cantigas tupi

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OUTRAS ESCRIT(UR)AS

NHEENGARA MOKÕI:
SOBRE DUAS CANTIGAS TUPIS
Alberto Baeta Neves Mussa 

Romancista. Rio de Janeiro, RJ, Brasil


E-mail: [email protected]

No célebre ensaio Des Cannibales, de Montaigne, há dois excertos de cantigas


tupis – ou tupinambás; ou tamoias – ouvidas no litoral de Nheteróia (como
era conhecida a atual baía de Guanabara) em meados do século 16. Trata-se
de versões francesas prosificadas a partir de um original em tupi antigo, muito
provavelmente feitas pelo informante com quem Montaigne diz ter estado em
contato por largo tempo.
Aventureiros e corsários franceses, especialmente normandos, costumavam
frequentar a baía de Guanabara desde pelo menos a primeira década do século
16, como informa Maurício de Abreu na sua Geografia histórica do Rio de Janeiro
(2010). Havia entre eles também muitos degredados, ou seja, criminosos que tinham
suas penas de morte comutadas em pena de exílio temporário. Esses indivíduos
eram, então, enviados à América com o objetivo específico de aprenderem o
idioma e os “costumes” indígenas para servirem de intérpretes e guias a seus
compatriotas que atuavam no escambo com os nativos.
O informante de Montaigne se inclui provavelmente nesta última categoria, já
que teria vivido de dez a doze anos “no lugar que Villegagnon batizou de França
Antártica”. Tinha, portanto, adquirido um domínio razoável do idioma brasílico.
Segundo seu testemunho, a primeira dessas canções foi “feita por um
prisioneiro”, antes de sua execução ritual, quando se dirige a seus inimigos. Vou
chamá-la de Cantiga de Morte:

Ces muscles, cette chair et ces veines, ce sont les vôtres, pauvres
fols que vous êtes; vous ne reconnaissez pas que la substance des
membres de vos ancêtres s’y tient encore: savourez-les bien, vous
y trouverez le goût de votre propre chair.

MANA 30(1): e2024007, 2024 – https://doi.org/10.1590/1678-49442024v30n1e2024007.pt ISSN 1678-4944


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Esses músculos, essa carne e essas veias são as vossas, pobres tolos que sois;
vocês não reconhecem que a substância dos membros dos vossos antepassados
ainda está aqui: saboreiem bem e perceberão o gosto da sua própria carne.
A segunda, ao que parece, se aproxima mais do lirismo ocidental, e foi citada
sem um contexto específico. Vou denominá-la de Cantiga de Amor:

Coulevre, arrête-toi! Arrête-toi, coulevre! Afin que ma soeur tire


sur le patron de ta peinture la façon et l’ouvrage d’un riche cordon
que je puisse donner à m’amie. Ainsi soit en tout temps ta beauté
et ta disposition préferée à tous les autres serpents!

Cobra, para! Para, cobra! Para que minha irmã tire do padrão da tua pintura o
modelo e a feitura de um belo colar que eu possa dar à minha amiga. E que para
sempre tua beleza e tua forma sejam preferidas entre todas as serpentes!
São textos que ensejam múltiplas reflexões e que interessam a diversas
disciplinas: filologia tupi, história da literatura, teoria literária, linguística geral,
teoria da tradução, semântica, etnografia e etnologia – para lembrar as mais
óbvias.
Meu objetivo, contudo, não chega a tanto: quero apenas fazer o experimento
de revertê-las ao idioma original; além de, naturalmente, comentá-las.
Trata-se, portanto, de um exercício de alteridade, de dar um bote do Eu para
o Outro, de reconquistar uma língua que deveria ter sido a minha, de tentar
entender, ou sentir, a mesma beleza que foi percebida por quem recebeu esses
cantos pela primeira vez.

cantiga de morte

kó ybynha kó toó
Ces muscles, cette chair,
estas entranhas, esta carne,

kó tajyka pe mbaé
et ces veines, ce sont les vôtres,
estas veias são vossas,

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angaingaibot poreausubĩ wé
pauvres fols que vous êtes;
ó loucos miseráveis!

nda peikuwabi pè
ne reconnaissez pas
não reconhecem

pe tuibaepawama asykuera reté


que la substance des membres de vos ancêtres
que a substância dos retalhos dos vossos antepassados

ikopuku kobé
s’y tient encore:
permanece aqui?

pesaangatu aé peiandub
savourez-les bien, vous y trouverez
saboreai bem! e percebereis

pe roó ré
le goût de votre propre chair.
o gosto da vossa carne!

A primeira dificuldade se refere à distinção entre “músculo” e “carne”, que


consta da versão francesa. Não há no Vocabulário na língua brasílica, nem no
Vocabulário português-brasílico, nem na relação de nomes das partes do corpo,
de Pero de Castilho, um termo para “músculo”. Temos apenas “carne”, –oó
(nome transitivo, que se realiza como toó, soó ou roó conforme o complemento).
Naturalmente, –oó compreende a noção de “músculo”; mas não é impossível
que houvesse um vocábulo específico, que tivesse escapado à documentação:
seria erro supor que os textos antigos exauriram todo o léxico da língua. Outra
hipótese é ter havido uma tradução equivocada: por exemplo, a cantiga original
referir-se a “bíceps” e o informante de Montaigne ter entendido esta palavra
específica como um vocábulo geral para “músculo”. Assim, na transposição,

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tive que substituir “músculo” e optei arbitrariamente por ybynha, “entranhas,


vísceras”, que também eram consumidas no rito canibal.
Um segundo problema é o termo para “membros”, no sentido de “conjunto
de braços e pernas”. Também não encontrei nos vocabulários um nome tupi que
correspondesse a tal conceito. E ficaria deselegante retraduzir um termo único
por dois. Optei, assim, por asykuera, que tem acepção mais ampla e significa
qualquer parte retirada de um todo, ou seja, “pedaço, retalho”.

cantiga de amor

mbói ekuãi ymé ekuãi ymé mbói


Coulevre, arrête-toi! Arrête-toi, coulevre!
“cobra, para! para, cobra!”

ndekuatia’pora suí ta xerendyra oimonhángi


Afin que ma soeur tire sur le patron de ta peinture
“para que minha irmã tire do padrão da tua pintura”

mboýraysó aangábamo seterámamo bé


la façon et l’ouvrage d’un riche cordon
“o modelo e a feitura de um lindo colar”

t’aimeeng xekunhãýba supé ne


que je puisse donner à m’amie.
“que eu possa dar à minha prometida”

aujeramanhé opab mbóia sosé

Ainsi soit en tout temps [...] à tous les autres serpents!


“e que para sempre, entre todas as serpentes,”

ipysyrõpyramo ndeporanga nderaanga ndi t’oikó ne


ta beauté et ta disposition préferée
“sejam preferidas tua beleza e teu desenho”

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O primeiro ponto a discutir é a palavra amie da versão francesa. Todo o contexto


da cantiga faz supor que amie tenha o sentido de “amante” ou “namorada”. É
pouco provável que seja tradução de –emiausuba, que é o termo próprio para
a noção de “amigo” em tupi. Optei, assim, por kunhãýba, a prometida, a noiva.
A tradução do informante faz também uso dos vocábulos coulevre e serpent,
“cobra” e “serpente”. No Vocabulário na língua brasílica temos a distinção entre
mbóia, cobra em geral, termo que se aplica às diversas espécies deste réptil;
e mboiusu, etimologicamente “cobra grande”, com o sentido mais restrito de
“serpente”. Não creio, todavia, que o texto original empregasse mboiusu, no verso
final, já que não é o tamanho da cobra que torna sua pintura mais ou menos bela.
O informante, ou o próprio Montaigne, certamente seguiu a tendência estilística
das línguas românicas de não repetir palavras quando se dispõe de sinônimos
relativamente próximos. Como as ocorrências de mbóia não são vizinhas, preferi
a repetição.
Um problema interessante é reverter para o tupi antigo a expressão patron de ta
peinture, “padrão da tua pintura”. Eu poderia ter usado –aanga, “imagem”
ou –aangaba, “imitação, cópia ou modelo” para retraduzir “padrão”. Mas logo no
verso seguinte seria necessário retraduzir façon; e aí não haveria outra
opção a não ser –aangaba, “molde, modelo usado para obtenção de cópia”.
Teríamos, assim, a repetição muito próxima da mesma palavra tupi. Embora eu
não tenha certeza se tal repetição teria soado deselegante para o falante nativo,
preferi empregar outra estratégia, escolhendo kuatia’pora, ou seja, a contração
de kuatiara, “pintura”, e pora, “marca, imagem forma ou efeito resultante da
ação típica de algo”. Por exemplo, de kysé, “faca”, obtemos kysepora: “marca
de facada”; de py, “pé”, derivamos mbypora, “marca de pé, pegada, rastro”.
Se kuatiara é tanto “pintura” como “ato de pintar”, kuatiapora é o “padrão da
pintura”, o efeito, a marca da ação de pintar.
Já mencionei façon, que entendo significar, no contexto da cantiga, “modelo”.
Ao passo que “ouvrage” pode ser a “feitura”, ou seja, “procedimento propriamente
dito de se fazer algo”, ou, por metonímia, a “coisa feita com tal procedimento”.
Não é uma passagem fácil do idioma quinhentista de Montaigne. Por exemplo,
numa versão em francês moderno, feita por Guy de Pernon, o façon de Montaigne
é traduzido por forme; e ouvrage por façon. Não há espaço aqui para uma discussão
mais detida sobre este ponto. O texto da cantiga me parece sugerir uma sequência
bem minuciosa de ações: a irmã primeiro observa o padrão da pintura e a partir
disso faz um modelo, para em seguida criar o futuro colar. As fronteiras semânticas
são muito sutis. A solução que encontrei para dar conta desse passo foi retraduzir
ouvrage, “feitura”, por –eterama: “o futuro corpo”, “a futura coisa”, substituindo
o “procedimento” pelo objeto dele resultante. Literalmente, essa passagem em
tupi antigo diz: “que minha irmã faça a partir do padrão da tua pintura o modelo
de um lindo colar e o futuro corpo dele”.

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Outra questão interessante é como retraduzir tirer, no sentido de “inspirar-se


em”, como aparece em tire sur le patron de ta peinture. Tanto em francês como
em português se trata de um emprego abstrato, metafórico. Não identifiquei tal
acepção em tupi antigo (e consultei especialmente o excelente dicionário de
Eduardo Navarro). Esta ideia, contudo, pode ser facilmente vertida com o emprego
de monhang na acepção de “transformar”, com o emprego da terminação –ramo
(que pode se realizar como –namo ou –amo) no complemento correspondente
ao resultado da transformação. –Ramo, tratado ora como posposição átona, ora
como um morfema de caso (o que dá na mesma), indica circunstância ou estado
momentâneo, algo como “na forma, condição ou qualidade de”. Por exemplo,
oimonhang y kauĩnamo: “transformou água em vinho”, “fez água na forma de
vinho”. Na minha retradução, portanto, pus aangáb–amo (“como modelo”) e
seterám–amo (“como futuro corpo”. Vou debater ainda o sentido mais profundo
desse morfema.
Por fim, vale lembrar que retraduzi riche por “lindo”, opção que parece óbvia.
Também preferi à forma literal mbói pytá, “para, cobra”, o imperativo negativo
de só, “ir”: ekuãi ymé, “não vá”, que me soa mais enfático. E alterei levemente
a ordem dos constituintes da última sentença, igualmente por razões estéticas.

II

Como inúmeras línguas pelo mundo, o tupi antigo não tem o verbo “ser”. A
estratégia comum em quase todos os idiomas deste tipo é apenas justapor dois
substantivos para formar uma sentença. Assim, a frase “Pindobuçu é pajé” se
traduz por Pindobuçu pajé.
Ninguém pense que a ausência do verbo implique a ausência do conceito,
da noção de ser – tanto que há uma construção específica para dar conta dos
estados transitórios ou circunstanciais que afetam os seres, quando o contexto
exige. É aí que entra a terminação –ramo, associada ao verbo ikó, “estar”.
Literalmente, nesta acepção, “ser” é “estar como”, ikó mais –ramo. Quando
“ser” é “ser” (digamos) em estado contínuo, não se expressa: se presume da
justaposição de termos. É uma sutileza, uma filigrana semântica que a língua
portuguesa (como a francesa) não tem. Assim, no exercício da retradução, é
preciso decidir se o texto original se refere a um estado contínuo ou circunstancial,
quando o tradutor emprega être, “ser”. Na Cantiga de Morte, optei pelo primeiro
sentido no trecho “estas entranhas, esta carne, estas veias são vossas”, daí a mera
justaposição: kó ybynha kó toó kó tajyka pe mbaé. Literalmente, “estas entranhas,
esta carne, estas veias vossas coisas” (como em tupi antigo o pronome possessivo
não pode ser usado substantivamente, é necessário um termo que resuma os
anteriores: mbaé, “coisa”).

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Já na Cantiga de Amor, no passo “e que para sempre tua beleza e tua forma
sejam preferidas entre todas as serpentes”, optei pela construção com ikó mais –
ramo, pois o desejo pressupõe uma futura mudança de estado, uma transição do ser,
da condição de “não preferido” para a de “preferido”. Assim: ipysyrõpyramo...t’oikó
ne. Ou seja, “na condição de preferida... esteja futuramente”.
É instigante imaginar que este aspecto semântico do tupi antigo possa ter
relação com as noções cosmológicas ou metafísicas (não sei como chamar) de
perspectivismo e multinaturalismo desenvolvidas por Tânia Stolze Lima e Eduardo
Viveiros de Castro. Sou tentado a aceitar a hipótese, ao menos por ora. Porque há
outro caso em que tais noções parecem se encaixar perfeitamente: o da palavra
–eté (realizável como teté, reté ou seté, a depender do complemento).
O Vocabulário na língua brasílica, na entrada para “corpo”, depois de dar a
tradução tupi, acrescenta: “por este nome se nomeia também tudo aquilo que
necessariamente alguma coisa pressupõe; como se um dissesse que comeu caldo,
entende-se que alguma coisa se cozeu da qual era, ou se fez aquele caldo, e essa
coisa em respeito do caldo se chama seté”. Como Eduardo Navarro brilhantemente
resume esta definição em seu Dicionário, –eté, além de “corpo”, também significa
“substância, matéria”.
Ora, a matéria, a substância de uma coisa é esta própria coisa em outro estado,
numa outra aparência. É a mesma coisa, mas que está como outra coisa, sem
perder a essência de sua coisidade. O caldo em relação à carne.
E percebemos que o sentido é mesmo este, é precisamente este, quando
usamos –eté como adjetivo. Os vocabulários tupis traduzem “verdadeiro”
pelo mesmo –eté que corresponde, primariamente, a “corpo”. Sempre achei
que havia algo esdrúxulo entre as duas acepções, algo que não casava bem, não
era muito harmônico.
Claro: os falantes de português entenderam –eté como “verdadeiro”, porque
uma coisa verdadeira é a coisa em sua forma usual, típica, legítima. Literalmente,
uma coisa –eté é, na verdade, uma coisa corporificada, uma coisa em seu próprio
corpo, uma coisa em sua legítima aparência, uma coisa em sua própria forma, uma
coisa em si. E daí por diante, para abarcar todas as nuances semânticas.
Ora, se uma língua dispõe de uma palavra para se referir às coisas em sua
forma legítima, para enfatizar que aquela coisa é uma coisa em si, é porque
essa coisa pode ser ou estar eventualmente fora de si, com uma forma ilegítima,
atípica, inusual. Que nem sempre as coisas aparecem sob sua forma própria, em
seu próprio corpo. E tal concepção é exatamente o que caracteriza as culturas
perspectivistas ou multinaturalistas.
Assim, é simplesmente fascinante perceber o quão intrínseca pode ser a relação
entre língua e cultura. É fascinante comprovar que não apenas o pensamento,
mas a língua dos tupinambás também estava contaminada pela multinatureza,
pela perspectiva.

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III

Montaigne denomina ambos os textos acima de chanson. Em tupi antigo,


cantiga, música, é nheengara. Etimologicamente, é a nominalização do verbo
nheengar, “cantar”, que por sua vez deriva de nheenga, “palavra, fala, enunciado,
idioma”, e do verbo jar, “receber, apanhar”. Nheengar, portanto, é “receber
palavras”, “apanhar mensagem”.
É muito interessante o recorte semântico tupi: nheenga se aplica a humanos
e às aves. Em tupi, pássaros não cantam, apenas falam, têm sua própria língua,
como a humanidade tem as suas. O canto do pássaro é nheenga, como as línguas
humanas são nheenga.
O canto humano, apenas humano, por sua vez, é nheengara. Ou seja, não
é obra da pessoa que canta. É sempre tomado, apanhado, recebido de alguém.
Não há, assim, composição – mas a recepção de uma obra pronta. Essa obra,
pela própria lógica da etimologia, não poderia ser criada por outro indivíduo
que esteja no mesmo plano ontológico daquele que ouve, que recebe o canto. Se
assim fosse, tal indivíduo seria um compositor – e sua obra seria uma nheenga,
não uma nheengara.
Logo, seres humanos não criam, não compõem música. Seres humanos tomam
essa música de um outro que está, necessariamente, fora da condição humana.
Ora, muitos povos tupis-guaranis contemporâneos recebem cantigas em sonhos,
durante transes xamânicos ou quando suas almas se excorporam em viagens
sobrenaturais. Há uma relação íntima, intrínseca, entre música e xamanismo.
Faz, assim, todo o sentido pensar que os cantos dos antigos tupinambás fossem
oriundos do mundo dos espíritos. Esta hipótese se coaduna perfeitamente com
o étimo de nheengara.
Aliás, outras formas discursivas dos tupis da costa tinham também origem
onírica, como sugerem dois trechos de cartas do irmão Pero Correia, jesuíta
que escreveu de São Vicente, em 1551. Na primeira delas, diz que “por todos os
lugares e povoações que passamos me mandava pregar-lhe nas madrugadas... e
era na madrugada porque então era costume de lhe pregarem os seus principais
e pajés...”. E em outra: “estes gentios em algumas coisas se parecem com mouros,
assim em ter muitas mulheres e pregar pelas manhãs de madrugada...”. Ora
(digo eu), pregam de madrugada porque acabam de acordar e logo reproduzem
a mensagem recebida em sonho.
Todavia, não é apenas o verbo nheengar que a antiga documentação tupi
traduz por “cantar”. O Vocabulário na língua brasílica menciona um sinônimo,
com significação idêntica: nheengaraíb.
Etimologicamente, contudo, tal sinonímia soa muito estranha. Porque aíba,
adjetivamente, corresponde a “mau”, “ruim”, “bruto”, “áspero”, “doente” etc.

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Aíba ainda designa as “brenhas”, os lugares sombrios ou inacessíveis da floresta.


Este último sentido é que esclarece, creio eu, a essência semântica do vocábulo.
Porque nas brenhas, na mata profunda, vagam espíritos de mortos e de seres
extraordinários que podem matar ou provocar doenças, e até mesmo alterar a
natureza da pessoa.
Aíba, como eu consigo sentir, ou perceber, não seria simplesmente “mau”
ou “ruim” – mas “em que há perigo”, ou “em que houve contaminação por
algo maléfico”. É o significado que depreendo, por exemplo, de paraíba, um rio
perigoso, para quem nada ou navega; ou de karaíba, um pajé perigoso, a quem
é preciso agradar, limpar os caminhos para sua passagem; e que mora sozinho,
fora da taba. É ainda o sentido subjacente ao verbo ikoaíb, “estar menstruada”,
não porque seja uma doença, mas porque aquela pessoa representa um risco para
outras – tornando-a interdita a determinadas práticas sociais.
Há muitos outros exemplos: angaíba, composição de anga, “alma”, e aíba, que
se traduz por “magreza” (considerada um problema de saúde), cuja etimologia é
“alma doentia” ou, mais precisamente, “alma contaminada por algo maléfico”;
piraibora, “bexigoso” ou “que tem a pele contaminada” (de pira, “pele”, aíba
e bora, “o que tem”); abaíb, “ser difícil, árduo, penoso” (se uma língua é difícil
é por haver risco de não se aprendê-la corretamente; se um caminho é difícil é
por haver risco de não se conseguir trilhá-lo); ou pakaíb, “levantar dormindo”
ou “sonambular”. Em todos estes termos se pode entrever a noção de perigo ou
de contaminação – que é o risco consumado em malefício.1
Mas chamo a atenção especialmente para outro termo: nheengaíba, que pode
significar “gagueira”, mas também “maledicência”, “admoestação”, “ofensa”.
Nesta última acepção, a etimologia é certamente “fala perigosa”. É perigosa,
acredito, porque tais palavras podem contaminar negativamente o indivíduo
ofendido ou a coisa maldita. Aliás, voltando ao nosso irmão Pero Correia, escreve
ele numa dessas cartas que os tupinambás escondiam os pedaços de carne humana
para evitar que a repreensão dos padres os estragasse.
Para os antigos tupis da costa, palavras não eram inócuas, tinham uma certa
materialidade. Daí, inclusive, suspeito eu, a inexistência do discurso indireto em tupi
antigo. Uma frase como o pajé disse pra você tomar esse remédio seria, literalmente,
o pajé me disse: mande ele tomar esse remédio, com a reprodução exata da fala do
pajé. Se cantar é “receber fala”, o cantor tupinambá agia exatamente como um
simples mensageiro, reproduzindo as palavras de outro ente, do possuidor original
do canto. Logo, se alguém entoa um canto novo, está, na verdade, reproduzindo
esse canto pela segunda vez.
Esses cantos, essas palavras recebidas, eram, portanto, de dois tipos:
nheengara e nheengaraíba. A primeira categoria, nheengara, podia ter ou uma
significação genérica ou indicar, por exclusão, toda cantiga que não constituísse

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uma nheengaraíba. Estas, por sua vez, compunham um subconjunto especial,


muito particular, de cantos perigosos, potencialmente maléficos.

IV

Infelizmente, não sabemos em qual circunstância foi enunciada a Cantiga de


Amor, a da cobra. É possível, é até muito provável que constasse de um repertório
tradicional, que fosse cantada nas situações mais prosaicas e sucessivamente
aprendida pelas novas gerações.
Mas não entra na categoria de cantiga por este último motivo. A Cantiga de
Amor é cantiga porque foi recebida, foi tomada originalmente de um espírito,
em alguma circunstância onírica: num sonho, num transe, numa excorporação.
Quero propor uma leitura dela a partir desta perspectiva.
Primeiro, o texto trata de um bem cultural. Esse bem, a forma desse bem, do
colar que imita a cobra, é certamente nova. Não haveria sentido pedir à cobra que
permita a cópia da sua pintura se tal pintura já fosse conhecida, se já houvesse
colares com aquele padrão.
Quem faz, ou fará o colar, é a irmã, como o texto afirma. Logo, ela precisa
ver a cobra para tirar o modelo. Logo, é ela quem sonha, que se excorpora; e que
encontra a cobra. A partir daí, temos duas opções: ou a irmã (momentaneamente
fora de sua condição humana, pois viaja em espírito) assiste à cena entre o irmão
e a cobra; ou (como prefiro) apenas viaja e encontra a cobra, que reproduz em
forma de canto o desejo do irmão (que a avistou, num relance, admirou sua beleza,
mas não teve tempo de memorizar o padrão da pintura, pois o réptil se esgueira
rapidamente pelas entranhas da mata).
A irmã, então, acordada, lembra do sonho, da pintura e do canto. E repete o
canto, e repete a pintura, fazendo o colar – cujo padrão será repetido por outras
irmãs, pois a cobra deve ser a preferida como futuro modelo, dentre todas as
serpentes.
Há na cantiga, como se percebe, homologia com diversos mitos sobre a origem
de bens culturais – que são recebidos, tomados em experiências xamânicas, se
assim se pode denominar qualquer visita a espaços ontológicos não humanos. E
cabe ainda ressaltar que se trata de um xamanismo feminino. Não me lembro de
outro exemplo nas fontes coloniais. Fica, todavia, a provocação.

A Cantiga de Amor está nitidamente na categoria das nheengara, posto que


todas as suas personagens mantêm relações de aliança ou parentesco. Não há,
assim, perigo. Já no caso da Cantiga de Morte, a da vítima sacrificial, a relação

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entre os polos do texto é completamente distinta: cantor e ouvintes são inimigos.


A Cantiga de Morte é um insulto, um vitupério, uma invectiva, uma manifestação
verbal de vingança. Se, como vimos, o insulto é nheengaíba, “fala perigosa”,
arrisco afirmar (sem muito medo) que a Cantiga de Morte pertence ao gênero
das nheengaraíba.
As crônicas quinhentistas, especialmente os depoimentos de Thevet, na
Histoire, e de Cardim, deixam muito bem claro que o prisioneiro de guerra, antes
de ser sacrificado, tinha o direito de se vingar dos captores – dos futuros jaguares
que o iriam devorar. Ele tinha o direito de tentar fugir; de atirar pedras, paus e
objetos diversos contra seus inimigos; e principalmente de arengar contra eles,
de dizer impropérios, de proferir ameaças e insultos.
Thevet, inclusive, no capítulo 40 das Singularidades, diz que o ijukapyrama,
aquele que será morto, a partir do momento em que perdia a liberdade e era
preso pela musurana, na véspera da execução, passava “todo o dia e toda a noite”
entoando canções, dando como exemplo a seguinte (na tradução de Eugênio
Amado):

Meus amigos maracajás são pessoas honradas;


e são hábeis e fortes guerreiros.
Eles prenderam e devoraram
grande número de inimigos.
Agora serei devorado por eles, no dia marcado.
Eu, porém, já matei e devorei muitos parentes e amigos
do homem que me aprisionou.

A Cantiga de Morte é exatamente isto: um insulto do ijukapyrama aos inimigos,


materialização do direito sagrado de vingança. Do ponto de vista desses inimigos,
que logo irão devorar o prisioneiro que canta – e especialmente do matador,
daquele que irá desferir o golpe na nuca da vítima – tal cantiga representa um
risco: porque ele, matador, não pode tremer ao escutá-la, não pode errar o alvo,
precisa matar, de preferência, com a primeira pancada, sem deixar a vítima cair
de costas, com o rosto para cima. Qualquer coisa que saia do roteiro, que escape a
esse rígido programa, é um signo de mau agouro, um sinal de que a nheengaraíba
produziu algum efeito maléfico.
Os exemplos são escassos. Mas já sabemos que as nheengaraíba têm ao menos
uma origem definida: o inimigo. E tal constatação, a priori, é um problema. Porque
afirmei, deduzi, com fundamento na etimologia, que todo canto, perigoso ou não,
é tomado, é recebido num espaço ontológico não humano. E o ijukapyrama ainda
não morreu, ainda está vivo, ainda é humano.

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É um problema a priori, como acabei de dizer. Porque o conceito de morte


– manõ, em tupi antigo – não coincide exatamente com o nosso. Segundo o
Vocabulário na língua brasílica, manõ é “morrer” e também “desmaiar”. Eduardo
Navarro, no seu Dicionário, dá para a forma adjetiva de manõ tanto o sentido de
“morto” como o de “o que está à beira da morte”. E cita uma passagem maravilhosa
de Yves D’Evreux, que faço questão de reproduzir, da tradução de César Augusto
Marques:

Na entrada da primeira choupana encontraram um grande fumeiro


cheio de caça, e ao lado dele um índio, dono da casa, deitado numa
rede de algodão, que gemia muito como se estivesse bastante
doente. Os nossos franceses, alegres e prontos a festejarem essa
mesa tão preparada, lhe perguntaram com brandura e carinho:
dé omano chetuasap, “está doente, meu compadre?” “Sim”,
respondeu ele.

A frase tupi, que Navarro corrige e atualiza ortograficamente para nde manõ,
xe atuasap, diz literalmente “estás morto, meu companheiro?”. É claro que
D’Evreux já recebeu de seus informantes uma tradução transcultural, para que
não lhe parecesse absurda. Dado o contexto, vemos que manõ podia se aplicar
àquele que estivesse ainda vivo, mas cujo estado prenunciasse ou supusesse morte
iminente. Daí terem vertido manõ para “doente”, em vez de “morto”.
Ora, no rito canibal, depois de ter o pescoço preso à musurana, a vítima era
conduzida por uma mulher enquanto outras atiravam nela penas de papagaio –
para indicar que já era impossível escapar da execução.
O prisioneiro, portanto, não é mais o ijukapyrama, mas o ijukapyra: o que
foi, ou está, morto. Sua morte é bem mais que iminente: é certa, é inexorável. E
tal circunstância, para os tupinambás, corresponde à noção de manõ – a própria
morte.
É importante enfatizar isto: a vítima sacrificial não canta porque vai morrer;
canta porque já está morta. E, porque canta para inimigos, canta uma nheengaraíba.

VI

As cantigas preservadas por Montaigne são duas pequenas preciosidades


literárias – que provavelmente ilustram os grandes macrogêneros poéticos da
antiga cultura tupinambá: nheengara e nheengaraíba.
Sei que meu raciocínio está fundamentado numa hipótese que não posso
provar: a de que o sentido etimológico dos verbos nheengar e nheengaraíb eram
ainda inteligíveis ao falante nativo do século 16. Em muitas línguas as etimologias

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se obscurecem ou se perdem com o tempo, porque as palavras têm história; e as


culturas, também. Mas – sendo o tupi antigo um idioma tão caracteristicamente
aglutinativo, em que a composição é extremamente produtiva e inúmeros vocábulos
são muito facilmente analisáveis – creio não ter cometido nenhum exagero.

VII

Minha principal ferramenta de trabalho nessa aventura de retraduzir as


cantigas tupinambás foi o Vocabulário na língua brasílica, texto anônimo do século
17. Utilizei ainda outro texto anônimo, do século 18, o Vocabulário português-
brasílico; além do indispensável Dicionário de tupi antigo, de Eduardo Navarro,
hoje a principal obra de referência para o usuário da língua.
Meu raso conhecimento do nosso idioma clássico obtive inicialmente com o
Curso de tupi antigo, do padre Lemos Barbosa, que foi aperfeiçoado com o Método
moderno de tupi antigo, também do mestre Navarro.
Mencionei excertos ou o conteúdo dos seguintes textos quinhentistas:

a) de André Thevet: As singularidades da França Antártica, tradução de


Eugênio Amado, e a Histoire d’ André Thevet Angoumoisin, cosmographe
du roy, de deux voyages par luy faits aux Indes Australes, et Occidentales,
livro ainda não publicado no Brasil, cujo texto é quase idêntico ao da sua
Cosmografia universal, exceto pela descrição do rito canibal;
b) de Yves D’Evreux: Viagem ao norte do Brasil, na tradução de César Augusto
Marques;
c) de Fernão Cardim: os Tratados da terra e da gente do Brasil, edição preparada
por Rodolfo Garcia, que tem notas de Capistrano de Abreu; e
d) do irmão Pero Correa: duas cartas reproduzidas em cartas avulsas, publicadas
pela ABL em 1931.

O texto original das cantigas extraí, como já disse, do ensaio Des cannibales,
de Montaigne, reproduzido integralmente numa edição da Hatier Paris, ao lado
de outro ensaio célebre, Des coches, do mesmo autor. Os textos têm comentários
de Nancy Oddo e Bénédicte Boudou; e foram acompanhados da tradução em
francês moderno por Guy de Pernon.

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Notas
1 O verbo nhemongaraíb, “batizar-se”, é um neologismo jesuíta, que significa “fazer-se
caraíba”. Caraíba, aí, é outro neologismo, com o sentido original modificado para o
de “cristão”.

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Referências
ABREU, Maurício de Almeida. 2010. MONTAIGNE. 2019. Des cannibales; Des
Geografia histórica do Rio de Janeiro Coches. Paris: Hatier.
(1502-1700). Rio de Janeiro: Estúdio
NAVARRO, Eduardo. 2006. Método
Andrea Jakobsson.
moderno de tupi antigo. São Paulo:
Anônimo. 1951. Vocabulário português- Global.
brasílico. São Paulo: USP.
NAVARRO, Eduardo. 2013. Dicionário de
Anônimo. 1952. Vocabulário na língua tupi antigo. São Paulo: Global.
brasílica. São Paulo: USP.
THEVET, André. 1978. As singularidades
BARBOSA, Antônio Lemos. 1956. Curso da França Antártica. São Paulo: USP;
de tupi antigo. Rio de Janeiro: Livraria Belo Horizonte: Itatiaia.
São José.
THEVET, André. 2006. Histoire d’André
CARDIM, Fernão. 1980. Tratados da terra e Thevet Angoumoisin, cosmographe du
da gente do Brasil. São Paulo: USP; Belo roy. Genebra: Librarie Droz.
Horizonte: Itatiaia.
Vários. 1931. Cartas avulsas 1550 a 1568.
D’EVREUX, Yves. 2002. Viagem ao norte Rio de Janeiro: ABL.
do Brasil. São Paulo: Editora Siciliano.

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Alberto Mussa é contista e romancista, com livros traduzidos em 19 países e 16 idiomas.


Em sua obra se destacam o Compêndio mítico do Rio de Janeiro, série de 5 novelas
policiais, uma para cada século da história carioca; Meu destino é ser onça, recriação
livre da mitologia tupinambá; e o ensaio literário A origem da espécie: o roubo do fogo
e a noção de humanidade.

Editora-Chefe: María Elvira Díaz Benítez


Editor Associado: John Comeford
Editora Associada: Adriana Vianna

Recebido em: 31/05/2023


Aprovado em: 22/09/2023

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