Pierre Hadot - Que - e - A - Filosofia - Antiga

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SÍNTESE NOVA FASE

v. 23 N. 75 (1996): 547-551

o QUE É A FILOSOFIA ANTIGA?ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDC

H e n r iq u e C. d e L i m a Vaz
CES-BH

PIERREHADOT- Q u ' e s t- c e q u e I a p h ilo s o p h ie a n tiq u e ? Paris,


Gallimard ( F o lio - E s s a is ) , 461 pp., 1995.

P
ierre Hadot é conhecido e eminente especialista das pesquisas
sobre a filosofia da Antigüidade tardia e especialmente do neo-
platonismo. Dirige uma nova tradução do c o r p u s plotiniano
em francês, nas Éditions du Cerf, acompanhada de introdução, co-
mentários e notas, para a qual já contribuiu com importantes tradu-
ções de E n é a d a s tr . 50 (I1I, 5); E n é a d a s tr . 38 (VI, 7); E n é a d a s tr . 9 (VI,
9). Enriqueceu os estudos plotinianos com uma brilhante introdução
sob o título P I o tin o u I a s im p lic ité d u r e g a r d (1989). Renovou nosso
conhecimento do retórico M ário Vitorino, provavelmente o primeiro
neo-platônico cristão de expressão latina, cuja influência sobre Santo
Agostinho é conhecida, e do filósofo neo-platônico Porfírio, o biógra-
fo de Plotino, com a monumental monografia P o r p h y r e e t V ic to r in u s ,
2 vols., 1968.

Além dos trabalhos de erudição Pierre Hadot vem se dedicando, em


colaboração com sua esposa M me. Ilsetraut Hadot, igualmente espe-
cialista bem conhecida da filosofia e cultura da Antigüidade tardia,
a estudos de interpretação do fenômeno cultural tão caraterístico da
cultura greco-romana que é a p h ilo s o p h ia ou, mais exatamente, o
b io s p h iI o s o p h ik o s , a vida filosófica. Trata-se de um fenômeno com-

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plexo e rico de facetas diversas e que iria m arcar, de m aneira aparen-
tem ente definitiva, a vida espiritual e cultural do Ocidente, prolon-
gando de certo m odo sua presença até nossos dias. Na investigação
e interpretação desse fenôm eno, Hadot faz parte, aliás, de um grupo
de estudiosos no qual se incluem , além de I. Hadot, P. Rabbow, A.-
J. Voelke, historiador suiço recentem ente falecido a quem o presente
livro é dedicado, J. Dom ánski e outros.

Antes de tentar a síntese que estam os apresentando, P. Hadot estu-


dou aspectos da "vida filosófica" reveladores da sua natureza. Dois
desses aspectos m erecem ser m encionados: a filosofia com o "exercí-
cio espiritual" ou com o origem de um a prática de vida interior que,
recebida pela espiritualidade cristã, estava destinada a um a longa
tradi)ão (ver ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
E x e r c ic e s S p ir itu e ls e t p h ilo s o p h ie a n tiq u e , 3. éd., Paris,
Les Etudes Augustiniennes, 1993); e a concepção estoica da filosofia
com o fortaleza interior, que torna o filósofo, qualquer que seja sua
situação social, im une e m esm o indiferente aos azares da fortuna e às
vicissitudes da vida. P. Hadot estudou esse aspecto num a m agistral
interpretação dos P e n s a m e n to s de M arco Aurélio, que lança m uita
luz sobre a significação da "vida filosófica" na paisagem hum ana e
social da Antigüidade tardia: L a C ita d e lle in té r ie u r e : in tr o d u c tio n
a u x P e n s é e s d e M a r c - A u r ê le , Paris, Fayard, 1992.

Por outro lado, com o preâm balo à presente síntese, P. Hadot traçou
o program a das suas pesquisas e as grandes linhas da sua visão da
filosofia antiga, sobretudo helenística, na lição inaugural do seu pri-
m eiro curso no C o llê g e d e F r a n c e em 1983: L 'h is to ir e d e la p e n s é e
i h e llé n is tiq u e e t r o m a in e e em artigo no anuário da m esm a instituição
(1 9 8 4 -1 9 8 5 ): L a p h ilo s o p h ie c o m m e m a n iê r e d e v iv r e . Esses dois tex-
tos estão reproduzidos em E x e r c ic e s S p ir itu e ls e t p h ilo s o p h ie a n tiq u e ,
2a. ed., pp. 197-227. Todos os seus trabalhos anteriores preparavam ,
pois, o Prof. Pierre Hadot para oferecer-nos um a brilhante interpre-
tação da filosofia antiga que responde, de um ponto de vista funda-
m ental m as que tem m erecido pouca atenção dos historiadores, à
pergunta sobre a natureza desse fenôm eno espiritual e intelectual
único que atravessa toda a história cultural e social da Antigüidade.

Qualquer leitor de Pia tão sabe que a filosofia, cujas caraterísticas


aparecem já plenam ente definidas nos D iá lo g o s , não era apenas um a
disciplina intelectual entre outras e, m enos ainda, um a área de espe-
cialização da cultura superior, tal com o a praticam os hoje. Trazendo
os traços da sua origem religiosa, visíveis e perm anentes desde a
c o n v e r s ã o platônica até ao ê x ta s e plotiniano, a filosofia era um estilo
ou m odo de vida ( tr o p a s to u b ío u ) que se diferenciava segundo as
diversas escolas ou tradições - platônica, aristotélíca, epicurista,
estoica, cínica, cética, neo-platônica, para falar das principais - m as
que era reconhecido genericam ente pelas suas duas exigências funda-

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m entais: a m udança radical na conduta da vida e a fundam entação


dessa m udança num a explicação racional total da realidade, abran-
gendo os três grandes cam pos da lógica, da física e da ética. A tradi-
ção posterior conservou a dim ensão racional da filosofia, tendo sido a
sua dim ensão existencial ou espiritual herdada m ais tarde pela tradi-
ção da espiritualidade cristã. O m érito de P. Hadot foi o de tentar
reconstituir, apoiado em extensa e sólida erudição e em fina sensibi-
lidade histórica, a figura da filosofia antiga nos seus dois aspectos
fundam entais, e o de oferecer-nos assim um a contribuição inestim á-
vel para um a com preensão m ais profunda da história espiritual do
Ocidente. Essa, com efeito, enum era entre suas constantes e m anifes-
ta com o um a das suas com ponentes estruturais a tensão perm anente
entre a razão e a vida, que passam a constituir os polos de um a
dialética sem pre renascendo em novas form as e da qual a vida filo-
sófica foi, na Antigüidade, o em blem a e com o que o prim eiro ensaio
de efetivação histórica.

O livro de P. Hadot segue a costum eira ordem cronológica. A prim ei-


ra parte estuda o aparecim ento da noção de ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
p h ilo s o p h ia com o um a
das iniciativas culturais m ais significativas da passagem da cultura
arcaica para a idade clássica. A em ergência de Atenas com o centro e
sím bolo da atividade filosófica no V século m erece particular atenção
e nela é ressaltada a figura paradigm ática de Sócrates com o m arco
inicial e gênio tutelar da longa história do bios p h ilo s o p h ik ó s . A
prim eira e m ais célebre definição do philosophos é devida, com o se
sabe, a PIatão. Hadot nos dá um a penetrante interpretação dessa
definição tal com o aparece realizada exem plarm ente no Sócrates do
Banquete e, ao m esm o tem po, lem bra a alternativa de um filósofo
h o n n ê te h o m m e , proposta por Isócrates. Na segunda parte são estu-
dadas, sob o prism a do ideal da vida filosófica, as grandes escolas
que se sucedem e sobrevivem ao longo de toda a Antigüidade: PIatão
e a Academ ia, Aristóteles e sua escola, as escolas helenísticas, com
realce particular para o epicurism o e o estoicism o, e as sobrevivên-
cias do aristotelism o, da Academ ia, bem com o o ceticism o. Em segui-
da são consideradas m ais brevem ente as escolas filosóficas na idade
im perial e aí a atenção se volta sobretudo para o neo-platonism o e
para os grandes iniciadores Plotino e Porfírio, sendo feita igualm ente
um a referência à aliança entre filosofia e teurgia nas escolas pós-
plotinianas. Essa segunda parte se encerra com um a im portante se-
ção, talvez o centro de equilíbrio do livro, sobre "Filosofia e discurso
filosófico". Ao reconhecer a am bigüidade do discurso filosófico, que
pode degenerar em "sofística" desde que não seja acom panhado por
um a "conversão" verdadeira e um novo "m odo de vida", a tradição
filosófica antiga m ostra que discurso e vida são ao m esm o tem po
inseparáveis e irredutíveis um ao outro, cada qual conservando a sua
especificidade (pp. 265-275).Desta sorte é possível transpor para as

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duas dim ensões da philosophia na concepção antiga, o dito célebre


de Kant: a vida filosófica sem o discurso é cega; o discurso sem a
vida filosófica é vazio. Para m ostrar em concreto essa unidade na
diferença entre vida filosófica e discurso filosófico, Hadot expõe,
em páginas de grande riqueza docum ental, as duas práticas m ais
caraterísticas da vida filosófica: os exercícios espirituais e a con-
tem plação do sábio (pp. 276-350). A terceira parte é dedicada a
um a breve evocação do destino posterior da "filosofia com o m odo
de vida" na cultura ocidental. Dois eventos espirituais im portan-
tes são aqui assinalados: o prim eiro o encontro da vida filosófica
com o cristianism o nascente; o segundo a sobrevivência de alguns
traços da concepção antiga na filosofia m oderna.

O destino da ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
p h ilo s o p h ia nos tem pos que se seguiram ao fim da
Antigüidade segue um roteiro singular. É sabido que, pelos m e-
nos desde o 11 século, com São Justino, os apologistas cristãos
apresentaram a form a de vida e a doutrina propostas pela nova
religião com o a v e r a p h ilo s o p h ia , e reivindicaram para si o título
de philosophoi. É verdade que essa receptividade ao pensam ento
e ideal de vida filosóficos, reinterpretados segundo as exigências
doutrinais e éticas do q u é r ig m a c r is tã o , encontrou desde o início
oposição decidida em autores com o Taciano e Tertuliano, dando
origem , de resto, a um a tradição anti-filosófica que alcançará os
tem pos m odernos com Pascal, S. Kierkegaard e outros. Prevale-
ceu, no entanto, a idéia da p h ilo s o p h ia c h r is tia n a celebrada por
Santo Agostinho e que dará seus frutos m ais am adurecidos com
Tom ás de Aquino e a escolástica m edieval. Nessa transposição
cristã da antiga p h ilo s o p h ia verificou-se, porém , um a separação
entre o m odo de vida e o discurso. Este passa a integrar a th e o lo g ia
num sentido já especificam ente cristão e que irá constituir um
corpo teórico sem pre m ais vasto e com plexo. Já o m odo de vida
é transposto para a prática espiritual cristã, com eçando pelo
m onaquism o de expressão grega nos fins do 111 século, e ela her-
dará m uito dos estilos de vida e dos exercícios espirituais dos
filósofos antigos. Assim a história da espiritualidade cristã pode
ser lida com o a continuação em outro clim a espiritual e obedecen-
do a outras m otivações, do antigo bios p h ilo s o p h ik o s .

Com o m ostrou, entre outros, A. de Libera (ver pp. 392-394) o


ideal da vida filosófica renasce por um m om ento no seio das
Faculdades de Artes da Universidade m edieval nos fins do século
XIII, sob a influência sobretudo da recém traduzida É tic a d e
N ic ô m a c o . A atração desse ideal atravessa o fim da Idade M édia
e persevera na Renascença, atingindo os com eços da filosofia
m oderna. Em bora os tem pos m odernos venham a consagrar cada
vez m ais a filosofia com o um a das disciplinas que constituem a
enciclopédia do ensino superior institucionalizado na Universida-

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de, traços da concepção antiga da filosofia com o "m odo de vida"


subsistem , referindo-se Hadot particularm ente a Descartes e Kant
(pp. 395-407).

Nas "Questões e perspectivas" que term inam o livro, P. Hadot se


interroga sobre a possível significação atual da concepção antiga da
filosofia, para além do seu interesse m eram ente histórico. O histori-
ador parece convencido de que a filosofia não apenas com o disciplina
intelectual m as com o estilo de vida, conserva ainda um sentido nos
nossos tem pos utilitaristas e dom inados pela tirania do im ediato. É
a evocar os aspectos da "vida filosófica" do ponto de vista da sua
atualidade que P. Hadot dedica as últim as páginas do seu livro.

Um lapso na útil Cronologia em apêndice: o advento de Augusto e


o com eço do Im pério são colocados em 27 depois de Cristo, quando
se trata de 27 antes de Cristo (p. 437).

Endereço do Autor:
Av. Dr. Cristiano Guimarães, 2127
31720-300 Belo Horizonte - M G ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

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