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Vicente Ferreira da Silva: a Redescoberta da Mitologia
Vicente Ferreira da Silva: a Redescoberta da Mitologia
Vicente Ferreira da Silva: a Redescoberta da Mitologia
E-book347 páginas7 horas

Vicente Ferreira da Silva: a Redescoberta da Mitologia

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Sobre este e-book

Vicente Ferreira da Silva é um filósofo brasileiro em plena descoberta. Desde que Tobias Barreto disse que "o Brasil não tem cabeça filosófica" e nossas academias parecem ter aceitado isso como verdade, pode soar estranho o termo filósofo "brasileiro". Mas, definitivamente, não é o que constatamos quando lemos a obra de Vicente Ferreira. Dotado de uma originalidade filosófica de causar espanto, somado a um estilo raro, que mistura densidade, consistência e beleza poética, o pensador paulista é, num país descrente de filósofos, filósofo na acepção própria. Este livro propõe-se a uma apresentação e reflexão do pensamento vicentiano, em específico, na sua última fase, onde se encontra a inédita tese sobre o significado aórgico dos mitos. Para tanto, traz, em sua primeira parte, uma "Introdução à Mitologia", no intuito de nos familiarizar com os estudos míticos; na sua segunda parte, cruza as principais bases teóricas do autor, os filósofos Martin Heidegger e Friedrich Schelling para, em sua parte final, deslindar sua "Filosofia da Mitologia como Arte-Religião", o que empenha o nome de Vicente como uma "Redescoberta da Mitologia" na filosofia contemporânea.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de nov. de 2021
ISBN9786525218489
Vicente Ferreira da Silva: a Redescoberta da Mitologia

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    Vicente Ferreira da Silva - Thiago Diniz

    CAPÍTULO I - UMA INTRODUÇÃO À MITOLOGIA (À GUISA DE VICENTE FERREIRA DA SILVA)

    Vicente Ferreira da Silva denuncia em nossos dias, uma alteração profunda da consciência religiosa⁹, ao tempo em que fala de uma fé nas origens que reaparece com tanta frequência em nosso horizonte espiritual. Em Vicente, as origens falam pela cifra do mito, numa atmosfera contínua de redescoberta. Pouco precisa para percebermos que é crescente na atualidade o interesse pelos temas mitológicos. Preconceitos que se mantinham até pouco tempo, e que visavam uma superação definitiva da mitologia, bem como uma ruptura linear e abrupta da passagem do mythos para o logos¹⁰, foram derrubados por uma nova leva de autores mais recentes. Neste carretel, temos o filósofo Martin Heidegger, os mitólogos Rudolf Otto, Joseph Campbell, Mircea Eliade, os helenistas Francis Cornford, Werner Jaeger, Pierre Vernant, os antropólogos Bronislaw Malinowski, Lévi-Strauss, dentre outros.

    Contudo, a redescoberta da mitologia na assinatura de Vicente Ferreira da Silva, perpassa por um esforço grandioso na direção de uma crítica à Tradição Filosófica Ocidental, o que requer, em primeira mão, uma compreensão introdutória da mitologia em seus aspectos gerais, metodológicos, recusativos e conceituais.

    MITO EM GERAL

    Tempo e Mito

    Houve um tempo em que o divino e o natural se fundiam. Vicente Ferreira da Silva chama de Povos Aurorais aqueles que viveram essa fase da história.¹¹ Mircea Eliade, por sua vez, a designa de Mitologias Primitivas.¹² Le Goff, de Idades Míticas.¹³ A vivência mítica propriamente, em suas diversas formas, recobriu um longo período da história: desde as Sociedades Arcaicas e Tradicionais, passando pela Antiguidade, até a vinda da era cristã. Se considerarmos os dados da antropologia baseados em pesquisas arqueológicas, os quinhões mais longínquos de nossas grandes civilizações variam de uma única mônada de inspiração mitológica pertencente ao estágio arcaico protoneolítico a partir de 9.000 a.C.¹⁴ Para citar o exemplo grego, Pierre Vernant fala que os deuses gregos tiveram uma vida longa, aproximadamente dois milênios: desde o século XV a.C. até o século IV da era cristã.¹⁵ Entretanto, hoje, remanescem sociedades onde os mitos ainda estão vivos¹⁶, isto é, como a única e absoluta forma de realidade.¹⁷

    Este tempo mítico possui dupla significação. Quando lançamos a ele o nosso olhar, amparado na maior parte das vezes pelos escritos que substituíram o modo como os mitos eram veiculados originalmente, a saber, pela tradição oral, vemo-lo com nossa mentalidade historiográfica, ou seja, dizemos que esse tempo que cobre as Sociedades Arcaicas e a Antiguidade, denominado Tempo mítico, aconteceu na história, correspondendo assim a um Período Histórico. Porém, não era assim que as sociedades primitivas concebiam o tempo. Os mitos narram os acontecimentos dos Entes Sobrenaturais que ocorreram fora do tempo histórico ou cronológico. No ato da narrativa, através dos ritos, o homem mítico ingressa num tempo primordial e sagrado; ele repete o que os Deuses fizeram ab origine (desde a origem), não no sentido de meramente imitá-los, mas, dos feitos divinos, tais e quais, tornarem a acontecer durante a vivência do ritual mítico. Nesta outra forma o Tempo mítico, que entendemos em termos modernos como um Período Histórico, no âmbito do homem das Sociedades Arcaicas, é um Tempo a-Histórico, primordial e sagrado.¹⁸

    Por conseguinte, a natureza não-histórica dos eventos sagrados não os torna menos reais, pelo contrário, um aspecto característico do mito, tal como era compreendido nas primeiras sociedades, é de "História considerada absolutamente verdadeira (porque se refere à realidade)".¹⁹

    — • —

    Vicente Ferreira da Silva contempla, ao seu modo, este tempo sagrado e primordial descrito por Eliade, no qual os homens das sociedades primitivas estavam imersos. Num de seus opúsculos, Vicente Ferreira fala do tempo dos sonhos²⁰, um tempo no qual surgiram as coisas atuais, evocando mesmo a ideia do sonho noturno, do sono inconsciente, que se contrapõem à vigília consciente, projetando-se dessa metáfora para compreensões teogônicas do mundo.²¹ Vicente diz ter encontrado a expressão tempo do sonho em um trabalho sobre os aborígenes australianos, povos, portanto, que se classificam dentro do que chamou, em outro ensaio, de povos aurorais: "chamamos povos aurorais ou originários aqueles que viveram ou ainda vivem o mito como única absoluta forma de realidade".²² Recobrando, assim, o ângulo em que o homem primitivo via o tempo, o filósofo brasileiro evidencia sua compreensão de temporalidade mítica, de modo semelhante ao grande mitólogo romeno Mircea Eliade, a partir da anterioridade trans-histórica mítica do tempo, conferindo, além do mais, ao Tempo Mítico, realidade forte e exuberante, isto é, verdade. ²³

    O Uso Negativo da Palavra Mito

    Não obstante, um exame do uso cotidiano da palavra mito, isto é, da ideia imediata que o termo assume na contemporaneidade, revela-nos um sentido nada compatível àquele Tempo. Fábula, invenção, ficção ou mentira, falsificação intencional, ilusão²⁴ representam o repertório de termos pejorativos em que o mito é tomado usualmente.²⁵ Certamente, não estamos mais dentro daquele quadro original em que os mitos nasceram e continuam vivos. Se o mito é, pois, uma sinonímia de mentira e ficção, sua apropriação hodierna denuncia um clima de desmitificação. O que explica esta contraimagem? Qual o motivo desta incidência negativa do vocábulo mito?

    Mircea Eliade, por seu turno, coloca o problema do uso negativo do mito em raízes mais remotas, a saber, nos gregos e, posteriormente, no cristianismo. No signo do logos, os gregos, a começar por Xenófanes, foram despojando progressivamente o mythos de seu sentido religioso. O cristianismo, mais recentemente, toma por ‘ilusão’ ou ‘falsidade’ tudo que não fosse iluminado pelo Novo e pelo Velho Testamento.²⁶

    Basta um exame no interior das comunidades tradicionais para perceber que o homem mítico não toma seus mitos por fábulas. Eles distinguem histórias verdadeiras de histórias falsas. As verdadeiras se contêm no sagrado, nos Entes Sobrenaturais, e narram a origem do mundo (cosmogonia); já as falsas se ligam a contos profanos, atendo-se a heróis e animais. Os mitos não são narrados indiferentemente: em qualquer hora, lugar ou por qualquer indivíduo; pelo contrário, são recitados durante um lapso de tempo sagrado, em um lugar preparado, e somente por indivíduos iniciados. Enquanto as fábulas, as histórias falsas, podem ser contadas em qualquer parte, momento e por todos os membros da comunidade. Portanto, os Mitos Primitivos lidam com histórias verdadeiras e reais.²⁷

    — • —

    Um vislumbre desta questão referente à perda de veracidade dos mitos pode ser muito bem contemplado na ótica de Vicente Ferreira da Silva através de sua absorção hölderlineana da ideia de Noite dos deuses (Gottesnascht). O contato inicial de Vicente com o Poeta alemão Hölderlin se dá mediante Heidegger, especialmente na ideia de Gottesnascht que compreende toda a civilização moderna, com sua construtividade técnica e material, negadora do mito e de seus valores de ordem divino, nada mais do que o resultado do próprio afastamento dos deuses que se ocultaram dos homens. Quando os deuses se afastam, permanece a era da Noite, por outro lado, quando os deuses começam uma nova manifestação, raia a era do Dia.²⁸ A concepção ocidental desmistificadora do mito em sua típica recusa não é a priori um movimento causado pelos homens, mas o contrário, os homens são abandonados pelos deuses à fúria da privação. A ideia aqui, sem esgotar o assunto nesse ínterim, é que a recusa dos mitos na malha histórica ocidental não é uma derrocada dos deuses, mas o índice do total controle que possuem sobre a história.

    Evidenciamos, assim, nas indicações de Constança e Eliade, bem como na de Vicente Ferreira, que o sentido usual, negativo ou pejorativo da palavra mythos denota, isto sim, a presença de uma mentalidade ou momento histórico motivador para que o mito se tornasse contemporaneamente uma ficção.

    Os Grandes Temas da Mitologia

    Remetendo-nos, agora, às grandes temáticas mitológicas, comecemos por Juan Antonio Estrada que aponta: as cosmogonias, as antropgonias e as teogonias;²⁹ colocadas por ele como sínteses globais, comuns a diversas tradições culturais.³⁰ Não muito diferente do que assegura Estrada, o historiador Jacques Le Goff nos apresenta o Mito da Idade de Ouro como sendo este grande tema presente na maior parte das religiões.³¹

    As três gonias trazidas por Estrada referem-se à orientação contínua do mito, em todas as partes, pela "origem" e sentido do cosmo, dois elementos que formam uma unidade: já no mito, misturado com o assombro e a admiração ante o que existe, se recolhe a pergunta do homem pela origem do mundo que está conectada com a do sentido do cosmo, do qual faz parte o homem.³²

    Le Goff vê a Idade de Ouro assim: uma idade mítica feliz, senão perfeita, no início do universo [...]. Por vezes [...] no fim dos tempos. Ele a descreve a começar pelas Sociedades Primitivas, seguindo pela Antiguidade Greco-Romana, depois pelas Três Grandes Religiões Monoteístas – cobrindo a Antiguidade e a Idade Média –, chegando por fim ao Renascimento.³³ A título de ilustração, selecionamos apenas dois esporádicos casos comentados por Le Goff: os índios Guarani na América do Sul, representantes das Sociedades Primitivas, acreditavam numa Terra sem males, Terra da imortalidade e do repouso eterno, localizada no outro lado do Oceano ou no centro da terra, só quem a encontrasse seria poupado de uma catástrofe final; e entre os gregos, referência à Antiguidade, no Mito das Quatros Idades narrado por Hesíodo, a Idade de Ouro, da qual se empresta o termo como metáfora para essa idade de felicidade primitiva: trata-se da primeira raça de homens mortais que viviam como deuses, não envelheciam, eram rodeados de inúmeros bens, estavam longe de todo mal e, quando morriam, era como se dormissem um sono.³⁴

    — • —

    O tema da origem é o grande tema mitológico de Vicente. Entretanto, a tríplice gonias – a dos deuses, a do cosmo e a dos homens – não constitui simplesmente, para o filósofo paulistano, apenas um elemento comum entre as diversas tradições míticas, como nos sugeriu Juan Antonio Estrada, mais do que isso, é o ponto de partida de toda sua filosofia da religião. Contudo, a investidura de Vicente na compreensão interpretativa da teogonia, cosmogonia e antropogonia apresenta um ineditismo no assunto. A tradição mitóloga costuma ver a cosmogonia como um ponto único, originante e linear, Vicente Ferreira, por sua vez, a vê como um processo de criação dentro de outras criações de mundos e épocas. Estamos, pois, diante daquilo que podemos chamar no pensamento vicentiano de pluralidade de mundos. Perante certas cosmogonias existem outras esboçadas com mais anterioridade. Tal visão gônica nos lança para uma concepção cíclica de tempo que nos permite pensar sobre o outro tema comum apontado por Le Goff: o Mito da idade de ouro. A atinência à origem não significa um voltar ao passado, sobre isso Vicente nos diz: A volta às origens seria um pensar intempestivo ou extemporâneo, uma superação do passado em vista de um passado muito mais atual do que qualquer presente.³⁵ Se houver uma Idade de Ouro admitida no pensador paulista, certamente, ela não traz consigo a ideia de um passado fixo; sua ideia cíclica de tempo é inspirada na concepção do eterno retorno nietzscheano, onde origem e futuro em algum instante coincidirão.³⁶

    A Perdurabilidade dos Mitos

    Outro ponto relevante acerca dos Mitos é a sua perdurabilidade ante os percalços históricos da desmistificação. Os dois elementos de referência de globalidade da tradição mitológica, já constados – origem e significado –, são os responsáveis pela perduração do mito para além de sua época criada. Mesmo diante da exigência legítima de serem interpretados e criticados, o núcleo mítico das culturas nunca é abolido, pois resistem a uma superação plena; ele se encontra enraizado em níveis pré-reflexivos, fundamentando os sistemas axiológicos sociais a que servem de arquétipo. Persistiu e colaborou ao logos da filosofia nascente; subsistiu à ferrenha razão iluminista; acabou mitificando a modernidade, quando esta, buscando superar o mito, se serviu de uma lógica igualmente mítica (o mito do Estado, da Ciência e da própria Razão).³⁷ O mito, enfim, sobreviveu de certa forma até ao próprio mito, haja vista que as versões literárias dos mitos da tradição grega (Homero e Hesíodo) e Oriental (Egito, Babilônia e Israel) já representam uma cristalização cultural que se afasta da mentalidade primitiva.³⁸

    — • —

    Os mitos em V. F da Silva não simplesmente se perduram de modo transfigurados no interior da história, mais do que isso, eles são, não visão deste filósofo, o próprio princípio que rege o acontecer histórico: O mito condiciona a História, abrindo e inaugurando o mundo em que ela pode se desenvolver.³⁹ Daí porque os chama categoricamente de proto-histórico.⁴⁰ Vicente recapitula ousadamente os períodos da história a partir de eons mitológicos, configurando cada época do mundo pelo seu aspecto divino mais característico. Teríamos nessa revisão da história, por exemplo, uma fase antiquíssima em que os deuses ou Deus se manifestavam com características animais ou vegetais, depois, passar-se-ia para uma fase em que o divino tomaria feições humanas, que é o caso eônico do deus Dionísio, e assim por diante… Trataremos destas fases míticas da história à frente, em momentos diferentes deste livro.

    Por que Mitos?

    Em 1985, Bill Moyers abre a obra O Poder do Mito, de Joseph Campbell com uma composta pergunta que ainda hoje se reatualiza com tamanha prioridade: Por que mitos? Por que deveríamos importar nos com os mitos? O que eles têm a ver com minha vida? Fica-nos um trecho da entrevista entre Moyers e Campbell, com a resposta de Campbell, no ponto alto da resposta, como um belo testemunho da extemporaneidade do mito na vida humana:

    CAMPBELL: Dizem que o que todos procuramos é um sentido para a vida. Não penso que seja assim. Penso que o que estamos procurando é uma experiência de estar vivos, de modo que nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham ressonância no interior de nosso ser e de nossa realidade mais íntimos, de modo que realmente sintamos o enlevo de estar vivos. É disso que se trata, afinal, e é o que essas pistas nos ajudam a procurar, dentro de nós mesmos.

    MOYERS: Mitos são pistas?

    CAMPBELL: Mitos são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana.⁴¹

    — • —

    A assertiva de Campbell cumpriu-se dramaticamente na vida de Vicente Ferreira da Silva. Desde 1950, a julgar, em especial, por uma obra chamada "Sobre a Origem e o Fim do Mundo, assistimos a um despertar espiritual do filósofo brasileiro nas pistas oferecidas a ele pelos mitos. Nesta obra encontramos de modo embrionário as primeiras menções ao sentido do mito assumido definitivamente daí para frente por Vicente Ferreira. O filósofo brasileiro toma pela primeira vez consciência dos mitos como acepção mítico-religiosa"⁴² ou ainda experiência poético-religiosa⁴³, o amalgamento entre o campo artístico e o religioso, assinalando, ao mesmo tempo, de maneira inusitada, uma aproximação e um sutil distanciamento de uma de suas bases teóricas.⁴⁴

    MITO EM RECUSA

    A rejeição dos mitos será aqui tratada a partir do que consideramos as duas grandes expressões da recusa: uma, a que inaugura a crítica aos mitos, a saber, a filosofia grega, e outra, a que provém do cristianismo. Delimitaremos a primeira tocando no Pré-socrático Xenófanes, precursor da crítica, concentrando-nos imediatamente a seguir no Período Clássico com Platão e Aristóteles. A segunda perpassará inicialmente pelas escrituras sagradas por intermédio dos apóstolos Paulo e Pedro; em seguida, pelos Apologistas Cristãos Justino e Orígenes, respectivamente nos séculos II e III d.C.; e, por último, pelo filósofo Santo Agostinho às portas da Idade Média.

    Os Filósofos Gregos

    A aceitação dos mitos nunca foi estritamente um problema para o campo dos estudos mitológicos, porém o que se constitui verdadeiro problema investigativo, dado a raridade, é a sua recusa. O epicentro do hesitante fenômeno se deu entre os gregos:

    [...] a cultura grega foi a única a submeter o mito a uma longa e penetrante análise, da qual ele saiu radicalmente desmitificado. A ascensão do racionalismo jônico coincide com uma crítica cada vez mais corrosiva da mitologia clássica, tal qual é expressa nas obras de Homero e Hesíodo. Se em todas as línguas européias o vocábulo mito denota uma ficção, é porque os gregos proclamaram há vinte e cinco séculos.⁴⁵

    Em nenhuma parte daquelas épocas remotas, observamos o fluxo do mito ser negado com tamanha proporção como aconteceu entre os gregos, a começar de seus primeiros filósofos. Os Pré-Socráticos não mais reproduzem, segundo Eliade (1986), as atitudes dos deuses – as aventuras, as decisões arbitrárias, a conduta caprichosa, a injustiça e sua imoralidade. Os primeiros filósofos caminham cada vez mais na direção de uma nova visão da divindade. É nessa perspectiva, e tão somente nela, que reside o sentido de recusa empregado na relação mito/filosofia. Porque, por outro lado, a rejeição nunca é contra o mito em si, contra o pensamento mítico como um todo, pois, como sabemos, por intermédio de helenistas do porte de Jaeger, o que deveras ocorre é uma continuidade entre mito e filosofia, onde não só o mito se fazia presente na filosofia, como a filosofia já se encontrava de alguma forma presente no mito.⁴⁶

    Xenófanes

    Entrementes, essa crítica pré-socrática ao mito só assume explicitação mais de meio século depois de Tales (o primeiro filósofo), com Xenófanes. Como pronunciamos no subitem anterior, foi ele quem primeiro fez uma negação direta (e relativamente ampla) ao conteúdo do mito, rechaçando os aspectos de cunho (i)moral – como consta nos seguintes Fragmentos: Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses tudo quanto entre os homens é vergonhoso e censurável, roubos, adultérios e mentiras recíprocas (Fr.11) – e o de natureza antropomórfica: Mas os mortais imaginam que os deuses foram gerados que têm vestuário e fala e corpos iguais aos seus (Fr. 14). Xenófanes figura ao mesmo tempo a nova visão da deidade despontada no horizonte pré-socrático: Um só deus, o maior entre os deuses e os homens, em nada semelhante aos mortais, quer no corpo quer no pensamento (Fr. 23); Todo ele vê, todo ele pensa, e todo ele ouve (Fr. 24).⁴⁷ Portanto, a visão de um deus único ou uno, Xenófanes relega grande influência ao desenvolvimento do pensamento religioso grego posterior.

    Mais de um século depois, Platão e Aristóteles, no período áureo da filosofia grega, darão prosseguimento expandindo a crítica gestada por Xenófanes.⁴⁸ Entretanto, nos deparamos, por outro lado, com uma deflagrada necessidade do elemento mítico a subsistir e compor o pensamento filosófico destes grandes autores. A recuperação do mito por parte desses dois clássicos assumirá finalidades diversas.

    Platão

    Platão se apresentou mais implacável com os antigos mitos. De modo paradoxal, teceu elogios a Homero, o educador da Grécia, o maior dos poetas, e, não obstante, impôs um ritmo de regulação dos mitos que iria culminar na expulsão dos poetas da cidade idealizada por ele. Aliás, é tão somente na perspectiva de uma nova cidade almejada que consiste a singular crítica platônica aos mitos e seus poetas. A polêmica com os mitos ou os poetas é provocada no momento de se estabelecer o modelo de educação desta cidade. A princípio, Platão, no Livro II da República, pela boca de Sócrates, elege as fábulas admitindo certa precedência educacional do ensino mítico: Não compreendes – disse eu – que primeiro ensinamos fábulas as crianças? (377a). Porém, logo em seguida, diante da ameaça das narrativas míticas serem fabricadas ao acaso, incutindo na alma das crianças opiniões contrárias ao que se espera delas quando adultas (377b), o filósofo imediatamente conclui: Logo, devemos começar por vigiar os autores de fábulas, e seleccionar as que forem boas, e proscrever as más (377c).⁴⁹

    Depreendemos, pois, que, embora evocando o lugar educacional do mito, Platão não o faz mais na sua integralidade, pois os mitos, agora sob vigilância, passarão, num primeiro momento, por rigorosa seleção. São estabelecidas duas leis ou moldes pelos quais os poetas devem compor as suas fábulas: (1) Deus não é causa de tudo, mas só dos bens e (2) Deus é um ser simples incapaz de sair de sua própria forma (380c-d). O cerne da primeira lei é que Deus é essencialmente bom; certo disto, Platão inadmite que Homero ou outro poeta cometa erros absurdos sobre os deuses, do tipo, citado por ele, onde, em geral, Zeus é um dispensador aos homens tanto de bens quanto de males. Concernente à segunda lei, a suma é que a perfeição de Deus não permite a mutabilidade de seu ser, daí que Platão critica os impropérios dos mitos homéricos que descrevem os deuses disfarçados em feições e formas de viajantes estrangeiros, implicando num deus embusteiro, totalmente contrário à sua natureza simples e verdadeira.⁵⁰

    A preocupação de Platão em regulamentar seletivamente os mitos é de cunho político-moral: deuses que engendram o mal entre os homens e que vagueiam pela noite com formas variadas amedrontando as crianças, levando-as mais tarde a blasfemar, constituem-se em contraexemplos ao modelo de justiça da cidade.⁵¹

    Mas não bastava apenas vigiar e regulamentar as composições míticas dos poetas. A presença dos poetas representava um grande perigo para a cidade. Era necessário expulsá-los. Foi o que Platão fez no último livro da República, o Livro X: E assim temos desde já razão para não o recebermos [os poetas] numa cidade bem governada [...] (605b). O porquê dessa exclusão abrange uma boa discussão. Sem dúvida a elucidação dessa questão repousa na crítica platônica à mimese (imitação) poética, mas, de antemão, ressaltamos que não está relacionada com uma crítica à mimese em si mesma, mas à que é portada pelos poetas. Platão se refere à arte poética como uma imitação que está três pontos afastado da verdade. Lançando mão de exemplos, fala que no primeiro ponto se encontra a cama real, isto é, a Ideia de cama, Deus é o seu artífice natural; no segundo ponto está a imagem sensível, a cama executada pelo Marceneiro a partir da cama real; e no último, a ilustrar os Poetas, a cama feita pelo Pintor – uma imitação da cama executada pelo marceneiro, que já era, por seu turno, a imagem aparente daquela real. Portanto, os poetas lidam com a imitação de uma realidade, por sua vez, imitação de uma outra, esta sim, realmente verdadeira.⁵²

    Entretanto, como vimos há pouco, Platão não deixou de admitir as boas fábulas, sinal que o problema da mimese residia tanto mais em imitar os maus exemplos fornecidos pelas "más fábulas. Porém, não só isso. De nada valerá selecionar os bons mitos sem mandar embora os Poetas. A recusa de Platão está muito mais voltada aos poetas do que à poesia. Num trecho esclarecedor do Livro X, Sócrates, ante o reconhecimento do encanto e sedução (607c-d) exercido pela poesia (homérica, sobretudo), afirma ser justo fazê-la regressar à cidade, mas tal regresso, além de não incluir os poetas, ainda coloca algumas condições para sua inserção: Concederemos certamente aos seus defensores [da poesia], que não forem poetas, mas forem amadores de poesia, que falem em prosa, em sua defesa, mostrando como é não só agradável, como útil para os Estados e a vida humana. (607d-e, grifo nosso). A poesia requer ser dirigida, não mais pelos poetas, mas sim por uma justificativa filosófica: mas enquanto não for

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