O Veiga é um dos grandes «ses» na história do futebol português, e garanto que vai ser um tema à ribalta dentro de dois/três anos, porque tem tudo a ver com o que será o grande tema do Benfica nos próximos tempos.
O Benfica teria conseguido dar a volta por cima se o Veiga tivesse ficado como director-desportivo durante cinco anos?
O Benfica teria sobrevivido se…?
QUE Benfica teria existiria se..?
Há uma questão que é importante, e que não deve ser confundida: o facto de se declarar guerra não quer dizer que a única forma de fazer a guerra seja à bruta e sem plano, a pensar apenas no próximo jogo, ou no próximo campeonato.
Todos os países de sucesso no mundo, todas as empresas de sucesso, têm um departamento de estratégia. Ninguém vai para a caça de fisga. Ninguém vai para uma batalha sem saber o que está para lá do campo de batalha. Ninguém vai para a guerra sem pensar no dia a seguir à guerra, e no que fica depois dela. Se a tua vida depois da guerra depende da terra que tem de ser cultivada, vais envenenar a terra (que será tua) para vencer essa guerra? Qual é o propósito?
O caso do Veiga é muito complexo. Não se entende com simplismos. Foi um acto de grande atrevimento por parte do Vieira, talvez a jogada mais ousada em toda a história do futebol português (se calhar mesmo a mais desesperada). Nunca como então o futebol português esteve à beira da guerra total, e as repercussões da guerra total são sempre imprevisíveis. A guerra, dizia alguém, sabe-se sempre como começa, mas nunca se sabe como vai acabar.
Na minha opinião, o atrevimento de Vieira, enquanto atitude, foi muito positivo. Foi o verdadeiro grito de revolta do Benfica. O que faltou, em todos os momentos dessa revolta, foi pensamento a longo prazo, plano, limites de actuação, capacidade de mobilização – enfim, numa palavra, estratégia.
O que estava ali em causa era o «ganhar agora, abrir brechas na estrutura deles, e esperar que caiam». Não se pode dizer que não tenha havido resultados: o Benfica foi campeão. Mas o que é aconteceu? Dois anos depois, estava mais fraco do que antes do Veiga entrar. Porquê? Porque havia vontade, havia força, mas não havia plano.
Isso deveria servir de lição a toda a gente. O sucesso não atrai mais sucesso se as condições do sucesso forem meramente conjunturais em vez de estruturais.
O que se passa no Benfica desta época é, noutra dimensão, parecido. O Benfica pode ganhar este campeonato, mas o que o levaria a ganhar este campeonato seria estruturalmente suficiente para manter o nível competitivo nos próximos anos? Em termos meramente desportivos, assumo que não me parece, e também assumo que não gosto de ver equipas a inverterem a ordem natural do trabalho, ou seja, a esperar que a qualidade melhore o trabalho em vez de esperar que o trabalho melhore a qualidade. Esta última é, eticamente, a regra de ouro.
A grande batalha que espera o Benfica, nos próximos anos, é uma batalha ética – num sentido muito lato deste conceito.
Não é apenas ética no sentido da moral, do agir bem e pelo bem. É ética enquanto forma de vida. A ética do trabalho. Dentro de um ou dois anos, quando o Benfica tiver recuperado a estabilidade financeira e já não se encontrar motivo para o Porto continuar a ser superior, a questão vai dar aí. «Porque é que ainda não ganhamos?», perguntar-se-á. Porque eles dão mais importância ao trabalho, acabará por se concluir. É uma forma de encarar a vida. É falso que «no Porto é que se trabalha» - é uma ideia feita na primeira metade do século XIX, no auge do liberalismo portuense, amplamente desmentida posteriormente pelos factos económicos do país, apesar de se continuar a alimentar o mito. Mas é verdade – e daí o mito não morrer, por ter um fundo de verdade – que no Porto se dá mais importância ao trabalho como factor do sucesso (o que é muito diferente de se dizer que se trabalha mais). No Porto não se trabalha mais que em Lisboa, mas há uma ética em relação ao trabalho que é diferente, mais convicta. Aceita-se melhor o valor do trabalho. E isso reflecte-se no seu clube mais representativo, que tem uma grande ligação cultural à cidade.
Para conseguir traduzir a sua superioridade económica e ideológica em relação ao Porto em bons resultados desportivos, de forma continuada, o Benfica terá ainda de fazer essa revolução, que é uma revolução cultural. Não se assustem, não terá de haver uma Grande Purga, como na China de Mao, mas irá doer, sobretudo porque há, desde há cerca de 30 anos, desde a primeira eleição de João Santos, uma cultura burguesa (num sentido pejorativo) instalada no Benfica. Nessa nova cultura o valor acrescentado passou a ser comprado, e não trabalhado. Essa foi a semente do pecado no Benfica. A sua ética de trabalho foi sucessivamente sendo coberta por soluções fáceis, umas por cima das outras, erros tentando tapar outros erros, sucessivamente mais caros, e com isso essa ética operária que fez do Benfica um caso único a nível europeu ficou enterrada tão fundo que, hoje, milhões de benfiquistas passaram uma vida inteira sem a conhecer. Eu próprio, aos 38 anos, só sei que ela existiu porque tive o privilégio de ainda sentir os seus resquícios, já nos anos 80. Foi o suficiente, contudo, para perceber a diferença do que se seguiu. Mas também demorei uns bons dez anos a percebê-la. Antes disso, quis matar várias pessoas, entre Pintos e Silvanos. E ainda me ferve a barriga. (Ainda hoje, se dissesse que não desejo a morte a ninguém, estaria a mentir, mas chiiiiu...)
Porque é que eu me revolto e, ao mesmo tempo, me assusto quando vejo benfiquistas a recorrerem sucessivamente às arbitragens para apaziguar frustrações, e a contaminar os mais novos? Não é por o Benfica não ter sofrido com a total degeneração do sistema pelo Porto – porque sofreu. É, sim, porque essa explicação, mesmo explicando alguma coisa, não só não soluciona coisa nenhuma como se encontra no extremo exactamente oposto à verdadeira solução. Há duas hipóteses: ou uma pessoa se queixa, ou uma pessoa trabalha. É tão simples como isto. E é fácil reconhecer um perdedor: é o que se está a queixar. E se ainda não perdeu vai perder, mais tarde ou mais cedo. Pôr de lado a questão dos árbitros – quer chegue ao ponto de os controlar ou não – é um passo crucial (eu diria mesmo que poderia ser o próximo grande passo civilizacional no futebol português) na reafirmação do Benfica. E o clube que o conseguir vai ganhar vantagem sobre todos os outros. Benfica e Sporting têm maiores possibilidades de o conseguirem, porque o Porto está demasiado vinculado ao sistema e muito dificilmente o largará. Essa é o verdadeiro campo de luta pel liderança futura do futebol português. O primero a chegar à posição mais elevada terá vantagem.
Mas essa é uma mentalidade que não vai ser fácil erradicar. Só temo que, enquanto benfiquista, tenhamos ainda de vir a sofrer bastante até que esses chorões mais radicais percebam, finalmente, que lamúrias não pagam dívidas, por mais que doa o dói-dói.
Voltando ao ponto da estratégia, quando eu digo que devemos saber jogar com as regras que estão em campo não estou a dizer que devemos jogar sem regras. Jogar com as regras não é jogar sem noção dos limites, sem noção dos objectivos, de até onde se pode ir, do que se faz e porquê.
Ganhar controlo sobre a arbitragem? Se é isso que está em causa, se é isso que é preciso fazer, sim. Claro que sim. Mas para quê? E em que condições? Para fazer o mesmo que o Porto, usando o controlo sobre a arbitragem para destruir a concorrência em vez de salvar o futebol? Isso seria desastroso para o Benfica, porque atiraria o futebol português para a miséria, e o Benfica vive do futebol português. Mesmo na guerra, há ética. Usar tudo o que se tem para ganhar a guerra? Sim. Sem pensar no pós-guerra? Não. Benfica, Porto e Sporting são potências nucleares em Portugal. Se enveredarem na guerra total, essa guerra será exterminadora do futebol tal como o conhecemos. E o seu apodrecimento durará muitos anos, connosco a sentir o cheiro. O meu filho já gosta mais do Barcelona que do Benfica. Porque não? Faz ele muito bem. Sou eu que lhe vou dizer que tem de ser dos nossos, sabendo que os nossos vivem enterrados em merda até ao pescoço, e que ela chega de todos os lados? Meu rico filho. Espere que se dedique à escalada.
Daqui a dois ou três anos o Veiga será, finalmente, útil ao Benfica porque exemplificará a diferença entre o querer ganhar e o saber ganhar, em termos éticos. O como ganhar. Será muito útil quando os benfiquistas, tendo todas as condições reunidas para ganhar, tiverem de decidir o que querem para o seu clube.
A minha questão actual, no Benfica, é apenas esta: há plano?
Atenção: «ganhar» não é um plano. É o mesmo que dizer que o Benfica jogou bem porque marcou um golo no último minuto ou que jogou mal porque nesse remate a bola foi à barra, mesmo tendo jogado o jogo exactamente da mesma forma até ao golo. Isso não é nada. Isso são pategos a falar na net. Os pategos não fazem planos, limitam-se a cumpri-los. «A nossa estratégia passa por ganhar o jogo», dizem os grunhos da bola. É o cúmulo da grunhice. Uma estratégia é um caminho, não o destino. Não começa no fim, começa no princípio.
No Benfica, antes da acção, tem de haver estratégia. Ganhar, sim, mas isso não é estratégia, é objectivo. Estratégia é: ganhar como, até quando antes de reformular o plano, dentro que parâmetros, consumindo que recursos, defendendo que prioridades, para atingir que tipo de cenário após a vitória, procurando o quê depois de ela ser alcançada?
Se houver isso no Benfica, não há nenhum problema. Mesmo perdendo, há tino. Há bússola. Perde-se mas não se fica perdido. Winston Churchill definiu o sucesso como «a capacidade de passar de um fracasso para o fracasso seguinte sem perder o entusiasmo.»