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HANNAH ARENDT E OS LIMITES DA ESFERA POLÍTICA

HANNAH AREDNT AND THE LIMITS OF THE POLITICAL SPHERE

LUIZ DIOGO DE VASCONCELOS JUNIOR *


(UNICAMP – BRASIL)

RESUMO

O objetivo deste trabalho é analisar o pensamento arendtiano sobre o desenvolvimento da tradição


política ocidental a partir das Revoluções que marcaram a modernidade, sobretudo as Revoluções
Francesa e a Americana. As experiências políticas que resultaram deste movimento significaram, na
maior parte dos casos, a impossibilidade da pluralidade e da ação na esfera política. Para Arendt uma
das principais causas destas interrupções foi a substituição da liberdade política pela manutenção das
igualdades sócio-econômicas reivindicadas pelo povo nos conturbados períodos revolucionários.
Palavras-chave: revolução; pluralidade; liberdade.

ABSTRACT

This article aims at analysing Arendt’s thinking about the development of the occidental political
tradition taking into account the revolutions that have marked the modernity, especially the French and
American Revolutions. The political experiences that have emerged from this movement meant the
impossibility of plurality and action in the political sphere, in most cases. According to Arendt one of
the main reasons for these interruptions was the replacement of political freedom for the maintenance
of socioeconomic equalities claimed by people in the troubled revolutionary periods.
Key-words: revolution; plurality; freedom.

A história demonstra que os homens


modernos não foram arremessados de volta a este mundo,
mas para dentro de si mesmos. Uma das mais persistentes
tendências da filosofia moderna desde Descartes... tem
sido a preocupação exclusiva com o ego, em oposição à
alma, à pessoa ou ao homem em geral.

Hannah Arendt

Dentre as muitas controvérsias desencadeadas pelo pensamento de Hannah Arendt


figuram análises bastante provocativas como a recusa dos Direitos Humanos, a querela com o
marxismo político e a crítica ao sistema político contemporâneo objetivado na democracia
representativa. Esta curiosa coletânea de polêmicas tem a propriedade de aglutinar, pelo
desagrado muitas vezes furioso, correntes tão distintas de pensamento que, no curso normal das

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disputas teóricas, nunca ocupariam o mesmo lado em qualquer questão. Cânones desenvolvidos
teoricamente tanto pela esquerda, quanto pela direita, por marxistas e liberais, por judeus e
cristãos, não escaparam às suas atentas e agudas críticas. Do mesmo modo, também os
representantes de cada uma destas correntes de pensamento não economizaram nas respostas,
algumas cegas, muitas outras à altura dos debates.
Malgrado os pontos de contato entre estas controvérsias distintas, que se apresentam
muitas vezes como corolários lógicos, este trabalho pretende discutir, pontualmente, com a crítica
à democracia representativa feita por Hannah Arendt. A crítica aos sistemas políticos em geral, e
à democracia em particular, se justifica no contexto arendtiano desde os limites da aceitação da
alteridade na esfera pública. Na obra de Arendt isto significou, no extremo, a interrupção, durante
o período em que duraram os sistemas totalitários, de qualquer possibilidade de pluralidade, um
dos elementos apontados por ela como fundamentais para a manutenção da esfera política, para a
existência de um sistema político adequado à gestão dos negócios públicos.
Um veio dessa crítica que será explorado é o que já se faz presente na obra de Hannah
Arendt desde a década de 50 do século passado. O objetivo deste trabalho será apresentar as
críticas arendtianas, articulando-as com o desenvolvimento da esfera política contemporânea
delimitada pela democracia, e pelo que deveria ser a sua função, como a de qualquer outro
sistema político, compreendida aqui como a garantia de manutenção da pluralidade humana no
interior de toda comunidade. Isto é tanto mais significativo, quanto mais próprio das culturas
ocidentais, que identificam, mutatis mutantis, a democracia com algumas garantias individuais
fundamentais e inalienáveis, sem que se façam as devidas mediações, como se a mera referência
à palavra democracia já trouxesse consigo o poder de desencadear um movimento pronto a
atender toda e qualquer necessidade sócio-política-econômica-cultural dos povos que adotaram,
deliberadamente ou não, este sistema político. A ênfase nas necessidades sócio-econômicas não
deveria ser, segundo Arendt, o fundamento inicial de nenhum sistema político. Este caminho de
fundamentação foi o que gerou a perversão dos sistemas políticos, cada vez mais influenciados
por visões economicistas, desencadeadas, nas análises arendtianas, a partir das Revoluções
Americana e Francesa.
A crítica, contumaz mesmo que incipiente, à democracia como sistema político não é
nenhuma novidade. O argumento não é, contudo, suficiente para, dadas as devidas conveniências,
se omitir ou esquecer de que foi neste mesmo período que a democracia representativa se

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construiu como sistema político hegemônico no mundo ocidental, independentemente dos


conteúdos que se deveriam fazer presentes para que se pudesse dizer, como ainda se diz, que uma
democracia idealizada discursivamente é, de fato, a democracia vigente. Isso significa dizer que o
início das críticas é contemporâneo da própria irrupção da democracia na forma em que é
reconhecida, conforme forjada desde seu renascimento no contexto das Revoluções Francesa e
Americana, e seu posterior desenvolvimento, em que quase não se distingue da ideologia
econômica que lhe dá suporte, a ideologia capitalista. As críticas tecidas ao sistema podem,
inclusive, ser vistas como constitutivas do próprio sistema.
Um esclarecimento necessário é que a democracia, ou um seu simulacro qualquer,
mesmo que de modo destorcido, continua presente no mundo como uma entidade quase
transcendente que se mantém independentemente da realidade vivenciada. Construiu-se uma
ideia de democracia com a qual se convive, mesmo que ante à consciência do que pode significar
a convivência com uma ideia, enquanto que a coisa mesma não mais se encontra presente. O
plano discursivo que sustenta a ideia de democracia permanece presente, prolongando a agonia
do sistema. Já quanto à pluralidade, o mesmo não se pode dizer. Por mais que se acredite na
eficácia da democracia como sistema político, é cada vez mais difícil aceitar que as sociedades
contemporâneas convivem com a alteridade, ou seja, que a pluralidade seja, de fato, um valor
presente ou praticado, ainda que querido. Este esclarecimento é importante por sustentar a ideia
de que, uma vez realizada, a democracia participativa poderia ser o modelo político adequado
para sustentar a pluralidade humana no espaço público. Como não há esta realização da
democracia, a pluralidade também fica comprometida em sua dimensão.
Um dos argumentos mais utilizados por Hannah Arendt para significar seu modo de
compreender a ação política é o imperativo socrático: é melhor sofrer o mal que fazer o mal1. O
desenvolvimento da proposição socrática tem, em Arendt, uma dupla implicação: é uma recusa
da via moral, ao mesmo tempo em que é uma afirmação da via política nas considerações sobre a
conduta humana na esfera pública. Se se faz o mal, antes de qualquer sansão legal contra o autor,
o que já implicaria o conhecimento p2úblico do mal praticado, há o fato inconveniente de que
aquele que praticou o mal tem de conviver cotidianamente consigo mesmo; isto é uma outra
configuração do eu transformado, agora, em um malfeitor de quem, contudo, não se pode
escapar; isso significa, ainda segundo Sócrates, citado por Arendt, que: é melhor estar em

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desavença com o mundo inteiro do que, sendo um só, estar em desavença comigo mesmo
(ARENDT, 2004, p. 220).
Apesar do argumento permitir uma interpretação que o leva, inicialmente, a uma recusa
de cunho moral de se conviver com uma dor de consciência, há, também, a possibilidade de se
tratar de um cuidado com o mundo, atitude própria da esfera pública arendtiana. Por se tratar de
um axioma, que se apresenta em situações limites, nas quais se é obrigado a escolher
conscientemente entre uma das duas opções, a fórmula seria: ou faço mal ao mundo, ou sofro um
mal vindo do mundo. Ao se dispor a sofrer o mal, mesmo que se saiba que este sofrimento poderá
ser menor do que um sofrimento da consciência gerado por uma dor moral, há uma recusa de
Sócrates em causar mal ao mundo. Seria um daqueles momentos em que se exige do agente que
manifeste sua responsabilidade para com o mundo, uma vez que esta responsabilidade já deveria
existir, mesmo que potencialmente, em cada ser humano que chegou ao mundo como promessa
de continuidade e expectativa do novo. A compreensão mais adequada do axioma que orienta a
ação depende, portanto, do ponto de vista a ser utilizado quando da interpretação. No plano da
filosofia política qual é a ênfase? Deve-se, politicamente, dar prioridade ao indivíduo ou à
cidade?
E a resposta a esta pergunta pode, muito provavelmente, nem fazer mais sentido para
nossa época. A própria pergunta já não é compreendida, e isso em razão de que o mundo
reconhece apenas a primazia do indivíduo, a única lógica que talvez faça sentido por ser a
conhecida. Nas sociedades contemporâneas a primazia do indivíduo suplanta os interesses da
cidade. O caminho a ser percorrido desde o bem geral, o da cidade, até seus reflexos, como
conseqüência, no bem do cidadão em sua individualidade, é longo demais para que se possa
segui-lo em sua complexidade.
A reiterada utilização deste argumento socrático demonstra a opção arendtiana pela via
política. A via moral requer uma estreita vinculação com o eu, que pode ser compreendido como
aquele dois em um de que fala Platão, ao menos o Platão arendtiano, e que significa a faculdade
de pensar, comum a todos os homens. A via moral pode vir a interromper as relações com o
mundo, relação própria dos homens que optaram pela via política. E mesmo que o diálogo do
pensamento seja absolutamente necessário por abrir uma importante janela para o universo
político quando de sua instauração e manutenção, ele mesmo não é, em si, uma instância política.
Estar em concordância ou em desavença com o mundo inteiro implica, antes de tudo, estar em

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relação com o mundo, disposto a se desprender do eu em direção ao nós, pronto a assumir


responsabilidades pelo mundo e pelos negócios humanos. Uma das diferenças entre o mundo
grego e o contemporâneo é que a moral grega não se distinguia fundamentalmente da esfera
pública, enquanto que para a contemporaneidade a fuga moral significa um refúgio na
interioridade humana do ego, que implica uma opção pelo individualismo. Isto significa que a
fuga moral pode interromper as relações plurais, que são próprias do universo político em geral
na constituição da esfera pública.
A distância aberta entre as instâncias pública (o nós) e privada (o eu) é determinante
quando se pensa na constituição da esfera política. Arendt fundamenta seu pensamento político
distinguindo as diferentes esferas que juntas constituem a vita activa, espaço de circulação
cotidiana dos homens. Dentre estas esferas há uma clara opção de Arendt pela ação, aquela que
seria a mais determinante para a condição humana, ante as outras duas, o trabalho e a obra; ação,
trabalho e obra são as três atividades fundamentais que caracterizam a vita activa e é a ação que
orienta as atividades humanas na esfera pública3. Segundo Arendt, se a ação houvesse
prevalecido como a esfera mais adequada para orientar a ação política, a democracia poderia ser
outra, mais condizente com os anseios de liberdade política, como desenvolvida pelos ideários
presentes nas Revoluções Francesa e Americana.
A democracia, como ressurgida no mundo ocidental no contexto destas revoluções tinha,
segundo Arendt, um caráter mais teórico que prático, uma vez que não havia, nas experiências
concretas, exemplos em que os homens das revoluções4 pudessem se ancorar para dar ao
movimento revolucionário um direcionamento condizente com suas aspirações. As palavras
tomadas de empréstimo à experiência e à história dos romanos, dentre elas res publica, sugeriam
aos lideres da Revolução Francesa que não poderia haver coisa pública sob o domínio de um
monarca; e sempre que tais palavras se manifestavam em seus significados mais momentâneos,
não era na forma de discussões deliberativas gerando decisões em consonância com os interesses
políticos gerais, mas sim como: “uma espécie de intoxicação, cujo principal elemento era a
multidão – a massa popular cujo aplauso e exaltação patriótica conferiram tanto empenho e
esplendor, tal como foi recebido por Robespierre” (ARENDT, 1988, p.96).
Esta interpretação dos fatos é importante por apontar para o entendimento de Arendt
sobre como se deu o surgimento e o desenvolvimento da democracia representativa na
modernidade ocidental. A este respeito, uma das mais contundentes críticas de Arendt é quanto

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ao silenciamento histórico a que foi submetida a Revolução Americana. Em seu entendimento,


este fato representa um grande e pernicioso lapso na história política da modernidade, uma vez
que a experiência revolucionária que mais se aproximaria de uma verdadeira democracia, cujo
modelo é Greco-Romano, seria a Revolução Americana e não a Francesa. Ainda durante as
manifestações em Paris, durante a Revolução, quando da morte do rei, os gritos que se ouviam
eram os de Vive la république. A palavra “democracia” só será utilizada posteriormente, num
contexto tal, e com tanta propriedade, que sua força não se perderá durante os séculos seguintes.
O desenvolvimento desta ideia de esfera pública gerará o que conhecemos hoje como
democracia, e isso em função de seu apelo à ideia de liberdade. Ainda que os homens da
Revolução Francesa tenham sido duramente criticados por Arendt, ela reconhece grande
importância ao fato deles haverem construído uma ideia de liberdade até então desconhecida; eles
a pensaram como liberdade pública, em contraposição à diferente ideia de liberdade, que, até
então, era significada como livre vontade e livre pensamento:

Para eles, a liberdade só podia existir em público; era uma realidade terrena, tangível,
algo criado pelos homens para ser desfrutado por eles, e não um dom ou uma
capacidade, era o espaço público ou a praça pública que a antiguidade havia conhecido
como a área em que a liberdade aparece e se torna visível para todos. 5

Os homens da revolução dividiam com o povo a indignação pela obscuridade política,


que significava a ausência de um espaço público adequado ao aparecimento, à visibilidade
pública. Esta indignação, transformada em ressentimento no curso dos acontecimentos,
demonstrava a necessidade de aparecer, a necessidade da ação e do discurso, atividades que só
são possíveis na efetiva presença do outro na esfera pública, isto é, mediante à possibilidade de
que a pluralidade se manifeste em sua inteira compreensão. É a existência e a manutenção deste
espaço público que permite a ação humana, aquela esfera da vita activa em que a humanidade se
manifesta com maior vigor. Assim, a ideia de liberdade surgiu, para os homens da revolução,
como o que propiciaria uma esfera pública adequada aos negócios humanos por excelência, a
manifestação da pluralidade pela ação e pelo discurso.
Acontece que a crítica de Arendt aos movimentos revolucionários de um modo geral
(com algumas exceções, notadamente a estadunidense e a húngara), e ao francês particularmente,
diz respeito a esta mesma ideia de liberdade. A crítica viria sobre o momento subseqüente,
quando a liberdade passou a ser o argumento utilizado pelo movimento revolucionário para

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resolver questões que na compreensão arendtiana extrapolavam a esfera política. Como, durante a
revolução, o que movia o povo, mas não os homens da revolução, para além das questões
políticas que reivindicavam um espaço público capaz de suportar e garantir o aparecimento da
pluralidade de opiniões eram, prioritariamente, as questões sociais, a liberdade na esfera pública
passou a significar, também, a possibilidade de igualdade social. Isso significou, segundo Arendt,
um retrocesso no entendimento e no desenvolvimento da ideia de liberdade.
Temos, assim, três momentos na Revolução Francesa em que o entendimento sobre o
que é a liberdade desliza entre diferentes significados: antes, durante e depois da Revolução.
Antes de deflagrada a Revolução, a liberdade era compreendida na chave do indivíduo, como
liberdade da vontade e do pensamento. Este sentido voltará a ser compreendido durante o
período revolucionário. Já no início da Revolução (e este seria o modelo democrático para
Arendt), a liberdade dizia respeito aos homens no plural, responsáveis em comum pela esfera
pública e não ao indivíduo. A ideia de liberdade pública visando à manifestação da igualdade na
vida política (esfera da ação) fora substituída por uma paixão pela liberdade que visava à
igualdade social (própria da esfera do trabalho). O problema é que esta liberdade pública ou
política, movida pela paixão e visando interesses sociais, pode

ser facilmente confundida com o ódio exaltado pelos senhores, um ódio provavelmente
muito mais veemente, porém, em essência, politicamente estéril, para a ânsia dos
oprimidos pela libertação [...] Ele (o ódio) nunca resultou em revolução, por se incapaz
de ao menos vislumbrar, quanto mais compreender, a ideia central da revolução, que é a
instituição da liberdade, ou seja, a criação de um corpo político que assegure o espaço
onde a liberdade possa aparecer.6

E é o entendimento resultante desta substituição, na esteira da Revolução Francesa, da


felicidade pública (esfera da ação) pelo bem estar social (esfera do trabalho) que, ainda hoje,
sobrevive quando se pensa e se fala em liberdade nas questões políticas.
Esta questão, a da dimensão adequada que se deveria dar à liberdade, se mais próxima
aos ideais políticos, ou se mais condizentes com a solução das necessidades sócio-econômicas, é
a questão que fundamenta os destinos imediatos das revoluções, sobretudo no contexto da
francesa, a que gerará o novo modelo de estado fundado na ideia de democracia. Uma vez que
experimentaram a revolução, compreendida como o que propiciaria o espaço próprio para a
manifestação da liberdade pública, a manifestação das opiniões divergentes, como pensa Arendt,

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os homens da revolução estavam de posse de um conhecimento que não tinham no início da


revolução: o conhecimento da felicidade pública.
Como o desenvolvimento político do movimento revolucionário lhes apareceu como
uma disjunção necessária, com a liberdade pública e a felicidade pública se contrapondo,
respectivamente, aos direitos civis e ao bem-estar individual, a questão se formulou, então, da
seguinte forma:

por trás das teorias de Robespierre, que pressagiam o estado de permanência da


revolução, é fácil discernir a embaraçosa, alarmante e assustadora questão que haveria
de perturbar todos os futuros revolucionários: se o fim da revolução e a introdução do
governo constitucional significam o fim da liberdade pública, seria então desejável
terminar a revolução?7

Daí a opção, questionada em sua legitimidade por suas infelizes conseqüências, que
instituiu a ideia de revolução permanente. Inicialmente esta ideia tinha a virtude de manter os
homens em ação, isto é, em permanente debate na esfera pública. No entanto, com o tempo essa
característica perdeu importância, por sua associação a outro princípio. Como o que passou a
orientar o movimento revolucionário foi o objetivo de instaurar o bem estar social do povo,
associado às necessidades materiais, cada cidadão se viu obrigado, como membro da nação, a se
manter em rebelião contra si mesmo relativamente aos interesses pessoais egoístas que devem ser
suplantados pela compaixão para que se instaure a vontade geral conforme teorizado por
Rousseau e assumido pelos revolucionários franceses. Se a instauração da vontade geral tem esta
característica no plano individual, no plano coletivo aparecerá, também, a ideia de um inimigo
comum. Neste sentido, André Duarte no diz que é

nesse contexto que a autora discuti o “terror da virtude” de Robespierre [...] A partir do
momento em que a compaixão converteu-se em virtude suprema da atividade política,
passando a amalgamar a vontade geral, ela dispensou inteiramente a persuasão, a
promessa, a negociação e o acordo eventual entre os homens (isto é, a pluralidade),
desencadeando o seu oposto, isto é, a perseguição e a punição dos cidadãos. 8

Se a ideia de revolução permanente foi, inicialmente, uma virtude política, que teve sua
versão positiva na Revolução Americana, aceita por Arendt, a démarche do conceito não será
virtuosa. Nos sistemas políticos que se desenvolveram após a Revolução Francesa, os inimigos da
revolução permanente assumirão as mais diferentes faces. No extremo encontrará em toda
alteridade a imagem dos inimigos da revolução, que significava, em quase todos os casos,

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inimigos do estado. É no interior desta mesma lógica que ressurgirá, no século XX, a figura dos
inimigos objetivos, “criminosos sem crimes num tipo de estado em que o órgão executivo é a
polícia e não o partido” (ARENDT, 2000, p.347). Esta questão é própria da revolução francesa,
mas não da americana, onde, segundo Arendt, felicidade pública e bem-estar individual nunca
estiveram contrapostos.
Este entendimento da liberdade como bem-estar, em consonância com a ideia de
satisfação do desejo de suplantar as necessidades materiais, será materializado, por exemplo, nas
constituições e na declaração dos direitos humanos pela revolução francesa. Nesta versão, a ideia
de direitos humanos significa que:

Todos os homens, pelo simples fato de haverem nascido, tornavam-se detentores de


certos direitos [...] independentemente e fora do corpo político, e, em seguida, vai mais
além, equiparando esses direitos, os direitos do homem qua homem, aos direitos dos
cidadãos. O problema com esses direitos sempre foi que eles não podiam ser mais do
que os direitos dos nacionais, e que só eram invocados, como ultimo recurso, por
aqueles que haviam perdido seus direitos normais de cidadãos. 9

Uma vez sentado no trono francês, o povo tratará de instituir uma dinâmica legal que
assegure a liberdade e a igualdade não em termos políticos, mas em termos sociais. Um governo
de todos deveria, a partir de então, garantir os direitos de todos a uma vida destituída de
desigualdades no plano material. Assim,

Não foi a vontade, mas sim o interesse, a sólida estrutura de uma sociedade de classes,
que conferiu ao estado nação, sua medida de estabilidade. E esse interesse - através do
qual o indivíduo, e não o cidadão, se alia a alguns outros - nunca foi uma expressão da
vontade, mas, ao contrário, uma manifestação do mundo exterior, ou melhor, daqueles
setores do mundo que certos grupos compartilham em comum. 10

Este movimento resultou, portanto, de um duplo erro: um dos homens da revolução e


outro do povo. O erro dos homens da revolução francesa foi que se mantiveram convictos de que
o poder emanava de uma única e mesma fonte, o povo. Ao tentar centralizar o poder distante da
esfera onde havia efetiva participação política, o que aconteceu foi que eles não conseguiram
construir uma instância de autoridade suficientemente legítima para instituir uma legislação
condizente com as necessidades e anseios políticos da época. O que se garantiu no processo
foram as reivindicações do povo por um sistema legal que trouxesse em si, como direito

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inalienável, a previsão da satisfação das necessidades sociais, ainda que pela substituição da
esfera política pela social.
Esta substituição foi conseqüência, também, do segundo erro: um erro do povo francês.
Sabedores da felicidade gerada pela igualdade social existente nos Estados Unidos da América e
sabedores da revolução republicana lá ocorrida, os dois fatos foram interpretados numa cadeia de
causa e conseqüência que deveria, todavia, prevalecer, também, na França. Ainda que,

Temos afirmado que a riqueza e o bem-estar econômico são os frutos da liberdade,


quando deveríamos ser os primeiros a saber que essa espécie de ‘felicidade’ já existia na
América antes da Revolução, e que sua causa foi a abundância natural acompanhada de
um ‘governo brando’, e não a liberdade política ou a desapoderada e irrefreada
‘iniciativa privada’ do capitalismo, o qual na verdade, na ausência de riqueza natural,
resultou, em toda parte, em infelicidade e pobreza das populações. 11 (grifos da autora).

Se, desde as revoluções (francesa e americana), o tipo de liberdade que prevaleceu na


Europa é a que declara atenção quase exclusiva aos aspectos sociais voltados para a resolução das
necessidades materiais dos indivíduos, na América, também, este modelo não demorou a aparecer
e a prevalecer. Isto teria sido uma conseqüência do descaso dos americanos com o plano teórico
de um modo geral. Neste sentido, para Arendt, o pensamento começa pela memória, e a memória
deve, para se manter como o que orienta a ação, ser condensada numa cadeia de noções
conceituais capaz de fazer com que esta ação se afirme como modelo a ser seguido. Sem a ação
política de discutir incessantemente o que se trava no mundo fenomênico ao redor das ideias,
corre-se o risco de que as ideias, e as ações que delas podem decorrer, caiam na inutilidade de um
passado esquecido. Foi em torno deste princípio que, por um lado, a revolução americana caía no
esquecimento, enquanto que, ao mesmo tempo, a francesa se afirmava como modelo teórico a
sustentar uma prática política. Uma das conseqüências desta aversão dos americanos pelo
pensamento conceitual manifesta-se na forma como “este país passou a exibir uma tendência
deplorável a se deixar seduzir por quase todos os modismos e engodos que a desintegração da
tessitura social e política européia elevou à posição de notoriedade intelectual” (ARENDT, 1988,
p.176). O que se perdeu neste processo foi o espírito revolucionário que orientou os americanos
em sua experiência com a esfera da ação, com o plano político propriamente dito.
Uma vez perdida a experiência revolucionária, o que restou, na América, das chamadas
liberdade pública, felicidade pública e espírito público, foram

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As liberdades civis, o bem estar individual da grande maioria da população, e, além


disso, a opinião pública como a força mais poderosa a dirigir uma sociedade democrática
e igualitária. Essa transformação corresponde, com grande precisão, à inversão da esfera
política pela sociedade; é como se os princípios, originalmente políticos, fossem
traduzidos em valores sociais 12.

Esta questão, sobre o que restaria após a revolução, sempre foi uma questão para os
homens que pensavam e agiam politicamente. Afinal, a revolução é o momento de fundação de
algo novo no mundo, movimento próprio da ação que deve legar algo ao futuro como uma
promessa e um legado. E foi como resposta a esta questão que os pensadores políticos pré-
revolucinários se voltaram para a forma republicana de governo, notadamente a romana. Não por
seu caráter igualitário que assegurava a possibilidade da pluralidade, mas pela possibilidade de
duração no tempo. Mas, se por um lado foi o caráter temporal que atraiu os pensadores pré-
revolucionários para os sistemas republicanos de governo, o que atraiu o povo, durante a
revolução, foi exatamente seu ideal de igualdade social, já equiparado à forma democrática de
governo, e isso em consonância com o entendimento dos homens da Revolução Francesa que
identificavam a fonte da autoridade na anuência do povo, ou o governo de todos.
Para os pensadores da revolução,, a democracia era “sinônimo de instabilidade,
resultado da volubilidade dos cidadãos, a ausência de espírito público, a tendência a serem
conduzidos pela opinião pública e pelos sentimentos de massa” (ARENDT, 1988, p.180). Isso
significa que a democracia era vista como mera forma de governo, antes de se transformar em
ideologia ou preferência de classes, orientada não pela liberdade de opinião numa esfera pública
plural, mas sim pela opinião pública.
A opinião pública hegemônica, como o que orientaria as instituições democráticas, se
caracteriza por igualar as opiniões, destituindo de legitimidade qualquer possibilidade de
discordância, de conflito entre as opiniões, estatuto legítimo e necessário que se apresenta sempre
que a pluralidade se mantém garantida na esfera pública como o que orienta a esfera da ação e do
pensamento, aquela esfera que é própria da via política e que permite aos homens aparecerem e
atuarem, pelo discurso, na esfera pública. Quando se recusa a pluralidade não se recusa apenas as
opiniões aí formuladas, o que já é significativo, mas se recusa, sobretudo, os homens que emitem
tais opiniões. Neste contexto, a opção pela opinião pública, e o poder daí advindo, mais que
fundamentar, se confundiu, irreversivelmente, com a democracia.

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NOTAS

* Cursa o doutorado em Filosofia Política e Ética no programa de pós-graduação em filosofia da


Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, desenvolvendo trabalho sobre o pensamento de
Hannah Arendt.
1
O argumento é utilizado, por exemplo, para discutir a questão da responsabilidade coletiva. Segundo
Arendt, só se pode falar em responsabilidade coletiva, mas não em culpa coletiva. Isto significaria a
distância entre a moral e a política, que circunscreve a responsabilidade e a culpa em campos distintos,
sendo a responsabilidade possível de ser vicária, enquanto que a culpa não. In: ARENDT, H. 2004, p.213-
225.
2
As traduções brasileiras dos termos arendtianos accion, labor e work não são pacíficas. A primeira edição
de A condição humana, por exemplo, optou por traduzir accion por ação, labor por labor e work por
trabalho. A nova edição brasileira revista, de 2010, apresenta significativas modificações ao traduzir labor
como trabalho e work como obra. Para esta discussão indicamos o texto de Adriano Correia na nota à
edição brasileira in: ARENDT, H. A condição humana. RJ: Forense Universitária, 2010. p.V. Ver também
o texto de MAGALHÃES, Theresa Calvet de. A atividade humana do trabalho [Labor] em Hannah
Arendt. In: Revista Ética e Filosofia Política – Número IX – Volume I – Edição Especial Hannah Arendt,
disponível em: http://www.ufjf.br/eticaefilosofia/
3
Homens da Revolução: termo utilizado por Arendt para designar os teóricos da Revoluções, tanto na
França quanto nos EUA.
4
ARENDT, H. 1988, P.99.
5
Ibidem, p.100.
6
Ibidem, p.107.
7
DUARTE, A., 2000, p.288.
8
Ibidem, p.119.
9
Idem, p.130-131.
10
Idem, p.173-174.
11
Idem, p.177.

ethic@ - Florianópolis v. 9, n. 2 p. 217 - 229 Dez. 2010.


229 VASCONCELOS JUNIOR, L. D. Hannah Arendt e os limites da esfera política.
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REFERÊNCIAS

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ARENDT, H. Origens do totalitarismo. SP: Cia. das letras, 2000.
ARENDT, H. A condição humana. RJ: Forense Universitária, 2010.
ARENDT, H. Responsabilidade coletiva. In:_____. Responsabilidade e julgamento. SP: Cia das
Letras, 2004.
DUARTE, A. O pensamento à sobra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt. SP: Paz
e Terra, 2000.
MAGALHÃES, Theresa Calvet de. A atividade humana do trabalho [Labor] em Hannah Arendt.
In: Revista Ética e Filosofia Política – Número IX – Volume I – Edição Especial Hannah
Arendt.Disponível em: < http://www.ufjf.br/eticaefilosofia/>.

ethic@ - Florianópolis v. 9, n. 2 p. 217 - 229 Dez. 2010.

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