Em nenhum momento em que tem a bola nos pés nenhum jogador do Benfica tem uma ideia de como a jogada deve acabar. Ou melhor, têm uma ideia: sabem onde está a baliza. Tudo o resto é fruto do acaso. Os jogadores do Benfica são muito melhores do que o que parecem.
O Gaitán tem muito mais futebol dentro dele do que aquilo. O Rodrigo também. O Witsel também. Não têm é treinadores para isso. Os jogadores do ataque do Benfica só têm uma dimensão: a sua. A dimensão colectiva que possam ter dentro deles, com o tempo, com Jorge Jesus, pura e simplesmente desaparece. Porque o que o Jesus pede aos seus jogadores de ataque é precisamente isso: que sejam imprevisíveis, que usem a liberdade para criar soluções. O Rodrigo, ao fim de seis meses, é um jogador muito mais individualista do que era no princípio.
O resultado disto, na prática, é que facilmente o ataque do Benfica se torna também unidimensional: jogador com bola olha para a bola, olha para a frente e começa a correr. Há escassas hipóteses do colectivo do Benfica resolver um jogo, no ataque, porque, quando o jogador procura a solução colectiva, ou ainda não está lá ou já passou. Porque o outro jogador, obviamente, está na sua própria dimensão do jogo, que raramente coincide com a dos outros.
Tudo o que não seja óbvio, simples ou sorte não está ao alcance de uma equipa assim.
Este é o estilo de ataque do Jorge Jesus. Mas é curioso que só é assim desde que chegou ao Benfica. Antes disso, mesmo no Braga, quer o ataque quer a defesa eram mecanizados ao pormenor. Não havia liberdade para ninguém. Fazia o que os americanos chamam de micro-management, controlava todos os movimentos de todos os jogadores até ao pormenor. Nunca cheguei a perceber se o Jesus mudou o chip só porque estava no Benfica, se foi por perceber que, contra as defesas muito cerradas que o Benfica tem de enfrentar, só poderia resultar assim, se foi por sentir que finalmente tinha matéria humana para jogar «à Barcelona» (ao Barcelona do tempo dele, não do actual, entenda-se). Mas a verdade é que mudou mesmo.
Este estilo de jogo não é necessariamente errado. Quando é executado por grandes jogadores, como é que se defende um ataque imprevisível, rápido e tecnicista? É praticamente impossível. Aí sim, entramos no plano teórico do «basta marcar mais um que eles», porque as probabilidades são as de ganhar quase sempre por 3-2, 4-2, 3-1…
É o que acontece com esta equipa do Benfica em 70 por cento dos jogos, com as equipas com menos categoria, de baixa rotação e com menos capacidade de aguentar a pressão. Com as outras, não, por uma razão simples: os jogadores do Benfica não são suficientemente bons e não se conhecem suficientemente bem para arranjarem soluções em conjunto.
O Barcelona de Cruyff que ganhou cinco campeonatos seguidos e a Taça dos Campeões, e onde o Jesus foi fazer estágio, tinha-os. Stoichkov e Romário, por exemplo. Mesmo assim, note-se, sempre no fio da navalha. Dois ou três desses campeonatos foram ganhos graças a falhanços dos concorrentes directos (o Real e o Corunha uma, com um penálti falhado no último minuto do último jogo do campeonato, a jogar no Riazor) e na segunda final da Taça dos Campeões, que marcou o fim da era-Cruyff, com o Milão, levou 4-0! (Repare-se, contudo, que a disciplina táctica dessa equipa do Barcelona não é comparável com a deste Benfica. Era muitíssimo superior, assim como a capacidade de passar a bola.)
Este tipo de futebol de alto risco é um futebol que rebenta com os nervos, mas que apaixona, é ousado, corajoso e é à equipa grande. O tipo de futebol do Porto, por exemplo, sempre foi ao contrário, defensivo, seguro, e por mais que ganhe não apaixona ninguém. Passa incógnito. O que é que se sabe na Europa sobre o Porto? Que ganha. Mas só os treinadores é que gostam de os ver a jogar. Para os adeptos o Porto é igual aos outros, não se distingue.
Para conseguir fazer nos outros 30 por cento de jogos o que faz nos mais fáceis, e com o Jesus, só há uma hipótese: ter melhores jogadores. E já não vou para Ronaldos, Messis ou Iniestas. Ter um Aguero em vez do Cardozo. Ter um Robben em vez de um Gaitán. Ter um Mata em vez de um Bruno César. Ter um Özil em vez de um Aimar. Ter um Yaya Touré em vez de um Javi García. Ter um Coentrão em vez de um Emerson. Por este último exemplo, apenas, se pode ver a que distância real se encontra (na minha opinião, claro) o Benfica de Jesus da equipa que ele (o Jesus) pensa que tem.
Mais um ano de entente Vieira/Jesus, na melhor das hipóteses, vai dar nisto: o Benfica perde dois titulares, compra três ou quatro, melhora o onze inicial, os jogadores conhecem-se um pouco melhor, alguns deles amadurecem (Rodrigo, a Charrua, o Witsel…), o Benfica começa a época na data normal, chega a Fevereiro mais fresco, passa da tal fasquia dos 70 por cento para a dos 75 ou 80, se tiver sorte alguns deles são os decisivos, o Porto perde o Hulk e fica com o TOC mais um ano, e dá um campeonato. Mais nada. E isto é na melhor das hipóteses, porque ninguém garante que o Porto sem Hulk será mais fraco, como equipa, que o Porto com o abono de família Hulk.
Quanto ao jogo, qual foi a novidade? Uma equipa com 60 minutos de jogo no pulmão, a desperdiçar posse de bola como se tivesse 120 e como se do outro lado estivesse uma equipa a treinar. Jogo relativamente seguro a defender e totalmente errático a atacar, incapacidade de segurar uma vantagem caída do céu aos trambolhões numa jogada idiota do defesa do Braga, uma equipa do Braga a jogar como o Feirense e inferior em todos os sentidos menos nos pormenores da organização e do colectivismo, jogada individual genial de Gaitán no minuto 92, já fora de tudo, com Bruno César a marcar o golo da sua carreira num momento de classe, fazendo o que tinha de ser feito de maneira precisa. O Benfica ganha da única forma que consegue ganhar um jogo com este grau de pressão: com uma coincidência de momentos individuais brilhantes. Que, por extrema felicidade (estrelinha de campeão?) chega no último suspiro. É Gaitán quem ganha este jogo, não nos iludamos. Os outros empataram-no – ele, em cinco segundos, ganhou-o. No limite. À messias. Como o povo gosta. Mas para termos uma equipa de nível europeu temos de o trocar por um Robben.
Fácil, não?