Educação E Compaixão: Considerações A Partir de Max Horkheimer

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EDUCAÇÃO E COMPAIXÃO: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE MAX

HORKHEIMER

SILVA, Divino José da - FCT-UNESP


GT: Filosofia da Educação /n.17
Agência Financiadora:. Não contou com financiamento

1. Introdução

“Segunda-feira, 5 de julho, 20:30h, aproximadamente. O apresentador do


noticiário Aqui e Agora anuncia a exibição de uma cena de suicídio. Em
tom circense e empolado, recomenda aos adultos não deixarem as
crianças verem o que vai ser exibido. A câmara aproxima-se de uma
garota de 16 anos de idade, chamada Daniele Alves Lopes, sentada no
parapeito de um edifício. Como um esquilozinho assustado, ela olha para
os lados, segura a bolsa, vê os pedestres na rua e pula. O desfecho do
episódio é acompanhado de farisaicas exclamações de consternação por
parte do repórter. Em seguida, novas misérias e atrocidades, até o
próximo comercial”1 (COSTA, 1994, p. 127).

Este breve relato caracteriza, bem, a forma como um certo jornalismo


sensacionalista tem lidado com a vida social, em que a dor e sofrimento dos indivíduos
são banalizados e vendidos como espetáculo, cujo único fim é engordar os índices de
audiência. A vida, nestas situações, não vale mais que uma garrafa de refrigerante ou a
embalagem de qualquer produto. Tornamo-nos indivíduos descartáveis, inúteis e a nossa
fragilidade e impotência diante da vida são utilizadas como estímulos “para despertar o
gozo com a crueldade, o medo de investir na vida ou a voracidade por produtos
comerciais; jamais é pensada como algo que nos una no propósito de maior tolerância e
solidariedade para com as fraquezas e sofrimentos, nossos e de nosso próximo”
(COSTA, 1994, p. 129)
Depreende-se do acima exposto, que a luta contra a identificação e “o gozo com
a crueldade” constitui de fato um desafio, sobretudo quando vivemos, conforme Adorno
(1995, p. 125), mergulhados num clima cultural e social favorável à barbárie, que
dificulta a conscientização dos indivíduos sobre seus motivos. Frente a este desafio
algumas questões emergem para a educação: como educar contra a barbárie em um
mundo em que ela predomina? Como evitar que os indivíduos se identifiquem com

1
Trata-se de reportagem exibida em 05 de junho de 1993 pelo extinto Jornal “Aqui e Agora” da Rede de
Televisão SBT.
2

práticas cruéis? Como indivíduos marcados pela “frieza” e pela “apatia” podem ser
educados para a sensibilidade, portanto, para a identificação com o sofrimento do outro?
Para lidarmos com estas questões recorremos à noção de compaixão
desenvolvida por Max Horkheimer, em seus escritos tardios, a qual funciona como
dispositivo que impediria nossa adesão à crueldade possibilitando, portanto, a
identificação com o sofrimento e dor do indivíduo singular. É desta perspectiva que
Horkheimer alia-se ao pessimismo e a ética schopenhauerianos. Posto de outra forma,
diante da “frieza” e da “apatia” que marcam o comportamento dos indivíduos em nossa
sociedade o frankfurtiano busca construir uma ética que tenha como móvel a
compaixão, inspirando-se na moral de Schopenhauer.

2 . Iluminismo, Moral e Compaixão: algumas dissonâncias


Antes, porém, de tratarmos dos aspectos inerentes ao tema da compaixão em
Horkheimer, faz-se necessário situar a forma como se articula no contexto do
pensamento do autor o vínculo entre moral e compaixão.
O tema da compaixão é decorrente do diagnóstico que Horkheimer, juntamente
com Adorno, realiza dos processos desencadeados pela razão ocidental que na luta
contra as forças ameaçadoras, tanto aquelas inerentes a natureza externa como a interna,
teria redundado na subjugação do homem aos instrumentos por ele desenvolvidos em
defesa da autopreservação. Inspirados em Nietzsche, salienta Habermas (1998, p. 122),
os autores do Dialética do esclarecimento vão argumentar que esta luta pela
autopreservação tivera como princípios norteadores, as idéias de sacrifício, renúncia,
cálculo, autodomínio e ascetismo, a partir dos quais elucidam a constituição da
subjetividade ao longo da história da racionalidade ocidental.
Esta história da razão sustentada na renúncia e no cálculo encontraria em
Descartes e Kant seus mais auspiciosos representantes, em que o eu adquire a função de
conferir aos fatos uma unidade, estabelecendo uma perfeita harmonia entre
conhecimento e ação. O eu funciona como instância da previsibilidade e controle que
confere a tudo um caráter de funcionalidade, em que a vida em seus mínimos detalhes
encontra-se racionalizada. É sob esta perspectiva que os dois frankfurtianos entendem
que Descartes e Kant antecipam no plano do conceito o que Sade realizou em suas
práticas. Em Sade esta funcionalidade encontraria seu modelo exato, como notam os
autores, “... nos teams sexuais de Juliette, onde nenhum instante fica ocioso, nenhuma
abertura do corpo é desdenhada, nenhuma função permanece inativa” (ADORNO;
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HORKHEIMER, 1985, p. 87). Assim, as conseqüências advindas desta autonomia,


liberdade e independência do sujeito perante a vida, nos moldes postulados pela
filosofia iluminista, são descritas pelos autores através dos personagens de Sade,
compreendidos a partir do modelo moral do sujeito kantiano levado às últimas
conseqüências. Na verdade, as novelas de Sade funcionam como uma espécie de crônica
sobre o que aconteceu com as pretensões da moral iluminista, onde a “saída do homem
da menoridade” está condicionada ao uso rigoroso que ele faça da razão.
É a partir destas constatações que Adorno e Horkheimer vão refletir sobre os
desdobramentos da ética iluminista, levando em conta dois aspectos:

... tanto na sua constituição em Kant como na sua autodestruição em


Nietzsche e Sade. Como tinham mostrado que o esclarecimento já estava
embutido no mito, Adorno e Horkheimer mostram agora que as
insuficiências e os paradoxos da moral iluminista já se encontravam em
sua origem no paradigma kantiano e se reproduzem na radicalidade
oposta de Nietzsche e Sade. (GAGNEBIN, 1997, p. 109)

É sob esse registro que vamos buscar elucidar a seguir os aspectos morais
inerentes à racionalidade iluminista, a qual expulsa do seu campo a compaixão. Isso
ocorrerá, sobretudo em Kant, e será radicalizada em Sade e Nietzsche, para quem a
compaixão funcionaria como uma espécie de véu que cobre a crueldade própria à
natureza humana. Sade vai levar às últimas conseqüências os propósitos do domínio da
razão sobre o corpo e as paixões e Nietzsche irá criticar o ascetismo do pensamento
moderno que manteve sempre sob seu domínio os instintos.
Em Kant, conforme destacam Adorno e Horkheimer (1985, p. 85), deu-se a
substituição da visão “metafísico-religiosa de mundo”, de cunho sentimentalista e
apologético, por uma moral fundada em princípios universais, cujo paradigma encontra-
se no “imperativo categórico” consumado no dever pelo dever e na ação desprovida de
interesse.
Neste sentido, entendem Adorno e Horkheimer (1985, p. 85) que o rigor da
moral kantiana acabaria antecipando os horrores que inspiraram a barbárie, expulsando
do campo da ação os sentimentos, os instintos e a paixão. As forças éticas seriam tão
neutras quanto a razão cientificista. Daí concluírem que “o esclarecimento expulsa da
teoria a diferença. Ele considera as paixões 'ac si quaestio de lineis, planis aut de
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corporibus esset' (como se fosse uma questão de linhas, planos ou volumes).” Será sobre
este ponto que a moral iluminista, em sua frieza, forneceria às práticas cruéis o espírito
da disciplina da moral kantiana. Nesse caso, o pensamento calculador instala-se no
âmbito da própria moral.
Adorno e Horkheimer veriam na “arquitetônica da razão pura” de Kant e no
esquartejamento do corpo nas orgias de Sade o anúncio de uma vida integralmente
organizada, em que os princípios sobre os quais se fundavam os propósitos da razão
iluminista foram funcionalizados pelos interesses econômicos na nova ordem burguesa.
O que se verifica com esta nova ordem é a constituição de uma razão que se afasta cada
vez mais do mundo da natureza, constituindo-se numa razão asseptizada, que afugenta
para longe tudo que possa ameaçá-la.
Sade é visto pelos frankfurtianos como uma perfeita paródia dos ideais morais e
científicos propagados pela Ilustração. É desta perspectiva que o libertino, como “aliado
e adversário da Ilustração, traz à tona o paradoxo moral inerente à filosofia iluminista,
que tem em Kant seu mais alto representante. Depois de eliminar Deus, Sade instala-se
em seu lugar e vê-se livre de qualquer freio. Entendem Adorno e Horkheimer (1985, p.
93), que ao transformar os fatos da consciência numa espécie de fatos físicos ou a “um
factum da razão” e buscar resguardar o sujeito de toda heteronomia, Kant teria
fornecido as bases para o racionalismo moral de Sade, em que, conforme nos assinala
Rouanet (1990, p. 190-91): “O utilitarismo das Luzes é redefinido sob a forma de um
egoísmo radical, que exclui qualquer consideração que não seja a busca do próprio
interesse.”
Juliette, personagem de Sade, tira desta orientação moral as conseqüências que o
iluminismo sempre acreditou poder evitar. Todas as suas energias devem ser
direcionadas para a construção do sujeito absolutamente livre, o qual deve deter o
controle pleno sobre seus sentimentos. É a partir deste código, feito profissão de fé, que
Juliette, afirmam Adorno e Horkheimer (1985, p. 92), “...se dedica esclarecidamente,
diligentemente, à faina do sacrilégio” e a cometer os seus atos criminosos. Todos os
antigos comportamentos declarados tabus pela civilização, mas que sobreviveram como
que numa “história subterrânea”, ela os pratica como naturais. Os instintos e as paixões
há muito reprimidos entrariam em vigência sob o domínio da racionalidade. Nesse caso,

Juliette... não encarna, em termos psicológicos, nem a libido não-


sublimada, nem a libido regredida, mas o gosto intelectual pela regressão,
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amor intellectualis diaboli, o prazer de derrotar a civilização com suas


próprias armas. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 92-93)

Sade subverte, assim, o iluminismo, sobretudo em seus aspectos morais, ao


contrapor à razão esclarecida os seus próprios princípios, ao mesmo tempo em que
volta-se contra a civilização todo aparato desenvolvido pelo esclarecimento. Sade
anteciparia, deste modo, o uso que tem sido conferido à razão atualmente, em que a
mesma ficou restrita aos aspectos de sua aplicabilidade ao cálculo e à previsibilidade,
sem se interrogar sobre as conseqüências do uso que dela se faça.
Se por um lado Sade atua como subversor do iluminismo, de outro ele se faz
arauto da última boa nova da moral iluminista, ao levar às últimas conseqüências o
autodomínio postulado pela moral kantiana. Ao mencionarem a noção de virtude em
Kant, Adorno e Horkheimer indicam o quanto esta se aproxima da noção sadeana:

A virtude na medida em que está fundada na liberdade interior, também


contém para os homens um mandamento afirmativo, que é o de submeter
todos os seus poderes e inclinações ao poder da (razão), por conseguinte
o mandamento do domínio de si mesmo, que se acrescenta à proibição de
deixar-se dominar por suas emoções e inclinações (o dever da apatia):
porque, se a razão não toma em mãos as rédeas do governo, aquelas
agem sobre os homens como se fossem seus amos. (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 93)

Esse autodomínio da razão, definido por Kant como uma virtude moral de
grande relevância na condução do nosso agir, oferece ao personagem de Sade a chave
para as suas práticas. Ao descrever como deve ser a autodisciplina do criminoso,
conforme indicação de Adorno e Horkheimer, Juliete recomenda o seguinte:

Primeiro, imagine seu plano com vários dias de antecedência, reflita


sobre todas as conseqüências, examine com atenção o que poderá lhe ser
útil... o que seria susceptível de traí-la, e pese essas coisas com o mesmo
sangue-frio como se tivesse a certeza de ser descoberta. (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 93)
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Além disso, Juliette recomenda ao personagem que é preciso certificar-se de que


na fisionomia do criminoso reine a calma. Diz Juliette:

[...] faça reinar nela a calma e a indiferença e trate de adquirir o maior


sangue-frio possível nessa situação.... se você não tivesse a certeza de
não ter nenhum remorso, e jamais a terá senão pelo hábito do crime, se,
eu dizia, você não tivesse a inteira certeza disso, em vão trabalharia para
se tornar senhora do jogo de sua fisionomia. (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 93)

Nestas duas passagens estaria a proximidade da autodisciplina em Kant e as


proporções que ela assumirá em Sade. Assim, tanto em Kant quanto em Sade, liberdade
moral significa o distanciamento de todo e qualquer sentimento, seja ele de remorso,
culpa, amor, ódio, etc. A melhor atitude a ser adotada contra eles é mesmo a prevenção.
A práxis burguesa, afirmam Adorno e Horkheimer (1985, p. 93), mediante a
formalização da razão, busca conter estes sentimentos, tendo em vista o bom andamento
dos negócios. Deste modo, como nos lembram ainda os autores, remetendo-nos
novamente a Kant: “A apatia (considerada como fortaleza) é um pressuposto
indispensável da virtude”. O que se constata com esta “apatia moral” é o controle da
insensibilidade, mantida pela calma e pela determinação nos propósitos; nisto residiria a
força da virtude. A amiga de Juliette regozija-se ao constatar que prefere a “feliz apatia”
ao esmorecimento da alma diante dos acontecimentos. Somente uma alma dura poderia
manter-se insensível. Para que se cumprisse esse imperativo, Juliette fez da ciência o
seu credo.
Se em Kant, conforme observam Adorno e Horkheimer (1985, p. 98), a
compaixão é reduzida a “uma certa sentimentalidade”, a qual não teria status de virtude,
em Sade há um combate ferrenho a todos os valores cultivados pelo Iluminismo,
particularmente, afirma Borges (1999, p. 211), àqueles filiados ao “idealismo
sentimental”, tais como: “...a virtude, a sensibilidade, a bela moralidade, a ‘boa
natureza’ e todo ideário cristão de amor ao próximo como a solidariedade, a piedade, a
identificação sentimental e o remorso...”. Esta valorização da sensibilidade presente no
Século das Luzes, a qual conferia aos homens semelhança e os tornava mais próximos,
representaria, no universo libertino uma força contrária à natureza, em cujo lugar
deveria ser colocada a crueldade. Segundo Sade (1999, p. 81), “...a crueldade é o
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primeiro sentimento que a natureza nos imprime. ...não é outra coisa senão a energia do
homem ainda não corrompida pela civilização; é uma virtude, portanto, e não um vício.”
Por essa razão, o pensamento esclarecido deveria ocupar-se em justificar o gozo e a
crueldade contra a sentimentalidade incensada pelos autores iluministas como é o caso
de Rousseau.
Nietzsche, por sua vez, reporta-se à crítica aristotélica, à compaixão, para dizer o
quanto ela rouba dos indivíduos a “dureza” e o “rigor” . Por esse motivo ele põe na boca
de Zaratustra o seguinte lamento: “vejo tanta bondade, tanta fraqueza. Tanta justiça e
compaixão, tanta fraqueza” (apud ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 98). Podemos
observar aqui uma distinção entre razão e sentimentos, uma herança que nos remete às
bases da racionalidade ocidental. Se em Aristóteles a compaixão conduziria os heróis a
se comportarem como mulheres em pranto, em Nietzsche ela adquire os aspectos de
fraqueza, próprios das consciências ressentidas e fracas, que não podendo vencer os
fortes, refugiam-se nestes sentimentos divulgando-os como nobres e verdadeiros.
É a partir desses esclarecimentos que podemos entender a hostilidade de Sade e
Nietzsche à compaixão enquanto comportamento de exceção contra a barbárie. Para
eles, a atitude compassiva em uma sociedade marcada pela injustiça e violência, soaria
como uma farsa, que apenas confirmaria, de um outro modo, a barbárie. As
emblemáticas palavras de Nietzsche reproduzidas no final do segundo Excurso,
parecem representar a imagem da sentinela do espírito que, sempre alerta, desconfia das
boas intenções e sentimentos nobres. No final do Excurso, os autores vão concordar
com a desconfiança alimentada pelos “autores sombrios” contra a compaixão burguesa:

Proclamando a identidade da dominação e da razão, as doutrinas sem


compaixão são mais misericordiosas do que as doutrinas dos lacaios
morais da burguesia. “Onde estão os piores perigos para ti?”, indagou
Nietzsche. “Na compaixão”. Negando-a, ele salvou a confiança
inabalável no homem, traída cada vez que se faz uma afirmação
consoladora. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 112)

Ao insistirem em destacar internamente à razão iluminista o desprezo para com


o sentimento da compaixão, identificado no pensamento do próprio Kant, os autores
estão conscientes da inadequação existente entre compaixão e justiça, pois a primeira
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comportaria, em certo aspecto, a injustiça, que confirmaria, segundo Adorno


Horkheimer,

...a regra da desumanização através da exceção que ela pratica. Ao


reservar aos azares do amor ao próximo a tarefa de superar a injustiça, a
compaixão acata a lei da alienação universal, que ela queria abrandar,
como algo inalterável. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 99)

Sob este aspecto dirão os autores que a compaixão se revelaria falaciosa pela sua
fraqueza diante das injustiças. Portanto, o que a torna questionável não é a
“sentimentalidade” que ela comporta, mas a sua insuficiência. Por outro lado,
contrariamente à “apatia estóica” que adestra os indivíduos à “frieza”, a compaixão
funcionaria como uma espécie de denúncia confirmando a não realização dos ideais
universais. A compaixão exercida socialmente remeter-nos-ia ao não realizado
contrapondo-se à injustiça que, de muitos modos, ainda persiste.
Mais do que os aspectos denuncistas que a compaixão certamente comporta,
para os dois frankfurtianos interessa ressaltar que o desmascaramento da compaixão
pelo esclarecimento revelou a presença, no âmbito da própria razão, dos elementos da
insensibilidade. Isto se confirmaria, à maneira de uma metáfora, através dos
personagens imorais de Sade, os quais teriam levado às últimas conseqüências o
processo de formalização da razão.

Até mesmo a injustiça, o ódio e a destruição tornam-se uma atividade


maquinal depois que, devido à formalização da razão, todos os objetivos
perderam, como miragem, o caráter de necessidade e objetividade. A
magia transfere-se para o mero fazer, para o meio, em suma, para a
indústria. A formalização da razão é a expressão intelectual do modo de
produção maquinal. O meio fetichizado ele absorve o prazer. (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 100)

Com esse processo de formalização da razão, teria ocorrido não só o desprezo à


compaixão, mas também a toda virtude moral que tenha como móvel o sentimento. De
onde decorreria a impossibilidade do exercício da alteridade, portanto, da identificação
com a dor e sofrimento do outro. Para Horkheimer o desenrolar da dialética do
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iluminismo teria expulsado do campo da ação moral os afetos e sentimentos, em


detrimento da racionalidade instrumental que submete o mundo das relações sociais à
ótica dos interesses do mercado, em que tudo, inclusive o homem, é tratado como coisa.
É contra os efeitos deletérios da “apatia” e “frieza” que marcam o comportamento dos
indivíduos na nossa sociedade que Horkheimer insiste em pensar uma ética baseada na
compaixão a qual, acredita, poderá fazer frente à crueldade.

3. Ética e compaixão
Nesta crítica aos pressupostos morais herdeiros do iluminismo, que encontra em
Kant sua máxima elaboração e são radicalizados em Sade, Horkheimer (1966, p. 175-
76) retoma a crítica a moral kantiana, na qual Schopenhauer rompe com os princípios
abstratos, afirmando que “... da contemplação do Sumo Bem é impossível retirar
princípios que orientem a ação”. Em contraposição à esta moral e afins, Schopenhauer
recomenda que devemos nos orientar pelo que é em si mesmo, pelo que é mais real.
Esse mais real é a coisa-em-si, a vontade enquanto essência verdadeira do mundo.
O problema que se impõe a Schopenhauer é o de como pensar, a partir do
dualismo kantiano – fenômeno e coisa-em-si –, um novo fundamento para a moral sem
cair no dogmatismo. Schopenhauer preserva a distinção kantiana, mas com um sentido
totalmente diverso. O fenômeno é entendido enquanto aparência, sonho, ilusão – “véu
de Maia” – a coisa-em-si, a realidade oculta pela aparência. Diferentemente de Kant,
esta realidade pode ser aqui acessada por um saber distinto do entendimento e da razão.
Esse caminho de acesso à coisa-em-si é o próprio corpo compreendido como vontade,
no qual se dá o entrelaçamento entre experiência externa e interna, possibilitando
desvendar-se o sentido da experiência e o mistério do mundo. A coisa-em-si é pensada
como vontade, como essência de todos os fenômenos. Schopenhauer, conforme
Cacciola, ao pensar a vontade estendendo-a a todos os fenômenos, faz isso mediante
analogia:

... o corpo humano é uma representação que se diferencia das demais


apenas em vista da relação de conhecimento, sendo no restante igual a
qualquer outra... A base para a analogia que permite dotar todos os
fenômenos da mesma essência que a humana reside no fato de que os
demais objetos, considerados como representações, são idênticos ao
corpo, isto é, preenchem o espaço e nele atuam, por meio da lei da
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causalidade. E assim, do mesmo modo que podemos conhecer o corpo de


duas maneiras distintas, podemos por analogia admitir que os demais
fenômenos sejam, de um lado, representações, e de outro, ‘o que em nós
chamamos de vontade’. (CACCIOLA, 1994, p. 50)

Essa vontade é força infinita e incoercível em constante mutação. É desejo de


prazer e bem-estar que nasce de novo a cada realização. Segundo Horkheimer (1966, p.
175-76), Schopenhauer veria na razão, no intelecto, a arma da racionalização contra a
natureza, cuja pretensão sempre foi regular moralmente as ações dos indivíduos, os
interesses de grupos e povos, mantendo sob controle as forças (volens) que inflamam e
determinam o conteúdo da história. É nesse ponto que ele vai se distanciar de Kant.
O que podemos verificar no pensamento de Schopenhauer, é o deslocamento do
fundamento da moral do domínio teórico, nos moldes postulados por Kant, para o
domínio do sentimento localizado no âmbito da vontade. É a partir dessa perspectiva
que o filósofo irá interrogar a possibilidade de se fundar a ação moral sobre princípios
meramente intelectuais. Dito de outro modo, o que está posto em dúvida é o imperativo
categórico enquanto móvel verdadeiro da ação moral. Contra o caráter abstrato do
imperativo kantiano, Schopenhauer (1995, p. 125-27) reivindica como móvel da ação
algo que seja real e empírico e que possa exercer sobre o homem sua força. Esse móvel
é inerente à própria natureza humana, que obedece às leis da vontade como parte das
leis que regem a totalidade da natureza. Dessa maneira, segundo Cacciola (1994), a
coexistência entre liberdade e necessidade natural está fundada, para Schopenhauer, na
clara recusa da determinação da vontade pela razão. Portanto, o conceito de liberdade
não teria origem em uma causa transcendental ou no imperativo categórico, mas na
“primazia da Vontade sobre o intelecto”. Ao destituir o imperativo categórico de
fundamento, a inteligibilidade dos princípios que orientam as ações humanas e a noção
de liberdade não podem ser uma decorrência lógica do enunciado moral. Diante disso,
Schopenhauer lança mão da experiência interna que a atividade corporal nos
proporciona, entendida enquanto vontade presente em cada um, a qual possibilita a
afirmação da liberdade.
Ainda contra o imperativo categórico kantiano, Schopenhauer (1995) argumenta
que ele comporta uma contradição. O postulado do dever absoluto, incondicionado, não
se sustentaria senão a partir da ameaça de castigo ou da promessa de recompensa.
Assim, sobreviveria, oculto às máximas da moral kantiana, o caráter hipotético das suas
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leis, em que se confirmaria a impossibilidade de o princípio incondicionado mover a


vontade. Isso aconteceria, na visão de Schopenhauer (1995, p. 67), porque no
fundamento do imperativo categórico, “... jaz tacitamente a condição de que a lei que se
estabelece para o meu agir, já que eu a elevo à universal, também torna-se lei para o
meu padecer, e eu, eventualmente como parte passiva, não posso simplesmente querer
injustiça e falta de caridade”. Ao postular qualquer máxima, devo considerar-me parte
ativa e passiva da ação; ou seja, no momento em que as minhas ações podem voltar-se
contra mim, a consciência de que isto seja possível faz que o meu egoísmo decida pela
justiça. É nesse sentido que o imperativo categórico transformar-se-ia secretamente em
hipotético.
Em Schopenhauer, a noção de autonomia “... mostra-se incompatível
com a forma prescritiva da moral. A obrigação e o dever têm como pressupostos a
dependência do homem de uma outra Vontade que ordena e promete recompensas e
ameaça com castigos”(CACCIOLA, 1994, p. 153). Daí concluir Schopenhauer (1995,
p. 37) que a moral do dever é uma “moral de escravos”. No âmbito dessa moral, o
indivíduo só é aparentemente autônomo, pois sua vontade vê-se comandada pela
Vontade de um outro. Isso só confirmaria o quanto a moral kantiana estaria baseada nos
pressupostos da teologia, portanto, distante da vida. Por isso também a recomendação
schopenhaueriana de que os éticos deveriam olhar mais para a vida.
A partir da crítica ao dogmatismo da filosofia kantiana, Schopenhauer irá buscar
uma nova ética, não mais baseada na doutrina dos deveres e na prescrição de normas
garantidas pelo imperativo categórico, como fundamento último. O móvel da ação
moral deve ser procurado na experiência interna e externa dos indivíduos. Antes de se
interrogar pelo fundamento último da moral, deve-se perguntar a quais ações se deve
atribuir “autêntico valor moral” (SCHOPENHAUER, 1995, p. 113).
Depois de descrever as ações que têm como pressuposto o “interesse próprio”,
portanto o egoísmo, e de excluí-las a partir de uma série de argumentos, Schopenhauer
(1995) busca estabelecer o critério fundamental para designar o valor moral de uma
ação. Ele pergunta: como é possível que o interesse pelo bem-estar do outro mova
minha vontade, como se fosse o meu próprio? Isso só pode acontecer, responde, quando
o outro se torna “o fim último de minha vontade como eu próprio o sou. ... Isto, porém,
pressupõe necessariamente que eu sofra com o seu mal-estar, sinta seu mal como se fora
o meu” (1995, p. 128-29). Para que isso ocorra de fato, a diferença entre mim e o outro,
origem de todo egoísmo, tem que ser, em certa medida, eliminada. Como não posso
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transformar-me no outro em carne e osso, é pela via da representação, portanto, do


conhecimento que tenho desse outro, que posso exercitar a alteridade identificando-me
com ele. Ainda que esse processo seja, aqui, produto da dedução, “não é sonhado ou
apanhado no ar”, mas pode ser confirmado no fenômeno da compaixão cotidiana, em
que a participação no sofrimento do outro constitui o verdadeiro fundamento da justiça
e do amor ao próximo, pois a diferença entre os indivíduos, sobre a qual se baseia todo
o egoísmo, deixa de ser absoluta. Portanto, para Schopenhauer, o fundamento da moral
reside no fenômeno da compaixão, enquanto um fato facilmente deduzido das várias
experiências que os indivíduos realizam cotidianamente, encontrando seu fundamento
último na própria natureza humana (cf. Schopenhauer, 1995, p. 128-29). Deste modo,
conforme Cacciola (1994, p. 156), “o fundamento da ética desloca-se pois da razão e de
seus imperativos para o sentimento, e à moral do dever contrapõe-se uma moral do ser,
a moral da compaixão”.
Depois de ter transitado pelo solo seguro da experiência para fundamentar a
moral, Schopenhauer (1995) busca fornecer uma explicação metafísica da compaixão, a
partir da unidade da essência presente em todos os seres. Na multiplicidade dos seres,
que nos é dada no tempo e no espaço – principium individuacionis -, os indivíduos
percebem-se diferentes e orientam-se pelo fenômeno, pela aparência, e não pela coisa-
em-si, a qual constitui a essência verdadeira do mundo. Situados no âmbito do
fenomênico, os indivíduos agem movidos pelo egoísmo e pelo interesse próprio, de que
qualquer outro sentimento. Afirma Schopenhauer (1995, p. 207):

A individuação é o mero fenômeno que nasce mediante o espaço e o


tempo, que não são nada além de formas de todos os objetos
condicionadas por meio de minha faculdade cerebral de conhecimento.
Por isso, também a multiplicidade e a diferenciação dos indivíduos é um
mero fenômeno, quer dizer, só está presente na minha representação.
Minha essência interna verdadeira existe tão imediatamente em cada ser
vivo quanto ela só se anuncia para mim, na minha autoconsciência.

Dá-se, aqui, a passagem da multiplicidade aparente à essência presente em todos


os viventes. A ilusão e o engano são desfeitos, pois é a mesma essência que se manifesta
como fundamento do todo fenomênico. É, também, o que torna possível o fenômeno da
compaixão, enquanto expressão dessa realidade. É nesse ponto que se estabelece o
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estreito vínculo entre a ética e a metafísica. Nessa essência reside, conforme


Schopenhauer (1995, p. 206-07), “... a base metafísica da ética e consistiria no fato de
que um indivíduo se reconhece a si próprio, a sua essência verdadeira, imediatamente
no outro”. Desse reconhecimento irrompe a compaixão como resultado da lembrança de
que somos todos dotados de uma mesma essência. É por essa via que os obstáculos
impostos pelo principium individuationis são superados, e os outros deixam de ser para
mim um “não-eu” para se tornarem “eu mais uma vez”.
Sem dúvida, esse constitui o aspecto em que Horkheimer mais simpatiza com
Schopenhauer: o fundamento da ação moral encontra-se no próprio homem e não em
algo fora dele. Diz Horkheimer ( 1966, p. 175-76):

... cada um de nós pode descobrir em si mesmo o ser essencial


verdadeiro, que subjaz fora de todas as coisas; a coisa-em-si, por
oposição à aparência ou fenômeno, se esquadrinha dentro de si com
suficiente claridade e sabe retirar a soma das experiências com sua
própria natureza: é o incoercível; o desejo de bem-estar e de prazer que
nasce de novo traz toda satisfação. Ali, e não com as razões que o
intelecto encontra sempre para o tal empenho, reside a indestrutível
realidade do ser vivo – como de todo o ser em definitivo.

Ao colocar como fundamento da vida a Vontade, enquanto força que move o


mundo dos homens e da natureza, Schopenhauer teria reconhecido, segundo
Horkheimer (1966), a efemeridade do bem e seu caráter aparente, e, mais do que isso,
teria depositado poucas esperanças no futuro da humanidade. Para Schopenhauer, a
ilustração havia tendido a perpetuar os aspectos sangrentos da história. É dessa
perspectiva, afirma Horkheimer que:

Schopenhauer despojou de sancionamento filosófico – contra a teologia e


a metafísica e as filosofias da história de todo tipo – a solidariedade com
a dor e a comunidade dos homens desamparados no universo, mas sem
pronunciar as palavras da dureza; enquanto existir fome e miséria sobre a
terra, não terão descanso os que possam ver. (1966, p. 177)
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Nisso consiste, para Horkheimer, a lucidez do pensamento schopenhaueriano


que se definiria pelo esforço em combater o sofrimento e a miséria. Aliás, este deveria
constituir o sentido último da existência humana, enquanto ideologia que deveria ser
estimada por todos, a qual é “conseqüência da compaixão e da congratulação de viver
com os demais, e os inteligentes não podem deixar de combater os horrores até que
desapareçam” (Horkheimer, 1966, p. 178). É desta maneira que Schopenhauer opõe-se à
idéia de um “Bem Supremo”, a felicidade última, num mundo onde o que predomina
são a crueldade e o sofrimento dos indivíduos. Interroga Horkheimer (1966, p. 181), a
partir de Schopenhauer, “como poderia subsistir a verdade eterna, se o fundamento do
mundo é perverso? Schopenhauer se aferrou ao conceito de verdade, ainda quando este
leva o negativo de si mesma: significa para ele a resolução de não se tranqüilizar com
nenhuma ilusão, e seu nome era um e o mesmo da filosofia”. Contra o “absoluto
perverso – a vontade cega”, Schopenhauer encontra refúgio na compaixão. Ainda que a
dor e o sofrimento, conforme Cacciola (1994, p. 162), constituam a face da crua
realidade, a compaixão funciona como um antídoto eficaz contra a crueldade. É nesse
ponto, então, que Horkheimer alia-se, mais uma vez, a Schopenhauer. Diante de um
mundo cuja essência é a vontade cega, o “absoluto perverso”, e em que qualquer
verdade pronunciada sobre ele corre o risco de dissimular o sofrimento, esse momento
faz que “apareça”, segundo Horkheimer (1966, p. 185), “a descoberto, pela primeira
vez, o motivo da solidariedade dos homens e do ser em geral, o desamparo; nenhuma
necessidade se compensará em um mais além”. Aqui, então, segundo Matos (1989, p.
255), Horkheimer alia ao seu materialismo o pessimismo, em combate à resignação
diante do curso da história. O sofrimento e a dor atuam como pathos, “como trauma”,
que não permitiria a rendição dos indivíduos às falsas certezas, ao mesmo tempo em que
possibilitaria despertar a razão da letargia do “mundo administrado”.
É a partir dos aspectos acima destacados, em que o pessimismo é redefinido, que
Horkheimer acredita poder reabilitar a filosofia. Esta só pode sobreviver pela “via
crítica”, ou seja, enquanto denúncia da dominação e do sofrimento. O filósofo chega a
estas conclusões a partir da reflexão ética sobre a modernidade, época marcada pelo
predomínio onisciente da razão instrumental, e daí sua concordância com
Schopenhauer, em que “o fundamento do mundo é perverso” (HORKHEIMER, 1966,
p.181). Portanto, cabe à filosofia persistir na denúncia da crueldade e do sofrimento
inerentes ao “processo civilizatório” e à “dialética do iluminismo”.
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4. Algumas considerações sobre compaixão e educação

Retornemos, então, às questões postas no início deste texto, que podem ser
assim sintetizadas: como educar para a sensibilidade, para a identificação com o
sofrimento e dor do outro, indivíduos marcados pela “apatia” e “frieza”? Uma das
formas de lidar com a mesma, particularmente em Horkheimer, está em pensar uma
ética que tenha como móvel a compaixão.
Embora a compaixão, como lembra Comte-Sponville (2000, p. 115), não goze
de boa reputação, pois ninguém gosta de senti-la e muito menos ser objeto dela, os seus
contrários manifestam-se na crueldade, na frieza, na indiferença e na insensibilidade.
Pensada assim, pelos seus contrários, a compaixão torna-se algo desejável e necessário
na luta contra a frieza e na não-indentificação com práticas cruéis.
Compadecer, conforme Comte-Sponville (2000, p. 118), é compartilhar o
sofrimento do outro é não aceitá-lo é negar suas razões. A compaixão envolve a recusa
em considerar qualquer sofrimento com indiferença e tratar qualquer ser vivo como
coisa. Ainda nesse registro podemos dizer que a compaixão não se alegra com o
sofrimento do outro e muito menos permite o refúgio no egoísmo. Para Comte-
Sponville (2000, p. 123) “A compaixão é, assim, essa virtude singular que nos abre não
apenas a toda humanidade, mas ao conjunto dos seres vivos ou, pelo menos, dos que
sofrem”. Sob esse aspecto a compaixão se identifica e se voltaria para o particular, pois
ela não pode ir além daquele que sofre. Não é possível compadecer-se da humanidade
inteira. Ela é concreta, singular, portanto, não se perde em formulações abstratas, mas
vincula-se imediatamente ao seu objeto. Nisso consiste a força da compaixão enquanto
antídoto que pode funcionar no combate à crueldade.
Se a compaixão enquanto virtude nos abre para o sofrimento do outro, ainda que
a mesma se vincule à nossa capacidade e condição de imaginar e se colocar no lugar do
outro, ela precisa ser cultivada e desenvolvida nos indivíduos. Comte-Sponville (2000,
p. 9) afirma, parafraseado Aristóteles, que a virtude “é uma disposição adquirida de
fazer o bem.” Aqui, acreditamos, poder nos aproximar da forma como Horkheimer
pensa a importância dos processos formativos na criação desta disposição para a
compaixão.
Contra os processos sociais mais amplos, desencadeados pelo capitalismo tardio,
que teria reduzido nos indivíduos a capacidade de realizar profundas experiências com a
cultura e com o outro, em função da diluição das regras e normas de conduta na
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competição e na busca do sucesso, Horkheimer (1976b, p. 129-30) reivindica uma


educação que possibilite aos indivíduos a amplitude de experiência, que se traduziria
numa relação viva e intensa com as pessoas e com a cultura. Para que isso seja possível
a primeira condição estaria em evitar uma educação da infância baseada na força e na
repressão, portanto, evitar uma educação para a dureza. O autor reivindica também uma
educação que não estimule o ódio, o desejo de poder, a inveja e o preconceito contra o
outro. É necessário também que os processos formativos se distanciem do espírito da
indústria cultural que simplificam nossas experiências com a cultura.
Um outro aspecto importante nesse processo de formação para a amplitude de
experiência estaria na educação pela mímese, que não exige recomendações diretas ou
chamada de atenção. Ela acontece por meio da imitação. Neste caso, os impulsos
miméticos são sublimados e não reprimidos e seriam conduzidos para a realização das
potencialidades humanas. Enfim, Horkheimer vê na educação para a amplitude de
experiência o caminho pelo qual podemos nos opor a uma educação para a identificação
perversa com o todo social, que reproduz a insensibilidade e a impossibilidade da
identificação com o sofrimento do outro.
Ao tratar da educação escolar, afirma Horkheimer que os professores devem
saber falar às crianças, de tal forma a desenvolver-lhes a amplitude de experiência e a
capacidade de serem felizes, bem como devem saber evitar um clima rígido no espaço
escolar, produzido muitas vezes por experiências passadas do educador.
Para finalizar podemos dizer que o vínculo entre educação e compaixão em Max
Horkheimer passa necessariamente por um clima cultural que possibilite aos indivíduos
uma experiência ampla com a cultura, que se contraponha à simplificação e banalização
do sofrimento e dor do outro, próprias às práticas sociais contemporâneas
exemplificadas no relato que fizemos no início desta exposição. Contra esse tipo de
barateamento da experiência requer-se uma educação para a alteridade, portanto que não
trate a vida e seus reveses como uma mercadoria, como um espetáculo em que se
estimula o gozo com a crueldade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro, Zahar, 1985.
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São Paulo: Iluminuras, 1999.

CACCIOLA, Maria Lúcia M. O. Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São


Paulo: Edusp/FAPESP, 1994.

COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. Tradução de


Eduardo Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2000.

COSTA, Jurandir Freire. A ética e o espelho da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

GAGNEBIN, Jane Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de
Janeiro: Imago, 1997.

HABERMAS, Jürguen. O entrosamento entre o mito e o iluminismo: Horkheimer e


Adorno. In: _______ O discurso filosófico da modernidade. Tradução de Sara Cabral
Seruya. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998.

HORKHEIMER, Max. La actualidad de Schopenhauer. Tradução de Víctor Sanchez de


Zavala. In: Sociologica. Madrid: Taurus, 1966.

_________. Eclipse da razão. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. Rio de Janeiro:


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_________. Enseñanzas del fascismo. Tradução de Joan Godo Costa. In _______.


Sociedade em transición: estúdios de filosofia social. Barcelona. Península, 1976b.

MATOS, Olgária F. C. Os arcanos do inteiramente outro: a Escola de Frankfurt, a


melancolia e a revolução. São Paulo: Brasiliense, 1989.

SCHOPENHAUER, A. Sobre o fundamento da moral. Tradução de Maria Lúcia


Cacciola. São Paulo: Martins Fontes, 1995

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