MULHERES DOCENTES NA PÓS-GRADUAÇÃO
POSTGRADUATE WOMEN TEACHERS
MAESTRAS DE POSGRADO
PATRICIA KETZER
Doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS). Professora adjunta II da Universidade de Passo Fundo (UPF) – Rio Grande do Sul
– RS.
[email protected]
LUCIANE MALDANER
Doutoranda em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF) – Rio Grande do Sul –
RS.
[email protected]
SILVANA RIBEIRO
Doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS). Professora no curso de Psicologia - Atitus Educação – Rio Grande do Sul –
RS.
[email protected]
Recebido em: 28/04/2022
Aceito em: 07/12/2022
Publicado em: 13/09/2023
Resumo
O presente trabalho teve como objetivo analisar as vivências das professoras mulheres nos programas
de pós-graduação de uma universidade do interior do Rio Grande do Sul. O problema que guiou esta
pesquisa pode ser formulado da seguinte maneira: no tocante à docência na pós-graduação desta
universidade, quais são os desafios para as mulheres em relação ao acesso e à permanência? A pesquisa
justifica-se a partir da constatação de que dos 152 docentes cadastrados em Programas de Pós-Graduação
desta universidade, apenas 59 são mulheres. A coleta de dados foi realizada por meio da aplicação de
questionários, visto que se trata de uma técnica adequada quando pretende-se reconhecer a percepção
dos pesquisados sobre o assunto em questão. Pode-se concluir que as sobrecargas de demandas somadas
às tarefas domésticas e familiares são as principais dificuldades de acesso e permanência. Apesar destas
dificuldades, as docentes relatam satisfação na relação com os estudantes, no exercício de cargos de
gestão e no processo de internacionalização do curso. Em relação à preponderância masculina nos
programas, constatam que os homens possuem melhor currículo, em função de não possuírem
sobrecarga de trabalho doméstico e familiar, ainda que algumas das entrevistadas tenham relatado não
saber o motivo.
Palavras-Chave: Docência. Mulheres. Pós-Graduação. Vivências. Divisão sexual do trabalho.
KETZER, Patricia; MALDANER, Luciane; RIBEIRO, Silvana
Mulheres docentes na pós-graduação
Abstract
The present study aimed to analyze the experiences of female teachers in the graduate programs of a
university in the countryside of Rio Grande do Sul. The problem that guided this research can be
formulated as follows: with regard to teaching in the Graduate Program of this university, what are the
challenges for women in relation to access and permanence? The research is justified from the
observation that of the 152 professors registered in the Graduate Programs of this university, only 59
are women. Data collection was performed through the application of questionnaires, since it is an
appropriate technique when it is intended to recognize the perception of the researched on the subject in
question. It can be concluded that as overloads of demands added to domestic and family tasks are the
main difficulties of access and permanence. Despite the difficulties, the teachers report satisfaction in
the relationship with the students, in the management exercise and in the internationalization process of
the course. Regarding male preponderance in the programs, they find that men have the best curriculum,
due to not having an overload of domestic and family work, although some of the interviewees reported
not knowing the reason.
Key words: Teaching. Women. Postgraduate studies. Experiences. Sexual division of labor.
Resumen
Este estudio tuvo como objetivo analizar las experiencias de mujeres docentes en los programas de
posgrado de una universidad del interior de Rio Grande do Sul. El problema que guió esta investigación
puede formularse de la siguiente manera: en lo que respecta a la docencia en el Programa de Posgrado
de esta Universidad, ¿cuáles son los desafíos de las mujeres en relación al acceso y la permanencia? La
investigación se justifica a partir de la observación de que, de los 152 profesores registrados en los
Programas de Posgrado de esta universidad, solo 59 son mujeres. La recolección de datos se realizó
mediante la aplicación de cuestionarios ya que es una técnica apropiada cuando se pretende reconocer
la percepción del investigado sobre el tema en cuestión. Se puede concluir que la sobrecarga de
demandas sumada a las tareas domésticas y familiares son las principales dificultades para acceder y
permanecer. A pesar de estas dificultades, las profesoras reportan satisfacción en su relación con los
estudiantes, en el ejercicio de cargos directivos y en el proceso de internacionalización del curso. En
cuanto a la preponderancia masculina en los programas, encuentran que los hombres tienen un mejor
plan de estudios, ya que no tienen una sobrecarga de trabajo doméstico y familiar, aunque algunas de
las entrevistadas reportaron no saber el motivo.
Palabras clave: Docencia. Mujeres. Posgraduación. Experiencias. División sexual del trabajo.
1 Considerações iniciais
Nos últimos anos houve um avanço do número de mulheres ingressando nas
universidades brasileiras. Atualmente elas são mais instruídas que os homens e têm mais acesso
ao ensino superior. A parcela da população brasileira com instrução vem aumentando e as
mulheres têm se mantido entre a população com maior grau de instrução (CARNEIRO;
SARAIVA, 2021).
Ao nos depararmos com esses dados, surgiu um questionamento que instigou a
realização desta pesquisa: além do lugar de estudantes dos diversos cursos, quais são os outros
Revista Brasileira de Pós-graduação (RBPG), Brasília, v. 18, n. especial, p. 1-22, jul./dez., 2022.
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Mulheres docentes na pós-graduação
espaços ocupados pelas mulheres nas academias brasileiras? Temos mulheres lecionando nas
universidades? Produzindo conhecimento em seus laboratórios? Orientando dissertações e
teses? Um dos espaços, talvez o mais desafiador para seu ingresso, é a docência na pósgraduação, deste modo, torna-se revelante questionar: quais os desafios para as mulheres em
relação ao acesso e permanência em programas stricto sensu? Esse é o problema que mobiliza
esta pesquisa, que tem por objetivo analisar quais as principais dificuldades enfrentadas pelas
docentes de pós-graduação em uma universidade comunitária do interior do Rio Grande do Sul.
Visando responder a estas perguntas contatou-se 36 professoras, de 12 Programas de
Pós-Graduação (PPGs) dessa universidade. A coleta de dados foi realizada mediante a aplicação
de questionários e as respostas foram analisadas através da análise de conteúdo de Bardin
(2011). A fim de resguardar a identificação de cada docente foi solicitado que cada uma delas
escolhesse um codinome.
A partir disto foi possível dividir este artigo em três tópicos. No primeiro, intitulado
“Desafios no acesso e permanência das mulheres docentes nos PPGs”, abordamos a forte
exigência de uma alta produção acadêmica na trajetória das docentes; a sobrecarga de
demandas; o desafio em conciliar vida familiar com a docência na pós-graduação; entre outros.
O tópico dois é chamado “Experiências de fortalecimento na Docência das mulheres na PósGraduação”, se por um lado as exigências com produção acadêmica vêm desafiando as
docentes, por outro a relação com os/as estudantes é atribuída como experiência que
potencializa o ser docente na pós-graduação, além deste, a coordenação e os processos de
internacionalização ou participação em cursos e eventos propiciam redes que fortalecem as
mulheres como professoras nestes programas. O terceiro tópico é caracterizado como “Paridade
de Gênero na Pós-Graduação”, esse rememora historicamente os papéis sociais que eram
delegados às mulheres e aprofunda aspectos acerca de áreas de atuação no ensino superior
intituladas masculinas ou femininas. Como também, analisa a resposta das docentes sobre o
que leva os homens a serem maioria em seus PPGs.
A revisão bibliográfica deste artigo é composta por autores que analisam os diversos
lugares da sociedade que são atribuídos historicamente às mulheres, dentre estes o do privado,
da casa e do cuidado doméstico. Alguns dos autores que utilizamos para problematizar isto são:
Alves (2000) e Biroli (2014). Por intermédio de Carneiro e Saraiva (2021) apresentamos dados
quantitativos acerca da disparidade do número de docentes homens e docentes mulheres nas
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universidades brasileiras. Com Vianna (2001) retratamos aspectos sobre as condições de
trabalho das mulheres na sociedade.
2 Metodologia
Visando compreender quais os desafios enfrentados por docentes mulheres nos
programas stricto sensu da universidade pesquisada, foi possível, por meio de questionários,
contatar 36 professoras, de 12 PPGs, de uma universidade comunitária do interior do Rio
Grande do Sul. A coleta de dados foi realizada com a aplicação destes questionários,
considerando o que Gil (2002) descreve acerca desta técnica de pesquisa.
Atualmente esta Instituição de Ensino Superior (IES) contempla 152 docentes em
programas de strictu sensu, destes, apenas 59 são mulheres. A fim de resguardar a identificação
de cada docente foi solicitado que cada uma delas escolhesse um codinome, ele deveria ser de
uma pessoa que tenha marcado a trajetória pessoal dessa docente, podendo ser a identidade de
uma pesquisadora, de uma pessoa querida ou alguma outra razão. Dentre os codinomes
apresentados, estão figuras de mulheres que deixaram legados históricos, tais como: Cora
Coralina, Frida Kahlo, Marie Curie, Yoko, entre outras.
As perguntas do questionário foram organizadas a partir dos itens que seguem: Qual
experiência fortaleceu sua trajetória como docente da pós-graduação? Há quantos anos atua
como docente no Programa? Qual sua raça/etnia? Já atuou como coordenadora do Programa?
Já integrou alguma comissão de bolsas da pós-graduação? Tem filhos? Quais desafios enfrentou
para ingressar como docente na pós-graduação e que enfrenta para permanecer neste espaço?
No Programa que integra, existem mais mulheres ou homens docentes? A que você atribui essa
diferença?
As respostas foram examinadas por meio a análise de conteúdo de Bardin (2011).
Segundo Bardin (2011), os critérios para realização da análise iniciam-se pela pré-análise,
organizando-se o material que irá compor o corpus da pesquisa. Posteriormente, formula-se
hipóteses e elabora-se os indicadores que serão base para a interpretação final. Cinco regras
precisam ser observadas, são elas: 1) a exaustividade, que consiste em esgotar o assunto
considerando-o integralmente; 2) a representatividade, que assegura que a amostra pesquisada
é representativa do todo; 3) homogeneidade, que garante que a aquisição dos dados refere-se
ao mesmo tema, sendo coletados por meio de técnicas iguais e indivíduos semelhantes; 4) a
pertinência, que significa que os documentos são adequados aos objetivos da pesquisa; e a 5)
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exclusividade, critério que afirma que um elemento não deve ser classificado em mais de uma
categoria.
3 Análise dos resultados
3.1 Desafios no acesso e permanência das mulheres docentes nos PPGs
Ao iniciar este trabalho tornou-se necessário contextualizar as especificidades das
vivências das mulheres aqui analisadas, sendo assim, as primeiras questões foram referentes à
raça/etnia, idade, tempo de atuação no Programa de Pós-Graduação e maternidade. Como
respostas obtivemos os seguintes resultados: todas se autodeclararam brancas. Dado que não
impressiona em um país de racismo estrutural e endêmico como o Brasil, no qual as mulheres
negras ocupam a base da pirâmide social. Segundo Ferreira (2018), mulheres pretas com
doutorado são 0,4% do corpo docente das Pós-Graduações do país. Entre pretas e pardas –
negras – o número não chega a 3%. Os homens brancos com doutorado representam 24% dos
docentes nesta etapa da formação universitária. As professoras doutoras brancas contabilizam
19% do total de 53.995 professores nos cursos de doutorado, mestrado e especialização do país.
Na universidade pesquisada não há professoras transgênero, o que denota mais uma
característica excludente do ensino superior brasileiro.
Ao analisar a média de idade das participantes, categorizadas por Programas de PósGraduação, é possível perceber a soma total das idades em laranja, contudo, os dados que
queremos destacar por nos permitirem compreender a diversidade geracional das mulheres nos
PPGs está representada em cinza. Assim, percebemos que o PPG em Administração é o que
comporta pesquisadoras com uma faixa etária em torno de 68,66 anos, em contraponto, o
programa com docentes em uma faixa etária mais jovem é o PPG em Projeto e Processos de
Fabricação, com a média de 37 anos. Deste modo, a média geral de idades é de 45,60 anos.
Conforme o gráfico a seguir.
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Gráfico 1 - Média de idade das participantes.
300
250
200
150
100
50
0
n de participantes
IDADE
media
Fonte: Elaborado pelas autoras (2022).
Correlacionada às idades das participantes está a média de anos dedicados à docência
universitária. A coluna em laranja representa a totalidade de anos de todas as participantes
somadas, a média de anos dedicadas aos programas de pós-graduação encontra-se em cinza.
Nos relatos, a dedicação à carreira como prioridade na vida das mulheres entrevistadas é
frequentemente mencionada. Nesse sentido, coube questionar quantos anos de suas vidas estão
dedicados à docência em seus PPG. Até o momento, nota-se certa estabilidade, em boa parte
dos programas de pós-graduação as participantes estão atuando em média há dez anos, para
sermos mais exatas 9,93 anos. Isto pode ser percebido pelo gráfico 2.
Gráfico 2 - Média dos anos de docência das participantes divididas por PPGs.
60
50
40
30
20
10
0
N DE PARTICIPANTES
ANOS DE DOCÊNCIA
MÉDIA
Fonte: Elaborado pelas autoras (2022).
Cenário esse, que pode ser alterado, como aponta uma das participantes quando se
refere aos desafios do futuro dos profissionais da área de História, para Wrana Panizzi
(codinome):
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Hoje, nos encontramos seriamente preocupados com os contextos, interno e
externo, que nos dão grande insegurança quanto ao futuro dos programas no
geral e do PPGH, em particular. Ainda mais se tratando de um programa
vinculado à área das licenciaturas, muito atacada pela lógica mercadológica e
pela desvalorização social da profissão (QUESTIONÁRIO, 2021).
Além desse desafio, da ordem das estruturas sociais e de mercado, encontramos outra
dificuldade para as mulheres na docência universitária: a maternidade. Em laranja estão
somados a totalidade do número de filhos das pesquisadoras categorizadas por programas,
porém fixando o olhar na coluna em cinza, revela-se a média de filhos. Um número relevante
de mulheres não tem filhos, outras tantas possuem um, em menor escala dois, a média geral de
filhos das docentes entrevistadas fica em 0,96.
Gráfico 3 - Média de filhos por programa.
Médias de filhos das participantes por PPGs
9
8
7
6
5
4
3
2
1
0
n de participantes
Filhos
média
Fonte: Elaborado pelas autoras (2022).
Entendemos esse dado como indicativo da abstenção de uma vida privada, somada às
escolhas individuais das mulheres, como as entrevistas evidenciam. Esta questão, mesmo não
aparecendo explicitamente como desafio específico, encontra-se em boa parte das respostas:
dificuldade em conciliar ou até mesmo necessidade de abdicar da vida familiar. Esse item é
recorrente entre as entrevistadas quando questionadas acerca dos desafios que constituem as
vivências do Ser Mulher na docência do ensino superior, mais especificamente nos PPGs da
instituição estudada.
O desafio mais citado entre as entrevistadas refere-se à forte exigência de alta
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produtividade acadêmica, somada à sobrecarga de demandas. Fatos esses constatados em
outras Instituições de Ensino Superior (IES), como evidencia o trabalho de Souto (2013).
Souto (2013) buscou definir a dimensão laboral dos docentes de PPGs stricto sensu em uma
IES pública. Para isso, traçou-se o perfil sociodemográfico e profissional de docentes
atuantes; identificou-se os fatores geradores de prazer e sofrimento no trabalho destes/as
docentes, bem como, buscou-se compreender a relação entre a docente de pós-graduação e a
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Como resultado,
Souto aponta a necessidade de “adequações da organização e condições de trabalho para o
trabalho intelectual, visto que, por vezes, pensa-se que estes não sejam acometidos por
nocividades no trabalho” (SOUTO, 2013, p. 42).
Souto (2013) nos ajuda a pensar nas questões emergidas dos 23 apontamentos das
entrevistadas acerca de seu maior desafio: manter a alta produtividade exigida pela CAPES, e
as revistas com Qualis alto. Um exemplo claro é a resposta da entrevistada Cora Coralina
(codinome), que sobre os desafios, afirma: “ao ingressar e para manter-me como professora,
os desafios foram atingir as pontuações de publicação, e conjugar tudo isso com os cuidados
da casa e da família” (QUESTIONÁRIO, 2021). Essa última frase da entrevistada remetenos a questões de gênero implicadas no acesso e na permanência das mulheres docentes nos
PPGs.
As questões de gênero nas pesquisas científicas são discutidas por Londa Schiebinger,
cientista e professora de História da Ciência na Pensylvania State University, em seu livro “O
feminismo mudou a ciência?” de 2001. Schiebinger (2001) enfatiza que, tanto as “feministas
quanto seus mais ferrenhos opositores concordam que o espaço para as mulheres tentar
construir uma carreira dentro ou fora da vida acadêmica é exíguo e deve ser ampliado”
(SCHIENBINGER, 2001, p. 15). Nesse sentido, para a autora, devemos ter uma compreensão
multidimensional sobre a problemática, considerando a dinâmica do que significa ser homem
ou ser mulher dentro de contextos sociais específicos.
Os desafios ao acesso e permanência das mulheres na produção científica são
marcados pela exigência de alta produtividade. Boa parte das respostas giraram em torno dessa
questão. Para Maria (codinome), seu maior desafio sem dúvidas é a produção científica. Em
seu relato, assim como as demais entrevistadas, ela nos revela que para ter boas produções é
necessário tempo para planejar, executar e analisar, apontando para a sobrecarga de tarefas,
para ela, ainda há o fator do gênero que contribui para a maior sobrecarga (QUESTIONÁRIO,
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2021). Sobrecarga proveniente das desigualdades que até hoje compõem nossas vidas privadas.
Segundo Schienbinger (2001, p. 180), a “ciência como a vida profissional em geral - foi
organizada em torno do pressuposto de que a sociedade não precisa reproduzir-se, ou de que os
cientistas não estão entre aqueles envolvidos nas tarefas diárias da reprodução”.
Outro ponto importante a ser apresentado é a questão dos assédios, redes de favores,
concursos com cartas marcadas e demais vícios do ambiente acadêmico. Para a entrevistada
que utilizou do codinome de Enola, seu maior desafio fora o de ingressar na universidade via
concursos. Para ela, além do significativo número de concorrentes, há o que ela denomina de
“vícios, cartas marcadas e rede de troca de favores antigos”, que desencadeiam em competições
e inseguranças (QUESTIONÁRIO, 2021). Ela nos conta ainda, que encontrou no
reconhecimento dos pares uma forma de amenizar esse ambiente instalado. Já Maria Lucina é
mais enfática ao descrever o ambiente de trabalho no qual o seu maior desafio é “suportar o
assédio praticado pelos colegas que buscam poder a qualquer preço” (QUESTIONÁRIO,
2021).
3.2 Experiências de Fortalecimento na Docência das Mulheres na Pós-Graduação
Boa parte do exercício de pesquisa é composto pelo fazer solitário, que mescla escrita
e leitura. Alguns destes processos são perpassados pelas pressões e exigências das produções
acadêmicas em massa, direcionadas, especialmente, às publicações em revistas com Qualis,
conforme abordado no tópico acima. Deste modo, questiona-se: quais são as experiências que
fortalecem a docência na pós-graduação?
Essa pergunta integrou o questionário que foi respondido pelas docentes. Na análise
das respostas, apareceram três categorias. Das trinta e seis respostas, dez destacam que a relação
com os estudantes, especialmente a orientação acadêmica, fortalece a docência. Outras nove
apontam que é a internacionalização, a participação em eventos e as parcerias com outras IES.
E seis elencam que a experiência de coordenação é o que potencializa a docência.
Estas três categorias podem ser reunidas em um tópico que é o da relação humana, que
se dá no encontro com o outro. No contexto contemporâneo, regido pela lógica do capital, da
produção em massa, em que as publicações em revista conceituadas definem a permanência ou
a exclusão da docente na pós-graduação, a dimensão do encontro, da relação humana se torna
um imenso desafio, já que boa parte do tempo da docência é segmentado entre dar aulas,
escrever, pesquisar, orientar e coordenar. Isto produz, especialmente na trajetória das docentes,
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uma sensação de que sempre está faltando tempo para dar conta de todas as atividades.
A categoria sobre a relação com os estudantes, pode ser pensada a partir de Freire
(2015). Freire não se detém em analisar esta temática entrelaçada somente com um nível de
ensino, ele não escreve sobre esta relação em contextos específicos, mas relata uma experiência
que vivenciou enquanto educador em uma turma da pós-graduação da PUC de São Paulo
(FREIRE, 2015). O autor aponta questões pertinentes para a reflexão sobre os desafios e
potencialidades da relação educador/a-educanda/o no contexto da educação. Destaca a
desconstrução da lógica de que esta relação contempla apenas o aspecto da aprendizagem,
Freire afirma que as
[…] relações entre educadora e os educandos/as incluem a questão do ensino,
da aprendizagem, do processo de conhecer-ensinar-aprender, da autoridade,
da liberdade, da leitura, da escrita, das virtudes da educadora, da identidade
cultural dos educandos e do respeito devido a ela. Todas essas questões se
acham envolvidas nas relações educadora-educandos (FREIRE, 2015, p. 51).
Assim, a noção de relação se expande para um agrupamento, fazendo parte deste
processo a leitura, a escrita, a liberdade, a autoridade que se difere de autoritarismo, as questões
de identidade cultural das/os educandas/os, a aprendizagem, entre outros aspectos. Uma das
narrativas que exemplifica isto foi descrita no questionário por Wrana Panizzi (codinome), a
qual destaca que:
As aulas na graduação sempre foram e serão meu principal objetivo na
trajetória acadêmica, desde quando ingressei, recém-formada, na UPF. Tenho
profundo respeito pelos alunos (as) que acreditam nessa profissão e que dão o
melhor de si, em longas e cansativas jornadas noturnas. Dessa dedicação,
derivaram todas conquistas posteriores, inclusive aquelas relacionadas ao
Programa [de pós-graduação] (QUESTIONÁRIO, 2021).
Esta narrativa, além de dizer sobre o significado da docência na trajetória desta
professora, aponta para a compreensão da realidade de diversos estudantes, que ao conciliar
vida acadêmica com trabalho, “dão o melhor de si, em longas e cansativas jornadas noturnas”,
com isso, a docente destaca “ter profundo respeito” pelos/as estudantes.
A experiência da graduação, em algumas situações, coloca o docente em um lugar mais
distante do educando/a, tendo presente que a relação se reduz aos momentos das aulas e se torna
mais grupal, abrangendo turmas. Já na pós-graduação, com a possibilidade de orientação
acadêmica, a relação educador/a-educando/a tende a ser mais próxima. Isto não significa que
este processo seja algo dado ou natural, já que todas as relações exigem movimentos contínuos
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de construção. Sobre isto, Clarice (codinome), uma das docentes destaca: “amo orientar e
testemunhar a alegria dos alunos/as definindo seu objeto de pesquisa e transformando-o e
transformando-se ao longo do Curso”, avaliando assim a orientação como um processo para
além da definição do objeto, mas, também, como uma transformação do/a estudante.
Ao ser apontado, por meio das narrativas, que a relação entre estudante e professora é
o que fortalece a docência na pós-graduação, exprimem-se os processos de crescimento e
desenvolvimento coletivo. Se, por um lado, existe a pressão pela produtividade em revistas
conceituadas, por outro e junto a este processo existem os encontros, especialmente as
orientações acadêmicas, que são capazes de mobilizar e transformar o sentido da docência para
as docentes. Assim, conforme afirma Freire (2015, p. 53) as “relações com os educandos são
um dos caminhos de que dispomos para exercer nossa intervenção na realidade a curto e a longo
prazo”, ou seja, torna-se um processo político-pedagógico.
Outra categoria que é apontada pelas professoras como algo que fortalece a trajetória
docente são as parcerias realizadas com docentes e instituições, que abrangem a
internacionalização e a participação em eventos, cursos e pesquisas. Isto é exemplificado
através das seguintes narrativas: “Ter realizado descobertas através de pesquisas inovadoras e
a oportunidade de conhecer novas culturas através da realização de cursos no exterior”, Marie
Skłodowska Curie (codinome). “As parcerias com outras IES nacionais e internacionais”, Maria
(codinome) (QUESTIONÁRIO, 2021).
Essas parcerias se tornam uma possibilidade de encontro com docentes, pesquisas,
instituições, discentes e, como apontado por Marie Curie, o conhecimento de novas culturas.
Isto, além de expandir a formação individual das docentes, alarga a forma de pensar e construir
o tripé universitário da pesquisa, ensino e extensão. Estas parcerias colaboram com a avaliação
do fazer docente universitário. Não são só conceitos e projetos de pesquisa compartilhados, são
práticas repensadas que possibilitam a reflexão sobre as formas de pesquisa, de ensino e de
extensão que as universidades vêm desenvolvendo.
A terceira categoria deste tópico é a do espaço de gestão, seis respostas apontam que
as experiências em cargos de gestão fortaleceram a trajetória na pós-graduação. Com o ingresso
de mulheres, tanto na graduação quanto na pós-graduação, é possível perceber que estas
começam a integrar os espaços de gestão da instituição, seja nas coordenações de curso, na
direção de unidades acadêmicas ou na Reitoria. Isto é algo construído e conquistado, tendo em
vista a luta das mulheres pelo acesso a postos de trabalho e à remuneração justa e igual a dos
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Mulheres docentes na pós-graduação
homens. Das trinta e seis respostas, doze docentes destacaram que já atuaram como
coordenadoras do PPGs. Com relação a estas experiências, as docentes afirmam que: “Os
cargos de gestão, que desde o início da carreira exerci, foram importantes pela experiência
acumulada interna e externamente”, Wrana Panizzi (codinome). “Sem dúvida foram as
experiências administrativas e, particularmente, aquelas que demandaram a coordenação de
projetos como a criação/implementação do curso do Programa de Pós-Graduação, tanto o
mestrado como recentemente o doutorado. Coordenar/liderar pessoas em prol de um projeto em
comum
são
experiências
que
nos
fortalecem
muito”,
Anna
Maria
(codinome)
(QUESTIONÁRIO, 2021). Uma das entrevistadas deixa explícito em sua narrativa a
importância da coordenação do seu Programa de Pós-Graduação estar nas mãos de uma mulher,
ela afirma “nosso grupo é bastante unido além de ser coordenado por uma pessoa muito
experiente e maravilhosa no que faz”, (Carson) (QUESTIONÁRIO, 2021).
As experiências de gestão, de construção de parcerias e relação com os
estudantes possibilitam às docentes uma espécie de respiro, de encontros, de construção de
pesquisas coletivas, de articulação de projetos, de orientação acadêmica. Assim, é possível
recordar o escrito de Hooks (2013, p. 266), a qual destaca que:
[...]quando penso na vida de estudante, lembro-me vivamente dos rostos,
gestos e hábitos de todos os professores e professoras que me orientaram, que
me ofereceram a oportunidade de sentir alegria no aprendizado, que fizeram
da sala de aula um espaço de pensamento crítico, que transformaram o
intercâmbio de informações e ideias numa espécie de êxtase.
Hooks (2013) evidencia que a possibilidade de um contato mais próximo entre
educadora-educando/a é uma prática transformadora para ambos. Da mesma forma que
destacaram as entrevistadas quando miraram práticas que transcendem o espaço da sala de aula
como as mais enriquecedoras de suas experiências.
3.3 Paridade de gênero na pós-graduação
Às mulheres sempre foi relegado o espaço do lar e a esfera do cuidado. Em estudo1
realizado para analisar a configuração familiar brasileira e seus modos de funcionamento em
épocas diferentes, Alves (2000, p. 235) constata que a educação das meninas era voltada para a
“Submissão, Delicadeza no Trato, Pureza, Capacidade de Doação, Prendas Domésticas e
1
O estudo foi realizado com um conjunto de pessoas com mais de 70 anos, de ambos os sexos, residindo com a
família e possuindo independência financeira advinda de pensão ou aposentadoria e com um conjunto de mulheres
na faixa de 40-50 anos, mães, algumas com atividade profissional, outras não, a maioria casada e residindo com o
marido, no momento da coleta de dados.
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Habilidades Manuais”. Deixando, assim, bem marcados os papéis sociais de cada gênero. O
processo de socialização das meninas era destinado ao controle do comportamento, a autorestrição e a obediência. E as formas de vigilância se davam não apenas pelo castigo físico, mas
pela culpa, pelo remorso e pelas ameaças de retirada de afeto, castigos dos céus, abandono e
solidão. A menina recebia essa educação, já que seu destino era encontrar um provedor, e não
se tornar independente. E somente uma mulher com essas virtudes poderia ser capaz de arranjar
um bom casamento. A situação ainda era essa no começo do século XX (ALVES, 2000).
Uma das principais pautas feministas sempre foi a “reflexão crítica sobre a dualidade
entre a esfera pública e a esfera privada” (BIROLI, 2014, p. 21). Visto que é dessa reflexão que
pode surgir a crítica dos diferentes espaços ocupados socialmente por homens e mulheres, e da
divisão sexual do trabalho, que a despeito do avanço das lutas feministas segue sobrecarregando
as mulheres. A dualidade entre esfera pública e privada possibilita que a esfera privada seja
apartada do âmbito político, isolando relações de poder da vida cotidiana e desconsiderando as
relações de trabalho e familiares que sobrecarregam, em especial, as mulheres. Biroli (2014, p.
21) afirma que, se:
[...] na modernidade, a esfera pública estaria baseada em princípios universais,
na razão e na impessoalidade, […] a esfera privada abrigaria as relações de
caráter pessoal e íntimo. Se na primeira os indivíduos são definidos como
manifestações da humanidade ou da cidadania comuns a todos, na segunda é
incontornável que se apresentem em suas individualidades concretas e
particulares. Somam-se, a essa percepção, estereótipos de gênero
desvantajosos para as mulheres. Papéis atribuídos a elas, como a dedicação
prioritária à vida doméstica e aos familiares, colaboraram para que a
domesticidade feminina fosse vista como um traço natural e distintivo, mas
também como um valor a partir do qual outros comportamentos seriam
caracterizados como desvios. A natureza estaria na base das diferenças
hierarquizadas entre os sexos.
Foi por meio das lutas feministas que se pode problematizar essas dimensões e
salientar o caráter histórico da dominação masculina e dos papéis e status de gênero. Entretanto,
ainda hoje, marcadamente se assume que as relações familiares configuram uma dimensão a
qual os princípios da justiça não se aplicariam (BIROLI, 2014). A despeito disso, a realidade é
que mulheres têm alcançado espaço na esfera pública. Hoje, no Brasil, as mulheres são a
maioria no ensino superior e metade da mão de obra ativa.
[…] fato que deriva da maior escolarização feminina em geral, haja vista elas
somarem 52% das matrículas no ensino médio no ano de 2015 (CAPES,
2016). Elas repetem menos, evadem menos e concluem a educação básica em
maior proporção. Em 2014, elas representavam 53,8% das matrículas de
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graduação nas instituições de ensino superior públicas e 58,6% nas
particulares, além de serem maioria, também, entre o número total de
concluintes (cerca de 60% tanto na rede pública quanto na particular). Em
relação à pós-graduação stricto sensu, observamos que, em 2015, 60,6% dos
mestres formados no Brasil eram mulheres (CAPES, 2016). Entre os doutores,
elas também são maioria, chegando a 55% dos titulados (BARROS;
MOURÃO, 2018, p. 5).
Mas ainda existem áreas nas quais as mulheres seguem sub-representadas, como as
Ciências Exatas e da Terra, Engenharias e demais carreiras ligadas a Finanças, Administração
e Tecnologia. Interessante notar que também se tratam de áreas mais valorizadas e cujo salário
é mais elevado. Dos homens que possuem doutorado com currículos cadastrados, “30,3% estão
nas Ciências Exatas e da Terra e nas Engenharias, enquanto o percentual feminino é de apenas
14,3%” (BARROS; MOURÃO, 2018, p. 5). Esta diferença também se apresenta na
universidade pesquisada, a qual possui o dobro de homens no PPGs em Agronomia, totalizando
oito homens e quatro mulheres. Os homens são maioria também no PPG de Bioexperimentação,
sendo oito homens e cinco mulheres; no de Computação Aplicada, oito homens e uma mulher;
Direito, onze homens e seis mulheres; Engenharia Ambiental, dez homens e duas mulheres;
Odontologia, sete homens e cinco mulheres; Projetos e Processo de Fabricação, oito homens e
duas mulheres. Destoa dessa análise o PPG em Administração, que possui a maioria de
mulheres – sendo 5 mulheres e 4 homens.
Uma das principais profissões destinadas às mulheres sempre foi a docência,
principalmente, pelo seu aspecto ligado ao cuidado. Como explicita Vianna (2001, p. 83):
De acordo com o primeiro Censo do Professor, 14,1% da categoria é
constituída de homens e 85,7% de mulheres. Levantamento realizado pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) com
cinquenta e dois mil professores brasileiros mostra que 97,4% dos docentes
de primeira a quarta série do Ensino Fundamental são mulheres. Elas ocupam
80,6% das quintas até as oitavas séries desse ensino e 60,8% do Ensino Médio.
A pesquisa da CNTE aponta ainda que entre diretores, coordenadores e
supervisores ligados à Educação Básica 90,1% são mulheres.
Mas, ao olharmos para a docência universitária, o quadro se altera. Conforme
apresentam Backes, Thomaz e Silva (2016, p. 167) “o censo da Educação Superior de 2012
(INEP, 2012) mostra que do número total de docentes, em exercício e afastados, das IES do
Brasil somam um total de 378,939. Sendo que 207.342 são do sexo masculino, enquanto as
mulheres somam apenas 171.597 nas IES”. Apesar do aumento de mulheres com título
acadêmico nas últimas décadas, isso não se refletiu em ampliação considerável entre docentes
universitárias. Conforme pesquisa realizada pelo IBGE, em 2019, 46,8% do total de docentes
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universitárias do país eram mulheres. Em quase duas décadas, o avanço foi de menos de 4%,
visto que em 2003 o índice era de 43,2% (CARNEIRO; SARAIVA, 2021).
Na universidade pesquisada, chama a atenção os números do PPG em Educação,
apenas duas mulheres e nove homens, e do PPG em Ensino de Matemática, com três mulheres
e seis homens, já que, tradicionalmente, as mulheres dominam as licenciaturas. Vianna (2001)
atribui o processo de feminização da docência no ensino básico às péssimas condições de
trabalho, desvalorização profissional e baixo nível salarial. Segundo a autora, estes fatores são
decorrentes das escolhas feitas pelo Estado durante a expansão do ensino primário, em meados
do século XX, quando optou-se por uma expansão que precarizou as condições de trabalho
docente. O mesmo ocorreu na expansão do ensino secundário, no final da década de 1960,
quando as contratações de professores e professoras ocorreram sem a realização de concursos
e a remuneração ocorria através de verbas extraordinárias (VIANNA, 2001). São fatores
históricos e culturais que justificam a presença massiva de mulheres nessa área pouco
valorizada, diferente das análises biologicistas, que defendem que as mulheres são mais
propensas a profissões que envolvem o cuidado, por possuírem “instinto materno”, ou à
comunicação, por possuírem inteligência linguística mais desenvolvida que os homens.
Ainda hoje a maior parcela de mulheres com ensino superior é de áreas ligadas ao
cuidado e à educação. No serviço social a porcentagem é de 88,3%. Na saúde, excluindo
medicina, 77,3% são mulheres. As ciências sociais e comportamentais contam com 70,4% e a
educação com 65,6%. Enquanto entre estudantes das áreas de computação e Tecnologia da
Informação e Comunicação (TIC) apenas 13,3% são mulheres e nos cursos de engenharia e
profissões correlatas 21,6% (CARNEIRO; SARAIVA, 2021).
Ainda que a docência na educação básica seja predominantemente feminina, o quadro
se altera no ensino superior, quando a profissão passa a ser mais valorizada e os salários mais
altos. Além disso, os professores universitários cadastrados em programas de strictu sensu
tendem a ser os mais valorizados devido ao seu envolvimento com a produção do conhecimento.
Na instituição pesquisada, os cursos de pós-graduação que possuem predominância
feminina são os dois programas interdisciplinares: Ciências Ambientais com seis mulheres e
três homens, e Envelhecimento Humano com nove mulheres e dois homens, além do PPG em
Letras com oito mulheres e quatro homens. O PPG em História possui uma diferença sutil,
sendo que de treze docentes, seis são mulheres e sete são homens. As docentes atribuíram essas
diferenças ao fato de a área de atuação ser predominantemente feminina. Mas vale notar que
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mesmo áreas predominantemente femininas tendem a ter um número maior de homens na
docência no ensino superior, e como falamos de programas de pós-graduação, a tendência de
um afunilamento que exclui mulheres tende a ser ainda maior. A que se considerar uma vitória
esse espaço conquistado pelas docentes, que relataram dificuldades como conciliar a vida
familiar e a criação dos filhos com a exigência de produtividade.
Nos cursos com predominância masculina, as docentes entrevistadas consideraram que
esse predomínio se deve ao fato de os homens possuírem um currículo melhor, maior
produtividade acadêmica, menos demandas familiares e, também, a resquícios culturais de
nossa sociedade. Fatores que podem ser explicados por meio do conceito de divisão sexual do
trabalho. Hirata e Kergoat (2007, p. 596) definem a divisão sexual do trabalho como:
[…] a distribuição diferencial de homens e mulheres no mercado de trabalho,
nos ofícios e nas profissões, e as variações no tempo e no espaço dessa
distribuição; e se analisa como ela se associa à divisão desigual do trabalho
doméstico entre os sexos. Esse tipo de análise foi e continua sendo
indispensável […] Mas, a nosso ver, falar em termos de divisão sexual do
trabalho deveria permitir ir bem além da simples constatação de
desigualdades. […] Falar em termos de divisão sexual do trabalho é: 1.
mostrar que essas desigualdades são sistemáticas e 2. articular essa descrição
do real como uma reflexão sobre os processos mediante os quais a sociedade
utiliza essa diferenciação para hierarquizar as atividades, e, portanto, os sexos,
em suma, para criar um sistema de gênero.
Esse conceito nos ajuda tanto a compreender o processo de feminização da docência
no ensino básico, como a inversão disso no ensino superior, quando explica a possibilidade de
homens produzirem mais academicamente, na medida em que se veem livres da necessidade de
manutenção e cuidado do lar e dos filhos. O trabalho doméstico, um trabalho não pago e
completamente desvalorizado, mas absolutamente necessário para a esfera produtiva do
capitalismo é responsabilidade das mulheres.
São as mulheres que processam a matéria-prima do mundo, transformando
ingredientes em alimentos, lavando a roupa suja, limpando a sujeira da casa e mais do que isso,
pensando todo o funcionamento do lar. Mesmo quando as mulheres adquirem independência
financeira, e colocam outras mulheres para fazer o trabalho pesado do lar em seu lugar, ainda
são elas as responsáveis pela carga mental. A carga mental do trabalho doméstico se caracteriza
por pensar o funcionamento doméstico: “o uniforme escolar do filho está limpo? Há alimentos
na geladeira? A roupa foi lavada? Que horas é a reunião na escola?”. Em geral, são também as
mulheres que, predominantemente, se responsabilizam pelas atividades escolares dos filhos.
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Carvalho (2000) avalia a questão da participação da mãe na vida escolar dos filhos.
Em seu artigo Relações entre família e escola e suas implicações de gênero de 2000 pontua que
a mãe de classe média e da escola particular é constantemente cobrada pelo sucesso escolar de
seus filhos, enquanto as mães das classes baixas são responsabilizadas pelo fracasso dos seus.
A autora afirma que:
O sucesso escolar tem dependido, em grande parte, do apoio direto e
sistemático da família que investe nos filhos, compensando tanto dificuldades
individuais quanto deficiências escolares. Trata-se, em geral, de família
dotada de recursos econômicos e culturais, dentre os quais destacam-se o
tempo livre e o nível de escolarização da mãe, expressos no conceito de capital
cultural de Bourdieu (1987). A família que está por trás do sucesso escolar,
salvo exceções, ou conta com uma mãe em tempo integral ou uma supermãe,
no caso daquelas que trabalham muitas horas exercendo o papel de
professora dos filhos em casa, ou contratando professoras particulares para as
chamadas aulas de reforço escolar e até mesmo psicólogas e psicopedagogas,
nos casos mais difíceis (CARVALHO, 2000, p. 143, grifo nosso).
Salvo raras exceções, são também as mulheres que participam das reuniões, dos
momentos festivos e da vivência escolar como um todo. A cobrança das escolas por participação
mais ativa das famílias sobrecarrega as mulheres e reforça a divisão sexual do trabalho
(CARVALHO, 2000). Não há como desconsiderar o privilégio concedido aos homens, que ao
se dedicarem à pesquisa acadêmica voltam-se quase que exclusivamente à produção científica,
enquanto as mulheres precisam se dividir entre vida acadêmica e questões domésticas e
familiares.
O trabalho doméstico é relegado às mulheres e invisibilizado de tal maneira que nem
é considerado trabalho. Federici (2019) considera que as mulheres mantêm o mundo em
movimento ao se responsabilizarem pela imensa quantidade de trabalho doméstico remunerado
e não remunerado realizado dentro de casa. Nenhuma avaliação da questão das mulheres pode
passar ao largo de uma análise do trabalho doméstico como “fator crucial na definição da
exploração das mulheres no capitalismo” (FEDERICI, 2019, p. 23). Há que se considerar as
diferenças fundamentais entre tarefas domésticas e o trabalho produtivo e valorizado realizado
fora do lar e desmascarar a naturalização que pela qual o trabalho doméstico passou em função
de sua condição não remunerada. Federici (2019, p. 25) destaca que “historicamente a questão
da ‘produtividade’ sempre esteve relacionada à luta pelo poder social” e relegar a mulher ao
trabalho doméstico reprodutivo foi a melhor forma de controle para distanciá-la das esferas de
poder.
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Sousa e Guedes (2016) demonstram que a realidade brasileira está longe de uma
divisão do trabalho doméstico igualitária. Analisando dados de 2004 e comparando-os aos de
2014, notaram que:
A proporção de homens, na condição de pessoa de referência ou cônjuge, que
realizaram afazeres domésticos não atingiu 60% ao longo da última década,
contra mais de 90% para as mulheres. A despeito da baixa proporção,
destacamos o aumento, de 2004 para 2014, de quase 7 pontos percentuais
(p.p.) na participação dos homens nos afazeres domésticos na posição de chefe
de família. Já na posição de cônjuge o aumento é inexpressivo. No caso das
mulheres, o fato de ser cônjuge reforçou a participação nos cuidados
domésticos, um patamar maior que o da pessoa de referência em torno de 5
p.p. em 2004, e 3 p.p. em 2014, aproximadamente (SOUSA; GUEDES, 2016,
p. 127).
A ONU Mulheres2 divulgou um estudo considerando a divisão do trabalho doméstico
e concluiu que mantidas as condições atuais, levaremos mais de 80 anos para atingir a igualdade
de gênero (ALMEIDA; COSTA, 2016). Dados do IBGE indicam que as mulheres trabalham
mais do que os homens, e a Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio (pnad) constatou que
na última década a diferença aumentou em uma hora. Em 2004, eram quatro horas a mais por
semana, considerando a ocupação remunerada e o trabalho doméstico. Em 2014, passou-se para
cinco horas a mais. A dupla jornada feminina está aumentando ao invés de diminuir
(ALMEIDA; COSTA, 2016).
O trabalho das mulheres possibilita que os homens experienciem o mundo de modo
diferente, pois eles recebem um mundo já manipulado. Roupas lavadas, refeições prontas, e nas
pesquisas dados ordenados e estatísticas sumariadas. Já às mulheres é legado o papel de
processar a matéria-prima do mundo e torná-las adequadas ao consumo: comida, roupas sujas
e as entrevistas realizadas para coleta de dados de pesquisas (SMITH, 1987).
Quando perguntadas sobre o que leva os homens a serem maioria em seus PPGs, além
das respostas que se referiam ao currículo, maior produtividade acadêmica, menor demanda
familiar e resquícios culturais de nossa sociedade, três das entrevistadas responderam que “não
reconheciam o motivo”, enquanto uma afirmou que se tratasse de “questão de trabalho e não de
gênero” (QUESTIONÁRIO, 2021). As mulheres em qualquer tempo histórico a que se remonte
sempre foram subjugadas pelos homens. Há pouquíssimos registros antropológicos de tribos
2
A ONU Mulheres foi criada, em 2010, para unir, fortalecer e ampliar os esforços mundiais em defesa dos direitos
humanos das mulheres. Segue o legado de duas décadas do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a
Mulher (UNIFEM) em defesa dos direitos humanos das mulheres, especialmente pelo apoio a articulações e
movimento de mulheres e feministas, entre elas mulheres negras, indígenas, jovens, trabalhadoras domésticas e
trabalhadoras rurais (ONU, 2017).
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nas quais houve sociedades marcadamente matriarcais. Porque a subordinação da mulher ao
homem sempre existiu, ela é tomada como natural, tanto que, muitas sequer reconhecem a
existência de hierarquias e papéis sociais de gênero.
Grada Kilomba (2019, p. 235), no livro Memórias da Plantação: episódios de racismo
cotidiano, analisa os mecanismos de defesa do ego “que o sujeito negro atravessa para se
conscientizar de sua negritude e de sua realidade vivida com o racismo cotidiano”. Partindo de
uma abordagem interseccional,3 consideramos que os diferentes sistemas de opressão estão
inter-relacionados, e desse modo, Kilomba (2019) nos auxilia a compreender, a partir de sua
análise do racismo, a dificuldade das mulheres de reconhecerem o machismo.
O ego adota a negação como mecanismo de defesa diante dos conflitos com o mundo
exterior. No processo de negação o sujeito somente assume a experiência ao consciente de
forma negativa. Kilomba (2019, p. 236, grifo da autora) exemplifica: a vivência do racismo
causa tanta ansiedade que o sujeito negro somente consegue trazê-la a consciência de forma
negativa “‘eu nunca vivenciei o racismo’, ‘eu não sou negra/o de verdade’, ‘eu não sou tratada/o
de forma diferente’”. A negação serve como proteção à ansiedade que a admissão de certas
afirmações pode trazer. As minorias falam a linguagem do opressor, na negação o dominado
fala com as palavras do dominante: “‘não existe racismo’, ‘eu não quero me definir como
negra/o, porque somos todas/os humanas/os’ ou ‘eu acho que em nossa sociedade não existem
diferenças’” (KILOMBA, 2019, p. 236, grifos da autora). Deste modo, as respostas que
afirmam “desconhecer o motivo”, ou que “negam” que a prevalência masculina nos PPGs seja
oriunda de um sistema de dominação masculina, podem ser compreendidas a partir do
mecanismo da negação.
4 Considerações finais
Diante do exposto acerca dos desafios de acesso e permanência das mulheres
entrevistadas, sendo elas professoras pesquisadoras dos PPGs da instituição analisada, podemos
levantar algumas considerações finais. Tais como, a questão de gênero e suas disparidades nas
3
A perspectiva interseccional aborda as interações nas vidas das minorias, entre diversas estruturas de poder,
analisando as consequências de diferentes formas de dominação e considerando as intersecções entre elas.
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relações sociais afetam as mulheres de modo especial. Principalmente, a divisão sexual do
trabalho, que as sobrecarrega com o cuidado do lar e/ou dos filhos e limita sua dedicação à
pesquisa. Conforme questionário aplicado, o maior desafio no cenário da docência em pósgraduações strictu sensu são as cobranças de altos níveis de aperfeiçoamento e desenvolvimento
das produções acadêmicas, cenário esse, por vezes descrito como hostil às mulheres. Relata-se
a existência de jogos de poder dentro destes espaços, os quais tendem a favorecer os homens.
Vale ressaltar nessas considerações finais as potencialidades encontradas no trabalho
docente, que se dão no encontro entre os pares de outras instituições, o fortalecimento do
vínculo nas relações entre professoras e estudantes, orientadoras e orientandas/os, além da
atuação nos cargos de coordenação de cursos. Características essas que enriquecem tanto a
docência, quanto a pesquisa. Sobre a relação com as/os orientandas/os, nota-se, como defendem
Freire (2015) e Hooks (2013), que a relação educador/a-educando/a não se limita à sala de aula.
Também precisamos destacar a importância atribuída à possibilidade de atuar em cargos de
gestão, que são lugares políticos e de poder, historicamente vistos como espaços masculinos.
Algumas das áreas ainda possuem predominância masculina em altos percentuais.
Como apontaram as pesquisas de Barros e Mourão (2018), essa diferença é mais evidente nas
Ciências da Terra e Engenharia, dado corroborado na instituição pesquisada. Por outro lado,
surpreendeu a diferença nos PPGs de Educação e Ensino de Matemática, visto que a área da
educação e do ensino tende a ser vista como predominantemente feminina. Isto abre a
possibilidade da realização de estudos aprofundados sobre a presença e participação das
mulheres docentes nestes PPGs em nível de realidade brasileira, a fim de compreender se este
cenário é local ou nacional, bem como evidenciar quais são os desafios postos para as mulheres
integrarem estes espaços. Mas, como mencionado anteriormente, a diferença justifica-se em
função da inversão de gênero quando se trata de docência no ensino superior. Uma grata
surpresa foi a predominância de mulheres no PPG em Administração, que conforme Barros e
Mourão (2018) tende a ser uma área bastante masculinizada.
A maioria das professoras entrevistadas atribui estas diferenças a fatores culturais e a
melhores currículos por parte dos homens, em função de menor demanda na esfera privada. De
fato, as pesquisas realizadas por Alves (2000), Biroli (2014), Barros e Mourão (2018), Backes,
Thomaz e Silva (2016) confirmam a presença de um machismo estrutural na sociedade, que
mina todos os espaços, refletindo na diminuição de mulheres em cargos mais valorizados
socialmente, como a docência no ensino superior.
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Podemos considerar que apesar da alta competitividade e demanda por produtividade
presente nos PPGs do mundo inteiro afetar tanto homens quanto mulheres, são as mulheres que
relatam ter também todo o trabalho de reprodução e cuidado com a casa, companheiros e
filhos/as. Isso ocorre até mesmo quando essas terceirizam o trabalho doméstico, ficando
relegado às mulheres a carga mental de gestão e organização da casa.
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