Vassouras também servem para voar
De Lili Pacheco
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Vassouras também servem para voar - Lili Pacheco
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Vassouras também servem para voar
Ela só via o chão.
Varria de manhã, varria de tarde, varria de noite. A casa nunca ficava limpa.
– Ainda tem sujeira ali – dizia o marido quando chegava do trabalho.
E ela nunca parava de varrer. O céu? Nunca se atrevera a ver.
Um dia, o marido chegou e viu que a comida ainda não estava pronta.
– O que você fez a manhã toda, sua bruxa?
– Bruxa? – ela perguntou, paralisando a vassoura por um momento, sobrancelhas franzidas.
– Sim! Vocês, mulheres, são todas bruxas!
Ela pensou nisso o resto do dia. Varria pensando. Pensava varrendo.
Quando se aproximou o fim da tarde, parou a vassoura um instante para apanhar um livro que caíra da estante.
O velho volume estava aberto numa página colorida.
Era a figura de uma mulher com uma vassoura. Mas – estranho – a mulher não varria.
Voava. Voava na vassoura, mas voava.
Fechou o livro e foi para o terreiro. Olhou para o chão. Olhou para a vassoura.
Como a mulher da história fazia para voar? Perguntando-se isso, ela olhou para o céu pela primeira vez.
Foi a primeira vez que ela viu os patos voarem da lagoa perto da casa, formando um V
no ar.
V
de varrer… mas também de Voar.
Varrendo sempre, ela levantou voo com os patos, sem nem perceber: ficou bem na ponta do V
!
Segurando no chão sua vassoura, ela seguiu as nuvens que passavam. Voou com elas até o pôr do sol…
Vieram as estrelas, cada uma delas uma nota da música que a chamava para a liberdade.
Veio a lua, lua cheia: naquela noite, quem olhou para o céu viu uma silhueta de mulher cruzando o enorme disco prateado. Era ela, ainda com a vassoura a varrer.
Enfim descobriu que, mesmo varrendo, só precisava olhar para o céu e querer voar.
A partir de então, sempre com sua vassoura a varrer, ela passou a voar todos os dias.
(De vez em quando, até esquecia o grande e velho caldeirão na cozinha e deixava a comida por fazer.)
Entre o prado e o bosque
Ele corria pelos prados selvagens; ela passeava pelos bosques floridos.
Ele, corcel. Ela, unicórnio.
Ele, verão. Ela, primavera.
Linha a linha, ia o corcel correndo contos; verso a verso, seguia o unicórnio passeando poemas.
Numa cidadezinha do interior, lápis e papel na mão, um rapaz se inspirara na lida com os animais e as plantações. Escrevia um conto chorando as durezas do trabalho. O corcel sentira um forte puxão em sua crina, e levava o rapaz pelo difícil terreno da vida.
Naquela história, o corcel só podia andar. Andar a passos curtos. Somente vírgulas humildes e miúdas e pontos finais sofridos eram permitidos, além de pontos e vírgulas alquebrados. É que, às vezes, mesmo escrita em campo aberto, uma história encontra pedra e espinho em seu caminho. Outras vezes, porém, uma história vivida na prisão da floresta encontra uma clareira onde corre livre.
E foi isso que aconteceu quando, naquele mesmo momento, numa cidade cosmopolita, uma mocinha apaixonada começou a digitar um poema. O unicórnio sentiu um leve toque na ponta do chifre e partiu.
Partiu a galope: passos largos, livres – quase voava sobre as copas das árvores! Sem sentir no chão as patas – que, de fato, mal o tocavam –, numa extensa clareira do bosque, sem pedras, sem espinhos, nem pontos e vírgulas, nem pontos finais eram escritos.
Exclamações só vinham aqui e ali, quando de um suspiro de saudade ou arroubo de contemplação! Interrogações? Só quando de uma dúvida inquietante ou angustiante incerteza (quem sabe um será
que vinha torturar?).
Fora isso, as delicadas patas do unicórnio só escreviam vírgulas – mesmo assim, raras e amplas. Porque os versos da jovem tresloucada eram livres, livres da pontuação, da escansão… livres da razão.
Enquanto, nas patas do unicórnio, o poema da moça fluido transcorria, o corcel, que a terra prendia, só falava de mágoa.
Ele, fogo; ela, água.
Terminado o conto do fazendeiro, o corcel estava exausto. Mal começara a descansar, porém, sentiu em sua crina novo puxão – dedos levemente trêmulos tocavam, com suavidade, seu pescoço. Desta vez, era um idoso senhor que rememorava seu distante passado. Um passado cujas asperezas o tempo e a nostalgia tinham feito o favor de amaciar.
Finalmente, o corcel podia galopar: perdido entre as esmaecidas lembranças de infância e juventude, o velhinho não mais queria pisar o chão. Os pontos finais, bem espaçados, separavam longos períodos. Que delícia escrever num prado gramado!
Às vezes, vinham-lhe nítidos quadros de brincadeiras infantis. Para o corcel, era a hora de trotar – as vírgulas pululavam no papel, sorridentes, molecas, separando frases e orações como se corressem descalças num imenso quintal, suadas, de bochechas vermelhas!
Já quando o velho escritor relembrava os desafios da juventude, o corcel marchava; era a vez dos pontos e vírgulas orgulhosos e seguros de si. Aqui e acolá, nervosas exclamações se faziam sentir, quando os momentos de medo e conflito o obrigavam, de súbito, a frear!
Lembrou-se então o velhinho dos amores da vida… Aí as patas do corcel salpicavam reticências, em seus devaneios sem fim… De tanta melancolia, quase não tocavam o chão…
Voava o unicórnio enquanto o corcel ia a galopar.
Ele, trono; ela, altar.
De repente, ela começou a compor um poema clássico com seus mimosos cascos: havia tocado a ponta do chifre uma senhora idosa que não vivia sem rimas. Verso sem métrica a deixava elétrica; verso livre lhe era coisa tétrica.
O unicórnio, que tanto gostava de galopar, agora tinha de marchar: sete, sete, sete, sete; sete, sete, sete, sete; sete, sete, sete, sete… (Estrofe por estrofe, o metro se repete!)
Agora, ela não estava mais na clareira; tinha de balizar entre as árvores do bosque, verso a verso, estrofe por estrofe.
Nas patas, vírgulas sempre presentes eram seguidas por interrogações de angústia e exclamações de paixão, e, aqui e ali, reticências vinham arrastar a alma pelo sonho sem fim…
Depois do poema tão piegas da mocinha (que quase o fizera voar) e da poesia da senhora (que por pouco não o levara a fender os finos cascos de tanto pisotear), o unicórnio queria mesmo era escrever uns haicais, dando só umas voltinhas bem curtas, para não se cansar mais!
Galopando o corcel e marchando o unicórnio, não é que foram, pouco a pouco, se aproximando? O contista falava de sua primeira namorada, que lhe fora negada; a poetisa lamentava seu primeiro amor, que lhe fora proibido…
Foi assim que, no limite entre o prado da inspiração e o bosque dos sonhos, o unicórnio encontrou o corcel… e começaram, juntos, a escrever um cordel!
Ele, chão; ela, céu.
Contavam uma história sem poder parar de rimar!
Ele, terra; ela, ar.
E foi assim que, num banco de pracinha, naquela tarde de calor – depois de décadas de platônico amor –, a poetisa e o contista, dona Marta e seu Juarez, encontraram-se outra vez.
Olhos nos olhos, mãos sobre mãos, ouviram um som: música doce e longínqua, ora trazida, ora levada pelo vento…
Não sabiam eles que o corcel e o unicórnio, fechando a história com românticas reticências, relinchavam de contentamento!…
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