Vera França
Vera França
Vera França
- O artigo de Vera França aborda o acontecimento a partir da perspectiva do pesquisador L.Quéré, que o
toma como uma ruptura da normalidade que desencadeia sentido e descortina novas possibilidades. O
texto, assim, se afasta das abordagens que separam e autonomizam mídia e vida social, como se duas
instâncias completamente apartadas uma da outra fossem. Interessa ao texto apontar as relações
existentes entre mídia e acontecimento.
- Na mídia, tanto pode surgir e se produzir acontecimentos (dimensão existencial), como se pode
repercuti-los, dando à eles uma segunda vida (dimensão simbólica). A mídia, assim, influencia a
dinâmica social e incide sobre as nossas formas de convivência, atravessando as múltiplas realidades
que compõem o mundo da vida.
- Com o desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação, o paradigma do “um para muitos”
que pautava a interação dos jornais, TVs, rádios, cinema etc com os espectadores passou a conviver com
a possibilidades de esses espectadores interagirem entre si, assumindo também o papel de emissores de
mensagens. O termo mídia, assim, toma outra dimensão, passando a atuar também como sujeito –
como diz França, “percebemos que essa nova instância produz e configura um discurso próprio, e um
lugar de fala possante e poderoso”.
- Para o senso comum (e para muitos pesquisadores), mídia e sociedade são instâncias separadas. A
mídia, nessa perspectiva, é vista como externa à sociedade. (ex.: “a Globo é machista”; “a Folha é
conservadora”, “a internet é um meio de opiniões selvagens”).
- Para França, contudo, “a mídia faz parte da sociedade, está inserida nela”. Mais que isso, ela “constitui
talvez a instituição que melhor caracteriza o cenário contemporâneo”, posto que nosso comportamento
e ações são o que são porque dispomos, entre outros, da internet, da fotografia, da música, cinema etc
para nos exprimirmos e formatarmos nosso cotidiano. “A mídia é o espaço privilegiado no qual a
sociedade fala consigo mesma, a propósito de si mesma”.
A questão que fica é: a mídia de que dispomos nos torna mais poderosos ou fragilizados?
- Para responder a questão, França passa a tratar do acontecimento. O jornalismo dispensa a si próprio
a tarefa de “farejá-los, identificá-los, e então narrar”. Nessa compreensão, seria a natureza intrínseca de
um fato que o define como acontecimento. O acontecimento, portanto, seria autoevidente.
- Vera ressalta, então, que “um acontecimento acontece a alguém; ele não é independente nem
autoexplicativo, não são suas características intrínsecas que fazem o seu destaque, mas o poder que ele
tem de afetar um sujeito”. Ou seja, o acontecimento é na medida em que interrompe uma rotina e
atravessa o já esperado e conhecido. Os acontecimentos “se inserem em nossa experiência, no âmbito
de nossa vivência”.
- Nessa quebra do presente promovida pelo acontecimento gera-se interrogações e se desvelam
sentidos. Alarga-se o leque do possível (no que Vera concorda com Martin Seel, aproximando o
acontecimento da experiência estética), convocando passado e futuro e nos fazendo olhar de modo
diferente para o passado. O acontecimento e seu poder hermenêutico suscita em nós a ação para que
retomemos a “normalidade”.
- Eis o conceito de acontecimento do texto: “fatos que ocorrem a alguém; que provocam a ruptura e
desorganização, que introduzem uma diferença, fazendo agir (têm uma dimensão pragmática). Tais
ocorrências curto-circuitam o tempo linear”.
- Os acontecimentos, então, nos fazem falar. Lembra Vera que “somos animais simbólicos, capazes o
tempo todo de duplicar nossa realidade a partir de construções imagéticas e representacionais” (seria
possível dizer que tendemos a “diabolizar” a realidade, nos termos propostos por Martins?). Ao
construir narrativas em torno dos acontecimentos, fazemos com que eles adquiram uma segunda vida,
existindo como discurso e representação (o que vai de encontro com a repercussão transmídia de
Geane). O acontecimento se torna um objeto simbólico.
- As duas vidas do acontecimento coexistem. Os acontecimentos que vivemos são marcados, além de
por suas características próprias, por outras representações que compõem o nosso repertório e que
associamos à eles quando o tornamos simbólico. Aproximando o acontecimento da experiência, Vera
lembra que ele faz emergir outras cenas já vividas, vistas, e que sobrevivem em nós na forma de
imagens simbólicas. Tais cenas determinam a recepção do acontecimento para nós. Da mesma forma, a
segunda vida do acontecimento traz marcas da experiência e do vivido, remetendo novamente ao
acontecimento.
Sobre a segunda vida, então, o certo seria dizer “a mídia e o acontecimento” ou “o acontecimento na
mídia”?
- Em uma primeira perspectiva, pode-se dizer que o jornalismo e a mídia acolhem e repercutem os
acontecimentos do mundo. Esse ponto de vista vai no sentido de que a mídia retrata uma realidade que
lhe é exterior.
- Mais recentemente, contudo, a mídia tem cada vez mais assumido uma função de entretenimento. Os
meios de comunicação, assim, assumem um lugar central na cultura, “construindo socialmente a
realidade”, deixando de falar do mundo e passando a falar de si própria. Nessa perspectiva, seria
acontecimento o que a mídia aclama como tal. Não seria o impacto do acontecimento o importante,
mas a construção midiática em torno dele. Os acontecimentos, portanto, seriam artificiais e
cenográficos, substituindo a vida cotidiana das pessoas (o que concorda com Martins e o seu “cotidiano
em que arriscamos a pele” negado).
- Essas duas perspectivas assentam-se na já criticada visada que contrapõe mídia e sociedade,
construção midiática e mundo real.
- Vera apresenta, então, conceitos que guiarão sua posição sobre o acontecimento e a mídia. Tratam-se
do “mundo da vida”, “realidade da vida” e “realidades múltiplas”. O mundo da vida se refere à esfera
das experiências cotidianas, aquilo que nos é dado como perceptível, “compreende diferentes esferas
da realidade centradas no espaço e no tempo em torno do meu corpo”. A realidade da vida cotidiana é
onde se dá nossa ação, nossa convivência –o aqui de meu corpo, o agora. O presente, enfim. Essa
realidade cotidiana convive e se alimenta de outras esferas (realidade política, científica, a ficção). Os
jornais, a tv e a internet estão, então, inseridos na nossa realidade cotidiana (e a alteram e constrangem,
como defende Martins). O jornalismo, os países distantes e a ficção, por seu turno, também constituem
realidades e, como já dito, dialogam e penetram a nossa realidade cotidiana. As múltiplas realidades,
portanto, existem e coexistem, dialogando com mais velocidade em nossos tempos de internet. A mídia,
então, faz conversar realidades distintas (e temporalidades, como também apontou Martins).
- O mundo e a mídia, portanto, não são entidades autônomas. “A mídia penetra e se imiscui no nosso
cotidiano”, facilitando “a interpenetração de diferentes esferas da realidade”. Assim, a mídia “tanto
pode ser um dos lugares em que surgem e se produzem acontecimentos como o espaço em que
acontecimentos são repercutidos”.
- Indo de encontro à ideia de transmídia apresentada por Geane, lembra Vera que um episódio de uma
novela ou uma postagem no twitter podem se tornar um acontecimento tanto quanto um caso de
corrupção no congresso ou uma partida inacreditável no final de um campeonato de futebol. Tais
eventos repercutem em vários quadrantes da vida social (na mesa de bar, inclusive), mas é na mídia que
eles encontram espaço privilegiado, é nela que eles “são revividos e ganham sua existência simbólica”.
Não raro, essa segunda vida é tão impactante e transformadora quanto o acontecimento em si. E se
esses acontecimentos impactantes não são privilégios de nossa época, é possível afirmar que em
nenhuma sociedade eles foram comunicados com tamanha profusão.
- Voltando a pergunta: estamos mais poderosos ou mais fragilizados com a mídia de que dispomos? É
possível dizer que sim, estamos mais poderosos. Nunca antes na história do mundo tivemos acesso a
tanta informação; a presença da mídia e das possibilidades de interação, assim, “empoderou” a
sociedade. Por outro lado, com a enchente de informação que nos chega, estamos sendo realmente
afetados pelos acontecimentos? Eles seguem provocando sentido e desanuviando ações?
- Observa Vera, contudo, que certos acontecimentos seguem nos afetando profundamente, sobretudo
quando dizem respeito à morte de ídolos, assassinatos familiares e tragédias. Em seguida, ela apresenta
uma possibilidade de leitura desse fenômeno.
- O acontecimento tem natureza relacional: ele acontece a alguém. É preciso investigar essa relação.
- Não é possível colocar a culpa no povo “insensível” e “despolitizado” que está ávido por
sensacionalismo. Do mesmo modo, não podemos culpar a mídia, que agiria sempre orientada pelo lucro
e atendendo ao mercado, à revelia de compromissos éticos e sociais. A tese de que a informação em
excesso narcotiza, portanto, não pode ser abraçada, pois “a sociedade que não reage a muita coisa,
reage e se move por outras”.
- Pensar a dimensão relacional dos acontecimentos implica pensar “na convergência entre fatos e
sentidos, discursos e ações, afetando e sendo conformado pelos indivíduos no contexto de sua
experiência”. A experiência é social, moldada pela presença de muitos e pelos valores que nos
impulsionam e dão sentido às coisas e às ações. Desse modo, “a pauta de acontecimentos de uma
sociedade –daquelas ocorrências que explodem, fazem falar—nos fornece o seu retrato”.
- As mudanças tecnológicas alteram a natureza de nossos mecanismos perceptivos. O mundo, hoje, “se
dá a ver de novas formas, nossos sentidos são aguçados diferentemente” (indo ao encontro de Martins).
“O excesso de informação e a velocidade com que elas circulam estreitam nosso espaço de reflexão”,
exigindo uma atenção seletiva de apreensão e reação aos acontecimentos. Em suma, vivemos novas
condições de experiência (relaciona-se à Martin Seel).
***
- Geane apresenta três casos que ilustram as interações intermídia contemporâneas: a “cobertura”, via
twitter, de René Silva sobre a ocupação do morro do alemão, quando o rapaz alimentou a rede social
com informações sobre o conflito na comunidade, sendo replicado por veículos tradicionais como CNN,
BBC e Al Jazeera; as manifestações que deflagraram na primavera árabe no Egito, organizadas no
Facebook, Twitter e Youtube, redes sociais posteriormente bloqueadas pelo governo, que também
coagiu uma empresa de telefonia celular a enviar mensagens favoráveis à ditadura para os celulares de
seus clientes, e a posterior revolta do diretor local da Google, que criou uma plataforma digital que
permitiu aos manifestantes continuarem usando o Twitter para relatar os acontecimentos das
manifestações e os excessos da polícia; e as “manifestações” de hackers na internet após a prisão de
Julian Assange –eles invadiram sites que bloquearam doações ao Wikileaks, além do site da justiça
britânica. Episódios como esses, diz Geana, “atestam a reconfiguração do espaço midiático na
contemporaneidade, marcado pela lógica participativa e pela interconexão em rede”. Elas refletem,
continua, as “formas reticulares de audiência em rede, relacionadas às condições de midiatização dos
acontecimentos contemporâneos”.
- As singularidades dos acontecimentos apontados por Geane estão relacionadas à capacidades deles de
se espalharem intermidiaticamente, adquirindo notoriedade à medida que são compartilhados em rede
(mais uma vez, a segunda vida do acontecimento). Assim, quanto mais informação se inscreve
intermidiaticamente, mais visibilidade os acontecimentos alcançam e mais relevância adquirem na
construção social da realidade pelo “bios midiático”.
- Por intermídia, entenda-se os “processos de construção narrativa que utilizam diferentes linguagens e
diferentes meios”. A especificidade da rede intermídia atual, diz Geane, está no “imbricamento de
linguagens que constituiu o desenvolvimento das mídias de massa ao longo do século 20”. Tais mídias
foram se tornando híbridas de linguagem, compondo a tal rede intermídia. Como nas artes, como
aponta Martin Seel, “o efeito de um meio se torna mais forte e intenso justamente porque o seu
conteúdo é outro meio”. O meio, portanto, é a mensagem.
- Na rede intermídia, o modo de processamento de uma mídia é verificado por outra. A compatibilidade
e a permeabilidade são suas características fundamentais. As mídias não estão isoladas, mas conjugadas
numa configuração complexa. Emerge, claramente, um “complexo ecossistema comunicativo”, com um
meio se adaptando ao outro por processos interacionais. Nenhum meio é puro, já que a mistura é parte
constitutiva da formação de cada meio e da rede intermídia (exatamente o mesmo que diz Seel sobre a
arte).
- A atualidade é marcada por “práticas culturais coletivas e integradas que se revelam nas contradições
das paisagens culturais emergentes”. Mediado em todos os flancos por meios antigos e novos, é essa a
configuração do “ecossistema cultural e técnico”.
- Privilegia-se, assim, o enlace entre processos centralizados de mediação social, típico dos meios de
comunicação tradicionais, e processos característicos das mídias sociais e da internet. Modela essa
mistura a lógica das conexões, “que integra mecanismos típicos da lógica transmissiva, que rege a
comunicação de massa, e da lógica participativa, relacionada ao compartilhamento de informações em
ambientes colaborativos”.
- O equilíbrio é fornecido pelo intercambio entre lógicas dissonantes, porém complementares. Essa
contaminação entre lógicas comunicacionais distintas e processos de mediação centralizados e
diversificados ampliam a visibilidade midiática e o alcance social de acontecimentos que se desdobram
em rede (empoderando a sociedade, como diz Vera?). O poder de mediar se baseia em fazer distinções,
discriminar. À medida que esse poder se expande reticularmente, mais se diversificam os processos de
mediação e as suas linguagens.
- O que torna porosos e integrados os ambientes sociocomunicacionais é, portanto, os fluxos de
informações que eles agenciam. Tais processos tecnologicamente mediados “interferem nas condições
de produção, circulação e consumo da cultura” (no que concorda Martins).
- Geane reforça a importância de se observar o papel ativo do receptor das mensagens, enfatizando “o
contexto das práticas sociais e dos sentidos produzidos no âmbito da assimetria entre codificação e
decodificação”.
- Atualmente, a sociedade não só se utiliza de diversos dispositivos para efetuar a circulação comentada
daquilo que o sistema produtivo oferece ao sistema de reprodução, constituindo assim um sistema de
resposta social, como também se torna produtora por meio do produsage. A nova lógica dos mídia se
aproximam, hoje, da noção de mass self communication.
- Nesse contexto, o que rege a audiência não deriva unicamente das estratégias mercadológicas dos
grandes centros de emissão, mas também da diversificação das mediações sociais, do compartilhamento
e da apropriação social de informações. Os novos centros de mediação, contudo, não se contrapõem
aos velhos: eles se acoplam e se potencializam mutuamente pela dinâmica intermidiática.
- A nova audiência é mais sofisticada, porém mais fragmentada e provisória. Quanto mais um tema se
faz notório em uma mídia, maior é sua chance de se tornar notório num contexto ainda mais amplo.
Estamos diante, pois, de um modelo horizontal de agendamento das informações. É o que aconteceu no
caso de René: alguns usuários com muitos seguidores no twitter passaram a replicar suas postagens,
ampliando o acesso às informações para outros usuários da rede. Por fim, o garoto passou a agendar
grandes corporações de mídia em todo o mundo, demonstrando a permeabilidade entre processos
verticais e horizontais de mediação da informação. Esse processo de translação da audiência na
passagem das massas à rede é denominado audienciação. A dinâmica da audiência passa a ser o
resultado de uma espiral de mediações abertas à segmentação midiática e a participação ativa dos
atores sociais (mais uma vez, o empoderamento apontado por Vera). A audiência está à deriva e não
mais se vincula de forma duradoura a determinado ambiente midiático. O caso de René, novamente, é
ilustrativo: a audiência que ele obteve foi momentânea.
- Essa visibilidade mediada quase infinita “se tornou o fundamento pelo qual as lutas sociais e políticas
são articuladas e se desenrolam. A lógica das conexões amplia a visibilidade das lutas sociais e políticas
pela dinâmica intermidiática, reconfigurando as esferas midiáticas de poder”. (Isso se fez perceber, por
exemplo, durante as manifestações de 2013 –feita as ressalvas de Sergio Dávila sobre a replicação de
material da Folha nas redes sociais...).
- Mesclam-se, assim, a audiência circunstancial típica das redes sociais e a audiência massificada das
mídias tradicionais (num encontro de temporalidades?). A comunicação de massa se potencializa pela
perspectiva qualitativa da interlocução mediada, sendo que o contrário também ocorre. A intermídia é
eminentemente híbrida (como o humano, em Martins).
- Dois conceitos são importantes para se entender a rede transmídia: heterotopia e heterocronia.
Heterotopia diz respeito às localizações desviantes e transitórias na rede. Justapõem-se espaços
invertidos, lugares de passagens, espaços “que por si só seriam incompatíveis”. Heterocronia, por sua
vez, diz das temporalidades diversas das heterotopias. Convivem, na rede, temporalidades múltiplas, ao
mesmo tempo de acúmulo temporal como fugazes. As heterotopias da rede se constituem de
heterocronias de ruptura, com bancos de dados perenes e atualizações constantes. O regime temporal
da rede se ancora em variabilidade de durações.
Conclusão
- O caráter quantitativo, assim, “se torna uma grandeza diretamente proporcional ao compartilhamento
social e à participação do usuário, em vez de ser, tal como era no contexto de massa, adesão
indiscriminada a produtos midiáticos ofertados em larga escala”. A rede opera por tensão e
deslocamento de poder (ao contrário do que diz Martins?).
***
- O autor inicia o texto negando duas das características que são normalmente atribuídas à percepção
estética: a capacidade de permitir acesso ao ser e a de revelar esferas genuínas de ilusão; ou, em outros
termos, de mostrar as coisas como realmente são. Essa ideia contrasta a intuição e a reflexão, ser e
ilusão.
- A percepção estética dos objetos de arte, para certa teoria da mídia, desvelaria a “construtividade de
todas as relações do real”. As estruturas gerais da realidade, assim, seriam acessíveis pela percepção
estética.
- Para os estetas da ilusão, por sua vez, nada pode ser inferido do campo da estética –a estética seria
uma zona separada da realidade, fora da continuidade do ser.
- Apontando sempre para um domínio superior ao do real, tais perspectivas entendem a percepção
estética como o “voo da presença fenomenal da vida humana”, sendo a consciência estética vista como
uma “falta de atenção ao concreto aqui e agora do mundo perceptível”. O autor, ao contrário, entende a
consciência estética como uma forma privilegiada de intuir presença. Partindo dessa ideia, Martin Seel
irá refeltir sobre “o lugar da experiência estética no contexto das práticas humanas”. Negando qualquer
“derrotismo estético”, o autor acredita que a experiência estética pode “fornecer temas com um tipo de
consciência que nenhum outro modo de experiência é capaz de fornecer”.
- Para falar do caráter distintivo da experiência estética da arte, o autor delineia alguns conceitos:
Percepção estética: “consiste em atenção ao aparecimento do que está aparecendo”, “atenção para a
maneira como algo está presente em nossos sentidos aqui e agora”. Está ligada, portanto, à intuição do
instantâneo, do agora e da aparência. A percepção estética pode se dar em qualquer lugar e a qualquer
hora, e o seu gozo não se limita ao mundo das artes. É antes uma “capacidade básica de indivíduos que
sabem que apesar de todas as possibilidades de determinação e controle, a situação de vida deles é
continuamente indeterminada e fora de controle” (no que Seel discorda de Martins?). A intuição
estética, então, faz escapar o indivíduo da “determinação do ser-assim”, apelando para a
“individualidade do aparecer” do aqui e agora. É, como diz o primeiro rabino de “Um Homem Sério”, um
olhar através da janela.
Manifestações pelo impeachment se realizam como fenômeno estético - Um evento estético também
está inserido nessa dinâmica hermenêutica ao extravasar o que é esteticamente esperado. Tais
fenômenos fazem aparecer o que antes era considerado impossível, e é importante ressaltar que suas
possibilidades de aparecimento não estão restritas às artes: o 11 de setembro, por exemplo, é também
um evento que possui carga estética. “A experiência estética tem de acontecer e somente pode
acontecer se os sujeitos se envolverem com o fazer presente sensual de fenômenos e situações que
alteram a percepção dos sujeitos do que é real e do que é possível”.
Experiência da arte: “Objetos de arte não existem independentemente das possibilidades de percepção
deles como objetos de arte”. Já olhamos para os objetos de arte com a expectativa de que eles nos
permitirão perceber e vivenciar de forma diferente –“que as obras de arte possam tornar-se um evento
para nossas disposições mentais e sensuais”. A experiência da arte, portanto, difere dos eventos de
percepção, pois é causada por eventos de apresentação. O objeto de arte é, antes mesmo que esse
termo tomasse a acepção atual, uma performance que demonstra um arranjo específico de elementos.
Nessa apresentação, dá-se a ver o material, as configurações internas e as perspectivas do objeto
artístico. “Obras de arte são eventos de percepção de um tipo específico, precisamente porque são
eventos de apresentação de um tipo específico”. Nesses eventos de apresentação o significado da
apresentação, bem como o significado do que é apresentado, é incerto e aberto. “As possibilidades
imprevistas de apresentação e as possibilidades do que é apresentado se tornam evidentes”. Por essas
razões, os objetos de arte são entendidos e vivenciados como apresentações extraordinárias.
- Duchamp já teorizava sobre que tipo de objeto se apresenta como um objeto de arte, bem como o que
é que faz o objeto se tornar um objeto de arte. Ao nos depararmos com um objeto de arte, é comum
que levantemos a pergunta: “Que tipo de texto é esse?”, “como ele se relaciona com o compendio de
textos que constituiu a sua obra?”. As apresentações artísticas, então, tratam de modos de
apresentação e levantam a questão sobre o que está realmente sendo apresentado. Eles expõem suas
formas, confrontando-nos “com a questão do que é apresentação e de como ela é”. A partir de um
tratamento específico do espaço e do tempo, do movimento de corpos e sinais e da relação de materiais
e meios, os objetos de arte desafiam “nossa capacidade de percepção”, num evento que ao mesmo
tempo “gera uma revolta do presente, mas também permite uma apresentação de presença”
(retomando, assim, os acentos do tempo?). “Na arte encontramos objetos que, em virtude de sua
presença improvável, permitem a experiência do passado ou do futuro, ou de um presente lembrado ou
imaginado”.
O objeto produz uma ruptura na continuidade de sua autocompreensão através da sua presença. A arte
“confunde essas constelações do possível e do impossível, do que está presente e do que está ausente,
(...) quebrando assim com o fluxo contínuo da realidade. (...) Esta consciência do real no possível e do
possível no real é a consciência da presença –consciência de quão aberto o curso do tempo e a ordem
das coisas realmente são”.
Interação de formas de arte: não há fronteira clara entre as diversas modalidades artísticas. “A
literatura tem relações diferentes com a música do que, digamos, com o drama: diferentes relações com
o cinema do que, por exemplo, com a dança, que tem relações apenas periféricas em relação a
distinções espaciais e olfativas, que desempenham um papel mais importante em outras artes”. A
apresentação, através da qual a manipulação de determinados materiais e meios torna-se uma
performance artística, é divergente e intercomunica desde sempre os modos processuais das diversas
formas de arte, de modo que “todas as formas de arte têm relação com inúmeras outras”. “O caráter
específico da experiência de formas de arte individuais surge da sua ligação especial a outras formas de
arte”. O que constitui o caráter específico das artes é, então, sua posição entre as outras artes. “Todas
as formas de arte são artes espaciais e temporais, embora não no mesmo grau”. (Perceba que a
definição de arte vai de encontro à definição de transmídia de Geane). É só através desta comunicação
com outras artes que a arte é o que é.
- É a “comunicação entre as artes que se torna um evento dentro dos eventos de apresentação de obras
de arte individuais”, de modo a envolver a relação entre o trabalho com o seu gênero e a relação deste
com outros gêneros. Romances do século XX, por exemplo, fizeram uso de técnicas “cinematográficas”,
ao passo que muitos filmes se valem de recursos “literários”.
- Entender as artes, assim, é colocá-las numa perspectiva historicista. Só assim é possível “diferenciar e
comparar as dimensões da percepção e experiência estética como elas se revelam dentro das práticas
culturais dos últimos séculos”. O potencial de sensibilização estética tem se desenvolvido e se orientado
em determinadas direções ao longo do tempo histórico (numa perspectiva que coincide com Martins).
- A experiência da intermidialidade das artes está ligada à hipótese de uma capacidade treinada para
percepção. Os filmes são musicais para os olhos, a poesia é também gráfica e a música e a pintura são
artes espaciais, ao passo que as instalações têm raízes na espacialidade das imagens e dos sons.
- Sobretudo, a experiência da arte vive da experiência fora da arte. A experiência estética, enfim, “não
conhece realização canônica verdadeira: a experiência estética permite que o indeterminado no
determinado, o que não é realizado no realizado e o que é incompreensível no compreensível se tornem
evidentes”.
***