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06 agosto 2009

Olney São Paulo

Para ver a programação da Homenagem a Olney São Paulo é preciso cliclar na imagem para vê-la ampliada em outra janela.
A primeira vez que ouvi falar de Olney São Paulo foi quando, em 1965, assisti a O grito da terra, seu primeiro longa metragem, na tela do cinema Excelsior, situado na Praça da Sé em Salvador. Lá se vão 44 anos. Mas me ficou na memória a bela fotografia em preto e branco e a música e letra do tema principal, além do fato de se constituir num filme genuinamente baiano - e mais: feirense.
Os anos se passam. Ouvi falar da proibição de Manhã cinzenta, filme no qual Olney registra os acontecimentos do explosivo ano de 1968 através de imagens ficcionais e documentais inseridas numa fábula meio surrealista. Um casal de estudantes, militantes e combativos, é preso e torturado, tendo, como algozes, um cérebro eletrônico e um robô. A censura não gostou nada e, além de proibir o filme, o seu autor, Olney, acabou a ter o mesmo destino dos personagens de seu filme: cadeia e tortura.

Em 1972, na primeira Jornada Baiana, sem a dimensão internacional que depois iria adquirir, mas apenas restrita aos filmes e mostras da soterópolis, vim a conhecer pessoalmente a figura de Olney São Paulo no jardim do Instituto Goethe, palco do evento. Olney, sobre ser um cineasta profundamente enraizado com a sua cultura e seu povo, era uma pessoa de lhano trato cuja característica principal, e poucos como ele, podia se destacar na simpatia, na afeição que tinha pelos seus semelhantes, longe da arrogância, da petulância e da pretensão de muitos de seus colegas realizadores cinematográficos. Esta simpatia singular, marca registrada de sua esfuziante personalidade, fazia-o querido por todos que dele se aproximavam.

Em 1975, com um ano de coluna na Tribuna da Bahia, eis que O forte, segundo longa, é lançado no Tamoio distribuído pela Embrafilme. Adaptação de um romance homônimo de Adonias Filho, O forte, no entanto, por problemas de produção, não alcançou um resultado satisfatório. Há lacunas e buracos que podem ser atribuídos à uma crise na produção, mas, crítico neófito, ousei criticá-lo em minha coluna da Tribuna. Na semana seguinte, recebo, na portaria deste jornal, um envelope a conter uma carta do cineasta com quatro laudas na qual rebate os meus comentários. Como na minha coluna não havia espaço para publicá-la, solicitei ao editor-chefe na época que, excepcionalmente, alargasse a coluna para conter, ipsis literis, a carta de Olney São Paulo. E assim aconteceu.
Pensei que depois dessa Olney estivesse retado comigo, mas, dois anos depois, numa outra jornada, encontro o cineasta no mesmo jardim do Goethe, sorriso largo, e, vindo em minha direção, abraçou-me. É um exemplo de sua personalidade, de sua integridade como homem e como artista. A partir de então, sempre me mandava fotografias e cartões sobre os filmes que estava a fazer até que, de repente, veio a dolorosa notícia de sua morte, a Implacável que o levou ainda jovem e disposto a muitas idéias e muitos filmes.

O crítico neófito que era não sabia que a concretização de O forte se constituiu por uma espécie de milagre, tamanhos os obstáculos, que tornaram a sua rodagem um verdadeiro calvário, uma via-crucis. Mas também a obra cinematográfica é o que está na tela, o resultado de um processo de elaboração.

A homenagem que a Prefeitura de Feira de Santana está a fazer a Olney São Paulo, inclusive com a inauguração de uma rua com seu nome, é uma homenagem mais que justa. Apesar de nascido em Riachão de Jacuípe, Olney viveu muitos anos em Feira de Santana e se considerava um feirense. Se um dos maiores cineastas baianos, Olney Alberto São Paulo é, sem sombra de dúvida, o maior realizador cinematográfico feirense de todos os tempos.
P.S: Publico aqui, para mais informações sobre Olney São Paulo, um texto do jornalista e poeta Gilfrancisco, que achei na internet.Gilfrancisco, conheço-o há mais de trinta anos desde a época da agitação icbana.
"Perdi mais um amigo. Quantos me restam? Recuso-me a contá-los. Mais um amigo que se vai, mais uma vida que se esvai. Olney Alberto São Paulo (8 de agosto, 1936; Riachão de Jacuípe-BA/ 15 de fevereiro, 1978; Rio de Janeiro-RJ). Considerado um dos cineastas fundamentais para a sétima arte brasileira, Olney São Paulo completa 29 anos de morto mas, continua infelizmente esquecido do grande público, apesar da sua vasta obra, entre curtas e longa-metragem e da importância histórica que ela assume. Em dezembro de 1975, patrocinado pela Cinemateca, pela primeira vez, foi possível o público brasileiro assistir à “Mostra Olney São Paulo”, com exceção do filme “Manhã Cinzenta”, proibido em todo território nacional.
A primeira vez que ouvi falar de Olney São Paulo foi em 1970, na residência (Edifício Nossa Senhora de Lourdes, Areial de Cima ap. 306- 2 de Julho) dos feirenses Antonio Álvaro, professor de alemão e filósofo e Ary da Silva Moreira, acadêmico de direito da UFBA, meu colega de repartição pública. No velho “balança mais não cai” tive conhecimento do compacto “Grito da Terra”, trilha sonora interpretada por Fernando Lona (1937-1977), uma preciosidade que guardo até hoje.
Pessoalmente, só o conheci em 1972 durante a Jornada Nordestina de Curta Metragem (BA), organizada por Guido Araújo, exatamente no dia 13 de setembro, quando ele (Olney) me presenteou com um exemplar do livro “A antevéspera e o canto do sol”. A partir daí fizemos uma boa amizade que se intensificou durante as filmagens do longa-metragem O Forte e, desta forma, cheguei a ser seu assistente de produção no filme dirigido por Guido Araújo “Festa de São João no Interior da Bahia” (1978) e Ciganos do Nordeste, documentário dirigido por ele (1978).
Feira de Santana
Na Princesa do Sertão, Olney estuda no Santanópolis (Colégio, Ginásio, Escola Normal e Escola Técnica de Comércio) e começa a se interessar pela obra de Jorge Amado, escrevendo-lhe algumas cartas (1956 e 1957) solicitando informações sobre andamentos das filmagens de algumas de suas obras. Sua primeira incursão como cineasta acontece logo após ter adquirido uma câmara Bell & Howell, com o documentário “O Bandido Negro”, sobre Lucas da Feira (1804-1849), chefe de bando terrível, terror de sua região, que durante 20 anos tornou-se personagem da literatura popular. O projeto não foi concluído por falta de recursos. Ainda estudante Olney revela-se como ator, teatrólogo e editor.Em Feira de Santana, Olney dirige dois números da revista Sertão (1961-1963), órgão da Associação Cultural Filinto Bastos. Esse número 1, capa de Duval Queirós, “Um dia em feira de Santana”, com 54 páginas, data de 1 de setembro de 1961, traz colaboradores como: Edgar Suzarte, João Assis, Raimundo Almeida e outros.
O segundo e último número da revista saiu em novembro de 1963, tendo capa “Mandacarus”, desenho do pintor feirense Juracy Dória Falcão, 54 páginas e colaboravam intelectuais como: Edivaldo Boaventura, Eurico Alves, Olney São Paulo, Jorge Amado e outros. Em 1961 Nelson Pereira dos Santos estava para fazer “Vidas Secas” (realizado posteriormente) no interior da Bahia, mas as chuvas, em abundância, impediram que isso ocorresse. Então ele improvisou um outro roteiro e resultou no Mandacaru Vermelho, rodado em Juazeiro do Norte, Ceará. Nesse filme Olney foi seu assistente, desta forma a experiência serve como porta de entrada para a sétima arte. Em Salvador, o jovem cineasta estabelece vários contatos com gente da geração nova, tendo Glauber Rocha à frente. Olney começava a vislumbrar novos rumos para o cinema brasileiro e, em 1963, foi assistente de direção de Oscar Santana no filme O Caipora.
Grito da Terra
Baseado no livro de Ciro Carvalho Leite, o filme tratava de questões agrárias e da fome no nordeste. Camponeses na luta pela terra e que ao sentirem-se famintos saqueiam para sobreviver. A pré-estréia aconteceu em novembro de 1964 na cidade de Feira de Santana. Aclamado no I Festival Internacional de Filmes da Guanabara, onde Ney conhece o cineasta baiano Fernando Coni Campos e trocam várias idéias. O resultado da conversa foi o registro dos dias negros brasileiro, no curta-metragem “Manhã Cinzenta”, realizado nos anos de 1968/1969, a partir do conto homônimo do cineasta baiano, que abre o livro “A antevéspera e o canto do sol”. O Grito da Terra é uma crônica rural, um depoimento sobre a vida do sertanejo desamparado e explorado.
Lamento de Justino, composição de Orlando Sena e Lona e Terra Seca, ambas com orquestração de Remo Usai, funciona perfeitamente no filme, sem quebrar o ritmo da narrativa, obtendo efeitos surpreendentes, valorizando dramaticamente as situações.
Manhã Cinzenta
No inicio de 1967, Olney aporta na “cidade maravilhosa”, terra de São Sebastião, que tanto amou e em cuja comunidade se integrou. Trazia dos confins do sertão baiano sua mulher e três filhos Ivigri, Olney e Pilar e seu filme O Grito da Terra. O roteiro de Manhã Cinzenta foi escrito ainda em Feira de Santana, mas Olney aproveitou a crise estudantil de 1968. Segundo ele “Manhã Cinzenta” é um projeto de um filme em três histórias, do qual participariam, além deste, mais dois episódios que eu ia fazer: uma comédia e um cinema-verdade”. Esse curta trata de um casal de estudante, em um país imaginário, que ao ouvir noticias de transformação política, com outros colegas, começa a imaginar torturas físicas e mentais, que culminariam com uma morte por fuzilamento. O conto foi escrito em 1966.
Em agosto, Olney exibe o filme em sessão especial no MAM (Museu de Arte Moderna) para alguns amigos cineastas. Por prudência, antes de enviá-lo para a censura, temeroso de cortes, fez várias cópias e enviou para diversos cineclubes do país e festivais internacionais. O filme teve sua exibição proibida no Brasil, com o rótulo de subversivo.
Prisão
Depois de ter sua residência invadida pelos militares à procura de documentos e projetos cinematográficos comprometedores, Olney foi levado pela polícia federal, permanecendo por dez dias em local desconhecido. Retornou doente, com pneumonia, que evoluiria, mais tarde, para câncer no pulmão.
Preso, torturado e depois processado pela ditadura militar, quando uma cópia do filme Manhã Cinzenta , documentário de 1968, censurado em todo o território nacional, encontrado na residência de um dos participantes do primeiro seqüestro político no país, embora nada tivesse a ver com a ação terrorista.
Glauber Rocha, criador do cinema novo, dedicou-lhe três páginas de louvor no livro Revolução do Cinema Novo, 1981, coletânea de artigos escritos sobre tudo: amigos, inimigos, cinema e até sobre sua sanidade mental, onde o considera como mártir e herói do cinema brasileiro: “Olney é a Metáfora de uma Alegorya. Retirante dos sertões para o litoral – o cineasta foi perseguido, preso e torturado. A Embrafilme não o ajudou, transformando-o no símbolo do censurado e reprimido. Manhã Cinzenta é o grande filmexplosão de 1968 e supera incontestavelmente os delírios pequeno-burgueses dos histéricos udigrudistas. Montagem caleidocóspia desintegra signos da luta contra o Systena – panfleto bárbaro e sofisticado, revolucionário a ponto de provocar prisão, turtura e iniciativa mortal no corpo de Artysta. O Cinema Nordestino, Cinema Popular metaforizado em Olney e Miguel Torres, vítimas dos invasores – Heroys do Brazyl!”.
O Forte
Mesmo durante os anos de chumbo, depois de muitas lutas, apesar da saúde fragilizada, Olney conseguiu filmar novamente, em 1972, quando assina contrato com a extinta Embrafilme (Empresa Brasileira de filme) e realiza O Forte, longa-metragem baseado no romance do escritor baiano Adonias Filho. Estive no set de filmagem por várias vezes, levado pelo amigo Guido Araújo, cuja filha Milena Araújo, na época com 3 ou 4 anos, era uma das personagens do filme, juntamente com Monsueto Campos de Meneses (1924-1973), compositor carnavalhesco, destacou-se com os sucessos: Me deixa em paz; A fonte secou; Mora na filosofia (gravado por Caetano Veloso).
No recinto fantasmagórico dos seus muros desenrola-se o que um crítico chama “o lado claro-escuro da vida”, uma mistura caleidoscópica do cotidiano, ou seja, os encontros clandestinos dos namorados Jairo e Tibiti, e do épico, a saber, as rápidas evocações de episódios marcantes, alguns sangrentos da história da Bahia (e portanto do Brasil) em que o Forte desempenhou algum papel: a chegada dos portugueses, a invasão holandesa, um levante de escravos.
No fim, o Forte – vestígio remanescente de um passado atribulado, injusto e muitas vezes glorioso – é demolido, ao mesmo tempo em que Jairo e Tibiti esperam o nascimento do seu primeiro filho, que jamais o verá. O Forte é um filme de tendência mais lírico que trágico: o que o Forte representa está espiritualmente vivo na mentes e nos atos dos homens. Segundo seu realizador, o filme “é uma história de amor que se passa na Bahia”.MorteApós as filmagens de Festa de São João no interior da Bahia, Olney de passagem por Salvador, almoçou comigo e Guido Guerra no Restaurante do Sesc, no Pelourinho. Conversamos mais uma vez sobre o projeto do longa-metragem, a Revolta dos Alfaiates, e combinamos que eu daria continuidade nas pesquisas para rever o material após seu retorno de Natal. Acho que ele estava envolvido numa filmagem sobre as fortificações no nordeste brasileiro.
Ultimamente Olney vinha trabalhando intensamente nesse projeto,longa-metragem histórico com ação passada no período do Brasil colônia, na Bahia, quando foi organizado um movimento popular, caracterizado como a primeira tentativa de libertação brasileira do jugo de Portugal. Semanas depois do nosso encontro, soube do seu internamento e que os médicos haviam diagnosticado câncer generalizado.
Visitei Olney São Paulo no Hospital da Beneficência Portuguesa, do Rio, juntamente com Guido Araújo, Luiz Orlando, Celinha e Vera Moss, quatro ou cinco dias anterior à sua morte; a conversa foi muito breve, Maria Augusta, sua mulher havia nos recomendado. Entreguei o número 3 do jornal alternativo “Universo”, dirigido por Damário Dacruz, que tinha um artigo seu, bem como texto/pesquisa que eu havia feito sobre a Conjuração dos Alfaiates, seu próximo projeto para a realização de um longa-metragem. O amigo estava muito debilitado pela doença, parecia uma criança, tinha um sorriso celestial e um olhar distraído. Estava no soro e respirava artificialmente, falava pausado com dificuldade. Disse-me “Gil Brega, vou ficar bom para fazermos muitos filmes; um pulmão já está bom o outro falta pouco para me recuperar”. Na verdade ele já havia perdido um pulmão e parte do outro, a doença devora-o rapidamente. Mas em momento algum demonstrou que estava no fim.
Falei algo que não recordo, em seguida saímos do quarto e fizemos alguns comentários no corredor.
Deixei aquela casa de saúde com a certeza de que não mais o veria. Com destino a Caxias do Sul (RS), onde participaria da XII Jornada Nacional de Cineclubes, dois dias após o início dos trabalhos, o presidente da mesa, Marco Aurélio, noticiava o seu falecimento, em 15 de fevereiro de 1978, após três paradas cardíacas, aos 41 anos. Em, seguida, o diretor da Cinemateca do MAM, Cosme Alves Neto, anunciava uma retrospectiva da sua filmografia. Ao retornarmos a Salvador, Guido Araújo providenciou junto ao Cosme a exibição da mostra em homenagem a Olney São Paulo no Clube de Cinema da Bahia.Olney publicou: A antevéspera e o Canto do Sol – prefácio de Alex Viana (1969);12 Contistas da Bahia, (1969); Moderno Conto Baiano (1974); Dezoito Contistas Baianos (1978). E teve recentemente publicado (1999) o livro Olney São Paulo e a peleja do cinema brasileiro, de Ângela José.Olney, deixou esposa e três filhos Irving (1966-2007), Ilya e Pilar."

05 agosto 2009

Do meu velho Cine Barlan

Era exatamente como este pequeno projetor que a imagem mostra: manivela verde, aparelho marrom, tudo igual. Em 1960, ainda com 9 anos de idade, ganhei este projetor com o qual passei anos a brincar com ele de exibição de filmes. Estes eram feitos de papel-manteiga desenhados com duas imagens e duas opções de movimento. Chamava-se Cine Barlan. Geralmente, os filmes, que eram girados pela manivela que se vê na foto, que, na verdade, girava-se apenas de cima para baixo e de baixo para cima, tinham em seus títulos: Ali Babá e os quarenta ladrões, Branca de Neve e os sete anões, O chapeuzinho vermelho etc. Que destino levou a minha máquina Barlan? Creio que, com o tempo, foi se quebrando e se destruiu.
Interessante observar que um objeto desses, na época de hoje, não despertaria nenhuma atenção com os novos suportes existentes: DVDs, internet etc. Mas, naquela época, o cinema tinha uma magia que não existe mais, pois as imagens em movimento eram exclusivas das salas de projeção. Ter um arremedo de cinema em casa já era uma maravilha mesmo que apenas por dois movimentos em cada quadro. Havia uma estupefação quando se via, pela primeira vez, um filme ou, melhor dizendo, quando se ia ao cinema pela primeira vez. Armando Maynard, de Aracajú/Sergipe, que tem um blog quase arqueológico sobre o cinema (http://fetichedecinefilo.blogspot.com/), deve ter conhecido o Cine Barlan, assim como o pessoal de minha geração.
Não duvido nada que Jonga Olivieri e Romero Azevedo também devam ter conhecido o Cine Barlan. Foi, para mim, um presente comprado nas Lojas Duas Américas da famosa rua Chile em Salvador, quando a Bahia era a Bahia com B maiúsculo e não a terra arrasada, violenta, dos tempos atuais. Havia, nas Lojas Duas Américas, um departamento de cinema e fotografia. Algumas pessoas da classe média alta compravam, neste, máquinas de fotografias caras e projetores na bitola 16mm. Constituía-se um luxo a família que possuía o projetor 16mm. Os filmes podiam ser alugados nas distribuidoras. A Metro Goldwyn Mayer, por exemplo, tinha um departamento exclusivo para o aluguel de fitas em 16mm, procuradas por famílias mais abastadas (eram muito caras) e clubes sociais. Outros tempos!

03 agosto 2009

A beleza do CinemaScope

Como é belo o cinemascope quando bem usado! Na imagem, um plano de O desprezo (Le mépris, 1963), de Jean-Luc Godard, que foi exibido semana passada, durante a mostra dedicada ao realizador pelo V Seminário de Cinema e Audiovisual, na sua integridade espacial. Em Le mépris, que reputo um dos melhores filmes do cineasta, Godard reflete sobre o processo de criação cinematográfica e, principalmente, sobre o tempo e o espaço. A imagem mostra Michel Piccoli chegando ao terraço, quando encontra, de bruços e com um livro aberto nas nádegas, a bela e eterna Brigitte Bardot. O desprezo já saiu em DVD em cópia boa, mas nada como o ver em tela de cinema, na bitola 35mm, como foi feito.

02 agosto 2009

"La dolce vita", de Federico Fellini

Discurso sobre o processo decadentista da civilização ocidental em meados do decurso do século XX – e é impressionante a visão premonitória do autor, La Dolce Vita aborda, com grande criatividade, alguns problemas existenciais do homem moderno, assumindo proporções de um vasto documentário de um tempo contraditório e conflituoso.Fellini celebra e critica o hedonismo moderno nas andanças do jornalista Marcello (Marcello Mastroianni) por uma Roma devassa onde circulam, principalmente na famosa Via Veneto, intelectuais, celebridades, astros e estrelas do cinema. La Dolce Vita pode ser considerado o filme-síntese da primeira fase do cineasta, que abandona a decupagem clássica em função de um ritmo no qual as seqüências se sucedem sem a tradicional progressão dramática. Cada seqüência do filme tem, por assim dizer, uma propulsão restrita a ela mesma sem a necessidade dos liames narrativos à Griffith.

O impacto de A Doce Vida foi enorme em sua época e a sua visão, hoje, ainda consegue atingir o deslumbramento de quarenta anos atrás – assim como ocorreu com Rocco e seus Irmãos, de Luchino Visconti. Há momentos antológicos, se o filme não fosse, ele mesmo, uma antologia: na abertura, o Cristo de gesso que passa de helicóptero sobre a Cidade Eterna serve como prenúncio da obra-prima que virá a seguir. Outro momento fulgurante é o aparecimento de uma estrela de cinema (Anita Ekberg) e sua visita, fantasiada de padre, à Catedral de São Pedro ou quando ela e Marcello se beijam na Fontana Di Treve (revivido com singular poesia em Nós que nos Amávamos Tanto, de Ettore Scola, 1974). Ou a desmistificação do marketing organizado em torno de um milagre religioso. Fellini, com seu especial sentido de cinema, adentra no dolce far niente dos parasitas sociais que vivem à custa dos outros. A soirée na casa do filósofo Steiner (Alain Cuny) e seu apavorante suicídio são dois pontos dramáticos que causaram polêmicas quando do lançamento de La Dolce Vita há cinco décadas atrás. De personalidade enigmática, mas sinalizadora de uma esperança para a humanidade em crise, Steiner, com sua morte imposta, com a destruição de seu ser – e pelo fato de, talvez, ser o único personagem positivo e consciente do filme, configurava uma esperança que se viu despedaçada no momento em que o cineasta mata a personagem. Assim como, na derradeira seqüência de La Dolce Vita, aparece, enquadrado em toda a extensão da tela como um quadro de Hyeronimus Bosh, um peixe enorme que crava seu olho único sobre os sobreviventes da longa noite de loucuras, da notte brava.

La Dolce Vita, o sétimo de Fellini, engloba todos os anteriores – é, mais ainda, a soma de todos. Na sua filmografia se pode distinguir três fases: a primeira dos boas-vidas, das cabírias, da estrada e dos trapaceiros, onde o cineasta ainda se atém a um discurso moldado aos cânones da narrativa mais acadêmica, ainda que, se bem observados, estes filmes da primeira fase já rompem com o academicismo; e La Dolce Vita, em l960, inaugura a segunda fase e registra um desprendimento visível com a etapa anterior. Existe um Fellini antes de La Dolce Vita e um Fellini depois de La Dolce Vita. O corte longitudinal viria, no entanto, em 8 ½ (1964), onde a narrativa, de estrutura complexa, de inserção, mistura tempo e espaço; a terceira fase pode ser considerada aquela que se inaugura com Roma (1971), quando o cineasta, a partir daí, começa a estilizar seus temas anteriores até chegar ao preciosismo de Amarcord (1974) – e neste há uma das seqüências mais bonitas de toda a história do cinema: a chegada triunfante do transatlântico Rex. Se atualmente a exibição de La Dolce Vita não é capaz de despertar mais arruídos nem a ira dos moralistas e conservadores, na época, porém, este extraordinário filme chegou, inclusive, a ser condenado pela Igreja.

Walter da Silveira (o grande ensaísta baiano hoje esquecido) publicou um longo ensaio no "Diário de Notícias" (depois reunido no livro Fronteiras do Cinema), no qual esclarece as intenções do artista sufocado, naquele tempo, pelas diatribes conservadoras: "Nada traduziu melhor o caráter ecumênico de La Dolce Vita do que a repulsa ostensiva ou disfarçada da maior parte do público, em todo mundo. Dizem que a audácia de Fellini consistiu unicamente em documentar as faces negativas do ser humano e do social, sendo a sua moral uma ética da impiedade, sem um clarão breve e tênue a iluminar as sombras densas. Mas, além de inverdade, por que recusar ao artista o direito ao realismo crítico do que vê de hediondo diante dele, sem poder enxergar, nas trevas, qualquer efêmera e insignificante luz? Fellini não mostrou que toda a humanidade está perdida: viu e expôs uma fração humana que já não ouve os frescos chamados da inocência, porque sobre as praias da vida o único rumor vem do mar de todas as angústias e a única imagem insistente deriva de um podre peixe simbólico, de olhos abertos três dias depois de morto. E tanto Fellini não quis exprimir a perda de toda a humanidade, porém somente de uma parcela, que, do ponto de vista do estilo, da linguagem, La Dolce Vita não constitui uma unidade narrativa, mas várias que se interrompem e alternam, com o nexo ontológico permitido pela presença contínua de Marcello, o jornalista que vê o mal e de tanto vê-lo acaba por participar de sua crueldade e de seu egoísmo".La Dolce Vita já se tornou há muito tempo um clássico da sétima arte. Realizado em plena efervescência da renovação da linguagem cinematográfica, em fins dos esfuziantes anos 50, quando explodia por todas as partes uma neo-avant-garde – nouvelle vague, Cinema Novo, free cinema, underground novaiorquino, Resnais, Antonioni, Godard..., o filme de Fellini, além de documento de uma época, possui uma beleza extraordinária. E entrou direto para o folclore internacional de nossa época; o próprio título foi imediatamente incorporado ao jargão jornalístico universal; os paparazzi da Via Veneto revelaram-se parentes próximos de certa fauna de fotógrafos furões do mundo inteiro"