"Tchau, Querida!": Por Uma Estética Do Extremismo A Partir Dos Protestos Pelo Impeachment de Dilma Rousseff

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020

“Tchau, querida!”: por uma estética do extremismo a partir


dos protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff 1
"Tchau, querida!": an aesthetic of extremism in the
protests in favor of Dilma Rousseff's impeachment
Leandro Aguiar Severino dos Santos 2

Resumo: Em uma tentativa de complementar as investigações


sociopolíticas, filosóficas e econômicas sobre a crise democrática e
o recrudescimento da extrema-direita no Brasil e no mundo
[GENERALIZAÇÕES; NO PAÍSES], propomos uma abordagem
atenta à constituição estética desse “novo” ator político.
Encarando o acontecimento e sua relação com a mídia, como
teorizou Louis Querè, como via hermenêutica para acessar a
construção de imaginários em torno do passado, presente e
futuro, e acompanhando Hans Gumbretch no entendimento de
que os acontecimentos constroem-se na oscilação entre “efeitos
de presença” e “efeitos de sentido”, arriscamos algumas
observações sobre os protestos em favor do impeachment de
Dilma Rousseff em 2015 e 2016. A intenção é ensaiar as bases
para uma genealogia, nos termos de Michel Foucault, voltada para
a constituição estética destes protestos, o que, acreditamos,
ajudará na compreensão de aspectos da cultura política brasileira
que análises exclusivamente sociológicas ou históricas podem
deixar escapar.

Palavras-Chave: Cultura política. Estética do extremismo. Protestos antipetistas

Abstract: In an attempt to complement the socio-political, philosophical and economic


investigations on the democratic crisis and the upsurge of the extreme right in
Brazil and worldwide, we propose an attentive approach to the aesthetic
constitution of this "new" political actor. Facing the event and its relationship with
the media, as Louis Querè theorized, as a hermeneutic way to access the
construction of imagery around the past, present and future, and following Hans
Gumbretch in the understanding that events are built in the oscillation between “
presence effects ”and“ sense effects ”, we risk some observations about the protests
in favor of Dilma Rousseff's impeachment in 2015 and 2016. The intention is to
rehearse the bases for a genealogy, in the terms of Michel Foucault, focused on the
aesthetic constitution of these protests, which, we believe, will help to understand
aspects of Brazilian political culture that exclusively sociological or historical
analyzes may miss.

Keywords: Political culture. Aesthetics of extremism. Antipetistas protests.

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Experiência Estética do XXIX Encontro Anual
da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020
2 Leandro Aguiar Severino dos Santos, mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense
e doutorando em Comunicação na Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]

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1. Introdução
Entre março de 2015 e abril de 2016, o povo brasileiro vivenciou – parte dele
perplexo, outra parte eufórico – as manifestações pelo impeachment da presidente Dilma
Rousseff, reeleita pouco menos de dois anos antes, e que culminaram, em 17 de abril de
2016, na votação favorável ao seu afastamento na Câmara dos Deputados. É certo que uma
complexa cadeia de atores cooperaria decisivamente, nem sempre de forma aberta ou
orquestrada, para que a deposição saísse bem-sucedida. É o caso de mencionar a chancela do
poder judiciário, o apoio explícito das organizações patronais, de parte do jornalismo
tradicional e, estes fartamente documentados, os movimentos subterrâneos de proeminentes
lideranças políticas [EXEMPLOS]. Mas para além desses atores, a presidente dificilmente
seria removida do cargo não fossem os massivos, festivos, estridentes protestos de rua que
deram o respaldo popular que faltava ao processo de impeachment.
“Intervenção militar já”, “Dilma quenga”, “We say no to comunism!”, “Pela minha
família, pelos meus amigos, eu voto sim”, “Pelos fundamentos do cristianismo”, “Pela
memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra”: é facilmente constatável que tanto os
protestos de rua contra Dilma Rousseff quanto as manifestações dos deputados na fatídica
votação deixaram-se contaminar por inegáveis fundamentos autoritários. De forma velada ou
aberta, irrompeu, a partir destes protestos, uma estética discursiva de desprezo a um conjunto
de valores que acordou-se chamar de democráticos [EXEMPLOS]. Alguns pressupostos para
a construção de um método para abordar a constituição estética e comunicacional destes
protestos, bem como sua assimilação pela política institucional, serão apresentados neste
artigo.
Fato é que se observa “a olho nu” o restabelecimento, no Brasil, de uma vertente
política e cultural de extrema-direita que por mais de três décadas foi relegada ao ostracismo
institucional pelo “consenso” que resultou na Constituição de 1988.
Embora em nenhum momento, nos últimos 30 anos, os elementos mais reacionários
que serviram de base para a ditadura militar tenham deixado de exercer influência nos centros
de decisões – como sabemos, muitos dos congressistas e governadores biônicos da Arena
[QUAIS?] mantiveram o poder de seus clãs em partidos como DEM e MDB –, do ponto de
vista cultural, os apologistas do golpe de 1964 perderam, durante a abertura política, o que
hoje seria chamado de “guerra de narrativa”. Isso porque a abertura dos anos 1980 foi,

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também, uma abertura cultural que alargou os imaginários em torno das ideias de povo e
nação: as mulheres conquistavam crescente poder de mobilização, atuando de forma decisiva,
ainda no fim dos anos 1970, para a aprovação da lei do divórcio; a partir de publicações da
imprensa alternativa como O Lampião da Esquina e de forte presença no mercado
fonográfico, nas pessoas de Ney Matogrosso, Cazuza, Ângela Ro Ro e tantos outros, os
homossexuais deixavam a semi-clandestinidade, passando a exigir direitos; organizados
politicamente, os povos indígenas e o movimento negro influenciaram na redação de alguns
dos trechos mais emblemáticos da nova Constituição; inclusive nas igrejas, ganhava força a
vertente carismática [CHECAR SE É MESMO], vista na época como mais popular e aberta à
modernidade; e nas redes de televisão, nos humorísticos que ocupavam larga faixa do horário
nobre (“Casseta & Planeta”, “TV Macho”, “Os Trapalhões”) o moralismo tacanho que via os
generais como defensores patriotas dos “valores da família” era diariamente ridicularizado.
Também por isso, movimentos como o Integralismo e o TFP (Sociedade Brasileira de Defesa
da Tradição, Família e Propriedade), antes influentes na imprensa e junto ao governo,
praticamente desapareceram do radar.
Anos antes dos protestos de 2015/16, o ressurgimento destes e de outros atores vinha
já tomando forma e colecionando conteúdos, velhos e novos, sobretudo em ambientes
digitais, como diversos trabalhos têm mostrado nos últimos anos3.
Conservadora socialmente, moralista nos costumes e reacionária em questões de
segurança pública tal qual seus antecessores, o restabelecimento político-institucional da
extrema-direita deu-se com o apoio de parcela expressiva não só das elites, mas de setores da
classe média e das classes pobres, como se confirmou no resultado da eleição presidencial de
2018.
Entre as diversas particularidades destes atores políticos e de seus apoiadores mais
entusiasmados, destaca-se a adesão a uma lógica comunicativa e a uma estética particular,
gestada em grande parte nos ambientes digitais, e cujas características e consequências para o
debate público pretendemos explorar adiante.
Se é verdade, como defende Bruno Latour, que “o social é aquilo que outros tipos de
conectores [ciência, direito, economia] amalgamam” (2006, p. 22), podemos deduzir que a

3 Destacamos, entre estes, os trabalhos recentes de Wilson Gomes sobre “fake news” e comunicação
política, a dissertação de Mestrado de Marcelo Alves dos Santos: “Vai pra Cuba!!! A Rede Antipetista na
eleição de 2014”, e as investigações de seu orientador, Afonso de Albuquerque, como “A comunicação política
depois do golpe” (ver bibliografia).

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estética seria a forma como este amálgama se apresenta aos nossos sentidos. O novo
extremismo brasileiro, se assim podemos chamá-lo, é sem dúvida um amálgama de
economia, tecnologia, ideologia, uma história social, entre outros conectores, e certamente
expressa-se de maneiras específicas, valendo-se de diversos meios e formas. Ainda
acompanhando Latour, para quem a “sociologia não passa de uma espécie de interpsicologia”
(2006, p. 33), nosso argumento central é que os protestos em favor do impeachment e o
consequente recrudescimento da extrema-direita não podem ser compreendidos sem se ter em
conta a performance de um Brasil imaginado a que eles deram corpo, o que ao mesmo tempo
permeia e extrapola as disputas entre defensores de um ou outro partido político e as intrigas
palacianas de Brasília.

Na imprensa, na academia e nas discussões não raramente agressivas do dia a dia, há


os que atribuem o sucesso popular e eleitoral da extrema-direita ao desgaste do PT em meio à
crise econômica e aos escândalos de corrupção, conferindo papel essencial ao jornalismo
tradicional, que seria, segundo este ponto de vista, marcadamente antipetista. Outros afirmam
que as novas tecnologias de comunicação da internet, orientadas por obscuros algorítimos,
são culpadas pela radicalização da população, ajudando na promoção de ideias
antidemocráticas, quando não anti-humanistas ou simplesmente irracionais.
Em ambos os casos, teria havido manipulação de mentes por grupos poderosos e mais
ou menos ocultos, o que resultou na ação concreta – os protestos, a deposição da presidente, e
um sem-número de eventos que deságuam na eleição de Bolsonaro.
É verdade que não se deve subestimar o poder das mídias – no plural, pois já faz mais
de duas décadas que a ideia de uma mídia centralizada e com interesses quase sempre
convergentes deixou de fazer sentido. Tal poder, contudo, como nos explicam Antunes e Vaz,
reside em seu papel na construção de “uma modalidade de experiência assentada no
transporte e deslocamento incessante de signos (…) onde se mesclam e entrecruzam mundos
simbólicos e materiais” (2006, p. 46). Nessa “modalidade de experiência”, os meios de
comunicação propriamente ditos – seja a Rede Globo, o Youtube ou a página do MBL no
Facebook –, na instrutiva metáfora de Antunes e Vaz, estão à montante e à jusante do
caudaloso fluxo de narrativas que, juntas, formam a contemporaneidade. Isto é: embora as
mídias produzam suas narrativas e discursos, elas estão suscetíveis a discursos e narrativas

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outras, “cotidianas e institucionais, corriqueiras e especializadas, midiáticas e não midiáticas”


e que “não são, necessariamente, contemporâneas entre si” (2006, p. 47). Durante as
manifestações antipetistas e seus antecedentes (pensamos, aqui, nos protestos de 2013) os
veículos da mídia tradicional e os novos meios da internet [RODAPÉ], insistindo na metáfora
de Antunes e Vaz, foram inundados por “fluxos repentinos, verdadeiras enchentes” de fatos e
feitos dos protestos, “ampliando a vazão de narrativas” sobre eles. O que chamamos de
“estética do extremismo”, portanto, escapou em certa medida ao poder de agenciamento das
mídias, embora tenha introduzido-se astuciosamente em suas lógicas.
Por isso, sem desconsiderar que o jornalismo tradicional [O QUE É?] muitas vezes
guia-se por interesses próprios que interferem na cobertura que ele faz dos acontecimentos,
bem como que as redes sociais da internet possibilitaram o encontro virtual de extremistas
que, na solidão de seus pensamentos, viam-se obrigadas a inibi-los (ou que sequer se sabiam
extremistas), este artigo propõe uma abordagem do restabelecimento da extrema-direita por
um outro ângulo, atenta às atmosferas instituídas pelos protestos antipetistas e à performance
dos que a eles aderiram.

2. Performance nas redes, nas ruas e no plenário

Os acontecimentos, escreveu Louis Querè (2005), rompem com a normalidade


corriqueira, descortinam sentidos, falam da nossa experiência cotidiana e expõem as
condições e contradições de sua irrupção no curso da história. Para tanto, acionam memórias,
mobilizam imaginários culturais e tradições e, baseados no que os precede, visam a provocar
uma reação no presente. De fato, os protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff
colocaram em cena, por meio de um curioso jogo performativo que naturalmente incluiu as
mídias, mas que em diversos momentos fugiu ao seu poder de agendamento dos fatos,
disputas simbólicas – com consequências materiais, como atestam os anos seguintes –
presentes no seio da sociedade brasileira e que revelam um conjunto de anseios, medos e
rancores.
É ponto pacífico, ao menos entre estudiosos, “que a velha ordem colonial e
patriarcal”, nas palavras do crítico literário Antônio Cândido, embora oficialmente revogada,
“acarretou e continua a acarretar (…) consequências morais, sociais e políticas” que atuam
sobre os destinos do país (1970, p. 19). Inaugurada em 1933 com a primeira publicação de

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“Casa-Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, o que depois seria chamada de História
Cultural brasileira tem justamente o propósito de sondar os imaginários, a construção
simbólica e a reafirmação diária das “brasilidades”. Tratava-se, como expresso no título do
livro, de uma tentativa de mapear as relações de poder entre os que mandavam e os que
obedeciam no Brasil colônia, bem como a persistência desses traços em um Brasil que se
industrializava. É certo que o estudo contém vários acidentes de percurso que denunciam a
própria posição privilegiada que o autor ocupava na sociedade recifense – Freyre era herdeiro
de ricos senhores de engenho, e em diversos momentos explicita seu saudosismo de certas
relações, que classifica como “açucaradas”, entre “sinhôs e sinhás”, “mucamas” e “preto-
velhos”. Mas muitas de suas conclusões, principalmente se nos lembramos de algumas das
palavras de ordem dos protestos antipetistas, seguem atuais:

A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de


comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador no Brasil, o capital que
desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força
social que se desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais
poderosa da América. (FREYRE, 2013, p. 40, grifo nosso)
É o próprio Freyre, também, quem afirma que essa “tradição conservadora sempre se
tem sustentado do sadismo do mando, disfarçado em 'princípio de autoridade' ou 'defesa da
ordem'” (2013, p. 57). É claro que esse “sadismo do mando”, também ele, foi se ajustando à
modernidade. Tendo na escravidão sua forma mais visível, manteve-se e mantêm-se hoje
vigente, como afirmou o sociólogo Francisco de Oliveira, nas figuras do “jeitão” e do
“jeitinho”, “peculiar modo nacional de livrar-se de problemas, ou de falsificá-los” (2012,
online4). Em sua abordagem teórica destas expressões tão brasileiras, explica Oliveira,
relacionando o fim da escravidão à predominância contemporânea da informalidade no
mercado de trabalho:

Qual foi o jeitão da classe dominante, no caso os cafeicultores, a partir do fim do


escravismo, em 1888? Em vez de incorporar os ex-escravos à cidadania,
fornecendo-lhes meios de cultivar a terra e se incorporarem ao trabalho regular,
foram importar a mão de obra europeia, transformando São Paulo na maior cidade
italiana do mundo. Malandramente, contornaram os problemas do fim do
escravismo e se desresponsabilizaram pelos ex-escravos. (…) O jeitão da classe
dominante obrigou os dominados a se virarem por meio do jeitinho do trabalho
ambulante, dos camelôs que vendem churrasquinho de gato como almoço, das
empregadas domésticas a bombarem de Minas e do Nordeste para as novas casas
burguesas dos jardins Europa, América, Paulistano. (…) Assim, o chamado trabalho
informal tornou-se estrutural no capitalismo brasileiro. É ele que regula a taxa de

4 - Ver “Jeitinho e Jeitão”, revista Piauí, 2012: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/jeitinho-e-jeitao/

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salários, e não as normas trabalhistas fundadas por Vargas. A partir daí todas as
burlas são permitidas e estimuladas (OLIVEIRA, 2012, online)

Foi atravessado por relações de poder traumáticas entre gêneros, raças e classes
sociais, enfim, que se constituiu, ao longo dos séculos, o imaginário social brasileiro, suas
instituições políticas e econômicas e muitas das ideias em torno de "nação" e “brasilidade”.
Mas concepções outras, mais democráticas, humanistas e muitas vezes utópicas também
surgiram, conquistando inclusive alguma hegemonia em certos meios e épocas, como durante
a já discutida abertura política dos anos 1980. Em reação a estas concepções mais
progressistas, ideias e imaginários conservadores tomaram corpo nos protestos de 15-16 – e
já se ensaiavam, frisamos, em centenas de páginas nas redes sociais da internet 5. Geralmente
recalcadas sob múltiplas camadas de “cordialidade” [EXPLICAR], como teorizou Sérgio
Buarque de Holanda, pioneiro do ensaísmo historiográfico, tal conservadorismo reacionário
se deixou entrever, nos protestos, em performances fugidias, daí nossa opção por uma
abordagem estética do extremismo brasileiro.
Por isso, nos interessa menos as implicações políticas dos protestos antipetistas que as
micropolíticas – na explicação de Suely Rolnik, a intersecção do “político, do social e do
cultural” onde se desenham “os contornos da realidade em seu movimento contínuo de
criação coletiva” (1989, p. 5). Outro interessado na micropolítica, Manuel Castells observou
que essa constituição subjetiva da sociedade, “base das instituições que a organizam” (2015.
p. 1), constrói-se cada vez mais na interação com os meios de comunicação, o que se
aprofundou vertiginosamente com o advento da internet e do que ele chama de “sociedade em
rede” - transformação que, para o autor, explica a crescente relação “entre emoção, cognição
e comportamentos políticos” (2015, p. 5).
Nos valemos, aqui, de uma outra noção que Raymond Williams, precursor dos
estudos culturais ingleses, aplicou às obras literárias, mas que julgamos válida também para a
compreensão de acontecimentos midiáticos e políticos: as “estruturas do sentimento”.
Williams descreveu estas estruturas como “as categorias que organizam a consciência
empírica de um determinado grupo social”, dando às suas expressões “sua unidade, seu

5 Em sua dissertação de Mestrado, Marcelo Alves calcula que, ainda em 2014, somente no Facebook
mais de 500 páginas, com um público estimado em 10 milhões de pessoas, dedicavam-se a “propagação de
calúnias, defesa de conteúdo ideológico sectário, teorias da conspiração e discurso hostil contra o Partido dos
Trabalhadores” (2016, p. 21).

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caráter estético específico” capazes de nos revelar “o grau mais elevado possível da
consciência” desse grupo (1967, p. 15).
Nesse sentido, o ufanismo verde-e-amarelo da camisa da seleção brasileira de futebol,
o acionamento dos “valores da família tradicional”, a exaltação do então juiz federal Sérgio
Moro como paladino do combate à corrupção endêmica e das Forças Armadas como
repositório da moral, da ordem e do patriotismo parecem convergir na construção simbólica
de certa brasilidade ancestral, anterior à suposta invasão desta por elementos que teriam
suspendido sua alegada cordialidade telúrica. Isso fica evidente em diversas demandas que
encontraram eco entre parcela expressiva dos manifestantes: na defesa da “escola sem
partido”, contrária à abordagem de questões históricas e de gênero nas escolas; na crítica ao
programa Bolsa Família e às cotas raciais e socioeconômicas nas universidades; no clamor
pela redução da idade penal; ou nos pedidos por uma intervenção militar na política nacional.
De saída, consideramos que tal extremismo não foi “criado” pela grande imprensa
manipuladora (embora tenha sido alimentado por ela) ou pela exposição continuada a vídeos
delirantes no Youtube (pois uma mensagem, nota Manuel Castells, só é efetiva quando chega
aos que estão preparados para recebê-la), mas trata-se de um traço perene da cultura política
brasileira que há muito paira sobre o imaginário social do país, aguardando o momento
propício e as condições materiais para se manifestar.
Esse momento se deu em 2015-16, nos protestos contra Dilma Rousseff, e se deu
comunicativamente, fazendo largo uso de uma enorme rede de compartilhamento de
informações (verdadeiras ou não) conectada via internet. A grande imprensa, em boa medida,
passou ao largo desse fenômeno – aliás, parte dela tornou-se, com efeito, vítima constante de
críticas e ataques oriundos destas redes.
Parte da sociedade não se fez politicamente reacionária: redescobriu-se, como em uma
“volta às origens” das quais é saudosa, reacionária, valendo-se de novos meios para
comunicar velhas mensagens – ainda que envelopadas de uma nova forma, como observamos
no caso das fake news.
É aí que a ideia de performance, descrita por Paul Zumthor (2007, p. 9) como “o
momento decisivo em que todos os elementos cristalizam em uma e para uma percepção
sensorial”, adquire função central em nossa análise. Pois foi através das performances nas
redes, nos protestos e nas tribunas políticas que as “estruturas do sentimento” do extremismo
nacional, antes dispersas, adquiriram corpo e passaram a articular discursos: a performance

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“aparece como uma 'emergência'”, explica Zumthor, atualizando “virtualidades mais ou


menos numerosas, sentidas com maior ou menor clareza”.
Retomando: a conformação e reatualização desta performance do extremismo deu-se
a ver nos últimos anos primeiro nos ambientes digitais, depois no espaço híbrido ruas-internet
e, atualmente, em Brasília – ou seja, há uma continuidade estética nesse processo e na
configuração comunicativa desse novo ator político. Pela própria condição em que se
desenvolveu no país, tal performance reacionária encerra conteúdos e modos discursivos que
buscam naturalizar posicionamentos radicais, reivindicando como argumento a realidade
social brasileira e mitos relacionados à formação das ideias de nação.
Algumas das questões que inspiram nosso olhar são as seguintes: como o
conservadorismo político brasileiro, marcado, como não poderia deixar de ser, pelo processo
histórico de sua formação, atualizou-se estética e discursivamente frente as novas tecnologias
de comunicação? Como ele se expressou, primeiro nos ambientes virtuais, em seguida no
espaço híbrido rua-internet, migrando enfim para os meios institucionais?
Entendemos que o fator determinante para a ascensão do conservadorismo reacionário
no Brasil foi o baixo grau de desenvolvimento da cultura democrática no país,
desenvolvimento este que tem sido sistematicamente freado por traços antissociais do caráter
nacional e que se deixaram ver em performance nos últimos anos. É necessário, então, refletir
sobre a cultura política brasileira desde uma perspectiva estética. No tópico seguinte,
levantamos algumas potencialidades e debilidades deste olhar.

3. Potenciais e problemas do método

Quando ouço a Sinfonia no. 7 de Beethoven, uma gama de elementos colabora para
definir a impressão que ela deixa em mim. O caminho ascendente das flautas e oboés, a
dramaticidade das trompas e trompetes, a melancolia que inspiram os violinos e violoncelos,
bem como as duras marcações do tímpano são só parte do espetáculo: para além do
estritamente musical, é significativo o fato de eu ouvir uma composição de mais de 200 anos,
expressão do romantismo alemão e dos acontecimentos que o moldaram; é significativo que
eu, o ouvinte, seja latino-americano; e se sei que o compositor sofria de surdez parcial,
imagino que os acentos dos instrumentos intentam comunicar a música aos que carecem de
audição perfeita, e ao imaginá-lo a sinfonia ganha para mim ares ainda mais dramáticos; faz
diferença, é claro, se ela é executada em uma sala de concertos ou por meio do Youtube –

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onde vem acompanhada de um retrato de um Beethoven jovem, com o olhar enviesado e os


cabelos revoltos, o que influi também na projeção interna que faço da música. À interação
destes e muitos outros elementos cristalizados na obra de arte com nossas suscetibilidades e
experiências, e sua força estranha de nos predispor a estados de aflição, medo, coragem etc,
bem como as atmosferas que essa interação suscita, dá-se o nome de “estesia”.
Por muito tempo, a filosofia da estética dedicou-se a estudar exclusivamente as obras
de arte e o que era considerado “belo”. Mas veio o século XIX, Nietzsche e a psicanálise, as
guerras e as revoluções, e a atenção desse ramo da filosofia voltou-se também para o que há
de estética na política e na violência que lhe é inerente. Não por puro diletantismo: quando
Marx, por exemplo, analisou, em seu “18 de Brumário de Luís Bonaparte”, a ascensão
golpista do sobrinho de Napoleão, ele compreendeu que o apelo populista de Luís Bonaparte
junto ao lumpesinato era antes de tudo estético; sua retórica e a maneira como se apresentava
publicamente dialogavam diretamente com preconceitos fundamentais em torno dos quais
construiu-se certa ideia do que era ser francês e parisiense. Demagogia, política, ideologia e
estética relacionavam-se intimamente na figura de Napoleão III, e era impossível
compreender um destes aspectos sem levar em conta os demais. E por dizer de disposições
íntimas e até inconscientes dos indivíduos e da coletividade francesa de então, a dimensão
estética daqueles acontecimentos revelava, para Marx, contornos da luta de classes que uma
análise puramente política não poderiam acessar.
Algo semelhante empreendeu Hannah Arendt em sua autópsia da alçada dos
totalitarismos ao poder no século XX. Em “Origens do Totalitarismo”, a filósofa alemã
refletiu sobre a atração que o nazismo exerceu sobre “a ralé” - novo ator político, refugo
lúmpen da burguesia, esmagado entre o proletariado e as elites –, levando em consideração o
afago psíquico, eminentemente estético, que a retórica do führer representava frente a
decadência das estruturas econômicas e sociais em que se formaram os valores e a
autoimagem dessa “ralé”. Sem tradição de participação republicana, estes apoiadores do
nazismo viram na rejeição a política, e ao diálogo e contradições que ela necessariamente
encerra, seu principal atrativo, o que Arendt, e antes dela, Freud, relacionou à anulação do eu
em nome da liderança mítica e à pulsão de morte que a entrega ao coletivo totalizante
representa. Às diferenças inerentes à vida democrática, parte destes entusiastas do nazismo
opuseram, “não porque sejam estúpidos ou perversos, mas porque essa fuga lhes permite
manter um mínimo de respeito próprio” (1975, p. 466), o autoritarismo e o recrudescimento

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de mitologias acerca da raça e da nação. Violência simbólica e material, ódio e cinismo, para
essa “ralé”, tornaram-se os métodos naturais de ação “política”.
Se no período das Grandes Guerras a figura das “massas” já andava meio saturada
entre pensadores das Humanidades, o crescimento exponencial da mídia – imprensa, rádio e,
sobretudo, a televisão – alterou definitivamente os olhares sobre as relações entre políticos e
cidadãos, bem como as próprias ideias de “massa” e “nação”. O “espetáculo” anunciado por
Guy Debord torna-se, então, incontornável aos que se interessam em refletir sobre as
interações entre o “mundo da política”, o “mundo da mídia” e seus efeitos sob o “mundo da
vida”, na famosa categorização de Jürgen Habermas.
Acompanhamos Louis Quéré no entendimento de que o acontecimento, enquanto
categoria filosófica para se pensar as construções simbólicas em torno do presente, passado e
futuro, é indissociável desse intenso processo de colonização do “mundo da vida” pela mídia
que caracteriza o século 20 e, de maneira ainda mais dramática (e com “mídia” agora no
plural), o século 21. E concordamos também com Hans Gumbretch, que vê nesses
acontecimentos, como antes já se via nas obras de arte, dimensões performáticas que moldam
e são moldadas pelos sentidos e atmosferas que suscitam.
Resumidamente, os acontecimentos, para Gumbretch, instituem uma atmosfera,
provocam estesia, e os significados que eles engendram passam por uma formulação estética.
Compreender as estratégias sensíveis, como diria o pensador brasileiro Muniz Sodré, postas
em jogo pelo extremismo brasileiro em suas manifestações é, assim, um caminho para se
abordar as dificuldades que se impõem ao desenvolvimento de uma cultura verdadeiramente
democrática no país.

“O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito”, escreveu Foucault, “é
simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia,
produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso” (1979, p.8). Um dos desafios
que se relaciona ao olhar que propomos é traçar a “genealogia das relações de força” que
deram forma estética aos protestos. Nos interessa compreender as “coisas” que essa
composição estético-discursiva produz e as formas de prazer que a envolvem. Uma hipótese é
de que a estética autoritária opera, entre outras coisas, como forma de autoproteção e
isolamento para certos grupos sociais da nossa caótica, violenta e desigual realidade.

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Recorrendo outra vez ao filósofo francês, o desafio estará em “distinguir os


acontecimentos, diferenciar as redes e os níveis a que pertencem e reconstituir os fios que os
ligam e que fazem com que se engendrem, uns a partir dos outros” (1979, p.6).
Judith Butler, que escreveu um livro sobre o lugar dos protestos de rua no atual
contexto político mundial, “Corpos em aliança e a política das ruas” (2018, p. 52), indica um
caminho possível para uma genealogia das manifestações antipetistas. “Temos que nos
perguntar”, aponta a filósofa, de que maneira os manifestantes da Avenida Paulista, da praia
de Copacabana, da Praça da Liberdade e de tantos outros centros urbanos, em capitais e no
interior do país, “reconfiguraram a materialidade do espaço público e produziram, ou
reproduziram, o caráter público” dessas ruas, praças e avenidas.
Tendo em conta a relação dos manifestantes com o espaço urbano, é importante notar
que há, em diversas análises, a avaliação de que existe uma relação causal entre os protestos
de 2013 e as manifestações antipetistas de 2015-16. Não há ponto pacífico quanto a isso, e
foge aos nossos objetivos apontar se houve “cooptação dos protestos pela direita” ou
“apropriação das manifestações pela mídia”, como afirmam alguns, embora a discussão seja
pertinente. Mas nos interessa uma semelhança entre as manifestações de 2013 e as de 2015-
16: ambas instabilizaram, para reafirmar ou combater, as fronteiras entre a casa e a rua no
imaginário social brasileiro, e nas duas ocasiões disputou-se simbolicamente qual é o lugar da
rua no acerto democrático nacional, estando tais disputas, é claro, refletidas nas diferentes
maneiras como ambos os protestos apareceram nas mídias.
No breve ensaio de Roberto DaMatta intitulado “O que faz do brasil, Brasil”, o
sociólogo trata de um conjunto de contradições que constituiriam as bases de certo
imaginário da nossa sociedade. Uma das mais fundamentais, que “não podem ser confundidas
sob a pena de grandes confusões e desordens” (1986, p. 28), é a cisão entre a casa e a rua6.
Isso porque a casa, escreve DaMatta, “ordena um mundo à parte” no Brasil:

quando falamos da “casa” não estamos nos referindo apenas a um local onde
dormimos, comemos ou que usamos para estar abrigados do frio ou da chuva. Mas a
um espaço profundamente totalizado numa forte moral. Uma dimensão da vida
social permeada de valores e realidades múltiplas. Coisas que vêm do passado e
objetos que estão no presente: esfera onde nos realizamos como seres humanos que
têm um corpo físico, e também uma dimensão moral e social. Assim, na casa,
somos únicos e insubstituíveis (DaMATTA1986, p. 20)

6 O carnaval, escreve DaMatta, seria a exceção que confirma a regra.

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E quão diferente é a rua: lugar da luta, da batalha, do anonimato e da insegurança,


nela a rede imperativa de relações calorosas da casa é substituída pela fria lei da autoridade
policial – daí expressões como “moleque de rua” e “no olho da rua” para se referir à situações
de miséria, ou “mulher do lar” e “comida caseira” para dizer do recato e do afeto. Casa e rua,
enfim, são entendidas como “formas representativas das relações sociais do passado e do
presente”, como escreveu também o geógrafo Milton Santos (1996, p. 168), e nessa fronteira
se assenta parte da ideia da “tradicional família brasileira”, dela se desprendendo um
entendimento particular do que é público e privado e, em alguns casos, certo e errado
[EXPLICAR MELHOR].
Constitui indício importante, então, o fato de as manifestações de 2013 terem
acontecido em horários de pico em dias úteis, enquanto os protestos pelo impeachment e a
votação na Câmara ocorreram aos domingos, quando as famílias se reúnem para almoçar e ir
à missa. Numa, cobrava-se no início maior acesso à coisa pública, pauta encarnada na crítica
ao aumento das passagens de ônibus, na outra, falava-se em "moralizar" a política, usando
uma panela – outro indício importante – como instrumento expressivo da indignação.
Interessa ainda a maneira como a polícia tratou e foi tratada pelos manifestantes: em 2013, o
violento embate; em 2015-16, a camaradagem captada em milhares de selfies.

Outra hipótese, agora relacionada as atualizações da estética reacionária frente ao


avanço das redes sociais da internet: o individualismo gregário que parece orientar a atual
lógica das redes sociais online, bem como o humor jocoso (expressos nos milhões de
"memes") e o cinismo blasé que muitas vezes dá a forma da comunicação nessas redes se
ajustou simbioticamente a alguns dos traços fundantes dos mitos em torno da brasilidade – o
"homem cordial", que pretensamente pacifica seus traumas sócio-raciais sob o manto da
calorosa, sensual, graciosa e falsificada fraternidade infra-classes; e o vencedor pelo mérito,
filho neoliberal de bandeirantes aventureiros e lógicos positivistas.
Estes e outros traços, aliados à histórica desconfiança brasileira para com a classe
política, fertilizaram no país a crise democrática. Embora mundial e sistêmica, uma vez que
se relaciona ao declínio do chamado capitalismo democrático, baseado no combalido
equilíbrio, mediado pelo Estado, entre os interesses do mercado e as demandas democráticas,
a crise democrática brasileira possui cores locais, sobretudo comunicacionais e estéticas: a

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“galhofa sórdida” adotada como estilo, o rancor paranoico antiesquerdista, inviabilizador de


qualquer possibilidade de diálogo e a suscetibilidade a teorias conspiratórias para explicar a
realidade, entre outros pontos que pretendemos abordar em trabalhos futuros.
Freud, citando Le Bon, afirma que “o indivíduo na massa adquire, pelo simples fato
do número, um sentimento de poder invencível que lhe permite ceder a instintos que, estando
só, ele manteria sob controle” (2011, p. 15). Os ataques misóginos a então presidente Dilma
Rousseff, pedidos pelo “fechamento do Congresso e do STF” e pela “eliminação da esquerda
e do comunismo” parecem obedecer a essa lógica. Mas as características “aparentemente
novas” do indivíduo que integra a massa, adverte Freud, “são justamente manifestações” do
inconsciente coletivo: “quanto mais forte as coisas em comum, mais facilmente se forma, a
partir dos indivíduos, uma massa psicológica, e mais evidentes são as manifestações de uma
'alma coletiva'” (2011, p. 25).
Ou, aproximando a ideia freudiana de “massa psicológica” aos estudos de Castells
sobre a formação das identidades na “sociedade em rede”: “a identidade está se tornando a
principal e, às vezes, única fonte de significado em um período histórico caracterizado pela
ampla desestruturação” (2016, p. 2), o que nos ajuda a compreender, por exemplo, a grande
adesão a ideias e discursos anti-intelectuais e anticientíficos.
A nossa tentativa de formular uma metodologia para tratar destas questões passará,
necessariamente, por uma retomada bibliográfica da história da hegemonização do discurso
democrático no Brasil, focando a redemocratização nos anos 1980, que marca a saída de cena
temporária dos militares. Os momentos em que as ruas ocuparam protagonismo nesse
processo – como nos protestos estudantis e nas greves sindicais nos anos 1970, nas Diretas e
no Fora, Collor – receberão especial atenção.
Como escrevemos no início do artigo, a partir da redemocratização, grupos que
tinham pouca visibilidade na mídia e na política institucional para além de clichês
preconceituosos – LGBTs, negros, mulheres, pobres – passam a ocupar espaços em diferentes
arenas; a estética reacionária dos protestos contra Dilma se insurge também contra isso. Nos
interessará perseguir, portanto, também a história-irmã da democracia brasileira, ou seja, a
história dos discursos e das ideias que a confrontam: certo discurso economicista,
proselitismo de classe, racismo, machismo, militarismo e chauvinismo serão temas de nosso
interesse, assim como movimentos de extrema-direita reunidos em torno destas ideias:

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Integralismo, TFP (Tradição, Família e Propriedade) e suas marchas de rua em apoio a


ditadura civil-militar, entre outros.
Percorrido o trajeto histórico que embasará nossas análises, nos dedicaremos à
abordagem propriamente estética do conservadorismo reacionário brasileiro. Para tirar
conclusões sobre seu impacto no debate público, nossa ideia é analisar um conjunto fotos e
vídeos, ainda a ser selecionado, que englobará produções amadoras de manifestantes e as
oriundas da mídia profissional, relativas a três momentos distintos e interligados: 1) a
convocação online para os protestos em favor do impeachment; 2) os protestos de rua; 3) e a
votação do processo de impeachment na Câmara dos Deputados. Para além das causalidades
políticas entre os protestos e a votação, entendemos ser necessário examiná-los em conjunto
pela continuidade estética que os liga. As mesmas cores, o mesmo clima festivo, o mesmo
discurso ora furioso ora alusivo a certa ideia de cordialidade, a mesma atmosfera – o mesmo
stimmung, acrescentaria Gumbrecht – fizeram-se presentes nas redes, nas ruas e no plenário.
Interessa, pois, a forma como os representantes políticos buscaram, em suas performances na
Câmara, aproximar-se estética e discursivamente do que se expressou nas manifestações pelo
impeachment, bem como o contexto altamente midiatizado inerente a ambos os momentos.
A performance, explica Zumthor, “realiza, concretiza, faz passar algo da virtualidade
à realidade” (2007, p. 9). Parafraseando o historiador Benedict Anderson, performou-se em
2015-16, ao vivo, nas ruas, um Brasil imaginado, performance esta que “implica e comanda
uma presença, uma conduta, um Dasein comportando coordenadas espaço-temporais e
fisiopsíquicas concretas, uma ordem de valores encarnada em um corpo vivo” (2008, P. 16).
Estes “enunciados performativos”, seguindo agora o pesquisador mineiro Carlos Mendonça,
estão “atravessados por saberes específicos, configurados a partir de uma ética e uma estética
própria” (2018, p. 4).
A nossa tentativa será a de encontrar o fio genealógico, em termos foucaultianos,
dessa ética e estética própria e da construção, operada por elas, de saberes e prazeres reunidos
em torno da construção simbólica de um Brasil imaginado, utópico ou saudoso para alguns,
mas terrível para os que mantêm a fé na democracia.
Um último esclarecimento é necessário: qual método, para além do que já foi exposto,
disciplinará nosso olhar sobre as imagens? Não se tratando de uma abordagem que
apresentará, ao fim, resultados quantificáveis, ou mesmo passíveis de serem reencontrados

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por algum colega pesquisador(a), redobra-se a exigência por justificativas, como as que vêm
a seguir.
A subjetividade contemporânea, nos diz o pesquisador André Brasil (2010, p. 17),
faz-se cada vez mais como exterioridade, constituindo-se “no ato mesmo de sua
publicização”. Tal tendência, que é antiga, remontando ao século XIX, intensifica-se com a
midiatização geral do “mundo da vida” que conheceu o século XX e, mais recentemente, com
a internet e suas redes sociais (usuários do Instagram que o digam...). Por isso, as imagens
que circulam entre nós, conclui André Brasil, têm “ressaltada sua dimensão performativa”:
“não estamos no domínio da pura representação, mas da representação tornada performance,
da performance tornada jogo e, por fim, do jogo generalizado como estratégia de gestão”.
Ora, como avançar analiticamente sobre essa performance, esse jogo contemporâneo
que deliberadamente mais confunde do que explica? Para André Brasil, compreender o apelo
das imagens que hoje irrompem nos meios digitais demanda identificar não apenas quais
poderes, na linha foucaultiana, “emolduraram tal visibilidade e por meio de quais
estratégias”, mas principalmente descobrir o que estas imagens pretendem ocultar, seus
“resíduos impensáveis, os dejetos intratáveis, os gestos invisíveis”.
Lucia Santaella nos explica que “o mundo das imagens se divide em dois domínios”:
o das imagens materializadas, representações visuais coletivamente aceitas (desenhos,
pinturas, fotografias, imagens televisivas etc); e o das nossas imagens internas (fantasias,
esquemas mentais, sonhos, delírios). Mas ambos os domínios, completa Santaella, não
existem separadamente, estando ligados já em sua gênese: “não há imagens como
representações visuais que não tenham surgido de imagens na mente daqueles que as
produziram, do mesmo modo que não há imagens mentais que não tenham origem no mundo
concreto dos objetos visuais” (1997, p. 15). Encontrar as conexões entre o Brasil imaginado,
imaterial, e suas projeções imagéticas nas multidões antipetistas será também um esforço
genealógico.
Para Benedict Anderson, a essência de ideias como as de “nação”, “povo” ou
“cidadãos de bem” consiste em que todos os que a elas aderem “tenham muita coisa em
comum, e também que tenham esquecido muitas coisas” (2008, p. 32). De fato, o que as
manifestações pelo impeachment colocaram em cena foram também disputas em torno da
memória: a comunidade imaginária, o Brasil ali feito em performance, trouxe consigo

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amnésias características, e para se chegar ao fundo do ódio à democracia expresso em 2015-


16 é também nesse espaço de disputas que precisamos mergulhar.
É possível sistematizar um método para isso? Pela própria natureza do objeto e do
problema, acreditamos que, previamente, não. Seria talvez o caso de propor uma “atenção
dispersa” como jeito de olhar, voltada para a historicidade e os antecedentes das imagens
mentais e materiais e para as memórias que elas mobilizam e as que pretensamente encobrem
– pois a memória, ensina Henri Bergson (1999, p. 80), é justamente o que “intercala o
passado no presente”.
Gumbrecht, no entanto, nos fornece algumas direções para encarar aquilo “que o
sentido não consegue transmitir”: enquanto para uma cultura de sentido predomina o
pensamento, na da “presença” prevalece o corpo; o conhecimento, assim, na dimensão do
sentido é fruto da interpretação, ao passo que na dimensão da presença é algo que se revela,
que ocupa sem prévio aviso um determinado espaço, algo dotado de intensidade e que
arrebata aquele que defronta. Ou seja, se o sentido é produto em constante mudança de um
conjunto de práticas sociais que moldam as ferramentas de interpretação, a presença é um
“vir do nada”, uma revelação súbita que independe das situações culturais específicas
daquele que a experimenta. Mas mais do que antagonizar sentido e presença, Gumbrecht vê
na oscilação entre os dois a fonte da potência da experiência estética:

Podemos dizer que a tensão/oscilação entre efeitos de presença e efeitos de sentido


dota o objeto de experiência estética de um componente provocador de
instabilidade e desassossego. (GUMBRECHT, 2010, p.137)
Muniz Sodré dá conta de que o “trabalho do sensível na sociedade” é composto de
“falas, gestos, ritmos e ritos” guiadas por “uma lógica afetiva em que circulam estados
oníricos, emoções e sentimentos” (2006, p. 33). Recompor analiticamente esse quadro
sensível, tendo claro que suas expressões imagéticas oscilam na tensa relação entre presença
e sentido, é outro dos desafios de nossa abordagem.
Uma última ideia que pode ser útil na construção da nossa abordagem é a
caracterização que Sodré faz da “estética do grotesco” como “outro estado de consciência que
penetra a realidade das coisas, exibindo a sua convulsão, arrancando-lhe os véus do
encobrimento” (2016, p. 23). Estaria a democracia brasileira, acompanhando Sodré, beirando
“à extrapolação violenta de si mesma, vulnerável ao paradoxo de seus valores universais, que
carregariam ao mesmo tempo a sua afirmação e a sua denegação”?

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Se acreditarmos que sim, e parece ser esse o caso, momentos como a “dança do
impeachment”, protagonizada por manifestantes em Fortaleza em 16 de agosto de 2015 e
divulgada nas redes sociais, ou a abertura da sessão de votação na Câmara – quando o então
deputado federal Eduardo Cunha (MDB) rogou “que Deus tenha piedade desta nação” –
podem ser compreendidos a partir da chave da estética do grotesco, que para Sodré muitas
vezes oferece “uma radiografia inquietante, surpreendente, às vezes risonha, do real”.
Tornamos a questionar: o que a estética das manifestações pelo impeachment de Dilma
Rousseff ambicionam encobrir, e o que revelam em sua tentativa?

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