A Substância Do Amor PDF

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A Sombra do Templrio

Jos Eduardo Agualusa



A SUBSTNCIA DO AMOR
E OUTRAS CRNICAS

3.a edio

5
A Sombra do Templrio

1

NDICE DOS LUGARES DESTE LIVRO
Abril de 1844

Fices

Borges no Inferno 11
Uma gua Escura 15
Merde dArtiste. 19
O Assalto 23
A Velha Esperana Morreu Sentada 27
Algum Vir 31
Do Not Walk Outside this Area 33
Angola, Loisiana 37
Traidor Simultneo 41
O Mundo Vai Comear 45
culos para Mentir 49
Havia Muito Sol do Outro Lado 53
A ltima Vez Que nos Vimos 55
A Substncia do Amor 57
O Primeiro Dia do Resto da Minha Morte 59

Inquietaes

Ponha Raa Melhorada por Favor 65


Se o Lobo Mau Fosse Angolano 69
Com o Tempo, o Tempo Encolhe 73
A Solido dos Hipoptamos 77
Obrigados no, Obrigado! 81

7
Nria Masot

O Mundo do Avesso 85
Bananeiras no Terrao 89
A Jaca Que Foi Comida Viva 93
As Rosas Preferem Beethoven 97
O Exerccio da Loucura 101
O Plano do General Motors para Ganhar
a Guerra 105
Vinte e Sete Marcianos 109
A Nossa Ptria na Malsia 113
O Dia em Que a Msica Me Salvou 117
O ltimo Andar 121
O Segredo de Passo Fundo 125
A Lngua Que Nos Constri 129
Danar Outra Vez 133
Campeo de Corridas 135

Paixes

Quem Tem Boca Vai a Roma 141


Beleza e Veneno 143
A Propsito de Sereias e Trites 145
Beijar Um Sapo 147
Como Amar Uma Mulher 149
Depois de Tudo o Que se Passou entre Ns 151
Corao de Mamo 153
Coisas de Mulher 155
O Destino do Lobo 157
Diz-se no Feminino: a Solido 159
Os Encantadores de Serpentes 161
Uma Conversa Muito Sria 163
Sobre a Honestidade dos Homens 165
Porque Que as Mulheres no Foram Lua 167
Uma Segunda Oportunidade 169
Isto nunca Aconteceu Comigo antes 171

8
FICES
CLAUDE CHABROL

BORGES NO INFERNO

Para a Alexandra Lucas Coelho

Jorge Lus Borges soube que tinha morrido quando, tendo


fechado os olhos para melhor escutar o longnquo rumor da
noite crescendo sobre Genebra, comeou a ver. Distinguiu pri-
meiro uma luz vermelha, muito intensa, e compreendeu que era
o fulgor do sol filtrado pelas suas plpebras. Abriu os olhos, incli-
nou o rosto, e viu uma fileira de densas sombras verdes. Estava
estendido de costas numa plantao de bananeiras. Aquilo dei-
xou-o de mau humor. Bananeiras?! Ele sempre imaginara o
paraso como uma enorme biblioteca: uma sucesso intermin-
vel de corredores, escadas e outros corredores, ainda mais esca-
das e novos corredores, e todos eles com livros empilhados at
ao tecto.
Levantou-se. Endireitou-se com dificuldade, sentindo-se
desconfortvel dentro do prprio corpo subitamente rejuvenes-
cido (quando morremos reencarnamos jovens e Borges j no se
recordava de como isso era). Caminhou devagar entre as
bananeiras. Parecia-lhe pouco provvel encontrar ali algum
conhecido, ou seja, algum de quem tivesse lido algo. Ou algum
sobre quem tivesse lido algo. Nesse caso seria algum um pouco
menos conhecido, ou um pouco menos algum, ou ambas as
coisas.
A plantao prolongava-se por toda a eternidade. Uma dvi-
da comeou a atorment-lo: talvez estivesse, afinal, no no

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Jos Eduardo Agualusa

paraso, mas no inferno. Para onde quer que olhasse s avistava


as largas folhas verdes, os pesados cachos amarelos, e sobre essa
idntica paisagem um cu imensamente azul. Borges lamentava
a ausncia de livros. Se ali ao menos existissem tigres tigres
metafricos, claro, com um alfabeto secreto gravado nas man-
chas do dorso , se houvesse algures um labirinto, ou uma
esquina cor-de-rosa (bastava-lhe a esquina), mas no: s avistava
bananeiras, bananeiras, ainda bananeiras. Bananeiras a perder
de vista.
Percorreu sem cansao, mas com crescente fastio, a infinita
plantao. Era como se andasse em crculos. Era como se no
andasse. Fazia-lhe falta a cegueira. Cego, o que no via tinha
mais cores do que aquilo alm do mistrio, claro. Como que
um homem morre na Sua e ressuscita para a vida eterna entre
bananeiras?
Borges no gostava da Amrica Latina. A Argentina, como se
sabe, um pas europeu (ou quase) que por desgraa faz frontei-
ra com o Brasil, Chile, Uruguai e Paraguai. Para Borges aquele
quase foi sempre um espinho cravado no fundo da alma. Isso e a
vizinhana. Os ndios ainda ele tolerava. Tinham fornecido bons
motivos para a literatura e alm disso estavam mortos. O pior
eram os negros e os mestios, gente capaz de transformar o gran-
de drama da vida da vida, meu Deus! numa festa ruidosa.
Borges sentia-se europeu. Gostava de ler os clssicos gregos
(gostaria de os ter lido em grego). Gostava do silncio poderoso
das velhas catedrais.
Foi ento que a viu. sua frente uma mulher flutuava, plida
e nua, sobre as bananeiras. A mulher dormia, com o rosto volta-
do para o sol e as mos pousadas sobre os seios, e era belssima,
mas isso para Borges no tinha grande importncia (a especiali-
dade dele foram sempre os tigres). Horrorizado compreendeu
o equvoco. Deus confundira-o com outro escritor latino-ameri-

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Borges no Inferno

cano. Aquele paraso fora construdo, s podia ter sido constru-


do, a pensar em Gabriel Garca Marquez.
Jorge Lus Borges sentou-se sobre a terra hmida. Levantou o
brao, colheu uma banana, descascou-a e comeu-a. Pensou em
Gabriel Garca Marquez e voltou a experimentar o intolervel
tormento da inveja. Um dia o escritor colombiano fechar os
olhos, para melhor escutar o rumor longnquo da noite, e quan-
do os reabrir estar deitado de costas sobre o lajedo frio de uma
biblioteca. Caminhar pelos corredores, subir escadas, atraves-
sar outros corredores, ainda mais escadas e novos corredores, e
em todos eles encontrar livros, milhares, milhes de livros. Um
labirinto infinito, forrado de estantes at ao tecto, e nessas estan-
tes todos os livros escritos e por escrever, todas as combinaes
possveis de palavras em todas as lnguas dos homens.
Jorge Lus Borges descascou outra banana e nesse momen-
to um sorriso ou algo como um sorriso iluminou-lhe o
rosto. Comeava a adivinhar naquele equvoco cruel um ines-
perado sentido: sendo certo que o paraso do outro era agora
o inferno dele, ento o paraso dele haveria de ser, certamente,
o inferno do outro.
Borges terminou de descascar a banana e comeu-a. Era boa.
Era um bom inferno, aquele.

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A Substncia do Amor e Outras Crnicas

UMA GUA ESCURA

Fui eu a comear o jogo. Escolhi o sujeito sentado junto


janela, um jovem plido, estremunhado, culos de aros grossos.
Vestia de preto, mas no como se fosse para um enterro ( o que
se diz de algum vestido de preto): parecia antes que estava a fugir
de um enterro.
Chama-se Cndido Mosso Rabin expliquei a Valria ,
estuda filosofia, e vai a Lisboa, de frias, porque quer conhecer a
cidade onde viveu Fernando Pessoa.
Valria aceitou o desafio:
Certo. Ele prprio escreve poesia. Mas como conseguiu
o dinheiro para a viagem?
Ajuda muito, a quem lana o jogo, se o personagem estiver a
ler. Cndido Mosso Rabin, por exemplo, tinha nas mos o Livro
do Desassossego, organizado por Richard Zenith, na edio brasi-
leira, muito cuidada, da Companhia das Letras. No era difcil
supor que quisesse conhecer a Rua dos Douradores, passear,
com o seu Fernando Pessoa debaixo do brao, pela Rua do Arse-
nal, a Rua da Alfndega, o prolongamento das ruas tristes que
alastram para leste desde que a Alfndega cessa.
A pergunta de Valria, porm, fez-me pensar um pouco.
Como que Cndido tinha arranjado o dinheiro para a viagem?
Ele trabalha noite num bar, a servir mesa, provavel-
mente um lugar frequentado por artistas, poetas, jornalistas.

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Jos Eduardo Agualusa

Cndido um tipo tmido, reservado, embora gentil, que no


participa nas conversas. Os frequentadores do bar acham-no um
tanto misterioso.
Valria entusiasmou-se:
No, no foi com o dinheiro ganho no bar que ele conse-
guiu a passagem para Lisboa. Eu conto como foi: uma noite Cn-
dido conheceu um viajante. O homem era simptico, gostava de
uma boa conversa, passava pelo bar todas as noites, bebia uma
cerveja, bebia outra, e ia-se embora. Uma ocasio ficou at mais
tarde. J havia poucos clientes quando o Viajante ofereceu uma
bebida a Cndido. Quis saber se ele tambm trabalhava ali
durante o dia, onde morava, e finalmente perguntou-lhe se no
gostaria de visitar Lisboa.
Pensei que Valria pretendia enredar-me numa histria de
amor. Infelizmente, era algo ainda mais bvio:
O Viajante pertencia a uma rede de trfico de cocana para
a Europa e queria utilizar Cndido como correio. Achava que a
polcia nunca desconfiaria de algum assim, um pobre sujeito
com ar de seminarista, estudante de filosofia na Pontifcia Uni-
versidade Catlica do Rio de Janeiro, com a mala cheia de papis,
jornais, livros de poesia.
Senti-me defraudado:
O Cndido, um passador? Por amor de Deus, Valria! Olha
bem para o tipo: est ali, muito sentadinho, assustado com os
devaneios de um ajudante de guarda-livros. Aquilo, para ele,
um romance de cavalaria.
Valria ficou ofendida com a observao, discutimos, saltamos
do jovem Cndido para rancores mais remotos e assim estra-
gamos o resto da viagem. Chovia quando o avio pousou em
Lisboa. Abriram as portas, vieram as escadas e descemos debaixo
de uma gua escura. Enquanto recolhamos as bagagens vi

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Uma gua Escura

Cndido, apertado no seu casaco funesto, passar por ns em


direco sada.
A placa dizia: Nada a Declarar. Nada tnhamos a declarar.
O funcionrio da alfndega, porm, olhou para mim, olhou para
a minha amiga, abanou a cabea com um ar de enfado, e fez-nos
passar para a salinha ao lado. Cndido Mosso Rabin tambm
estava l, ainda mais plido, piscando os olhos espantados por
detrs das lentes grossas. Parecia que o tinham acordado, aos
safanes, naquele preciso instante. O polcia colocou a mala dele
num pequeno estrado, apalpou-a, como um mdico examinan-
do um cadver, e abriu-a. Vasculhou entre os livros, entre as
pilhas de roupa, tirou uma pequena caixa de metal, desenroscou
a tampa e eu vi (vimos todos) o p, muito branco, brilhando
angustiado na penumbra.
Valria beliscou-me o ombro: ganhei! O polcia sorriu (a ser-
pente a sorrir para o passarinho):
E ento, senhor David, voc vai-me dizer o que isto?
O jovem olhou-o com o cansao dos vencidos:
o meu pai.
Mostrou um papel cheio de carimbos e assinaturas. Era real-
mente o pai dele, falecido em Petrpolis, incinerado em So
Paulo, e que ao fim de cinquenta anos regressava a Lisboa.

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A Substncia do Amor e Outras Crnicas

MERDE DARTISTE

Os objectos de plstico tinham sido recolhidos explicava o


catlogo , em diversas praias da Gr-Bretanha, e estavam dis-
postos cuidadosamente em crculo no cho da galeria. Barata
olhou para a obra e riu-se alto. Ele ri-se sempre nas exposies
de arte moderna.
(Rio-me s gargalhadas para ningum pensar que levo aqui-
lo a srio. A arte contempornea uma farsa. Esses tipos, os tais
artistas, nem sequer so verdadeiros malucos, esto simples-
mente a fazer troa de ns. Punha-se a citar exemplos, a come-
ar pelo italiano Piero Manzoni, precursor da chamada arte
conceptual, que nos anos sessenta mostrou uma srie de caixi-
nhas, assinadas e datadas, com o ttulo Merde dArtiste. A partir
dessa altura, a arte, para Barata, foi-se degradando cada vez mais.
Apesar disso o meu amigo frequenta as galerias: vou a todas as
exposies para me indignar. A indignao um purgante do
esprito.)
Barata, portanto, riu-se, e em seguida debruou-se sobre a ins-
talao para melhor se indignar. Foi com esse gesto que comeou
a sua desgraa: o telemvel deslizou-lhe do bolso do casaco e caiu
no meio da, digamos assim, obra de arte. Ficava bem ali, um apa-
relho bonito, azul metlico, pouco maior que um carto de
crdito. Barata estendeu a mo para o recuperar mas o guarda
impediu-o:

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Jos Eduardo Agualusa

Ateno, o senhor, o senhor mesmo! proibido mexer nas


obras expostas.
Barata endireitou-se, endireitou o casaco, e tentou explicar
o acontecido:
Est a ver o telemvel? meu...
O guarda, um homem de fsico poderoso, muito srio, muito
apertado na sua farda de general de folguedo, olhou-o com seve-
ridade:
Vossa Excelncia, j se v, no gosta de arte moderna. Est
no seu direito. Mas no vou permitir que incomode os outros
visitantes. Faa o favor de sair.
Sair? Conheo pessoas que se deixariam assassinar apenas
por delicadeza; no o caso de Barata, certamente, mas seria
exagerado consider-lo um arruaceiro. Geralmente evita envol-
ver-se em discusses. Porm que diabo! , tratava-se do seu
telemvel. O meu amigo no podia deixar a coisa assim:
Tem razo, no gosto de arte moderna, odeio arte moder-
na, e no devia ter entrado aqui. Mas o telemvel meu. No faz
parte disso, dessa porcaria, e eu vou lev-lo comigo.
O guarda inflamou-se. Estava preparado para aquilo. H mui-
tos anos que imaginava o que faria numa situao semelhante.
Preso entre quatro paredes, lutando para no sucumbir ao tor-
por insuportvel das longas tardes de Vero, deixava-se facil-
mente transportar pela fantasia. Recortava e coleccionava todas
as notcias sobre atentados contra obras de arte. Roubos tam-
bm o interessavam, mas menos. A ele o que o fascinava eram os
iconoclastas: o tipo que lanou um frasco de tinta sobre a Gio-
conda; o sujeito que acrescentou a marca da prpria mo a uma
tela de Tpies. E agora ali estava o inimigo sua frente um br-
baro, um huno, quem sabe, um anarquista! Agarrou Barata por
um brao e preparava-se para o expulsar da galeria, a pontap,
quando o telemvel tocou. Naquela altura j havia pelo menos

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