Creio que tudo possui várias perspectivas, tudo. E por isso me dou ao luxo de pensar em tudo um milhão de vezes ou até não conseguir extrair mais nada da tal vivência em questão. É óbvio que tem coisas que eu já dediquei horas e que ainda não entendi, e talvez nunca entenderei e não me importa isso, o que importa mesmo é ter pensando, dedicado horas da minha vida a questionar, entender e construir o que é opinião minha e não consenso coletivo.
Vendo tv, acabei numa entrevista de João Carlos Martins, pianista e hoje regente, que desde sempre só olhar pra ele em qualquer lugar enche meus olhos de lágrimas, gera um choro engasgado uma dor na espinha, porque só quem já viveu pelo menos um dia na vida com a mão atrofiada consegue ter a dimensão do que é aquilo, principalmente para um pianista por exemplo. Sei que não sou como escritora nem de muito longe o pianista que ele foi, porém, talvez eu já tenha chorado as mesmas lágrimas. Lágrimas de quem conversa com as mãos e tem que reaprender a falar com o resto do corpo, a dor de não poder mais ser a única coisa que você tinha certeza que era, não mais poder fazer o que te move, e o pior de tudo porque visívelmente e existem provas médicas que você não pode mais. Não há um não querer, é um não poder.
É quando a vida te nega uma esmola, você precisa daquilo pra viver, pelo menos é assim pra você - é o seu alimento, a sua essência vital - mas a vida diz olhando nos teus olhos sem piedade, perdoe. Vivi algumas vezes esse momento, um cara de branco olhando nos meus olhos dizendo você tem que parar, não era definitivo (ainda), porém não deixava de ser cruel por não ser.
E sobre não poder escrever, levantar um copo para beber água, tomar banho e trocar de roupa eu já pensei horas a fio, já chorei um mar de lágrimas e já consegui contaminar algumas coisas aqui dentro com um pesar, talvez, irreparável. Você não sai de uma lesão, de um imobilização, você não engole um não como esse fácil. Você tem que enlutar, pensar e sofrer horrores questionar a vida e acabar pensando na morte, como coisa boa, como coisa ruim. Ruminar a sentença do não poder, eu transcritora braille há tanto tempo, que conheço tantas pessoas sentenciadas, que nunca poderam ver nada na vida, ou nunca mais poderam ver nada para o resto da vida. Eu, que poderia ser tão mais calejada, mais forte, choro o meu não poder e as minhas dores como se não tivesse experiência nenhuma, porque realmente não tenho. Depois de muito pensar entendi que existe a minha dor, e principalmente a minha perspectiva da dor, e quem me enxerga possui uma visão diferente sobre a minha dor. E essa dor de perder algo individual não pode ser encarrada como uma vivência coletiva. Os meus amigos, meu marido e o resto da família tem visões diferentes da minha dor e a minha dor causa neles dores que eu desconheço. Mas aquele tal João Carlos Martins ainda me comove, e eu tenho que entender porque me comove tanto assim.
Amo arte e pessoas, amo a humanidade que existe nas duas. Uma das minhas certezas na vida. Amo as palavras e suas eternizações profundamente, amo as palavras que dançam na minha cabeça 24 horas por dia. Eu sou palavra, me apresento as pessoas através delas, me exponho através delas, me componho através delas e sinceramente, não vivo sem elas. E gosto do poder de ser regente das minhas palavras, de possuí-las nas pontas dos meus dedos, as palavras estão aqui nas minhas mãos, o problema são as minhas mãos, que não são de boa qualidade eu diria, tentando amenizar o tom do papo, são as dores cotidianas que as palavras me causam e o que escrever já interfiriu na minha vida para ruim. Mesmo que o que escrever me deu de bom na vida sobresaia eu não posso deixar de perceber o óbvio que me é demostrado todos os dias, quase em doses homeopáticas (as vezes não) que as palavras vão ter que encontrar um novo jeito de sair de dentro de mim, porque por algum motivo caprichoso as mãos um dia não mais poderão regê-las, assim como um dia João Carlos Martins deixou de fazer música atráves das suas mãos nos pianos, eu reles eu que como já disse não sou de escritora nem de muito longe o pianista que ele foi, um dia - espero que ainda distante - quando não mais poderei escrever palavras num papel, num computador ou nas paredes da minha casa e tudo for passodo não tão distante, deverei me lembrar que o que me mantém confiante é que elas nunca poderão sair da minha cabeça e isso me conforta mesmo que meu corpo inteiro esteja atrofiado eu ainda serei palavra em essência, porque no mais profundo de mim é só isso que existe.