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Senso Comum e Realidade em Hannah Arendt

KUSKOSKI, Matheus Soares1


SCHIO, Sônia Maria2
1
Universidade Federal de Pelotas – matheus_k usk osk [email protected]
2
Universidade Federal de Pelotas – [email protected]

1. INTRODUÇÃO

A filosofia de Hannah Arendt dá grande ênfase à noção de pluralidade


enquanto pilar para a construção de práticas políticas autênticas. Nesse sentido,
caminha próxima de abordagens contemporâneas não só à Ética e Filosofia
Política, mas também a outros ramos da Filosofia que enfatizam a
intersubjetividade. Um papel importante em sua teoria é desempenhado pelo
conceito de senso comum, ou sensus communis. É por meio deste que os
sentidos particulares – visão, audição, olfato, tato e paladar – ajustam-se ao
mundo compartilhado dos homens enquanto cidadãos. É graças ao senso comum
que nos tornamos aptos a emitir julgamentos apropriados sobre os fatos que
chegam ao nosso conhecimento. Entretanto, Arendt compreende que esta
faculdade humana foi destruída no início da era moderna.
Em Origens do Totalitarismo, Arendt indica ser a falta de senso comum um
dos fatores que deu possibilidade ao antissemitismo e aos regimes totalitários.
Nas Lições sobre a filosofia política de Kant, Arendt expõe ser o senso comum o
sentido pelo qual orientamos nossos julgamentos tendo em vista os outros,
visando à aceitabilidade perante os demais. Em A Condição Humana, encontra-se
a narrativa de como as ciências modernas, com sua ênfase na produção de
instrumentos para alcançar conhecimentos seguros sobre o mundo, possibilitaram
a destruição desse sexto sentido visto não ser possível mais confiar nos próprios
sentidos e naqueles conhecimentos compartilhados tradicionalmente.
É movida por essa perturbadora conclusão que a presente pesquisa
pretende analisar a obra arendtiana. O conceito de senso comum, embora central,
nunca foi tratado de maneira sistemática pela teórica política, motivo pelo qual se
faz necessário revisar amplamente sua bibliografia. Por isso, partindo de sua obra
inaugural, Origens do Totalitarismo, até sua póstuma Lições sobre a Filosofia
Política de Kant, proceder-se-á à análise do conceito para alcançar o
entendimento de seu significado, alcance e importância no contexto da obra de
Arendt. Observa-se, antes de tudo, que a autora emprega diferentes definições
sobre senso comum ao longo de seus escritos. Por vezes, identifica-o como um
sexto sentido pelo qual adaptamos nossas percepções físicas ao meio em que
nos encontramos. Em outros momentos, fala dele como se formado pelas ideias
básicas e comumente compartilhadas entre os homens. Não obstante, ainda
defende por sensus communis a capacidade humana de sair da interioridade para
colocar-se no lugar de outros.
É importante ressaltar que essas diferentes maneiras de definir o senso
comum correspondem a tradições filosóficas distintas, em vários momentos
incompatíveis entre si. Por isso, considera-se pertinente questionar se há um
único sentido por trás de todas as formulações de Arendt sobre esse conceito e,
se há, qual é. Ademais, cabe perguntar se a ausência do senso comum é
característica permanente de nossos tempos e, consequentemente, se ainda há
espaço para ações políticas embasadas na pluralidade humana.
Utilizar-se-á para essa pesquisa as principais obras de Hannah Arendt,
Origens do Totalitarismo, A Condição Humana, Sobre a Revolução, A Vida do
Espírito e Lições sobre a Filosofia Política de Kant. Também serão incluídos
artigos e ensaios desta filósofa encontrados em outras obras, como
Compreender, Responsabilidade e Julgamento, A Dignidade da Política e A
Promessa da Política. Complementarmente, será feito um diálogo com os
principais comentadores de Arendt no Brasil e no exterior. Destaca-se, nesse
sentido, a obra de Anne-Marie Roviello, Senso Comum e Modernidade em
Hannah Arendt, única a trabalhar especificamente sobre este tema.

2. MATERIAL E MÉTODOS

O trabalho em questão foi realizado tendo por base, sobretudo, o estudo e


fichamento das obras de Arendt, especificamente as passagens relativas ao
senso comum. Destacam-se as obras A Condição Humana e Lições sobre a
Filosofia Política de Kant. Além disso, a leitura feita foi confrontada com as
interpretações de comentadores consagrados. Adicionalmente, foram realizadas
sessões de discussão e debate com a professora orientadora, bem como debate
em grupo durante as reuniões do Grupo de Estudos Hannah Arendt da
Universidade Federal de Pelotas. A fundamentação metodológica consiste,
fundamentalmente, na análise das obras de Arendt e de seus comentadores.
Entre estes, ganham destaque as leituras de Anne-Marie Roviello, Margaret
Cannovan, Dana Villa, Ronald Beiner, e também os brasileiros André Duarte,
Celso Lafer e Sônia Schio.

3. RESULTADOS E DISCUSSÕES

Até o presente momento, já foram realizadas leituras das principais obras e


ensaios de Arendt relativos ao tema, além de alguns comentadores relevantes. A
pesquisa encontrou na obra Lições sobre a Filosofia Política de Kant o melhor
desenvolvimento da ideia de senso comum. O sensus communis é “um sentido
extra – como uma capacidade extra do espírito [...] que nos ajusta a uma
comunidade. [...] [É] o sentido especificamente humano, porque a comunicação,
isto é, o discurso, depende dele” (LAFER, 1993, p. 90). Por ser de posse de
todos, o senso comum capacita cada um a ser participante dos negócios
humanos, sem exclusões (LAFER, 1993, p. 103).
Em Arendt, portanto, o senso comum adquire a qualidade de ser a mais
política das faculdades da mente: “De fato, na política, como no juízo, qualquer
pessoa que representa ou pensa está na presença de outros [...] tendo, cada
qual, uma visão particular de um mundo comum. Com estes outros é preciso
chegar a um termo” (ARENDT, 1993, p. 102).
Entretanto, diante da perplexidade gerada pela invenção do telescópio e das
descobertas subsequentes, a era moderna passa a conceber a razão em termos
de um cálculo de consequências, isto é, como faculdade de deduzir e concluir, um
processo que se dá no interior de cada homem: “[...] trata-se do jogo da mente
consigo mesma, jogo esse que ocorre quando a mente se fecha contra toda
realidade e “sente” somente a si mesma [em operações] nas quais todas as
relações reais são dissolvidas em relações lógicas entre símbolos criados pelo
homem” (ARENDT, 2010, p. 354-355).
O homem moderno, portanto, tendo perdido não tanto a capacidade para
utilizar o senso comum, mas a confiança que pode ter nele, tornou-se um insano,
em sentido kantiano: é dotado apenas de um sensus privatus “[...] estando aí
implicado que nossa faculdade lógica, a faculdade que nos capacita para extrair
conclusões de premissas, poderia realmente funcionar sem a comunicação – só
que, nesse caso [...] ela levaria a resultados insanos precisamente porque se
separou da experiência, que só pode ser válida e validada na presença dos
outros” (ARENDT, 1993b, p. 82).
Quem perde com isso são os homens enquanto seres que vivem em
comunidade, pois é realidade começa a se desmanchar entre eles. Realidade,
para Hannah Arendt, é diferente de verdade. Enquanto esta, por um lado, tem um
caráter compulsório sobre o entendimento, tal como as operações lógicas, as
verdades dos fatos são sempre testemunhais, e nesse sentido a testemunha
sempre é parcial, correndo o risco de incluir aspectos subjetivos nem seu relato.
Assim, a realidade é algo distinto da totalidade dos fatos.
Percebe-se uma relação entre o senso comum e a realidade do mundo. Ao
que parece, sem a existência prévia desse sentido de comunidade entre a
pluralidade de homens singulares, não há comunicação propriamente dita, não há
possibilidade de entendimento e acordo, por ausência de algo em comum que
unifique suas experiências. A esfera pública e, um passo adiante, a própria
política, seria abalada em suas bases.
Assim, dando continuidade ao trabalho já feito, é preciso analisar crítica e
sistematicamente o conceito arendtiano de senso comum: de que modo ele se
constitui e em que condições. Quais são as suas características, assim como qual
é o seu papel na Filosofia política de Arendt e, principalmente, que potenciais o
conceito de senso comum oferece para a compreensão da filosofia e da situação
do indivíduo contemporâneo.

4. CONCLUSÕES

O senso comum, entendido – preliminarmente, visto ainda haver muito a


pesquisar – como a faculdade de se colocar na situação de outras pessoas a fim
de alcançar julgamentos imparciais, garante a objetividade e a imparcialidade na
política. Permite aos indivíduos, encarados como cidadãos, colocarem-se acima
de seus interesses e afinidades, alcançando acordos apesar de suas diferenças.
Uma análise sistemática desse conceito ainda não foi realizada.
Considerando a importância de tal conceito para o pensamento dessa pensadora,
a ênfase dada a ele na construção de uma visão política radicalmente diferente,
torna-se evidente a contribuição pretendida com esta pesquisa.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 11.ed. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2010.

______. Compreender. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.


______. A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relumé-Dumará, 1993.

______. Entre o Passado e o Futuro. 6.ed. São Paulo: Perspectiva, 2009.

______. Lições sobre a filosofia política de Kant. Rio de Janeiro: Relume-


Dumará, 1993.

______. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras,


2004.

______. The Life of the Mind. 1.ed. San Diego: Harcourt, 1981.

BEINER, Ronald. Hannah Arendt on Judging. In: ARENDT, Hannah. Lessons on


Kant’s Political Philosophy. Chicago: The University of Chicago Press, 1992.

CANOVAN, Margaret. Hannah Arendt: a reinterpretation of her political


thought. New York: Cambridge University Press, 1992.

DUARTE, André. Hannah Arendt e a modernidade: esquecimento e redescoberta


da política. Trans/Form/Ação. n.24, p. 249-272, São Paulo, 2001. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-
31732001000100017&script=sci_arttext. Acesso em: 20 jul. 2011.

KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Tradução de Valerio Rohden e


António Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993.

LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. 2.ed. São


Paulo: Paz e Terra, 2003.

SCHIO, Sônia Maria. Hannah Arendt: história e liberdade (da ação à reflexão).
Caxias do Sul: EDUCS, 2006.

ROVIELLO, Anne-Marie. Senso Comum e Modernidade em Hannah Arendt.


Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

VILLA, Dana R. Beyond Good and Evil: Arendt, Nietzsche, and the
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maio 1992. Disponível em: http://www.jstor.org/pss/192004. Acesso em: 14 jul.
2011.

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