cantigas tupi
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cantigas tupi
NHEENGARA MOKÕI:
SOBRE DUAS CANTIGAS TUPIS
Alberto Baeta Neves Mussa
Ces muscles, cette chair et ces veines, ce sont les vôtres, pauvres
fols que vous êtes; vous ne reconnaissez pas que la substance des
membres de vos ancêtres s’y tient encore: savourez-les bien, vous
y trouverez le goût de votre propre chair.
Esses músculos, essa carne e essas veias são as vossas, pobres tolos que sois;
vocês não reconhecem que a substância dos membros dos vossos antepassados
ainda está aqui: saboreiem bem e perceberão o gosto da sua própria carne.
A segunda, ao que parece, se aproxima mais do lirismo ocidental, e foi citada
sem um contexto específico. Vou denominá-la de Cantiga de Amor:
Cobra, para! Para, cobra! Para que minha irmã tire do padrão da tua pintura o
modelo e a feitura de um belo colar que eu possa dar à minha amiga. E que para
sempre tua beleza e tua forma sejam preferidas entre todas as serpentes!
São textos que ensejam múltiplas reflexões e que interessam a diversas
disciplinas: filologia tupi, história da literatura, teoria literária, linguística geral,
teoria da tradução, semântica, etnografia e etnologia – para lembrar as mais
óbvias.
Meu objetivo, contudo, não chega a tanto: quero apenas fazer o experimento
de revertê-las ao idioma original; além de, naturalmente, comentá-las.
Trata-se, portanto, de um exercício de alteridade, de dar um bote do Eu para
o Outro, de reconquistar uma língua que deveria ter sido a minha, de tentar
entender, ou sentir, a mesma beleza que foi percebida por quem recebeu esses
cantos pela primeira vez.
cantiga de morte
kó ybynha kó toó
Ces muscles, cette chair,
estas entranhas, esta carne,
kó tajyka pe mbaé
et ces veines, ce sont les vôtres,
estas veias são vossas,
angaingaibot poreausubĩ wé
pauvres fols que vous êtes;
ó loucos miseráveis!
nda peikuwabi pè
ne reconnaissez pas
não reconhecem
ikopuku kobé
s’y tient encore:
permanece aqui?
pesaangatu aé peiandub
savourez-les bien, vous y trouverez
saboreai bem! e percebereis
pe roó ré
le goût de votre propre chair.
o gosto da vossa carne!
cantiga de amor
II
Como inúmeras línguas pelo mundo, o tupi antigo não tem o verbo “ser”. A
estratégia comum em quase todos os idiomas deste tipo é apenas justapor dois
substantivos para formar uma sentença. Assim, a frase “Pindobuçu é pajé” se
traduz por Pindobuçu pajé.
Ninguém pense que a ausência do verbo implique a ausência do conceito,
da noção de ser – tanto que há uma construção específica para dar conta dos
estados transitórios ou circunstanciais que afetam os seres, quando o contexto
exige. É aí que entra a terminação –ramo, associada ao verbo ikó, “estar”.
Literalmente, nesta acepção, “ser” é “estar como”, ikó mais –ramo. Quando
“ser” é “ser” (digamos) em estado contínuo, não se expressa: se presume da
justaposição de termos. É uma sutileza, uma filigrana semântica que a língua
portuguesa (como a francesa) não tem. Assim, no exercício da retradução, é
preciso decidir se o texto original se refere a um estado contínuo ou circunstancial,
quando o tradutor emprega être, “ser”. Na Cantiga de Morte, optei pelo primeiro
sentido no trecho “estas entranhas, esta carne, estas veias são vossas”, daí a mera
justaposição: kó ybynha kó toó kó tajyka pe mbaé. Literalmente, “estas entranhas,
esta carne, estas veias vossas coisas” (como em tupi antigo o pronome possessivo
não pode ser usado substantivamente, é necessário um termo que resuma os
anteriores: mbaé, “coisa”).
Já na Cantiga de Amor, no passo “e que para sempre tua beleza e tua forma
sejam preferidas entre todas as serpentes”, optei pela construção com ikó mais –
ramo, pois o desejo pressupõe uma futura mudança de estado, uma transição do ser,
da condição de “não preferido” para a de “preferido”. Assim: ipysyrõpyramo...t’oikó
ne. Ou seja, “na condição de preferida... esteja futuramente”.
É instigante imaginar que este aspecto semântico do tupi antigo possa ter
relação com as noções cosmológicas ou metafísicas (não sei como chamar) de
perspectivismo e multinaturalismo desenvolvidas por Tânia Stolze Lima e Eduardo
Viveiros de Castro. Sou tentado a aceitar a hipótese, ao menos por ora. Porque há
outro caso em que tais noções parecem se encaixar perfeitamente: o da palavra
–eté (realizável como teté, reté ou seté, a depender do complemento).
O Vocabulário na língua brasílica, na entrada para “corpo”, depois de dar a
tradução tupi, acrescenta: “por este nome se nomeia também tudo aquilo que
necessariamente alguma coisa pressupõe; como se um dissesse que comeu caldo,
entende-se que alguma coisa se cozeu da qual era, ou se fez aquele caldo, e essa
coisa em respeito do caldo se chama seté”. Como Eduardo Navarro brilhantemente
resume esta definição em seu Dicionário, –eté, além de “corpo”, também significa
“substância, matéria”.
Ora, a matéria, a substância de uma coisa é esta própria coisa em outro estado,
numa outra aparência. É a mesma coisa, mas que está como outra coisa, sem
perder a essência de sua coisidade. O caldo em relação à carne.
E percebemos que o sentido é mesmo este, é precisamente este, quando
usamos –eté como adjetivo. Os vocabulários tupis traduzem “verdadeiro”
pelo mesmo –eté que corresponde, primariamente, a “corpo”. Sempre achei
que havia algo esdrúxulo entre as duas acepções, algo que não casava bem, não
era muito harmônico.
Claro: os falantes de português entenderam –eté como “verdadeiro”, porque
uma coisa verdadeira é a coisa em sua forma usual, típica, legítima. Literalmente,
uma coisa –eté é, na verdade, uma coisa corporificada, uma coisa em seu próprio
corpo, uma coisa em sua legítima aparência, uma coisa em sua própria forma, uma
coisa em si. E daí por diante, para abarcar todas as nuances semânticas.
Ora, se uma língua dispõe de uma palavra para se referir às coisas em sua
forma legítima, para enfatizar que aquela coisa é uma coisa em si, é porque
essa coisa pode ser ou estar eventualmente fora de si, com uma forma ilegítima,
atípica, inusual. Que nem sempre as coisas aparecem sob sua forma própria, em
seu próprio corpo. E tal concepção é exatamente o que caracteriza as culturas
perspectivistas ou multinaturalistas.
Assim, é simplesmente fascinante perceber o quão intrínseca pode ser a relação
entre língua e cultura. É fascinante comprovar que não apenas o pensamento,
mas a língua dos tupinambás também estava contaminada pela multinatureza,
pela perspectiva.
III
IV
A frase tupi, que Navarro corrige e atualiza ortograficamente para nde manõ,
xe atuasap, diz literalmente “estás morto, meu companheiro?”. É claro que
D’Evreux já recebeu de seus informantes uma tradução transcultural, para que
não lhe parecesse absurda. Dado o contexto, vemos que manõ podia se aplicar
àquele que estivesse ainda vivo, mas cujo estado prenunciasse ou supusesse morte
iminente. Daí terem vertido manõ para “doente”, em vez de “morto”.
Ora, no rito canibal, depois de ter o pescoço preso à musurana, a vítima era
conduzida por uma mulher enquanto outras atiravam nela penas de papagaio –
para indicar que já era impossível escapar da execução.
O prisioneiro, portanto, não é mais o ijukapyrama, mas o ijukapyra: o que
foi, ou está, morto. Sua morte é bem mais que iminente: é certa, é inexorável. E
tal circunstância, para os tupinambás, corresponde à noção de manõ – a própria
morte.
É importante enfatizar isto: a vítima sacrificial não canta porque vai morrer;
canta porque já está morta. E, porque canta para inimigos, canta uma nheengaraíba.
VI
VII
O texto original das cantigas extraí, como já disse, do ensaio Des cannibales,
de Montaigne, reproduzido integralmente numa edição da Hatier Paris, ao lado
de outro ensaio célebre, Des coches, do mesmo autor. Os textos têm comentários
de Nancy Oddo e Bénédicte Boudou; e foram acompanhados da tradução em
francês moderno por Guy de Pernon.
Notas
1 O verbo nhemongaraíb, “batizar-se”, é um neologismo jesuíta, que significa “fazer-se
caraíba”. Caraíba, aí, é outro neologismo, com o sentido original modificado para o
de “cristão”.
Referências
ABREU, Maurício de Almeida. 2010. MONTAIGNE. 2019. Des cannibales; Des
Geografia histórica do Rio de Janeiro Coches. Paris: Hatier.
(1502-1700). Rio de Janeiro: Estúdio
NAVARRO, Eduardo. 2006. Método
Andrea Jakobsson.
moderno de tupi antigo. São Paulo:
Anônimo. 1951. Vocabulário português- Global.
brasílico. São Paulo: USP.
NAVARRO, Eduardo. 2013. Dicionário de
Anônimo. 1952. Vocabulário na língua tupi antigo. São Paulo: Global.
brasílica. São Paulo: USP.
THEVET, André. 1978. As singularidades
BARBOSA, Antônio Lemos. 1956. Curso da França Antártica. São Paulo: USP;
de tupi antigo. Rio de Janeiro: Livraria Belo Horizonte: Itatiaia.
São José.
THEVET, André. 2006. Histoire d’André
CARDIM, Fernão. 1980. Tratados da terra e Thevet Angoumoisin, cosmographe du
da gente do Brasil. São Paulo: USP; Belo roy. Genebra: Librarie Droz.
Horizonte: Itatiaia.
Vários. 1931. Cartas avulsas 1550 a 1568.
D’EVREUX, Yves. 2002. Viagem ao norte Rio de Janeiro: ABL.
do Brasil. São Paulo: Editora Siciliano.