Educação E Compaixão: Considerações A Partir de Max Horkheimer
Educação E Compaixão: Considerações A Partir de Max Horkheimer
Educação E Compaixão: Considerações A Partir de Max Horkheimer
HORKHEIMER
1. Introdução
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Trata-se de reportagem exibida em 05 de junho de 1993 pelo extinto Jornal “Aqui e Agora” da Rede de
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práticas cruéis? Como indivíduos marcados pela “frieza” e pela “apatia” podem ser
educados para a sensibilidade, portanto, para a identificação com o sofrimento do outro?
Para lidarmos com estas questões recorremos à noção de compaixão
desenvolvida por Max Horkheimer, em seus escritos tardios, a qual funciona como
dispositivo que impediria nossa adesão à crueldade possibilitando, portanto, a
identificação com o sofrimento e dor do indivíduo singular. É desta perspectiva que
Horkheimer alia-se ao pessimismo e a ética schopenhauerianos. Posto de outra forma,
diante da “frieza” e da “apatia” que marcam o comportamento dos indivíduos em nossa
sociedade o frankfurtiano busca construir uma ética que tenha como móvel a
compaixão, inspirando-se na moral de Schopenhauer.
É sob esse registro que vamos buscar elucidar a seguir os aspectos morais
inerentes à racionalidade iluminista, a qual expulsa do seu campo a compaixão. Isso
ocorrerá, sobretudo em Kant, e será radicalizada em Sade e Nietzsche, para quem a
compaixão funcionaria como uma espécie de véu que cobre a crueldade própria à
natureza humana. Sade vai levar às últimas conseqüências os propósitos do domínio da
razão sobre o corpo e as paixões e Nietzsche irá criticar o ascetismo do pensamento
moderno que manteve sempre sob seu domínio os instintos.
Em Kant, conforme destacam Adorno e Horkheimer (1985, p. 85), deu-se a
substituição da visão “metafísico-religiosa de mundo”, de cunho sentimentalista e
apologético, por uma moral fundada em princípios universais, cujo paradigma encontra-
se no “imperativo categórico” consumado no dever pelo dever e na ação desprovida de
interesse.
Neste sentido, entendem Adorno e Horkheimer (1985, p. 85) que o rigor da
moral kantiana acabaria antecipando os horrores que inspiraram a barbárie, expulsando
do campo da ação os sentimentos, os instintos e a paixão. As forças éticas seriam tão
neutras quanto a razão cientificista. Daí concluírem que “o esclarecimento expulsa da
teoria a diferença. Ele considera as paixões 'ac si quaestio de lineis, planis aut de
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corporibus esset' (como se fosse uma questão de linhas, planos ou volumes).” Será sobre
este ponto que a moral iluminista, em sua frieza, forneceria às práticas cruéis o espírito
da disciplina da moral kantiana. Nesse caso, o pensamento calculador instala-se no
âmbito da própria moral.
Adorno e Horkheimer veriam na “arquitetônica da razão pura” de Kant e no
esquartejamento do corpo nas orgias de Sade o anúncio de uma vida integralmente
organizada, em que os princípios sobre os quais se fundavam os propósitos da razão
iluminista foram funcionalizados pelos interesses econômicos na nova ordem burguesa.
O que se verifica com esta nova ordem é a constituição de uma razão que se afasta cada
vez mais do mundo da natureza, constituindo-se numa razão asseptizada, que afugenta
para longe tudo que possa ameaçá-la.
Sade é visto pelos frankfurtianos como uma perfeita paródia dos ideais morais e
científicos propagados pela Ilustração. É desta perspectiva que o libertino, como “aliado
e adversário da Ilustração, traz à tona o paradoxo moral inerente à filosofia iluminista,
que tem em Kant seu mais alto representante. Depois de eliminar Deus, Sade instala-se
em seu lugar e vê-se livre de qualquer freio. Entendem Adorno e Horkheimer (1985, p.
93), que ao transformar os fatos da consciência numa espécie de fatos físicos ou a “um
factum da razão” e buscar resguardar o sujeito de toda heteronomia, Kant teria
fornecido as bases para o racionalismo moral de Sade, em que, conforme nos assinala
Rouanet (1990, p. 190-91): “O utilitarismo das Luzes é redefinido sob a forma de um
egoísmo radical, que exclui qualquer consideração que não seja a busca do próprio
interesse.”
Juliette, personagem de Sade, tira desta orientação moral as conseqüências que o
iluminismo sempre acreditou poder evitar. Todas as suas energias devem ser
direcionadas para a construção do sujeito absolutamente livre, o qual deve deter o
controle pleno sobre seus sentimentos. É a partir deste código, feito profissão de fé, que
Juliette, afirmam Adorno e Horkheimer (1985, p. 92), “...se dedica esclarecidamente,
diligentemente, à faina do sacrilégio” e a cometer os seus atos criminosos. Todos os
antigos comportamentos declarados tabus pela civilização, mas que sobreviveram como
que numa “história subterrânea”, ela os pratica como naturais. Os instintos e as paixões
há muito reprimidos entrariam em vigência sob o domínio da racionalidade. Nesse caso,
Esse autodomínio da razão, definido por Kant como uma virtude moral de
grande relevância na condução do nosso agir, oferece ao personagem de Sade a chave
para as suas práticas. Ao descrever como deve ser a autodisciplina do criminoso,
conforme indicação de Adorno e Horkheimer, Juliete recomenda o seguinte:
primeiro sentimento que a natureza nos imprime. ...não é outra coisa senão a energia do
homem ainda não corrompida pela civilização; é uma virtude, portanto, e não um vício.”
Por essa razão, o pensamento esclarecido deveria ocupar-se em justificar o gozo e a
crueldade contra a sentimentalidade incensada pelos autores iluministas como é o caso
de Rousseau.
Nietzsche, por sua vez, reporta-se à crítica aristotélica, à compaixão, para dizer o
quanto ela rouba dos indivíduos a “dureza” e o “rigor” . Por esse motivo ele põe na boca
de Zaratustra o seguinte lamento: “vejo tanta bondade, tanta fraqueza. Tanta justiça e
compaixão, tanta fraqueza” (apud ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 98). Podemos
observar aqui uma distinção entre razão e sentimentos, uma herança que nos remete às
bases da racionalidade ocidental. Se em Aristóteles a compaixão conduziria os heróis a
se comportarem como mulheres em pranto, em Nietzsche ela adquire os aspectos de
fraqueza, próprios das consciências ressentidas e fracas, que não podendo vencer os
fortes, refugiam-se nestes sentimentos divulgando-os como nobres e verdadeiros.
É a partir desses esclarecimentos que podemos entender a hostilidade de Sade e
Nietzsche à compaixão enquanto comportamento de exceção contra a barbárie. Para
eles, a atitude compassiva em uma sociedade marcada pela injustiça e violência, soaria
como uma farsa, que apenas confirmaria, de um outro modo, a barbárie. As
emblemáticas palavras de Nietzsche reproduzidas no final do segundo Excurso,
parecem representar a imagem da sentinela do espírito que, sempre alerta, desconfia das
boas intenções e sentimentos nobres. No final do Excurso, os autores vão concordar
com a desconfiança alimentada pelos “autores sombrios” contra a compaixão burguesa:
Sob este aspecto dirão os autores que a compaixão se revelaria falaciosa pela sua
fraqueza diante das injustiças. Portanto, o que a torna questionável não é a
“sentimentalidade” que ela comporta, mas a sua insuficiência. Por outro lado,
contrariamente à “apatia estóica” que adestra os indivíduos à “frieza”, a compaixão
funcionaria como uma espécie de denúncia confirmando a não realização dos ideais
universais. A compaixão exercida socialmente remeter-nos-ia ao não realizado
contrapondo-se à injustiça que, de muitos modos, ainda persiste.
Mais do que os aspectos denuncistas que a compaixão certamente comporta,
para os dois frankfurtianos interessa ressaltar que o desmascaramento da compaixão
pelo esclarecimento revelou a presença, no âmbito da própria razão, dos elementos da
insensibilidade. Isto se confirmaria, à maneira de uma metáfora, através dos
personagens imorais de Sade, os quais teriam levado às últimas conseqüências o
processo de formalização da razão.
3. Ética e compaixão
Nesta crítica aos pressupostos morais herdeiros do iluminismo, que encontra em
Kant sua máxima elaboração e são radicalizados em Sade, Horkheimer (1966, p. 175-
76) retoma a crítica a moral kantiana, na qual Schopenhauer rompe com os princípios
abstratos, afirmando que “... da contemplação do Sumo Bem é impossível retirar
princípios que orientem a ação”. Em contraposição à esta moral e afins, Schopenhauer
recomenda que devemos nos orientar pelo que é em si mesmo, pelo que é mais real.
Esse mais real é a coisa-em-si, a vontade enquanto essência verdadeira do mundo.
O problema que se impõe a Schopenhauer é o de como pensar, a partir do
dualismo kantiano – fenômeno e coisa-em-si –, um novo fundamento para a moral sem
cair no dogmatismo. Schopenhauer preserva a distinção kantiana, mas com um sentido
totalmente diverso. O fenômeno é entendido enquanto aparência, sonho, ilusão – “véu
de Maia” – a coisa-em-si, a realidade oculta pela aparência. Diferentemente de Kant,
esta realidade pode ser aqui acessada por um saber distinto do entendimento e da razão.
Esse caminho de acesso à coisa-em-si é o próprio corpo compreendido como vontade,
no qual se dá o entrelaçamento entre experiência externa e interna, possibilitando
desvendar-se o sentido da experiência e o mistério do mundo. A coisa-em-si é pensada
como vontade, como essência de todos os fenômenos. Schopenhauer, conforme
Cacciola, ao pensar a vontade estendendo-a a todos os fenômenos, faz isso mediante
analogia:
Retornemos, então, às questões postas no início deste texto, que podem ser
assim sintetizadas: como educar para a sensibilidade, para a identificação com o
sofrimento e dor do outro, indivíduos marcados pela “apatia” e “frieza”? Uma das
formas de lidar com a mesma, particularmente em Horkheimer, está em pensar uma
ética que tenha como móvel a compaixão.
Embora a compaixão, como lembra Comte-Sponville (2000, p. 115), não goze
de boa reputação, pois ninguém gosta de senti-la e muito menos ser objeto dela, os seus
contrários manifestam-se na crueldade, na frieza, na indiferença e na insensibilidade.
Pensada assim, pelos seus contrários, a compaixão torna-se algo desejável e necessário
na luta contra a frieza e na não-indentificação com práticas cruéis.
Compadecer, conforme Comte-Sponville (2000, p. 118), é compartilhar o
sofrimento do outro é não aceitá-lo é negar suas razões. A compaixão envolve a recusa
em considerar qualquer sofrimento com indiferença e tratar qualquer ser vivo como
coisa. Ainda nesse registro podemos dizer que a compaixão não se alegra com o
sofrimento do outro e muito menos permite o refúgio no egoísmo. Para Comte-
Sponville (2000, p. 123) “A compaixão é, assim, essa virtude singular que nos abre não
apenas a toda humanidade, mas ao conjunto dos seres vivos ou, pelo menos, dos que
sofrem”. Sob esse aspecto a compaixão se identifica e se voltaria para o particular, pois
ela não pode ir além daquele que sofre. Não é possível compadecer-se da humanidade
inteira. Ela é concreta, singular, portanto, não se perde em formulações abstratas, mas
vincula-se imediatamente ao seu objeto. Nisso consiste a força da compaixão enquanto
antídoto que pode funcionar no combate à crueldade.
Se a compaixão enquanto virtude nos abre para o sofrimento do outro, ainda que
a mesma se vincule à nossa capacidade e condição de imaginar e se colocar no lugar do
outro, ela precisa ser cultivada e desenvolvida nos indivíduos. Comte-Sponville (2000,
p. 9) afirma, parafraseado Aristóteles, que a virtude “é uma disposição adquirida de
fazer o bem.” Aqui, acreditamos, poder nos aproximar da forma como Horkheimer
pensa a importância dos processos formativos na criação desta disposição para a
compaixão.
Contra os processos sociais mais amplos, desencadeados pelo capitalismo tardio,
que teria reduzido nos indivíduos a capacidade de realizar profundas experiências com a
cultura e com o outro, em função da diluição das regras e normas de conduta na
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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São Paulo: Iluminuras, 1999.
COSTA, Jurandir Freire. A ética e o espelho da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
GAGNEBIN, Jane Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de
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