https://doi.org/10.53971/2718.658x.v15.n24.43365
Antonio Manuel, corpo crítico
Artur de Vargas Giorgi
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
[email protected]
ORCID: 0000-0003-0942-2595
Recibido: 12/07/2023. Aceptado: 19/ 08/2023
Resumen
Lo que intentaré subrayar en las páginas siguientes es la singularidad de la figura crítica del
cuerpo, o incluso, la especificidad del cuerpo como crítica, en algunas obras de Antonio Manuel
de los años sesenta y setenta. En el cuerpo del artista, en su aparición —es decir, como
emergencia estética—, se configura un acontecimiento en el que se pone en juego la cuestión
ética por excelencia —la decisión—, como reivindicación de una vida posible.
Palabras clave: Antonio Manuel, cuerpo, crítica, arte contemporáneo latinoamericano
Antonio Manuel, critical body
Abstract
In the following pages I will try to underline the singularity of the critical figure of the body, or
even the specificity of the body as criticism, in some of Antonio Manuel’s works from the
sixties and seventies. In the artist’s body, in its appearance —that is, as an aesthetic
emergency— an event is configured in which the ethical question par excellence —the
decision— is put into play, as a vindication of a possible life.
Keywords: Antonio Manuel, body, criticism, Latin-american contemporary art
O protagonismo do corpo na arte contemporânea é inquestionável. Modulações da sua
presença tornaram-se recorrentes desde os anos 1960, em diversos cenários e situações, e a
partir de diferentes proposições estéticas, éticas e políticas. Nas linguagens do happening e da
performance, em obras ambientais e instalações, no teatro e na dança, dentro e fora dos espaços
institucionais, o corpo foi exposto, mobilizado, enfim, tensionado, uma e outra vez, por artistas
ligados às neovanguardas, em experiências que recolocavam de muitos modos o
questionamento sobre os limiares entre arte e vida. Oscar Bony, Joseph Beuys, Rudolf
Schwarzkogler, Marina Abramović, Chris Burden, Yoko Ono, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Bas
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Jan Ader, Rebecca Horn, Raúl Zurita, Diamela Eltit, Pedro Lemebel e Francisco Casas (como
as Yeguas del Apocalipsis), Tania Bruguera (etc.) – seria mesmo inviável propor uma relação
dos artistas que fizeram do corpo (próprio, do outro) uma espécie de obra limite (a rigor
insustentável, talvez). Com Antonio Manuel, artista que procuro destacar, é possível dizer que,
mais do que um vetor para a arte, o corpo é de fato um operador crítico central.
Tentarei apontar como uma definição de crítica se constrói em relação com o corpo, a partir
de alguns trabalhos emblemáticos desse artista nascido em Avelãs de Caminho, Portugal, em
1947, e radicado no Brasil a partir de 1953, quando se muda para o Rio de Janeiro com sua
família. Entre textos, imagens, depoimentos e intervenções diretas, Antonio Manuel elabora
uma noção muito singular de obra, de caráter ao mesmo tempo propositivo e disruptivo, muito
marcada, certamente, pelo contexto político-social da ditadura e pelas relações travadas com
instituições (como o MAM – Rio, na pessoa de Niomar Moniz Sodré), críticos de arte (como
Mário Pedrosa, Frederico Morais, Romero Brest) e outros artistas atuantes nas décadas de 1960
e 1970 (Raymundo Colares, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Lygia Clark, Ivan Serpa, Artur Barrio,
Carlos Zílio, Cildo Meireles, etc.). Mas, antes de discutir como isso se dá, é necessário explicitar
o protocolo de leitura aqui adotado, destacando primeiro o que não será feito.
Não é o caso de traçar genealogias, estabelecendo os pioneirismos, os desenvolvimentos e
as manifestações dos epígonos, num quadro formal evolutivo que reconheceria os centros de
referência global e, logo, os espaços periféricos ou marginais, onde se daria a irradiação das
“influências”, de modo sempre segundo, deslocado, num tempo tardio. Uma proposta como
essa, como sabemos, naturaliza uma narrativa pretensamente universal a respeito da história da
arte moderna no Ocidente, acatando, mesmo que de maneira inadvertida, o que ela tem de
violenta e excludente; em outras palavras, é uma leitura que tende a obliterar a complexa
dinâmica dos contatos e das experimentações estéticas, uma dinâmica que no mundo
contemporâneo mostra-se descentrada, não-hierárquica, e que só pode ser bem compreendida
se situada em suas próprias coordenadas, isto é, levando em conta a pluralidade dos seus termos,
agentes, proposições, contextos, relações, etc.
Ou seja, não se trata, aqui, de propor mais um retorno a Duchamp, para neste caso
necessariamente identificar, digamos que em torno da aparição de Rrose Sélavy (1920-1921), a
incontornável gênese da performance e do travestimento do corpo (como invenção de si
mesmo) na arte moderna1; como um recurso que, somente depois disso, e seguindo essa lógica
tributária das fontes e das filiações, seria reconhecido, generalizado e transformado em
procedimento a ser replicado por um corpus de artistas, coletivos e obras, em outros espaços
para além de metrópoles como Paris e Nova Iorque.
Ora, a explicação das experiências de Flávio de Carvalho, por exemplo —experiências muito
importantes para Antonio Manuel e nas quais, é claro, o corpo e suas próteses ocupam também
a centralidade das situações performadas—, não se encontra, necessariamente, nessa
ascendência2. E mesmo a apropriação de “Rose Selavy” feita por Manuel em 1975 (Figura 1)
se dá por uma via distinta, que ativa outros efeitos: é por meio do trabalho direto sobre a matriz
de impressão do jornal (chamada flan), numa montagem pós-autônoma, que o artista articula
uma releitura do moderno —mais especificamente dos clichês do plano ortogonal construtivista
(concreto/neoconcreto) e do pop norte-americano—, com a comunicação de massa e a crítica
cifrada à violência da ditadura brasileira3. Assim como outras intervenções em jornal feitas pelo
autor, o readymade Wanted Rose Selavy aparece desse modo bem mais próximo de outras
realidades: como aquela do marginal/herói propugnado por Hélio Oiticica em 1968, ambos os
trabalhos plenamente situados no que então é a vida, para inúmeros sujeitos, num país sob
regime de exceção, no Cone Sul; ou a realidade da arte dos meios de comunicação, tal como
realizada por Eduardo Costa, Roberto Jacoby e Raúl Escari, em 1966, na Argentina, em sintonia
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com as teorias de Oscar Masotta4; ou a denunciada por León Ferrari em 1976, entre o golpe
militar na Argentina e o exílio em São Paulo, por meio da montagem de notícias dos diários
sobre corpos que apareciam nas margens do Rio da Prata, em diferentes bairros da capital e em
outras províncias (Nosotros no sabíamos); ou ainda a realidade enfrentada por artistas reunidos
na chamada Avanzada chilena, depois de 1973, com obras hipercodificadas que “se volvieran
expertas en travestimientos de lenguajes, en imágenes disfrazadas de elipsis y metáforas”, como
escreveu Nelly Richard em Fracturas de la memoria (2007, p. 22).
Figura 1
Wanted Rose Selavy
Nota. Antonio Manuel. Wanted Rose Selavy, 1975. Matriz para impressão de jornal. 56,5 x 37,5 cm.
Foto: Wilton Montenegro. Fonte: Süssekind e Dias, 2018, p. 12.
Sigamos de outro modo, portanto: dando atenção à proposta de Andrea Giunta, que em seus
trabalhos vem reiterando que os contextos definidos após a Segunda Guerra Mundial se tramam
com suas diferenças específicas, mas a partir de um “horizonte cultural compartilhado” (2022,
p. 45). É em condição de horizontalidade que as neovanguardas elaboram simultaneamente, em
diversos cenários, o arquivo da arte moderna e seu relato canônico. E, seguindo com essa
leitura, podemos ver a interrupção desse mesmo relato, seus valores e itinerários aparentemente
consolidados; em uma palavra, vemos ser impugnada a sua teleologia. Vale acompanhar o
argumento da autora em Contra o cânone:
A história não se produz em um lugar e logo se replica em outro. Ao menos
desde os anos sessenta, e observada a arte no diagrama que propõe sua própria
história, em distintas cidades se experimentava a partir da noção de inovação, de
uma linguagem que emergia como nova, para além de que, dotados dos
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instrumentos da história, hoje possamos ver seus traços repetitivos. É nos anos
sessenta que se rompe definitivamente a ideia de autonomia da linguagem
artística; que os materiais da própria vida, pura heteronomia —collage,
assemblage, readymade, happenings, performances—, se instalaram
definitivamente entre as expressões da arte; que as formas deixaram de evoluir
– ainda que os estilos do centro seguissem se acumulando em uma ordem que
reproduz a autorreferencialidade da linguagem (conceitualismo, minimalismo).
A relação que no decorrer dos anos sessenta foi se estabelecendo entre a
vanguarda e a política; o abandono, em certo sentido, da representação de que a
transformação da linguagem envolvia a da sociedade; a relação entre arte e a
ação direta, o ativismo, a vinculação com os movimentos de estudantes, com a
luta operária, com os sindicatos, com o feminismo: todos estes cenários
simultâneos marcam, em meu entendimento, o momento no qual a
contemporaneidade se inscreve no campo da arte. (Giunta, 2022, p. 49)5.
Nesse sentido, mas agora de maneira afirmativa: o que tentarei, sim, sublinhar nestas páginas
é a singularidade da figura crítica do corpo, ou ainda, a especificidade do corpo como crítica,
em alguns trabalhos de Antonio Manuel situados entre as décadas de 1960 e 1970. No corpo do
artista, ou no corpo do outro, em sua aparição —isto é, como uma emergência estética
(aisthesis)—, configura-se um evento em que a questão ética por excelência —a decisão— é
colocada em jogo, como reivindicação de uma vida possível.
Podemos dizer que os trabalhos em questão tomam parte na configuração de um contexto
cultural, de um tempo-espaço, uma época. Isto é, assim como respondem a uma situação bem
determinada, também a elaboram, interrogando e dando a ver seus contornos mais ou menos
latentes, formulando seus entendimentos possíveis, determinando, afinal, em alguma medida,
seus sentidos. São os trabalhos, são as obras que estabelecem as coordenadas principais, com
as quais podemos acessar a complexidade material e simbólica das tramas da cultura. No caso
de Antonio Manuel, indissociáveis do corpo, elas são o nó, o nervo da história, que pulsa entre
o individual e o coletivo.
O estabelecimento de uma relação muito material, isto é, uma relação muito corpórea,
mesmo, com a arte parece traçar a continuidade na diversificada produção do artista. Se ela se
mostra no trabalho direto —definido por Manuel como “interferência”6— aplicado sobre a
matriz gráfica do jornal —um elemento realmente plástico, ou seja, moldável, aberto à
produção, à poiesis—, também está presente nas Urnas quentes, apresentadas na manifestação
Apocalipopótese, idealizada por Rogério Duarte e Hélio Oiticica e que aconteceu em 1968 no
Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Caixas de madeira lacradas, como urnas ou caixões,
invocavam a pesada atmosfera de encerramento vivida sob o governo castrense, desde o golpe
de 1964. Mas, ao mesmo tempo, tais urnas reivindicavam a saída, a abertura, em suma,
articulavam a criação com a crítica, já que estava em jogo um momento decisivo —o que
sempre envolve um discernimento, um juízo—, quando na situação o público decidia agir sobre
os objetos, rompendo violentamente a sua clausura, para então poder conhecer o que os volumes
continham (Figura 2). Em depoimento, o artista afirma:
Eram vinte caixas ao todo e, quando quebradas a porretadas, descobria-se o
código de cada uma delas. Uma das urnas sensibilizou muito o Hélio Oiticica,
porque dentro dela havia a imagem de um menino esquelético de Biafra… O
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crítico Guy Brett, em um artigo sobre a exposição que eu fiz em Portugal no
Museu Serralves, faz uma associação entre a Urna quente e o AI-5 (Ato
Institucional nº 5), que foi assinado, como todos sabem, em dezembro de 1968
e que, justamente, proibia o voto. Segundo ele, a obra, o ato de quebrar a urna
quente, remetia à proibição do voto, o que impedia que se elegessem
representantes para o legislativo e o executivo ... Acho que as Urnas quentes são
uma linguagem. Por isso é que podem ir a qualquer lugar. São objetos que
precisam ser violados para que se veja o seu interior e se descubra, assim, qual
é o seu código. (Süssekind e Dias, 2018, pp. 22-23).
Figura 2
Urna quente
Nota. Antonio Manuel. Urnas quentes, 1968. Madeira, lacre, fotografia.
Still do filme Guerra e paz Apocalipopótese, de Raymundo Amado, 1968. PB, 16 min.
Fonte: Süssekind e Dias, 2018, p. 23.
A situação provocada por Antonio Manuel parece não se afinar com a visão da tábula rasa,
muito frequente, como sabemos, entre artistas das primeiras vanguardas do século e ademais
condutora da mentalidade fundadora das empresas coloniais (Cf. Giorgi, 2023; Gorelik, 2005;
Romero, 2011). Por outro lado, mantém sintonia, por exemplo, com ações de Marta Minujín —
que em 1963, propondo a destruição de obras suas, afirmava “crear al destruir” (Giunta, 2008,
p. 150)— ou de um grupo de artistas reunido em torno de Kenneth Kemble e da exposição Arte
Destructivo, que ocorreu em 1961, em Buenos Aires. Como assinala Andrea Giunta: “La idea
de destrucción estaba presente en varios enclaves de la vanguardia internacional” (2008, p.
139). Mas o que aí se agregava, “como elemento central, era el trabajo sistemático sobre la idea
de violencia y de destrucción. La unidad conceptual del conjunto estaba dada, precisamente,
por la investigación de los resultados de una acción violenta ejercida sobre los objetos” (Giunta,
2008, p. 139).
Nas Urnas quentes, o resultado da ação do corpo sobre a obra era, de acordo com Antonio
Manuel, a descoberta de um código até então barrado: o acesso a uma linguagem que surgia
como nova e, no fim da década, no Brasil, articulava o que o artista entendia por “expressão de
revolta”; uma expressão estética aliada à arte pública, ao sofrimento do povo (2010, p. 23), em
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tensão com o período em que se eclipsavam as democracias modernizadoras na América Latina.
A mesma dinâmica de desvelamento envolvia um grande díptico em silkscreen sobre madeira,
a respeito do movimento estudantil e outras manifestações populares, feito a partir de notícias
e levado pelo artista, no mesmo ano, para a II Bienal da Bahia, que foi invadida e fechada pelos
militares. A sintonia com outros cenários se mantém: na Argentina, de maneira semelhante, a
escalada da década, sobretudo após o golpe de Estado de 1966, seria marcada pela radicalização
política das ações das vanguardas, que se afirmariam cada vez mais pelo enfrentamento com as
legitimações institucionais (galerias, prêmios, institutos), em razão do complexo papel que
esses espaços e seus circuitos desempenhavam na configuração das forças culturais do
Ocidente, durante a Guerra Fria. Tucumán arde, mostra realizada em 1968, na cidade de
Rosário, seria o ponto culminante desse processo (Cf. García, 2011; Giunta, 2008; Longoni e
Mestman, 2010).
Elemento constituinte de inúmeras obras nos anos 1960, a participação —sua urgência, suas
possibilidades e também seus limites— estava em debate. Mário Pedrosa, em texto de 1970 —
texto em que aponta, aliás, a crise da crítica, diante da mesmice protocolar que parecia tomar
conta das cerimoniosas Bienais de São Paulo— já anotava que no evento de 1967 o “tabu do
‘não me toques’ é afinal abandonado” (2007, p. 301).
E os espectadores em massa enfim compreendem, e aceitam, o convite à
participação. A vanguarda do público, isto é, as crianças, não se retém mais.
Mexem por toda parte e adoram. Os adultos, ou a retaguarda, os seguem. O
resultado é uma destruição total ou quase, numa alegria contagiosa. O público
ou o povo, em tudo em que se mete em massa, e com prazer, é em si mesmo
bárbaro, condição aliás sine qua non para todas as grandes iniciativas. Como as
crianças, ele só aprende destruindo. E realmente, após dias de abertura, não havia
mais obras intactas na Bienal, e as engrenagens elétricas e mecânicas haviam
saltado todas. As máquinas e motores estavam fora de uso, os interruptores
destroçados, as luzes apagadas e os sons mudos. Nas salas brasileiras, para as
quais um júri da seleção de missionário, sob a ascendência de Mário Schenberg,
deixou passar tudo, ... bastando para tanto que algum embrião de idéia
despontasse, as geringonças montadas, muitas delas a duras penas, não
resistiram ao contato, ao bulir do espectador. Ao fim do certame, só havia ruínas,
destroços, principalmente no pavilhão brasileiro. E não se sabia se ali tinha
havido um dia de maravilhosa festa ou uma feroz batalha de vândalos. O povo
consagra a arte nova. (Pedrosa, 2007, p. 301).
A obra-limite de Antonio Manuel —O corpo é a obra— aponta emblematicamente essa
condição polêmica, de aparente esgotamento. Ao apresentar a si mesmo como obra, no contexto
do XIX Salão Nacional de Arte Moderna, que ocorreu em 1970 no Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro, o artista impugnou o isolamento e os suportes tradicionais da arte, com isso
extremando uma pesquisa que se estendia, por um lado, aos intercâmbios da arte abstrata e, por
outro, às derivas da participação, no sul da América Latina: nesse sentido, lembremos, por
exemplo, a proposição do marco recortado praticada pelos artistas concretos ligados à revista
Arturo (Tomás Maldonado, Rhod Rothfuss, Gyula Kosice, etc.), de meados dos anos 1940; ou
as propostas incontornáveis de Lygia Clark (Composição n. 5: quebra da moldura, Bichos, A
casa é o corpo, etc.), de Hélio Oiticica (Bólides, Penetráveis, Parangolés, etc.), de Marta
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Minujín e Rubén Santantonín (La Menesunda), e de Oscar Bony (La familia obrera), entre as
décadas de 1950 e 1960 (Cf. García, 2011; Giunta, 2008).
Em outras palavras, ao reivindicar que o corpo é a obra, Manuel faz um gesto disruptivo,
mas também propositivo, já que nele confluem novamente, de modo assertivo, a crítica e a
criação. Além disso, é um gesto que faz coincidir instâncias separadas pela lógica disciplinar
moderna, ou seja, trata-se de um gesto que abole a separação entre sensato/sensível,
sujeito/objeto, autor/obra, arte/vida, cultura/natureza (etc.), colocando em questão, de modo
decisivo, o embotamento crítico dos certames, o impasse na relação travada com as instituições
e a limitação dos efeitos políticos e éticos da produção estética, naquele momento de intensa
repressão que tomava conta do Brasil.
Em depoimentos e entrevistas —às vezes com pequenas variações que, afinal, não são
estranhas aos relatos autobiográficos— o artista reconstrói a memória do evento. Manuel
compareceu ao Salão Nacional fazendo a inscrição do seu corpo como obra. “Escrevi como
título da obra meu nome, as dimensões eram as do meu corpo etc. Fui cortado”, afirmou o artista
em entrevista de 1986 (2010, p. 80). Sobre a avaliação dos jurados (Frederico Morais, Edyla
Mangabeira Unger, Loio Pérsio), que com efeito recusaram a sua inscrição, lemos num
depoimento dado a Francisco Bittencourt, em 1975: “O júri disse que aquilo era uma loucura.
Na verdade, seus membros não entenderam nem curtiram coisa nenhuma” (Manuel, 2010, p.
61). Era importante para o artista o traço derrisório que envolvia sua proposta:
Eu esperava ser aceito como obra e até receber um prêmio de aquisição. Com
esse prêmio, eu passaria a ser propriedade do Museu Nacional de Belas Artes e,
daí por diante, receberia todos os cuidados de uma obra. Casa, comida, roupa e
até uma pensão. ... Esse lado humorístico me interessava muito. (Manuel, 2010,
p. 62).
E num relato feito ainda em junho de 1970, publicado em O Jornal:
Depois que eu bati papo com o júri, não no sentido de explicar alguma coisa,
mas de citar razões para minha atitude, eu disse, no final, que queria ficar lá.
Afinal, como obra, eu tinha o direito de assistir ao resto do julgamento. Aí eles
não deixaram. (Manuel, 2010, p. 30).
Seja como for, sabemos que, no momento da inauguração, Antonio Manuel, a obra recusada,
estava presente, sim. E decidiu fazer dessa situação a oportunidade para enfim realizar-se, isto
é, para fazer-se a obra, o que para o artista era igualmente a realização de um pensamento
(Manuel, 2018). “E, apesar do júri e do museu, no dia da abertura do salão, eu me apresentei lá,
junto com uma modelo da Escola de Belas-Artes que se chamava Vera [Lucia]” (Süssekind e
Dias, 2018, p. 24). No caso, a apresentação consistiu em despir-se aos poucos, discretamente,
até ficar completamente nu (Figura 3). Um gesto radical de despojamento e afirmação que foi
acompanhado por aplausos de parte do público7.
Figura 3
O corpo é a obra
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Nota. Antonio Manuel. O corpo é a obra, 1970. Fotografia PB. Coleção Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro.
Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira.
Neste ponto, gostaria de comentar dois textos que ajudam a situar a discussão em torno da
apresentação. Ronaldo Brito foi um dos críticos que salientou o gesto —a “manobra”— de
Manuel como uma espécie de paroxismo da cultura brasileira. Num breve texto escrito já com
distanciamento, em julho de 1983, ele apontou a seu modo o impasse a que Pedrosa já fizera
referência (as questões da participação, do engajamento político, da dissolução da arte
tradicional, etc.), destacando primeiro a especificidade da geração do artista:
Não se trata, portanto, do universo fechado (por extensão eterno) de uma obra.
O embate com essa totalidade ideal é a marca da geração de A. Manuel (Cildo
Meireles, Barrio, R. Collares [sic] e Umberto Costa Barros) – era ela, como
configuração dominante, o que estava sendo atacado e questionado. Ao
contrário, a arte com a minúsculo virava o exercício singular e incerto de uma
sensibilidade em choque cotidiano com a Ordem. O objetivo era atritá-la,
denunciar a sua falta de fundamento. Somente a partir da finitude radical da obra
de arte —do homem, em suma— é que se tornaram possíveis, inevitáveis
mesmo, as primeiras intervenções de Antonio Manuel. Por isso, a obra se encerra
na manobra. (Brito, 1984, p. 7).
Em seguida, o crítico aborda o “Nu” à luz das propostas locais, vigentes no período – para
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afinal destacar o que parece ser o nó “trágico”, a condição quem sabe impossível do gesto de
Manuel. Vale acompanhar o trecho:
As “propostas” mais ingênuas da Nova Objetividade ignoram, até certo ponto, a
desconstrução neoconcreta do trabalho de arte —embora usando, com
freqüência, os seus esquemas espaciais— para lançá-lo na política. A
Participação aí se dá apenas na diluição do sentido “sagrado” da arte em meio
ao cotidiano – daí a extrema importância atribuída aos mass-media. No entanto,
profundamente, em nenhuma instância se percebe a informação Pop e sua
operação negativa e corrosiva. Esta se passa ao nível da própria identidade da
arte, girando ao redor de sua autodissolução como uma das principais formas do
saber moderno. Assim como há um certo surrealismo, sem transcendência,
embutido na Pop, há um construtivismo, ou seja, uma certa crença positiva no
valor da arte, atrás das investidas do Novo Realismo Brasileiro.
O Nu de Antonio Manuel expressa, singela e exemplarmente, esta
contradição. Só em nosso ambiente ele é inteligível, somente aqui detona a sua
ambígua explosão, a sua forma inocente e dramática de exibição. A questão era
assumir a destruição da interioridade da obra de arte e, ao mesmo tempo, utilizála como veículo de provocação política. Há a denúncia do idealismo – a rigor,
fenomenologicamente, toda obra é corpo, pelo menos, corporeidade. Logo, o
próprio corpo se torna obra, com sua beleza humana, por demais humana; isto
é, mortal. Mas há junto, no contexto, o ato político —estão sendo diretamente
atacados o elitismo da Cultura e a Repressão do Sistema. Cabe à arte atuar,
resumir-se até, a esse embate— viver no centro dele. Quer dizer: uma linguagem
de dissolução, negativa, visa também afirmar-se positivamente. E não sei se é
lícito falar aí em astúcia dialética. Talvez o caso seja mesmo trágico: o
construtivismo social-democrata negado, virado ao avesso, acaba e só pode
acabar numa espécie de terrorismo artístico.
Ao se expor literalmente, Antonio Manuel faz cruzar em si vários feixes – os
Bichos de Lygia Clark, a Tropicália de Oiticica e o Lute de R. Gerchman,
misturados à voracidade característica de sua geração. O Nu condensa assim
uma série de esforços de linguagem locais mas evidencia também a sua relativa
ineficácia, a sua relativa irrealidade dentro da cultura brasileira. Por isso, ao
olhar histórico, há algo de triste nesse momento de alegria narcisista e
iconoclasta; a sua solidão, a sua fragilidade como manobra libertária frente ao
peso do obscurantismo vigente. (Brito, 1984, pp. 8-9).
Em suas considerações, Ronaldo Brito reúne as forças tensoras atuantes sobre o corpo de
Antonio Manuel no evento de maio de 1970. Apesar de acentuar, no trecho final, a “relativa
ineficácia, a sua relativa irrealidade dentro da cultura brasileira”, o crítico não deixa de frisar,
no gesto “trágico” do artista, o caráter duplo, ao mesmo tempo afirmativo e dissolutivo, ou
propositivo e disruptivo, como sugerido desde o início deste texto. Pois a meu ver é justamente
esse caráter cindido, ou seja, vinculado à de-cisão, à crítica, o que dá ao corpo-obra de Antonio
Manuel uma força expansiva, potente em suas atualizações possíveis; uma força, portanto, que
o obscurantismo não pode obliterar completamente; uma força, enfim, capaz de postular que o
fenômeno estético não se dissocia do corte ético, e que é no espaço-tempo do trabalho artístico
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que vemos ser colocada em jogo, a cada vez, em cada obra, a emergência dessa condição
originária, que abala os fundamentos da “Ordem”. Não à toa, a apresentação seria muitas vezes
retomada e diferida pelo próprio artista, em objetos (como Corpobra), textos, intervenções em
jornal, instalações, etc8.
Logo após o evento, Manuel seguiu com Hugo Denizart e Alex Varella para a casa de Mário
Pedrosa, que já fora informado da intervenção do artista. Parte da conversa que tiveram foi
gravada, sendo depois transcrita por Lygia Pape (com o mesmo título de “O corpo é a obra”).
Na ocasião, Pedrosa comentou com entusiasmo a apresentação. Sua insistência no aspecto ético
do gesto de Manuel é o que mais interessa aqui:
Você voltou, depois, às origens... Você foi ao fim de todo esse processo. De um
modelo de uma arte que não é obra, a arte que se desmancha em si mesma – na
ação. Criativa e se desmancha...
Além disso, é de uma negatividade absoluta; toda a negatividade é criativa.
Rompe todos os tabus, leva ao fim de todos os tabus, rompe tudo, no plano ético,
no plano sexual, moral – no plano criativo...
Transcende o plano da discussão puramente estético – em função de uma
obra. É a própria vida. Não se discute mais uma obra feita, mas uma ação
criadora. É uma arte eminentemente de vanguarda. É um aspecto da revolução
cultural, onde se rompem os tabus.
O fato de, hoje, você ter feito isso, sacode toda a perspectiva da arte, a
discussão estética, a discussão ética, a discussão sobre arte. Discute tudo. E com
uma autenticidade enorme. O que Antonio está fazendo é o exercício
experimental de liberdade...
A arte é a única coisa que é contra a entropia do mundo. Caída no estado da
homogeneidade da morte – arte foi sempre assim, mas ela precisa chegar às suas
origens. E a um despojamento total.
Você colocou tudo o mais num plano estético. Toda aquela problemática da
arte pobre etc. Também fica no plano estético, porque não reúne, ao lado do
plano criativo, o lado ético. Você colocou de uma maneira esplêndida o
problema ético. Toda a arte de hoje – toda atividade-criatividade. O problema
ético aparece de uma maneira espantosa – porque só tem significação a partir do
problema ético. (Pedrosa, 2013, pp. 91-95).
As palavras de Pedrosa designam a potência do gesto do artista não apenas pelo que afirmam:
por diversas vezes, a fala do crítico gira em torno do ponto que lhe parece central, como se
buscasse um contorno, um marco, os termos precisos para essa situação que emerge e diante da
qual parecem faltar conceitos. Desse modo, suas palavras são significativas da centralidade que
uma obra —o fenômeno estético, um corpo— assume no enfrentamento e, também, na
elaboração dos sentidos das experiências compartilhadas.
Com O corpo é a obra, vemos que a arte mantém essa complexa relação com seus contextos
de aparição, não podendo ser reduzida a um mero reflexo das condições econômicas ou sociais.
Ao contrário, em termos estéticos —como aisthesis—, é a arte que interpela, perturba, abala,
não podendo ser completamente assimilada pelas formas da cultura; assim como é ela que, no
limite, pode conduzir as tomadas de posição dos sujeitos, dessa maneira participando
ativamente da construção dos sentidos, dos processos de reorganização material e simbólica do
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mundo – ainda que tais construções e processos sejam sempre polêmicos, parciais e provisórios.
Nesse sentido, uma obra pode ter força para inaugurar a sua situação, seu contexto de
entendimento; ou seja, fazendo-se, afirmando-se, pode ser capaz de expor o fundamento vazio
da Ordem, como queria Ronaldo Brito, ou pode ser capaz de chegar às origens, como disse
Pedrosa, uma condição na qual estão mutuamente implicadas a estética e a ética.
Em suas lecturas tras el agotamiento, Raul Antelo deu o nome de pós-fundacional a essa
condição que, em suma, é comum à arte e à crítica, ambas situadas entre a disrupção e o
fundamento, em seu jogo sem fim:
Habría que aclarar, inicialmente, que una lectura posfundacional no afirma la
total ausencia de fundamento de los juicios estéticos, aunque suponga, eso sí, la
imposibilidad de un fundamento último, lo cual implica, por un lado, el
reconocimiento da la contingencia y, por el otro, que lo estético es el momento
de una fundación siempre parcial y, consecuentemente, fallida, de la institución
arte. El acontecimiento artístico denota un momento dislocador y disruptivo, en
el cual los fundamentos efectivamente se derrumban, de modo que la autonomía
y la historicidad se han de fundar, de ahí en más, sobre la premisa de la ausencia
de un suporte inapelable. El juego interminable entre el fundamento y el abismo,
que atraviesa tanto el arte como la crítica, sugiere también aceptar la necesidad
de decisión, basada siempre en la indecibilidad ontológica, y asimismo ser
conscientes de la división, la discordia y el entrevero que generan tales juicios,
una vez que cada decisión deberá confrontarse con demandas y fuerzas
antagónicas entre sí. La diferencia conceptual entre el arte y lo estético asume
así el rol de un indicio, huella o síntoma del fundamento ausente de la sociedad.
(2015, pp. 209-210).
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Notas
1
“In the formulation of an aesthetic that has its obvious dangers, particularly that of turning oneself into a myth,
the need for Rrose Sélavy is clear. She allows Duchamp to be himself, gives him a freedom in which to operate in
any way he likes” (McShine, 1989, p. 129). [“Na formulação de uma estética que tem seus perigos óbvios,
principalmente o de fazer de si mesmo um mito, fica clara a necessidade de Rrose Sélavy. Ela permite a Duchamp
ser ele próprio, dá a ele liberdade para operar da maneira que quiser”].
2
Como escreve Larissa Costa da Mata: “Intelectual anarquista, educado na Inglaterra, o artista Flávio de Carvalho
(1899-1973) aproximou-se da vertente antropofágica do modernismo brasileiro a partir de seu retorno da Europa
com projetos arquitetônicos inovadores, como o do Palácio do Governo (1928)... Desenhista exímio e retratista,
causou polêmica com os nus femininos na década de 1930... Ator de diversas experiências, dentre elas a de nº 2,
marcha no contrafluxo de uma procissão de Corpus Christi portando um chapéu, reportada na Experiência nº 2
(1931), e o desfile com traje de verão masculino em 1956 [formado por saia plissada, blusão, meia arrastão,
sandália de couro cru e chapéu], Carvalho esteve entre o ímpeto performático dadaísta e os happenings da década
de 1960. Pesquisador que se debruçou sobre diversas ciências, como a psicanálise, a antropologia, a psiquiatria, a
biologia, a neurologia, ousou igualmente sugerir uma nova disciplina, a psicoetnografia, encontrando uma
instância comum entre a arte e a ciência” (Carvalho, 2019, p. 17).
3
Diz o artista: “Os flans começaram em 1967… Primeiro eram os flans, depois vieram os desenhos sobre páginas
de jornal e, em seguida, a reimpressão clandestina desses conteúdos que eu acrescentava à matriz do jornal”
(Süssekind e Dias, 2018, pp. 13-17).
4
Na ocasião, os artistas divulgaram em diferentes tipos de mídia a informação de um happening que nunca tinha
acontecido. Em um manifesto/informe, aclaravam a aposta e o problema: fundamental é que os próprios meios
criam o acontecimento; desse modo participam da invenção da realidade (Costa, Escari e Jacoby, 1966).
5
O argumento também está em ¿Cuándo empieza el arte contemporáneo?: “Para esta lectura, situada en un
contexto de relectura mundial, la cuestión no pasa por revisar los esquemas evolutivos de la modernidad artística
para incrustar las irrupciones vanguardistas latinoamericanas en el famoso mapa de Alfred Barr. No se trata de
completar, sino de suspender el modelo evolutivo para hacer visible la simultaneidad histórica. No solo de la
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investigación de los lenguajes, sino también de la crítica institucional que éstos involucran. Y de otras, más abiertas
y furibundas, formas de antiinstitucionalismo. En torno a 1968 se vuelve visible que distintas escenas artísticas
comparten agendas y utilizan estrategias comparables. Los dispositivos de la vanguardia histórica, tanto en lo que
hace a su antiinstitucionalismo como a la experimentación de sus lenguajes, se activan desde las neovanguardias
desde fines de los cincuenta y en los sesenta” (Giunta, 2014, pp. 19-20).
6
“A linha natural destes trabalhos é no sentido da interferência no veículo jornal – produção, distribuição e
consequência dela” (Manuel, 2010, p. 43).
7
“O artista, depois desse ato, seria proibido durante dois anos de participar de salões oficiais por determinação da
Comissão Nacional de Belas-Artes e do Ministério da Educação e Cultura, cujo ministro era, então, Jarbas
Passarinho” (Süssekind e Dias, 2018, p. 25).
8
“O corpo é a obra me abriu novas possibilidades, ampliou a consciência do meu próprio corpo, dos meus sentidos,
do olfato, do tato. Muitos trabalhos meus se relacionam com essa experiência... Há uma instalação, se não me
engano de 1972, que chamei de O galo – The cock of the golden eggs, que se relaciona com esse ato realizado no
MAM” (Süssekind e Dias, 2018, p. 25).
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