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PERIAGOGE | UCB | V. 3, N.

1, 2020

HANNAH ARENDT: POSSIBILIDADE DA VERDADE NA POLÍTICA NA


RELAÇÃO ENTRE POLÍTICA E LINGUAGEM

HANNAH ARENDT: POSSIBILITY OF TRUTH IN POLITICS IN THE RELATIONSHIP


BETWEEN POLICY AND LANGUAGE

GEOVANE DA FROTA

Resumo
O objetivo desse artigo é questionar a relação entre verdade e política, com base na teoria
política de Hannah Arendt. Essa proposta tem por base os estudos desenvolvidos no capítulo
intitulado “Verdade e política” em sua obra Entre o Passado e o Futuro (2016), com apoio
de fundamentos fornecidos por A Condição Humana (2016). Atender esse objetivo depende
da abordagem de características específicas a reflexão de Arendt para encontrar um vínculo
com o pensamento de Wittgenstein na fase das Investigações Filosóficas. Com esses
pressupostos será abordada á correspondência entre o senso comum de Arendt e a
importância da comunidade para os jogos de linguagem de Wittgenstein. Essa relação entre
Arendt e Wittgenstein dependerá da abordagem de Kant realizada por Arendt, como condição
para determinar o juízo político, conceito de fundamental para esse trabalho.
Palavras-chave: Arendt. Verdade. Política. Juízo político.

Abstract
The purpose of this article is to question the relationship between truth and politics, based on
Hannah Arendt's political theory. Answer this objective depends on Hannah Arendt's
reflection on specific characteristics to find a link with Wittgenstein's thinking in the
Philosophical Investigations phase. With these assumptions, the correspondence between
Arendt's common sense and the importance of the community for Wittgenstein's language
games will be addressed. This relationship between Arendt and Wittgenstein will depend on
Arendt's Kant approach, as a condition for determining political judgment, a fundamental
concept for this work.
Keywords: Arendt. Truth. Politics. Political judgment.

INTRODUÇÃO

Hannah Arendt é reconhecidamente uma das mais significativas pensadoras do século


XX. A influência do seu pensamento e os temas que foram o foco da sua pesquisa, foram
manifestos na repercussão das suas obras como. Entre o Passado e o Futuro, As Origens do
Totalitarismo, A Condição Humana, Sobre a Revolução e A Vida do Espírito.
Devido à grande número de publicações através de livros e ensaios esta autora alemã
abordou os eventos políticos mais importantes de seu tempo, com o propósito de
compreender os seus efeitos nas tradicionais categorias da teoria política. Hannah Arendt
defende a importância da ação na política, valorizando o envolvimento dos cidadãos nos
temas públicos e na decisão coletiva sobre os assuntos de interesse da comunidade.
Nesse trabalho será apresentado a concepção de Arendt sobre a verdade, o
pensamento e a linguagem com o objetivo de responder à seguinte questão, será possível a

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verdade na política? Esse questionamento tem como base a perspectiva fornecida por Hannah
Arendt e Ludwig Wittgenstein sobre a verdade. A solução depende da abordagem inicial da
reflexão de Hannah Arendt sobre a política abordando os seus conceitos fundamentais a ação
e o discurso.
Em seguida serão apresentadas concepções de Juízo apresentadas por Arendt,
abordando o sentido político e a noção de validade, com base na terceira crítica na estética
de Kant, encerrando com a análise do texto Verdade e Política que aborda a relação entre os
dois conceitos. Esse momento do trabalho busca de reconhecer no pensamento da autora a
resposta do problema que motiva este trabalho de forma coerente com os pressupostos
teóricos fornecidos por Wittgenstein apresentados na parte final desse artigo.
Em função dos objetivos anteriormente abordados foi necessário utilizar o método de
pesquisa bibliográfica com o foco principal nas obras de Hannah Arendt com destaque para
Entre o Passado e o Futuro (2016) e A Condição Humana (2016). Durante o processo de
pesquisa também foi necessário recorrer a comentadores de Arendt capazes de relacionar seu
pensamento com o Wittgenstein e Kant. Nesse contexto Linda Zerilli destacou-se como
comentadora fundamental, passível de ser complementada com a leitura de Adriano Correia.

AÇÃO E DISCURSO NA POLÍTICA

Em sua obra A Condição Humana, a autora alemã apresenta os fundamentos da teoria


da vita activa expresso através do labor, obra e ação1. Com base nessas características do
pensamento de Arendt será possível desenvolver a compreensão especifica da ação, com foco
no discurso, em detrimento da abordagem dos conceitos de Labor e Obra, devido sua
importância para evidenciar a concepção de política em Hannah Arendt.
Às três categorias da vita activa, anteriormente apresentadas, correspondem as
distintas atividades típicas do ser humano. Arendt quando aborda o labor refere-se à atividade
biológica do corpo como manutenção da vida humana. A obra corresponde o aspecto
artificial da existência humana, em outras palavras, mundano, produzindo artefatos, sem
finalidade, em uma relação distinta do mundo natural e biológico, por ser caracterizada
relacionamento estabelecido entre o homem e os diferentes objetos a sua disposição.
Na teoria de Arendt, a ação, é apresentada com destaque, por ser uma atividade
exercida exclusivamente de forma direta entre os homens de forma independente da
necessidade e do intermédio das coisas ou da matéria. Agir corresponde à condição humana
da pluralidade, devido ao fato de os seres humanos no plural habitarem o mundo.
A condição plural é distinta de um significado quantitativo, sendo responsável em
possibilitar ação, pois somente através da pluralidade, torna-se possível reconhecer a
humanidade comum entre os diferentes homens.

A ação seria um luxo desnecessário, uma caprichosa interferência nas leis gerais
do comportamento, se os homens fossem repetições interminavelmente
reproduzíveis do mesmo modelo, cuja natureza ou essência de qualquer outra coisa.

1
Essa nomeação segue a tradução de Adriano Correia: “As várias traduções deste texto apresentam os seguintes
títulos: “Arbeit, Herstellen, Handeln” (alemã); “Travail, oeuvre, action” (francesa); “Lavoro, opera, azione”
(italiana); “Labor, trabajo, acción” (espanhola). Ao optar por ‘Trabalho, obra, ação’, seguimos as próprias
indicações de Arendt, tanto no próprio texto traduzido quanto em notas a A condição humana. (ARENDT,
Hannah. Trabalho, obra e ação. Trad.Adriano Correia. p. 196).

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A pluralidade é a condição da ação humana porque somos todos iguais, isto é,


humanos, de um modo tal que ninguém jamais é igual a qualquer outro que viveu,
vive ou viverá. (ARENDT, 2016, p. 9)

Ação é uma característica da vida humana que possibilita distinguir os seres humanos
entre si e dos animais. Na concepção de Hannah Arendt participar da esfera pública, o espaço
de relações humanas, ocorre somente através da ação e do discurso, esses dois elementos
possibilitam a manifestação de humanidade. Portanto, agir no espaço público deve ser
entendido como privilégio dos homens na presença de outros.
A liberdade e pluralidade são fundamentais para o entendimento da ação como
capacidade de fazer algo original e imprevisível. Na liberdade reside o inesperado e o
começar de novo. A novidade presente em cada ser humano é manifestada na relação política
que não está fundamentada de forma exclusiva no novo, mas na criatividade contínua e
imprevisível (VILLA, 2001, p.135).
Nesse contexto a pluralidade como condição para realização da ação e do discurso
apresenta um caráter dual de igualdade e distinção. Em outras palavras, se não houvesse
igualdade entre homens por serem reconhecidamente seres humanos, eles não poderiam fazer
planos para o futuro e ser entendidos por outros. No entanto, se não existisse distinção a ação
e o discurso não seria necessário para o entendimento recíproco.
A ação e o discurso, na concepção de Arendt, apresentam um forte vínculo por sua
capacidade em comum de ser o meio no qual possibilita o agente se revelar. Pois, através do
uso de palavras e principalmente atos, os indivíduos são inseridos no mundo humano,
consistindo em um segundo nascimento, no qual é reafirmado o aparecimento físico original
(ARENDT, 2016. p. 11).
Enquanto agem e falam os homens mostram quem são realmente, revelam suas
identidades únicas manifestando-se para o mundo. A ação não pode nem mesmo ser
imaginada fora da sociedade na hipótese de sua inexistência, o discurso não seria possível,
pois perderia sua capacidade de revelação, que ocorre somente quando as pessoas estão com
os outros humanos em uma mera união (togetherness).
Nesse sentido, a política na compreensão de Hannah Arendt, consiste no
aparecimento do indivíduo na esfera pública por meio da ação e do discurso evidenciando
para seus pares as características que o tornam único pelo uso da palavra e sua capacidade de
agir. Isso significa adquirir e manter uma identidade pessoal, começando algo inteiramente
novo.

JUÍZO POLÍTICO EM ARENDT

Em Lições sobre a filosofia política de Kant (1993), Hannah Arendt desenvolve a


relação entre o juízo estético e o juízo político. A pensadora aborda o juízo estético presente
na terceira crítica na obra de Kant como modelo para o desenvolvimento de um juízo político.
Essa abordagem depende do estudo de dois elementos do pensamento kantiano o juízo
reflexionante e o juízo determinante.
Na compreensão de Hannah Arendt enunciar conteúdos de caráter estético e político,
são exemplos dos juízos reflexionantes (reflective judgments) de Kant. Na Crítica do Juízo,
filosofo, o juízo reflexionante está em contraste com juízo determinante (determinate
judgment), no qual são dadas regras de juízo. Seguindo essa concepção de Arendt quando

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alguém diz: “Que bela rosa” não teríamos chegado a esse juízo dizendo primeiro: “Todas as
rosas são belas, esta flor é uma rosa, logo, é bela”. Ou, inversamente: “O belo são as rosas,
esta flor é uma rosa, logo, ela é bela” (ARENDT, 1993, p.21)
Portanto no juízo reflexivo não ocorre o confrontamento com uma categoria geral
(regra) mas com a particularidade, pois a beleza de uma rosa não manifesta na natureza
universal das rosas. A beleza de uma rosa em particular é subjetiva e não objetiva com base
na concepção de Kant de a beleza não ser uma propriedade da rosa, mas apenas uma
expressão do prazer do sujeito que julga de modo reflexivo (ZERILLI, 2005, p. 159).
Na compreensão possibilitada por Arendt, o gosto e o olfato são os sentidos mais
discriminatórios, estando relacionados à particularidade do ato de sentir, ou seja, o odor de
uma flor não pode ser relembrado na presença do objeto. A imaginação e o senso comum são
as faculdades que solucionam essa questão, uma vez que, pela primeira, internalizamos o
objeto, sem a necessidade de sua presença na percepção direta.
O primeiro ponto problemático no pensamento de Arendt está em sua valorização da
afirmação da liberdade humana e não na validade do juízo político. A pensadora alemã em
sua postura crítica, reconhece no uso do juízo a base para o desenvolvimento do discurso de
verdade, que manifesta uma forte tendência em prejudicar o aparecimento do discurso
adequado na esfera pública. Hannah Arendt exemplifica isso em Verdade e Política:

[...] nem mesmo o mais autocrático tirano ou governante pode alçar-se algum dia
ao poder, e muito menos conservá-lo, sem o apoio daqueles que têm o mesmo modo
de pensar. Ao mesmo tempo, toda pretensão, na esfera dos assuntos humanos, a
uma verdade absoluta, cuja validade não requeira apoio do lado da opinião, atinge
na raiz mesma toda a política e todos os governos (ARENDT, 2016.p. 289-290).

Em Zerilli, o termo juízo em uma compreensão mais ampla, é a faculdade que nos
permite ordenar ou atribuir sentido a experiência. Nessa concepção todo objeto passa a existir
para o sujeito através do reconhecimento em um conceito (ZERILLI, op.cit, p. 162). Mas
esse reconhecimento funciona em um juízo específico, o problema para Arendt é: como
esperar novos objetos ou eventos, que não podem ser explicados a partir do que foi
previamente conhecido?
Em Arendt o juízo relevante para a política requer compreensão. O foco é a tentativa
de compreender de forma distinta a busca do entendimento a partir de regras pré-
estabelecidas, os juízos tornam-se livres. Portanto, a liberdade não pode ser alcançada através
de um juízo determinado.
Hannah Arendt diante um novo objeto de conhecimento ainda não abordado
anteriormente está a oportunidade para melhorar os aspectos críticos da nossa faculdade de
juízo. Com base uma falha desempenhada pelo juízo é estabelecida o início de um juízo
verdadeiro, ou seja, o conceito não é dado, essas faculdades constroem na participação com
os outros.
A nossa imaginação não apresenta mais vínculo com o reconhecimento e quando está
desvinculada a causalidade torna-se produtiva e espontânea criadora de novas formas e
figuras. Quando alguém realiza o juízo sobre algo, também manifesta as características
individuais essa manifestação consiste em um ganho de validade ao sair do limite de seus
pensamentos pessoais.
Nesse contexto, o juízo político de Arendt tem como base fundamental a realidade da
condição humana, em outras palavras, a pluralidade. A existência plural é uma das

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características principais da política, e quando relacionado com juízo político, deve ter sua
importância reconhecida no mundo em comum que é a esfera pública. A validade no juízo
político depende de ser capaz de “pensar no lugar de todos”, o que Kant chama de
mentalidade alargada:

É o que Kant chama de mentalidade alargada. O alcance e a força do juízo da


mentalidade alargada estão em concordância potencial com os outros. A sua área
de jurisdição não é a do pensamento puro, do diálogo do eu consigo mesmo, mas
sim a do diálogo com os outros com os quais devo chegar a um acordo (ARENDT,
2016, p.17).

A faculdade do juízo permite a “mentalidade alargada”, e consequentemente a opinião


dos outros possibilitando que um juízo específico seja considerado válido. Isso depende da
faculdade da imaginação, reflexão e a capacidade inerente do ser humano de socializar. Então
a capacidade de julgar é reconhecida como especificamente política, por possibilitar ver as
coisas não apenas do ponto de vista individual, mas em uma perspectiva coletiva envolvendo
todos que participam da esfera pública.
Arendt observa que Kant, ao descrever os juízos de gosto ou juízos estéticos, aponta
para elementos que são profundamente políticos, enfim que se referem constantemente à
dimensão e ao âmbito do público. Hannah Arendt, por fazer da pluralidade a condição
intersubjetiva da validade transfere a questão do juízo político do âmbito epistemológico para
o político.
A política envolve a troca de argumentos no sentido de acessar o mundo, que é
desvelado através de nossa linguagem, critérios ou conceitos. Em Arendt, perder a noção de
verdade atemporal nos assuntos humanos é a tarefa central desse juízo, e essa perda requer
de diferentes práticas e aparências (ZERILLI, 2005, p. 167-168). Este acesso cria o contexto
que possibilita ocorrer a troca de perspectivas, portanto evitando um juízo limitado a
aparência.

POSSIBILIDADE DA VERDADE NA POLÍTICA

Em Verdade e Política, Arendt distingue duas categorias de verdade identificadas


como racionais ou factuais. Na concepção de Arendt a formação de opiniões válidas requer
um espaço público no qual os indivíduos possam testar seus pontos de vista. Em contraste o
discurso de “verdade” (verdade racional) pertence à esfera da cognição, e sempre carrega
consigo um elemento de coerção, para suprimir o debate em busca da aceitação de todos os
indivíduos.
Em outras palavras a “verdade” ganha um caráter despótico, por sua insistência na
aceitação universal opondo-se á pluralidade de opiniões. Consequentemente esse contexto
deixa para a mente, incluindo a imaginação pouca liberdade, eliminando a diversidade de
perspectivas. Nesse sentido, “a verdade” é antipolítica por sua própria essência, pois a
opinião e o debate são os elementos-chave da esfera política e, como escreve Arendt:

Todas as verdades - não apenas as diferentes espécies de verdade racional, mas


também de verdade de facto - são opostas à opinião no seu modo de asserção da
validade. A verdade contém em si mesma um elemento de coerção e as tendências
frequentemente tirânicas que tão deploravelmente se manifestam nos que dizem a

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verdade por profissão podem dever-se menos a uma falta de carácter que ao seu
esforço para viver habitualmente sob uma espécie de constrangimento.
(ARENDT,2016, p. 297)

Apesar de Arendt ter certeza sobre os efeitos negativos do discurso de verdade


racional quando aplicada no âmbito político, ela reconhece a importância da verdade factual
para a preservação do passado e para a existência de comunidades políticas. Na medida em
que o senso comum trabalha com os dados dos sentidos, produzindo uma verdade factual,
baseada em eventos.
No entanto, a verdade dependente de fatos, está vinculado ao relacionamento com
outras pessoas, ela diz respeito a eventos e circunstâncias nos quais outros participantes da
esfera pública estão envolvidos. Essa verdade, é estabelecida por testemunhas e depende de
comprovação, existe apenas na medida em que se fala sobre ela, mesmo quando ocorre no
domínio da intimidade (Ibid, p. 295).
Na concepção de Arendt, o procedimento adequado não deve buscar a verdade de
significado atemporal no âmbito político. A pensadora alemã entende o pensamento político
como representativo, ou seja, a opinião é formada abordando uma questão específica em
diferentes pontos de vista, incluindo as pessoas que estão ausentes.
Envolver a representação de pessoas ausentes não pode ser confundida com uma
abordagem aleatória, também não significa empatia. Essa abordagem consiste em aumentar
a diversidade de pontos de vista para a análise de um problema específico com o propósito
de melhorar a compreensão das diversas perspectivas e consequentemente possibilitando
representação pessoal e conclusões mais adequadas.
Essa capacidade é reconhecida por Kant como “mentalidade ampliada” que consiste,
de forma sucinta, no esforço de imaginação e a liberação diante os interesses privados
formando opiniões. A ausência dessa capacidade, portanto, formando opiniões com base em
nossa própria perspectiva dos fatos ou do grupo que pertencemos, será a falta de uso da
imaginação de forma a limitar a habilidade de julgar.
Nesse contexto a formulação da faculdade do juízo feita por Arendt, depende da
capacidade de reconhecer o mesmo objeto sobre diversas perspectivas. Segundo Zerilli para
Arendt ver uma situação de outra maneira significa formar uma imagem diferente, em
consenso com a noção desenvolvida por Wittgenstein das imagens como fundamentação dos
jogos de linguagem (ZERILLI, 2005, p.168).
A perspectiva da qual ocorre o juízo, como um espectador com os pressupostos de
Arendt tende a ser uma perspectiva que fundamenta na sinceridade. Esse pressuposto pode
ser percebido no estudo de Arendt sobre o entendimento que significa ver o mundo do ponto
de “olhar sobre o mesmo mundo do ponto de vista do outro, a ver o mesmo em aspectos bem
diferentes e frequentemente opostos” (ARENDT, 2016, p.82).
A exterioridade inerente a quem desempenha o papel de espectador, possibilita uma
opinião imparcial. Como afirma Zerilli: “O espectador é aquele que, através do uso da
imaginação, pode refletir sobre o todo de uma maneira desinteressada, isto é, uma maneira
livre não apenas do interesse privado” (ZERILLI, 2005, p.177, tradução nossa)2.
Na concepção, de Arendt essa imparcialidade não é adquirida na participação no
âmbito político, mas é inerente à posição de que está fora. Os juízos do espectador são
2
The spectador is the one who, through the use of imagination, can reflect on the whole in a disinterested
manner, that is, a manner free not simply from private interest but also from interest tout court wich is to say
from any standard of utility whatsover.

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distintos de quem participa agindo na esfera política criando um espaço próprio para que as
ações e os atores possam aparecer.
A esfera pública não é pré-existente, ela se constitui a partir da própria faculdade de
julgar, porque essa esfera atender a necessidade de comunicação entre atores e espectadores.
Porém, somente diante dos espectadores e sua capacidade de juízo que os atores encontram
sentido para as suas ações e nessa a atividade de julgar como espectador cria o espaço
público.

O juízo do espectador cria o espaço sem o qual nenhum desses objetos poderia
aparecer. O domínio público é constituído pelos críticos e espectadores, e não pelos
atores e os criadores. E esse crítico e espectador subsiste em cada ator e fabricante;
sem essa faculdade crítica de julgar, aquele que age ou faz estaria tão isolado do
espectador que nem seria percebido (ARENDT,1993, p.81).

Então o espaço público é constituído pelos críticos e espectadores, não pelos atores e
criadores. A faculdade crítica de julgar é o pressuposto para a interação entre o espectador e
o ator. Na ausência da faculdade de julgar quem desempenha ação estaria tão isolado do
espectador que nem seria percebido. Portanto o ator e o espectador compartilham, têm em
comum, é a faculdade do juízo.
Em Arendt não é possível fundamentar a verdade racional, universal na política. Pois
a verdade racional diz respeito ao homem em sua singularidade, é apolítica por natureza. A
pluralidade e a opinião são as principais características da esfera pública, subsidiando a
liberdade para atender o requisito de escutar o máximo de pontos de vista possíveis e
representá-los, com a finalidade de alcançar uma validade não em nível estritamente objetivo,
mas em um terreno subjetivo, acessível na comunicação.

FORMA DE VIDA (LEBENSFORM) E LINGUAGEM

A noção forma de vida (Lebensform) está presente na obra Investigações Filosóficas,


para compreender o vínculo entre cultura, visão de mundo e linguagem. A relação entre visão
de mundo e linguagem, evidenciou esse termo como fundamento necessário de toda
linguagem usada para formulação de juízos, verdadeiros ou falsos.
Em Wittgenstein não era possível ir além de nossas formas de vida, que são dadas a
nós. Nesse sentido não há possibilidade de fundamentos universais, a partir do acesso às
opiniões de todas as pessoas e sendo capaz de abordar todos os temas inerentes a política.
Como ele escreve em Investigações Filosóficas:

Então, o que você diz é, portanto, que a concordância das pessoas decide o que é
correto e o que é incorreto? – Correto e incorreto é o que as pessoas dizem; e as
pessoas concordam na linguagem. Isso não é uma concordância de opiniões, mas
de forma de vida (WITTGENSTEIN,2013, §241).

Essa noção para Wittgenstein, pode ser entendida como consenso presente no
comportamento linguístico, mas também envolvendo suposições, práticas, tradições e
propensões naturais que os seres humanos, como seres sociais, compartilham com outros
membros da comunidade.

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A forma de vida é pressuposta na linguagem e consequentemente está presente na


linguagem como padrão inerente em qualquer atividade humana. De acordo com Zerilli, o
uso da linguagem, no discurso humano, atividade e comunidade, não depende de nada mais
e nada menos que a forma de vida, esta é uma concepção tão simples quanto difícil (Cf.
ZERILLI, 2005, p.24).
Nesse contexto, os significados das expressões dependem da perspectiva
compartilhada e natureza atribuída a seus usos. A forma de vida apresenta-se como referência
para o desenvolvimento dentro da linguagem de uma comunidade. Quando alguém aprende
a linguagem, consequentemente aprende os pressupostos e práticas que estão vinculadas a
linguagem de uma comunidade.
A linguagem vinculada a uma comunidade revela a razão pela qual a explicação,
justificação, validade e todas as formas de argumentação podem ir além do caráter pessoal,
quando se trata de forma de vida. Nas Investigações Logicas, as formas de vida envolvem o
que tende de ser aceito, o que é dado sendo a base para o desenvolvimento dos jogos de
linguagem.
Portanto em Wittgenstein, não é possível falar sobre uma verdade universal ou talvez
até mesmo sobre o termo verdade, em seu sentido defendido pela filosofia. Diante essa
impossibilidade de abordar a verdade, como é possível dizer o que é realmente certo e o que
é errado?
A possibilidade de afirmar se uma significação está correta ou errada depende de
considerar o contexto da enunciação. Por isso é necessário reconhecer que a utilização da
linguagem não é algo fixo ou permanente. O uso de palavras não é “arbitrário” e não é de
alguma forma controlada por algo externo aos falantes da língua, o que importa é o contexto
em que eles falam (ZERILLI, 2005, p.23).
A concepção Wittgenstein pode ser entendida na analogia com uma velha cidade, na
qual o centro contém ruas e ruelas com casas antigas e novas, construídas em épocas
diferentes, ao mesmo tempo em que novos bairros vão se construindo com ruas mais
estruturadas e casas mais uniformes e regulares

[…] Nossa linguagem pode ser considerada como uma velha cidade: uma rede de
ruelas e praças, casas novas e velhas, e casas construídas em diferentes épocas; e
isto tudo cercado por uma quantidade de novos subúrbios com ruas retas e regulares
e com casas uniformes (WITTGENSTEIN, 2013, § 180).

Essa perspectiva defendida pelo filosofo é caracterizada genericamente pelas noções


de forma de vida e de jogos de linguagem, possibilitam a melhor compreensão acerca de um
possível valor de verdade, determinados pela ação humana. Pois, a velha cidade que é a nossa
linguagem, é possível de ser reformada por seus habitantes, e no conjunto dessas reformas, é
conservada ou modificada interferindo em sua estrutura.
Nos jogos de linguagem os objetos da realidade passam a ser plenamente
determinados pela ação humana capaz de reconhecer e os relacionar de acordo com os limites
dos conceitos que previamente estão estruturados no espaço acessível ao que se pode
cautelosamente denominar de sujeito. Consequentemente, Wittgenstein é visto como
atribuindo regras que não reduz o significado a estados subjetivos individuais (ZERILLI, op.
cit, p.19).
A partir de Wittgenstein, o ser humano não pode ser mais entendido como sujeito
detentor de rígidas categorias utilizadas para avaliar a realidade. O produtor de conhecimento

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passa a primeiramente perceber os objetos para poder atribuir seu devido sentido, originado
a partir do âmbito de uso no qual o objeto está inserido.
Então o mesmo objeto pode ter inúmeros significados e o limite de sua significação
nunca poderá ser devidamente estabelecido, delimitados. Pois, assim como as cidades, os
jogos de linguagem são como as ruas que em alguns casos aumentam, diminuem, são
esquecidas ou tornam-se becos que simplesmente não tem saída.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desse trabalho consistiu em abordar o vínculo entre o pensamento de


Arendt e Wittgenstein no questionamento sobre valores de verdade. Esse objetivo envolveu
a filosofia de Wittgenstein trabalhando a noção de forma da vida (lebensform) e jogos de
linguagem; após a abordagem da reflexão política de Hannah Arendt e seus conceitos
vinculados a esfera pública: discurso, a ação e principalmente juízo político.
A possibilidade de Hannah Arendt justificar a liberdade para descobrir os limites do
mundo comum, dependeu da relevância do juízo político na perspectiva do espectador, essa
característica evidenciou uma das coerências com o pensamento de Ludwig Wittgenstein, a
participação do homem na linguagem. Sendo nessa coerência a hipótese para responder à
questão desse trabalho a possibilidade de verdade na política?
Nesse contexto para Wittgenstein uma opinião particular para ser manifesta depende
de sua inserção previa em um sistema de significados mais abrangentes que constituem a
linguagem. Mas fundamentalmente essa concepção pressupõe que formas de vida e os jogos
de linguagem são acessíveis à comunidade humana.
A partir de Wittgenstein, e sua fase marcada pelas investigações filosóficas, o
conceito de forma de vida (Lebensform) possibilitou o reconhecimento da linguagem como
fundamentada na comunidade. As proposições como, por exemplo, “penso, logo existo” de
Descartes não podem ser reconhecidas como verdades absolutas, pois elas estão contidas a
uma esfera subjetiva restrita aos jogos de linguagem.
Abordar Arendt, entendida como coerente a Wittgenstein, ressalta a importância de
sua leitura da Terceira Crítica, abordando o questionamento sobre a necessidade inerente a
racionalidade de chegar a um consenso comum nas opiniões. Essa reflexão de Arendt foi
desenvolvida através do estudo do juízo estético de Kant.
Nesse raciocínio a abordagem de Kant feita por Arendt reconheceu a importância da
opinião e do debate. O conceito de esfera pública constituída pela autora depende de
considerar os valores de verdade como vinculados a possibilidade de consenso, porém sem
fundar uma verdade absoluta. Essa relação entre opiniões em busca do convencimento e
possibilidade de debate, pressupõe critérios que evitaram o relativismo atendendo a proposta
desse trabalho.
Em nível de considerações finais, após a apresentar as ideias de Hannah Arendt e
Ludwig Wittgenstein, podemos reconhecer através desses autores a impossibilidade de
estabelecer a verdade universal e atemporal. No entanto, o posicionamento dos dois
pensadores não exclui a possibilidade de critérios capazes de evitar o relativismo absoluto.

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Recebido: 11/06/2020
Aceito: 13/10/2020

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