Jornalistas e Reconstruções de Vidas

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OS JORNALISTAS E AS RECONSTRUÇÕES DE VIDAS

Problemas epistemológicos na elaboração do discurso biográfico

Por: Prof. Felipe Pena * (artigo para o GT de jornalismo da Intercom)

RESUMO

O artigo tem como objetivo propor uma reflexão epistemológica sobre a construção
do discurso biográfico por profissionais do jornalismo. Pretendemos abordar as relações
com as fontes, as diferenças entre realidade e ficção e a projeção que a mídia dá aos fatos,
inclusive no estudo da Nova História sobre os eventos de curta e longa duração. Por outro
lado, além de encaminhar uma discussão de gêneros, queremos examinar as inúmeras
possibilidades narrativas tanto no campo do jornalismo, como da história e da literatura. E
também verificar a viabilidade ou não de reconstrução dos fatos sob a ótica do pacto
referencial de Philippe Leujene. Para tanto, inserimos referenciais teóricos da Escola dos
Annales e da contemporânea teoria da literatura.

PALAVRAS-CHAVE

Epistemologia – biografia – jornalismo – história – literatura

O pesquisador é jornalista. O jornalista quer contar uma história. A história de uma


vida. Chamam isso de biografia. E cada vez mais jornalistas investem neste tipo de
trabalho. Mas esse é apenas o começo do seu problema.
Afinal, o que é uma biografia ? Um árduo trabalho jornalístico, uma pesquisa
histórica ou uma construção literária ? Há alguma classificação de gênero ? É possível
contar a história de uma vida ? Ficção e realidade são conceitos dicotômicos ou
complementares ? Quais serão os critérios para a escolha de fontes ? É possível preencher
todas as lacunas ? Que teóricos já escreveram sobre o tema ? Tantas perguntas sem resposta
justificam a pesquisa, mas também deixam claro que a construção da biografia não é
suficiente. O jornalista não pode limitar-se a escrever a história de uma vida. É preciso
refletir sobre o próprio discurso que ele irá utilizar. É preciso estudar o discurso biográfico.
O jornalista pode começar a refletir sobre seu problema no ambiente das próprias
redações, pois a operação jornalística já é em si apenas a possibilidade de uma construção.
É preciso levar em conta a crítica das fontes e seus interesses na produção do discurso,
assim como a própria projeção que a suposta realidade assume no ambiente da mídia: “os
media transformam em atos aquilo que não teria sido senão palavras no ar. Dão ao discurso,
à declaração, à conferência de imprensa a solene eficácia do gesto irreversível.” 1
O jornalista talvez precise de uma inserção pelos estudos da Nova História e suas
pesquisas sobre as fontes, os fatos, os acontecimentos, o tempo e o próprio trabalho de
historiadores e jornalistas. Uma inserção pelo trabalho de Nora, Le Goff, Braudel, White,
Certeau, Burke, Kravetz e Lacouture, para quem a proximidade temporal e o envolvimento
material fazem do jornalista praticante e reflexo do acontecimento. Isto aproxima-o da
concepção de “história imediata”, em que pesquisadores e relatores desempenham
simultaneamente o papel de agentes. Para Lacouture, apesar das relações conflituosas entre
jornalismo e história, as duas disciplinas tendem a convergir 2, enfrentando problemas
comuns aos “imediatistas”, como, por exemplo, o desconhecimento do final da história, o
excesso de informações, a falta de confiabilidade das fontes e a impossibilidade de acesso
a alguns arquivos.
Mas relacionar a operação histórica e a jornalística ainda é uma tarefa árdua, com
prejuízo inevitável para a última, sempre no cerne das maiores críticas. Talvez a chave para
o problema esteja na volta do acontecimento, conforme proposta por Pierre Nora. O que
certamente abre um caminho mais esclarecedor do que a opção dicotômica de Mark
Kravetz, para quem o jornalismo se divide em sensacionalista e analítico 3, sem, no entanto,
deixar claro os pressupostos para esta diferenciação.

1
Nora, pág.182.
2
Lacouture, pág. 218.
3
Kravetz, pág. 88.

2
Também parece bastante reducionista atribuir o estudo do passado aos historiadores
e a interpretação do presente aos jornalistas. Aproximados e diferenciados, é na abordagem
dos integrantes da Nova História que esta dicotomia é melhor enfrentada, com a conclusão
de que ambos devem se pautar pela escolha consciente de seus objetos, assumindo que dão
significação aos dados que possuem e que têm interesses e formações específicas para a
análise do objeto. Como sentencia Lacouture: “o jornalista-camundongo rói gulosamente
suas avelãs. O historiador-esquilo as acumula. O imediatista acumula roendo.”4
O movimento de aproximação também encontra eco em Jacques Le Goff, para
quem o historiador deve dirigir-se aos mass media na avaliação das posições em relação ao
acontecimento. A mídia influencia o ideário coletivo, que não se reduz ao significado
intelectual, sendo também estritamente ligado a nuanças emocionais. O que “a realidade
propõe, o imaginário dispõe.”5, analisa Pierre Nora, tomando como exemplo o suicídio de
Marilyn Monroe, que, para tornar-se um acontecimento, precisou que milhões de pessoas
vissem nele o drama do star system e a tragédia da beleza interrompida.
Os acontecimentos da atualidade juntam as forças da informação e da mudança,
agregando o fato cotidiano e o evento, o real e o ficcional. São construídos pelos meios de
comunicação, mas também os constróem. Um duplo movimento, que só faz aumentar a
crise epistemológica da história.
Cada vez mais tênue, a fronteira entre o imaginário e o real caminha para a
dissolução, forçando o pesquisador a pensar em formas alternativas de representação do
acontecimento. Como coloca Hayden White, é preciso “produzir novos critérios sobre o
lugar de suspensão entre a história e a ficção”.6 Devemos repensar conceitos éticos e
estéticos, refletindo sobre as forças simbólicas de condução e construção dos eventos, e
sobre suas próprias demandas.
No cotidiano de uma redação jornalística, o espaço para reflexão é mínimo.
Espremido pelos deadlines e pela busca incessante do furo de reportagem, o jornalista é
mais uma peça da engrenagem produtiva. O evento é sua matéria-prima e o tempo curto
seu campo de atuação. Uma visão falaciosa, como afirma Fernand Braudel, para quem “o

4
Lacouture, pág. 231.
5
Nora, pág. 184.
6
White, pág. 20.

3
tempo curto é a mais caprichosa, a mais enganadora das durações.”7 Para Braudel, em
oposição a esta narrativa de fôlego curto, dramática e precipitada, está uma “história longa,
de respiração contida e de amplitude secular.”8
O que Braudel quer nos trazer não é o fim do evento, mas a idéia de que ele anexa
um tempo muito superior à sua própria duração. Para ele, a história é a soma de todas as
histórias e de todos os tempos possíveis e todas as ciências são contaminadas umas pelas
outras, sendo, portanto, impossível prescindir de qualquer uma delas. Braudel desconfia da
história puramente factualista e defende a longa duração como a linha mais útil para a
reflexão comum às ciências sociais.
O que parece claro na abordagem da Nova História e talvez possa ser o elemento
mais proveitoso para a atividade jornalística é a implementação de uma nova atitude em
relação ao evento. A principal lição a ser aprendida obriga o jornalista a ler não a partir do
evento, mas a partir dos pressupostos de formação do evento. E isto quer dizer definir
métodos, reavaliar fontes, escolher unidades de observação, estabelecer relações entre os
elementos e chegar a modelos de estudo, sem, entretanto, deixar de considerar as múltiplas
variáveis.
Jean lacouture aponta a ruína das fontes como um dos principais problemas do
historiador do presente. Ao mesmo tempo que o computador é capaz de, quase
instantaneamente, fornecer ao editor de um jornal tudo que já foi publicado sobre
determinado assunto, a diversidade das fontes torna o resultado final pouco confiável. Ao
multiplicar as possibilidades, a informática multiplica também os riscos. E mesmo quando
a fonte é testemunhal, é preciso estar atento aos interesses e pressupostos que a norteiam.
“Não há grupo, personagem, instituição que não tenha seus segredos a preservar e que não
responda à revelação intempestiva com a ocultação defintiva.”9
Michel de Certeau, em debate com outros integrantes da Nova História, também
chama a atenção para a necessidade de refletir sobre a produção dos fatos, alertando que a
metodologia histórica sempre “insistiu mais no inventário, na classificação e no tratamento
das fontes do que na construção do discurso.”10 Para Certeau, a história é a arte da

7
Braudel, pág. 46.
8
Idem
9
Lacouture, pág. 228.
10
Mesa redonda, Certeau, pág.20.

4
encenação, uma operação que compreende a relação entre o lugar do discurso, os
procedimentos de análise e a construção de um texto. Ou seja, “a combinação de um lugar
social, de práticas ‘científicas’ e de uma escrita” 11
A história, assim como o jornalismo, não reconstitui a verdade, mas interpreta e
reconstrói os fatos. Certeau defende o modelo subjetivo, pelo qual toda interpretação
histórica depende de um sistema de referência. E o lugar de onde se fala está no centro das
discussões. Mais do que o público, são os pares do historiador os destinatários da obra.
Uma prática ligada a métodos que protegem um determinado grupo de letrados. O saber
está ligado ao lugar e deve submeter-se às suas imposições, à lei do grupo. Para Certeau, é
impossível analisar o discurso histórico fora da instituição em torno da qual ele se
organiza.
Neste sentido, a operação jornalística traça um caminho contrário, já que é destinada
ao grande público, mas suas leis também são regidas por um grupo, que se organiza em
preceitos epistemológicos e padroniza o trabalho em manuais de redação e códigos entre os
pares. Só que em ambas as operações, histórica e jornalística, fica patente a natureza
lacunar do discurso. Não podemos ignorar o que ignoramos do passado. A história é o que
ainda podemos saber dela, nada além disso. É incoerente e ilógica na medida em que o
historiador...

“adivinha a localização das lacunas mal remendadas, não ignora que o


número de páginas que o autor concede aos diferentes momentos e aos diversos
aspectos do passado é uma média entre a importância que têm esses aspectos aos
seus olhos e a abundância da documentação” 12

Para empreender o projeto de construção de uma biografia, o jornalista terá que lidar
com todas as críticas à sua operação profissional e ainda observar as interseções de se
discurso pelo campo da história e também da literatura, já que estratégias romanescas terão
que ser assumidas durante a construção do texto.

11
Certeau, pág. 66
12
Veyne, pág. 28.

5
Se enveredar pela teoria da literatura , o jornalista perceberá lacunas e preconceitos
com relação ao tema, conforme constatação da professora Maria Helena Werneck, para
quem as biografias, consideradas parasitas da história,13 são tratadas pelos profissionais de
letras e por aqueles que apreciam obras literárias como sub-gênero. Mas ela se coloca como
advogada de defesa e propõe uma reabilitação fundamentada. Quer que voltemos a
Nietzche e seu pensar saudável sobre a biografia, que supera suas críticas, tomando como
base a força ativa do pensamento de artistas e pensadores, que ultrapassam os limites que a
vida lhes impõe.“Se há no texto nietzscheano uma promessa de pensar saudável em relação
à biografia, como transformar esse pensar saudável em modos de ler?”14

13
Expressão usada por Paul Kendal
14
Werneck, pág 24.

6
A pergunta de Maria Helena nos remete a dois problemas que o jornalista deve
abordar: a discussão sobre as classificações do discurso biográfico e a sua interpretação
pela recepção do leitor. Começando pelas classificações, a confusão começa nas próprias
definições ,que, longe de se aproximarem de um pensar saudável, evidenciam a carência de
estudos sobre o tema. Biografia, memórias, autobiografia, confissões. Um liquidificador de
conceitos, cujas tentativas de separação mais confundem do que esclarecem. Como na
empreitada de Eduardo Portella: “as memórias, como entidades literárias autônomas, se
situam no meio caminho entre a autobiografia e a história.”15 Mesmo sem querer entrar no
campo dos estudos da memória, principalmente na análise dos teóricos do pós-modernismo,
devemos desconfiar da conceitualização de Portella, já que a narrativa memorialística é
também autobiográfica e histórica, além de não poder ser uma coisa vaga, solta no espaço,
sem referência, como requer o conceito de autonomia. Da mesma forma, parece
reducionista a dicotomia estabelecida entre a qualificação das memórias como a escrita de
um universo social, “porque sua individualidade se dilui nos testemunhos de seu tempo
passado e nas suas reflexões sobre o seu tempo presente”16, em contraposição à
autobiografia, considerada uma escrita “narcisista”.17 E mesmo quando se fala de biografias
clássicas, ou seja, narrativas em que personagem e autor são pessoas diferentes, as
classificações se confundem.
Mas estas tentativas de separação são apenas uma parte do problema. Outra, ainda
menos esclarecedora, diz respeito às discussões de gênero. Neste sentido, o “não lugar”
parece estar reservado ao discurso biográfico na teoria da literatura. Na verdade, nem
mesmo o epíteto de literatura lhe está assegurado, embora me pareça que a elaboração
literária na escrita biográfica possa ser identificada pelas inúmeras possibilidades narrativas
e imaginárias que estão presentes entre o que se vive e o que se escreve, mesmo no interior
de um discurso que se propõe referencial.
Discutir a concepção de gênero é um problema a ser enfrentado não só no campo
teórico, como nos próprios meios que o legitimam. “Algumas vezes, as biografias abrem
caminho para a renovação da crítica literária. Outras vezes, procuram se ajustar à

15
Portella, pág. 191.
16
Ramos, pág. 100.
17
Idem

7
segregação que o campo intelectual lhes impõe.”18 Um alerta que encontra eco em Pierre
Bourdieu , para quem a historicidade das formas biográficas depende muito mais das
forças simbólicas da intelectualidade do que das mudanças no paradigma de gênero. O
trabalho biográfico pode assumir cores que vão da poética do elogio, conforme definida por
Jean-Claude Bonnet, ao compromisso com o historicismo. Pode estar ligado a funções
religiosas e morais, como na vida dos santos, optar pela informação objetiva, pela
literalização, pelo ritual do elogio, ou outras quantas opções e combinações. E todas elas
podem estar a serviço de uma série de posições políticas e concepções sociais, inseridas em
dicotomias éticas que podem comprometer a posição do crítico. Assim, as estratégias de
inclusão e exclusão em um paradigma de gêneros apresentam-se ligadas a um profundo
questionamento em torno destes pontos. E é justamente para evitar a fragilidade de alguns
critérios de valor e classificações que Philippe Lejeune opta por fazer uma análise não a
partir de uma estética de gênero, mas dando tratamento específico de acordo com o que os
próprios textos apresentam:

“Pour étudier un genre, il fut lutter contre l’illusion de la permanence,


contre la tentation normative, et contre les dangers de l’idéalisation: à vrai dire, il
n’eut peut-être pas possible d’étudier un genre, à moin d’accepter d’en sortir.
Aussi, dans les études de ‘poétique appliqué’ qui figurent dans la section centrale,
n’ai-je pas voulu définir une esthétique du genre, ni reconstituer un archétype,
rousseauien ou autre, de l’autobiographie, mais simplement profiter de la lecture de
textes concrets pour examinér les problèmes qui se posent à la plupart des
autobiographie, et qui peuvent recevoir les solutions le plus variées.” 19

Embora inclinado à inclusão do biográfico no universo do literário, Lejeune critica a


conceitualização de gênero, pois ela nasce do equívoco de primeiro definir o objeto para
depois analisá-lo. Mas isto não ameniza o problema, presente na literatura desde
Aristóteles, já que a noção de gênero está diretamente ligada à permanência da obra e à sua
inclusão em agrupamentos, que acabam servindo de base para o trabalho teórico. Além

18
Werneck, pág. 25.
19
Leujene, pág. 8

8
disso, não é possível ignorar que obras desconstrutoras alteram os princípios tradicionais
das conceitualizações genéricas, e esta é uma possibilidade que devemos considerar neste
estudo.
Para seguir adiante em sua análise, Lejeune parte , então, da recepção do texto,
exatamente o segundo problema que queremos formular. Pois para enveredar pelo estudo
das relações entre o produtor, a obra e, fundamentalmente, o receptor, ele estabelece a
noção de pacto, uma espécie de acordo entre as partes, que, no entanto, seria bem diferente
de um contrato, já que não teria a capacidade de impor elementos rígidos diante da
impossibilidade da co-presença física de todas elas.
Uma leitura da pesquisadora Ana Maria Edelweis 20 identifica em Lejeune “a
possibilidade de três pactos escriturais possíveis na ordem do literário”: o ficcional, o
fantasmático e o autobiográfico (onde também está o biográfico, com a separação entre
sujeito e objeto), aos quais ela acrescenta outros dois: o ensaístico e o alterbiográfico.
Na análise de Lejeune, há uma relativização sobre a função referencial (base tanto
para o pacto biográfico como para o ensaístico), que teria compromisso direto com o real, a
verdade. O que nos parece pertinente, pois o que se poderia chamar de “verdade”,
certamente estaria inserido em um modelo de expressão no mínimo dotado de linguagem, o
que já seria suficiente para tal relativização. Mas ainda há as dificuldades apontadas pelo
autor 21 , que são a ideologia de quem produz, a distância entre a intenção inicial e a forma
pela qual ela é recebida, e elementos externos como publicidade e tentativas de
classificações de gênero, além das diversas possibilidades de leitura, seja pela crítica ou
pelo leitor médio. Assim, Lejeune divide a função referencial entre os conceitos de
identidade , ligada ao fato estabelecido; e semelhança , ligada à fidelidade do texto ao
modelo extra-diegético e suas significações
Para Lejeune, a biografia clássica, onde autor e personagem são pessoas diferentes,
se inscreve na categoria de semelhança, que está situada em dois níveis: o da exatidão, que
diz respeito à informação; e o da fidelidade, que está ligada à significação. No interior desta
divisão, seriam ingênuos os biógrafos que tratassem a significação pelo plano da exatidão,
ou seja, em semelhança com a realidade extratextual, sem levar em conta que “a

20
Edelweis, pág. 16.
21
Leujene, (1975), pág. 422

9
significação só pode ser produzida por meio de técnicas narrativas e por meio da
intervenção de um sistema de explicação que implica na ideologia do historiador” 22
Outra reflexão pertinente à construção de uma biografia diz respeito aos meios
disponíveis para a efetivação do pacto referencial. O compromisso com a realidade exterior
à obra (de acordo com o paradigma de semelhança) e a submissão às chamadas provas de
verdade são aspectos essenciais do discurso biográfico, segundo Lejeune:

“Par opposition à toutes les formes de fiction, la biographie et


l’autobiographie sont des textes référentiels: exactement comme le discours
scientifique ou historique, ils prétendent apporter une information sur une réalité
extérieure au texte, et donc se soumettre à une épreuve de vérification.” 23

Para fugir à dicotomia entre ficção e referencialidade proposta por Lejeune, o


próprio discurso deverá ter elementos assumidamente pertencentes aos dois campos. Além
disso, identificar os critérios e aferir o valor das provas de verificação (se é que elas
existem) são sérios problemas para o biógrafo. Principalmente se ele for o arrombador
profissional, conforme a concepção de Janet Malcom, ou seja, aquele que “invade uma
casa, revira as gavetas que possam conter jóias ou dinheiro e finalmente foge, exibindo em
triunfo o produto de sua pilhagem.” 24 Quero acreditar que se existe um invasor, certamente
haverá alguém no papel de invadido, e muito provavelmente será ele o portador de
informações importantes para a possível verificação. Por isso perguntamos se a tese do
arrombamento seria realmente a melhor estratégia.
Janet Malcom refere-se ao arrombador quando o objetivo é arrancar segredos
póstumos do personagem. Será que a biografia é também uma transcrição de narrativas de
bastidores? Além disso, só haverá efetivo interesse pela vida particular do personagem se a
sua atuação pública tiver sido relevante para o meio social em que está inserido, ou seja, se
sua vida estiver ligada a acontecimentos importantes da história e/ou da cultura de seus
pares. E as informações sobre a intimidade do personagem também estão sujeitas às provas

22
Leujene, citado por Wernewck, pág. 90.
23
Lejune, pág. 36.
24
Malcom, pág. 16.

10
de verificação expostas por Leujene. E é aí que voltamos ao problema. Quem melhor
poderia confirmar estas informações ?
A família. Dificilmente, o biógrafo encontrará um arquivo melhor sobre a vida do
biografado em outra fonte. Mas o que poderia ser uma dádiva pode acabar virando uma
maldição, um grande problema metodológico. Para Janet Malcom não há dúvidas: “ os
familiares são os inimigos naturais dos biógrafo; são como as tribos hostis que o explorador
encontra e precisa submeter sem piedade a fim de se apossar de seu território.”25
A afirmação de Malcom foi baseada no estudo que fez sobre as biografias de Sylvia
Plath, onde as intervenções da família da poeta influíram diretamente no texto final. Mas
deve ser encarada como um alerta, não como uma barreira. Os parentes do biografado
devem possuir escritos inéditos, como diários ou correspondências, que podem facilitar
muito o trabalho do biógrafo, até mesmo indicando caminhos para as possíveis provas de
verificação. Mas o fato de vetarem o acesso a estas informações não pode se transformar
numa hesitação. Ou seja, o autor deve buscar outras formas de verificação e evitar a quebra
do pacto. Para Malcom, a biografia tem uma natureza transgressora e implica em um
conluio entre o autor e o leitor, que atravessam um corredor para espiar pelo buraco da
fechadura. A hesitação diante deste último significaria a deslegitimação do
empreendimento.
É claro que se o biógrafo puder contar com a colaboração da família, o trabalho será
facilitado. Mas estas facilidades podem ser apenas aparentes. Quando se lida com
contemporâneos do biografado, a maior parte dos testemunhos está baseada na memória, e
ela está suscetível aos interesses e à imaginação do emissor. Tomando como referência a
análise de Maurice Halbwachs,26 é preciso haver uma base comum entre a memória do
outro e a nossa, ou seja, pontos de contato que possam fazer de uma lembrança a possível
reconstituição de uma acontecimento. Pelo conceito de valor de verdade, exposto por
Elizabeth Bruss,27 talvez pudéssemos recorrer ao confronto de testemunhos para efetuar a
verificação, mas há interesses que são comuns e podem coincidir nas declarações. O que
fazer, então ? Assumir a vulnerabilidade ou evitar a hesitação? Como Luiz Vianna Filho,28

25
Ibid, pág. 18.
26
Halbwachs, pág. 4.
27
Bruss, pág. 461.
28
Vianna Filho, pág. 53.

11
devemos aceitar que biografia não é matemática; ou, como Janet Malcom, devemos rejeitar
qualquer dúvida sobre o trabalho biográfico, sob pena de sermos execrados pelos leitores ?
Esta é uma questão vital para a construção biográfica. E também para os jornalistas, que
estão no cerne de uma crise epistemológica em seu trabalho.

* Felipe Pena
- jornalista
- Sub-Reitor da Universidade Estácio de Sá
- Doutorando em Letras pela PUC-Rio
- Professor da cadeira de telejornalismo
- Autor do livro “A volta dos que não foram”, da editora Sette Letras.

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