Pierre Hadot
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Pierre Hadot
nicações e artigos de Pierre Hadot, entre eles aqueles dedicados a Michel Foucault.
O trabalho de tradução se sucedeu em consonância à elaboração de notas nas quais
indicamos os excertos referenciados por Pierre Hadot no decorrer desta importante
comunicação, apresentada em um encontro internacional sobre a filosofia de Michel
Foucault no ano de 1988. Ademais, tendo em vista a recente publicação da edição
brasileira da obra Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga, apontamos e discutimos
as diferenças de opção no que concerne a nossa versão e à tradução de Flavio Fonte-
nelle Loque e Loraine Oliveira (Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga, São Paulo:
É Realizações, 2014, pp. 291‑300).
a complex conversation that was unle- T. Muchail, São Paulo: Martins Fontes,
ashed in the course of Foucault’s rese- 2010, p. 194, p. 262, p. 347 et p. 375).
arches about Ancient philosophical as- Dès lors, nous avons choisi de traduire
ceticism. In several occasions, Foucault uniquement l’article Réflexions sur la
referred his own investigations to Pier- notion de « culture de soi » en raison de
re Hadot’ studies on spiritual exercises la richesse de la pensée philosophique
(vd.A Hermenêutica do Sujeito, trad. de et philologique que ce texte présente :
M. A. da Fonseca e S. T. Muchail, São Pierre Hadot y développe une relation
Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 194, p. intéressante entre les principaux auteurs
262, p. 347 and p. 375). Indeed, we have de la période gréco‑romaine et les analy-
chosen to translate only the communi- ses de Foucault sur le souci de soi [epi-
cation named “Refléxions sur la notion méleia heautoû], à travers l’élaboration
de ‘culture de soi’” [Reflections on the de deux critiques concernant le mode
idea of the “Cultivation of the self”] due par lequel Foucault a interprété la thé-
to its philosophical and philological ri- rapie des passions [therapeuein] et la
chness. Pierre Hadot developed in it an grandeur d’âme [megalopsychia] dans
interesting relationship between main la philosophie stoïcienne. Le livre Exer-
authors of the Hellenistic and Roman cices Spirituels et Philosophie Antique a
periods and Foucault’s analysis concer- d’abord été publié en 1981 puis réédité
ning the care of the self [epimeleia he- en 1987. L’édition utilisée dans cette re-
autou], through the elaboration of two cherche correspond à celle de 1993, ré-
criticisms regarding the way Foucault visée et augmentée avec des entretiens,
interpreted the therapy of passions [the- des interventions et des articles de Pier-
rapeuein] and the surpassing of the self re Hadot, dont certains consacrés à Mi-
[megalopsychia] in Stoic philosophy. chel Foucault. Le travail de traduction
The book Exercices Spirituels et Philo- a été réalisé à l’aide de notes dans les-
sophie Antique [Spiritual Exercises and quelles nous indiquons les extraits réfé-
Ancient Philosophy] was first published rencés par Pierre Hadot dans le cadre de
in 1981 and reissued in 1987. The edi- cet important article présenté lors d’une
tion used in this study corresponds to réunion internationale sur la philosophie
the year of 1993. This version was re- de Michel Foucault en 1988. En outre,
vised and increased with the addition en raison de la récente publication de
of some interviews, communications l’édition brésilienne des Exercices Spi-
and some of Pierre Hadot’s papers, in- rituels et Philosophie Antique, nous pré-
cluding those dedicated to Michel Fou- sentons et discutons les différences de
cault. The translation work has been traitement dans notre version et dans la
elaborated in accordance with the pre- traduction de Flavio Fontenelle Loque
paration of notes in which we indicate et Loraine Oliveira (Exercícios Espiri-
the excerpts referenced by Pierre Hadot tuais e Filosofia Antiga, São Paulo: É
during this important communication, Realizações, 2014, pp. 291‑300).
presented at an international meeting on
Michel Foucault’s philosophy, in 1988.
***
* Pierre Hadot, “Réflexions sur la notion de ‘culture de soi’”, in: Exercices spirituels
et philosophie antique (Paris: Albin Michel, 1993), 323-332.
isso: julgar de uma maneira objetiva de acordo com a razão interior19, agir de
acordo com a razão que é comum a todos os homens20, aceitar o destino que
nos é imposto pela razão cósmica.21 Para os estoicos, há somente uma única
razão e essa razão é o verdadeiro si do homem.22
Eu compreendo perfeitamente o motivo pelo qual Foucault suprimiu es-
ses aspectos, os quais ele conhecia bem. Sua descrição das práticas de si
(como, ademais, minha descrição dos exercícios espirituais) não concerne
somente a um estudo histórico, mas quer implicitamente oferecer ao homem
contemporâneo um modelo de vida (que Foucault chama de “estética da
existência”). Ora, segundo uma tendência quase geral do pensamento mo-
derno, tendência talvez mais instintiva do que refletida, as noções de “Ra-
zão Universal” e de “natureza universal” não têm mais hodiernamente muito
sentido. Era, portanto, útil colocá‑las entre parênteses.
Para o momento, digamos, portanto, que parece difícil, de um ponto de
vista histórico, admitir que a prática filosófica dos estoicos e dos platônicos
tenha sido somente uma relação a si, uma cultura de si, um prazer obtido em
si mesmo. O conteúdo psíquico desses exercícios me parece totalmente ou-
tro. O sentimento de pertença a um Todo me parece ser o elemento essencial:
pertença ao Todo da comunidade humana, pertença ao Todo cósmico. Sêneca
resume isso em quatro palavras: “Toti se inserens mundo” (“mergulhando
na totalidade do mundo”).23 Groethuysen, em sua admirável Antropologia
Filosófica [Anthropologie philosophique], reconheceu muito bem esse traço
fundamental.24 Ora, uma tal perspectiva cósmica transforma de uma maneira
radical o sentimento que se pode ter de si mesmo.
Curiosamente, Foucault fala pouco dos epicuristas. Isso é particularmen-
te muito inesperado, pois em certo sentido a ética epicurista é uma ética sem
norma, uma ética autônoma que não pode se fundar sobre a Natureza, produ-
to do acaso, uma ética, portanto, que pareceria concordar perfeitamente com
a mentalidade moderna. A razão desse silêncio se encontra talvez no fato
de que é muito difícil integrar o hedonismo epicurista ao esquema geral do
uso dos prazeres proposto por M. Foucault. Seja como for, também existem
práticas espirituais para os epicuristas, por exemplo, o exame de consciência.
Mas, como nós dissemos, estas práticas não se fundam sobre as normas da
Natureza e da Razão universal, visto que, para os epicuristas, a formação do
mundo é somente o resultado do acaso. E, entretanto, aqui ainda, essa práti-
ca espiritual não pode se definir apenas como uma cultura de si, como uma
simples relação de si a si, como um prazer que se encontraria em seu próprio
eu. O epicurista não tem medo de confessar que necessita de algo para além
de si mesmo para satisfazer seus desejos e encontrar seu prazer: a ele é ne-
cessário o alimento corporal, os prazeres do amor, mas também uma teoria
física do universo para suprimir o medo dos deuses e da morte. A ele é neces-
sário o convívio com os outros membros da escola epicurista para encontrar
Bibliografia**
** As obras aqui citadas correspondem as que são referenciadas pelo próprio Pierre
Hadot ao termo de sua comunicação. (Hadot, Exercices Spirituels, 332) As peças biblio-
gráficas articuladas no decorrer das investigações que transcorreram nossa tradução estão
listadas no fim deste trabalho.
Notas Críticas
1 No prefácio ao “Uso dos Prazeres”, Foucault explica que os livros de Pierre Hadot
foram extremamente importantes para o desenvolvimento de suas investigações em relação à
Antiguidade: “o perigo era também o de abordar documentos por mim mal conhecidos. Corria
o risco de submetê‑los, sem me dar conta, a formas de análise ou a modos de questionamento
que, vindos de outros lugares, não lhes convinham; os livros de P. Brown, os de P. Hadot e,
em várias ocasiões, seus pareceres e as conversações que mantivemos, me foram de grande
valia.” [Michel Foucault, A História da Sexualidade 2: O uso dos prazeres, trad. de Maria
Thereza da Costa Albuquerque (São Paulo: Graal, 2012), 14]
2 Foucault faz referência ao livro de Hadot, Exercices Spirituels et Philosophie Antique,
Oliveira, este trecho do texto de Pierre Hadot aparece da seguinte forma: “Parece‑me, porém,
que a descrição que M. Foucault realiza do que eu havia denominado ‘exercícios espirituais’,
e que ele prefere chamar de ‘técnicas de si’, está demasiadamente centrada sobre o ‘si’ [soi]
ou, ao menos, sobre certa concepção do eu [soi].” (Loque e Oliveira, Exercícios Espirituais,
292) Como é possível perceber, os autores traduzem indistintamente “soi” por “si” e por
“eu”, isto é, eles não tornam explícita a diferença de uso, tanto gramatical quanto histórico
‑filosófico, entre o pronome reflexivo da terceira pessoa (soi), o pronome reflexivo da primeira
pessoa (moi) e o pronome pessoal (je). O mesmo acontece em outros momentos da tradução
de Flavio e Loraine, por exemplo: “‘A melhor parte de si’ é, portanto, finalmente, um eu [soi]
transcendente’.” (Loque e Oliveira, Exercícios Espirituais, 293) Por um lado, do ponto de vis-
ta gramatical, o termo em português que mais se aproxima ao francês “soi” consiste no “si”,
pronome reflexivo da terceira pessoa. Por outro lado, do ponto de vista histórico‑filosófico,
faz‑se importante ressaltar a distinção entre esses termos em virtude da especificidade que a
noção de “si” possui na Antiguidade. O “si” (soi) dos antigos exercícios de filosofia é muito
diferente do “eu” (je‑moi) unificado, completo e introspecto da modernidade filosófica. Em
“L’individu dans la cité”, Jean‑Pierre Vernant classifica três formas de indivíduo que percor-
rem a história da filosofia, dos antigos aos modernos. Vernant distingue entre o indivíduo, o
sujeito e o eu. O indivíduo corresponde à experiência do “si” nos grupos dos quais faz parte,
isto é, ao seu valor e papel nos diversos espaços sociais que ocupa. O sujeito diz respeito ao
nível de individualidade que se manifesta quando o “si” fala, em seu próprio nome, sobre
seu valor e papel nos diferentes enquadramentos comunitários dos quais participa. Por fim, a
experiência de individualidade articulada ao eu corresponde ao nascimento da intimidade, da
interioridade e da autenticidade de um “si” que deixa de se experimentar em relação ao mun-
do, e passa a experimentar o mundo em relação ao eu. Segundo Vernant, a Grécia clássica e
helenística não teve a experiência da intimidade ou do “eu”. Vernant compara esses três níveis
de individualidade a gêneros literários: “o indivíduo corresponderia à biografia, no sentido em
que, por oposição à narrativa épica ou histórica, a biografia se centra sobre a vida de uma per-
sonagem singular; ao sujeito corresponderia a autobiografia ou as Memórias quando o indiví-
duo conta, por si mesmo, sua própria carreira de vida; e ao eu corresponderiam as confissões
e os diários íntimos, onde a vida interior, a pessoa singular do sujeito, na sua complexidade e
sua riqueza psicológica, sua relativa incomunicabilidade, formam o conteúdo da escrita. Os
gregos, a partir da época clássica, conheceram certas formas da biografia e da autobiografia.
(...) não há, na Grécia clássica e helenística, nem as confissões e nem os diários íntimos – isso
é impensável – como também, observava G. Minsch e o confirma A. Momigliano, a caracteri-
zação do indivíduo na autobiografia grega ignora a ‘intimidade do eu’.” [Jean‑PierreVernant,
“L’individu dans la cité”, in: L’individu, la mort, l’amour: soi‑même et l’autre en Grèce an-
cienne (Paris: Gallimard, 2011), 216] Ademais, para Foucault, a categoria de indivíduo é
frequentemente invocada, em diferentes épocas, para explicar fenômenos bastante diversos:
“de fato, convém distinguir três coisas: a atitude individualista, caracterizada pelo valor ab-
soluto que se atribui ao indivíduo em sua singularidade e pelo grau de independência que lhe
é atribuído em relação ao grupo ao qual ele pertence ou às instituições das quais ele depende;
a valorização da vida privada, ou seja, a importância reconhecida às relações familiares, às
formas de atividade doméstica e ao campo dos interesses patrimoniais; e, finalmente, a inten-
sidade das relações consigo, isto é, das formas nas quais se é chamado a se tomar a si próprio
como objeto de conhecimento e campo de ação para transformar‑se, corrigir‑se, purificar‑se,
e promover a própria salvação.” (Foucault, A História da Sexualidade 3, 48) A partir dessas
considerações, talvez seja possível afirmar, como explica Vernant, ao citar a fórmula de Gro-
ethuysen, que o “si” da antiguidade clássica e helenística apreende a si mesmo como um ele
e não como um eu. (Vernant, “L’individu”, 226‑227) De acordo com Vernant, “a existência é
primeira em relação à consciência de existir. Como comumente se nota, o cogito ergo sum, ‘eu
penso logo existo’, não tem nenhum sentido para um grego.” [Vernant, “L’individu”, 225; Cf.
também Arnold Davidson, “Ethics as Ascetics: Foucault, the History of Ethics, and Ancient
Thought”, in: The Cambridge Companion to Foucault, ed. por Gary Gutting (Cambridge:
Cambridge University Press, 2006), 134‑137] Sendo assim, optamos por traduzir, em todos os
momentos, o pronome “soi” por “si” e o pronome “je” ou o pronome “moi” por “eu”.
5 Foucault, A História da Sexualidade 3, p.71.
6 “Só atinge o ponto supremo quem sabe em que consiste a verdadeira satisfação, quem
não deixa a sua felicidade ao arbítrio dos outros. (…) O que tens a fazer antes de mais, caro
Lucílio, é aprender a ser alegre (gaudere). Estás a pensar que eu te quero privar de muitos
prazeres (voluptates) ao afastar de ti os bens fortuitos, ao entender que devemos subtrair‑nos
ao doce canto das sereias que é a esperança? Pelo contrário, o meu desejo é que nunca te falte
alegria (laetitiam).” [Séneca, Cartas a Lucílio, trad. De J.A. Segurado e Campos (Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 2004), Carta 23, 84; Seneca, Annaei Senecae ad Lucilium Epistulae
Morales, ed. por L. D. Reynolds (Oxford: Oxford University Press, 1965), Ep.23,§2 e §3]
7 “Esse prazer para o qual Sêneca emprega em geral os termos gaudium ou laetitia é um
estado que não é acompanhado nem seguido por nenhuma perturbação no corpo e na alma;
ele é definido pelo fato de não ser provocado por nada que seja independente de nós e que,
por conseguinte, escapa ao nosso poder; ele nasce de nós e em nós mesmos. Ele é igualmente
caracterizado pelo fato de que não conhece gradação nem mudança, mas que é dado ‘por intei-
ro’, e uma vez dado, nenhum acontecimento exterior pode atingi‑lo. E nisso, essa espécie de
prazer pode opor‑se, traço por traço, ao que é designado pelo termo de voluptas; este designa
um prazer cuja origem deve ser colocada fora de nós e nos objetos cuja presença não nos é
assegurada.” (Foucault, A História da Sexualidade 3, 71)
8 Na obra O que é Filosofia antiga?, na seção dedicada a Plotino e Porfírio, Pierre Hadot
cita uma passagem das Eneades [VI, 7.34], na qual Plotino distingue entre o prazer e a alegria:
‘“(...) quando a alma não tem mais consciência de seu corpo, nem que se encontra neste corpo
e ela não diz mais que é diferente Dele: homem ou animal ou ser ou tudo (pois olhar as coisas
é, de alguma maneira, fazer diferenças, e, por outro lado, ela não tem prazer em voltar‑se para
elas nem em desejá‑las; mas, depois de tê‑Lo buscado, quando Ele está presente, vai a Seu
encontro e é para Ele que ela olha em vez de para si mesma, e ela não tem prazer em ver quem
é, ela que olha) porquanto certamente ela não trocaria nenhuma de todas as outras coisas por
Ele, mesmo se lhe fosse dado o céu inteiro, pois sabe que nada há de mais precioso e melhor
que Ele [...] (pois lá engano nenhum é possível: encontrar‑se‑á onde mais verdadeiramente
o verdadeiro? E o que ela diz, portanto: ‘É Ele!’, é mais tarde que o pronuncia, agora é seu
silêncio que o diz, e, plena de alegria (eupathoûsa), não se engana, precisamente porque plena
de alegria (eupatheî); e nada diz, não por causa do prazer (gargalizoménou) que lhe acomete
o corpo, mas porque ela se transformou naquilo que era outrora quando era feliz) [...] Se acon-
tecesse que todas as coisas ao seu redor fossem destruídas, seria isso mesmo o que ela haveria
de querer, contanto somente que estivesse com Ele: tão grande é a alegria (eupatheías) que ela
alcançou”.’ [Pierre Hadot, O que é Filosofia antiga?, trad. de Dion Davi Macedo (São Paulo:
Edições Loyola, 2011), 232‑233]
9 “Os filósofos que especularam sobre o significado da vida e sobre o destino do homem
não observaram bem que a própria natureza se deu ao trabalho de informar‑nos sobre isso:
avisa‑nos por meio de um sinal preciso que nossa destinação foi alcançada. Esse sinal é a
alegria. Estou falando da alegria, não do prazer. O prazer não passa de um artifício imagina-
do pela natureza para obter do ser vivo a conservação da vida; não indica a direção em que
a vida é lançada. Mas a alegria sempre anuncia que a vida venceu, que ganhou terreno, que
conquistou uma vitória: toda grande alegria tem um toque triunfal. Ora, se levarmos em conta
essa indicação e seguirmos essa nova linha de fatos, veremos que em toda parte há alegria,
há criação: quanto mais rica é a criação, mais profunda é a alegria. A mãe que contempla seu
filho, alegra‑se, porque tem consciência de havê‑lo criado, física e moralmente. Acaso o co-
merciante que desenvolve seus negócios, o fabricante que vê sua indústria prosperar, alegra
‑se por causa do dinheiro que ganha e da notoriedade que adquire? Evidentemente riqueza e
consideração contam muito na satisfação que sente, porém lhe trazem mais prazeres do que
alegria; a alegria verdadeira que ele desfruta é o sentimento de ter montado uma empresa que
funciona, de ter dado a vida a algo. Pensem nas alegrias excepcionais, a do artista que realizou
seu pensamento, a do cientista que descobriu ou inventou. Ouvirão dizer que esses homens
trabalham pela glória e obtêm suas alegrias mais vivas da admiração que inspiram. Profundo
erro! O homem dá importância aos elogios e às honrarias na exata medida em que não está
seguro de ter obtido êxito. No fundo da vaidade há modéstia. É para tranquilizar‑se que ele
busca aprovação, e é para sustentar a vitalidade talvez insuficiente de sua obra que gostaria de
cercá‑la da calorosa admiração dos homens, como se coloca em estufa uma criança nascida
prematuramente. Mas quem estiver seguro, absolutamente seguro de que produziu uma obra
viável e duradoura, esse não tem mais o que fazer do elogio e sente‑se acima da glória, porque
é criador, porque sabe disso e porque a alegria que sente é uma alegria divina. Portanto, se
em todos os âmbitos o triunfo da vida é a criação, não devemos supor que a vida humana tem
sua razão de ser em uma criação que, diferentemente daquela do artista e do cientista, pode
prosseguir a todo momento em todos os homens: a criação de si por si, o engrandecimento
da personalidade por um esforço que extrai muito do pouco, alguma coisa do nada e aumenta
incessantemente a riqueza que havia no mundo?” [Henri Bergson, A energia espiritual, trad.
de Rosemary Costhek Abílio (São Paulo: Martins Fontes, 2009), 22‑23]
10 Acerca da influência histórico‑filosófica de Kant sobre Pierre Hadot: Cf. Hadot, Exer-
cices Spirituels, 374; Hadot, Exercices Spirituels, 389; Pierre Hadot, “De Socrate à Foucault”,
in: Philosophie comme manière de vivre, (Paris: Albin Michel, 2001), 217; Pierre Hadot, “La
Philosophie comme éducation des adultes”, in: La voix et la vertu : variétés du perfectionisme
moral,org. por Sandra Laugier (Paris : Presses Universitaires de France, 2010), 439‑447.
11 Para os estoicos, os animais são providos de impulsos perceptivos, os quais concer-
nem à alma irracional. Os homens são providos de impulsos racionais, os quais nada mais são
do que julgamentos práticos. Sendo assim, os homens que não aperfeiçoam a alma racional
agem de acordo com impulsos que prescrevem o bem e o mal moral a coisas que, por si mes-
mas, são indiferentes, isto é, nem boas e nem más. Estes impulsos racionais estultos consistem
nas paixões ou maus sentimentos (pátheia). O filósofo, aquele que se engaja no desenvolvi-
mento da alma, deixa de ter paixões ou maus sentimentos e passa a ter impulsos racionais
que estão de acordo com a natureza, nesse sentido, bons sentimentos (eupátheia). O prazer
‑ quando decorre da crença de que algo indiferente por natureza, como a riqueza, é bom em si
mesmo – é superficial e inconstante, ou seja, logo conduz à frustração ou ao tédio. No entanto,
a alegria ‑ que se segue da apropriada atribuição do bem à virtude moral ‑ diz respeito a uma
satisfação profunda e constante, ou seja, ela é a boa versão do prazer. Além disso, é provável
que a diferença entre prazer (hèdonè) e alegria (khára) remonte à primeira fase do estoicismo,
desenvolvida por Zenão e Crisipo, persistindo na segunda fase, a era de Panécio e Posidônio,
e na terceira fase, representada pelos estoicos romanos, Sêneca, Musonio Rufus, Epicteto,
Hierocles e Marco Aurélio. [Ted Brennan, “Psicologia moral estoica”, in: Os Estoicos, trad.
de Paulo Fernando Tadeu Ferreira e Raul Fiker (São Paulo: Odysseus, 2006), 299]
12 “Peço‑te, Lucílio amigo, age da única maneira possível para obteres a felicidade: repe-
le e despreza aqueles bens que só brilham por fora, que dependem das promessas de fulano ou
das benesses de cicrano. Faz do verdadeiro bem o teu alvo, busca a alegria dentro de ti. Que
significa ‘dentro de ti’? Significa que a felicidade se origina em ti mesmo, na melhor parte de
ti mesmo.” (Séneca, Cartas, Carta 23, 85; Seneca, Annaei Senecae, Ep.23,§6)
13 “Se queres saber em que consiste e donde provém o verdadeiro bem, vou dizer‑to:
consiste na boa consciência, nos propósitos honestos, nas ações justas, no desprezo pelos bens
fortuitos, no ritmo tranquilo e constante de uma vida que trilha um único caminho.” (Séneca,
Cartas, Carta 23, 86; Seneca, Annaei Senecae, Ep. 23,§7)
14 “És um animal racional. Qual é então o teu bem próprio? A perfeita razão.” (Séneca,
15 “Na realidade a razão é comum aos deuses e aos homens; naqueles atingiu a perfeição,
nestes é suscetível de a atingir.” (Séneca, Cartas, Carta 92, 470; Seneca, Annaei Senecae,
Ep.92,§27)
16 “‘A melhor parte de si’ é, portanto, finalmente, um eu [soi] transcendente’.” (Loque e
que “há um tema altamente estruturado que integra logo no início algo que, pareceria, Epic-
teto é o único na tradição estoica, além de Marco Aurélio, a distinguir: as três atividades ou
operações da alma. Há o desejo em acumular aquilo que é bom, o impulso a agir e o julgamen-
to acerca do valor das coisas.” [Pierre Hadot, The Inner Citadel: The meditations of Marcus
Aurelius, trad. de Michael Chase (Cambridge: Harvard University Press, 2001a), 83]
19 “Em todo lugar e continuamente depende de você aproveitar, em concordância com
o divino, o acontecimento presente, conduzir‑se de forma justa em relação aos homens pre-
sentes e dar atenção à impressão presente a fim de que algo incompreensível não se insinue a
você.” [Πανταχοῦ καὶ διηνεκῶς ἐπὶ σοί ἐστι καὶ τῇ παρούσῃ συμβάσει θεοσεβῶς εὐαρεστεῖν
καὶ τοῖς παροῦσιν ἀνθρώποις κατὰ δικαιοσύνην προσφέρεσθαι καὶ τῇ παρούσῃ φαντασίᾳ
ἐμφιλοτεχνεῖν, ἵνα μή τι ἀκατάληπτον παρεισρυῇ] [Marcus Aurelius, The Meditations of
Marcus Aurelius, ed. bilíngue por C.R. Haines (Cambridge: Harvard University Press, 1930)
Livro 7, §54, 186]
20 “Faz‑se suficiente ter um julgamento compreensivo no presente, agir em virtude da
nal segue seu caminho quando não assente a impressões falsas ou duvidosas, quando se
orienta somente por impulsos que visam ao bem comum, quando se atém somente aos de-
sejos e aversões que dependem de nós, acatando tudo o que a natureza comum nos atribui.
Pois, nossa natureza é parte da natureza comum, assim como a natureza da folha é parte da
natureza da planta.” [Ἀρκεῖται πᾶσα φύσις ἑαυτῇ εὐοδούσῃ, φύσις δὲ λογικὴ εὐοδεῖ ἐν
μὲν φαντασίαις μήτε ψευδεῖ μήτε ἀδήλῳ συγκατατιθεμένη, τὰς ὁρμὰς δὲ ἐπὶ τὰ κοινωνικὰ
ἔργα μόνα ἀπευθύνουσα, τὰς ὀρέξεις δὲ καὶ τὰς ἐκκλίσεις τῶν ἐφ’ ἡμῖν μόνων περιποιουμένη,
τὸ δὲ ὑπὸ τῆς κοινῆς φύσεως ἀπονεμόμενον πᾶν ἀσπαζομένη· μέρος γὰρ αὐτῆς ἐστιν ὡς ἡ
τοῦ φύλλου φύσις τῆς τοῦ φυτοῦ φύσεως] (Marcus Aurelius, The Meditations, Livro 8, §7,
202)
22 “Para os estoicos, há apenas uma razão e essa razão é o verdadeiro eu [soi] do ho-
natureza e não com a opinião comum, que se insere na totalidade do universo (toti se inse-
rens mundo) e observa contemplativamente todos os seus movimentos, que dá igual atenção
ao pensamento e à acção, uma alma grande e enérgica, invicta por igual na desventura e na
felicidade e em caso algum se submetendo à fortuna, uma alma situada acima de todas as con-
tingências e eventualidades, uma alma bela e equilibrada em doçura e energia, uma alma sã,
íntegra, imperturbável, intrépida, uma alma que força alguma pode vergar, que circunstância
alguma pode envaidecer ou deprimir – uma tal alma é a própria personificação da virtude.”
(Séneca, Cartas, Carta 66, 238; Seneca, Annaei Senecae, Ep.66, §6)
24 “O sábio vive com consciência do mundo. O mundo está sempre presente perante ele.
Esta consciência do mundo determina sua conduta na vida. [...] Esta consciência do mundo é
uma coisa própria ao sábio. Somente o sábio não cessa de ter o todo constantemente presente
no espírito, não esquece jamais do mundo, pensa e age em relação ao cosmos. Esta consciên-
cia dá a sua vida firmeza e constância ao mesmo tempo. Pelo contrário, o homem que não é
um sábio não tem consciência do mundo e não atinge uma concepção universal das coisas e da
sua própria vida. [...] O sábio faz parte do mundo, ele é cósmico. Ele não se deixa afastar do
mundo, não se deixa desprender da engrenagem do mundo. [...] O sábio contempla o mundo
e se sente unido a ele. As dissonâncias criadas pela paixão já não existem mais para ele. [...]
Vive em conformidade com a norma do mundo e permanece na normalidade universal. [...]
A consciência que ele tem de seu caráter e a que ele tem do mundo encontram, nesse caso,
uma unidade última.” [Bernard Groethuysen, Anthropologie Philosophique (Paris: Gallimard,
2012), 79, 80 e 81]
25 “Logo que a tua doutrina [a de Epicuro], obra de um gênio divino, começa a proclamar
Escrita de si”, corresponde a Vita Antonii [ΒΙΟΣ ΚΑΙ ΠΟΛΙΤΕΙΑ ΤΟΥ ΟΣΙΟΥ ΑΝΤΩΝΙΟΥ],
de Atanásio de Alexandria. Esta obra consiste em uma carta na qual Atanásio relata a vida
do monge Antônio a outros discípulos que pretendem se dedicar ao celibato. De acordo com
Pedro Ipiranga Júnior: “escrever a vida e a conduta de Antônio, o eremita, assinala como sua
finalidade, a princípio, fornecer uma narrativa paradigmática aos correspondentes, os quais
querem ter um modelo de que possam fazer mímesis em sua prática ascética.” [Pedro Ipiran-
ga Júnior, “Imagens do outro como um si mesmo: drama e narrativa nos relatos biográficos
de Luciano de Samósata e na ‘Vita Antonii’ de Atanásio” (Tese de Doutorado em Literatura
Comparada apresentada à Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais,
2006), 247]
28 “Quando se aborda os comentários de Aristóteles e Platão redigidos pelos neoplatôni-
cos, tem‑se, de início, a impressão de que a redação dos neoplatônicos é conduzida unicamen-
te por preocupações doutrinais e exegéticas. Mas, por meio de um exame profundo, percebe
‑se que o método de exegese e seu conteúdo doutrinal correspondem, em cada comentário,
a função de nível espiritual do público ao qual o comentário se direciona. (...) Isso não quer
dizer que havia variação doutrinal de acordo com o comentador, mas que as necessidades dos
discípulos eram diferentes.” (Hadot, Exercices Spirituels, 69)
29 “‘Mas, para assegurar o não pecar, que se tenha também esta vigilância: cada um,
como se estivesse para revelar aos outros (ὡς μέλλοντες ἀλλήλοις ἀπαγγέλλειν), assinalemos
(σημειώμεθα) as ações e os movimentos da alma e os grafemos (γράφωμεν). E estejais segu-
ros de que, certamente, envergonhando‑se de se tornarem tais coisas conhecidas, cessaremos
de pecar e, de toda forma, de ter no espírito algo de vil. Pois quem, ao pecar, quer ser visto?
Quem, tendo pecado, não mente de preferência, querendo passar despercebido? Assim como,
então, vendo uns aos outros, não nos entregaríamos à fornicação, assim também, se nós es-
crevermos, como se revelássemos aos outros o que pensamos e imaginamos, muito bem nos
guardaremos dos pensamentos sujos, envergonhando‑nos de serem conhecidos.” [Ipiranga
Júnior, trad. Atanásio, Vitta Antonii, (Tese de Doutorado em Literatura Comparada apresenta-
da à Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, 2006), 262; Athanasios,
Bios kaì Politeía Antoníou Tou Megálou (Thessalonike: Ekdotikòs Oíkos Bas. Regopoúlou,
2000), §55, 112]
30 “Por mais pessoais que sejam, esses hypomnèmata não devem, entretanto, ser com-
preendidos como diários íntimos, ou como aquelas narrativas de experiência espiritual (tenta-
ções, lutas, derrotas e vitórias) que podem ser encontradas na literatura do cristianismo tardio.
Eles não constituem uma ‘narrativa de si mesmo’; eles não têm por objetivo trazer à luz do dia
os arcana conscientiae cuja confissão – oral ou escrita – tem valor purificador. O movimento
que eles procuram efetuar é inverso a esse: não se trata de possuir o indizível, nem de revelar o
indizível, nem de dizer o não dito, mas de captar, ao contrário, o já‑ dito; resumir o que se pôde
ouvir ou ler, isso por um fim que nada mais é do que a constituição de si.” [Michel Foucault,
Dits et Écrits II. 1976‑1988 (Paris: Gallimard, 2001), 1238]
31 Focault, Dits et Écrits II, 1239.
32 Foucault, Dits et Écrits II, 1240.
33 No artigo publicado em 1986, na revista Diogène, Hadot pretende explorar a antiga
experiência do tempo que se exprime no Fausto de Goethe. De acordo com Hadot, Fausto
faz eco aos seguintes motes: “‘Somente o presente é nossa felicidade’ e ‘Existir é um dever’.
Goethe falou em suas Entretiens avec Falk de certos seres que, por suas tendências inatas,
são metade estoicos e metade epicuristas (...). Pode‑se dizer que o próprio Goethe, no que
concerne à maneira de viver o presente, era ele também ‘metade estoico e metade epicurista’.
Ele desfrutava do momento presente como um epicurista e ele o desejava intensamente como
um estoico.” (Pierre Hadot, “Le Présent seul est notre bonheur”, Diogène (1986), nº133,75)
34 “No entanto, embora permita contrariar a dispersão da stultitia, a escrita dos hypom-
nèmata é também (e assim deve permanecer) uma prática regrada e voluntária da disparidade.
Ela é uma escolha de elementos heterogêneos.” (Foucault, Dits et Écrits II, 1240)
35 Foucault, Dits et Écrtis II, 1240.
36 Edson Passetti, em sua obra Ética dos Amigos: invenções libertárias da vida, cita
Alicia Páez acerca do ecletismo filosófico no período romano: “Páez afirma que ‘a filosofia
romana foi muito eclética: os romanos não aderiram a uma doutrina, tendiam a misturar fron-
teiras, a assimilar as diferenças. Não adotavam uma filosofia em sua totalidade, nem tampou-
co se interessavam pela coerência dos sistemas. O ecletismo característico da filosofia romana
conformada desde os fins da república (todas as escolas da antigüidade, as socráticas maio-
res e menores, estavam representadas em Roma) responderia, segundo alguns intérpretes, ao
caráter fundamentalmente prático desta filosofia: falta de espírito especulativo, interesse pelas
questões cosmológicas, físicas, lógicas com o predomínio do interesse pelos motores da ação.
Se falamos de ética e práticas sociais no caso dos estóicos, temos de assinalar que mesmo
sendo a escola dominante no mundo romano‑imperial, trata‑se de um estoicismo modifica-
do em relação ao antigo: pode‑se dizer que é um estoicismo eclético. Sêneca, por exemplo,
manifesta a influência de diversos autores, e por vezes parece admirar mais a Epicuro que os
próprios estóicos gregos’.” [Edson Passetti, Éticas dos Amigos: invenções libertárias da vida
(São Paulo: Imaginário, 2003), 51]
37 “A Academia, com os sucessores de Arquesilau, Carneada e Fílon de Larissa, evoluiu
na direção do probabilismo. (...) Essa tendência filosófica teve grande influência sobre a filo-
sofia moderna graças ao imenso sucesso, no Renascimento e nos tempos modernos, das obras
filosóficas de Cícero. Põe‑se em obra essa filosofia acadêmica que dá ao indivíduo a liberdade
de escolher, em cada caso concreto, a atitude que ele julgue a melhor conforme as circunstân-
cias, mesmo que inspirada pelo estoicismo ou pelo epicurismo ou outra filosofia, sem impor
‑lhe a priori uma conduta a seguir, ditada por princípios anteriormente fixados.” (Hadot, O
que é a Filosofia antiga?, p.207) Em Cícero encontramos a seguinte explicação sobre os
acadêmicos: “os Acadêmicos sustentam que existem diferenças entre coisas desse tipo tal
que algumas coisas parecem prováveis (probabilis) e outras o oposto.” (Cícero, “Academica
2.103‑4”, in: The Hellenistic Philosophers: greek and latin texts with notes and bibliography,
ed. bilíngue por de A. A. Long e D.N Sedley (Cambridge: Cambridge University Press, 2009.
2v), 69I] O adjetivo “probabilis”, utilizado por Cícero, traduz o termo grego “pithanós”, o
qual é bastante recorrente nas explicações de Diógenes Laércio acerca de Aristóteles e do
estoicismo. O adjetivo “pithanós” significa provável, plausível, crível ou persuasivo.
38 “(...) a escrita transforma a coisa vista ou ouvida ‘em forças e sangue’ (in vires, in san-
guinem). Ela se faz, no próprio escritor, um princípio de ação racional. Mas, inversamente, o
escritor constitui sua própria identidade através dessa recolecção das coisas ditas.” (Foucault,
Dits et Écrits II, 1241)
39 “não somente não se escreve si mesmo, como a escrita não constitui o eu [soi].” (Lo-
indivíduo, que ele chamou de estética da existência e que consiste, definitivamente, em fazer
com que sua existência seja bela. [...] Ao contrário, eu teria, sobretudo, tendência a ser menos
inteiramente ‘ético’ e mais sensível a noção que eu estudei através da Antiguidade, desde o
Timeu até o fim da Antiguidade, da física como exercício espiritual. Eu estou mais interessa-
do no aspecto cósmico da filosofia – talvez em virtude das experiências particulares que eu
havia tido, como aquela de um ‘sentimento oceânico’.” (HADOT, 1993, p.390‑391, tradução
nossa) Acerca da experiência do “sentimento oceânico”, Hadot relata: “eu fui invadido por
uma angústia ao mesmo tempo terrificante e deliciosa, provocada pelo sentimento da presença
do mundo, ou do Todo, e de mim nesse mundo. [...] Bem mais tarde, eu viria a descobrir que
essa tomada de consciência de minha imersão no mundo, essa impressão de pertença ao Todo,
corresponderia a isso que Romain Rolland chamou de ‘sentimento oceânico’.” (Hadot, La
Philosophie, 23‑24)
41 “(...) a interiorização é superação de si [dépassement de soi] e universalização.” (Lo-
que e Oliveira, Exercícios Espirituais, 298) Com efeito, o substantivo “dépassement” pode ser
traduzido por “superação”. Entretanto, decidimos traduzir a expressão “dépassement de soi”
por “ultrapassagem de si” porque, desse modo, harmonizamos o substantivo “dépassement”
com o verbo do qual ele é derivado, a saber, “dépasser”, traduzido em nossa versão por “ultra-
passar”. Além disso, sabe‑se que a noção “dépassement de soi” é extremamente relevante para
a filosofia de Pierre Hadot, já que através dela Hadot interpreta a característica mais importan-
te dos antigos exercícios espirituais, ou seja, a grandeza d’alma [megalopsuchia], prática que
se vincula ao exercício da morte, o qual permite que a essencialidade da identificação entre
o logos humano e o logos divino seja desvelada. (Hadot, Exercices Spirituels, 53‑54) Conce-
bemos, sendo assim, que o substantivo “ultrapassagem” é mais interessante para o contexto
dos estudos de Pierre Hadot e também para o desenvolvimento do seu diálogo com Michel
Foucault. A partir do conceito de “ultrapassagem”, torna‑se possível visualizar a platônica
relação entre o corpo e a alma no contexto da dedicação filosófica. Nesse caso, a ultrapassa-
gem é psíquica e, diferentemente do que o termo “superação” poderia denotar, diz respeito a
um árduo movimento da alma que se desenrola agonicamente. Os entraves entre o corpo e a
alma no platonismo não concernem simplesmente a uma superação moral, mas também a uma
mudança de estado físico e psíquico em vista do utópico deslocamento para um outro mundo.
[Fréderic Gros, “Situação do Curso”, in: Michel Foucault, A Coragem da Verdade, trad. de
Eduardo Brandão, (São Paulo: Martins Fontes, 2011a), 314‑315] Nesse sentido, o prefixo
“ultra” denotaria o movimento de transcendência que conduz à descoberta da natureza huma-
na, tal como Hadot pretende significar a partir da expressão “dépassement de soi”. Ademais,
talvez seja possível contrapor a concepção de Hadot acerca do “dépassement de soi” à forma
pela qual Foucault concebe a atitude filosófica (êthos filosófico). De acordo com Michel Fou-
cault, o êthos filosófico concerne a uma atitude limite capaz de desencadear o questionamento
sobre os limites do saber, do poder e das estruturas do sujeito: “se a questão kantiana era a de
saber quais limites o conhecimento deve renunciar a transgredir [franchir], parece‑me que
a questão crítica hodiernamente deve ser transformada em questão positiva: nisso que nos é
dado como universal, necessário, obrigatório, qual é a parte disto que é singular, contingente
e relativa a restrições arbitrárias. Em suma, trata‑se de transformar a crítica exercida na forma
da limitação necessária em uma crítica prática exercida na forma da transgressão possível
[franchissement possible].” (FOUCAULT, Dits et Écrits II, 1393) De modo geral, poderíamos
afirmar que a transgressão possível se opõe a ultrapassagem de si, na medida em que consiste
em um movimento imanente que não busca a dimensão utópica de um outro mundo, mas sim
a transformação deste mundo e desta vida em algo novo, inusitado e, até então, impossível. O
prefixo “trans”, diferentemente do prefixo “ultra”, expressaria o movimento imanente e hete-
rotópico da vida daquele que pretende se relacionar criativamente com este mundo.
42 Philippe Chevallier explica que Foucault se refere ao dandismo em dois momentos
a filosofia como exercício espiritual); depois para Kant, Hegel e Nietzsche (para o cuidado
do presente); e enfim Stirner, Baudelaire, Schopenhauer (para o cuidado de si). Genealogias
hesitantes, entretanto, pois a história foucaultiana marca no mesmo movimento as rupturas e
as difíceis retomadas.” (Philippe Chevallier, “O Baudelaire de Foucault: uma silhueta furtiva
e paradoxal”, Anuário de Literatura da UFSC (2013), trad. de Pedro de Souza, v.18, n.1, 194
e 195)
43 “A questão de se estamos contentes conosco não é absolutamente a primeira, mas sim
a de se estamos contentes com alguma coisa em geral. Se dissermos sim em um único instante,
então teremos dito sim não só a nós mesmos, mas à existência como um todo. Pois nada se
sustenta por si, nem em nós mesmos, nem nas coisas: e se só por uma única vez nossa alma
vibrou e soou de felicidade como uma corda de um instrumento, então todas as eternidades
foram necessárias para condicionar esse único acontecer – e toda eternidade foi abençoada,
libertada, justificada e assentida nesse único momento do nosso dizer sim.” [Friedrich Nietzs-
che, A Vontade de Poder, trad. de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de
Moraes (Rio de Janeiro: Contraponto, 2011) §1032, 496]
44 “(...) somente ao animal racional é dada a possibilidade de se conformar volunta-
riamente aos eventos, ao passo que todos os demais são forçados a isso” [(...)καὶ ὅτι μόνῳ
τῷ λογικῷ ζῴῳ δέδοται τὸ ἑκουσίως ἕπεσθαι τοῖς γινομένοις, τὸ δὲ ἕπεσθαι ψιλὸν πᾶσιν
ἀναγκαῖον] (Marcus Aurelius, The Meditations, Livro 10, §28, 280).
ATHANASIOS, O Megas. Bios kaì Politeía Antoníou Tou Megálou. IN: O MEGAS
ANTONIOS. Bios kaì Politeía upò M. Athanasiou, Diegéseis, Apophthégmata
kaì Epistolaì ek diaphorôn asketikôn Syllógon, Parainéseis es tês Philokalías ton
Ierôn Neptikôn. Metéphrasis, Skhólia kaì Paraterései upò Theo. D. Sakelaríou.
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FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade 2: O uso dos prazeres, trad. de
Maria Thereza da Costa Albuquerque. São Paulo: Graal, 2012.
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Thereza da Costa Albuquerque. São Paulo: Graal, 2011.