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O corpo-escrito de Luís Miguel Nava
Danilo Bueno
Universidade de São Paulo – Mestrando
Resumo: Este artigo pretende recapitular o tópos do corpo na obra de Luís Miguel Nava
conforme demonstram os estudos sobre sua obra e reafirmar a hipótese de um corpoescrito ou um corpo que se escreve, estabelecendo rotas de leituras na tentativa de
evidenciar duas proposições: a sintaxe gestual e o delírio contido da enunciação naviana
como características fundamentais de seu imaginário.
Palavras chave: corpo, imaginário e poética.
Summary: This article intends to recapitulate the relation of body topói in the works of
Luís Miguel Nava as demonstrates the studies about his works and reaffirms the
hypothesis of a written-body or a body which writes itself, establishing routes of reading
in the attempt to evidence two propositions: the gestural syntax and the contained
delirium of the naviana enuntiation as fundamental characteristic of his imaginary.
Key Words: body, imaginary and poetic.
O objetivo deste artigo é demonstrar aspectos da construção
poemática na obra de Luís Miguel Nava (1957-1995) no tocante à sua relação basilar
com o corpo, eixo de vidência e mundividência dessa obra extremamente consistente
que provoca interesse pela sua intertextualidade com diferentes correntes estéticas
portuguesas do século XX, pela sua coesão interna e pela sua originalidade plástica e
violência vocabular.
Fernando Pinto Amaral, no prefácio à Poesia Completa 19791994 de Luís Miguel Nava, escreveu:
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O fulgor erótico deste discurso atravessa, no entanto, as fronteiras temáticas mais
previsíveis e contamina tudo o que se relaciona com o corpo, abrindo um território
de leitura quase inesgotável. Não é, neste caso, o corpo tradicional das carícias e
dos beijos a estar em cena – nem sequer, no que seria o extremo oposto, o corpo
como mero sinal de fugacidade do tempo e da vida que se escoa. Para este poeta, o
mais indelével resulta de um irresistível desejo de se expor até ao âmago, há que
mostrar as vísceras [...] À luz deste propósito e de outros semelhantes [...] – se
perceberá o campo original que a escrita de Nava soube tornar cada vez mais seu
(AMARAL apud NAVA, 2002, 26).
É a partir do corpo – a partir de agora sem o itálico –, agente
instaurador do real e consumador do devir incógnito da experiência, que se pode propor
uma dupla clave de leitura para a poesia de Nava: primeiro, a postura libertária e
visceral do sujeito poético, e, segundo, a materialidade da escrita calcada na sintaxe
análoga e reflexiva da representação dessa experiência. É possível ensaiar que a sintaxe
de Nava flui de um ritmo quase gestual, pelas bruscas interrupções dos versos de uma
respiração ofegante e corpórea, assinalando versos surpreendentes como o remate do
poema «Contra os flashes»: «Os miúdos a nudez destrói-os nesses lábios» (NAVA,
2002, 41).
Trata-se de uma escrita que se quer totalizadora, cujo corpo não
só privilegia uma vasta amplitude no conhecimento da realidade, definindo a
experiência homossexual como um per si desse conhecimento, cuja plasticidade
funciona como ponto cimeiro, adensada por uma enunciação surpreendente e severa.
Conforme se pode ler:
Rapaz
Não sei como é possível falar desse
rapaz pelo interior
de cuja pele o sol surge antes de o fazer no céu (NAVA, 2002, 86).
No poema acima, Nava dá a ver uma imagem esteticamente
forte ao supor que o Sol pode surgir da pele interior de um rapaz e ainda sobrepor-se ao
céu. Note-se que o corte dos versos favorece um estranhamento que está em
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consonância com a própria negação dubitativa do primeiro verso «Não sei [...]». O
sujeito poético realmente não sabe como falar de tal rapaz, a não ser propondo uma
imagem tão enigmática e plástica quanto o seu próprio assombro: um Sol fora da idéia
de céu. O corpo, por metonímia, é representado pela pele do rapaz, que acena o fulgor
do corpo sexualizado, quente e aberto, assim como o próprio Sol. A imagem entre pele e
Sol ganha contornos originais por se tratar justamente de uma pele úmida (como
apontou António Manuel Ferreira) que cifra uma imagem desgastada em outra plena de
sentidos.
Ao entremear a perplexidade das potencialidades corporais com
o desejo carnal, Nava cria um todo orgânico que perpassa toda o tópos obre o corpo,
desde a noção de mera couraça orgânica até a concepção de um complexo mítico, como
uma imago mundi extraída de sua escritura poética. Algumas imagens podem ilustrar
este ponto: «sinto a romper os dentes como a ventania» (NAVA, 2002, 58) ou «do meu
mundo interior vêm-me as sombras ocupando aos poucos o lugar da pele» (NAVA,
2002, 139), e ainda «O coração é o tempo, a pele as margens» (NAVA, 2002, 172).
Nestes poucos exemplos aleatórios, de sorte que os exemplos poderiam ser tão vastos
que a eleição de versos ao acaso não se torna arbitrária, vê-se o quanto é organizado o
pensamento naviano a partir da tensão entre o corpo vivente ou real e o sujeito poético
ou lírico-narrativo.
É visível que o sujeito poético opera uma analogia fisiológica e
simbólica com o mundo factível ao tecer uma aproximação entre experiência e delírio,
corpo e cosmos, conforme apontou Carla da Silva Miguelote (Cf. MIGUELOTE, 2006:
96).
Veja-se a análise de António Manuel Ferreira, em consonância
com a leitura de Miguelote:
Nava abriu um caminho: um percurso estranho e contudo reconhecível, que conduz
ao interior menos visitado do homem, alargando, ao mesmo tempo, as formas de
comunicação com o quotidiano, ao aprofundar intensamente os vínculos que nos
unem ao nosso próprio corpo. Habituados a um lirismo muitas vezes feito de
metáforas domesticadas pelo uso reiterado, invade-nos uma sensação de
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desconforto ao entrarmos pela primeira vez no universo de uma poesia que faz do
corpo o centro de irradiação de todos os sentidos e todas as demandas. É a partir
do corpo que se organiza, de forma meticulosa e obsidiante, o mundo habitável e
habitado desta poesia. Não se trata, no entanto, de um corpo solar e epidérmico,
símbolo gasto de devaneios eróticos, reconhecidos por uma tradição de séculos.
Trata-se de um corpo radiculado, cavernoso, húmido e exposto, desde o labirinto
dos nervos, até as memórias que a janela abre sobre a pele (FERREIRA, 2006,
109).
Maria João Cantinho segue a mesma esteira de raciocínio:
Ao criticar a moralidade vazia e adotar uma atitude sistemática e analítica perante
o real, não admira que tenha levado essa atitude a uma radicalização, da qual a
expressão mais acabada terá sido a de assumir o corpo (na sua nudez e totalidade
abrangente) como o centro da sua obra, emblema de uma inscrição do real, isto é, o
corpo dilacerado, matriz onde se inscreve a fragmentação da verdade, da
experiência e da vivência mundana: «Por dentro do meu corpo, onde é possível
separar do sangue os vários órgãos, a quem destes o contemple é dado vê-lo
embravecer contra as vitrines. Desnudarmo-nos é pouco, há que mostrar as
vísceras (...)». Numa ousadia ainda pouco usual na poesia portuguesa, o autor
transformou essa descida aos abismos viscerais numa via de conhecimento que se
desdobra e opera no interior do seu projeto poético, com toda a matéria verbal que
ele implica, nas suas mais diversas e concretas configurações (CANTINHO, 2002).
Vê-se das citações acima a lógica fisiológica referida, e que ela é
norteadora do imaginário poético de Nava. A partir dessa lógica é possível depreender a
noção de corpo dilacerado, corpo visceral, corpo úmido e corpo sem vida, entre outras
extensões de sentido. É com esses elementos que se dá o entrelaçamento das questões
corporais com o nível simbólico: alma, céu, mar, memória, lembrança, destino entre
outras. Conforme se pode ler no seguinte poema:
Recônditas palavras
Inquietam-me as dedadas
de deus rente à raiz da carne, ao indeciso
equilíbrio da alma
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na balança, à cicatriz
azul do céu sobre o destino.
O mar pneumático, ao sabor
do qual contra os sentidos se nos fazem
e desfazem as ávidas lembranças,
assalta-me os sentidos, tenebrosas
crateras escavadas
no espírito e através
das quais, incandescentes, as imagens
do mundo sobre ele próprio se derramam
como uma lava espessa, esses sentidos
que, como aéreos
estigmas, nos imprimem
na carne a cicatriz do céu, a indecisa
maneira de as imagens
do mundo se guindarem
mais alto do que a alma ou o alento
de quem dentro de nós
aviva a sua chama. O que nos sai
do coração vem a ferver.
A carne, ao rés
da qual o céu se encurva, báscula
que deus deixou nos arredores
dum qualquer lugarejo
a encher-se de ferrugem, cicatriz
pesada, combustível, com raiz
nas mais profundas trevas, a carne âncora
submersa no destino, ergue-se a pique
de novo onde as lembranças
se fazem e desfazem
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com todo o azul do céu
lá dentro a procurar rompê-Ia.
Sentados no convés, como se fosse
já noite e nos soubesse
o pão ao ranço da memória, contemplamos
os rudes marinheiros.
Depois que pela encosta procurámos
em vão uma escada de que o último
degrau fosse já dentro da memória,
suspenso na memória,
desfaz-se-nos dos ossos
a carne, com o seu quê de lírico e festivo,
em áreas portuárias onde o mar
nos sai do coração para galgar o molhe,
e, agora que começam
os anos a pesar
mais para trás que para a frente, acodem-nos
recônditas palavras aos ouvidos:
«Fecharam-se-te os olhos e eu fiquei de fora»,
«Nas tuas mãos começa o precipício» (NAVA, 2002, 227-9).
Neste poema vê-se a opacidade da linguagem naviana, pois não
é uma escrita que se quer deixar decifrar já na primeira leitura, ela requer várias leituras
e uma meditação apurada. Seu fecho explicita bem a vertigem ou o desengano que um
corpo pode causar ao entrar em contato com outro. Há a sugestão de que o sujeito
poético sabe que será (des)governado, como se caísse em um precipício. Nava cria outra
imagem extremamente plástica: o mar a sair de um coração. A função do mar, ou das
águas, como ensinou Bachelard (Cf. 1989), sexualiza o horizonte do poema. O poema é
por demais complexo e extenso para uma análise depurada no espaço deste artigo, no
entanto, pode-se notar já nas primeiras leituras, a relação coesa desses versos com o que
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se pretende propor: o corpo que se escreve e se expande para a construção de um
imaginário específico entre memória, sexo, amor; «estigmas, nos imprimem/ na carne a
cicatriz do céu».
Note-se que quase sempre as imagens são fortes e pouco
previsíveis. Seguem outros exemplos aleatórios da força das imagens: “O que
chamávamos / verão são poços através / dos quais se some a pele pela memória adentro”
(NAVA, 2002, 87); “o mar à força de bater na rocha ia ficando a pouco e pouco em
carne viva” (NAVA, 2002, 89); “Por mim não volto a vê-lo, encontros houve / com ele
dos quais a alma ficou cheia de dedadas” (NAVA, 2002, 90); e por último: “A pele
serve de céu ao coração” (NAVA, 2002, 93). Pode-se sugerir, portanto, que o principal
tropo desta poesia é a metáfora, aliada à sintaxe rascante, contrariando a própria noção
comezinha de rigor escritural ao aproximar o delírio e experiência. Se por um lado, a
escrita é clássica e limpa, por outro, esse tópico é oriundo da noção de delírio e
exposição física, de uma experiência corporal alucinante; a sintaxe espelha, desta forma,
essa força bruta, opondo duas linhas de força: a violência da enunciação e a contenção
da escrita.
Desta oposição, que pode ser lida até mesmo como uma
complementaridade, surge uma questão crucial: como o delírio pode definir o rigor e a
contenção? Comumente o delírio é sinônimo de alucinação e, por extensão de sentido
significa a « [...] perda de consciência clara; confusão mental [...]» (HOUAISS, 2001). É
nesta quebra de protocolo do imaginário corrente que Nava dá a ver uma construção
poética bastante original e insólita, ao desmistificar as valências impulsivas e reflexivas
do corpo.
Leia-se a análise de Carla da Silva Miguelote no que concerne à
idéia de um rigor escritural fundador:
Observa-se, portanto, que não é se deixando arrastar por um fluxo verbal não
vigiado que Nava resgata as potências do corpo e do sensível. Nava escreve como
quem busca uma ciência, o que não faz sem subverter todos os paradigmas
científicos. Nesse sentido, seu principal questionamento diz respeito à
«possibilidade de um objeto, enquanto entidade separada dum sujeito, poder ser
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por este conhecido, seja esse objeto o mundo ou o próprio eu» (NAVA, 2004,
p.220). No final das contas, as únicas semelhanças que lhe restam quanto ao
modelo cientificista são mesmo a vontade de conhecer e o rigor com o que
empreende o seu projeto (MIGUELOTE, 2007, 2).
E mais adiante, sobre a prática imagética e a alucinação:
A primeira observação a ser feita é a de que, se o insólito das imagens criadas
sugere mesmo um caráter alucinatório, tal «alucinação» não é, todavia, fruto de
uma escrita automática, que buscaria num jogo com o acaso suas relações
inauditas (procedimento caro a algumas pesquisas surrealistas): «nada é por acaso
em poesia», sentencia Nava (2004, p. 310). Tratar-se-ia antes de uma alucinação
aplicada, como disse Eucanaã Ferraz, uma alucinação que tem por fundo uma
vontade de ciência (FERRAZ, 2004, p. 99). A sua poética nos sugere a idéia de
ciência justamente porque a alucinação a que ela se aplica se funda numa vontade
de conhecer o mundo: «Atei uma ligadura ao mundo./ Seguindo uma estratégia
diferente, há quem o aparafuse, ajoelhando-se na terra, ou abra nele um olho, uma
pupila» (p. 106). Entretanto, se não se trata de uma alucinação subjetiva, também
não se trata de uma ciência objetiva (MIGUELOTE, 2007, 14).
A «vontade de ciência» sugerida por Eucanaã Ferraz como uma
forma de conhecer o mundo pela alucinação, torna-se, assim, característica diferenciada
da obra naviana, em oposição à lírica portuguesa coetânea.
A amplitude entre a exploração do corpo sexualizado, imantado
com as valências sanguíneas e os humores da pele, e a tensão clássica da linguagem, faz
com que Nava se aproxime de duas relevantes correntes da poesia portuguesa de meados
do século XX, conforme observou Gastão Cruz no posfácio à Poesia Completa 19791994: a primeira, mais clara e exata, representada por Eugênio de Andrade e Carlos de
Oliveira; e a segunda, mais caudalosa e vertiginosa, representada por Herberto Hélder.
Este aspecto dá a ver a importância e a centralidade de Luís
Miguel Nava para a poesia portuguesa contemporânea, pois em sua poesia opera-se a
intersecção de pontos culminantes da lírica portuguesa, contrariando a aparente oposição
entre «estilos históricos» em um «acerto de contas» com o próprio repertório literário
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português do século XX e as questões poéticas pertinentes para se pensar a modernidade
em Portugal.
Pode-se cogitar, portanto, que o corpo, além de conferir a
peculiaridade ao sujeito poético, transforma-se em um elemento apriorístico para o
exercício da escrita de Luís Miguel Nava. O sujeito poético se identifica e se constrói a
partir de suas potencialidades corporais, para, em um segundo momento, aceder a toda
gama de recursos e desdobramentos possíveis dentro da consciência formada pela
apreensão do real e da literatura, criando um horizonte de desenvolvimento pleno de
sentidos entre a consciência literária e percepção corporal.
Assim, pode-se inferir que é o corpo-escrito – assim mesmo, de
forma composta, como um híbrido – de Luís Miguel Nava um dos aspectos
determinantes de sua poesia. Corpo que é o locus da transição e da mudança pela
temporalidade irreversível e finita da experiência humana, determinada pelo assombro
sem simulacros que a própria sucessão em direção a morte condiciona.
Martin Heidegger assinalou algo interessante sobre a noção de
transitoriedade que pode ser uma maneira de se pensar a estética de Nava: «Pois as
transformações são a garantia para o parentesco do mesmo» (1989, 18). Desta assertiva
depreende-se que a sucessão inerente ao devir é a própria peculiaridade do corpo,
gerando uma personalidade desvelada (e revelada, também) na alteridade até a
consumação da morte (o corpo morto). Desta forma: a presença da morte é mapeada
pelos órgãos corporais no ato mesmo de sua duração e transitoriedade, determinando o
que (e quem) é o sujeito lírico naviano.
Logo se depreende que o corpo-escrito é polarizador de uma
empreitada de linguagem em que todas as afluências referidas se exaurem e se
relacionam com perguntas essenciais tanto para a poesia quanto para a filosofia.
Questões insolúveis ou mesmo não-questões: o que é o corpo? Como pensá-lo? Como
se posicionar perante a literatura? Enfim, trata-se de uma poesia que aciona a
perplexidade crítica e inventiva do leitor ao invés de facilitar-se em emblemas poéticos
gratuitos.
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O corpo-escrito não é meu corpo, como certo primórdio grego,
absolutamente estreitado com a noção de alma, mas é um corpo entre a carnadura do
real e da escrita, pois, como queriam os estóicos: «tudo o que há é corpóreo» (MORA,
2001, 134). Essa corporeidade essencial simula então uma relação singular com o
mundo. O sujeito poético estabelece um «atrito» contínuo com o devir e a passagem ao
liricizar as aporias primeiras entre ser no mundo e ser para o mundo.
Um último exemplo para ilustrar o modo como se pretende ler a
obra naviana neste artigo:
Os nervos
Começaram-se-lhe os nervos, um dia, a reproduzir com uma violência inusitada,
abrindo-lhe por fim a pele, por fora da qual, como a hera nas paredes, rapidamente
se espalharam, sobrepondo-se aqui e acolá à própria roupa, com que deixou de
poder dissimular o acontecido. Não havia, além disso, peça de vestuário que,
depois de a ter vestido há algumas horas, o seu espírito já quase não houvesse
totalmente devorado. O mesmo sucedia com os óculos. À nudez que o espírito lhe
impunha, vinha-se juntar assim uma espécie de cegueira, entre as quais não tardou
a haver quem encontrasse afinidades (NAVA, 2002, 177).
O corpo que vê e que se vê e está inconcusso no mundo: «O
mundo visível e o mundo dos meus projetos motores são partes totais do mesmo Ser»
(MERLEAU-PONTY, 1980, 88), ou seja, não há dualidade entre corpo e subjetividade,
caminho filosófico-poético que Nava soube como poucos domar e se inscrever: «À
nudez que o espírito lhe impunha, vinha-se juntar assim uma espécie de cegueira [...]».
BIBLIOGRAFIA:
BACHELARD, Gaston (1989). A Água e os Sonhos: Ensaio sobre a imaginação da
matéria. São Paulo: Editora Martins Fontes.
CANTINHO, Maria João (2002). Luís Miguel Nava: o corpo como inscrição do real ou
o corpo radical. http://www.jornaldepoesia.jor.br/ag25nava.htm. Acesso em 10,
11
agosto, 2008.
FERREIRA, António Manuel (2006). Do canto ao conto – Estudos de Literatura
Portuguesa. Aveiro: Edições Til, 2006.
HEIDDEGER, Martin (1989). Os pensadores – Conferências e escritos filosóficos. São
Paulo: Nova Cultural.
HOUAISS, Antonio (2001). Dicionário eletrônico da língua portuguesa 1.0. São Paulo:
Editora Objetiva.
MERLEAU-PONTY, Maurice (1980). Textos selecionados. São Paulo: Abril Cultural.
MIGUELOTE, Carla da Silva (2007). A escrita de Luís Miguel Nava: uma poética da
«impureza».http://www.uefs.br/nep/labirintos/edicoes/02_2007/04_artigo_de_carl
a_da_silva_miguelote.pdf. Acesso em 09, agosto, 2008.
________ (2006). A poética de Luís Miguel Nava: vem sempre dar à pele o que a
memória carregou. Dissertação de mestrado em Letras. Rio de Janeiro:
Universidade Federal Fluminense.
MORA, Ferrater (2001). Dicionário Filosófico. 4.ª ed. São Paulo: Editora Martins
Fontes,.
NAVA, Luís Miguel (2002). Poesia Completa 1979-1994. Lisboa: Dom Quixote.