Macabéa Flor de Mulungu Conceição Evaristo
Macabéa Flor de Mulungu Conceição Evaristo
Macabéa Flor de Mulungu Conceição Evaristo
Editores
Raquel Menezes
Jorge Marques
Assistente Editorial
Phillipe Valentim
Revisão
Oficina Raquel
Diagramação
Entrelinha Design
Produção de ebook
S2 Books
ISBN 978-85-9500-104-6
Todos os direitos reservados à Editora Oficinar LTDA ME. Proibida a reprodução por qualquer meio mecânico,
eletrônico, xerográfico etc., sem a permissão por escrito da editora.
Capa
Créditos
Folha de rosto
Citação
Início
Fim
Por aquilo que vive
Desde quando vi e não só olhei de relance a moça Macabéa, caída e
semimorta no chão, imaginei que a flor de mulungu seria para ela, ou
melhor, seria ela.
E nem sei por quê. Só mais tarde a minha suspeição ficou
confirmada. Sim, Macabéa, Flor de Mulungu.
Foi preciso tempo. Um tempo profundo, mas de resumidas horas.
Nunca tive a vida inteira a me esperar e a dela parecia estar quase-
quase se esvaindo. Eu vi a moça, a outra. Uma Macabéa outra. E essa
outra, vi em seu estado de breve floração.
Mas em estado tão breve, que de tão breve, em mim se fez eterno.
De Macabéa todas as pessoas fantasiavam somente a brabeza do
desamparo. Para muitas, a moça padecia de solidão crônica. E ficavam
a imaginar a solitária vida de Macabéa. Umas achavam lágrimas em
seu rosto. Viam punhados de águas secas. Outras assistiam sorrisos
vazados de sua boca fechada a sete chaves, donde nem mosquito-riso
passava. Muitíssimas ainda escutavam gritos que perfuravam o espaço
do nada. Lugar no qual julgavam que ela nadava.
E tantas eram as verdades inventadas acerca de Macabéa, que se a
pobre sofrente tomasse conhecimento de tudo que era criado a
respeito dela, na certa não suportaria tudo em si. Explodiria de tanto
ser aquilo que ela nem sabia se era. Havia ainda pessoas que
acreditavam que a moça trazia em si um corpo feito de uma
interioridade nula e incurável. Vazio próprio de um mal antecedente
original. Essas sim, condoídas por ela, choravam. Macabéa, nem sei
que não. Creio que a sofrida invenção que criavam para Macabéa doía
mais no criador e talvez, bem menos, na criatura.
Eu também me espinhava todinha com as dores imaginadas por
mim para Macabéa. Dores que ela mesma, segundo falavam, nem sabia
ao certo como, e se doía ficavam nela.
Nos primeiros momentos, antes ainda de meu olhar pousar sobre a
moça, levada pela tamanha sofrência que as pessoas traduziam da vida
para ela, fui logo pensando na via-crúcis da existência de Macabéa. E
por força de antigos conhecimentos, adivinhei a dor da moça. Das
angústias de Macabéa eu carecia, para agraciar as minhas. E de que
viver, o que escrever se não sangrassem em mim, as dores da estrela? E
não sei por que, em hora tão imprópria, Flaubert me veio à cabeça.
Depois atinei com o porquê da visita do francês a meu pensamento. Se
ele, para se defender da severa moral da época, precisou afirmar que
Emma Bovary era ele, eu não preciso de nenhum ardil para garantir
que Macabéa, a Flor de Mulungu, sou eu. Tal é a minha parecença-
mulher com ela. Repito, sou eu e são todos os meus.
Nas angústias de Macabéa, Flor de Mulungu, outras histórias me
vieram à mente. Algo como o poema de um dos livros de Agatha
Christie, em que nenhum negrinho dos 10 – charada para a trama
policial – sobrevive para contar a história. Colado ao poema de
Christie, nasce o descolado arranjo de Bráulio Tavares. Na composição
brasileira, em meio à mortandade dos negrinhos, também por causas
diversas, há uma multiplicação dos vivos nos últimos versos:
Você pode, por exemplo, sair deste conto pensando a voz não morre, reverbera. Você pode
pensar no florescimento da flor de mulungu, sempre no agosto da festa de Olubajé. Você
pode também se dedicar a pensar nos quarenta e seis anos que separam a primeira publicação
da Hora da Estrela, de Clarice Lispector, desta publicação, como um grande período de luto
de uma personagem que, agora, ganha outros contornos pela vista de Conceição Evaristo.
Você pode – por quê não? –, pensar na literatura, sobretudo aquela produzida por pessoas
negras, como uma forma de fazer vingar a vida.
Quando Conceição anuncia sua aliança com a personagem, irmana-se a ela, lembro
imediatamente de uma história de minha avó Antenora. Eram seus vinte e poucos anos e, nos
momentos de tédio, Antenora andava até o Cemitério da Areia Branca com uma garrafa de
pitú. Entrava em um velório de um desconhecido, bebia e embebedava os parentes e amigos
todos. Fazia esse ritual com frequência, não sei por que sempre às quartas-feiras. Em uma das
vezes, se aproximou do caixão e, notada a tábua de madeira meio solta, começou a fazê-la de
gangorra. Enquanto o morto pulava e o público gritava, minha avó ria. Engana os vivos como
Macabéa engana os coveiros. Nos engana?
Gosto dessa história porque sinto que acontece algo parecido aqui. Tocar algo que seria,
supostamente, intocável. Um grande clássico, no caso. A dita literatura universal. De todo
modo, não me parece ser o caso de escolhermos entre uma e outra. A tarefa que Conceição
Evaristo nos sugere, enquanto leitores, é ver – nunca olhar de relance – e ser as sapienciais
que movimentam outros jogos com a memória, a fim de positivar a existência das Macabéas,
sem enclausurá-las à narrativa do corpo em sofrimento.
A narradora de Conceição Evaristo conversa com Macabéa, aproxima-se dela com faro
fino, o corpo disposto, jamais refém da dor, comprometida em criar relações com o texto, ou
seja, com a vida. Faz reverberar as nossas vozes, que não morrem.