Até Deus tem medo de morrer, digo, toda a noite em combustão, medo atractivo até Deus tem.
Sou pequeno. Deus é pequeno. Também pequena a pequena morte. O terrível esquecimento. O pequeno abismo, à pequena beira. Como um espelho na lapela.
Maintenant laissez moi. Je veux rester seule avec mon dieu. Disse ela, tranquila e luminosa, mostrando vaga e irrefutavelmente que a morte não tem a última pequena palavra. Nem a primeira, aliás.
Sim, apaga o cigarro, o candeeiro. Dorme, tranquilo. É o teu pequeno deus que te conta uma pequena história. Dorme agora, e ouve o seu segredo.
Tenho a certeza que és capaz.
Je n’ aime pas ça. Eu sei. Mas ouve: faz parte da história. Em princípio tudo pode ter um fim, um fim sentado.
Bebe o meu sangue, come a minha carne, tenho a certeza que és capaz. Ou melhor escutado: sou a certeza que és capaz. Ou pensas ter sozinho conseguido inventar a pequena palavra “deus”? Como se fosses capaz. De conceber uma eucaristia. De rezar acreditando, como se fosses capaz. Por vezes à noite, dizia o outro. Pois, pois. Fia-te na virgem, ou então nada. A inviolada que te toca. Nem sabes o que é, não podes saber.
É deus que reza em ti, ou então nada, percebes, ou então sopas. O totalmente estranho em ti ou então tudo não passará do pequeno espelho que um dia se quebra. Tudo não passará de nada afinal.
E o mais curioso, é que tens de considerar isto, como se não fosse prisão. É aí que reside a saída, é um pouco confuso à primeira, dizes. E tens toda a razão, por vezes a alma fica triste até à morte. Eu sei. Por vezes a alma fica triste.
Não me esquecerei de ti, ouve-se deus no sono. Não me esquecerei de ti, diz deus no sono. Até ao fim do mundo, tu és capaz, diz deus na única palavra orada, a única possível. A palavra dada, digamos assim, o nome próprio, deus diz-se, digamos assim, deus disse.
Deus disse tu, é o teu anseio no pequeno deserto, é a tua escuta. E tens toda a razão, tens toda e irrazoavelmente razão. Por um triz tens toda, digamos assim.
E digamos também que por vezes sabes que a tens, por pequena e por vezes suspeita sabes.
É preciso esse pequeno saber, evidentemente que é preciso o fugidio, até uma criança se apercebe disso, e outras tantas o esquece, também é evidente e preciso, claro.
Mas eu não me esquecerei, lembras o deus dizer, lembras o deus lembrado, o pequeno rasto que pensas tentar seguir, que anseias tentar seguir, de certa maneira tentando fugir, e nessa fuga te encontrando, tentando, mais uma vez, caindo e tentando, fugindo e sendo enfrentado e enfrentando, somos nós próprios sempre à nossa frente por mais que corramos, somos nós próprios, digamos assim tentando, mais uma vez. Somos o nosso próprio abismo, digamos assim, sempre à beira todo em redor, sempre à espreita sentado, por todo o lado, por dentro e por fora, digamos assim.
E no entanto ergues-te, e ousas clamar por Deus. Com toda a razão, diga-se de passagem, de pura passagem diga-se.
Por vezes até, ousas amar, até diria que o fazes sempre, de certa maneira, talvez a medo.
Nesse cruzamento te encontras, como se te conjugasses no exterior e este se conjugasse por dentro, como se. Como se a mão do outro na tua não fosse uma despedida, e nos pudéssemos finalmente olhar e escutar e viver, como se. Como se fossemos capazes, é assim que tens de viver, morrendo. Não és capaz de morte, ouve-se deus dizer. Mas eu sou. Já percebeste? É a história que acorda, tu dorme. Sem medo, com medo. Tentando. Na antecâmara tentando, diz o poeta, e com tanto a fazer, não há muito mais a dizer, parece. A não ser que dizer seja fazer-se, a não ser. Ou então nada, é mesmo o que parece.
(E no entanto tem método, acrescenta aliás o poeta.)
O mundo é sempre velho quando nos dá à luz, um pouco mortos, um pouco morto é sempre o mundo, um pouco nós. Por vezes a alma fica triste, sim, a alma aqui por vezes fica. Não sei muito bem o que digo, e por isso o digo será, é o que parece por vezes. Se eu soubesse rezar, dizemos todos, mesmo os que dizem o contrário ou fazem ignorar, digamos assim todos dizemos, se ao menos eu fosse capaz de rezar.
Mas eu sou, diz deus que disse, mas eu sou, diz a história no sono, a que todos contamos uns aos outros, desde o início dos tempos que contamos, a história inicial, sei lá, a história final, se eu soubesse não precisava de a contar, dizemos todos uns aos outros, sobretudo quando calados dizemos se eu soubesse.