvela outras possibilidades. Derrida evidencia que a relação com o outro deve ser marcada pelo respeito, como princípio deve ser desigual, como vimos o que, em diálogo com Lévinas, chamou de dissimetria absoluta do outro. Encontramos essa assimetria na relação de G.H. com a barata. Portanto, esse estado de dissimetria é aquilo que escapa ao cálculo, a previsão, aquilo que aparece (ou pode vir a aparecer) a partir de um horizonte demarcado. Todavia, podemos compreender que o encontro de alteridade entre a personagem clariceana e a barata possibilitou uma intertroca de papéis. Nesse sentido, a personagem G.H. é marcada por uma relação de intertroca como animal, vivenciando a metamorfose mergulhada na “experiência de se tornar-se outro/outra”, ao trazer à baila o choque com o não-humano, outra ética aflora, a ética do radicalmente Outro - é o movimento de outrar-se. Derrida e Lispector nos possibilitam elementos para questionarmos a visão falo-logocêntrica implicada na instituição do “quem”. Outrossim, a literatura de Clarice produz ao nosso entendimento a imagem-questão, elucidando a experiência de alteridade radical de G.H e a barata, tal como é proposto por Derrida. Nesse viés, diante das inúmeras questões, não tivemos em vista provar algo, mas, sim, provocar. Dito isso, o nosso esforço se concentrou nas questões apresentadas por Derrida, em uma possível aproximação com a literatura. Derrida e Lispector trazem elementos que evidenciam questões sobre os limites do que é humano e as fronteiras que separam os viventes humanos e não-humanos, em uma concepção-apropriação-assimilação do outro. Em suma, em uma relação com o outro, é preciso colocar o “comer bem” em jogo. Comer quem? Quem responde a esse “quem” da pergunta? Se é preciso comer, então, como se comer o outro? Hoje, mais do que nunca, é preciso pensar em nossas metonímias do comer, pois, como afirma Derrida (1992), o que resta por vir ou o que permanece escondido em uma memória quase inacessível é o pensamento de uma responsabilidade que ainda não termina na determinação do quem … Bibliografia BENNINGTON, Geoffrey. Desconstrução e Ética. In: DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar (Org.). Desconstrução e Ética – ecos de Jacques Derrida. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio; São Paulo: Editora Loyola, 2004. Revista Ítaca | UFRJ | Dossiê Derrida vol. 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