Ação e a busca da felicidade
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Sobre este e-book
Os ensaios "Ação e a busca da felicidade" (1961) e "Revolução e liberdade" (1962) datam do período em que a escritora preparava o livro "Sobre a revolução", de 1963, que investiga basicamente as duas revoluções modernas – a francesa e a americana – destacando uma forma política nova que aparece com elas, o sistema dos conselhos.
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Ação e a busca da felicidade - Hannah Arendt
COLEÇÃO ENSAIOS CONTEMPORÂNEOS
COORDENAÇÃO: Eduardo Jardim
capacopyright © The Literary Trust of Hannah Arendt e Jerome Kohn; Chicago University Press, 1958, para Totalitarian imperialism: reflections on the hungarian revolution
copyright © desta edição, Bazar do Tempo, 2018
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 12.2.1998.
É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora.
Este livro foi revisado segundo o Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.
EDIÇÃO: Ana Cecilia Impellizieri Martins
ORGANIZAÇÃO, APRESENTAÇÃO E NOTAS: Heloisa Murgel Starling
TRADUÇÃO: Virginia Starling
REVISÃO TÉCNICA: Eduardo Jardim
COORDENAÇÃO EDITORIAL: Maria de Andrade
COPIDESQUE: Luiz Coelho
REVISÃO: Daniel Guimarães
PROJETO GRÁFICO: estúdio \o/ malabares – Julieta Sobral e Ana Dias
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
A681a
Arendt, Hannah, 1906-1975.
Ação e a busca da felicidade / Hannah Arendt; organização e notas Heloisa Starling; tradução Virginia Starling. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2018.
248 p. : 12,5 x 18 cm –(Ensaios Contemporâneos; v. 3)
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-69924-33-3
1. Ciência política – Filosofia. 2. Ciência política – Europa História – Séc. XX.
I. Starling, Heloisa. II. Starling, Virginia. III. Título. IV. Série.
CDD 398.20981
Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422
NOTA INTRODUTÓRIA
IMPERIALISMO TOTALITÁRIO: REFLEXÕES SOBRE A REVOLUÇÃO HÚNGARA
AÇÃO E A BUSCA DA FELICIDADE
REVOLUÇÃO E LIBERDADE, UMA PALESTRA
DIREITOS PÚBLICOS E INTERESSES PRIVADOS: UMA RESPOSTA A CHARLES FRANKEL
NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA
OBRAS DE HANNAH ARENDT NO BRASIL
OBRAS SOBRE HANNAH ARENDT NO BRASIL
SOBRE A ORGANIZADORA
SOBRE A TRADUTORA
SOBRE A COLEÇÃO
NOTA INTRODUTÓRIA
Heloisa Murgel Starling
Os quatro ensaios que compõem este livro, pela primeira vez traduzidos no Brasil, fazem parte de um tipo de escrita em que Hannah Arendt exercita um saber muito próprio sobre a política. Pensar sobre o que estamos fazendo
é típico da sua reflexão, e talvez ela não discordasse de que esse fosse o tema central deste livro. Afinal, a ação das pessoas e o modo como o resultado dessas ações interferem no mundo público – o mundo que nos é comum – é indissociável de suas reflexões de longo alcance. Arendt escreveu intensamente sobre as ações humanas e examinou seus resultados a fim de compreender as fontes mais profundas da experiência totalitária – e encontrar as respostas apropriadas. Sempre existe a possibilidade de que a ação de pessoas, grupos e setores sociais que estão dispostos a emprestar seu apoio a teses próprias de um regime totalitário arruíne conquistas caras à democracia. Contudo, existe, igualmente, a expectativa de que a liberdade de agir – juntamente com nossa capaci-dade de resistir e julgar – torne possível a experiência da liberdade, o oposto do fenômeno totalitário. Talvez os verdadeiros transes do nosso tempo
, ela especulava, somente venham a assumir sua forma autêntica – embora não necessariamente a mais cruel – quando o totalitarismo pertencer ao passado.
¹ Isso, naturalmente, depende do modo como estaremos dispostos a experimentar o mundo que partilhamos.
O primeiro ensaio do livro – Imperialismo totalitário: reflexões sobre a Revolução Húngara
– foi escrito em 1958, um ano após a invasão da Hungria pelas tropas do Pacto de Varsóvia – a aliança militar formada pelos países do Leste Europeu e comandada pela União Soviética – e a derrota dos revolucionários. O impacto da Revolução Húngara, porém, foi duradouro. No seu rastro, caminhariam novos levantes: a Primavera de Praga, em 1968, a Revolução de Veludo, em 1989. Mas, sobretudo, a Hungria colocou em cena, com esse marcante episódio, a questão da liberdade nos países socialistas e no Bloco Soviético. Pela primeira vez na história, um país do Leste Europeu se levantou em massa contra o totalitarismo soviético e tentou instaurar uma república democrática, sustentada pelo sistema de conselhos populares e operários, e fundada sobre um núcleo de valores do mundo público. Quando soube que a Hungria exigia liberdade, Arendt quase não conseguiu acreditar no que estava acontecendo: Finalmente, finalmente eles precisaram mostrar como as coisas realmente são!
, escreveu entusiasmadíssima ao marido, Heinrich Blücher.² Os húngaros iriam ensinar algumas lições, e ela desejava escrever o ensaio para home-nagear aqueles que pagaram tão caro ao mostrar como as coisas são realmente sob um regime totalitário.
A Revolução Húngara confirmou a crença persistente de Arendt na dignidade da ação política, capaz de acender no tempo histórico o momento extraordinário e criativo em que os assuntos do mundo público são reapropriados pelos cidadãos. Afora isso, que não é pouco, o sistema de conselhos voltava a se organizar a partir das ações e das exigências do povo – como ela escreveu algum tempo depois³ – pela primeira vez desde a insurreição operária de Berlim, em 1919. Naquele momento, o levante revolucionário apoiado pela Liga Espartaquista, liderada por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, contava, cabe lembrar, com um jovem espartaquista de 22 anos, Heinrich Blücher, que lutava de armas na mão nas ruas de Berlim e que viria a ser o segundo marido de Hannah Arendt.
O significado da Revolução Húngara foi enorme. Ali se recuperava concretamente a possibilidade de combinar a condição criadora da ação política com a instituição de novas fontes de poder – o sistema de conselhos. Era desse modo que os húngaros faziam com que a revolução avançasse. Os conselhos húngaros foram eleitos em assembleias populares e de trabalhadores e funcionavam como um foro de debates e deliberação, mas com autoridade para conduzir a gestão e a organização da vida coletiva: coordenavam as discussões concernentes aos assuntos públicos, a troca de opiniões, as atividades políticas. Na realidade, os conselhos reproduziam o único tipo de auto-organização política que Hannah Arendt defendia como verdadeiramente republicana – um espaço em que a liberdade lograsse ser ativa e diretamente exercida pelas pessoas. Esse tipo de espaço autônomo e igualitário surgiu com as revoluções do século XVIII: na Revolução Francesa, chamavam-se sociedades populares
; na Revolução Americana, associações voluntárias
, tributárias da experiência comunal intensamente participativa e característica do período das Treze Colônias inglesas. A arte de se associar reapareceu espontaneamente, dirá Arendt, em todas as grandes manifestações revolucionárias dos séculos XIX e XX: nas Seções e no Grande Conselho Municipal, na Comuna de Paris, em 1871, nos Sovietes, na Revolução Russa de 1917, e nos Räte, na Insurreição Operária de Berlim, em 1919. Hannah Arendt podia até ser eventualmente catastrofista em certas análises, quando comentava sobre o que tornava o mundo miserável, mas nesse ensaio não escondeu sua excitação e entusiasmo.⁴
Os dois ensaios seguintes – Ação e a busca da felicidade
e Revolução e Liberdade, uma palestra
, ambos publicados pela primeira vez em 1962 – são um bom exemplo do método de trabalho de Hannah Arendt: ela costumava explorar e destacar o conteúdo e a relevância de determinados temas em artigos e em cursos acadêmicos até considerá-los maduros o bastante para se transformarem em objeto de livro – nesse caso específico, Sobre a Revolução, de 1963. Em ambos, Hannah Arendt buscou recontar e compreender um pouco mais sobre as características dessa forma de envolvimento político que surge a partir da experiência de ação das próprias pessoas e de seu desejo de participar ativamente dos assuntos públicos. O direito à busca da felicidade que ela retoma em Ação e a busca da felicidade
pode ser um impulso tão óbvio para nós hoje em dia, que quase desapareceu das nossas conversas – mas não se acostume com isso. A ideia de felicidade era parte do debate político do século XVIII – foi formulada por Francis Hutcheson, na Escócia, Cesare Beccaria, na Itália, Voltaire e Rousseau, na França, Jeremy Bentham, na Inglaterra, além de, é claro, por Thomas Jefferson, na Filadélfia, em 1776.⁵
A expressão busca da felicidade
, no preâmbulo da Declaração de Independência da América inglesa, apresenta uma deliberada hesitação entre felicidade pública e privada, da qual Hannah Arendt discorda. A felicidade – como, de resto, qualquer direito – não é uma evidência natural, mas algo a ser propositadamente perseguido como meta ao longo da vida; sua busca no curso cotidiano da existência humana tem o sentido de garantir o bem-estar individual e proporcionar a cada pessoa o desenvolvimento de si mesma. A base do argumento de Hannah Arendt – e a razão de sua crítica a Jefferson – é fácil de entender: o prolongamento dessa busca para além da satisfação do indivíduo deságua na noção de felicidade pública, isto é, no gosto de reivindicar participação na condução dos assuntos públicos e se preocupar com o bem-estar comum.
O sistema de conselhos demonstra justamente a íntima conexão entre uma lição de felicidade pública – o enorme desejo de debate, de instrução, de esclarecimentos recíprocos e troca de opiniões, além do aprendizado e da informação mútua sobre as matérias de interesse comum – e a noção e o gosto pela liberdade. Hannah Arendt sempre reconheceu a fragilidade desse espaço: aparecia, desaparecia e reaparecia ao longo da história. Mas ela também considerava que a procura da felicidade pública era uma qualidade verdadeiramente política, ao lado da coragem e do gosto pela liberdade, e não seria assim tão rara a ponto de não encontrar espaços diversos onde pudesse aparecer e se manifestar – inclusive, nos dias de hoje, quando há um sopro libertário, e as pessoas se combinam, se acertam e se encontram nas ruas.
Já o ensaio Revolução e Liberdade
resultou de uma palestra proferida por Arendt no Connecticut College, no início dos anos 1960. Suas preocupações naquele momento eram complexas, e ela parecia estar cheia de presságios. Os anos seguintes ao final da Segunda Guerra sepultaram impérios, redesenharam o mapa mundi e criaram um novo enredo para orientar as relações políticas mundiais – a Guerra Fria. O termo Guerra Fria
serviu para descrever as particularidades das condições de confronto entre Estados Unidos e União Soviética – as novas superpotências que emergiram no cenário do pós-guerra. Os dois países dispunham de arsenal bélico equivalente, seus líderes tinham nas mãos a capacidade de explodir o mundo, e a guerra era fria
exatamente por este motivo: confrontados cara a cara, americanos e soviéticos, com alguns poucos tiros, poderiam fazer eclodir uma guerra nuclear global. Provavelmente, Arendt sentia que precisava calibrar o ponto de vista concreto e prático
com que direcionou sua filosofia nos anos 1930 para um novo mundo onde Guerra Fria
, totalitarismo
e bombardeios atômicos
exigiam ser levados a sério. Era preciso buscar uma nova maneira de olhar a política. Mas isso exigia, antes de tudo, na sua avaliação, voltar-se para o exame das condições da ação humana: a perversão do agir capaz de provocar o mal extremo; a coragem do agir – seja pelo fenômeno revolucionário seja pela via associativa –, capaz de garantir a busca da felicidade pública e o gosto pela liberdade.
O quarto ensaio – Direitos públicos e interesses privados: Uma resposta a Charles Frankel
– foi escrito para refutar o texto deste autor, Direitos privados e o bem público
. Frankel era professor de filosofia e políticas públicas na Universidade de Columbia, em Nova York, e apresentou seu trabalho em um seminário sobre Políticas Públicas e Humanidades, realizado naquela universidade, em 1974. Esse foi um dos últimos textos de Hannah Arendt, pois ela morreria em 4 de dezembro de 1975. A resposta a Frankel se tornou mais relevante com a passagem do tempo. Arendt combateu o argumento do filósofo em nome de uma causa que defendia: desejava sustentar a liberdade pública para além da redefinição proposta pelo liberalismo. Direitos públicos são aqueles compartilhados entre pessoas com diferenças consideráveis entre si, mas que dispõem de igual direito de fazer parte da mesma comunidade. O autointeresse individual, por sua vez, tem objetivos distintos e uma urgência que é própria do tempo da vida de cada um de nós. Evidentemente,