Pedra Canga
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Sobre este e-book
Tereza Albues
Tereza Albues nasceu em Várzea Grande, Estado de Mato Grosso, em 24 de agosto de 1936. Graduou-se em Direito, em Letras e em Jornalismo pela UFRJ. Escreveu toda a sua obra em São Francisco e Nova York, onde viveu por 25 anos. Seus primeiros romances são ambientados nas planícies pantaneiras, no centro da América do Sul, onde nasceu. Em A travessia dos sempre vivos a autora se inspira na história do seu bisavô, um padre, personagem rebelde e iluminado que viveu em uma cidadezinha do pantanal. A narrativa é permeada pelo fantástico e sobrenatural. Gerald Thomas, diretor de teatro e ópera, disse que “Tereza é uma escritora fenomenal”, “é um terremoto literário”. Ênio Silveira, importante editor brasileiro que publicou seus primeiros livros, registrou que Tereza “tanto pode ser vista como escritora quanto uma força da natureza”, por sua prosa de ficção ser tão rica e surpreendente. Deixou como legado obra importante para a literatura brasileira com vários livros ainda inéditos. Faleceu em Nova York em 5 de outubro de 2005. Em 2013 Tereza Albues foi escolhida como Patrona Perpétua das Letras Brasileiras em Nova York, pelo BEA (Brazilian Endowment for the Arts).
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Pedra Canga - Tereza Albues
Pequeno, mas imenso mundo
Ênio Silveira¹
Não há dúvida: só é verdadeiramente universal em termos de literatura o que é autenticamente regional. Em todos os países, em todas as épocas, os escritores olharam primeiro em torno e depois para dentro de si próprios, encontrando no continente e no conteúdo os dois referenciais básicos pelos quais nortearem sua carreira literária.
Está claro que regional, aqui, não se deve tomar em sentido meramente geográfico, mas no contexto de sua amplitude microcósmica, que a um só tempo abrange as características materiais e humanas, culturais e psicológicas que definem uma determinada região ou comunidade, bem como o comportamento social daqueles que ali nasceram, ou a ela se aclimataram.
Inúmeros nomes de escritores nos vêm à lembrança neste momento, como ilustração de tal comentário: Mark Twain, Faulkner, Hemingway, Tolstoi, Turgueniev, Daudet, Balzac, Proust, Gabriel García Márquez, José Lins do Rego, Graciliano, Jorge Amado, Guimarães Rosa… Seria ocioso estender a relação, tantas centenas de outros seriam também cabíveis.
A evidência se impõe: o conhecimento profundo de suas raízes, nativas ou adotadas, tem a força de passaporte mágico, que abre para o escritor as portas de todo o mundo. É óbvio que ele pode ser também muito criativo se sua obra não mantiver correspondência com circunstâncias de tempo e espaço, mas dificilmente alcançará comunicação assim ampla e duradoura.
Tais considerações vêm a propósito no que diz respeito a este romance com o qual Tereza Albues Eisenstat se apresenta pela primeira vez diante dos leitores. Brasileira, casada com um norte-americano e residindo há anos em New York, ela continua integrada ao realismo mágico de seu microcosmo mato-grossense, pantaneiro em particular, que constitui cenário e ponto de apoio de sua ficção. Visto de longe, da supermetrópole quase robotizada onde os seres se transformam em símbolos de computador, ele passa a ter contornos, cores, cheiros e sons mais nítidos do que antes, em cujo centro se agita, sonha e sofre um fragmento de humanidade que, assim como aquele das comarcas mississippianas retratadas por William Faulkner, escapa de seus estreitos limites geográficos para ganhar foros de universalidade.
As personagens que povoam Pedra Canga não são meras criaturas de lavor literário. Têm cara própria, sentimentos, grandeza e misérias também próprios e, por isso mesmo, passarão a existir de verdade em nosso espírito e em nosso coração. Suas reações diante dos altos e baixos de uma existência não mais do que ordinária refletem-se em comentários de saborosa autenticidade, plenos de sabedoria instintiva. São figuras que o talento de Tereza Albues Eisenstat incorpora a nosso círculo de relações pessoais, a tal ponto que tudo o que lhes acontece (ou venha a acontecer no futuro, pois ganham autonomia depois de criadas) passa de pronto a interessar-nos vivamente.
Despretensiosa em seu primeiro projeto literário enfim realizado, Tereza Albues Eisenstat conseguiu, no entanto, o admirável feito de recriar com rara eficiência e bom distanciamento crítico o seu universo particular e de nele inserir uma calorosa parcela de humanidade. Pedra Canga é um romance inesquecível, cuja leitura nos enriquecerá e comoverá.
1Texto do editor Ênio Silveira (1925-1996) à primeira edição de Pedra Canga , publicada por ele na coleção Prosa Brasileira da Philobiblion Livros de Arte, do Rio de Janeiro, em 1987, tendo como capista o carnavalesco e arquiteto Mauro Quintaes. Ao longo da vida Silveira publicou cerca de 6 mil obras. Formou-se em Ciências Sociais pela USP e em Editoração pela Universidade Columbia, nos Estados Unidos. Começou sua carreira como integrante da equipe de Monteiro Lobato na Companhia Editora Nacional. A partir dos anos 1950 dirigiu a Editora Civilização Brasileira, que em suas mãos se tornou uma das maiores do Brasil. Entre 1964 e 1969 foi preso sete vezes pela resistência democrática que liderava no campo editorial. Ênio Silveira lançou, entre tantos outros autores, Dias Gomes, Antonio Callado, Carlos Heitor Cony, Fernando Sabino, Stanislaw Ponte Preta, Dalton Trevisan, Nelson Werneck Sodré, Leandro Konder. Da literatura universal, publicou James Joyce, Brecht, Cortázar, Fitzgerald, Kafka, Faulkner e apresentou ao país as obras de Marx, Engels, Gramsci, Lukács. A forma como publicou o livro Poema Sujo
, que Ferreira Gullar gravou no exílio na Argentina em uma fita, levada a Silveira por Vinicius de Moraes durante a ditadura, ilustra o seu atrevimento como editor. Com a sua morte, a editora foi absorvida pelo Grupo Record.
Na noite de agonia do Dr. V. uma tempestade nunca vista por aquelas bandas derrubou árvores, casas, galinheiros, chiqueiros, postes de luz. O uivo do vento era tão forte que os animais domésticos, assustados, queriam se esconder dentro de casa, outros fugiam apavorados não se sabe pra onde. Teve até o caso da cabra de estimação do pedreiro Augusto Campo Belo que nunca mais foi encontrada.
— A cabra ficou no meio dum redemoinho furioso e o Coisa-ruim carregou ela pra debaixo da terra — disse Ritinha Três Orelhas.
Um raio caiu bem em cima da casinha de luz deixando o bairro de Pedra Canga completamente às escuras. O povo, morrendo de medo, se pegou com os santos. Só se via gente ajoelhada em frente dos oratórios, rezando ladainhas, pedindo a Santa Bárbara pra acalmar o temporal, fazendo promessas — algumas impossíveis de cumprir — em troca do atendimento de suas orações.
Maria Belarmina, 17 anos depois, discordaria do início desta narrativa.
— Não era de noite não. Tudo aconteceu por volta das três horas da tarde. O mundo escureceu de repente, de modo que a gente precisou acender lamparina pois naquele tempo não tinha luz elétrica, não senhora. O temporal foi feio e não foi desses mandados por Deus. Tinha alguma força maligna comandando a ventania. Já escutei vento uivar muitas vezes mas nunca daquele jeito. Parecia uivo de cachorro louco ou então lobo esfomeado. Tinha também barulho de tambor, risada, choro, grito, xingamento, tudo isso misturado com um fedor insuportável que a gente teve que ficar com o nariz tampado.
— Era o reino do Cujo tomando conta da Terra — disse Ludovica — obviamente evitando pronunciar o nome do Chifrudo.
Neco Silvino, marido de Maria Belarmina, jurou que tinha visto uma mula sem cabeça, relinchando, chispando fogo, em louca disparada, varar a cerca da Chácara e se embrenhar pelo matagal em direção à casa dos Vergare. Muitos acreditaram cegamente em Neco Silvino, velho pescador, contador de estórias de assombração, familiarizado com as coisas do além.
— Não corro sem ver do quê — repetia sempre.
Mas o meu avô Zé Garbas, violeiro-cantador, conhecido nas redondezas como Boca do Inferno
estava lá, pronto pra desmentir o pescador.
— Que nada, esse aí eu conheço desde criança, é um mentiroso de nascença.
E pra reforçar o que disse, pegou a viola de cocho e o verso veio fácil:
Neco Silvino pescador de vento
não queira me enganar não
Te conheço desde menino
inventando estórias de assombração
Mas todo mundo lá na escola
sabia que você era um cagão.
Mas os que tomaram o partido de Neco Silvino guardavam ainda na lembrança a terrível estória contada por ele, não tinha passado nem três dias. E aqui segue o seu fiel relato tal qual ele esmiuçou, depois da terceira rodada de caipirinha no botequim Quero Mais, cujo dono Mané Porrinha está aí vivo pra não me deixar mentir.
— Estava voltando da pescaria altas horas da noite quando ouvi gritos de mulher vindos da direção da Chácara do Mangueiral. Encostei a canoa na beira do barranco, apurei o ouvido, agucei a vista. Foi então que vi ao longe uma enorme fogueira e pessoas dançando em volta. Bem no meio tinha uma mulher amarrada numa árvore, uivando como um cachorro louco ao mesmo tempo que implorava: Pelo amor de Deus, não furem o meu olho
. Daí eu escutei uma voz de rouquidão que esbravejou: Não pronuncie esse nome, infeliz. Aqui é o reino de Satanás. E é por amor a ele que vamos sacrificar o seu olho
. O resto eu não ouvi. Tratei de sair dali o mais rápido que pude. Era uma noite escura, sem estrelas, muita ventania e eu estava bem distante, mas mesmo assim posso jurar que a cena era horrível. Ah! Lá isso era! Até hoje o meu cabelo fica em pé quando lembro dos gritos da coitada.
Os fregueses do botequim, olhos pregados em Neco Silvino, escutaram estarrecidos a experiência vivida pelo pescador. De repente, Tomasão, um mulato de quase dois metros de altura, filho do lavrador Inocêncio Martins, cujas terras confinavam com o Mangueiral, se levantou e disse que isso aí ainda não era nada, que muito pior tinha acontecido com o pai dele. Todos se voltaram pra ele num coro conta, conta
. Tomasão se acocorou no chão e em voz baixa, como se estivesse contando um segredo de Estado, começou:
— Bom, primeiramente tenho que dizer que os Vergare têm mesmo parte com o Zebu. Não tem outra explicação para o que aconteceu com meu pai. Foi assim: Ele acordou uma noite com um barulho esquisito vindo da cerca que dá pro Mangueiral. Ele levantou, pegou a espingarda e rumou pra lá. De longe ele viu um vulto preto que não distinguiu direito. Engatilhou a arma, chegou mais perto e viu um enorme porco-do-mato fuçando a cerca, querendo derrubar o mourão-mestre. Meu pai não pensou duas vezes. Abriu fogo direto no coração do bicho. Nada aconteceu. O bicho ficou de pé nas patas traseiras, encarou meu pai com olhos chispando fogo, dentes arreganhados e soltou uma gargalhada que estremeceu o mato todo. Foi aí que meu pai viu que a cara do animal era de gente, e adivinha de quem era a cara? Do Coronel Totonho, sem tirar