Tese Doutorado Reginaldo
Tese Doutorado Reginaldo
Tese Doutorado Reginaldo
So Paulo 2003
Tese apresentada ao Programa de Histria Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, da Universidade de So Paulo, como requisito parcial obteno do ttulo de Doutor em Histria.
So Paulo, 2003
Para minha av materna, Lucinda Amlia Bezerra (in memoriam) com quem aprendi as primeiras letras.
FICHA CATALOGRFICA
OLIVEIRA, Reginaldo Gomes de.
A herana dos descaminhos na formao do Estado de Roraima. So Paulo, Universidade de So Paulo/ Reginaldo Gomes de Oliveira. So Paulo. Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. USP, 2003. xv, 405 pp.: il., mapas e fotos. Fontes e Bibliografia pp. 327-358 1. Roraima. 2. Amaznia Contempornea. 3. Histria Cultural. 4. Histria das Representaes Polticas. 5. Geopoltica. 6. Relaes Intertnicas. 7. Etno-histria. I. Teses. II. Ttulo.
CAPA Coletnea de fotos (da direita para esquerda) Cachoeira na regio de Uiramut, Monumento
ao Garimpeiro, Cruzamento das avenidas Santos Dumont e Ville Roy, jovem ndio de Roraima. Fotos do Guia Turismo em Roraima 2000. Boa Vista/RR. Publicao do Instituto FECOR. Abril de 2000. Montagem em Scan pelo autor.
Agradecimentos
O presente trabalho encerra uma fase de vida repleta de satisfaes, saudades, inquietaes, conquistas e percalos. Nesse percurso muitas pessoas foram importantes e a elas expresso meu reconhecimento. Ao apoio financeiro da CAPES, atravs de bolsa do Programa de Incentivo a Capacitao e Desenvolvimento Tecnolgico (PICDT), para a concretizao deste trabalho. Ao Reitor da Universidade Federal de Roraima (UFRR), atravs da PrReitoria de Pesquisa e Ps-Graduao, que me proporcionou o afastamento integral das atividades de docncia. Aos funcionrios e professores do Centro de Cincias Sociais e Geocincias, do Departamento de Histria da UFRR, pela convivncia e incentivos que viabilizaram a realizao desta tarefa. Aos funcionrios e professores do Departamento de Histria, do Ncleo de Estudos de Histria Oral e da Coordenao de Ps-Graduao da Universidade de So Paulo (USP), pela forma carinhosa que me acolheram. Pelas vrias oportunidades de dilogos com os professores Ulpiano T. Bezerra de Menezes, Maria Helena R. Capelato, Jos Carlos S. Bom Meihy, Maria Aparecida de Aquino (DH/USP), Dominique T. Gallois (DA/USP) e Francisco Carlos T. Silva
(DH/UFRJ), cujas discusses e sugestes durante o curso foram esclarecedoras
para o trabalho.
A todos os funcionrios de Bibliotecas pela ateno especial, indicao e localizao dos documentos. O acolhimento na Biblioteca e Arquivo da Fundao S.O.S Mata Atlntica e do Instituto SocioAmbiental tambm foi significativo. Os senhores Jernimo Pereira da Silva (Coordenador do Conselho Indgena de Roraima), Martinho Alves de Andrade Jnior (Administrador Regional da FUNAI/RR) e
Artur Nobre Mendes (Secretrio Tcnico do PPTAL-Braslia/DF) foram solcitos e suas contribuies encurtaram o caminho da pesquisa.
Aos membros da Banca de Qualificao Professores Ulysses Telles Guariba Neto e Marcos Antonio Silva (DH/USP), com observaes crticas e sugestes ajudaram a definir, com maior preciso, a forma e o contedo do trabalho. Essa tese deve muito aos amigos pela colaborao e afeto. Minha gratido a Claudia Alves, Dborah Freitas, Heloisa Marques, Maria Helena Oyama, Sonia Lobato, Maria Helena Bezzi (in memoriam), Antnio Lobo Stevens, Lourival Nto, Paulo Silva, Ricardo Vagner Oliveira e Roberto Ramos, que contriburam de vrias formas e cada uma sua maneira para que o projeto se realizasse. A leitura e sugestes de Jlio Galharte foram valiosas. Aos membros da Banca de Defesa Professores Dalmo de Abreu Dallari
(FD/USP), Ulysses Telles Guariba Neto, Lincol Ferreira Secco (DH/USP) e Paulo
Henrique Martinez (convidado), com observaes crticas e sugestes para estudos futuros. Marlene Suano (DH/USP), orientadora e amiga, acompanhou este trabalho lendo-o inmeras vezes com pacincia inesgotvel. Durante todo esse percurso manteve dilogo, fez sugestes, mais do que isso, em sua convivncia tomei mais gosto pela histria. Um agradecimento particular aos meus pais, Paulino e Delzira, de quem tenho recebido nestes anos de tantos esforos, seu carinho, apoio e compreenso. Compartilho com eles as alegrias do final; aos queridos irmos, Rinaldo, Ranieri e Richard (in memoriam) e irms, Rosngela, Rossinete e Rosanir, com quem compartilho a vida; aos demais familiares pela demonstrao de afeto.
SUMRIO
Lista de Mapas, Figuras, Fotos e Quadros Lista de Abreviaturas INTRODUO CAPTULO 1 RORAIMA: um olhar histrico e scio-poltico do XVI ao XIX 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 1.6 1.7 1.8 09 11 18 35
Amaznia Setentrional, perspectivas histricas dos sculos XVI e XVII 36 Rio Branco, a expanso poltica e econmica portuguesa com o Maranho e Gro-Par 58 A construo da Amaznia brasileira, sculos XVIII e XIX 69
As Tropas de Resgates e as Aldeias Missionrias na conquista da rota fluvial e povoamento 75 Forte So Joaquim e a consolidao da conquista do Rio Branco 90 A reao indgena contra o Estado portugus e a denominada Praia do Sangue 96 As fazendas na bacia do Rio Branco Roraima no Imprio 101 109 118 128 131 139
CAPTULO 2 RORAIMA no sculo XX: perspectivas histricas, culturais, e polticas 2.1 2.2 2.3 O retorno das expedies cientficas ao Rio Branco O retorno do mito El Dorado A Igreja Catlica de Roraima e a causa indgena
150
Ao do Estado, organizao e reao da sociedade noindgena 166 Povoamento e meios de comunicao 171 175 177
CAPTULO 3 A gnese do Estado: do Territrio Federal Constituio Federal 3.1 3.2 3.3 3.4 Rio Branco, a criao do Territrio Federal
Os municpios e as reas indgenas: desencontros dos caminhos da memria 208 A Constituio Federal de 1988 A criao do Estado de Roraima 219 230 239 241 263 276 278 283 325 326 331 335
CAPTULO 4 A primeira dcada do novo Estado 4.1 4.2 Os legisladores estaduais e suas propostas Os novos municpios
CAPTULO 5 Um laboratrio de Histria Social a cu aberto: lideranas e suas aes 5.1 5.2 As lideranas e seus projetos Questes emanentes
FONTES E BIBLIOGRAFIA
347
FIGURA
Figura 01 Figura 02 Figura 03 Figura 04 Figura 05 Figura 06 Figura 07 Figura 08 Figura 09 Vista area do Rio Branco Maloca Macu Forte So Joaquim e Povoamento Bacia do Rio Branco: cenas de trabalho indgena Escola em Boa Vista, professores e alunos Seminrio de Educao Indgena Reivindicao indgena Reivindicao dos no-indgenas Vista area de Boa Vista 74 89 92 115 126 164 165 170 187
FOTO
Foto 1 Foto 2 Foto 3 Municpio de Alto Alegre Municpio de Bonfim Municpio de Caracara 213 213 214
Foto 4 Foto 5 Foto 6 Foto 7 Foto 8 Foto 9 Foto 10 Foto 11 Foto 12 Foto 13 Foto 14 -
Municpio do Mucaja Municpio de Normandia Municpio de So Joo da Baliza Municpio de So Luiz do Anau Municpio de Amajari Municpio de Cant Municpio de Caroebe Municpio de Iracema Municpio de Pacaraima Municpio de Rorainpolis Municpio de Uiramut
215 215 216 217 264 265 265 266 266 267 268
Quadro Demonstrativo
Quadro 01 Quadro 02 Quadro 03 Quadro 04Quadro 05 Quadro 06 Quadro 07 Quadro 08 Quadro 09 Quadro 10 Quadro 11 Estado de Roraima. Estimativa da populao indgena Roraima, populao residente 154 201
Roraima, populao rural e urbana: importncia relativa (%) 1940/1950/1960/1970/1980/1991 201 Terras da Unio em Roraima Populao do Estado de Roraima Eleitorado de Roraima entre 1990 a 2001 Distribuio do Eleitorado por municpios Distribuio do Eleitorado no Estado Organizao No-Governamental Indgena (ligadas ao CIR) Organizao No-Governamental Indgena (no ligadas ao CIR) Organizao No-Governamental No-Indgena (a favor do ndio) 206 260 271 272 272 278 279 279 10
Organizao No-Governamental Nacional Organizao No-Governamental Internacional Igreja ou Instituio Religiosa rea Federal Representantes da sociedade roraimense Terras indgenas em Roraima
ABREVIATURAS
ABA ADCT AMBTEC BID BIRD BN CAPH/USP CEDI CIDR CIMI CIR CNBB COIAB CPI CSN DNPM DOU EMBRAPA : Associao Brasileira de Antroplogos. : Atos das Disposies Constitucionais Transitrias. : Fundao do Meio Ambiente e Tecnologia de Roraima. : Banco Interamericano de Desenvolvimento. : Banco Internacional de Reconstruo e Desenvolvimento. : Jornal Brasil Norte (Boa Vista/RR). : Centro de Apoio Pesquisa em Histria da Universidade de So Paulo. : Centro Ecumnico de Documentao e Informao. : Centro de Informao Diocese de Roraima. : Conselho Indigenista Missionrio. : Conselho Indgena de Roraima. : Conselho Nacional dos Bispos do Brasil. : Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira. : Comisso Parlamentar de Inqurito. : Conselho de Segurana Nacional. : Departamento Nacional de Produo Mineral. : Dirio Oficial da Unio. : Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria.
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FBV (grifo nosso) FLONA FOIRN FUNAI GTA IBAMA IBGE INCRA INPA ISA JB MEAF MEVA MINTER MMA NDI OAB OD (grifo nosso) OIT ONG ONU OPAN PCN PND PUC/SP RBG SADEN SAE SEBRAE
: Jornal Folha de Boa Vista (Boa Vista/RR) : Floresta Nacional. : Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro. : Fundao Nacional do ndio. : Grupo de Trabalho Amaznico. : Instituto Nacional do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renovveis. : Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstico. : Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria. : Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia. : Instituto SocioAmbiental. : Jornal do Brasil : Ministrio Especial de Assuntos Fundirios. : Missionrios Evanglicos da Amaznia. : Ministrio do Interior. : Ministrio do Meio Ambiente. : Ncleo de Direito Indgena. : Ordem dos Advogados do Brasil. : Jornal O Dirio (Boa Vista/RR) : Organizao Internacional do Trabalho. : Organizao No-Governamental. : Organizao das Naes Unidas. : Operao Anchieta. : Projeto Calha Norte. : Plano Nacional de Desenvolvimento. : Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. : Royal Botanical Gardens. : Secretaria de Assessoramento de Defesa Nacional. : Secretaria de Assuntos Estratgicos. : Servio de Apoio ao Micro e Pequenas Empresas.
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SEPLAN/RR SIPAM SIVAM SPI SUDAM SUFRAMA UFRR UNESCO WWF ZFM
: Secretaria de Planejamento do Governo de Roraima. : Sistema de Proteo da Amaznia. : Sistema de Vigilncia da Amaznia. : Servio de Proteo ao ndio. : Superintendncia de Desenvolvimento da Amaznia. : Superintendncia da Zona Franca de Manaus. : Universidade Federal de Roraima. : Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura. : Fundo Mundial para a Natureza. : Zona Franca de Manaus.
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RESUMO
O Estado de Roraima, que faz fronteira com a Venezuela e a Guiana, apresenta um relevo acidentado e localiza-se entre ambientes com problemticas ecolgicas distintas: serra, lavrado e floresta. Existe nessa regio uma multiplicidade social e cultural indgena e no-indgena em que as relaes se mostram marcadas por violncias culturais, polticas, sociais, extorso econmica e deteriorao ambiental. Roraima foi transformado de Territrio Federal em Estado da Unio com a promulgao da Constituio Federal do Brasil de 1988. A partir da dcada de 1980, com o processo de Abertura Poltica e as manifestaes sociais vinculadas ao movimento das Diretas J, surgiu no Estado uma discusso sobre cidadania, direitos civis, demarcao de reservas indgenas e implantao de novos municpios, com a participao de Organizaes No-Governamentais
(ONGs) indgenas e no-indgenas, como tambm de instituies governamentais.
O objetivo deste trabalho analisar como essa sociedade roraimense incorporou essas transformaes scio-culturais e polticas, caracterizadas por inovaes previstas na nova Carta Magna brasileira, por mudanas de posturas e concepes no apenas em relao infra-estrutura do novo Estado mas pelas exigncias de novos comportamentos da populao local frente presena do ndio (pr-tradio e pr-nacional), o qual tem reivindicado o reconhecimento de seus direitos (Arts. 231 e 232 da CF/88 e art. 173 da CE/91), respeitando o tratamento diferente entre os ndios e no-ndios tanto na construo da nova sociedade como na formao do Estado de Roraima. Ao se analisar os confrontos estabelecidos dentro da pluralidade sciocultural e geopoltica de Roraima, no se destaca um certo e um errado, mas o que atende ao movimento de construo do conhecimento e do exerccio da cidadania, conseqente busca de valores permanentes no contexto scio14
cultural e na nova ordem institucional surgida com a Constituio Federal de 1988 e, depois, com a Constituio Estadual de 1991. Nesse sentido, considerou-se fundamental a publicao na imprensa local das idias dos atores sociais e sujeitos polticos de Roraima que se constituram como uma de nossas fontes. Analisamos suas vises e posturas associadas s novas formas de relaes e vivncias, identificando os conflitos presentes entre os vrios segmentos sociais roraimenses. Esses discursos veiculados na imprensa, justamente por serem ideolgicos, mostraram-se importantes na compreenso dos dois projetos, o da cultura branca, de integrao nacional, e o das naes indgenas, divididas inelutavelmente entre a manuteno de seu estatuto original e a integrao nacional, nas ltimas dcadas da histria de Roraima. Esse confronto da histria branca com a histria nativa que, ao mesmo tempo, mesclou-se e dividiu-se etnicamente, por interferncia da administrao econmica do Estado, pela ao religiosa da Igreja, gerando conflitos entre o cristianismo e as religies tribais e, tambm, pela ao educativa branca que perduram na histria do tempo presente roraimense. Dessa maneira, as conseqncias advindas de tal confronto, que historicamente favoreceu o poder do Estado branco, mostra-se em uma situao de verdadeiro laboratrio para entendermos a formao tanto de Roraima como do Brasil contemporneo. PALAVRAS-CHAVE: Roraima; Amaznia Contempornea; Histria Cultural; Histria das Representaes Polticas; Geopoltica; Relaes Intertnicas.
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ABSTRACT
Sharing borders with Venezuela and Guyana, the State of Roraima presents an uneven topography as it is located among areas with distinctive ecological problems such as hills, valleys and forests. There exists a social and cultural multiplicity involving indigenous and non-indigenous people, with the relationships being marked by cultural violence, political and social problems, economic extortion, and environmental deterioration. In 1988, along with the Brazilian Federal Constitution, Roraima was transformed from a Federal territory into a Union State. At the beginning of the 1980's, a discussion regarding citizenship, civil laws, demarcating of Indian reserves and the establishment of municipal districts came about as a result of the "Political Opening" process and social manifestations associated with the movement for direct elections during the colonel years. Along with this, there was the participation of non-governmental organizations (indigenous and nonindigenous) as well as governmental institutions. This work intends to analyze how the Roraima society incorporated those socio-cultural and political transformations characterized by the innovations in the new 1988 Brazilian Charter. The changing conceptions and postures not only related to the new State's infrastructure, but also the demands of the local population's behavior regarding the presence of the Indian, now demanding the recognition of the indigenous right for the construction of the new society. Analyzing the confrontations established inside the socio-cultural and geopolitical plurality of Roraima, there does not appear to be a right and a wrong side. Consequently, in the search of permanent values in the socio-cultural context and in the new institution order, there is an increase in knowledge and the exercise of citizenship.
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In that sense, it was considered fundamental the local press publication of the social and political ideas of roraimense citizens as one of our sources. We analyzed their visions and postures associated with the new form of relationships and existences, identifying the existing conflicts among the several segments social roraimenses. Those speeches published in the press, because of their ideological connotations, are very important for the understanding of the last two decades of the history of Roraima. A history of the present time roraimense as a true "laboratory" for our fundamental understanding of the establishment and process of the mentality and of political institutions in Roraima and in contemporary Brazil. Key Words: Roraima, Contemporary Amazon, Cultural history, History of the Political Representations, Geopolitical, Interethnic relationships.
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Introduo
... a posse da terra gerou o poder e a propriedade gerou o Estado.
DALLARI, 2002:55
Este trabalho tem por finalidade apresentar investigaes sobre o mundo amaznico no qual o atual Estado de Roraima vem sendo sedimentado. Ele surgiu da ansiedade peculiar em si de lanar um olhar histrico-cultural e sciopoltico do sculo XVI ao sculo XX sobre o Estado supracitado. O mesmo foi desenvolvido por meio de estudos, depoimentos e pesquisas realizadas em livros, revistas, jornais e outros documentos ligados ao contexto histrico ou scio-poltico-econmico e cultural de Roraima. Sua diviso abrange os seguintes passos: metodologia e fontes usadas no processo de investigao, nfase na trajetria histrica e scio-poltica do sculo XVI ao XIX; as perspectivas histricas, culturais e poltica de Roraima no sculo XX; a gnese do Estado, as lideranas sociais e suas aes e enfoques finais. O estudo justifica-se pela possibilidade de reinterpretar as contradies envolvendo o Estado, os ndios e os no-ndios e de revisar importantes questes, como o desenvolvimento e as estratgias polticas na conduo dessa situao de conflito, das foras constituintes do Estado e das ONGs indgenas e no-indgenas. Essa questo se d no s em Roraima, mas em vrias regies do Brasil contemporneo, que aps a Constituio Federal de 1988 se abriram num espao de novas reordenaes polticas e econmicas na construo da cidadania, influenciadas pelo processo de redemocratizao do pas. De incio, importante ressaltar que, embora promova uma discusso a respeito do comportamento das diferentes formas de representao e organizao na formao do Estado e da sociedade roraimense, a nossa
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investigao no privilegia o estudo mais complexo de suas organizaes internas (ndios e no-ndios), mas sua trajetria na construo do Estado e da sociedade local entre 1988 a 2002, quando Roraima se transforma em Estado Federado, vivenciando suas trs primeiras legislaturas. Nesse processo de construo, tanto do Estado como da sociedade, como momento histrico imediato, os representantes do Estado e da sociedade local ampliaram seu poder, possibilitado pelo exerccio democrtico do novo tempo. Trata-se, portanto, de uma realidade histrica interagindo na experincia de vida que implica no reconhecimento de si mesmo como objeto e sujeito da histria. Ela quer se elaborar a partir desses arquivos vivos que so os homens
(LACOUTURE, 1993:217).
Assim sendo, estuda-se aqui o tempo presente e um momento emerso da multiplicidade scio-cultural em conflito, que abrange uma populao indgena
(constituda por diferentes etnias), uma populao no-indgena (formada por fazendeiros, empresrios produtores, pequenos agricultores, garimpeiros, militares, religiosos, polticos, administradores, funcionrios pblicos, entre outros grupos brancos e j mestiados, mas com titulatura de brancos) e considervel massa de mestios que, via de regra, se
identificam como brancos. Nesse espao de tempo (1998 a 2002), investigou-se Relatrios do Grupo de Trabalhos Amaznicos (GTA) e de outros grupos que abriram debates em Seminrios e Fruns no tratamento dessa questo indgena na Amaznia Legal. Apesar dos resultados apresentarem sugestes com certos avanos nas reflexes polticas e sociais, direcionadas para processos produtivos auto-sustentveis, os depoimentos dos participantes ndios e no-ndios ainda se mostravam presos s dificuldades financeiras e aos problemas conceituais e metodolgicos, ditados pelas regras tcnicas de um mercado local mundializado.
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Por isso, ao interpretarmos o significado da contemporaneidade roraimense, seguimos os caminhos indicados por certo vis da historiografia francesa associada histria imediata, social, cultural e poltica, como tambm de historiadores que enfatizando a importncia da cultura na ao social, preocupados em recuperar as experincias da vida contempornea1. Tudo isto aponta formas de interpretao histrica que marcaram o aparecimento de uma nova viso formulada pela percepo de que, em uma determinada realidade social, a populao experimenta suas situaes cotidianas e relaes instantneas em sua apreenso, simultnea em sua produo do fazer a histria imediata (LACOUTURE, 1993:214). Esse domnio imediatista, ligado a um objeto de estudo bastante recente, coloca o historiador e seu campo de pesquisa, como arquivos humanos. Esse novo enfoque, no processo histrico, voltado sobretudo para o nosso campo de estudo em Roraima, mostrou indcios significativos entre as situaes scio-culturais e as relaes polticas e econmicas, no processo de formao do Estado. Tal como a percebemos, essas situaes aparecem determinadas por diferentes necessidades e interesses que se mesclaram em antagonismos, inseridos em um dinamismo de apreenso simultnea. E, em seguida, observamos que essas situaes e relaes no param de se mexer, recusando um verdadeiro enquadramento, bem como uma acomodao satisfatria (LACOUTURE,
1993:222).
Jean Lacouture (1993) sugere que o historiador desse processo do tempo presente, como o caso citado acima, seja, ao mesmo tempo, um coletor de situaes e produtor de efeitos, ou seja, o pesquisador , ao mesmo tempo, sujeito e objeto da histria. Portanto, podemos dizer que, para o historiador
1. Como Edward H. Carr (1996) que exprime certa preocupao em termos de desenvolvimento humano numa abordagem mais ampla da histria. Nessa linha de ao temos tambm as obras de THOMPSON (1998) que desmistificam a histria e mostram que o uso de entrevistas, como fonte oral, pode ser utilizado juntamente com as fontes tradicionais da histria, na construo de uma memria mais democrtica do passado.
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contemporneo, muito mais difcil situar e entender a realidade de seu prprio tempo do que a do sculo XVIII, por exemplo. Desse modo, os efeitos reveladores dos conflitos scio-culturais e polticos podem ser analisados como bibliotecas vivas, o que torna um desafio para se escrever a histria de hoje. Essa percepo histrica associada contemporaneidade, com caminhos tericometodolgicos dividindo-se em muitas direes, fez com que nossas experincias locais contribussem para as descobertas da pesquisa, mesclando a relao sujeito-objeto desse dinamismo da histria contempornea. Outra possibilidade de anlise que condiz com o estudo em questo de Roger Chartier (1988), que prope levar-se em considerao as experincias humanas, em que os estudiosos buscam seus argumentos tericos. O autor apresentou reflexes que apontaram para concepes mais sensveis s desigualdades scio-culturais, tomando como ponto central da apreenso histrica a cultura de um determinado contexto social. Tal apreenso se d por meio das lutas e suas formas de organizaes e representaes scio-culturais, cujos mecanismos de atuao contribuem para o entendimento da concepo e do mundo social investigado. Nesse contexto, acreditamos que as percepes do social no so de forma alguma discursos neutros (...). Por isso esta investigao sobre as representaes supe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrncias e de competio (CHARTIER, 1988:17). Todos esses aspectos deram origem a um conjunto de situaes problemticas na histria atual, em que a Histria de Roraima no a exceo e que permitiu a incluso de novos instrumentos da vida cotidiana suscitados pelas diferentes prticas scio-culturais e do novo enfoque terico-metodolgico no processo da Histria Contempornea. Aps a dcada de 1980, intensificaram-se trabalhos de historiadores que retomaram aspectos do domnio tradicional da histria e deram novos enfoques metodolgicos no campo historiogrfico,
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Essa nova concepo historiogrfica de explorao aberta das experincias da cultura humana prope um dilogo mais prximo com as outras reas do conhecimento cientfico. Nesse sentido, as representaes mentais ganharam importncia nessa mediao da histria nova, ampliando condies ao aprendizado e conhecimento histrico. Essa orientao de pesquisa histrica, em dilogo com as outras reas das cincias humanas, influencia determinados estudos que, nesse modelo, escolhem um procedimento terico-metodolgico adequado ao seu corpus documentrio (ARIS, 1993:161). H quem considere que o historiador no precisa fazer uma escolha definitiva entre as estratgias interpretativas para conduzir a sua pesquisa
(HUNT, 1992:21). Embora existam muitas diferenas, tanto nas tendncias tericas
como nas metodolgicas, a nfase na histria da cultura est no exame minucioso dos documentos (textos, imagens, prticas sociais, etc.) e da abertura crtica diante do que ser mostrado por esse exame. Assim, tanto Chartier (1988) quanto Hunt (1992) enfatizam a importncia do significado e dinamismo scio-cultural revelando e recuperando as expresses e interpretaes do passado-presente no processo contemporneo da histria cultural. Na verdade, eles apresentaram uma linha de pesquisa que expe um campo novo de apreenso histrica, intimamente relacionada num dilogo com as outras reas do conhecimento humano. Nesse sentido, os autores mostraram que as concepes das quais partimos no so apenas teorias, mas tambm novos problemas da nossa histria contempornea que devem ser recuperados nos movimentos histricos do tempo presente. Tais contribuies historiogrficas reiteram nossa crena na necessidade de estudos mais aprofundados do contexto contemporneo da histria de Roraima,
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que vivencia mltiplas organizaes e formas de representaes sociais e polticas (indgenas e no-indgenas), entre prticas e apropriaes de novos paradigmas da cultura poltica na criao desse novo Estado amaznico. Essa temtica intrigante remete questo do conceito de nao que foi pensado, sobretudo, em meio s efervescncias da Revoluo Francesa, como um conceito poltico territorial, cuja base era a existncia de uma lei comum e de um corpus de cidadania... (SALIBA, 1993:310). Tal lei de carter universal proporcionaria aos indivduos uma unidade mais ampla que propiciaria benefcios comuns a todos os cidados. No entanto, percebe-se que existe um prejuzo, em termo de direitos, com relao aos ndios que perderiam sua identidade especfica relativa a cada grupo indgena. A isto se contraps a uma outra interpretao da nao, fruto de reflexes contemporneas, pelas diferentes correntes da histria e da antropologia, de nao pensada pela memria cultural. Tal concepo formula uma unidade mais ampla qual o coletivo, como fonte de valor e conduta, desfrutaria de muitas coisas em coeso: terra e cosmo (ANDERSON, 1989; CANETTI, 1995; SALIBA, 1993;
CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000; VIVEIROS DE CASTRO, 1998). Nesse contexto, de
carter peculiar e de um povo organizado culturalmente em uma relao de parentesco com a terra interligada ao cosmo, revivificada nos mitos e ritos da coletividade e da memria, esto as etnias indgenas. Existem autores, entre eles Berta Becker (1994), que se esforam por mostrar esse conceito partindo da idia Nao & Regio num cenrio de fragmentao contempornea:
O conceito de Regio bem mais antigo, mas foi redefinido com a formao do Estado Territorial Moderno. Corresponde territorializao do Estado-Nao: a nao se concretiza em combinaes diferenciadas de fraes de classes e de grupos no territrio nacional, constituindo sociedades locais variadas. E a Regio passa a ser esta dimenso territorializada do Estado-Nao (BECKER, 1994:103).
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Considerando
posicionamento
dos
pensadores
anteriormente
mencionados e as temticas pesquisadas nos captulos, em funo de suas especificidades, apresentam recortes entre os sculos XVI at o incio do XXI. Assim, o tempo geo-histrico, geo-poltico e as relaes etno-histricas do nosso estudo esto marcados por trs momentos: o primeiro conjunto de problemas diz respeito aos sculos XVI e XVII que registraram os primeiros contatos entre ndios e europeus nessa regio das Amricas, sob o poderio da Coroa da Espanha e depois de Portugal com os sculos XVIII e XIX dentro de um conjunto de problemas scio-polticos, econmicos e fundirios; o segundo relaciona-se aos impactos sociais, culturais, polticos, econmicos, relativos construo do espao social roraimense com a criao do Territrio Federal do Rio Branco e a transformao em Estado Federado; o terceiro se liga s questes sociais e tnicas relativas aos conflitos envolvendo o Estado/Unio, os ndios e os nondios no sculo XX e comeo do XXI, que registraram diferentes momentos de modelos desenvolvimentistas para a regio, definindo objetivos na geopoltica administrativa e defesa da regio pelo governo local e governo Federal. Procura-se, tambm, desvendar o processo poltico vivido pela sociedade local (ndios e no-ndios), atrelada a diversas esferas governamentais do poder central. Como tais esferas fizeram da regio Territrio Federal (Constituio Federal de 1937, no perodo conhecido como Estado Novo) e, 45 anos depois, Estado Federado, por meio da Constituio brasileira de 1988 (durante o processo de redemocratizao do pas). Alm disso, deseja-se avaliar o conflito das foras constituintes do Estado de Roraima frente a questes da terra e dos confrontos envolvendo o Estado/Unio, os ndios e os brancos, no decorrer das duas ltimas dcadas do sculo XX e como tal assunto vem sendo tratado na esfera do Estado e pela sociedade roraimense (ndios e no-ndios).
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Nesse sentido, nosso recorte abrange at a segunda metade dos anos de 1990, quando houve, de forma mais intensa, a comunicao rodoviria nacional e internacional na regio, o movimento de imigrao no-indgenas e indgenas, o posicionamento dos lderes e representantes da sociedade local (ndios e nondios), com a marcante presena do ndio pr-tradio (vinculada Diocese de Roraima) e do ndio pr-nacional (ligado ao Estado), que reivindicaram direitos segundo os princpios da Constituio brasileira/88 e da Estadual/91. Almeja-se que esta pesquisa venha abrir caminho para que novos estudos sejam realizados neste foco histrico do Brasil setentrional e que no fiquem s em caracterizao e anlises, mas busquem solues efetivas em escala abrangente; levando, desta forma, este trabalho a contribuir um pouco mais com o desenvolvimento histrico deste Estado.
Fontes e Mtodos
Um dos elementos de desvelamento desse processo histrico
contemporneo de Roraima em expanso e intimamente vinculado ao pensamento nacional ser um exame da imagem do ndio e do no-ndio como texto narrativo, incorporado nas mltiplas explicaes em forma de documento escrito e entre outras publicaes sobre o tema em estudo. Para situar essa viso do ndio e branco na trajetria histrica, a partir do sculo XVI at o XX, buscar-se-, nas fontes escritas, evidncias de dados portadores desses aspectos registrados pelos viajantes, expedies exploratrias, referentes tanto ao processo histrico de Roraima como associados s narrativas presentes nos diferentes interesses com a terra que esto representados na cultura e na conscincia indgena e no-indgena roraimense.
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Por outro lado, constituem nossa base documental, todos os textos produzidos e veiculados na regio nesse perodo que faz referncia questo proposta que analisar a formao desse Estado e da sociedade nacional local (multicultural), indicando aspectos que podem ter provocado o conflito das foras constituintes e a questo da terra entre Estado e Unio, os ndios e a sociedade local. Trata-se de entender a poltica integracionista, que deu, pela primeira vez, com a Constituio brasileira de 1934 sendo reiterado com a de 1988, o status jurdico ao ndio. Da, os territrios das naes indgenas poderiam ser utilizados como usufruto, em seus benefcios. Contudo, tais normas jurdicas que tratam dos direitos dos ndios geraram entre as famlias indgenas (pr-tradio e prnacional) e a sociedade nacional local, violentos conflitos e distintas posturas polticas em relao a essa situao de reivindicao de direitos que ganharam propores nacionais e internacionais. Diante de tal diversidade, nesse contexto scio-cultural, devemos fazer um balano dos dez anos da transformao de Territrio Federal em Estado da Unio, ao longo desse processo de redemocratizao do sistema poltico brasileiro, tanto na estrutura do Estado como do pas, com o fim de compreender qual a dinmica social do ndio e do no-ndio nesse processo poltico e econmico que foi reordenando a construo de Roraima. Como exemplo, identificamos, nos programas de desenvolvimentos para Roraima, discutidos nos fruns em Boa Vista, aes voltadas para incentivos fiscais, tributrios e de crditos beneficiando empresrios decididos a investir no Estado. Dessa forma, percebemos como o poder executivo estadual teve grande
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influncia nos fruns em favor da elite, sem se comprometer com uma poltica indigenista2. Essa problemtica ganhou novos significados polticos e se destacou como importante tema de debates em fruns realizados por distintas organizaes (oficiais e no-governamentais) locais, nacionais e internacionais. Tais debates produziram documentos3 que buscamos em algumas bibliotecas, arquivos de rgos oficiais e no-governamentais, na imprensa local e em sites na internet envolvidos com essa questo social, cultural e ambiental amaznica. Nesses documentos, buscar-se- dados para a compreenso dos discursos dos representantes das organizaes governamentais e no-governamentais, como fontes que aproximem as mltiplas concepes e a plural experincia de vida da populao roraimense. Para estudar tal questo, reexaminar-se- todos os dados de algumas propostas e documentos relacionados s polticas pblicas, sociais e ambientais, que procuraram incorporar em seus contedos os elementos dessa tendncia contempornea. Essas propostas, de interesse do governo federal para a Amaznia tendo o apoio de ONGs nacionais e internacionais, apresentaram objetivos vinculados aos interesses do Grupo dos Sete4 na questo dos povos indgenas e das florestas tropicais do Brasil. Citamos algumas:
Alguns conceitos relacionados ao histrico da situao do ndio aparecem com freqncia no objeto da pesquisa como: Indigenista, segundo estudos antropolgicos, significa poltica de atuao adotada pelo governo ou organizao no-governamental em relao aos ndios. Indigenismo, conjunto de idias e valores favorveis em relao ao ndio dentro da poltica Indigenista. 3. Relatrios, projetos, dossis, anais, artigos, notas, pareceres, cartas abertas, discursos, revistas, boletins, jornais, sites (Internet), entre outras publicaes sobre o tema em estudo. Esse material foi levantado, entre 1998 a 2002, na Biblioteca da Universidade Federal de Roraima, Biblioteca Pblica de Roraima, Biblioteca Pblica do Amazonas, do Instituto Nacional de Pesquisa do Amazonas, do Instituto Geogrfico e Histrico do Amazonas, Biblioteca da Universidade de So Paulo e no Centro de Apoio Pesquisa em Histria (CAPH/USP), Biblioteca da PUC/SP, Biblioteca do Centro Cultural So Paulo. Coletamos informaes na Secretaria de Planejamento de Roraima, Coordenadoria de Turismo de Roraima, Secretaria do Trabalho e Bem Estar Social (RR), Fundao Nacional do ndio em Roraima, Diocese de Roraima, Conselho Indgena de Roraima, Grupo de Trabalho Amaznico, Instituto SocioAmbiental (SP), Fundao S. 0 . S. Mata Atlntica (SP). 4. G-7, representa os sete pases mais ricos do mundo e lidera polticas pblicas sociais e ambientais no planeta: Estados Unidos, Canad, Alemanha, Frana, Itlia, Reino Unido e Japo. O interesse pelas florestas
2.
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a) Proposta Preliminar para um Programa Piloto para a Conservao da Floresta Amaznica. IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis). Brasileira. Braslia-DF: Editor IBAMA, novembro de 1990;
b) Projeto Piloto para o Programa de Proteo das Florestas Tropicais do Brasil. FUNAI (Fundao Nacional do ndio). Braslia-DF: FUNAI, 1992;
c) Projeto do Programa Piloto para Proteo das Florestas Tropicais Brasileiras: projetos demonstrativos PD/A. Governo do Brasil, Banco Interamericano de Reconstruo e Desenvolvimento (BIRD), Comunidade Europia. Braslia-DF, dezembro de 1992;
d) Projeto Piloto Ambiental de Desenvolvimento Auto-Sustentado para a rea Indgena Raposa Serra do Sol. PPTAL5. Braslia-DF: FUNAI, abril de 1994.
e) Pilot Program to Conserve the Brazilian Rain Forest: Indigenous Lands Project. World Bank. Washington-USA/World Bank, June 6,1995;
f) Projeto de Apoio ao Manejo Florestal na Amaznia. Projeto de Apoio ao Manejo Florestal na Amaznia. IBAMA. Braslia-DF: IBAMA, jan/1996; g) Projeto de Capacitao em questes Indgenas. PPTAL. Braslia-DF: PPTAL, 1997.
tropicais do Brasil surgiu durante uma reunio do G-7, em julho de 1990 em Houston, na qual a cpula do G-7 e os representantes do Brasil desencadearam entendimentos para propostas ambientais e sociais em parcerias: Governo do Brasil, a Comisso das Comunidades Europias e o Banco Mundial. 5. PPTAL, termo que passou a identificar o projeto do Programa Piloto para Proteo das Florestas Tropicais para toda a Amaznia Legal. A Comisso do PPTAL, composta por representantes nacionais e internacionais ligados ao G-7 e o governo federal tem sede em Braslia-DF, analisa os interesses em jogo e d o parecer aprovando ou no os projetos elaborados com propostas de desenvolvimento social e ambiental que so de responsabilidades do PPTAL.
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h) Projeto de Gesto Integrada do Estado de Roraima. Governo de Roraima/Secretaria de Planejamento. Boa Vista-RR: SEPLAN, setembro de 1997. Esse universo de fontes apresentavam metas de interesse nica e exclusivamente voltadas para o ambiente como se este estivesse apartado da questo social. No entanto, depois, surgiram Relatrios de Avaliao dessas fontes com preocupao tanto ambiental quanto social. Estudaremos alguns: a) Relatrio Anual com o ttulo: Polticas Pblicas para a Amaznia. Instituto de Estudos Amaznicos e Ambientais (IEA). Braslia-DF, janeiro. 1993; b) Relatrio da Segunda Reunio dos Participantes do Programa Piloto para a Proteo das Florestas Tropicais do Brasil. Ministrio do Meio Ambiente, dos Recursos Hdricos e da Amaznia Legal (MMA). Belm/Par, 67.julho.1995. c) Relatrio com sugestes para um Projeto Integrado de Proteo das Terras Indgenas e Populaes Indgenas na Amaznia Legal. Oficina de Trabalho/FUNAI/GTZ6. Braslia-DF, setembro.1995. d) Report of the International Advisory Group (IAG) of the G7 Pilot Programme to Conserve The Brazilian Rainforest (PPG7), Eighth Meeting. Brazil: Braslia-DF, 7-8.July.1997. Relatrio do Grupo Assessor Internacional para acompanhar e orientar a implementao dos programas governamentais voltados para questes ambientais e questes indgenas. Entre essas fontes, circularam tambm outras informaes (anais, dossis, carta aberta, atas, jornais de Roraima, boletins informativos, revistas, etc.) revelando a posio dos atores sociais e sujeitos polticos envolvidos nas propostas de polticas pblicas para a Amaznia:
6. GTZ, German Agency for Technical Cooperation. Os participantes desse evento (representantes indgenas, da sociedade nacional, de rgos oficiais e no-governamentais nacionais e internacionais) estabeleceram sugestes de possvel cooperao em Projetos Integrados na Amaznia Legal, com apoio de Cooperao Tcnica alem.
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a) Anais do Seminrio de Estudos sobre o Programa Piloto para a Amaznia. Belm/Par: FASE/IBASE, fevereiro. 1993. O documento apresentou discusses para melhor compreenso do Programa Piloto (PPG7) direcionado para os problemas sociais e ambientais amaznicos; b) Ofcio n. 541/DAF/97, de 22 de julho de 1997. Polticas Indigenistas e Demarcao de Terras Indgenas com a contratao de ONGs sem licitao. FALEIROS, ureo Arajo. Dossi. Braslia-DF: FUNAI, 22.julho.1997. O documento apresentou anexos (Memorando n. 181/PPTAL/97) relacionados complexa realidade dos direitos dos ndios e de suas terras; c) Carta Aberta dos ndios de Roraima sobre Demarcao de Terras Indgenas. Boa Vista/RR, janeiro. 1981. Assemblia Geral dos Tuxauas, na regio do Surumu/RR; d) Carta Aberta. Posio do Grupo de Trabalho Amaznico (GTA). Braslia-DF: GTA, 27.agosto.1991. Programa Piloto (PPG7) para a proteo das florestas tropicais do Brasil, especialmente, associadas idia de uma transformao scio-cultural e ambiental amaznica; e) The Indian Declaration Against The Pilot Plan. A Conference about the Pilot Plan was held in Luxemburg, 8-9.June.1991. (It was promoted by Action, Third World Solidarity and mediated by allies of Earth International). Foi apresentada, pelos representantes indgenas do Brasil, no referido evento; f) Declarao Desafios para o sucesso do Programa Piloto (PPG7). Documento elaborado durante o Terceiro Encontro dos Participantes do Programa Piloto para Proteo das Florestas Tropicais do Brasil. Bonn/Alemanha, 10-12.setembro.1996; g) Resoluo n. 68, de 1993, publicada no DOU, Braslia-DF, 30 de agosto de 1993, p. 12823, do Senado Federal/Brasil. O documento fez um breve relato da autorizao do acordo-quadro entre o Brasil e o BIRD relativo ao PPG7; h) Atas da Assemblia Geral dos Tuxauas, realizadas na regio do Surumu/RR, em janeiro de 1981/82/85. Fazem referncia aos temas conflitantes entre ndios e no-ndios: demarcao de terras, reorientao educacional dos jovens, propostas de desenvolvimento sustentvel em terras indgenas, o problema do alcoolismo e da prostituio entre outras medidas polticas para o
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reconhecimento da organizao social e cultural do ndio diferenciado do nacional. Coletar-se-, nas fontes escritas, referncias s mltiplas relaes culturais e interesses polticos no contexto da gesto do novo Estado, a questo central em torno da qual se organiza a nossa anlise, num dilogo entre histria, cultura, poltica, direito, economia e sociedade, evidenciando a formao de Roraima como Estado da Unio. Tal questo, no apenas pode oferecer possibilidades de apreenso do aspecto cultural e social na histria contempornea como, tambm, elucidar disputas geopolticas e econmicas do novo Estado. A utilizao do material publicado pela mdia roraimense (jornais, rdio, televiso, entre 1980/90), como um dos vieses de nossas fontes, evidencia situaes em que as vozes do Estado e da populao (indgena e no-indgena) oferecem suas idias anlise e, por sua participao no debate, podemos melhor compreender o universo do Estado em formao. Os jornais locais de maior circulao na capital Boa Vista so: Folha de Boa Vista (FBV) que de propriedade da Editora Boa Vista Ltda (do empresrio e fazendeiro Getlio Cruz) e o Brasil Norte (BN) que vinculado ao governo do Estado. A Crtica de Manaus o mais conhecido jornal regional, alm dos nacionais como o Jornal do Brasil (JB), O Globo, O Estado de So Paulo, a Folha de So Paulo, que ampliam a discusso do conflito local por meio da publicao de textos dos editores, dos jornalistas e dos lderes e representantes da poltica e da sociedade local e nacional. Grande parte das publicaes analisadas foi retirada do jornal FBV, motivamos as nossas escolhas por esse jornal, pela sua proposta de tentar democratizar o registro das opinies nos artigos, entrevistas que apresenta diariamente ao leitor dessa regio. A edio do jornal FBV composta por dois cadernos:
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Caderno 1 Capa Opinio Poltica Poltica Cidade Cidade Cidade Variedades Social Geral Editais Polcia
Pg. 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12
Caderno 2 Capa Poltica Indicador Classificados Classificados Classificados Classificados Classificados Classificados Brasil Esporte Nacional Esporte Local
Pg. 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12
Site: www.folhabv.com.br
As sees e contedos analisados foram dos textos publicados7 no jornal Folha de Boa Vista (FBV) no seguinte perodo:
Componentes Demarcao de terras, conflito de terras, cidadania, autonomia, identidade tnica, autodesenvolvimento, Funai, Diocese de Roraima, Assemblias e Conselhos Indgenas, soberania nacional, Igreja, Ongs, entidades (CIMI), tutela, royalties, dizimao, resistncias, territrio, reservas indgenas, municpios, eleies, empresrios e entidades do comrcio, governo de Roraima, Prefeito de Boa Vista, OAB/RR, Assemblia Legislativa, prefeitos, Constituio Federal/88 Sees Analisadas Editorial e matria assinada, artigos, reportagem, entrevista e geral. Jornal Publicado 1992 Outubro 1996 - Novembro 1997 Ago/Nov/Dez 1998 - Abr/Maio
Jun/Dez
As mudanas e transformaes tanto sociais como polticas nessa regio foram veiculadas nesse jornal que defendeu ora o no-ndio, ora o ndio, ora o Estado. Em geral, os textos registraram as experincias da imprensa local vividas de forma dialtica e vistas com preocupao por parte dos intelectuais, escritores, jornalistas, editores, entre outros, que expressaram diferentes leituras acerca do conflito fundirio, valores culturais, polticos e sobre a situao em questo no Estado de Roraima.
7. Alm dos textos do jornal FBV, utilizamos outros textos que foram elaborados pelos jornais locais Brasil Norte (BN) em janeiro/99/00, em dezembro/01/02; pelo jornal O Dirio de Roraima (OD), em agosto/97; pelo Jornal do Brasil (JB), em junho/99, pelo O Estado de So Paulo, maio/03; dando cobertura dos acontecimentos locais, referentes ao conflito fundirio e explorao dos recursos naturais.
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Durante o ms de setembro de 2000, realizou-se entrevistas com o Administrador Regional da FUNAI/RR e com o Coordenador do Conselho Indgena de Roraima (CIR), nessa ocasio, as informaes sobre essa temtica poltica, econmica e scio-cultural, sem uma efetiva definio fundiria, mostrou-se confusa e esparsa. Apesar das organizaes indgenas participarem dos fruns de discusses que buscam alternativas e solues para essa questo em Roraima, seus representantes no deixaram claros os fundamentos e os recursos para implementao de programas8 indgenas em parcerias governamentais e no-governamentais, que almejam por meio dos projetos a melhoria social e explorao ambiental9. Desse modo, o presente trabalho foi dividido em seis captulos. No primeiro captulo, procuramos analisar as polticas governamentais vinculadas s idias de expanso da fronteira e defesa da terra ocupada a partir, principalmente, das representaes e suas atuaes polticas administrativas nas transformaes scio-culturais da regio, iniciadas no sculo XVI indo at o XIX. No segundo, discutimos as perspectivas histricas, culturais e polticas na montagem e na organizao espacial e social da regio, no sculo XX. No terceiro, procuramos mostrar, a gnese do Estado: do Territrio Federal ao Estado Federado com a promulgao da Constituio Federal de 1988 e, depois, com a instalao poltico-administrativa com a promulgao da Constituio Estadual de 1991. O principal enfoque est voltado tanto para os textos constitucionais, relacionados problemtica poltico-administrativa e scio-cultural (ndios e no-ndios), como para o conflito fundirio. O quarto captulo, analisa os dez anos do Estado de
Propostas na rea da educao, sade, agricultura, piscicultura, pecuria, entre outros. Nos procedimentos do Projeto Ambiental e Desenvolvimento Sustentvel, para a reserva indgena Raposa Serra do Sol, determinou para a regio de serra a recuperao ambiental concomitante a minerao no curso mdio do igarap Capim e imediaes de sua confluncia com o rio Ma, produzindo 1.500 quilates por ano ao final do terceiro ano do projeto. PPTAL-FUNAI, Braslia-DF, abril de 1994. Por divergncias polticas, econmicas e culturais, entre os representantes governamentais (locais, nacionais, internacionais) esse projeto no foi aplicado.
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Roraima, por meio das aes do executivo estadual e suas propostas para melhorar a vida da sociedade roraimense (ndios e no-ndios), a partir de 1991, com a instalao do Estado. O quinto, analisa a participao dos representantes e lideranas indgenas e no-indgenas e os seus projetos na questo fundiria, por intermdio da imprensa local. O sexto, apresenta nossas consideraes finais sobre o levantamento de dados referentes ao nosso estudo, a ruptura da monoconscincia indgena (pr-tradio e pr-nacional) e a morfologia sciocultural do novo Estado. Cumpre, assim, examinar algumas lacunas que marcaram esse processo histrico de Roraima. Tal estrutura instituiu, nas ltimas dcadas do sculo XX, novas idias de direitos constitucionais, incorporando fundamentos de transformao do contedo ideolgico de concepo do Estado e da sociedade local. nossa inteno, nesta pesquisa, entender como o aparelho de Estado recm-criado, por exemplo, lida com as questes acima apontadas. Alm disso, observar-se- como se do as relaes atuais entre Estado, ndios, brancos e terra, de acordo com os pressupostos de dois textos constitucionais: a Constituio Federal de 1988 e a Constituio Estadual de 1991. Cabe ressaltar que, em se tratando de um processo histrico do tempo presente, impossvel detectar, com maior preciso, as fontes tericas esclarecedoras dessas prticas e suas respectivas representaes e formas de organizaes em Roraima, de suas atuaes intergovernamentais e dos setores da sociedade, na formao do novo Estado.
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poltica do Estado, ser o objeto de nossa reflexo nesse primeiro captulo que tratar do momento da expanso. Para compreendermos tal questo, o contato entre ndios e brancos acirrando a luta pela posse dessa terra, conduziremos nossas reflexes para os acontecimentos da primeira fase colonial europia, a partir do sculo XVI.
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das ilhas dos Aores e Cabo Verde. No entanto, o Monarca portugus (D. Joo II) recusou-se a aceit-la e essa questo tornou-se um dos dilemas entre os reinos ibricos, com concesses e recuos diplomticos, na tentativa de aumentarem o poder no Atlntico. Para solucionar o embate entre as duas monarquias competidoras do mundo ultramarino foi assinado, em 07 de junho de 1494, o Tratado de Tordesilhas12. Esse acordo foi considerado um marco histrico nesse processo da partilha poltica e econmica de competio internacional crescente, na rota ocenica e nas terras que foram divulgadas pela expedio de Colombo. O referido Tratado, demarcando o litoral brasileiro por meio do meridiano que passa por Belm (ao Norte) e Laguna (ao Sul), deu ao Imprio portugus domnio de quase toda a bacia do Atlntico afro-brasileiro e parte de terra firme que ficava ao Leste da linha meridional (o Brasil s foi ocupado pelos portugueses seis anos depois, a partir de 1500). O final do sculo XV e todo o transcurso do XVI ofereceram ao Imprio portugus enormes possibilidades internacionais de expanso. Lisboa era considerada como um importante centro de renovaes de conhecimentos e valores polticos e econmicos. Estava ligada ndia e ao Extremo Oriente sem interrupo de comunicao pela rota ocenica, usada para explorao de especiarias asiticas, e impunha-se ao domnio do Atlntico Sul, aos ancoradouros da costa afro-brasileira. Por sua vez, o Imprio espanhol desfrutava da expanso e conquista do mercado e matrias-primas (minerais e vegetais) no Atlntico Norte. Nessa perspectiva, a expanso dos reinos ibricos se fez sob o signo do capitalismo comercial. Esses colonizadores tinham como meta fornecer ao mercado europeu
12. Esse Tratado alterou a linha divisria dos territrios descobertos e explorados pelos espanhis e portugueses, que fora promulgada pela Bula Inter Coetera de 1493. Com o Tratado de Tordesilhas o limite foi ampliado para 370 lguas.
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produtos exticos e tropicais de valor comercial, principalmente os metais nobres, as pedras preciosas e os paus de tinta (pau-brasil, diferentes razes e frutos usados na tintura pelos ndios). Apesar da diversificao dos produtos tropicais comercializados pelos portugueses, as duas naes ibricas constituram instrumentos colonizadores semelhantes na Amaznia: aldeamentos e escravizao indgena. Essa ao envolveu tanto o processo de povoamento como o de organizao de uma economia complementar voltada para o mercado das metrpoles. A europeizao do mundo amaznico aconteceu com a descoberta da rota fluvial interligada ao Rio Amazonas (com entradas pelo Oceano Pacfico, Atlntico e
Mar do Caribe). At o incio do sculo XVI, o Rio Amazonas mal figurava na
cartografia de expanso do homem europeu. A sistemtica navegao fluvial/martima entre o Rio Amazonas e o Atlntico foi de fundamental importncia para as trocas e contatos entre os ndios e os europeus. Na histria do Brasil, quando se fala em regio amaznica, so logo lembradas as Entradas e Bandeiras, ignorando-se todo esse dinamismo poltico e econmico internacional do sculo XVI, ligado ao Tratado de Tordesilhas e Unio Ibrica13, por exemplo. Existe uma ausncia ou um embate de paradigmas na historiografia brasileira, o que se relaciona s pendncias fronteirias entre os portugueses e as outras naes europias (Espanha, Frana, Holanda e Inglaterra) na Amaznia setentrional. Em geral, os documentos apenas relatam os feitos corajosos dos homens do Brasil colonial que abriram os caminhos do interior, criando novas formas de vida poltica e econmica, ampliando o espao fsico da terra portuguesa no Novo Mundo. Nesse processo histrico, as entradas e bandeiras com que se
13. Relativo ao perodo histrico entre 1580 at 1640, quando da morte do cardeal Dom Henrique (1580), rei de Portugal, sem deixar herdeiros diretos, o reino portugus passou para o poder de Felipe II, rei de Espanha. A unio entre as duas Coroas (portuguesa e espanhola) ampliou o poder poltico ibrico nas terras do Novo Mundo e despertou reao agressiva entre as outras naes europias, que disputavam o comrcio internacional.
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procurava desbravar as zonas ignoradas do serto aproximando a Amaznia do litoral, tornaram-se estratgias importantes tanto na busca de novas riquezas como na captura dos indgenas. Assim, do ponto de vista da poltica expansionista, do conhecimento dos pioneiros desbravadores servindo os interesses do poder colonial, os bandeirantes foram considerados cones autnticos dos exploradores portugueses e paulistas (que vieram em busca de ouro no Mato Grosso e se fixaram no sul
da bacia amaznica) favorecendo a penetrao e a conquista do Rio-Mar, o
Amazonas pela Coroa Lusa. Nessa perspectiva, o sculo XVI visto como um perodo rico de relatos ou informaes difundidas por viajantes e cronistas, que tinham como base essa curiosidade do homem europeu, e as sucessivas vises que circundavam a cultura e a natureza do Novo Mundo, atraindo homens em busca do metal aurfero na terra luso-americana. As primeiras notcias sobre essa regio amaznica foram divulgadas em documentos que relatavam as viagens de aventureiros, militares, missionrios, naturalistas, cronistas, gelogos, que procuravam atualizar seus conhecimentos cientficos e cartogrficos, percorrendo essas terras do Novo Mundo com viagens sistemticas aps os anos iniciais do sculo XVI. As obras configuradas por esses homens engendraram uma histria de mltiplos pontos de vista do mundo natural e de seus habitantes indgenas. Desse modo, a regio foi divulgada pela primeira vez, sob o olhar da expedio do espanhol Francisco Orellana, ocorrida entre 1539 e 1542. O explorador espanhol buscava notcias que confirmassem a existncia da Terra da Canela (o pas do Prncipe El Dorado) ou da Cidade de Manoa14. Orellana foi o
14. Mito que se fez presente no imaginrio do homem europeu do sculo XVI, explicando a existncia de uma cidade (com palcios cravejados de pedras preciosas, ruas e rios cobertos de ouro) governada por um prncipe que cobria todo o corpo de ouro (IBGE, 1981). Em outra publicao, o mito (El Dorado homem de ouro) se refere ao prncipe inca, filho caula de Huayanacapa, que conseguiu escapar dos espanhis Francisco
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descobridor da rota fluvial integrada ao Rio Amazonas, percorrendo o rio desde a cabeceira at sua foz no Atlntico. A expedio de Orellana navegou por diferentes labirintos aquticos entre rios e igaps, pretendendo elaborar uma carta topogrfica com o mapa preciso da viagem, mas no descobriu qual dos rios navegados teria ligao com o caminho que o levaria para Manoa. Sem entender direito a lngua dos ndios, o chefe da expedio nunca tinha certeza do melhor caminho fluvial a ser seguido. Ao encontrar o rio de guas pretas, os homens de Orellana o denominaram de Negro. Gaspar Carvajal (1542), o cronista que fez os relatos da expedio de Orellana, descreveu com detalhes a existncia de densas populaes indgenas ao longo das margens do rio, dando notcias tambm da sofisticao de suas cermicas. Essa notcia envolvendo a regio amaznica com o mito branco El Dorado atraiu imigrantes/aventureiros de naes europias que visavam no s a participao nesse mercado expansionista, mas derrubar o poderio econmico e martimo internacional mantido pela Espanha no Atlntico Norte. Nesse percurso fluvial, um outro mito do imaginrio europeu foi difundido por Orellana: o seu encontro com as mulheres guerreiras, as
Pizarro, Diego Almagro e outros durante a conquista do Imprio do Peru. Esse prncipe partiu protegido por um batalho de guerreiros, de diferentes etnias indgenas, abrindo caminho pela floresta amaznica em direo ao mar do Caribe. Nessa regio intransponvel, entre as bacias do Amazonas, do Orinoco e do Essequibo, o prncipe inca fundou o Imprio da Guiana beira de um lago salgado com duzentas lguas de comprimento. Esse Imprio seguiu as mesmas regras governamentais do antigo Imprio do Peru. Todo ano, durante um ritual mtico, o corpo do prncipe inca era coberto de ouro e, num cerimonial de revitalizao dos sditos indgenas, era mergulhado em um lago para depois emergir (cf. MANTHORNE, 1996). A confirmao do mito e da existncia de tal lago, nessa regio setentrional da Amaznia, foi descrita pela expedio do ingls Walter Raleigh de 1594 a 1596, na publicao The Discovery of the Large, Rich and Bewtiful Empire of Guyana. Essa publicao teve diversas reimpresses e no ano de 1597 foi simultaneamente traduzida para o francs, holands e italiano, tornando-se o primeiro best-seller internacional da cultura europia (cf. RALEIGH, Walter. O Caminho de Eldorado, adaptao e notas de E. San Martin, 2002). De acordo com as citaes de Sir Raleigh, o caminho para o El Dorado conduzia para as plancies que circundavam as montanhas entre os rios Essequibo e Orinoco. Os registros faziam referncia regio da bacia do Rio Branco (Roraima) como o possvel lago denominado Parim. No sculo XVIII, com a entrada dos portugueses na regio, tal lago no foi encontrado, porm, depararam-se com um rio de nome Parim.
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amazonas, caracterizadas como cruis e sanguinrias, que teriam acumulado grande fortuna em pratos de ouro trazidos do El Dorado. Ao final do sculo XVI e comeo do XVII, com o aumento da posse de terras no Novo Mundo e dos bens do poder real, tanto da Espanha como de Portugal, gerou intensas disputas pelo poder crescente e valioso mercado de exportao, em face de sua extenso do mar mediterrneo para o mar aberto do Atlntico (dominado ao Norte pelos espanhis e ao Sul pelos portugueses). Desse modo, os Estados-Naes em formao no velho mundo europeu, voltaram-se para a explorao mercantilista na regio amaznica. Contudo, vrios fatores dificultaram a conquista e a ocupao da terra amaznica (no s pelos espanhis, como pelos seus inimigos ingleses, franceses e
holandeses), entre os quais:
a) a variedade lingstica indgena dificultando o entendimento entre os intrpretes; b) a impreciso das informaes cartogrficas; c) as Cordilheiras dos Andes e o sistema Parimo-Guiano, formando uma espcie de muralha; d) o clima mido e quente no vale, frio nas montanhas e o aumento do calor com a proximidade da imaginria linha do Equador; e) as diferentes bacias dos rios Orinoco, Essequibo e Branco com movimentao de suas guas controladas pelas duas estaes: seca (perodo de vero entre outubro e abril) e chuva (perodo de inverno entre maio e setembro). Alm disso, no perodo chuvoso, a correnteza dos rios fica mais forte, as praias desaparecem por conta da cheia do rio, as margens ficam cobertas por mata cerrada, os barcos parecem mais pesados e os remadores cansados dificilmente enxergam um lugar tranqilo para ancorar. Havia o pavor sobre as doenas desconhecidas que dizimavam tripulaes das expedies.
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A idia de medo ou temor dos mistrios da Amaznia surgiu no perodo aps a Era dos Descobrimentos. Depois da divulgao das notas de viagens de Sir Raleigh (1596), houve rumores de que muitos homens europeus morreram de febres misteriosos e constipaes tropicais. Outros, perderam a vida em combate com os ndios, principalmente contra os guerreiros do grupo lingstico Karib que eram considerados canibais. Alm disso, as savanas estavam cheias de viveiros de vermes constipantes e serpentes de peonha sem remdio. Em alguns locais, beber daquela gua era suicdio porque causava infeces com o mais aflitivo corrimento (SAN MARTIN, 2002:67/69). Nesse sentido, os servios de um guia indgena conhecedor da regio era imprescindvel para sobreviver nessa empreitada. Tais boatos coincidiram com o momento da implantao de estratgias para o controle territorial no Novo Mundo. Os holandeses e ingleses apareceram nesse cenrio amaznico fazendo alianas comerciais com os ndios, usando mecanismos polticos distintos dos espanhis e portugueses que impunham a cultura e a religio, construindo uma sociedade amaznica com o trabalho escravo do ndio. Nesse processo de colonizao e disputa geopoltica, os protestantes holandeses e ingleses ofereciam guarda militar aos nativos, justamente contra as tentativas ibricas de escravizar e eliminar os hbitos e costumes dos ndios em nome do cristianismo (SAN MARTIN, 2002:13), percebidos claramente como mecanismos de conquista da terra pelos reinos ibricos catlicos. Nessa vivncia de confronto poltico-cultural, as incurses sociais e trocas comerciais na regio eram quase exclusivamente indgenas por toda a primeira metade do sculo XVI. Diferentes famlias do grupo lingstico Arawak (Wapixana) e do grupo Karib (Makuxi e outras pequenas etnias), que fugiam da
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colonizao espanhola e depois dos portugueses, realizavam pactos inter-tribais e trocas, havendo tambm guerras entre si na disputa do territrio. O processo da mundializao scio-econmica indgena, nessa fase histrica da regio, encontrava-se sob a gide dos ndios denominados Caribes15 que monopolizavam as relaes inter-tribais e que:
(...) desenvolveram, a partir do mdio curso do Orinoco, uma enorme atividade comercial e, em muitos casos, verdadeiras conquistas. Navegadores incansveis, eles j tinham alcanado no s os rios Caura, Paragua e Caroni, mas tambm o alto Orinoco, o rio Uraricoera, o Tacutu e Rupununi, (...) A partir do rio Orinoco, os Caribes deixavam o curso do Caura, desembocavam no Rio Paragua e, deste, penetravam nos rios Uraricoera e Branco. Pode-se supor que, em alguns casos, realizadas as trocas e os pactos inter-tribais que tinham motivado aquela viagem, voltavam atrs; ou, na maioria das vezes, prosseguiam a p no lavrado, at chegarem no rio Tacutu, e depois deste, no Essequibo. Da tornavase fcil voltar ao Orinoco (CIDR, 1989: 5).
O modo tradicional de apropriao do espao coletivo, auxiliado pela relao mtica de parentesco com o ciclo da natureza (VIVEIROS DE CASTRO,
1998), usado pelas etnias indgenas, era redimensionando e at reconstrudo pelo
coletivo de uma identidade nica como os denominados Caribes. No processo das relaes inter-tribais, os Caribes transformaram em territrio de seu domnio as vastas regies pertencentes s bacias dos rios Orinoco (Venezuela), Essequibo (Guiana) e Branco (Brasil), dentro de um processo ecossistmico distinto do modo de apropriao do mundo natural pelo branco, de modelo econmico e interesse individualista na relao com a terra. Na viso do ndio, essa rea territorial amaznica definida pela interrelao entre os seres vivos e o ambiente, respeitando-se o espao de tempo durante o qual ocorrem os fenmenos naturais relativos aos perodos cclicos
(chuvas, vero, caa, pesca, colheita, etc.), existia como se fosse totalmente uma imensa
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natureza, desvinculado da idia de posse de um determinado espao fsico para fixao e explorao, concepo esta da cultura do branco, que delimitou reas territoriais particulares para usufruto dos espanhis, portugueses, holandeses, ingleses, entre outros grupos da cultura europia. De acordo com o olhar dos primeiros brancos, os distintos habitantes da Amaznia eram denominados de ndios e constituam dois grandes grupos sociais: os caadores-coletores, que eram nmades; e os agricultores que, com uma organizao social mais complexa, eram fixos terra. O conjunto de idias do olhar cultural ocidental no alcanou, contudo, o sentido da dimenso simblica e social indgena, que era distinto da dimenso simblica e social ocidental. Desse modo, o povo amerndio se diferenciava de tudo o que o europeu conhecia sobre organizao social e cultural:
Os espritos xapirip danam para os xams desde os primrdios e assim o fazem at hoje. Eles parecem seres humanos, mas so to minsculos quanto partculas cintilantes de poeira. (...) Os espritos so to numerosos porque so as imagens dos animais da floresta. Todos na floresta tm uma imagem utup: quem anda no cho, quem anda nas rvores, quem tem asas, quem mora na gua (...). So essas imagens que os xams invocam e fazem descer para virar espritos xapirip. Essas imagens so o verdadeiro centro, o verdadeiro interior dos seres da floresta. As pessoas comuns no podem v-los, s os xams. Mas no so imagens dos animais que conhecemos agora; so imagens dos pais desses animais, so imagens de nossos antepassados. Nos primrdios, quando a floresta ainda era jovem, nossos antepassados eram humanos com nomes de animais, e acabaram virando caa. So eles que flechamos e comemos hoje. Mas suas imagens no desapareceram, e so elas que agora danam para ns como espritos xapirip. Esses antepassados so muito antigos. Viraram caa h muito tempo, mas seus fantasmas permanecem aqui (KOPENAWA YANOMAMI, 1998: 08)16.
Esse pensamento simblico, retirado de um depoimento do ndio Yanomami, de final do sculo XX, foi mitificado por meio da narrativa oral ao longo dos sculos passados. Essa narrativa explica a forma de representar e apreender o mundo natural do ndio e faz aparecer um conhecimento que no se
Davi Kopenawa Yanomami, em depoimento recolhido, traduzido e editado por Bruce Albert. Os Yanomami so caadores-agricultores e ocupam a regio do interflvio Orinoco-Amazonas (Rio Branco e Negro). So cerca de 9.500 no Brasil e 12.600 na Venezuela. Segundo Davi Yanomami, o xamanismo, enquanto intermediao ritual com todas as formas de alteridade que ameaam a comunidade humana e a ordem do mundo, o centro de gravidade de sua cosmologia e filosofia social.
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restringe ao pensamento cartesiano. Tais imagens do pensamento mtico indgena s podero ser compreendidas recorrendo-se a esse princpio de representaes. Nesse sentido, podemos arriscar em dizer que, tanto no sculo XVI como no sculo XX, para o ndio no existe o conceito de direitos individuais e propriedade como corriqueiros na cultura ocidental. Existe uma complexa organizao social e uma relao de parentesco com o espao geogrfico (terra, fauna, flora), recriado no cotidiano indgena que d significado a tudo o que acontece entre a esfera humana e a natural (DIEGUES, 2001:54/57). Essa organizao social do ndio explicada por meio das narrativas e dos rituais mticos conectando o mundo scio-cultural ao mundo cosmolgico. Sobre os primeiros encontros dos europeus (espanhis, holandeses e ingleses) com essas etnias indgenas amaznicas nos sculos XVI e XVII as fontes na historiografia brasileira so escassas, mas os poucos documentos revelaram a incontestvel confiana e audcia desses europeus enfiando-se durante meses na selva amaznica, apenas com pequenos barcos e botes a remo, enquanto grande parte da tripulao aguardava no navio ancorado na costa selvagem17. Dentre os hbitos indgenas relatados pelo olhar dos primeiros exploradores europeus, o de maior impacto foi a notcia sobre a antropofagia. Alguns viajantes acreditavam terem chegado ao to almejado paraso perdido e outros de terem desembarcado numa terra demonaca, habitada por bestasferas. Passou-se a questionar se a Amaznia era o imaginrio Paraso ou o Inferno (LEITE, 1996:35). Aps o contato dos ndios com as expedies de Colombo e Cabral, as boas impresses sobre as riquezas das terras do Novo Mundo divulgadas por esses viajantes, suscitaram no mundo europeu idias sobre o mito do paraso terrestre (PERRONE-MOISS, 1996). O mais impressionante, aos seus olhos, era essa gente idlica e sadia em sua nudez (LEITE, 1996).
17.
MARTIN,
Expresso que identificava o Nordeste da Amrica do Sul banhada pelo Mar Caribe, nessa poca (SAN 2002).
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Esse tema necessita de maiores estudos, mas existem observaes de viajantes europeus (especialmente franceses) do sculo XVI, na disputa da terra amerndia, apontando para uma viso etno-histrica, condenando os hbitos culturais e morais dos ndios (incesto, preguia, luxria, canibalismo, entre outros)18. Nesses documentos, h uma discordncia da viso paradisaca divulgada pelos primeiros viajantes catlicos (espanhis/portugueses), pois os novos relatos (viajantes protestantes) deram nfase ao hbito antropofgico do ndio, contrariando a idia de que o ndio vivia em um cenrio semelhante ao dos primeiros dias da criao. Essa divergncia poltico-religiosa foi usada pelos protestantes para desautorizar os catlicos (papa-hstia), igualando-os aos antropfagos e solidificando sua reivindicao na posse da vida do ndio e da terra conquistada (PERRONE-MOISS, 1996:86/90; LEITE, 1996:35-36). Essa estratgia poltico-religiosa na disputa do domnio colonizador europeu enfrentou outros poderes de um sistema que fundamentava as relaes indgenas. Na rea amaznica do mundo indgena tambm ocorria mudana e disputa pelo poder e posse do territrio. Essa rea do Rio Branco recebeu mltiplas etnias indgenas nos ltimos milnios que instituram seus espaos scio-culturais e os variaram de acordo com os diferentes modelos de adaptao ambiental, sem causar danos irreparveis natureza circundante
(MEGGERS, 1987). Com a chegada de novas famlias indgenas gerou uma srie de
lutas entre as prprias etnias indgenas pela posse da terra e do monoplio nas trocas comerciais entre essas etnias. Entretanto a maioria dos documentos, que registraram essas primeiras exploraes dos recursos naturais pelos europeus em fins do sculo XVI, deu poucas notcias sobre esses primeiros confrontos intertnicos amaznicos. Ora
18. Consideraes extradas de estudos sobre esses documentos do sculo XVI relatando as circunstncias das viagens e as caractersticas gerais dos relatos resultantes (cf. PERRONE-MOISS, 1996:86; LEITE, 1996:34).
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descrevem os acontecimentos sob a viso fantasiosa dos viajantes e ora na viso dos desbravadores do serto, no deixando clareza sobre o embate entre ndios e no-ndios na formao do processo histrico associado idia de conquista e expropriao da terra que era habitada pelos ndios. Outros estudiosos19 da regio deram uma interpretao de efeitos sobre a paisagem natural do lugar, construindo um mundo praticamente desabitado e desconhecido, fazendo referncia s densas florestas virgens formadas por montanhas, vales, cachoeiras e rios sem fim. Apresentaram cartografias com detalhes sobre riquezas minerais e destacaram a abundncia de madeira, de frutas tpicas (cacau, caju, banana, buriti, aa, etc.) e peixes de variados tamanhos (pirarucu,
tucunar, curimat, pescada, etc.). Percebe-se um silncio sobre um dos mais
lucrativos produtos encontrados pelo colonizador nesse mundo natural: a caa ao ndio, seguida pela apropriao de suas terras e a busca pelo ouro. Nessa marcha do tempo, criando novas foras e relaes sociais, a sabedoria dos povos indgenas foi se misturando ao saber dos povos noindgenas que chegavam nessa regio. Junto com as transformaes da natureza, a cada poca, os confrontos sociais e culturais, as reaes de admirao ou de medo diante do inusitado e a dificuldade para entender a nova ordem aceleraramse:
Nos primeiros tempos, os brancos viviam como ns na floresta e seus ancestrais eram pouco numerosos. Omama (heri cultural) transmitiu tambm a eles suas palavras, mas no o escutaram. Pensaram que eram mentiras e puseram-se a procurar minerais e petrleo por toda parte, todas essas coisas perigosas que Omama quisera ocultar sob a terra e a gua porque seu calor perigoso. Mas os brancos as encontraram e pensaram fazer com elas ferramentas, mquinas, carros e avies. Eles se tornaram eufricos e se disseram: Ns somos os nicos a ser to engenhosos, s ns sabemos realmente fabricar as mercadorias e as mquinas!. Foi nesse momento que eles perderam realmente toda sabedoria. Primeiro estragaram sua prpria terra antes de ir trabalhar nas dos outros para aumentar suas
Um exemplo que mostra bem essa questo est no texto da Carta de Caminha, mas os relatos de Sir Raleigh (1595/96), de Carvajal (1542) descreveram a existncia de riquezas naturais (minrios, madeiras, entre outros produtos tropicais). Os textos de Humboldt (1825) ou de Bastide (1980) enfatizaram a riqueza da fauna e da flora amaznica, como tambm os relatos sobre os feitos dos desbravadores das terras virgens apontadas por Serro (1968), entre outros que propagaram uma viso econmica dessa natureza amaznica intocvel.
19.
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mercadorias sem parar. (...) Quando conheci a terra dos brancos isso me deixou inquieto. Algumas cidades so belas, mas seu barulho no pra nunca. (...) H muito barulho e gente por toda parte. O esprito se torna obscuro e emaranhado, no se pode mais pensar direito. (...) O pensamento desses brancos est obstrudo, por isso que eles maltratam a terra, desbravando-a por toda parte, e a cavam at debaixo de suas casas. (...) Ns, ns queremos que a floresta permanea como , sempre. Queremos viver nela com boa sade e que continuem a viver nela os espritos xapirip, a caa e os peixes. Cultivamos apenas as plantas que nos alimentam, no queremos fbricas, nem buracos na terra, nem rios sujos (KOPENAWA YANOMAMI, 1999:20).
A concepo de periculosidade ou da no necessidade daquilo que est escondido, por desgnio divino, mostra a posio etnocntrica do homem em relao criao do mundo. Esse mundo, que fora criado por ele e para seu bemestar, deveria ser mantido igual para sempre. Por outro lado, o artificialismo do branco visto como negativo, com capacidade de embotar sua percepo e seu raciocnio, embora ele no seja visto como ruim por natureza: ele foi pretensioso e sua criao agora o sufoca. Torna-se, portanto, clara, a profundidade da diferena entre as sociedades indgenas e a sociedade europia que, nos sculos XVI-XVII, via o nascimento do capital. Tratou-se de um confronto cultural de pensamento polticoeconmico entre homens com distintas relaes no s culturais, mas de critrios no usufruto dos recursos naturais do seu meio ambiente. Por exemplo, a organizao da maloca20 distinta da organizao do Aldeamento de estrutura urbana europia. Na viso do ndio, a casa de morada e o meio-ambiente fazem parte do mesmo ciclo natural. Tanto a maloca como a terra so renovadas pela prpria natureza, enquanto que para o homem branco o
H uma discusso sobre os dois conceitos: Aldeia, representa uma pequena povoao indgena dirigida por missionrios ou ndio civilizado. uma organizao semelhante a um pequeno ncleo urbano europeu, inferior Vila. Maloca, representa uma unidade habitacional indgena tradicional dirigida pelos ndios, uma organizao comunitria e espacial distinta da Aldeia. Na Maloca a casa representa uma unidade comum para o grupo indgena, que vivencia sua prpria organizao cultural, enquanto que na Aldeia a casa representa a unidade, com princpios organizacionais e unificadores scio-culturais da famlia indgena, que vivencia hbitos civilizados. Em Roraima, os termos Maloca e Aldeia so utilizados como sinnimos, em decorrncia do processo civilizador do ndio. Antigas Malocas, por meio dos contatos com a sociedade nacional e local, transformaram-se em Aldeamentos, Vilas, Municpios, enquanto que o ndio tornava-se cidado brasileiro nato. Esse processo percebido desde o perodo colonial, chegando at os nossos dias (2003).
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sentido de renovao da residncia e da propriedade territorial passa pelo vis da tecnocincia, da economia e do status social. A introduo do indgena nesse universo de incluso do Capital em que o equilbrio dependia de extenuante prtica comercial, que o tinha como simples ttere, deu espao a conflitos alheios sua histria. Nesse processo, a bacia do Rio Branco mostra, ainda hoje, essas diferentes formas de olhar o scio-cultural, o ambiental e as maneiras no usufruto dos recursos naturais, como tambm a produo de conhecimentos relacionados percepo e cultura desses seres humanos. No centro de tais conflitos, no fim do sculo XVI e durante o sculo XVII, a etnia Makuxi, que estava em constante guerra com a etnia Wapixana, comeou a ganhar espao e aumentar o poder dos grupos Caribe no monoplio comercial da rede dos negcios entre as bacias dos rios Branco e Essequibo, expandindo tambm para a regio do Rio Negro com os ndios Manao que monopolizavam as relaes inter-tribais na regio do Negro com extenso para o Amazonas (CIDR, 1989; REIS, 1989). Os holandeses j haviam se instalado na regio, por volta de 1581, estabelecendo uma feitoria numa rea denominada Pomeroon Coast, hoje Repblica Cooperativista da Guiana. Ali, os holandeses iniciaram uma explorao comercial com os ndios por meio de troca, tanto de tabaco como de algodo e os paus-de-tinta obtidos dos indgenas, consolidando a explorao desse comrcio e a circulao de manufaturados europeus (BOXER, 1961:7). Aproveitando a boa relao de amizade com os ndios, o holands alargou um pouco mais tal comrcio e, a partir da ao dos indgenas, organizaram a poltica mercantil em toda a regio do Rio Branco, do Negro, do Amazonas, etc. Pode-se dizer que, utilizando estratgias de cooptao, o campo de poder holands penetrou no interior da selva, por meio dos rios navegveis ou das trilhas na
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selva/savana, a fim de intensificar e expandir tanto a rota comercial como o aumento dos lucros. A inexistncia de uma estrutura de poder intermediria facilitou para os holandeses investirem numa poltica comercial, apoiada numa rede de domnio capitalista, sobre as populaes indgenas dos rios Orinoco, Essequibo, Branco, Negro e Amazonas. Esse controle do poder branco sobre essa regio de paisagem complexa, intercalada por serras, savanas e florestas, plena de rotas para longas e perigosas caminhadas at os rios navegveis tornou possvel o gerenciamento das relaes indgenas, em favor do holands, que souberam se aproveitar das fragmentaes intertnicas. Nesse contexto, de explorao econmica e alianas culturais, o habitante holands fez do mercado de trocas a sua arma de dominao colonizadora. Desse modo, as diferentes etnias indgenas se articulavam numa estrutura poltica de poder pelo comrcio, que se dava por meio dos casamentos e estreitavam os laos entre os ndios. Tal processo poltico, enfraquecendo as alianas intertribais, acentuou consideravelmente as disputas, incentivando as guerras ligadas posse de terra e o aprisionamento de ndios derrotados nesses confrontos, que eram traficados como escravos. Dentro desse jogo de fora exercido pelo Estado holands, para fazer valer o direito poltico e econmico sobre o universo do ndio, existiam grupos indgenas que fugiam para o interior da regio e lutavam pelo direito de preservar a sua organizao scio-cultural. Tais grupos, contudo, acabavam seduzidos pelas alianas inter-tribais e integravam-se nessa rede de poder comercial tornando-se um membro dessa coletividade de representao da rota holandesa amaznica (CIDR, 1989:5/8). Difundindo novos hbitos e comandando o fluxo de manufaturados nessa complexa paisagem, os holandeses consolidaram sua presena na Amaznia com
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a construo de um forte (denominado Kijkoveral) no ponto de juno dos rios Cuyuni e Mazaruni na regio do Essequibo, no incio do sculo XVII, sob a liderana de Groenewagen (DREYFUS, 1993: 21)21. Esses empreendimentos na fase do colonialismo, estabelecendo mudanas geopolticas e scio-culturais indgenas na Guiana Ocidental, foram estratgias significativas de conquista pelos primeiros europeus nas terras dos amerndios. Esse poder branco favoreceu a fundao da Companhia Holandesa das ndias Ocidentais em 1621, oficializando o comrcio de escravos tanto africanos como indgenas. Os mercadores holandeses diversificavam seus negcios e ampliavam os tratados de paz e comrcio entre os ndios, os quais desenvolviam inter-relaes no apenas entre as diferentes etnias que habitavam a regio, mas tambm com particulares espanhis na troca dos manufaturados. As distncias e o tempo para o percurso, o transporte de mercadorias, de escravos ndios e, naturalmente, dos grandes lucros, formavam novas polarizaes nas relaes comerciais na regio. Assim, tendo a base de seu poder na foz do Essequibo e com sada para o mar Caribe/Atlntico Norte, os holandeses controlavam a demanda que incidia sobre canoas, madeiras, tinturas (especialmente o urucu usado na indstria txtil
europia), redes, gomas e escravos ndios. Nessa troca conjunta em favor do
branco, os ndios recebiam armas de fogo, facas, machados, anzis, alm de espelhos e contas de coral ou vidro que eram disputados pelas mulheres
(FARAGE, 1991:89). Foi com base nessa forma de coalizes, que os holandeses
introduziram a diferena no processo colonizador europeu: nunca buscaram converter ou aldear as etnias indgenas. Nessa conjuntura, entre choques de
Groenewagen, desertor dos estabelecimentos espanhis, colocou-se a servio de seus compatriotas. Casado com uma ndia Karinya, teve um filho, o qual foi encarregado do posto holands no Demerara. Diferentemente das concubinas, s quais os outros europeus s atribuam um status inferior, as mulheres ndias eram freqentemente consideradas (mesmo se no o fossem legitimamente) como as esposas dos holandeses, para grande escndalo dos espanhis, que se queixavam Corte da Espanha (Reclamao de 1637) das relaes privilegiadas com afins indgenas (cf. DREYFUS, id.:37).
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interesses polticos e econmicos, eles visavam vantagens financeiras, sendo indulgentes com os interesses culturais do ndio em um nvel por eles considerado superficial de manifestaes religiosas e de manuteno lingstica. Desse modo, o homem colonizador deu incio a novos modelos de relaes poltico-econmicas com o indgena. Essas relaes transcodificavam estruturas sociais, culturais e polticas seguindo modalidades de aproximao das semelhanas e das diferenas entre os dois mundos (Velho e Novo) em confronto e seus respectivos valores scio-culturais e religiosos. Essa escolha e estratgia, que caracterizaram a ocupao e explorao holandesa na bacia do Rio Essequibo com extenso para a do Rio Branco, eram vistas com preocupao pelos espanhis (e, mais tarde, pelos portugueses) que reconheciam o poder de atuao das naes do norte no trato e alianas com os amerndios. Tanto no contexto das guerras tribais e do apresamento22 indgena para os holandeses estabelecidos na bacia do Essequibo, quanto no contato para a colonizao e as tentativas dos espanhis na bacia do Orinoco de se instalarem na bacia do Rio Branco, observamos o forte aparato militar nas estratgias de consolidao tanto comerciais por meio da cooperao indgena; como de segurana na posse da terra por meio da construo dos postos ou feitorias. Dessa maneira, esses pioneiros brancos teceram nessas regies uma rede flutuante de significados scio-polticos e culturais (religiosos e comerciais), permitindo vrias interpretaes e negociaes da sociedade e ambiente indgena, dependendo da contextualizao e do interesse europeu em questo. Por volta de 1621, um frade franciscano, que desenvolveu trabalho missionrio nessa regio, denunciou ao Conselho das ndias o comportamento no cristo e o aumento das violncias praticadas pelos espanhis aos ndios
22. O apresamento no contexto holands (cf. pp. 32-3, acima) significava seduzir os ndios para integrar-se rede comercial. J na realidade espanhola, o apresamento era a priso do ndio fugido da aldeia, transformado em escravo.
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poltica, econmica e religiosa entre os colonizadores europeus, os protestantes (holandeses) eram beneficiados pela diferena de procedimentos: ambos (catlico e protestante) encaminhavam o amerndio reconstruo da identidade crist ocidental, mas o holands no usava o aldeamento e nem escravizava o ndio, que eram os pilares (aldeamento/escravizao) de dominao indgena pelos espanhis. Dentro dessa estrutura bsica de povoamento e comrcio, a partir do sculo XVI at o XVIII, os postos holandeses, como um importante setor de trfico tanto dos produtos comerciais como de escravos ndios, eram lugares que desencadeavam agressivas disputas entre brancos e ndios. Os Aldeamentos espanhis ou encomiendas23, como lugar de civilizao dos ndios tornando-os sditos da Coroa ibrica, eram lugares de explorao compulsria do trabalho indgena por meio das trocas comerciais. Ao longo desse perodo, grandes pores de terras do Novo Mundo ocupadas por indgenas tornaram-se objeto de explorao lucrativa, estimulando a imigrao de novos grupos europeus
(CAMPOS, 1991; MAURO, 1998).
Nesse empreendimento, a populao indgena era utilizada ora como colaboradora no contato com outras etnias indgenas, ampliando o mercado consumidor, ora como produto comercial aumentando o capital. Essa ordem colonizadora fez surgir, na poca, campanhas contra essa histrica situao do ndio colonizado. Entre as mais conhecidas esto as movidas por Bartolom de Las Casas e outros intelectuais humanistas que ficaram impressionados com essa brutal violncia contra o ndio, empregada pelo europeu no Novo Mundo. Tal
Por esse regime de poder poltico e econmico, o Estado espanhol transferiu aos colonos habitantes da bacia do Orinoco (e para as outras regies) a cobrana de tributos que os sditos da Coroa, os ndios deviam pagar. Tal cobrana poderia ser em prestao de servios, abrindo-se mecanismos de poder econmico para a escravizao do ndio. O encomendeiro ficava obrigado a proteger e cristianizar ou civilizar o ndio (cf. NOVAIS, 1971:47).
23.
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oscilao perturbava ainda mais a j frgil compreenso que o indgena tinha do processo a que era submetido e tornava as cicatrizes ainda mais insuturveis. Nesse embate pelo poder de monoplio e de privilgios, o Imprio Ibrico articulava-se entre alianas com mercadores e nobres numa trama de troca de servios que garantissem os interesses comuns (expanso comercial e armazenamento
de ouro e prata) e o estabelecimento do Estado suficientemente forte para proteger
a terra conquistada. O Brasil portugus, na virada do sculo XVI para o XVII, assentou suas razes na Amrica do Sul ampliando e aproximando o seu territrio da costa amaznica. A Unio Ibrica, com durao de sessenta anos, foi um fator importante na construo do Brasil portugus na Amaznia, pois facilitou aos portugueses a penetrao e a conquista de terras espanholas na regio Norte, desrespeitando o Tratado de Tordesilhas, um dos primeiros instrumentos normativos sobre as terras em litgio no Novo Mundo. Contudo, no era fcil estabelecer com exatido um territrio para iniciar a ocupao e a explorao econmica, viabilizando o enriquecimento fcil, para se impor ao domnio mercantil e partilhar dos privilgios concedidos pela Coroa. A desigualdade foi uma das marcas dessa sociedade ibrica unificada pela dinastia dos Habsburgo que, dentro do quadro da qualificao social e poltica, estabelecia os privilgios e as prerrogativas do indivduo detentor de terras e do monoplio comercial. Nessa busca, que levava em conta a conquista dos territrios no Novo Mundo, o Brasil portugus, visto em dimenso atlntica, transformou-se no objeto de interesse entre diferentes homens do Velho Mundo, na partilha das terras e dos ndios para o trabalho. Porm, esses fatores e a fragilidade das economias ibricas foram decisivos para aproximarem os interesses de ambos os
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Favorecidos por esses acontecimentos, o Brasil portugus se estendeu, pela costa, entre a bacia do Amazonas at a bacia do Prata, criou novos aglomerados urbanos e ativou os lucros financeiros por meio de linhas de expanses comerciais, especialmente relacionados ao acar e pau-brasil. Os portugueses precisavam de prata e ouro para os seus negcios com as ndias e para a manuteno administrativa da terra Luso-brasileira. O colonizador portugus no tinha capital e nem contingente suficiente para empreender esses objetivos dos primeiros anos da explorao e do povoamento. Esses fatores influenciaram a vida do homem portugus que no deixou de buscar pistas concretas sobre os tesouros existentes na selva. O fato que os acontecimentos decorrentes da Unio Ibrica, do desenrolar da expanso ultramarina, do enfraquecimento das fronteiras polticas entre as duas naes ibricas, da crescente importncia da economia, do surgimento de novos mercados com a introduo do sistema capitalista foram eixos bsicos que abriram caminhos para que os portugueses se articulassem e procurassem condies para ampliar no somente o espao geopoltico da Terra do Pau-brasil em direo Amaznia, mas a efetiva ocupao desse complexo universo que ganhava distintos contornos simblicos e culturais no imaginrio do Imprio Ibrico Cristo. Aos olhos da sequiosa sociedade europia, inquieta pelas notcias de organizao scio-poltica do Novo Mundo divulgadas pelos documentos produzidos pelos viajantes estudiosos da regio, os ndios eram considerados como os selvagens que viviam sem roupas, sem lei, sem f, sem rei24. No entanto, existiam informaes sobre o diversificado mercado indgena que era
24.
Referncia clebre frmula cronista quinhentista de Pero de Magalhes Gandavo (cf. FAUSTO,
1999).
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explorado pelos holandeses no possvel lugar do mito El Dorado, apresentando possibilidade de explorao aurferas. Assim, esse espao amaznico era disputado tanto pelo favorecimento comercial inter-tribal como pela possibilidade de minerao, apresentando-se aos olhos dos portugueses como um sonhado e fascinante lugar de enriquecimento fcil. Tal aspirao era decorrente da busca da riqueza pelas expedies das Entradas, das Bandeiras e dos Resgates25 portadoras dessas notcias amaznicas. A Amaznia apareceu, ento, como um cenrio de diferentes representaes de interesses polticos e valores econmicos que formou o centro de disputas nos sculos XVI e XVII, fazendo surgir uma nova ordem internacional por meio dos mltiplos contatos entre as sociedades colonizadoras e os ndios, que se estenderam, tambm, aos sculos XVIII e XIX. Alm desses conflitos intertnicos, havia tambm uma genrica modalidade de escravizao indgena pelos portugueses que, por meio das guerras justas diversificavam o empreendimento e a circulao da f crist entre os ndios. As etnias indgenas que impedissem a entrada dos representantes do Brasil portugus e a pregao do Evangelho seriam aprisionadas por esse sistema de guerra e seus integrantes se tornariam escravos legtimos. O Resgate foi utilizado como um outro instrumento portugus contra as etnias indgenas, na dominao de escravizao sistemtica do ndio, por meio da compra de prisioneiros de guerra entre as prprias etnias indgenas (MONTEIRO, 1994). Tais procedimentos favoreceram a efetiva consolidao da sociedade luso-brasileira sobre o desenraizamento do ndio e apropriao de suas terras. Nesse processo de caa ao ndio, usurpao de suas terras e busca por tesouros no imaginrio dos colonizadores europeus, o ndio pertencia ou ao grupo do bom selvagem ou do mau selvagem, sendo todos considerados
25. O apresamento ou apropriao direta do cativo indgena, fugido do Aldeamento, era mecanismo da Tropa de Resgate (cf. MONTEIRO, 1994:107).
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sem organizao social e sem governo. Em geral, era destacada a imagem do selvagem canibal violento, sem histria, carente de civilizao (LEITE, 1996;
VIVEIROS DE CASTRO, 1988).
A insistncia de polticas do Estado portugus para povoar o Maranho, desde 1617, gerou a imigrao de degredados e uma rearticulao de interesses que se firmou em pactos entre homens da burguesia mercantil, da nobreza e o monarca ibrico para facilitar a viagem de casais das ilhas da Madeira e dos Aores tanto para as terras do Maranho como do Gro-Par. Os representantes da elite portuguesa necessitavam garantir no apenas a ocupao e defesa, mas o direito de explorao comercial e poder no denominado mundo pago, por gente de sua confiana. Beneficiados pela Unio Ibrica, as expedies portuguesas penetraram o territrio espanhol e alargaram suas fronteiras na Amaznia, aproximando-a das estruturas poltico-administrativa do litoral brasileiro. Aps a Restaurao da Coroa de Portugal (1640), o Brasil portugus soube catalisar esforos para expulsar os espanhis e holandeses entre outros corsrios de naes europias que se faziam presentes nessa regio da Amaznia em litgio. O enrgico e bem sucedido propsito portugus, impulsionado pelos acontecimentos que levaram desintegrao da unio nas Coroas, acirrou os ressentimentos mtuos entre espanhis e portugueses, decorrentes de questes europias, como o orgulho nacional, o sentimento anti-semtico e a teoria monopolstica de imprio. O pensamento poltico do homem ocidental dos sculos XVI e XVII no aceitava o outro que era diferente da cultura do civilizado ocidental. Assim, os colonizadores da Amaznia, originrios de sociedades do Ancien Rgime. Tal modelo transformava a natureza e o nativo em patrimnio de riqueza, base do Estado colonizador na Amaznia.
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Apenas no sculo XX que a Antropologia disponibilizou dados e reflexes sobre os povos primitivos em geral e as organizaes indgenas amaznicas em particular que se contrapem orientao de selvagens:
A evidncia lacnica proporcionada por Orellana, que em 1541-2 viajou rio abaixo at o esturio, e ainda mais a existncia de tradies orais nativas, cuja extrema complexidade, composio artificial e tom mstico sugerem que devam ser atribudos a escolas de sbios e a homens instrudos, constituem testemunhos em favor de um nvel muito mais elevado de organizao religiosa, social e poltica do que jamais fora observado antes. (...) Esses documentos antigos (...) so os restos de uma civilizao genuna, comum a toda a bacia Amaznica (...) (LVI-STRAUSS, 1973: 271-2).
Essa preocupao com a populao tradicional (entre ela o ndio) apontada por Lvi-Strauss (1973), no texto acima, uma viso oposta ao olhar dominante dos colonizadores. Nesse sentido, esse antigo territrio da bacia do Rio Branco, aps inmeras exploraes com resultados desconhecidos pela sociedade local26, alm de se tornar palco de confrontos entre brancos e ndios, foi alvo de incansveis interpretaes tericas e interesses na explorao do ouro e riquezas biolgicas.
1.2. Rio Branco, a expanso poltica e econmica portuguesa com o Maranho e Gro-Par
Aps a Restaurao, os espanhis aspiravam o recuo dos povoados portugueses at a denominada linha de Tordesilhas. Mas, utilizando-se da poltica Uti Possidetis27 os portugueses conquistaram a rota fluvial do Rio Amazonas e ocuparam pontos estratgicos do seu territrio, ampliando as fronteiras do Brasil portugus na virada do sculo XVII para o XVIII.
26. Sobre essa fase histrica da regio, temos notcias de uma vasta documentao de difcil acesso, porque est distribuda em diferentes arquivos cientficos e literrios. Encontram-se no apenas em Manaus, Belm, So Luis, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, So Paulo, mas tambm em Portugal, Espanha, Holanda, Inglaterra, Alemanha, Itlia, Frana, Estados Unidos. Todos os documentos esto merecendo uma anlise e metodologia apropriada para entendermos esse processo na histria de Roraima no sculo XXI. 27. Segundo o Tratado de Madri (1750) tinha o direito ao territrio o povo que o povoara, que o conquistara dos ndios habitantes da regio.
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Havia diferenas nas estratgias colonizadoras da regio: enquanto as naes europias (fora da Pennsula Ibrica) fomentavam as disputas dos mercados numa linha de expanso do capitalismo, por meio dos produtos manufaturados, a Coroa portuguesa mantinha sua poltica dentro do antigo sistema mercantil. Assim, o cacau, por exemplo, foi o produto que monopolizou a comercializao no Estado do Gro-Par, a exemplo do lucro monopolista do acar em Pernambuco (NOVAIS, 1971:57). O modelo de colonizao comercial dos imprios europeus, estabelecendo projeto modernizador nas reas ultramarinas, no reformou o essencial na forma de relaes vividas na esfera do universo indgena da regio do Rio Branco. Embora o esquema de patronagem, que monopolizara um produto que se ajustava aos interesses dos lucros da Coroa de Portugal (e conseqente
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Ento, por carta rgia de 13 de julho de 1623, Felipe III redesenhou o mapa do Brasil portugus, fortalecendo a regio norte com a criao de uma capitania destinada a ser um Estado de um novo Governo: o governo do Maranho foi desanexado do Estado do Brasil, sem dependncia do governo deste (SERRO, 1968: 166). As imensas fronteiras do Maranho e Gro-Par ganharam autonomia com a sua unidade administrativa ligada diretamente Lisboa. Em razo da direo dos ventos e das correntes marinhas que diminuam o tempo de viagem, esse Estado tinha mais facilidade de comunicao com Lisboa do que com Salvador ou com o Rio de Janeiro. So Lus do Maranho, de onde os franceses tinham sido expulsos em 1615, tornou-se a sede principal. Contudo, o povoado sobrevivia de reduzidos recursos e da espera de homens investidores no desenvolvimento da regio. Apesar disso, ganhou importncia nas estratgias militares de ocupao das fronteiras, na efetivao do novo Estado do Brasil colonial, que teve o seu florescimento no decorrer do sculo XVIII, com o chamado perodo pombalino. Assim, com a implantao do Estado do Maranho e Gro-Par abriramse possibilidades para que o Brasil portugus, agora senhor da entrada do Rio Amazonas no Atlntico, fosse mais longe no embate com as outras naes europias pela partilha amaznica. O Estado portugus mostrava-se cada vez mais capaz de resistir e de, sozinho, encontrar mecanismos polticos e econmicos necessrios para o povoamento e a montagem de novos empreendimentos na Amaznia. Essa nova fase de conquista e integrao da Amaznia ao poder portugus iniciou o processo de expanso e soberania portuguesa na rota comercial amaznica dos sculos XVIII e XIX. Portanto, ao consolidar a expanso territorial para a Amaznia no comeo do sculo XVII, o governo colonial procurou ajustar estratgias poltico-
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administrativas de defesa e ocupao dos novos territrios conquistados. Apesar da fragilidade do poder governamental do Maranho e Gro-Par, pela instabilidade da administrao pblica que ora se encontrava em So Luiz e ora estava em Belm, desenrolada pela falta de pessoal habilitado, o governo portugus instalou, ao mesmo tempo, novas extenses administrativas na bacia amaznica, impondo soberania e condies do maior lucro possvel dos recursos naturais dos rios Amazonas, Solimes e Negro. Alm disso, tentavam bloquear o avano dos espanhis, holandeses, ingleses, franceses instalados na costa caribenha, concentrando o poder na capital da Capitania do Rio Negro, num primeiro momento em Barcelos28. Os outros pequenos ncleos urbanos, na busca de consolidar a ocupao e competitividade econmica, conduziam suas prticas de forma lenta, tanto em relao aos lucros como na subordinao do mundo natural e indgena a critrios ecossistmicos opostos ao modo de vida do branco. A complexidade das relaes, nesse quadro administrativo amaznico sob o poder do governo do Maranho e Gro-Par, devido distncia do poder central e dificuldades de comunicao, diversificou o campo de possibilidades de formao e interao desses ncleos polticos, que empobrecia e enfraquecia o novo Estado portugus amaznico. No processo poltico administrativo, posterior ao Tratado de Madri (1750), de fomento dos ncleos urbanos ribeirinhos, os documentos que revelaram esse avano portugus, com a nomeao dos administradores para os novos centros urbanos amaznicos, nada propunham para a regio do Rio Branco. As notcias de efetivao da conquista portuguesa na Amaznia so datadas de 1616,
A Carta rgia de 3 de maro de 1755 criou a Capitania de So Jos do Rio Negro. No entanto, existe uma outra de 18 de julho que fala em Capitania de So Jos, localizada perto da boca do Rio Javari, onde seria instalada a capital. Contudo, uma vez esta estabelecida em Barcelos, a Capitania voltou a ter o nome de So Jos do Rio Negro. Mais tarde essa capital foi transferida para o povoado denominado Lugar da Barra no baixo Rio Negro, prximo ao entroncamento com o Rio Solimes. Em fins do sculo XIX, esse povoado transformou-se na capital do Estado do Amazonas, Manaus (cf. REIS, 1989).
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apontando para a fundao do Forte Militar em Belm do Par e a instalao de postos de comrcio na regio (BOXER, 196:164). Em decorrncia da diversidade lingstica indgena, as explicaes e parcas informaes cartogrficas nem sempre eram entendidas pelos intrpretes (ndios) que auxiliavam as investigaes e os contatos do Estado portugus. Dessa forma, margem das negociaes polticas, religiosas e exploraes comerciais desenvolvidas por holandeses e espanhis na Amaznia, os portugueses radicados na regio se viam numa capitania incipiente e localizada na porta de uma paisagem complexa (desembocadura do Amazonas no Atlntico), de difcil navegao e comunicao. Os poucos dados que dispomos e a construo imaginria do colonizador do Brasil portugus na conquista da Amaznia deixaram dvidas sobre a presena de Aldeamentos e postos militares portugueses nos dois primeiros sculos de colonizao na bacia do Rio Branco. Observou-se que, em 1624, havia uma populao de 300 indivduos brancos, composta em sua grande maioria por funcionrios coloniais, militares e missionrios, com quatro fortalezas e nove Aldeamentos indgenas que asseguravam certo domnio da posse portuguesa nesse territrio amaznico
(SERRO, 1968:167). Apesar do crescimento urbano e da terra mostrar-se frtil, da
disponibilidade da mo-de-obra indgena para os diversos trabalhos, faltava o homem portugus com capital para estimular a economia dessa complexa paisagem de rios sem fim e diversificada etnia e cultura indgena. Com o entusiasmo ufanista da administrao colonial, na prtica, o Estado do Maranho e Gro-Par, no seu isolamento geopoltico, convivia com as tenses sociais e as crises financeiras que impediam a chegada de novos colonos. Alm disso, o acar e o tabaco, como produo base da regio, no conseguiam entrar no mercado de exportao liderado pelas capitanias do litoral nordestino brasileiro. Outros obstculos eram os altos custos financeiros para investimentos
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tanto na regio como na mo-de-obra escrava negra, que eram mais altos do que em Pernambuco ou na Bahia, alm da pesada poltica fiscal imposta pela Coroa. Em conseqncia dessa difcil situao social e econmica, iniciaram-se atividades extrativistas no vale amaznico, que foram as grandes geradoras de recursos necessrios para a sobrevivncia desse Estado amaznico, com o cacau e o algodo normatizados como moeda de troca. Nesse sentido, a civilizao da Amaznia, como a do Brasil, j se iniciou dentro dessa estrutura monopolista do sistema colonial, do domnio da rota fluvial/martima e explorao social e econmica, que propiciassem capital para a Coroa. Desse modo, com a introduo de uma poltica econmica com base no extrativismo29 o Gro-Par ganhou destaque no alargamento da fronteira amaznica portuguesa. No jogo de legitimidade e construo desse Estado, a Coroa de Portugal, aps a epopia da Restaurao 30, ampliou o poder administrativo na Amaznia. Contrariando os interesses da orientao anterior, essa reformulao social no mbito da poltica para a Amaznia concedeu, aos representantes das ordens missionrias, participaes junto s autoridades civis na conduo da vida dos moradores e dos ndios na regio. Assim, em 1693, uma nova estrutura poltico-administrativa dividiu o Maranho e Gro-Par em provncias missionrias entre as diversas ordens religiosas da Igreja Catlica. Nesse contexto, tornava-se fundamental, para o xito da reformulao do poder administrativo, um pacto de lealdade com o
29. Os produtos obtidos por extrao, as chamadas drogas do serto, consistiam em uma gama variada de frutos e razes silvestres, principalmente cacau, baunilha, salsaparrilha, urucu, cravo, andiroba, almscar, mbar, gengibre e piaava; havia, alm disso, a pesca e a virao de tartarugas, cuja produo se voltava em grande parte para o consumo interno da colnia. Tal mercado ganhou maior proporo de lucros a partir da virada do sculo XVII para o XVIII, especialmente, aps as reformas pombalinas para a Amaznia. Em 1751, sob o governo do meio-irmo do Marqus de Pombal, Francisco Xavier de Mendona Furtado, decretos e instrues rgias foram programadas para intensificar as demarcaes fronteirias e tirar o poder poltico e econmico dos religiosos sobre os ndios (REIS, 1989). 30. Em 1640, Lisboa viveu uma revoluo que originou a sua independncia. Foi conduzida pelo duque de Bragana, proclamado rei de Portugal, dando incio nova dinastia portuguesa com o ttulo de D. Joo IV. A grande maioria dos portugueses, no s do Brasil, como de qualquer outra parte, recebeu com entusiasmo a notcia da queda do regime espanhol ibrico (cf. BOXER, 1961).
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Estado portugus, para adquirir no s os recursos como garantir a manuteno dos interesses da Coroa necessrios ao seu avano amaznico. Mas os administradores locais, distantes do olhar fiscalizador do poder central, defendiam seus prprios interesses. Relatos da poca denunciaram que os missionrios da Ordem do Carmo, responsveis pelo territrio dos Rios Negro e Solimes, melhoraram suas finanas aps essa reforma do Estado portugus. Alm disso, eles no tinham um projeto prprio administrativo referente aos ndios. Numa ao permeada pelo interesse poltico-econmico e religioso, as misses carmelitas tornaram-se provedoras de mo-de-obra indgena para os moradores brancos. Ampliando a crise entre as tarefas evanglicas e as tarefas comerciais, os missionrios individualmente acabavam se envolvendo no apenas nas disputas de poder sobre as rotas comerciais como tambm no trfico clandestino de escravos indgenas (REIS, 1989; FARGE, 1991; CIDR, 1989). Nessa realidade, tornando frgil a poltica administrativa que misturava poder poltico, poder espiritual com poder dos negcios, evidenciou-se o surgimento de acusaes sobre duvidosas aes de religiosos e colonos administradores na Amaznia. Alm do considervel poder econmico, os missionrios e colonos eram acusados de atuarem como empresrios do Estado portugus, detendo o monoplio dos negcios nos Aldeamentos, nos fortes e da mo-de-obra indgena, misturando leis de Deus com estilo de vida em proveito prprio. Essa atuao dos catlicos portugueses contrastava com o procedimento dos protestantes holandeses que se instalaram na regio da Guiana e mantinham monoplio mercantil com os nativos, dando aparente liberdade scio-cultural ao indgena (REIS,1989; CIDR, 1989). Preocupado em proteger o ameaado Estado do Gro-Par e Maranho, com permanente presena de franceses, holandeses, ingleses, o governo
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portugus retomou o processo de reorganizao e defesa das terras amaznicas. Os representantes da Coroa portuguesa empreenderam esforos na construo de fortes, em pontos geogrficos importantes, para impedir a fixao dos espanhis, holandeses e ingleses nessa regio. Nesse sentido, no transcurso do sculo XVII, os portugueses colocaram em prtica a estratgia de reorganizao administrativa militar, edificando em alguns pontos da Amaznia pequenos fortes marcando sua posse territorial31. O Estado portugus, cujas finanas eram sempre deficitrias, diversificava suas alianas para legislar sobre essa terra de complexo contexto poltico-cultural e sofisticada disperso geogrfica. Contudo, no h registros claros sobre essas alianas ou dos encontros entre os portugueses e ndios nos sculos XVI a XVII nessa regio. A historiografia brasileira, de acordo com a viso tradicional da histria, traou uma narrativa apoiada no olhar interpretativo dos viajantes e nas concepes associadas dicotomia selvagem-civilizado (LEITE, 1996). Temos notcias sobre as guerras nativas32 que produziram tanto mo-deobra como recursos financeiros para o poder administrativo do Brasil portugus
(MONTEIRO, 1994). Dentre essas condies, destacou-se o aumento de poder
poltico dos Makuxi, de filiao lingstica Karib e aliados dos holandeses (no Essequibo), que impuseram seu poder administrativo sobre os Wapixana, de filiao lingstica Arawak e que recebiam apoio dos portugueses, instalados no Forte de So Jos do Rio Negro (REIS, 1989; CIDR, 1989). De certo modo, parte da histria de Roraima, nos trs primeiros sculos de contato entre europeus e ndios, est associada histria de Portugal e sua disputa por terras que se localizavam alm do chamado Meridiano de
Em Belm com o Forte do Prespio ou do Castelo (1616), na regio do Gro-Par com a Fortaleza do Gurup (1623) e com os Fortes de Santarm (1697) e de bidos (1697), na regio do Rio Negro com a Fortaleza de So Jos do Rio Negro (1669), na regio de Macap com a Fortaleza de So Jos de Macap (1688) (cf. MANSUY-DINIZ SILVA, 1998). 32. O grupo indgena derrotado na guerra, movida pelos indgenas aliados aos portugueses, tornava-se escravo solucionando o suprimento de mo-de-obra.
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Tordesilhas, tornando violento o conflito nessa regio, cujas florestas e savanas eram habitadas por incalculvel nmero de ndios que se constituram em aliados dos holandeses, detentores de extensa rota comercial, ou foram aldeados pelos espanhis. A documentao histrica desse perodo (sculos XVI e XVII) no nos permite vislumbrar como o ndio percebia esse processo de encontro tnico33, j que os europeus se auto-representavam como os primeiros habitantes civilizadores da regio. Contudo, em nossa atualidade, existem narrativas indgenas com dados sobre a conscincia do ndio nesse processo de mudana do mundo natural amaznico:
Os brancos so engenhosos, tm muitas mquinas e mercadorias, mas no tm nenhuma sabedoria. No pensam mais no que eram seus ancestrais quando foram criados. Nos primeiros tempos, eles eram como ns, mas esqueceram todas as suas antigas palavras. Mais tarde, atravessaram as guas e vieram em nossa direo. Depois, repetem que descobriram esta terra. S compreendi isso quando comecei a compreender sua lngua. Mas ns, os habitantes da floresta, habitamos aqui h longussimo tempo, desde que Omama34 nos criou. No comeo das coisas, aqui s havia habitantes da floresta, seres humanos35. Os brancos clamam hoje: Ns descobrimos a terra do Brasil!. Isso no passa de uma mentira. Ela existe desde sempre e Omama nos criou com ela. Nossos ancestrais a conheciam desde sempre. Ela no foi descoberta pelos brancos! Muitos outros povos, como os Makuxi, os Wapixana, os Waiwai, os Waimiri-Atroari, os Xavante, os Kayap e os Guarani ali viviam tambm. Mas, apesar disso, os brancos continuam a mentir para si mesmos pensando que descobriram esta terra! (KOPENAWA YANOMAMI, 1999:18).
Aps quinhentos anos de histria na Amaznia colonial, tanto os brancos como os ndios ainda disputam formas de apropriao do espao social e dos recursos naturais. Na concepo do ndio, interpretada por Davi Yanomami, no texto acima, alm de serem pretensiosos, os brancos so dotados de imaginao, de comportamento indiferente em relao ao homem-ciclo da natureza, que se
33. Existem registros de narrativas indgenas, transcritas no sculo XVIII, em alemo, ingls, holands, entre outras lnguas europias descrevendo tradies e parte da memria cultural do ndio amaznico, mas so interpretaes feitas pelo europeu. 34. Omama identificado como o heri cultural, o civilizador Yanomami. 35. A autodesignao dos Yanomami yanomae thp significa antes de tudo seres humanos, e se aplica tambm aos outros ndios, opondo-se aos animais, aos seres sobrenaturais e, em certa medida, aos nondios (napp) (cf. KOPENAWA YANOMAMI, 1999).
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relacionavam como iguais no perodo da criao. Assim como eles no entendiam as etnias indgenas, estas nunca os entendiam e nem sua formao histrica. Na concepo da histria do branco o descobrimento real e efetivo e no apenas a cultura indgena detm o direito de ser etnocntrica (cf. texto acima,
p. 48).
As idias de conquista, aplicadas nessa regio aps o sculo XVI, mantendo a coeso do interesse poltico, econmico e assegurando a obedincia ao Estado e proprietrios de terras, presentes na histria amaznica, mostram o mundo atual tomando forma, definindo lugares e caractersticas indgenas e noindgenas, situadas em um tempo das origens, mas referidas no tempo presente. Na virada dos sculos XVII-XVIII, os portugueses foram adentrando pelo interior do Rio Branco e expandindo a estrutura administrativa da colnia muito alm da linha do Equador. Nesse processo, o ndio no poderia ter direitos porque sua cultura no era reconhecida pelo portugus e as relaes entre ndio e europeu ganharam novos enfoques aps a conquista:
Os brancos foram criados em nossa floresta por Omama mas ele os expulsou porque temia sua falta de sabedoria e porque eram perigosos para ns. Ele lhes deu uma terra, muito longe daqui, pois queria nos proteger de suas epidemias e de suas armas. Foi por isso que os afastou. Mas esses ancestrais dos brancos falaram a seus filhos dessa floresta e suas palavras se propagaram por muito tempo. Eles se lembraram: verdade! Havia l, ao longe, uma outra terra muito bela!, e voltaram para ns. Na margem desta terra do Brasil aonde eles chegaram viviam outros ndios. Esses brancos eram pouco numerosos e comearam a mentir: Ns, os brancos, somos bons e generosos! Damos presentes e alimentos! Vamos viver ao seu lado nesta terra com vocs! Seremos seus amigos!. Era com essas mesmas mentiras que tentavam nos enganar desde que tambm chegaram a ns. Depois dessas primeiras palavras de mentira, eles foram embora e falaram entre si. Depois voltaram muito numerosos. No comeo, sem casa nesta terra, ainda mostravam amizade pelos ndios. Tinham visto a beleza desta floresta e queriam se estabelecer aqui. Mas desde que se instalaram realmente, desde que construram suas habitaes e abriram suas plantaes, desde que comearam a criar gado e a cavar a terra para procurar ouro, esqueceram sua amizade. Comearam a matar as gentes da floresta que viviam perto deles. Nos primeiros tempos, os seres humanos eram muito numerosos nesta terra. o que dizem nossos mais velhos. No havia doenas perigosas, sarampo, gripes, malria. Estvamos sozinhos, no havia garimpeiros para queimar o ouro, fbricas para produzir ferro e gasolina, carros e avies (KOPENAWA YANOMAMI, 1999:19).
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O discurso do ndio Davi Yanomami sobre o processo civilizador do branco no Novo Mundo, que tambm teve influncia de idias da cultura ocidental/nacional, expe tanto o pensamento do branco que julgava o ndio inferior (como animais) como tambm do ndio que pensava o mesmo do branco. Contudo, apesar de julgar os brancos sem sabedoria, o ndio acredita que o branco seu igual, como humano. Nesse percurso historiogrfico, observamos alguns vestgios sobre essa construo da nova ordem social e cultural amaznica, iniciada no sculo XVI com forte presena da concepo portuguesa, como o desaparecimento de etnias indgenas provocadas no s pelas guerras inter-tribais, como, tambm, pelo processo de conquista e povoamento europeu da regio. Sabe-se que o destemido homem portugus caou e escravizou o ndio, buscou ouro e drogas no serto amaznico, aprendeu novos hbitos alimentares para sobreviver nesse ambiente hostil ao seu modo de vida europeu. Todavia, nunca chegou a descobrir as trilhas condutoras aos veios aurferos, ao popular El Dorado e sua cidade com uma monumental arquitetura cravejada de pedras preciosas. O comrcio extrativista foi seu nico tesouro, proporcionando a sobrevivncia, mas a caa ao ndio foi o mais lucrativo. Os Aldeamentos e as tropas de Resgates, devidamente licenciados pelas autoridades rgias de Portugal, forneceram mo-de-obra indgena para os trabalhos agrcolas, industriais, servios pblicos e domsticos, alm da venda de ndios como escravos no mercado: essa gente toda se alimentava da caa, da pesca e dos produtos naturais, que os ndios ensinavam a aproveitar em vinhos saborosos (REIS,
1989:130).
Ainda sob esse aspecto, datando do sculo XVI ao XVII, seria oportuno passarmos a examinar alguns pontos evidentes:
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a) longa trajetria de desenraizamento cultural, mesmo quando sem conflito direto: caso holands/relaes comerciais (pp. 39/41); b) o contato, na regio, com o branco, esquizofrnico por natureza: o holands no interfere fisicamente, mas manipula alianas e desestrutura as relaes intertribais (pp. 46-7); o espanhol interfere fisicamente, aldeando, cristianizando, mudando a lngua e desestrutura a cultura em seu todo. So dois tipos diferentes de interferncia e, conseqentemente, palco onde se digladiavam foras infinitamente superior sua capacidade de resposta em um tempo que se acelerava em mudanas de todo tipo; c) a Igreja Catlica participa ao lado do poder branco: provedora de mo-de-obra (pp. 37-8); d) presses brancas sobre os ndios em territrios distantes repercutiam na regio (pp. 42/45).
36. Na Europa do sculo XVI e XVII, as concepes sobre o ndio eram de idlico ou canibal. A partir do sculo XVIII, surgiram outros conceitos que influenciaram novos olhares sobre o ndio. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), em sua obra O Contrato Social, elaborou modelos de sociedades exaltando valores da vida natural e reprovando o comportamento da sociedade civilizada, caracterizando o governo como exerccio da vontade geral, criando a idia da soberania popular. As concepes de Thomas Hobbes (1588-1679), em sua obra Leviat, defendendo que, embora vivendo em sociedade, o homem no possua o instinto natural de sociabilidade (homo homini lupus). Os pensamentos de Hobbes e Rousseau incentivaram teorias sobre direitos, sociedade e Estado, modificando as diretrizes polticas e econmicas europias dos sculos XVIII e XIX.
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da viso sistematizada da vida civilizada (ausncia de Estado e sem Lei) e devendo a ela ser incorporado. Diante do conquistador europeu, transferindo seu poder de governar e dar ordem no conturbado universo indgena, as etnias indgenas, que formavam a grande maioria da populao, foram consideradas propriedades do Estado, junto com as terras conquistadas. Nesse contexto, o ndio reificado, ou seja, visto como uma coisa pertencente ao Estado: o que confirmado pelo sistema de apresamento do ndio e sua comercializao como escravo. Na segunda dcada do sculo XVIII, o colonizador portugus deu incio posse da vida indgena e da terra na bacia do Rio Branco. O interesse portugus pela floresta e pelos campos amaznicos decorria das notcias sobre a possibilidade de minerao, da prtica mercantil holandesa, do incalculvel nmero de ndios, que supria de escravos o mercado colonial portugus, estimulando o desejo de expanso e fixao da fronteira. Todavia, o nmero reduzido de homens brancos e o dficit financeiro da Monarquia ibrica dificultavam o empreendimento portugus. Nessa poca, a colnia portuguesa na Amaznia, representada pelo Estado do Gro-Par e Maranho, tinha legislao indigenista que proibia a escravizao do ndio, mas, ao mesmo tempo, fazia uso do trabalho escravo do ndio justificando-se com parmetros de civilizao: o ndio vivendo em coletividade e sem domnio sobre o outro, precisava ser introduzido na ordem da sociabilidade.37 Podemos dizer que, nessa ao do Estado portugus, as idias do ndio, seus sentimentos ou desejos, no estavam na ordem de preocupaes da legislao colonial. Nesse princpio indigenista do Estado portugus, percebemos que, a partir do sculo XVIII, a regio do Rio Branco tornou-se o caminho aberto para o
37. Referimo-nos aos textos de historiadores (REIS, 1989) e de antroplogos (FARAGE, 1991), que estudaram a legislao indigenista portuguesa na Amaznia do sculo XVIII.
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apresamento do ndio e aplicabilidade da poltica integracionista. Esse projeto do Estado Luso-brasileiro, que tirou do ndio o direito terra e destruiu sua organizao cultural, travestindo-o de branco, acabou por submet-lo s leis rgias para que desfrutasse e vivesse debaixo das justas e humanas leis que regem os povos (MARS, 1999:54). Tal concepo colonial com relao ao ndio chegou aos nossos dias atuais, apesar da Constituio Federal de 1988 ter rompido formalmente essa prtica poltica de integrao indgena na sociedade nacional. Auxiliando esse processo colonizador, os missionrios empreendiam, em nome da f e do Estado, imposies de hbitos cristos aos ndios para que gozassem dos direitos civis. No embate pelas terras amaznicas, o modelo de f crist, tanto da Igreja Catlica quanto da Igreja Reformada por Lutero e Calvino, modificaram as interpretaes do homem ndio segundo o interesse colonizador. Nesse nterim, a Coroa portuguesa instituiu Aldeamentos missionrios, na regio do Rio Branco, com o auxlio da Ordem do Carmo, visando a ocupao da terra e a propagao da f crist, intensificando as disputas polticas e econmicas entre as naes europias (Espanha, Holanda, Inglaterra, Frana). Nesse processo de construo da Amaznia portuguesa, ampliaram-se as expedies das tropas de resgates e as informaes cartogrficas de integrao do Rio Amazonas com as rotas dos rios Negro e Branco. Favorecidos por esses mecanismos, os navegadores portugueses foram conquistando a regio, lutando contra os denominados aventureiros espanhis, instalados no Orinoco e Alto Amazonas, e os hereges holandeses, ingleses e franceses que se instalavam na Amaznia, a partir da costa caribenha (CIDR, 1989). Enquanto isso, os portugueses permaneciam ancorados entre a boca do Atlntico, no Gro-Par (Belm) e o Forte de So Jos do Rio Negro (Manaus). Nesse cenrio de luta pelo monoplio territorial e comercial amaznico, no incio do sculo XVIII, o
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Brasil portugus se colocava em vantagem sobre as outras colnias europias por usufruir o poder sobre a rota martima do Atlntico integrada rota fluvial da Amaznia. Estudos etno-histricos sobre os ndios da regio do Rio Branco descreveram os primeiros contatos entre portugueses e ndios na segunda metade do sculo XVIII, especificamente a partir da edificao do Forte So Joaquim em 1775, da introduo do gado por Lobo DAlmada e dos novos Aldeamentos, tambm no final do sculo XVIII. Os vrios estudos, tanto os desenvolvidos pelo cronista Ribeiro Sampaio (1777) como os elaborados por Joaquim Nabuco (1903), empenhados em justificar a antigidade portuguesa na posse da regio do Rio Branco38, descrevem como principal apoio documental os relatos divulgados pela viagem portuguesa de Pedro Teixeira (1639) durante explorao no Rio Negro. Embora se acredite na expedio de Pedro Teixeira (NABUCO, 1941; REIS,
1989; ANDRADE, 2001) que teria chegado ao Rio Branco via Rio Negro, os
documentos sobre ela so escassos. No restam dvidas que a ausncia de informaes mais detalhadas nos relatos do padre Acua39 sobre o Rio Branco dificultava a legitimao da posse portuguesa sobre a regio a partir da expedio de Pedro Teixeira. Essa questo litigiosa sempre se apresentou como um grande desafio geopoltico para os portugueses do sculo XVIII, que se empenhavam em buscar conhecimentos cartogrficos com relao rota fluvial entre o Gro-Par e o Essequibo, no percurso do Rio Amazonas e seus afluentes: Negro e Branco. Contudo, tais vagos conhecimentos geogrficos s foram ampliados com as informaes passadas pelo desertor holands Nicolas Horstman, que, ao ser preso e levado ao
Sobre essa problemtica de demarcao das fronteiras brasileiras na fase colonial, o Ouvidor Ribeiro de Sampaio, respondendo s alegaes espanholas de posse do Rio Branco na dcada de 70 do sculo XVIII, reuniu provas da soberania portuguesa na rea. Do mesmo modo procedeu Joaquim Nabuco, como defensor do direito brasileiro frente s pretenses inglesas mesma rea no incio do sculo XX (cf. NABUCO, 1941; REIS, 1989; FARAGE, 1991; ANDRADE, 2001). 39. Cristbal de Acua foi o cronista que divulgou a viagem de Pedro Teixeira.
38.
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Gro-Par (sculo XVIII), foi longamente interrogado sobre o percurso amaznico atravessado (HORSTMAN, 1911:167/171). O depoimento de Horstman se transformou no primeiro documento escrito, de 1739/41, com informaes detalhadas sobre a rota fluvial do Amazonas, via Negro e Branco ao Essequibo. Com isso, os portugueses ampliaram tanto os conhecimentos cartogrficos como os esclarecimentos sobre uma expedio de prospeco mineralgica na regio do Alto Essequibo, chefiada pelo referido holands. Tais informaes descritas por Horstman foram divulgadas na Europa pelo viajante francs Charles Marie de La Condamine40 (1745) que navegou pelo Rio Amazonas, transformando o depoimento de Horstman em instrumento bsico para a cartografia do sculo XVIII (REIS, 1989). Assim, aps vrias incurses do Brasil portugus na regio do Rio Negro, os exploradores luso-brasileiros expandiram sua posse para a regio do Rio Branco. Esse rio o mais importante eixo fluvial de penetrao na Amaznia Setentrional, com extenso de 584 km a partir da juno do Rio Tacutu com o Rio Uraricoera e correndo de norte para o sul em direo ao Rio Negro, afluente do Amazonas. um rio de difcil navegao por conta das inmeras cachoeiras e/ou corredeiras. No perodo de seca (vero) impossvel trafegar com embarcaes de maior porte at o seu porto principal que est em Caracara. O explorador Hamilton Rice, gegrafo ingls que desenvolveu estudos durante uma viagem pela Guiana Brasileira, efetuada em 1924-25, descreveu a importncia de maior reconhecimento das rotas fluviais decorrentes das dificuldades na comunicao do Amazonas com seus afluentes. A expedio de Rice tinha como objetivo detalhar a cartografia da bacia do Rio Branco e, sobretudo, da regio dos rios Uraricoera e Tacutu (o suposto lugar referente
40. La Condamine esteve na regio amaznica em 1743 e a percorreu de Oeste a Leste. Comissionado pela Academia das Cincias de Paris, tinha como finalidade medir os graus terrestres. Aps essa experincia, ele registrou tudo numa publicao feita em Paris com o ttulo Relation abrege dum Voyage dans-linterieur de lAmerique Meridionale, em 1745.
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FIGURA 01
Vista area do Rio Branco. Expedio Rice (1924/30). (Foto: RICE, 1978).
Nesse aspecto, os rios que se localizam ao sul da linha do Equador no perodo de chuvas (inverno) so de fcil navegao, mas os rios que esto ao norte da linha do Equador vivem o perodo de seca (vero), dificultando a navegao por conta dessa movimentao da rota fluvial entre os diferentes fenmenos vividos ao mesmo tempo. Tais informaes41 nem sempre eram compreendidas ou conhecidas pelo homem branco do sculo XVIII.
Os relatos sobre essa paisagem selvagem entre floresta, montanha e savana, desenhada por diferentes caminhos aquticos e inexplorados pelo homem branco, despertou em variados autores originais e criativos textos. The Lost World de Arthur C. Doyle (1987) como o mais popular d notcias da existncia de dinossauros nessa regio de Roraima. A notcia dos dinossauros na Amaznia outro polmico assunto e pouco estudado. Cf. SCHWARTZMAN, 1997. Aps o acelerado processo de urbanizao amaznica, na virada dos sculos XX/XXI, os vestgios de nossa pr-histria esto desaparecendo. Tal processo, segundo a viso do ndio, acontece porque o branco rompeu sua relao de parentesco com os ancestrais que habitavam essa terra desde os primeiros tempos. Nesse processo histrico de comercializao da terra, o branco esqueceu as antigas palavras que ainda se fazem presentes na memria cultural do ndio. (KRENAK, 1999; KOPENAWA YANOMAMI, 1988 e 1999).
41.
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Essa paisagem da bacia do Rio Branco era vista como fonte potencial de lucro, funcionando como o principal caminho de poder sobre as distintas incurses de negcios entre os ndios e os colonizadores: as trocas de manufaturados e trfico de escravos ndios, com possibilidades de encontrar o ouro e as pedras preciosas (REIS, 1989; CIDR, 1989). Esse caminho das guas foi o principal responsvel pela transformao desse lugar, que era percorrido com intimidade pelas etnias indgenas e considerado pelos pioneiros brancos, at a primeira metade do sculo XX, como um universo aqutico e de terra firme envolvidos com figuras do medo (ndios canibais, mulheres guerreiras, monstros das guas e das florestas, etc.), do desconhecido que tambm se misturou com a viso de riqueza fcil. O caminho das guas entre diversificada fauna e flora, que apresentou uma infinidade de elementos da biodiversidade, ora visveis e ora invisveis, foram mesclados no movimento da sua trama social e cultural ao longo de seu processo histrico.
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se fixavam na terra brava e mudavam as diferentes formas de vida presente na regio, segundo os seus prprios interesses. Foi neste contexto que os mecanismos polticos de instalao dos postos comerciais, militares e os aldeamentos missionrios foram se transformando em vilas, povoados, capitanias, provncias, municpios e estados do Brasil portugus e depois do Brasil republicano com o final do sculo XIX. No decorrer do sculo XVIII, entre os diferentes interesses em jogo, na posse da vida indgena e da terra amaznica, o governador do Gro-Par, Joo da Maia da Gama, recebeu notcias que na regio do Rio Negro prxima ao Rio Branco havia um territrio dos ndios Manao. Eram conhecidos como ndios canibais e com prticas de incesto. Tinham um chefe de nome Ajuricaba42, o qual carregava na sua canoa uma bandeira da Holanda. Esses ndios enfrentavam os portugueses, lanando-se sobre as misses do Rio Negro e tomando como prisioneiros os ndios aldeados pelo portugus. De acordo com as notcias, esses violentos43 ndios de comportamento herege possuam armamento e eram aliados dos holandeses da regio do Essequibo, na denominada Costa Selvagem44, mantendo com eles um intenso comrcio de escravos indgenas e produtos tropicais. Os registros portugueses, buscando interpretaes da organizao cultural dos Manao, identificavam relaes de vassalagem dos Manao sobre os outros grupos indgenas, derrotados nas guerras tribais (REIS, 1989:93). As normas de comportamento do ndio esto concebidas na coletividade e vinculadas ao
42. Segundo as narrativas, Ajuricaba era um valente guerreiro, filho de Huiuiebu um dos maiores tuxauas dos ndios Manao, neto de Caboquena, que votava o mais decidido dio aos portugueses. 43. No embate com ndios inimigos, os Manao esmagavam-nos completamente, exigindo dos dominados relaes de vassalagem (REIS, 1989:93). 44. Termo que denominava a costa amaznica no mar caribenho em permanente confronto social e mercantilista (grupos espanhis, holandeses, ingleses, franceses, alemes disputavam o poder sobre a rota Atlntico Norte).
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mundo natural, sem uma explicao poltica, jurdica e visvel. Essa forma de vida era interpretada pelo portugus como semelhante sociedade feudal. A narrativa desses acontecimentos denunciando a etnia Manao como obstculo para a penetrao missionria portuguesa e a evangelizao catlica no Rio Branco, constitua-se em um conjunto jurdico-poltico favorvel a um combate militar contra os Manao, por sua vez armados pelos holandeses. Nesse sentido, essa situao envolvendo holandeses, ndios Manao e portugueses, necessitava de solues e a encontrada foi a de se pedir autorizao e recursos financeiros do Reino para uma guerra justa contra os Manao. Era sabido que o Estado Gro-Par no contava com o auxlio de tropa e nem armamento para uma guerra. A ordem real era favorvel soluo de guerra, mas o rei alegou falta de verbas, transferindo a realizao efetiva da guerra para os moradores do GroPar. Para o rei, os moradores eram to interessados nos lucros do Certes que contribuiriam para a sua defena (FARAGE, 1991:63). A declarao de guerra foi resolvida pelo governador local, com a anuncia da Junta das Misses45. Assim, os obstculos e problemas que colocavam em risco a riqueza de possibilidades comerciais foram resolvidos: Ajuricaba foi preso e enviado para Belm. Entretanto, durante o percurso da viagem, provocou uma rebelio na canoa que conduzia os ndios presos, mas o motim foi logo reprimido de maneira violenta. No mais suportando o jugo portugus e o peso dos ferros que o prendiam, Ajuricaba atirou-se na gua e sumiu (REIS, 1989:98). A falta de documentao mais explcita, bem como estudos histricos sobre o povoamento portugus na regio dos Manao, chefiados por Ajuricaba, faz perdurar lacunas sobre o confronto entre as tropas portuguesas, chefiadas
Uma comisso que foi convocada pelo governador do Gro-Par dividindo a responsabilidade da guerra justa, pois, em Portugal tinham-se dvidas da justia da campanha. Faziam parte dessa comisso autoridades civis e religiosas e das presentes, foi registrado que apenas o reitor do colgio dos Jesutas votou contra e o bispo, dando o seu voto, posteriormente, recomendou o feito. Sobre essa questo e os critrios da guerra, falta documentao mais explcita e estudos histricos aprofundados sobre as guerras justas contra os ndios amaznicos (cf. REIS, 1989:97).
45.
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pelo capito Belchior Mendes de Morais, contra Ajuricaba e sua gente, por volta de 1723. Aps esse episdio com os ndios Manao, a rota fluvial em direo ao Rio Branco ficou livre e os povoados e aldeamentos comearam a render lucros para os portugueses. Desse modo, os Carmelitas passaram a reunir em Aldeamentos ndios Manao e foram ampliando as relaes amistosas com os ndios Wapixana e organizando novas aldeias em direo bacia do Essequibo via Rio Branco. Tendo como aliados os ndios Wapixana, os representantes do Estado portugus mantiveram-se na bacia do Rio Branco (de fronteiras no demarcadas), que era territrio disputado por grupos antagnicos de europeus46, e instalaram fazendas e aldeias na regio. Durante a segunda metade do sculo XVIII, no decorrer desses confrontos europeus pela posse da terra, foram divulgadas tambm notcias de insurreies entre as diferentes etnias indgenas dos troncos lingsticos Arawak e Karib47. Os grupos Arawak eram os mais representativos, com maior poder de organizao, considerada superior dos Tupi-Guarani e dos Karib e mantendo poder governamental sobre os indgenas da regio (bacia dos rios: Orinoco, Essequibo e Branco). Eram tambm excelentes guerreiros e usavam a estratgia de extinguir os grupos inimigos, matando os homens e incorporando as mulheres dos vencidos ao seu grupo48. Os grupos Karib eram identificados como experientes navegadores e guerreiros. Eles penetravam os diferentes rios entre as bacias do Orinoco (Venezuela) e do Branco (Brasil), desenvolvendo novas estratgias militares e alianas inter-tribais, buscando derrubar o monoplio dos
46. Auxiliados pelos soldados das tropas de resgates e ndios aldeados, os portugueses tentavam ocupar terras na regio do Rio Tacutu e Uraricoera; os holandeses monopolizavam o comrcio na regio do Rupununi; os espanhis instalavam fortes e aldeias nas margens do Uraricoera; alm dos ingleses, franceses e alemes que sempre rondavam a denominada Costa Selvagem ou o Rio Amazonas. 47. Da famlia lingustica Arawak identifica-se a etnia Wapixana e da famlia Karib temos o Makuxi. Haviam, tambm, outros grupos: Paraviana, Sapar, Maku, Waik, etc. (cf. DINIZ, 1972; CIDR, 1989; FARAGE, 1991; SANTILLI, 1994) . 48. Cf. Textos de historiadores (REIS, 1989) e etno-hsitricos (CIDR, 1989 e 1990; FARAGE, 1991).
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Arawak. Esses confrontos inter-tribais receberam apoio dos colonizadores europeus, que delineavam a ocupao e a defesa da terra aproveitando-se desse conflito entre os prprios ndios49. Seguindo esse modelo de expanso e ocupao do Brasil portugus na rea do Rio Branco, com uma percepo de mundo que misturava evangelizao com o mercado de negcios, os missionrios da Ordem do Carmo entraram tambm na parceria e comercializao com os holandeses da rea do Rio Essequibo por intermdio dos ndios. Esses ndios percorriam com facilidade os rios Orinoco, Caroni, Demerara, Essequibo, Rupununi, Tacutu, Uraricoera, Branco, Negro, Solimes e Amazonas, ora em canoas, ora caminhando at alcanarem o mar Caribe e o oceano Atlntico (o mais importante elo martimo de expanso europia no Novo Mundo). Nesse contexto de tenses sociais e competio de mercado, prevaleceu o domnio do branco nas terras e negociaes amaznicas, o sistema de alianas e o papel das ordens religiosas foram significativos no s na evangelizao como no processo de escravizao indgena, garantindo tanto a prestao de servios aos colonizadores europeus como o produto para o comrcio. Essas aes polticas e religiosas na disputa do monoplio e privilgios, nos mais variados setores do Estado portugus de poltica expansionista, criaram um clima favorvel ao contrabando fazendo crescer a rede comercial em proveito prprio. Nesse sentido, existem registros da primeira metade do sculo XVIII que denunciavam as atividades do frei carmelita Jernimo Coelho, que atuava como grande empresrio em parceria com Francisco Ferreira, chefe de tropas de resgate de ndios. Nesse empreendimento, Frei Jernimo aglutinava populaes indgenas na aldeia Aracary, na regio entre o Rio Negro e a bacia do Rio Branco, vendendo ndios recrutados como escravos, desrespeitando o princpio de
49.
Id., ibid.
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descimento da legislao indigenista que considerava escravo apenas os ndios aprisionados nas guerras justas ou rebelados nos resgates (SWEET, 1974,
II:659).
Dessa forma, o aldeamento de Aracary ancorava nessa pequenssima base local, uma organicidade programtica, mais em razo dos interesses do religioso Carmelita que a lealdade e aliana com o Servio Real em favor do Estado portugus. Assim, longe do poder central e do olhar fiscalizador, Frei Jernimo instituiu na misso uma empresa de coleta de cacau, fabrico de canoas, tecidos e manteiga de tartaruga. Aumentou o seu prprio poder poltico-religioso e econmico, articulando-se com seu scio Francisco Ferreira e expandiu a rede de negcios entre os rios Negro, Branco e Essequibo, tornando-se elo das alianas comerciais com os protestantes holandeses (SWEET, id.,ibid.). Monopolizando os negcios na regio, por volta de 1750, Frei Jernimo exerceu atividades religiosas junto com o Frei Jos de Magdalena, no aldeamento de Muriu que mais tarde transformou-se na cidade de Barcelos (1755). Por conseguinte, as negociaes comerciais foram intensificadas com os descimentos indgenas (atuao do processo de cooptao do ndio), tanto para as misses como para as fazendas pertencentes aos Carmelitas na regio do Gro-Par
(FARAGE, 1991:61). Nessa ao de atrao do ndio pelo colonizador, os prprios
missionrios ou representantes do Estado portugus (brancos ou ndios civilizados) convenciam os ndios a se deslocarem de suas terras de origem e se estabelecerem nos Aldeamentos constitudos pelos religiosos ou civis50. No desenrolar desses acontecimentos, as incurses portuguesas foram intensificadas tanto nas rotas fluviais da bacia do Rio Branco como nas da bacia do Amazonas. Nesse processo, foram registradas notcias sobre a diminuio das etnias indgenas sob o domnio das potncias rivais (Espanha e Holanda)
50.
Cf. Textos que analisaram essa fase histrico-antropolgica amaznica: CIDR, 1989; FARAGE, 1991.
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motivadas pela estratgia e domnio portugus na regio. Nesse sentido, a conquista portuguesa no Rio Branco foi marcada pelo pavor que se espalhou entre a populao indgena, decorrncia da repercusso de suas estratgias na escravizao e comercializao indgena, buscando riqueza fcil. Observando a atuao portuguesa na regio entre os rios Branco, Orinoco e Essequibo, espanhis e holandeses denunciavam que os portugueses no zelavam pela evangelizao missionria, visando a civilizao e a f crist aos ndios, mas eram movidos unicamente pela ambio pessoal (CIDR, 1989; REIS,
1989). Essas denncias, implicando em maiores conflitos nas relaes com os
ndios que estavam rejeitando qualquer contato com os brancos, eram resultantes das violncias aplicadas pelos portugueses. Tais acusaes foram levadas pelo comandante da colnia holandesa do Essequibo, em 1746, Companhia das ndias Ocidentais. A explicao para tal situao, discrdia entre os brancos e o pavor51 entre os ndios, era evidenciada na disputa geopoltica e no embate comercial que impulsionavam as experincias de domnio europeu nesse trecho da Amaznia. Dessa maneira, a colonizao portuguesa tornou-se tirnica e o Estado tendeu a ser impotente na legislao da poltica indigenista. Esses representantes das naes europias, longe de suas metrpoles, envolviam-se em violentas lutas, no s entre si, mas tambm contra as populaes indgenas amaznicas, conciliando os interesses de evangelizao com os negcios de mercado. Favorecido por todo esse mecanismo de alianas e negociaes, as tropas de Loureno Belfort, exemplo de liderana isolada, muito comum no perodo, conduziram da regio do Rio Branco para fazendas de suas propriedades no Rio Mearim (Maranho) uma populao de mais de mil ndios.
51. No cruel processo de escravizao indgena pelos portugueses e espanhis, aliado s doenas, os ndios viam-se obrigados a assumir nova identidade cultural dentro do novo contexto social europeu (MONTEIRO, 1994:105).
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Nessa articulao lucrativa de Belfort, no temos registro do nmero do contingente indgena que foi destinado aos membros da expedio, aos servios da Fazenda Real e do Colgio da Companhia de Jesus, alm dos moradores dos distintos povoados ribeirinhos. Nessa perspectiva, no encontramos com nitidez reflexes histricas sobre o desalojamento paulatino do domnio holands na Amaznia setentrional. Apesar dessas lacunas, temos notcias sobre medidas polticas administrativas que o Estado portugus tomou a partir da segunda metade do sculo XVIII, momento em que os portugueses constituram condies histrico-polticas 52 vantajosas para anularem as presenas tanto holandesa como espanhola na Amaznia setentrional. Entre essas medidas tomadas pelo Estado do Gro-Par e Maranho estava a que conduzia exploraes de reconhecimento do Rio Amazonas e seus afluentes, evidenciando-se estratgias polticas e postos/ancoradouros para as incurses portuguesas na Amaznia, efetivando a posse da terra. Aps o ano de 1750, ficou bem evidenciada a necessidade de uma medida que resolvesse a questo fronteiria na Amaznia. A Coroa portuguesa precisava documentar sua presena na regio, obtendo ttulos de propriedade com base na posse da terra conquistada. A poltica dos Aldeamentos transfigurando os ndios em brancos, instituindo-os como sditos da Coroa, comprovando a ocupao portuguesa, nem sempre funcionou. Os ndios sentiam-se estranhos nesse exerccio de cidadania portuguesa/brasileira, rebelavam-se e fugiam para o interior da floresta (sua morada e parente natural). As comisses mistas (espanhis e portugueses) responsveis pelos estudos e demarcao dos limites e os militares que acompanhavam o reconhecimento dos direitos entre as duas naes ibricas,
52. Com o acordo entre Portugal e Espanha, atravs do Tratado de 1750, o portugus foi beneficiado com a posse dos povoados criados alm do Meridiano de Tordesilhas, institudos pelo uti possidetis.
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entravam, constantemente, em discrdia ou envolviam-se em lutas por no aprovarem determinados marcos, limitando as fronteiras. Em conseqncia, o rei portugus ordenou ao Governo do Gro-Par toda a severidade contra os missionrios ou colonos (responsveis pelas aldeias) que se mostravam infiis a Portugal: pessoas competentes e fiis ao rei deviam ser envidas para traarem o mapa dos rios em que penetravam para, em seguida, tomarem posse da terra
(REIS, 1989).
Assim, a instalao da Capitania de So Jos do Rio Negro com capital em Barcelos53, como um elo dessa rede de expanso poltico-administrativa, favorecia uma melhor compreenso tanto dos mistrios da selva e sua cartografia aqutica como dos selvagens habitantes da regio, alm da presena do Estado portugus. Nessa nova Capitania, os representantes de Portugal organizaram as expedies de reconhecimento das rotas fluviais de passagens tanto para a bacia do Rio Branco como para as do Rio Essequibo e do Rio Orinoco, garantindo o controle da aproximao dos colonizadores das naes rivais (espanhis e holandeses). Desse modo, a Reforma Indigenista para o Estado do Gro-Par e Maranho feita pelo ministrio do Marqus de Pombal, no sculo XVIII, assinalou princpios num esforo de monopolizar ou revigorar a poltica econmica amaznica, em favor dos interesses da Coroa portuguesa, que estava sendo prejudicada por esses entendimentos diplomtico-jurdicos em relao posse e usufruto das terras. Um dos pressupostos da Reforma do Marqus tinha como meta povoar a regio amaznica no Rio Negro com expanso at o Rio Branco, contando, para isso com o apoio de seu meio-irmo, Francisco Xavier de Mendona Furtado, o
Antiga aldeia missionria fundada pelos carmelitas foi transformada em vila e capital com o nome de Barcelos. Tal mudana poltica e denominao eram um cumprimento ao programa governamental que se traara para renomear todas as povoaes da Amaznia recorrendo-se aos nomes das vilas da Casa dos Bragranas. Tais ordens e procedimentos de fundao da Capitania estavam contidos na Carta Rgia de 3 de maro de 1755 e nas Instrues posteriores (cf. REIS, 1989:119).
53.
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governador e capito-mor do Estado do Gro-Par e Maranho. Em 1757, Mendona Furtado nomeou seu sobrinho, o Coronel de Infantaria Joaquim de Melo e Povoas para governar a Capitania de So Jos do Rio Negro. No entanto, a instalao desse novo sistema administrativo na Amaznia no foi bem aceito pelos antigos administradores (civis degredados, militares e
religiosos), envolvidos no trfico de escravos ndios e no contrabando de produtos
tropicais amaznicos, privilegiando seus prprios interesses. Mendona Furtado fez valer a soberania do Real Servio de Sua Majestade, regulando as instrues poltico-econmicas e estabelecendo condies para a civilizao do ndio, buscando mecanismos polticos/diplomticos para garantir a soberania de Portugal, que estava enfraquecida pelo jogo de interesses dos antigos administradores dos povoados ou aldeias, ambiciosos de poder estatal e riqueza fcil. A trama de negociaes, alianas polticas e administrativas constitudas por comerciantes da elite de Belm e So Luiz, que tambm estavam interessados nas drogas do serto, era definida no financiamento das viagens de coletores que, com a conivncia de administradores corruptos, permitiam que esses viajantes comercializassem escravos indgenas (MONTEIRO, 1994:112). Essas expedies com os coletores representavam o poder estatal e, revelia, vivendo no interior amaznico, coordenavam o abastecimento da mo-de-obra indgena (REIS, 1989; MONTEIRO, 1994). A Reforma Indigenista do Marqus de Pombal (Lei de 7/6/1755) criou mecanismo de poder sobre o ndio aldeado que, por meio do Regimento do Diretrio, seria administrado por um ndio livre e sdito do Rei de Portugal, denominado Principal. Esse novo administrador do Aldeamento substituiria o missionrio que se tornaria apenas o capelo dos ndios aldeados. Assim, o ndio livre era o ndio civilizado e protegido pelo Estado portugus. Com essa
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medida, a Reforma pombalina retirou o poder tutelar dos missionrios sobre os Aldeamentos e seria auxiliado pelo Principal que exercia entre os ndios distintas funes polticas em favor do Estado portugus (cf. CIDR, 1989; REIS, 1989;
FARAGE,1991).
Dando continuidade s reformas administrativas e polticas, Mendona Furtado normatizou e aplicou um conjunto de medidas relativas vida do ndio na regio: retirou a administrao das aldeias da mo dos missionrios, concedeu liberdade aos ndios aldeados. Em alguns povoados, o ndio civilizado exercia as funes polticas (administrador, juiz ordinrio, vereador das cmaras, entre outras). Assim, em maio de 1757, Mendona Furtado regularizou a situao do ndio livre, criando o Regimento do Diretrio. Nessa concepo, revelando um novo modelo de prtica ilegal contra a vida e a terra do ndio amaznico, o governo portugus imps um novo sistema poltico administrativo: os antigos Aldeamentos ou misses seriam governados pelo ndio livre que auxiliaria o vigrio na civilizao indgena, tornado-os aptos para os servios rgios, civis, militares e religiosos, transformando os Aldeamentos em vilas e povoados (CIDR,
1989; REIS, 1989; FARAGE, 1991).
Embora tenha havido certa mudana nas leis sobre as etnias indgenas na bacia do Rio Branco, o Estado portugus no contribuiu para que o ndio fosse reconhecido como um cidado tnico diferenciado do europeu. As idias contidas na Reforma pombalina faziam referncia ordem para que fosse destrudo todo o vestgio da cultura no-civilizada presente nesse mundo natural em transformao urbana integrada ao distante reino ibrico. A partir disso, podemos dizer que, nesse contexto, o ndio saiu do controle missionrio e no foi devolvido ao seu estatuto anterior. Apenas foi mudado o tipo de molde segundo os parmetros de interesse do colonizador, de viso etnocntrica, predominando a negao da cultura diferente, numa tentativa de elimin-la.
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Segundo os novos princpios enunciados, cabia aos missionrios civilizar os ndios habitantes dos aglomerados populacionais ribeirinhos, conforme o Real Servio de Sua Majestade (representado pelo poder pblico das Capitanias e do Estado do Gro-Par) continuando o ndio cristianizado a ser introduzido nas diferentes prestaes de servios do Estado e dos moradores colonos. Essa reforma pombalina, que redirecionou a dinmica scio-cultural, geopoltica e comercial estava apoiada em um modelo poltico de poder colonizador com flexibilidade suficiente para a incorporao da iniciativa privada, tendo em vista a possibilidade do aumento da receita fiscal do Estado portugus. Os missionrios Carmelitas e Franciscanos, entre outras Ordens catlicas, cederam s novas medidas que tornavam o missionrio em capelo do povoado, mas os religiosos jesutas no aceitaram perder o poder poltico-administrativo das aldeias para um Principal e, auxiliados pelos ndios aldeados, tomaram-se de hostilidades contra o Estado portugus. O Marqus de Pombal criou novas ordens rgias e a lei de 03 de setembro de 1758 expulsou de Portugal e suas Colnias a Ordem Jesuta. Os ndios rebelados abandonaram as aldeias e fugiram para o interior da regio amaznica (REIS, 1989:117). Tais reformas em relao civilidade ou liberdade do ndio deixavam dvidas em certos segmentos da sociedade colonial amaznica, pois era sabido que as ordens rgias e instrues polticas estavam sempre no mago dos interesses do momento do poder pblico amaznico (REIS, 1989). Assim, no processo de civilizao do ndio se expandia nesse territrio, transfigurava-se em sdito e, conseqentemente, ocupava o cargo de Principal. Como trabalhava em favor do Estado portugus, o ndio no via sentido nas suas funes, originando fuga ou abandono do cargo e aldeia para o interior da floresta, pois l, ele tinha alimento mais farto, alm do prazer de conviver com os parentes, contrariando as
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instrues das cartas e leis rgias54. Para o portugus/brasileiro, morador dos vilarejos ou povoados ribeirinhos, o ndio livre na figura do Principal no estava qualificado para tais cargos ou funes a servio do Rei, porque era analfabeto na lngua e cultura portuguesa. Nesse processo de expanso portuguesa, o retorno das tropas de Resgates e os novos Aldeamentos representavam mecanismos polticos necessrios defesa da terra e soberania de Portugal. Desse modo, podemos expor que a conquista da regio pelos portugueses foi favorecida, tanto pelas novas informaes cartogrficas da rota fluvial, como pelos novos mecanismos sociais, polticos, jurdicos e sua complexa parceria comercial, com o apoio dos representantes do Estado nas diferentes localidades ribeirinhas que mantinham uma mo-de-obra indgena ainda farta, apesar das deseres para a selva. Com relao poltica indigenista, a legislao sobre as etnias indgenas que vigorou at meados do sculo XVIII classificava os ndios em duas categorias: os livres e os escravos. As etnias consideradas livres eram as dos ndios que se encontravam nas aldeias missionrias, enquanto consideradas escravas eram aqueles rebelados e aprisionados pelo que se denominou de guerras justas ou apresamento indgena pelas tropas de resgates. Nesse processo dos Aldeamentos, a estrutura de sobrevivncia do branco apoiada na desestruturao da cultura do ndio, com ausncia de escrita, organizao social e estatal, facilitou ao Estado portugus montar os seus mecanismos polticos de imposio na expanso de seus domnios, fazendo uso da fora de coero sobre o direito da terra e do ndio.
Cf. textos de autores que analisaram legislaes indigenistas, do sculo XVIII, na Amaznia: 1989; FARAGE, 1991.
54.
REIS,
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Apesar das mudanas de mentalidade poltica e social pelo europeu55, no sculo XVIII e comeo do XIX, reconhecendo novas formas estruturais do Estado-Nao e da sociedade, o amerndio ainda era observado pelo habitante europeu do mundo amaznico como incapacitado de fixar-se nos elementos e regras de sociabilidade transferidas da Europa para os Aldeamentos, que impunham normas educacionais e profissionalizantes, encaminhando o ndio para um mercado de trabalho, que o ndio no compreendia. Diante do histrico dessa situao, podemos dizer que durante os sculos XVIII e XIX, a histria da Amaznia setentrional, como de toda a Amrica Latina, confundiu-se com a prpria histria das ordens religiosas e do poder do Estado colonizador, com nfase na evangelizao, na posse e na segurana da terra. vista de tal quadro social conquistador/civilizador o ndio era parte da terra, um bem a mais a ser explorado. Mgica e dadivosa terra, que j trazia os braos para explor-la, a mo-de-obra representada na figura do ndio, o mais importante produto da terra amaznica. Tal desejo alentava o processo de imigrao para a regio no sculo XVIII, onde, aps as reformas do Marqus de Pombal, sustentavam-se aspiraes europeizadas e aristocrticas na competio por poder poltico e recursos econmicos extrados da Amaznia. Dessa maneira, multiplicou-se o nmero de particulares e religiosos que, auxiliados pelas tropas de resgates, aventuraram-se neste contexto de enfrentamentos e posse da vida humana e da terra amaznica. Tal realidade em construo ainda perdura e influi nas relaes contemporneas. No difcil entender a razo dos conflitos, da posse da terra amaznica e da vida humana como parte integrante na construo do Estado Luso-brasileiro, na bacia do Rio Branco. A forma como o Estado moderno passou a ser
55. Mudanas provocadas pela difuso das idias (iluministas, positivistas, materialistas, evolucionistas, entre outras) que deram novas interpretaes polticas e sociais, exaltando conceitos como os de liberdade, igualdade, dominao, foras de produo, etc.
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concebido, individualista de concepo burguesa, em oposio coletividade no compreendida do ndio, de relao coesa entre terra e cosmo, no reconhecida e nem includa no sistema de direito estatal, obrigando o ndio a integrar-se no Estado, como propriedade, foi uma das principais razes dos conflitos.
FIGURA 02 Maloca Macu exatamente acima do desfiladeiro de Toquiximauate, na margem esquerda do Rio Parima. Expedio Rice (1924/87). (Legenda e Foto: RICE,1978). A maloca, ainda, apresenta quase as mesmas caractersticas das malocas edificadas nos sculos passados (grifo nosso).
Isto quer dizer que o projeto integracionista do Estado, por meio dos Aldeamentos, do ponto de vista dos ndios aldeados era um cruel processo de escravizao e morte. Na seqncia, os ndios cooptados na aspirao civilizadora, enquanto prtica de cidadania, foram vivendo uma cruel realidade de discriminao e preconceito na figura do caboclo ou brasileiro nato. Nesse contexto do Rio Branco em construo, a nova sociedade local (brancos)
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expropriou o ndio de tudo que lhe era essencial - identidade e terra postulando que estaria convertido em cidado e protegido por um Estado justo56. Nesse cenrio de tenses e competies entre brancos e ndios, o contexto scio-cultural da maloca foi se urbanizando, influenciado pela aspirao civilizadora. Tratava-se de grande perda, embora o establishment poltico o visse como ganho.
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se tornassem os Senhores das terras dos rios Branco e Negro. Nesse jogo de interesse e estratgia individual de cada administrador dos aldeamentos missionrios, era perceptvel o desejo de aumentar seu poder de barganha e influncia no poder central. Nessa barganha, poderiam at estabelecer alianas pontuais com os competidores inimigos na busca de uma meta imediata comum. No entanto, dificilmente buscavam formar uma aliana ampla, porque prevalecia a conduta individualista e no de poltica central bem definida. Diante dessas notcias, o governo do Estado do Gro-Par ampliou o poder poltico da Capitania de So Jos do Rio Negro58, em 1775, com uma extenso administrativa militar na bacia do Rio Branco. Efetivou tal proposta construindo um forte, no ponto de encontro dos rios Tacutu e Uraricoera59, sendo que na construo do Forte60 (1775 e 1776), denominado de So Joaquim, a mo-de-obra foi fornecida pelo vizinho Aldeamento So Felipe localizado no Rio Tacutu. Parte do armamento do Forte foi trazido do Gro-Par e outra parte foi tomada aos espanhis durante confrontos entre soldados espanhis habitantes do Rio Branco que foram expulsos pelos portugueses61. A estratgia portuguesa, com pretenso expansionista, buscava no s ocupar militarmente, mas tambm utilizar as etnias indgenas como fronteiras vivas e defensoras dos sertes amaznicos (FARAGE, 1991). Um dos fatores de maior preocupao para essa empreitada portuguesa era o de legalizar o povoamento na regio, trazendo para sua esfera ndios que tinham um bom
58. O pequeno aglomerado urbano que foi se desenvolvendo ao redor do Forte de So Jos do Rio Negro (1669) que sempre esteve isolado do Gro-Par, aps a tomada de deciso do governador, a pequena Capitania, unificada ao poder Monrquico, direcionou-se para conquistar o Rio Branco com a instalao do Forte, Aldeamentos e Fazendas, antes da concluso dos trabalhos das Comisses de Demarcaes das fronteiras amaznicas. 59. O Rio Tacutu faz ligao com a bacia do Essequibo habitada por holandeses e o Rio Uraricoera faz ligao com a bacia do Orinoco habitada por espanhis. 60. Desempenhando uma frgil presena militar e administrativa portuguesa, o Forte se manteve at o final do sculo XIX. 61. Em fins do sculo XVII, os espanhis disputavam essa regio com os holandeses. Na primeira metade do sculo XVIII, os espanhis fundaram nessa regio os povoados de Santa Rosa e So Joo Batista e uma pequena fortificao, cujos objetivos eram o de firmar o domnio comercial e a soberania espanhola no Rio Branco.
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relacionamento com holandeses e ingleses, evidenciado na comercializao dos produtos manufaturados holandeses que eram trocados tanto por escravos ndios como as drogas do serto.
FIGURA 03
Forte So Joaquim e Povoao de Santa Maria
1. Prospecto da Fortaleza de So Joaquim, Rio Branco, feito por Alexandre Rodrigues Ferreira, em sua viagem entre os anos de 1783 e 1792. (Prancha: Ferreira, A.R. 1971. Viagem Filosfica pelas Capitanias do Gro Par, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiab: 1783-1792. Iconografia vol.1.Geografia-Antropologia. Conselho Federal de Cultura. Rio de Janeiro). Apud BARBOSA, Reinaldo et alii, 1997:198.
2. Povoao de Santa Maria, Rio Branco, desenho de Alexandre Rodrigues Ferreira, feito em sua viagem entre os anos de 1783 e 1792. (Prancha: Ferreira, A.R. 1971. Iconografia vol.1.Geografia-Antropologia. Conselho Federal de Cultura. Rio de Janeiro). Apud BARBOSA, Reinaldo et alii, 1997:198.
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MAPA 01 Forte So Joaquim e Aldeamentos na bacia do Rio Branco, sculo XVIII (FARAGE, 1991).
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Tal ao indgena, aliada aos holandeses, fez parte das preocupaes do Ouvidor da Capitania do Rio Negro, Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio. Durante uma expedio exploratria ao vale do Rio Branco, buscando reunir provas da soberania da Coroa de Portugal na regio, o Ouvidor Ribeiro de Sampaio registrou sua impresso sobre a cultura indgena e as grandes vantagens dos recursos minerais na regio sendo que, para o Estado usufruir desses produtos da natureza, ele reafirmava a importncia de uma fortaleza nesse territrio como um dos marcos da presena do Brasil portugus. Essa representao militar administrativa a servio da Coroa portuguesa favoreceria sobretudo a Capitania do Rio Negro, mas, tambm, em menor medida a do Gro-Par. Posteriormente instalao do Forte So Joaquim, o governo do Brasil portugus voltou sua preocupao para os mecanismos polticos educacionais que deveriam civilizar os ndios aldeados que, assim, unificados pela lngua portuguesa, em substituio s diferenas lingsticas62 (dos prprios ndios e
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no contexto referente demarcao das fronteiras, eram necessrios normatizar instrues rgias e civilizar o ndio na lngua portuguesa para confirmar politicamente a soberania Luso-brasileira.
MAPA 02 Localizao das antigas e das novas unidades militares (no sculo XVIII). Os trabalhos das comisses que determinavam os limites entre Portugal e Espanha eram sempre interrompidos por falta de clareza nos documentos (relatrios, memoriais, acervos cartogrficos), alm dos constantes conflitos armados entre soldados espanhis e portugueses dificultando a obra de reconhecimento das terras amaznicas (MANSUY-DINIZ SILVA, 1998:484).
Desse modo, o governo portugus reforou seu poderio poltico e econmico com a posse da terra e a ampliao da rede de fortes nos principais rios da Amaznia. Alm disso, incentivou a imigrao branca para as regies escassas de populao civilizada64. Assim, o Estado monrquico desenvolveu
64. Nesse processo de invaso da regio e rebatizando tudo com nome portugus, as etnias indgenas eram consideradas brancas quando aldeadas e batizadas com nome portugus e sendo tomadas como aliadas
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mecanismos de explorao comercial e colonial, efetivando, por meio dessas medidas rgias, a presena portuguesa na Amaznia, com expanso poltica e militar. Entre costumes selvagens mesclados aos hbitos europeus, eliminando parte da memria cultural indgena e agregando parte da cultura ocidental, ndios e brancos, cada um a seu modo, foram aumentando a violncia dos contatos, redefinindo lugares e o papel destes sob o domnio do Estado, protagonista de conflitos pela terra. Essa realidade dual (ser ou no ser ndio/branco) assumiu novas configuraes na bacia do Rio Branco, dificultando a imposio geopoltica portuguesa na regio, constituindo-se em vrias reformulaes de estratgias portuguesas para fixar os ndios em aldeamentos, fazendas ou vilas sob o comando do Forte So Joaquim.
importantes no povoamento e nos contatos com os outros grupos indgenas (rebeldes ou isolados, selvagens) e na formalizao da posse da terra. 65. Fazemos referncia s Reformas Indigenistas do Marqus de Pombal (sculo XVIII) que tornou o ndio tutelado pelo Estado. Tal direito do Estado sobre o ndio perdurou at o sculo XX fazendo-se presente nas Reformas Indigenistas do SPI (Servio de Proteo ao ndio) em 1910 e da FUNAI (Fundao Nacional do ndio) que substituiu o SPI (Lei 5.371 de 05.12.67). O ndio tornou-se cidado diferenciado do nacional, somente, com a Constituio Federal de 1988 que reconheceu a cultural e o direito de posse da terra habitada pelo ndio.
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Essa proposta governamental, por meio dos resgates e aldeamentos, fazia tbula rasa das diferenas sociais e culturais de cada etnia indgena e, para tornar essa populao corts ou escrava, desenvolveu rivalidades e fortaleceu o desejo dos ndios de combater o domnio do governo portugus. Essas aes e medidas envolvendo brancos e ndios criaram novas tenses. Tais crises do processo civilizador deram origem a uma srie de movimentos conspiratrios dos ndios contra o Estado portugus. Em geral, todas as formas de vida na bacia do Rio Branco experimentaram um impressionante desgaste ao longo desse processo colonial vinculado experincia etnocntrica da cultura ocidental. Ignoramos, todavia, as circunstncias de tal contexto em guerra entre ndios e no-ndios no plano colonial portugus, por conta da escassez de documentos histricos sobre essa situao colonial do sculo XVIII na bacia do Rio Branco. H, no entanto, alguns registros etno-histricos que do conta da reao indgena contra o processo de evangelizao catlica (aldeamentos/povoados) e o fortalecimento do capitalismo monrquico pelos portugueses (CIDR, 1989; FARAGE, 1991). Esses documentos fazem referncia, tambm, a ndios rebelados presos no Forte e que o motivo de tais revoltas era o no cumprimento, por parte do ndio, das instrues rgias na civilidade indgena (Id., ibid.). Nesse embate, o colonizador portugus incitava guerras entre os prprios ndios, que vinham se envolvendo em lutas pelo monoplio comercial holands, entre famlias do tronco Arawak e Karib, as etnias Wapixana, Makuxi, Sapar, Paraviana e outros grupos menores que foram seduzidos por este processo de aldeamento. Nesse contexto, o nmero reduzido de brancos no impedia as deseres dos ndios que fugiam das aldeias missionrias e povoados, deslocando-se para o interior da selva/lavrado ou para os ncleos de comercializao holandesa.
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Assim, os portugueses estavam sempre recomeando o trabalho de atrao dos ndios para o aldeamento. Nesse processo, os ndios tentavam se organizar em suas etnias e os portugueses tentavam civiliz-los ou escraviz-los, tornando-os mercadorias lucrativas. Na conjuntura colonial de confronto das aspiraes e dos interesses, os portugueses implementaram polticas indigenistas duras contra os ndios aldeados. Mas o efeito da poltica que buscava controlar a rebeldia indgena no foi a esperada pelo colonizador portugus. Em 1790, os poucos documentos relatam uma sangrenta batalha entre ndios e tropas portuguesas (Id., ibid.). Por motivos desconhecidos, um Principal66 Makuxi, denominado Parajuijamari, matou um soldado que o conduzira do aldeamento vizinho ao Forte para o Aldeamento So Martinho67. Quando retornou para o aldeamento residente, junto ao Forte, ali matou tambm o soldado administrador dessa unidade militar. Esse gesto do ndio Makuxi desencadeou um efeito multiplicador e os ndios aldeados se organizaram e emboscaram mais dois soldados, depois disso todos os ndios fugiram para a regio de serra. Ao ter conhecimento dessa rebelio, uma tropa partiu para o Rio Branco com ordens do governo da Capitania do Rio Negro, Lobo DAlmada, para capturar os fugitivos e for-los a retornar aos aldeamentos. Essa operao fechou o cerco sobre o territrio Makuxi e, com a morte de Parajuijamari, durante uma resistncia armada contra as tropas portuguesas, desencadearam-se inmeras revoltas indgenas ao longo dos anos 90 do sculo XVIII (CIDR, 1989; FARAGE,
1919).
As denncias feitas pelos ndios sobre a falta de cumprimento dos pactos realizados entre os colonizadores e os ndios aldeados no eram reconhecidos pelas autoridades rgias, que tinham como meta a ordem social e soberania
66. 67.
Cf. Comentrios feitos acima, pp. 84/87. Para melhor compreenso desse contexto consultar Mapa 01, p. 93.
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portuguesa na regio. Nesse contexto de guerra, as margens do Rio Branco se tornaram palco de batalhas e os ndios foram quase completamente dizimados. Foi nessa poca que se registrou a mais conhecida de todas as rebelies, a denominada Revolta da Praia do Sangue, quando as povoaes ao longo do Rio Branco, com exceo da N. S. do Carmo, foram destrudas na luta dos ndios contra os soldados do Brasil portugus (IBGE, 1954 e 1957).
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Muito pouco se sabe sobre os empreendimentos nos povoados/aldeias, das revoltas indgenas, das rotas seguidas pelos manufaturados, das estratgias militares portuguesas e das polticas culturais na alterao da vida e da paisagem nestas terras amaznicas. Apesar disso, observamos que at hoje esse processo de colonizao ensinado, nas escolas de Roraima, sob o ponto de vista da historiografia brasileira tradicional68, como a conquista e povoamento pelos colonizadores portugueses. Essa historiografia exalta a figura dos heris pioneiros que desbravaram as selvas e afastaram outros grupos europeus. Nos diferentes relatos de cronistas que acompanharam as expedies colonizadoras na regio, no h notcias detalhadas sobre essas etnias presentes no Rio Branco. As denominaes so confusas, como os Caribes tambm chamados de Canibais, aparecendo como supostos Caripunas que negociavam com os Makuxi e holandeses na bacia do Rio Essequibo. A prpria legislao indigenista de Pombal no enuncia com clareza a funo do ndio aldeado: ele livre e usufrui o exerccio de cidadania, mas, ao mesmo tempo, no tem direito de propriedade, ao contrrio, ele propriedade do Estado. Dentro dessas controvrsias na histria da situao do ndio, no s de Roraima como do Brasil, acreditamos na possibilidade de algumas reas das cincias humanas reunirem-se para estudar e propiciar alternativas para essa questo: estudos de antroplogos, juristas, cientistas polticos e sociais, entre outros, podero auxiliar no entendimento desse processo histrico. A partir dessa questo, seria necessrio entender quando e como ocorreram a converso e Aldeamento dos Makuxi e de outras etnias, que em perodos anteriores travavam intensas relaes com holandeses. No existem
68. A historiografia de Roraima, em geral, deficitria no trato dessa questo tnica na regio, desde o sculo XVI aos nossos dias, sculo XXI. Uns dos problemas so, ainda, as poucas pesquisas por historiadores.
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estudos a respeito dessa situao intertnicas, pois desconhecemos a presena de documentos a tal situao colonial em arquivos holandeses69. No contexto da transfigurao do ndio em branco e de uma srie de episdios dramticos de resistncia indgena, o carter autoritrio de atuao do Estado portugus apaziguou as revoltas dos aldeados. Assim, diferentes famlias Makuxi (Karib) no s assumiram a cultura do Brasil portugus, como tambm os pactos de paz com os Wapixana (Arawak) por meio de casamentos e trocas comerciais. Em algumas malocas os ndios passaram a denominarem-se como Makuxi-Wapixana (cf. OLIVEIRA, 1991:21). Tais amalgamentos empanam a identidade indgena e reforam o poder do Estado sobre o ndio que, transformado em branco, perde-se nos desvos da sociedade que se props integr-lo.
Um pouco da etno-histria dessa regio, das transformaes ocorridas no perodo colonial, j foi divulgada por estudiosos da antropologia e da histria social, considerando os problemas intertnicos e o poder da cultura branca sobre o ndio. Contudo, no apresentam de modo claro s formas de governo indgenas no processo de trocas comerciais entre os prprios ndios e desses com os europeus, nos sculos XVI e XVII. Alm disso, no h referncias detalhadas sobre a represso exercida pelo Estado portugus, no sculo XVIII, na poltica de assimilao das famlias indgenas associadas aos holandeses ou espanhis na regio do Rio Branco (cf.
DINIZ, 1972; RICE, 1978; REIS, 1989; CIDR, 1989 e 1990; FARAGE, 1991; SANTILLI, 1994 e 1997).
69.
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De fato, com o reconhecimento da posse portuguesa na rea do Rio Branco, pelo Tratado de Madri (1750), a implantao das fazendas nos campos dessa regio atendia um dos programas governamentais do Brasil portugus de valorizao econmica da terra, garantindo-lhe a ocupao, alimento e a defesa:
As carnes secas com que se poderiam fornecer as diferentes povoaes da Capitania em que h trabalhos pblicos, como so as fbricas de anil, aonde a falta do necessrio sustento embaraa o seu maior programa, (...) cresceriam as rendas reais com os dzimos do gado (REIS, id., ibid.).
Esse carter de explorao mercantil e povoamento incorporou novas foras sociais (religiosas, civis e militares) apoiadas no trabalho indgena. A liberao do poder sobre a fora do trabalho indgena, dividido entre o Estado e os militares, estendeu-se aos missionrios e aos moradores colonos. Isso fez surgir uma variao nessa rede de poder poltico-administrativo, nos servios e negcios (agricultura e pecuria) da nova poltica econmica e de fixao do homem colonizador no vale do Rio Branco. A europeizao do Rio Branco deuse, ento, com a colonizao firmada na cultura pastoril (SOUZA, 1969). Esse vale amaznico, uma vez integrado ao Brasil portugus, tornou-se logo um fecundo lugar de contato entre ndios e no-ndios. O processo civilizador portugus, acentuado pela violncia contra os ndios, recorreu ao escravismo e ao trfico de ndios como o eixo em torno do qual se estruturou a vida nessa regio que se abria para o grupo comercial pecurio e agricultor. importante ressaltar, neste ponto, os inmeros grupos indgenas ilustrados no Mapa 03 (acima, p.81) que foram amplamente usados como mo-deobra nos distintos servios da cultura do gado. Podemos afirmar que nesse processo a cultura do gado foi um mecanismo importante para o Brasil portugus redefinir a geopoltica frente s outras naes europias envolvidas em litgios na bacia do Rio Branco, o desejo de tutela sobre essa poro de terra amaznica e
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seus habitantes ndios pela monarquia portuguesa se fez, tambm, com apoio dos outros mecanismos: a unidade militar/religiosa e a escravizao do ndio. Embora as ordens religiosas, via Pombal, tenham perdido o papel de comerciantes de ndios, elas no perderam sua capacidade de desestruturar a cultura indgena, pelo vis no s religioso quanto de certas prticas cotidianas, interferindo na cultura material. O projeto do gado se concretizou com a posse do gado bovino deixado pelos espanhis expulsos, em 1793, das margens do Rio Solimes, em Tef 70
(REIS, 1989:145), e rebanhos trazidos do nordeste brasileiro, regio que vivia
dificuldades com a seca. Assim, o Coronel Lobo dAlmada fundou na regio uma das primeiras fazendas particulares, denominada So Bento. Seguindo o mesmo modelo, o prprio comandante do Forte So Joaquim, S Sarmento, instalou uma fazenda (So Marcos) nas proximidades do Forte. Ao mesmo tempo, um rico morador do Rio Negro, o capito Jos Antonio vora, instalou tambm uma fazenda denominada So Jos (SOUZA, 1969). Estas trs fazendas particulares constituram o cenrio que facilitaria o desenvolvimento da cultura do gado, contribuindo ainda para o fortalecimento do poderio portugus. Contudo, esse poder poltico, fornecendo aos fazendeiros um poder maior de barganha, no serviu para que obtivessem autonomia financeira, pois dependiam do mercado da Capitania do Rio Negro, de um eficiente transporte fluvial, da mo-de-obra indgena que executava diferentes servios, de negociaes e alianas para obter certo equilbrio scio-cultural entre colonos, religiosos e ndios. Esse pacto social como uma frmula poltica e econmica, de uma imperiosa necessidade de expanso amaznica e soberania portuguesa, colocava
70. Embora a Ordem Religiosa espanhola continuasse, at os anos de 1950, ainda recebendo jovens novias europias que ensinavam bordados s ndias (Ref. Irm Dolores, madre da Ordem no Brasil, Casa S. Francisco, J. Bonfiglioli, So Paulo, inf. Pessoal).
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as sedes das fazendas num imenso territrio com baixa populao branca que se organizava com privilgios do grupo dominante juridicamente definido. Com recursos financeiros incipientes, essa pequena burguesia agropecuarista mantinha a condio escrava dos trabalhadores ndios que desenvolviam a agricultura de subsistncia e uma pecuria de limitada relevncia para o mercado da regio. Um outro fator importante nesse processo civilizador foi a no necessidade de mo-de-obra abundante. Nesse sentido, a presena do escravo negro no deu carter especial no empreendimento do Estado portugus nessa regio amaznica. Os relatos dos pioneiros brancos deram notcias, tambm, com o incio da ocupao pela sociedade civilizada, da falta de mulheres brancas na bacia do Rio Branco. A administrao colonial do Gro-Par precisava instalar povoamentos nessa nova fronteira sempre ameaada de invaso por corsrios estrangeiros que rondavam essa terra. Desse modo, as relaes amorosas com as ndias, a poligamia do homem branco, a mestiagem, era uma alternativa nesse processo de alargamento da fronteira e sua ocupao, em relaes que se foram regularizando pouco a pouco, pela influncia dos missionrios catlicos, e que chegaram at a casamentos. A partir de 1793, quando se efetivou o programa de povoamento do Rio Branco, aps a instalao das Fazendas Reais71 e dos Servios de Extrativismo e Roas, o Estado portugus buscou novas medidas regenciais que pudessem fortalecer a frgil relao poltica administrativa do Rio Branco. Dessa forma, o Estado colonizador voltou seus interesses para o incentivo da imigrao
71. Essas fazendas eram de particulares, mas ficaram conhecidas na regio como Fazendas Reais e depois Nacionais. Estavam localizadas na confluncia dos rios formadores do Rio Branco: o Rio Tacutu (fronteira com a Guiana) e o Rio Uraricoera (fronteira com a Venezuela). Para os portugueses esse era um ponto importante na redefinio geopoltica de ocupao e defesa da terra amaznica em favor do Estado portugus.
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regulamentados pelo Estado Luso-brasileiro, o fazendeiro74 era o chefe dessa famlia portuguesa/brasileira, era o senhor da terra e de seus familiares trabalhadores da terra. Esses novos donos da terra traziam parentes ou amigos, formando uma corrente migratria e constituindo-se na sociedade local, onde um indivduo estava conectado ao outro por laos familiares ou de compadrio. Diante disso, preciso considerar tambm o contexto em que se foi construindo essa regio do norte brasileiro. Isto , precisa-se verificar o contexto em que a histria cultural do Rio Branco est inserida, pois evidenciou a presena de diferentes famlias indgenas que se uniram ao branco e deram uma raa mestia de vaqueiros e domadores do lavrado amaznico. Dessa forma, iniciouse um processo que mostrou, por exemplo, o trabalho de mulheres silenciosas e um pouco selvagens, indgenas de pouca fala e muita coragem, resistentes ao servio na casa de fazenda e na roa. Os homens ndios, por seu lado, galopavam a cavalo atrs do gado, nmades malgrado a ligao estreita com a terra. Nesse cenrio da fazenda, homens e mulheres indgenas se identificavam como brancos desbravadores da regio75. A chegada do mdico, do professor, do juiz, de novos missionrios, militares e comerciantes, entre outros atores sociais presentes nessas relaes, fez surgir uma nova ordem scio-cultural no final do sculo XIX e comeo do XX. Nessa reformulao, expandiram-se os laos de parentescos que se aglomeravam ao redor da casa principal da fazenda. Nessa perspectiva, a sede da fazenda se transformou em vila. A partir das ampliaes entre as relaes sociais e familiares
Esses pioneiros brancos eram ao mesmo tempo: comandante do Forte So Joaquim e fazendeiro, proprietrios de postos comerciais e fazendeiros, ou funcionrios pblicos e fazendeiros. Em geral, esses militares, comerciantes e funcionrios pblicos proprietrios de terras eram descendentes de portugueses e foram dando origem a denominada elite tradicional da bacia Rio Branco. Exemplificando essa situao social, temos o capito Incio de Magalhes (1830) comandante do Forte e proprietrio da Fazenda Boa Vista, o capito Bento Brasil (1852) tambm comandante do Forte e fazendeiro, os quais originaram as denominadas tradicionais famlias: Magalhes e Brasil. 75. Consideraes apoiadas no texto Brasil terra de contrastes de BASTIDE, 1980:87, que fez referncia ao trabalho escravo do ndio (id.:21) e, apesar de reconhecer a organizao social do ndio, Roger Bastide exalta a integrao no processo de mestiagem: surgiu uma saborosa mistura de duas civilizaes, a do portugus e a do ndio (...) a Amaznia mestia (id.:45).
74.
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foi renovado o papel do chefe familiar. Nesse aspecto, deu-se abertura para a presena de novas lideranas na vila, surgiu uma nova arrumao no lugar social e outras alianas foram realizadas, resultando na diviso do poder poltico e administrativo com o fazendeiro76. O Estado portugus representado no Gro-Par, no chegou a ser beneficiado pelos negcios econmicos da regio do Rio Branco, apesar dos incentivos agropecurios decorrentes da poltica de desenvolvimento do Marqus de Pombal, a fragilidade nas transaes comerciais eram constantes e sempre dependiam da intermediao da Capitania do Rio Negro (depois Estado do
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Estado colonizador abandonou o habitante dessa parte amaznica deixando-o entregue prpria sorte. A pequena sociedade moradora do Rio Branco, com seus poucos recursos financeiros, investiu na criao do gado e na agricultura com auxlio da fora de trabalho de ndios e no-ndios, os quais recebiam o pagamento dos servios prestados num sistema denominado de Quarta. Com a falta de moedas ou capital na regio, essa prtica de salrio foi comum at o sculo XX. Assim, o regime de sorte ou de Quarta foi o mais usado e por meio dessa modalidade de contrato, um quarto das crias nascidas durante o ano pertencia ao vaqueiro (DINIZ,
1972:37).
Essa prestao de servios e as formas de pagamento nessa longnqua terra da Amaznia despertavam dvidas entre os interessados patres e trabalhadores, em relao valorizao dos servios e a deliberao de verbas justas que pudessem atender as necessidades da populao menos favorecida. Na verdade, a populao indgena era explorada em sua fora de trabalho, os patres tiravam proveito impondo regimes e contratos de trabalho em perverso mecanismo de explorao. Os salrios modestos (quando havia) eram apresentados sempre com grandes descontos, sem clareza de critrio normativo, tornando o ndio constantemente um credor (RICE, 1978:32). Nesse processo de expanso colonial em direo bacia do Rio Branco, os critrios que definiram a legalidade da terra em favor do portugus/brasileiro foram a ocupao e as benfeitorias. A situao legal das fazendas particulares era apenas de posse, motivo que, na segunda metade do sculo XX, gerou novos conflitos em relao ao novo processo de ocupao da terra entre os colonos, os fazendeiros e os ndios. Na verdade, durante os anos do sculo XIX e incio do sculo XX, o governo portugus, e depois o brasileiro, fizeram pouco mais do
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que repelir as incurses estrangeiras a seu territrio e tentar efetivar sua posse nas fronteiras constantemente ameaadas.
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gostaria de perder seu vantajoso mercado nas terras brasileiras, e contratou tropas mercenrias para assegurar o domnio poltico sobre todas as provncias. Assim, aps o estabelecimento da ordem provocada pelos conflitos poltico-sociais entre os moradores da Amaznia (Belm e Manaus), os representantes rgios do Imprio brasileiro, em agosto de 1823, as autoridades civis e militares (representando a sociedade da Provncia do Par) num ato solene, prestaram juramento de fidelidade e adeso a D. Pedro I. Os poucos documentos78 sobre esses acontecimentos na Amaznia, deram notcias tambm que os moradores da Provncia do Amazonas (civis, militares, comerciantes,
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regio do Rio Branco no chegou a ter mudanas significativas. Registrou-se um fluxo migratrio de pessoas e de novos rebanhos bovinos ocupando os campos da regio. O governo monrquico do Brasil Imperial (de D. Pedro I e D. Pedro II) no encontrou ressonncias considerveis para uma eficaz mudana das condies internas, firmando uma autonomia econmica nesta regio. A economia do Rio Branco continuava com base na lavoura e criao de gado, com um precrio comrcio que dependia do mercado externo ligado a Manaus80. Na realidade, nessa fase do Brasil imperial, os conflitos entre ndios e brancos ficaram mais distantes do poder governamental concentrado no Rio de Janeiro. Conforme o regime monrquico transplantado da Europa, propagava-se que o ndio estava integrado como cidado. Na prtica, essa nova ordem estatal era apenas terica: o ndio integrado continuava discriminado na figura do caboclo e os rebelados reafirmavam sua etnicidade no interior da selva desconhecida pelo branco. Apesar de ter recebido especial ateno da Provncia do Par, em razo da distancia e precria comunicao, at os anos de 1850, a Provncia do Amazonas permaneceu relativamente isolada tanto de Belm como de Boa Vista do Rio Branco. No entanto, entre 1850 e 1870, medidas do governo imperial alteraram essa situao de isolamento com a introduo da navegao a vapor na bacia do Rio Amazonas e da abertura do porto de Manaus para a navegao internacional. Tal medida da Coroa brasileira fazia parte da meta de consolidao tanto da unidade monrquica quanto do reconhecimento do territrio amaznico. Contudo, essa regio amaznica (especificamente Belm e Manaus) teve seu apogeu no cenrio comercial internacional no final do Imprio e incio da
80. Em 1852, a capital da Capitania do Rio Negro (Lugar da Barra), tornou-se capital da Provncia do Amazonas e, em 1856, uma lei provincial mudou o nome dessa capital para Manaus.
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Repblica com o denominado ciclo da borracha81. A borracha da Amaznia foi divulgada para os europeus no sculo XVIII, quando a expedio de La Condamine (1743) descreveu sua aplicao pelos ndios amaznicos nos diversos fins: na fabricao de utenslios de uso cotidiano, como sapatos e garrafas ou no revestimento de tecidos. Esse produto tropical chamou a ateno de cientistas e empresrios pela qualidade de impermeabilizao e elasticidade. Desse modo, a borracha tornou-se o produto industrial de expressivo avano na produo de bens dos mais modernos, com diferentes formas de consumo associado idia de civilizao e progresso (REIS, 1989; DAOU, 2000). Porm, nem esse curto ciclo da borracha em fins do sculo XIX e incio do sculo XX, que deu certo poder poltico e econmico ao Amazonas, conseguiu tirar a regio do Rio Branco desse estado desalentado no processo civilizatrio e de integrao amaznica. A sociedade do Rio Branco continuava envolvida nos conflitos de terras, sempre em litgio. No final do sculo XIX, o governo do Brasil Imperial observou com preocupao essa situao fronteiria da Amaznia que se fragmentava com a reconstruo das repblicas espanholas e da passagem das terras da Guiana para o poder britnico (por volta de 1803). A rea de fronteira em litgio no Essequibo foi neutralizada com a assinatura de um acordo em 1842, entre o Brasil e a Gr-Bretanha, que no abdicou de seus direitos sobre a regio alegando que as terras herdadas dos holandeses iriam at onde se estendiam suas alianas com os ndios. Ao contrrio dos portugueses, que usava o ndio como fronteira viva, para provar a posse da terra (Tratado de Madri), o direito de posse da terra, pelos ingleses, era reclamado com base na relao comercial tribal. Em 1904, essa questo foi resolvida por um
81. O apogeu da borracha aconteceu entre 1880-1910 atraindo empresrios estrangeiros (ingleses, franceses, americanos, libaneses e tambm portugueses e brasileiros) e ampliando tanto a disputa pelas terras de seringueiras quanto a complexidade da sociedade amaznica de comportamento individualista (DAOU, 2000).
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acordo diplomtico entre Brasil e Inglaterra e tendo como rbitro o rei italiano que reconheceu e delimitou a posse inglesa na regio (NABUCO, 1941). Atendendo as mudanas administrativas do Brasil Imperial, uma lei da Provncia do Amazonas, em 1858, ampliou a diviso de governo do Rio Branco elevando o aglomerado populacional ao redor da Fazenda Boa Vista para Freguesia de Nossa Senhora do Carmo, edificando uma parquia. Mas a presena da Igreja, na conduo da vida social e religiosa no Rio Branco, exerceu pouca influncia na modificao dessa estrutura social e poltica do sculo XIX.
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Diante do exposto, podemos dizer que a formao social na construo desse ncleo urbano de Boa Vista, em grande parte, s foi possvel com o auxlio do ndio. A populao indgena foi coagida a incorporar-se no projeto de cidadania (com mudana da aldeia em ncleo urbano), mas na prtica continuava escravizada e tutelada pelo Estado. O pioneiro branco no encontrou os sonhados veios aurferos e, para sobreviver, transformou os campos da regio em colnia agro-pecuria e lanou no mercado produtos extrativistas. Contudo, a documentao82 que registrou a origem da cidade d pouco esclarecimento sobre essa dinmica entre ndios civilizados e no-civilizados e os brancos que se faziam presentes na antiga Freguesia de Nossa Senhora do Carmo. A pequena burguesia, constituda por fazendeiros, comerciantes e funcionrios do Estado, interessados na preservao de seus privilgios, esboava critrios polticos e socio-econmicos para estabelecer a representao limitada da elite local, mantendo distante a populao inculta, composta de mestios (brancos e ndios) e caboclos (ndios) vivendo na pobreza. Calculava-se que na bacia do Rio Branco, aproximadamente 80% da populao era indgena. Por causa do pouco contato com as regies de serra, onde habita a maioria dos ndios, no sabemos ao certo o total dessa populao indgena no sculo XIX. Tal contexto social e cultural foi descrito pelo francs Henri Coudreau (1887) que desenvolveu estudos nessa regio e comentou, surpreso, sobre o grande nmero de Makuxi. De acordo com essa informao, essa etnia indgena parecia ser a mais expressiva do Rio Branco, contando entre trs a quatro mil ndios convivendo com uma populao branca que no chegava a mil habitantes. Ao final do sculo XIX, a inexistncia de estrutura poltica administrativa na regio do Rio Branco ainda persistia. Dos cinco povoados, apenas o de Nossa
82. A Lei n 92, de 9 de novembro de 1858, designou as provncias do Amazonas e estabeleceu que a sede da Freguesia de Nossa Senhora do Carmo deveria ser no lugar chamado Boa Vista, localizado acima das cachoeiras do Rio Branco. Tal lugar era o aglomerado urbano que se formou na fazenda Boa Vista, fundada em 1830, de propriedade de um oficial portugus do Forte So Joaquim, Incio Lopes de Magalhes.
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Senhora do Carmo sobreviveu com o nome de Boa Vista. Nessa poca, a unidade militar (So Joaquim) no desempenhava mais nenhuma funo de defesa geopoltica. As fazendas espalhadas no imenso territrio do Rio Branco dependiam dos ndios como nica mo-de-obra para os servios domsticos e trabalho braal. O atendimento religioso continuava incerto, sendo realizado pelos franciscanos que visitavam Boa Vista e algumas malocas (COUDREAU,
1887:257).
FIGURA 04 Regio do Rio Branco: cenas do trabalho indgena Expedio Rice (1924/110.1 e 128.1). (Legenda e Foto: RICE, 1978).
ndia Macu ralando mandioca, um dos principais produtos alimentcios indgena. Essa uma das fases do preparo da farinha.
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Com a instituio da Repblica, a rediviso do territrio brasileiro foi discutida e aprovada na primeira Constituio Republicana de 1891, que criou o Estado Federal, imps a forma federativa de governo, para assegurar a ordem poltica num territrio to vasto e heterogneo. Contudo, todos os direitos estaduais estavam instaurados e vinculados ao poder central: unidade territorial, poltica e de direitos (SOUZA, 1971). Nesse sentido, a Monarquia influiu at mesmo na mudana do novo sistema de governo brasileiro: entregaram o poder Executivo a um s homem, o Presidente da Repblica, (...) um verdadeiro monarca eletivo. (DALLARI, 1986:32). Em relao poltica indigenista, a idia constituinte do Brasil republicano traduzia, no integracionismo, a absoro da cultura indgena, sendo omissa nessa questo do ndio. No entanto, tal questo foi levantada durante a discusso pela Assemblia constituinte, mas na prtica o Estado brasileiro continuava desprezando essa questo (MARS, 1999:56-7). Sem perder o apoio da elite poltica e econmica, o governo republicano por Decreto Lei de 1906 criou o SPI (Servio de Proteo ao ndio) que foi efetivado em 1910, sendo dirigido por um militar de esprito humanista, o marechal Cndido Rondon. Em 27 de junho de 1928, foi aprovado o decreto (n. 5484) legislativo do ndio. Todavia, mesmo com esse conjunto de normas protetoras indgenas, as relaes entre Estado, sociedade nacional e ndio no mudaram. Esse carter ambguo (oligrquico e liberal) parece ser uma das caractersticas sempre presente no processo de formao social e democrtica brasileira, que apoiado num projeto que aspirava unidade territorial e dualidade social (brancos e ndios) de regime representativo democrtico, no abriu caminho para o reconhecimento diferenciado da cultura indgena. Embora,
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teoricamente, o ndio estivesse integrado sociedade nacional no quadro social de Roraima, ele era olhado como caboclo de propriedade do Estado. Nesse jogo econmico e disputa poltica de participao do poder estatal, embora o quadro terico liberal difundisse a equivalncia dos direitos entre os brasileiros e todos os Estados federados, na prtica (semelhante aos acontecimentos
vividos com a Constituio de 1824 e 1891), revelava a supremacia dos representantes
da elite poltica e econmica do Brasil. Nesse caso, os Estados mais fortes (So
Paulo e Minas Gerais) formavam o grupo de controle dos privilgios e sustentao
do governo federal. Vale lembrar que, no interior desse embate poltico, as elites militares disputavam contra as elites econmicas a participao no governo republicano, cujos temas segurana nacional e desenvolvimento econmico barganhavam recursos e partilha no poder central (SOUZA, 1971:163). Sabemos, contudo, que a construo desse Estado amaznico passou por mais de quatrocentos anos de injusta supremacia de brancos sobre ndios que implacavelmente desconstruiu a cultura indgena. Identificamos que nesse processo de aculturao, Makunaima83, o heri cultural das famlias indgenas de filiao lingstica Karib, como os Makuxi, por exemplo, foi dando lugar ao Deus-Cristo das potncias europias que disputavam a regio. Nessa perspectiva, o Aldeamento, um lugar criado pelo Estado dentro de uma poltica de proteo, transfigurava os ndios em brancos enfatizando a integrao na sociedade nacional e destruindo seus direitos territoriais.
(em Roraima, diz-se Makunima) termo de origem Karib. Os ancestrais indgenas revivificavam, em alguns momentos da festa/ritual, a figura do heri e por meio da narrativa mtica explicavam os seus feitos sobre os primeiros tempos. Para o Makuxi, de nosso tempo atual, Makunaima a prpria criao, o prprio momento em que todas as coisas passaram a existir em coeso: terra e cosmo. O Monte Roraima, representa na memria cultural dessas etnias, de origem Karib, a morada do heri (cf. OLIVEIRA, 1991:15).
83.Makunaima
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Boa Vista, esperavam exercer a cidadania nesse lugar de infra-estrutura precria, sem estradas, sendo fluvial a nica via de comunicao com Manaus (via Rio Branco e Negro). A energia eltrica era um sonho distante e as polticas que pudessem impulsionar o desenvolvimento a partir da utilizao dos recursos locais, o projeto de incentivo agro-pastoril e agro-florestal, mostravam-se frgeis e no chegavam a produzir o suficiente para colocar a regio no mercado amaznico. A maior parte da produo era de subsistncia local, com pouca exportao para Manaus. Todavia, foi reiterada a aspirao civilizadora85 da elite boavistense: viver em um espao urbano diferente das precrias ruas localizadas em zona plana, de baixa altitude. Essa elite era composta por descendentes de brancos e mestios 86 vivendo entre uma grande massa de caboclos (ndios civilizados), nas proximidades do porto, denominado Rampa do Cimento, margem direita do Rio Branco, com trs ruas paralelas prximas da parquia Nossa Senhora do Carmo. A topografia da zona urbana boavistense poderia ser definida como uma grande superfcie plana com sulcos formados por igaraps e pequenos lagos. Nessa infra-estrutura urbana, do Brasil republicano, no se podia conceber dispositivo cultural prprio de coletividade no reconhecida em sua individualidade e pseudamente integrada na unidade nacional87. O processo histrico de construo dessa regio brasileira, que foi eliminando o que era diferente, por meio do integracionismo, (ndios e europeus rivais: holandeses, espanhis,
ingleses), transformou tudo em lngua e cultura portuguesa. Portanto, a massa
Por meio dos relatos de uso da Histria Oral, voz corrente entre os habitantes de Boa Vista que a elite local sempre sonhou em transformar esse pequeno ncleo urbano (Boa Vista) em capital moderna e de fcil comunicao com as grandes metrpoles nacionais e internacionais. Tal desejo, alimentado pela busca dos veios aurferos divulgados pelo El Dorado, permanece no tempo contemporneo. 86.Estamos nos referindo aos habitantes descendentes de europeus nascidos no Brasil que se mesclaram ao negro e ao ndio nas regies centro-sul e nordeste brasileiro e chegaram nessa regio no final do sculo XIX e na primeira metade do XX. Entre esses mestios imigrantes estavam, tambm, os descendentes da bacia do Rio Branco (mistura do branco com o ndio). 87. Cf. A Constituio republicana brasileira de 1891 que omissa nessa questo do ndio e no abandonou a idia integracionista (MARS, 1999:57).
85.
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indgena, vista sem organizao estatal e social, foi usurpada pelo prprio Estado que havia propagado direitos iguais para todos, e proposto o exerccio de cidadania ao ndio livre88. Nessa empreitada de unificao federativa, caboclos (ndios civilizados/integrados) sob coero social do Estado e brancos (privilegiados pelo Estado) foram recriando os espaos e a teia social nacional, formando a paisagem urbana e social roraimense. Essa relao do Estado brasileiro com os ndios, denominados caboclos pela sociedade nacional, ganhou um novo conjunto de normas por meio da instalao do SPI (Servio de Proteo ao ndio) em 1910, um rgo federal sob a direo do Marechal Rondon que, numa viso na poca considerada humanista, trataria da poltica indigenista (COUTINHO, 1975). No podemos, porm, nos esquecer que o SPI nasceu como SPILTN: Servio de Proteo ao ndio e Localizao de Trabalhadores Nacionais, rgo do Ministrio da Agricultura, Indstria e Comrcio. Os objetivos ltimos eram a aculturao gradual e a capacitao do indgena como campons (ARRUTI, 1995:57-8). Deve-se ao SPI e poltica rondoniana a idia de transitoriedade da situao do ndio, de isolado a integrado para o que se introduziu no Cdigo Civil Brasileiro, em 1916, a figura da tutela. No artigo 5 do referido Cdigo dispe que: as pessoas menores de 16 anos so absolutamente incapazes de exercerem pessoalmente os atos da vida civil. No inciso III do artigo seguinte (6) considera que as pessoas maiores de 16 anos e menores de 21 so relativamente incapazes a certos atos ou maneiras de os exercer. Do ponto de vista jurdico, os ndios deveriam ser tutelados por serem, como os menores, de relativa incapacidade por seus atos e por no conhecerem o cdigo nacional de conduta, sendo necessrio o Estado proteg-los.
88.
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O rgo federal responsvel pelos ndios (SPI) envolveu-se, nos anos de 1950, numa rede de corrupo roubando a terra do ndio em favor da propriedade privada, dos novos titulares integrantes da oligarquia local e tornando-se instrumento de opresso (SOUZA FILHO, 1994; MONTEIRO, 1994;
MARS, 1999).
Nessa fase inicial do sculo XX, aos poucos, ou de repente, conforme as estratgias e interesses dos representantes do executivo federal, as etnias indgenas foram desaparecendo, famlias de ndios foram integrando-se pelo processo de pacificao e outras famlias indgenas fugiram para o interior da regio. Entre os sculos XVIII e o XX (momento de conquista e povoamento lusobrasileiro), calcula-se um total superior a 50% das etnias indgenas89 que sumiram
nesse processo de construo dessa regio amaznica. No se sabe quantos ndios morreram, no s para defender suas terras e famlias nas lutas contra os colonizadores, como tambm nos conflitos entre as prprias etnias cooptadas por religiosos e comerciantes e levadas a participar de competies mortais que no eram suas. O discurso de integrao do ndio na sociedade nacional, assumindo propores ambguas (regime tutelar ou amalgamados pelos cruzamentos) desencadeou reaes de estudiosos, especialmente antroplogos, que chamavam a ateno para o massacre desses povos tribais amaznicos. A questo da territorialidade desses povos, cuja forma de diviso da terra ancestral e respeita os limites da cosmoviso indgena, agora ocupada e povoada pelo Estado, ganhou novas interpretaes com a instalao do SPI/local. Esse primeiro rgo federal criado para gerenciar uma poltica indigenista, deu continuidade ao integracionista da fase Imperial e no reconheceu as
89. No h censo das etnias indgenas dessa regio amaznica, os dados levantados pelo SPI (Servio de Proteo ao ndio), pela FUNAI (Fundao Nacional do ndio) e outros rgos ou entidades no governamentais, interessados na causa do ndio do Rio Branco/Roraima, apresentam dados aproximados e nem sempre concordam com o total estipulado.
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especificidades culturais do ndio (SOUZA FILHO , 1994; SANTOS, 1994a). Apesar disso, surgiram discusses sobre o falso discurso da integrao nacional: qual seria a categoria do ndio no quadro social nacional? Para alguns representantes do Estado, o ndio ganhava civilidade segundo sua proximidade com os hbitos da cultura nacional (MARS, 1999). Evidencia-se nesse discurso o poder de coero do Estado eliminando a diferena cultural, reconhecendo todas as distintas etnias como brasileiros. Apesar disso, algumas famlias, tanto as isoladas ou integradas, reconheciam-se como ndios, guardando parte da memria cultural que era revivificada no encontro com o parente arredio ou isolado90. O jovem ndio, condicionado poltica integracionista partia para Boa Vista em busca de estudos que o qualificassem para o mercado urbano. Esse jovem, quando regressava maloca para visitar os parentes revivifica relaes lingsticas e culturais independentes do meio urbano em que vivia como cidado brasileiro. Diante disso, o discurso de integrao compulsria do ndio na sociedade nacional, propagando que ele desfruta das benesses estatais e dos direitos civis, no totalmente verdadeira. Na prtica cotidiana, observou-se que no processo de relao entre Estado e ndio, com existncia de uma invisvel cultura na cultura nacional, alguns caboclos passaram a reivindicar os seus direitos tnicos e outros romperam a relao com os parentes isolados, assumindo a identidade nacional. Os que assumiram a cultura branca, no exerccio do dia-a-dia, continuavam sem definio tnica: no eram ndios porque no se reconheciam como tais e no eram brasileiros porque nasceram ndios (Makuxi, Wapixana,
Esses termos deram carter ambguo nas representaes e nas relaes entre o Estado e os indgenas. Percebe-se que as noes de isolamento ou integrao dos ndios, as intervenes dos recm-contactos com ndios amaznicos estimularam discusses no campo da Antropologia e nos movimentos sociais em favor dos povos tribais, fortalecendo a noo de etnicidade, permitindo aos grupos indgenas reconstrurem suas organizaes culturais diferenciadas da cultura nacional (cf. GALLOIS, 1994:121/132).
90.
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Wai Wai, etc.) e, em geral, eram discriminados ou no eram reconhecidos pela sociedade branca local. Contudo, do ponto de vista jurdico todo ndio reconhecido como brasileiro e est contemplado pelas leis do pas, que desde a Constituio do Imprio (1824) inseriu os ndios e os outros brasileiros como cidados brasileiros porque nasceram no territrio nacional. Ainda nesse perodo (primeira metade do sculo XX), apareceram notcias sobre a educao formal, a partir de professores desvinculados das carreiras eclesisticas, desenvolvendo um ensino elementar para os filhos dos moradores colonos (brancos e mestios) e dos ndios civilizados (caboclos). Essa nova atribuio, no processo de colonizao brasileira, dada ao papel do professor leigo na formao da sociedade roraimense, buscou efetivar a unificao cultural, eliminando os visveis elementos selvagens91 na relao social local, ainda existentes. No contexto da oralidade so comuns as histrias sobre a coragem e honradez dos primeiros mestres como o Sargento Joo Capistrano da Silva Mota, Alfredo Venncio de Souza Cruz92 e Diomedes Pinto Souto Maior. Esses homens, desde o final do sculo XIX, souberam aplicar um projeto de aprendizado vido por mudanas numa regio longnqua e carente de polticas educacionais (SOUZA, 1969:38). Eram imigrantes representantes do poder poltico estatal, com atuaes no processo educacional e tinham como meta transformar a regio num nico corpo social rio-branquense. Esses professores leigos discursavam e valorizavam a diversidade93 de hbitos na cultura nacional local,
91. Fora do convvio urbano-patritico, na maloca o ndio praticava a lngua e suas prprias manifestaes culturais. 92. Joo Capistrano da Silva Mota (popular Coronel Mota) foi o primeiro prefeito de Boa Vista, quando da instalao do municpio em 1890, subordinado ao Estado do Amazonas. Alfredo Venncio de Souza Cruz foi o sucessor do Coronel Mota. 93. Descendentes de diferentes grupos indgenas pertencentes ao tronco lingstico Karib ou Arawak. Esse processo educacional unificador da lngua e cultura luso-brasileira, eliminou a identidade do ndio. Na viso antropolgica, o uso do prprio termo ndio generalizador, pois unifica as diferenas tnicas.
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mas enfatizavam a necessidade de civilizar as crianas e jovens indgenas, profissionalizando-as para o convvio no ncleo urbano. No entanto, colocam-se em questo os temas da identidade e etnicidade presentes nesses discursos educacionais, que preconizavam o respeito diferena cultural dentro de uma prtica pedaggica de desconstruo da identidade do ndio em favor da construo de identidade nacional. Verificou-se, nessas propostas do aprendizado das primeiras letras, que a problemtica indgena, como elemento cultural distinto e de difcil compreenso pela sociedade nacional local, no fazia parte das preocupaes que eram cristalizadas na escola (OLIVEIRA, 1991). Porm, na prtica, fora da escola, apegava-se ao ndio como mo-de-obra escrava no trato da terra e nos servios domsticos. Nessa relao ambgua, as mltiplas diferenas (indgenas e noindgenas) presentes nesse processo humano e social, numa parte invisvel das relaes de poder sobre o outro, eram apresentadas como inexistentes na prtica pedaggica da escola roraimense. O aprendizado era estruturado em torno do reconhecimento de um sistema de valores culturais e identitrios prprios a um estilo de vida civilizado. Contudo, no cotidiano de atuao dessa metodologia autoritria, surgiam caboclos (ndios civilizados) que, na medida do possvel, resistiam ao assdio da dependncia do Estado e das perdas culturais, enquanto outros integravam a dinmica social nacional. Os documentos94 que relatam essa temtica no estipulam o total de ndios e no identificam as etnias que assumiram a cultura europia95 dentro dessa poltica sistemtica de assimilao forada e de desenraizamento cultural (CIDR, 1989).
Fazemos referncia aos Relatrios e Informativos da Diocese de Roraima, aos programas da escola indgena sob a responsabilidade da Misso do Surumu. Alm desses, existem os Relatrios e Programas referentes s escolas indgenas e no-indgenas tuteladas pelo Estado, atravs da Secretaria de Educao de Roraima. 95. Estamos nos referindo s etnias indgenas do tronco lingstico Karib e Arawak, que no confronto cultural e na poltica do contato (ndios, holandeses, espanhis, ingleses, portugueses, franceses, etc.), de atuao
94.
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Desta forma, o que esses primeiros professores convencionaram como ensino voltado para questes scio-culturais do Brasil no passou de cpia de modelos pedaggicos dos missionrios que civilizavam os ndios nos Aldeamentos: cantigas para o ensino da tabuada, da soletrao, narrativas orais sobre heris, fadas, prncipes e santos, sem se esquecer das histrias e lendas dos mistrios amaznicos. Em tudo era geralmente exaltado o amor e respeito ao prximo, assim como a honestidade e obedincia aos superiores (OLIVEIRA,
1991).
Esse aprendizado, ministrado por professores no religiosos, assumindo certos significados numa educao de prtica sistemtica, que visava unidade territorial e a europeizao do lugar, perdurou at bem pouco tempo e no h evidncias de que j tenha sido totalmente superado, e, certamente, mereceria um estudo especfico. Com o mesmo propsito, os missionrios das ordens religiosas (carmelitas, capuchinhos, franciscanos e outros) desenvolviam projetos para escolas, instaladas em regime de internato, com objetivo de ampliar o comportamento de boas maneiras, por meio de escolas primrias para as crianas indgenas. Nessa prtica pedaggica, O SPI (Servio de Proteo ao ndio) desenvolvia, tambm, atividades educacionais e profissionalizantes junto aos ndios, que eram classificados, pela poltica indigenista, em: selvagens e civilizados, havendo, tambm, os semi-civilizados. Todos deveriam adaptar-se nos costumes da civilizao para torn-los teis ao engrandecimento da Ptria e ao bem da famlia (cf . CIDR, 1989:31). Para inserir a bacia do Rio Branco no mundo da cultura nacional, os beneditinos, sob a orientao do Mosteiro de So Bento no Rio de Janeiro, transformaram esse lugar construindo igrejas, hospitais e colgios, como o So Jos na cidade de Boa Vista (em 1924). Fundaram, na regio do Rio Surumu
protecionista e estratgias eliminadoras da cultura indgena, foram envolvidas nas relaes de dominao, no decorrer dos ltimos sculos.
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(1911-1912), um posto missionrio e depois um internato misto para jovens e escola para crianas indgenas, almejando colocar em prtica a poltica educacional pleiteada pelo governo brasileiro (CIDR, 1989).
Figura 05 Cidade de Boa Vista. Escola dirigida por religiosos beneditinos. A maioria das crianas mestia (branco com ndio). Expedio Rice (1924/96.2). (Legenda e Foto: Rice, 1978).
No entanto, durante a prtica pedaggica dos religiosos beneditinos, podese observar que, de maneira sutil, foram sendo introduzidas concepes humanistas implicando em discusses, por parte dos ndios, de contedos culturais diferentes do nacional referentes aos direitos humanos. Tal prtica era, tambm, aplicada pelos indigenistas do SPI que comearam a atuar nessa regio, com maior intensidade a partir dos anos de 1920 (CIDR, 1989, OLIVEIRA, 1991;
LIMA, 1993).
O maior contingente indgena habitante do Surumu o Makuxi e o local considerado como importante ponto de passagem para as fazendas e os garimpos. Assim sendo, esse processo civilizador que introduzia o ndio na sociedade nacional, desenvolvido pelos religiosos catlicos, ganhou fora, especialmente nessa regio do Surumu, a partir de 1915, aps a atuao do SPI
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(Servio de Proteo ao ndio), quando o governo federal elaborou estratgias indigenistas para a regio do Rio Branco (DINIZ, 1972; CIDR, 1989; SANTILLI,
1994).
Isto significou que a insero inexorvel das etnias indgenas da bacia do Rio Branco na sociedade nacional abriu caminho fora e transformou tanto a terra como a vida social e cultural. Tal processo retomou a antiga medida intervencionista pombalina, valorizando a importncia dos hbitos europeus e dos intercasamentos. Essa estratgia assimilacionista do Brasil portugus era um dos modos de assegurar o povoamento e a soberania portuguesa/brasileira nestes vastos campos. Portanto, possvel dizer que a estratgia de integrao do ndio desestruturou sua cultura no plano de miscigenao96 brasileira. O Estado conduziu parte dos moradores (ndios e no-ndios) para as regies desabitadas em constante litgio e, aos poucos, foi domesticando os hostis e transformando malocas em ncleos urbanos/municpios. Essa ao tinha como meta salvaguardar o interesse do Estado, a propriedade e a defesa do territrio brasileiro. At certo ponto, o grande reabilitador desse processo era o estabelecimento das alianas e o incentivo dos laos de parentesco com os ndios, que eram introduzidos na civilizao pela cultura do gado. Roger Bastide exaltou essa unio entre ndio e branco quando analisou o universo da fazenda amaznica, como uma saborosa mistura que deu uma raa mestia de vaqueiros e domadores do espao (BASTIDE, 1980:87). Mesmo assim, esse autor reconheceu a escravizao do ndio na lida com o gado. Tais contrastes e conflitos scio-culturais, relativos ao distanciamento econmico entre a elite e a massa social do Rio Branco, eram esfacelados no
96. comum em Roraima falar da miscigenao branco com negro, como o imigrante de outras regies do Brasil. No fazem referncia ao mestio de ndio com branco que, em geral, identificado como caboclo ou ndio civilizado.
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convvio na Grande Famlia97. Nesse processo, ocorriam barganhas polticas, alianas de amizades, casamentos e compadrio, possibilitando solues alternativas e normatizaes de questes de direitos civis entre ndios e nondios. sabido que tal modalidade poltica de integrao do ndio na sociedade nacional foi tradicionalmente estabelecida e construda por uma elite monocultural, desde a fase colonial, inspirada no esprito de liberdade e igualdade previstas na Constituio e nas suas leis98 que foram sendo elaboradas na estruturao do Estado portugus/brasileiro e atravessaram o sistema poltico do Brasil contemporneo, at o comeo do sculo XXI.
No processo de construo do territrio amaznico, a Reforma pombalina (sculo XVIII) incentivou o casamento entre brancos e ndios, reunindo em um nico grupo os diferentes grupos culturais, garantindo a ocupao e a defesa da terra em nome de Portugal/Brasil, como se todos fossem uma grande famlia portuguesa/brasileira. Aps a Constituio de 1891, o poder central, preocupado com a unificao federativa, recorreu a essa poltica unificadora das diferenas sociais e culturais. Assim, os distintos grupos presentes na bacia do Rio Branco e outras regies do Brasil, foram unidos na relao de poder estatal (patriarcal) com a sociedade nacional, onde a concepo de famlia mascarou os conflitos culturais e de posse da terra, como filhos da nao brasileira, que teoricamente esto irmanados, representando uma grande famlia brasileira defensora da soberania nacional (OLIVEIRA, 1991). 98. Referimo-nos aqui: a) s medidas rgias polticas, sociais e econmicas promulgadas por D. Joo VI aps a instalao (no Rio de Janeiro) da famlia Real em 1808, que transformou o Brasil em Reino Unido (1815); b) a Constituio de 1824 e as medidas rgias do Brasil Imperial (decretadas por D. Pedro I e II) na unificao e defesa das provncias; c) a Constituio de 1891, (governo do Marechal Deodoro) estabelecendo a unidade federada e a defesa soberana do novo Estado-Nao; d) a Constituio de 1937 e as medidas do governo federal (Getlio Vargas) oferecendo possibilidades do povo brasileiro participar de um sistema poltico voltado para o povoamento dos espaos sociais vazios (criao dos Territrios Federais) e defesa da soberania nacional; e) a Constituio de 1988 (governo de Jos Sarney) tambm apresentou fundamentos semelhantes oferecendo possibilidades de reconstruo da sociedade e de um sistema poltico mais justo e democrtico para todo cidado brasileiro (esses objetivos fizeram parte tambm da Agenda Poltica do ex-presidente, Fernando Henrique Cardoso, na gesto de seus dois mandatos consecutivos: janeiro de 1995 a dezembro de 2002). 99. Alexander von Humboldt estudou o mundo selvagem da bacia do Oricono at a fronteira do Brasil, entre 1799 a 1804, e suas contribuies foram significativas para o avano no campo da Histria Natural (cf. HUMBOLDT, 1825). Nesse sentido, os dados levantados por Robert Schomburgk entre 1838-39, por Henri Coudreau em 1887 e Joaquim Nabuco em 1904, com minuciosos estudos sobre a regio do Rio Branco, forneceram parmetros voltados para as questes polticas, econmicas e jurdicas relativas posse dessas terras e direito tutelar sobre as etnias indgenas em favor do Estado (Brasil, Guiana ou Venezuela).
97.
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universo natural amaznico, cujo objeto principal era o ndio, uma fonte de referncia semelhante a um arquivo vivo (LACOUTURE, 1993), com um extraordinrio acmulo de conhecimentos impressos na memria cultural. No entanto, toda essa memria dos velhos ndios no era reconhecida pelo Estado e sociedade local, pois o ndio continuava sendo olhado como povo natural, incapaz de desprender-se sozinho do seu habitat (DESCOLA, 1999:112-3). Essa nova onda de idias naturalistas, influenciada pelo pensamento iluminista, mesclada com concepes romnticas do mundo natural, alm das contribuies etnogrficas, despertaram o interesse por novos aspectos do mundo amaznico. Tal interesse, representado por estudos cientficos, que marcaram as antigas e as novas expedies exploratrias, reapareceu como bandeira do conhecimento dos elementos naturais, camuflando sutis desejos de posse ou domnio da terra e dos atributos culturais indgenas. Desse perodo registramos algumas: a) entre 1911 e 1912, Theodor Koch-Grmberg, etnologista e gegrafo alemo, estudou os rios Branco, Uraricoera, Ararac e penetrou na bacia do Rio Orinoco pelo Merevari, explorando a regio da Serra dos Imeniaris, no extremo noroeste de Roraima. Essa expedio estudou a cultura do ndio revelando sua variao lingstica e organizao familiar, registrou diferenas tnicas numa coleo fotogrfica; b) Em 1924, a expedio do gegrafo ingls Hamilton Rice100, reafirmou que Boa Vista era o nico ncleo populacional do Rio Branco que podia ser denominado de Vila. A presena de militares (em grande parte soldados) chamou a ateno de Rice porque numa regio onde a autoridade judicial parecia ser exercida revelia101, uma fora semi-oficial era quase inoperante (RICE, 1978:25). A expedio de Rice contava com especialistas em solos, como gelogo e topgrafo e fotgrafo (por terra e areo), permitindo minuciosos estudos minerais;
100. Hamilton Rice era membro da American Geographical Society e no regresso para Nova York, aps as pesquisas nessa regio amaznica, ele fundou um sindicato voltado para a explorao de minrios na bacia do Rio Branco que, em troca do direito explorao do solo e subsolo, obrigava-se a construir uma estrada de ferro ligando Manaus a Boa Vista. (SOUZA, 1969:54). Tal proposta no foi levada em considerao pelo governador do Amazonas, Sr. Rego Monteiro. 101. Para Rice, a autoridade local deixava ao acaso a problemtica poltica e jurdica envolvendo brancos e ndios, negligenciava contestaes contra o poder coronelista do representante estatal.
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c) na dcada de 1920, a expedio chefiada pelo General Rondon, designada tambm para efetuar estudos de reconhecimento na regio (1927), com o propsito de demarcar as novas fronteiras com a Guiana e a Venezuela. Rondon chegou regio do Rio Branco e entrou em contato com os inspetores do Servio de Proteo do ndio102 (SPI/local) fazendo graves denncias de violncias e abusos sexuais das ndias por parte dos brancos. Tais denncias foram baseadas nos relatos das lideranas das etnias Makuxi, Taurepang e Wapixana, feitos ao General. Retomando essa questo do interesse branco pelo mundo natural amaznico, podemos observar, que de modo geral, essas expedies avanaram nas questes relacionadas aos entendimentos dessa realidade natural e seu habitante, o ndio. Surgiram concepes e metforas que tentaram explicar a relao cotidiana indgena, associando terra e cosmo, mitos e ritos. No entanto, o que mais impressionou essas expedies foi a beleza natural da regio, atraindo diferentes europeus e brasileiros que aqui chegaram e buscaram transformar o outro em si mesmo103. Apesar da existncia de um grande nmero de textos sobre o ndio e seu habitat natural, na verdade, tornou-se difcil ao branco o entendimento das questes polticas e jurdicas referentes ao outro (ndio) que se mostrou diferente de tudo que ele havia encontrado. Assim, eliminando o que no compreendia, o portugus/brasileiro abriu o caminho da poltica integracionista, com um discurso liberal propagador do reconhecimento do ndio livre (civilizado) e declarando-o apto ao direito de usufruir da sociedade nacional. O universo indgena foi identificado pelo europeu e brasileiro como parte de uma terra que cumpre dominar. Os ndios apresentaram aos brancos suas
102. SPI Servio de Proteo ao ndio, um rgo federal criado em 1916 para oferecer assistncia aos povos indgenas. Em 1968, a FUNAI (Fundao Nacional do ndio) substituiu esse rgo. 103. Essa viso de cunho antropolgico foi desenvolvida por Lvi-Strauss (1991), no livro Histoire de lynx, no qual ele considera o encontro entre brancos e ndios como um trgico mal entendido: de um lado os amerndios e o seu habitat natural aberto ao Outro (o branco) que se apossou do amerndio transfigurando-o em branco. Apud. PERRONE-MOISS, 1999: 348-9. Dentro desse contexto, todos os povos desenvolvem concepes e metodologias para entender o Outro e o mundo.
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organizaes sociais sem Estado (CLASTRES, 1990), modos de produo, formas de conhecimento e cosmologia, constitudos em princpios de troca coletiva
(homem ciclos da natureza), que no foram respeitados.
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entre terra e gua, que haviam sido exploradas por missionrios, militares e cientistas, nos divisores de guas com o Essequibo e com o Orinoco. O ndio, como parte dessa regio em disputa, servia de guia e, nesse contexto da pluralidade tnica e lingstica indgena, o branco (europeu e brasileiro) perdia-se entre as diversas informaes cartogrficas que apontavam rotas fluviais e trilhas, tanto na orientao territorial como na prtica garimpeira (RICE, 1978). Por outro lado, por meio da leitura natural do ndio, esse vasto territrio era visto como um velho amigo, um parente e, ao mesmo tempo, como abrigo. No entanto, para o branco, toda aquela rea era sinnimo de incompreenso. Como essas vises diferenciadas, acrescidas oposio entre interesses coletivos (do ndio) e particulares (do branco), estruturaram a relao de poder do eu sobre o outro? Do ponto de vista histrico, no encontramos estudos amaznicos que mostrem com maior clareza esse processo o qual foi a unificao dessa regio cultura nacional, mas podemos dizer que parte dessa questo est fundada no modo de relao envolvendo Estado, ndios e sociedade nacional, na modalidade de conduzir propostas polticas e econmicas sem reconhecer as diferenas, privilegiando o interesse individualista e a propriedade privada. Nessa perspectiva, desde 1930, a maneira como foi conduzida a prtica da minerao na bacia do Rio Branco, com grandes contingentes de garimpeiros e mineradoras, no deixou registro da exata quantidade de ouro e diamantes que foi extrado dessa regio. Tal prtica se estendeu entre as dcadas de 1940 a 1950, quando se registrou uma diminuio do fluxo de garimpeiros na regio. A partir de 1943, com a instalao do Territrio Federal do Rio Branco 104, a responsabilidade da minerao passou para o governo local, mas os dados
104. Aps a Constituio brasileira de 1937, durante o governo Vargas, foram criados os Territrios Federais, entre eles o do Rio Branco que ser o assunto do prximo captulo.
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continuaram imprecisos. Entretanto, levantamentos do IBGE registraram uma produo de diamantes em 1947 de 19.029 quilates105 e em 1950 um total de 13.719 quilates. Em relao ao ouro, no encontramos registros. Segundo o
IBGE, a dificuldade no registro da minerao aurfera decorre da sonegao de
informaes pelos empresrios do ramo e da clandestinidade da garimpagem. s vezes, ocorre tambm a conivncia das autoridades locais. Entre as dcadas de 1960-70 a minerao continuou gradativamente e teve novo impulso, especificamente a produo de ouro, no final da dcada de 1980 e incio de 1990. Apesar do registro dessa prtica de minerao em Roraima, a sociedade local no tem conhecimento claro sobre a minerao e os registros das implicaes ambientais e scio-culturais causadas nessa regio com a instalao e operao de mineradoras que parecem preocupadas apenas com seus lucros e no com o bem-estar da sociedade local. Novamente, o IBGE registrou dados aproximados de 12.871 quilates de diamantes, em 1986 e de 104 quilogramas de ouro, tambm, em 1986. Em 1990, a produo de diamantes foi 100.000 quilates e a de ouro foi 5.646 quilogramas, tambm, no mesmo ano. Tornou-se voz corrente em Roraima que toda essa atividade garimpeira, especialmente do ouro, com investimentos de empresas mineradoras privilegiadas pelo poder poltico e econmico, no deixou lucros para o desenvolvimento da regio, ao contrrio, aumentou os bolses de misria. Foi intensificado, nessa regio, o contato com os ndios, que foram desaparecendo por enfermidades ou foram abandonando a regio, migrando para Boa Vista, engrossando a periferia urbana como mo-de-obra disponvel e maior dependncia do governo estadual (CIDR, 1989 e 1990; FERRI, 1990; EUSEBI, 1991). Sobre essas implicaes citadas, pouco foi discutido pelas autoridades governamentais e no-governamentais responsveis por esse modelo de
105.
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desenvolvimento na Amaznia. A sociedade local (ndios e no-ndios) desconhece o resultado de tal processo desenvolvimentista de explorao de minrios. Tudo parece ser apenas uma mera transferncia de matria-prima que no traz desenvolvimento para Roraima, pois no a torna auto-sustentvel nem melhora as condies de vida para sua populao. Apesar da falta de informaes concretas sobre essa temtica, a partir de 1975, foi divulgado o mapeamento mineral das terras de Roraima procedido pelo Projeto Radam-Brasil. Esse mapeamento revelou que a reserva indgena Yanomami, por exemplo, possua ouro, urnio, cassiterita e estanho. Aps a divulgao dessa notcia, no final de seu governo, o presidente Jos Sarney franqueou iniciativa privada o direito de minerar, abrindo uma incontrolvel explorao mineral na regio de Roraima (EUSEBI, 1991:43/46). Essa ao do governo federal recebeu o apoio poltico e institucional do governador nomeado para Roraima, Romero Juc Filho (ex-presidente da FUNAI) que governou o Estado de outubro de 1988 at abril de 1990106, durante a fase final de transio de ex-Territrio Federal para Estado Federado. Na ocasio, foram divulgadas para o Brasil e para o mundo a descoberta de novas jazidas de ouro na regio norte e oeste do novo Estado. Propagou-se por meio da imprensa que 50 mil garimpeiros107 haviam chegado a Roraima, buscando confirmao sobre a existncia desse imenso solo aurfero na bacia do Rio Branco. Desse modo, entre os anos de 1987 at 1990, a capital de Roraima foi considerada a cidade do ouro. O movimento migratrio na busca do ouro provocou violentas tenses sociais, culturais e econmicas na vida do homem
Nessa data, Romero Juc deixou o governo para concorrer s eleies que elegeriam o primeiro governador do Estado. Na disputa do segundo turno, Romero Juc (PDS) obteve 44,89% dos votos, perdendo para Ottomar Pinto (PTB) que foi eleito com 50,33%. 107. Grande parte dessa massa social era constituda de homens com idade entre 15 e 30 anos, analfabetos e desempregados, aventureiros, traficantes, bandoleiros, criminosos, pistoleiros, prostitutas (os), entre outros. Assim como os ndios, os garimpeiros eram tambm explorados e vtimas das desigualdades sociais.
106.
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roraimense. O Aeroporto Internacional de Boa Vista recebeu um grande fluxo de pequenas aeronaves que se deslocavam para os garimpos espalhados em vrias localidades da regio. No h informaes ntidas sobre o total de pistas de pouso clandestinas, nesse perodo. Vrias mudanas ocorreram: o comrcio foi ampliado; houve maior investimento nos materiais utilizados na prtica do garimpo, os pontos e escritrios de negociao aurfera ganharam ruas inteiras, conhecidas como Ruas do Ouro. Alm do grande aumento demogrfico, a cidade de Boa Vista viveu o seu maior perodo de inflao, com as transaes comerciais negociadas no peso de ouro como unidade monetria. A mdia nacional divulgou que somente a regio de Roraima que faz fronteira com a Venezuela (rea da reserva Yanomami) possua reservas de bilhes de dlares s em ouro e cassiterita, a matria-prima do estanho e outros bilhes em diamantes, cobre, prata, bismuto, zinco, nibio, molibdnio e minerais radiativos:
O direito de explorao de toda esta riqueza est requerido por 21 grupos, que renem das mais importantes empresas mundiais de minerao aos maiores pilantras brasileiros. A populao pequena e primitiva: 7 mil ndios (Yanomami) e 45 mil garimpeiros, que invadiram a regio nos ltimos 2 anos, vindos dos mais diversos pontos do Brasil. De agosto de 1987 at agora, este pas produziu 25 toneladas de ouro, qualquer coisa em torno de 300 bilhes de dlares, mais do que faturou a Votorantin, a 96 maior empresa brasileira. Um PIB per capita de US$ 5.769, sem contar a produo local de bens e servios. O ouro a moeda e, nas relaes de troca com os pases vizinhos, se vive aqui um perodo de deflao: as coisas custam cada vez menos. Culturalmente, um pas muito estranho: convivem uma civilizao comunista da idade da pedra e as ltimas aventuras capitalistas do final do sculo 20, que empregam rudimentares sistemas de recuperao de ouro e o que h de mais moderno em termos de tecnologia de transporte areo e comunicaes. Com base na Constituio, e para poder mandar no seu prprio nariz, Roraima quer a transferncia, do governo federal para o governo estadual, de todos os ttulos de requerimentos de reas minerais na regio do Projeto Meridiano 62. A partir da, os idealizadores do projeto pretendem fazer o que acham que o governo federal devia ter feito: regularizar a atuao dos garimpeiros que j esto na rea, transformando-os em cooperativas ou pequenas e mdias empresas mineradoras, com prioridade para as que atuam no estado; disciplinar a atividade de minerao em moldes modernos; e pagar aos ndios 10% de royalties sobre o total do minrio retirado de suas terras (JB, 25/06/89, p. 14, 1 caderno).
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Para o jornalista, Joo SantAna do Jornal do Brasil, essa situao conflitante entre ndios, mineiros e empresrios em Roraima, na fronteira com a Venezuela, foi decorrente da ausncia de governo. Tal fato possibilitou o surgimento de um pas independente em plena Amaznia Legal, a oeste do meridiano 62, no Estado de Roraima. Joo afirmou que reinou um clima de faroeste, no qual prevaleceu o poder econmico e os interesses individuais de governos e organizaes no-governamentais (locais, nacionais, internacionais). O jornalista denunciou que no houve respeito por parte do rgo responsvel por essa problemtica que seria o Ministrio das Minas e Energia. Contudo, tal Ministrio pareceu omisso e de acordo com as notcias veiculadas na mdia local/nacional, com apelos para que esse rgo federal fizesse alguma coisa, sob alegao de que faltavam recursos e o setor estava sempre no dficit. A Constituio Federal de 1988, no art. 231, 3, dispe:
O aproveitamento dos recursos hdricos, includos os potenciais energticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indgenas s podem ser efetivados com autorizao do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participao nos resultados da lavra, na forma da lei.
Assim, ao estabelecer princpios sobre essa questo, a autorizao de explorao mineral em terras indgenas deveria ser submetida, caso a caso, deciso do Congresso, sendo necessrio ouvir os ndios. Contudo, transcorridos os ltimos anos do sculo XX, ainda no tinham sido decididos (em legislao ordinria) critrios especficos para que essa explorao pudesse ser efetivada de maneira eficaz, atendendo s necessidades da populao roraimense (ndios e no-ndios). Em vez disso, novamente a regio de Roraima foi transformada num campo de guerra entre as foras de poder poltico e econmico. No meio desse fogo cruzado, estavam os ndios que no tm na sua cultura a prtica de circulao do capital. Segundo o texto do jornalista acima citado, o governo estadual solicitou ao governo federal, com base na Constituio Federal/88, transferncia dos ttulos
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de requerimentos de reas minerais na regio do Projeto Meridiano 62. Em agosto de 1987, o projeto produziu 25 toneladas de ouro, cerca de 300 bilhes de dlares. Habitavam na regio 7 mil ndios Yanomami e 45 mil garimpeiros. Essa rea do projeto estava inserida numa rea contnua de 54.691 km delimitada para os ndios Yanomami, que estavam em litgio com os municpios de Boa Vista, Alto Alegre, Mucaja e Cararcara, que tinham parte de seus territrios dentro da reserva108. Diante da situao de complexa trama de interesses poltico e econmico, o governo estadual pretendia regularizar a atividade de minerao, criar cooperativas ou mdias empresas mineradoras, pagar aos Yanomami 10% de royalties do total do minrio extrado de suas terras. Uma dvida surgiu: como o governo estadual iria garantir tais direitos aos ndios e dar apoio poltico e institucional invaso dos garimpeiros? Sabe-se pela mdia local que as mineradoras e garimpeiros no receberam autorizao do Congresso Nacional. No entanto, soube-se que os governos federal e estadual liberaram uma franquia para as mineradoras sem autorizao dos Yanomami para essa explorao em suas terras. O governador, ex-presidente da Funai, em 1988, assinou o decreto que dividiu a rea contnua dos Yanomami109 em 19 ilhas, reduzindo 70% da referida rea (cf. EUSEBI, 1990:45), favorecendo as mineradoras. Na ampliao da disputa de poder poltico e econmico, viabilizada pelas agncias financeiras e organismos polticos associados ao G-7110 e pela presso das organizaes ambientalistas internacionais, a equipe administrativa do governo brasileiro retomou o assunto da minerao em Roraima. Assim, em
Essa questo envolvendo os limites dos territrios municipais e das reservas indgenas ser tratada no captulo 4 e retomada no 5. Os comentrios feitos aqui tiveram como referncia fontes da Funai de 1993. 109. Yanomami, etnia de tronco lingstico no identificado, habitando mais de 200 aldeias e subdivididos em quatro grupos lingsticos: Yan, Yanom, Yanomam, Sanum. 110. Estados Unidos, Canad, Alemanha, Frana, Gr-Bretanha, Itlia e Japo (cf. Introduo, Nota 4, p. 27).
108.
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1990, por ordem do Presidente Fernando Collor, o garimpo entrou em desarticulao, com bombardeamento de dezenas de pistas de pouso pela polcia federal, quando foi desmontada, na capital Boa Vista, toda a estrutura dos comerciantes do garimpo: compra e vendas do ouro, de maquinrio, servios de vo, entre outros. No entanto, de forma lenta e clandestina o garimpo continuou. No decorrer do ano 2000, novos focos de explorao de minrio (ouro) nas terras Yanomami111 foram divulgados pela mdia local/nacional. Tanto no passado como no presente, os representantes em favor dos direitos do ndio acusavam as autoridades do poder pblico como co-responsveis por essa situao violenta envolvendo as etnias indgenas e garimpeiros. Em alguns casos, torna-se evidente a omisso, impotncia e conivncia estatal:
Durante reunio do colegiado do Ncleo Interinstitucional da Sade Indgena (NISI), no dia 14/setembro passado, o presidente da URIHI (Ong de Sade Yanomami), Cludio Esteves fez denncias ao Ministrio Pblico Federal (MPF) e ao Presidente da FUNAI Glnio Alvarez e ao Administrador Regional da FUNAI, Martinho Alves de Andrade Jnior, sobre a crescente escalada de violncia entre os Yanomami, incitada pelos garimpeiros que fornecem armas e munies aos grupos rivais. H ndios que tentam reagir contra o garimpo e so assassinados. H tambm ameaas dos garimpeiros contra a equipe de sade. (...) O Antroplogo responsvel pela URIHI disse que h na regio cerca de 400 garimpeiros atuando na regio Yanomami. Afirmou que cerca de uma hora de caminhada da aldeia Wath-u, localizada a menos de 20 quilmetros do 4 Peloto Especial de Fronteira do Exrcito e do Posto da FUNAI, em Surucucu, h pista de pouso. H divergncias sobre o garimpo entre ndios Yanomami orientados e manipulados por garimpeiros. Os Yanomami que recebem os presentes apiam a explorao do ouro (FBV, 20/09/00, p. 7).
Neste cenrio de defesa tanto da etnia indgena (cidado tnico) como da sociedade nacional local (cidado brasileiro), os rgos federais responsveis possuem duplicidade na funo. Como primeiro habitante da terra em disputa, com reconhecimento de direitos pela Constituio Federal de 1988, o ndio no consegue compreender porque o branco criou normas indigenistas que no cumpre. Nesse embate, o no-ndio tambm est amparado pela referida
111.
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Constituio e denuncia que os rgos federais no fazem cumprir as leis existentes dando assim uma soluo para os impasses inserindo o Estado, os ndios e os no-ndios, transformando esse panorama negativo de Roraima. Contudo, esse conflito envolvendo direitos de propriedade e respeito cultural, aps a Constituio de 88, no deixou claro para a sociedade nacional local que a figura do caboclo112 tinha mudado e ganhou o reconhecimento diferenciado do nacional e direitos na participao, no poder poltico e econmico, na distribuio da riqueza, especificamente, a posse e usufruto da terra. Na mdia local, surgiram debates que tentaram esclarecer tal problemtica relativa aos direitos dos ndios.
112. Em Roraima, aps a Constituio Federal de 1988, o caboclo transfigurou-se, novamente, e ganhou status de cidado tnico reatando os laos de parentesco com a terra, reconhecidos nos artigos 231 e 232 da referida Constituio. Trataremos desse assunto no prximo item e, tambm, no Captulo 3.
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1758, pela Reforma Indigenista do Marqus de Pombal113, que tirou o poder temporal dos missionrios sobre os ndios aldeados. Tal ao, diminuindo o poder poltico-religioso dos missionrios catlicos sobre a populao indgena, era causada pela mudana evangelizadora da Igreja que passou a disputar com o Estado o poder poltico-econmico da aldeia. Em 1759, o Marqus expulsou a Ordem Jesuta do Brasil, ameaadora da poltica pombalina, e os missionrios das diferentes ordens catlicas na Amaznia tornaram-se apenas os catequizadores dos Aldeamentos, que tinham como administrador um principal114, o ndio sdito do rei e representante do interesse da Monarquia em sua prpria terra. No entanto, nesse processo de pacificao do ndio pelos religiosos catlicos, observa-se no cotidiano prtico que eles foram ganhando participao tanto no poder poltico estatal como nas discusses de polticas indigenistas, ao longo do sculo XX. A partir de 1911, com o apoio do Estado, os missionrios beneditinos fundaram uma escola profissionalizante indgena beira do Rio Surumu. Nessa misso do Surumu, em funo da poltica humanista adotada, a profissionalizao dos ndios gerou discusses entre religiosos e ndios aldeados, cujo tema central era o destino dos ndios de Roraima. A Constituio de 1891 no fez referencia ao ndio, mas na reorganizao do Estado federativo com os olhos voltados para as fronteiras, os constituintes pensaram nos ndios (fronteiras vivas) e, em 1910, criaram o SPI (Servio de Proteo ao ndio) com viso humanista dos ndios, sob a chefia do Marechal Rondon. Dessa forma, o papel da Igreja continuava atrelado s normas pombalinas: funo nica de catequizar o ndio, deixando de fora as questes polticas indigenistas que eram funes do Estado, que tinha o apoio do ndio na figura do Principal. No entanto, no sabemos como e porque a Igreja Catlica de Roraima foi assumindo parte nesse jogo de poder poltico indgena na regio.
113. 114.
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Foi nesse perodo, que se acirraram as disputas pelo controle de certas reas de atuao poltica sobre os ndios. Mas foi com a Misso Consolata, na segunda metade do sculo XX, que o movimento dos ndios teve maior solidariedade em favor de sua causa. Os religiosos da Consolata deram continuidade aos projetos dos beneditinos e ampliaram os programas (educao, sade, agricultura, pecuria, religio) estabelecendo novos convnios com o Governo do Territrio Federal do Rio Branco. Desse modo, os convnios estabelecidos entre Igreja e Estado na conduo de uma poltica indigenista voltada para qualificar os ndios e integrlos sociedade nacional local marcaram, na primeira metade do sculo XX, disputas entre o SPI e a Igreja Catlica de Roraima, representada, inicialmente, pela Ordem Beneditina. Os inspetores do SPI local passaram a ver os missionrios beneditinos como concorrentes no processo de poder poltico econmico da interveno legisladora dos povos indgenas. Nessa competio de poder sobre a populao indgena, os inspetores denunciavam que o educandrio catlico para meninas na cidade de Boa Vista era mais uma casa de escravizao de menores, pois eram obrigadas a servios pesados por horas a fio (CIDR,
1989:32).
Essas duas instituies desenvolveram projetos de interveno local junto a vrios grupos indgenas na rea da sade, educao, atividades agrcolas, formando quadros de pessoal especializado para o mercado local. No entanto, os ataques entre os representantes das duas instituies tornaram-se acirrados, especificamente, em relao s escolas e aos internatos indgenas. Os missionrios no se entendiam com as lideranas polticas da regio que apoiavam o SPI. Nesse cenrio de denncias e ameaas, a opinio pblica de Boa Vista, influenciada pelos discursos dos inspetores do SPI, que alertavam para a
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necessidade de transformar esses selvagens em civilizados, engrossava os conflitos entre civis e religiosos115. Nesse contexto, as presses dos inspetores do SPI visavam barganhar uma parte das vultosas verbas governamentais que eram destinadas Prelazia do Rio Branco, no apoio e assistncia educacional do ndio. Para alcanar tal objetivo, a inspetoria tinha resolvido transformar o sanatrio General Rondon em um instituto para menores indgenas. Contudo, essa transformao do sanatrio para instituto de menores indgenas no aconteceu. Apesar dos inspetores do SPI manterem boas relaes com a elite e as lideranas polticas de Boa Vista, enfrentavam problemas financeiros e inquritos sobre escndalos de violncias sexuais envolvendo funcionrios do SPI e adolescentes indgenas (CIDR, 1989). A partir de 1949, o Instituto Missionrio da Consolata, originrio de Turim, na Itlia, assumiu o trabalho religioso que vinha sendo exercido pelos beneditinos e a nova ordem religiosa alargou os projetos de evangelizao catlica e escolas para os ndios e os no-ndios. O ginsio Euclides da Cunha, como exemplo, foi fundado em 1950, com quatro salas de aula e um total de 120 alunos, oferecendo curso ginasial, em regime de externato misto para os filhos da sociedade roraimense. Em fins da dcada de 1960 e comeo de 1970, surgiram, no Brasil, movimentos populares e de esquerda em busca de liberdade cultural e direito do exerccio de cidadania116. Eles enfrentaram, porm, dificuldades para romper o cativeiro poltico, ideolgico e, tambm, espiritual. Foi um perodo de embates entre a classe civil, militar e religiosa brasileira, de ruptura entre setores da Igreja
115. Essa temtica no est devidamente documentada, merecendo maiores estudos. Porm, corrente entre relatos e entrevistas de uso da Histria Oral que esses conflitos polticos e religiosos na primeira metade do sculo XX foram marcados por violentos confrontos entre representantes religiosos, representantes governamentais e da sociedade local. De maneira sutil, Rice (1978) fez referncia a essa disputa do poder local incorporando grupos civis, militares e religiosos, durante explorao de reconhecimento na regio, em 1924. 116. Movimentos estes bastantes ligados ao genrico ideais e prticas das propostas marxistas-leninistas, dos movimentos de guerrilha na Amrica Latina, da revoluo cubana, dos comportamentos de contracultura, do maio francs (1968), do ps-64 brasileiro, das representaes e organizaes sociais de postura nacionalista, etc.
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Catlica e do Estado, que abriu uma discusso envolvendo os grandes proprietrios de terra e a grande massa de trabalhadores do campo, expulsa das reas rurais e que aumentou os bolses de misria nas periferias urbanas
(MARTINS, 1989).
Nesse perodo de crise, aconteciam conflitos envolvendo tanto disputas poltico-ideolgicas quanto embates entre escales diversos (grupos polticos, intelectuais, missionrios catlicos). Foram conflitos envolvendo diferentes segmentos sociais, em geral, pertencentes s classes mdias intelectualizadas (artistas, jornalistas, professores, estudantes, etc.), partidos de esquerda, esferas do movimento estudantil, do operrio, do campons e parte da Igreja Catlica compromissada com a Pastoral da Terra e Teologia da Libertao. Toda essa movimentao social e poltica, no campo e na cidade, possibilitaram a participao dos movimentos indgenas que tambm se organizavam. Nesse embate poltico e scio-cultural, os representantes catlicos (defensores da teologia da libertao) denunciavam a opresso tanto do homem campons como do ndio na sociedade nacional. Os ndios, que teoricamente estavam tutelados117, na prtica, continuavam marginalizados e vistos como um grupo social no-civilizado, em vias de extino. Do ponto de vista jurdico, o ndio que no solicitar ao juzo competente a sua liberao do regime tutelar, preenchendo um conjunto de requisitos, de idade mnima de 21 anos, no estar habilitado para o exerccio de cidadania civil. Todo esse processo que considera o ndio capaz de exercer os atos da vida civil denominado de emancipao. Tal termo, que para certos segmentos da sociedade tinha o carter unicista da cultura nacional, abriu novas discusses:
117. Buscando definir uma poltica indigenista que no alternasse, de acordo com o interesse do momento, entre paternalismo e integracionismo , a FUNAI ganhou nova funo que foi estabelecida pela lei n. 6001 (19.12.73), identificada como Estatuto do ndio.
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Indgena no Brasil de hoje, essencialmente, aquela parcela da populao que apresenta problemas de inadaptao sociedade brasileira, em suas diversas variantes, motivados pela conservao de costumes, hbitos ou meras lealdades que a vinculam a uma tradio prcolombiana (RIBEIRO, 1979:254).
A ironia do antroplogo situa com preciso a que levou o caminhar rumo ao nacional de grande parcela de nossos indgenas. Nessa situao de contato a estrutura de poder do Estado forou a destribalizao desses povos indgenas. Em Roraima, esses acontecimentos adversos associados ao processo de polticas indigenistas, envolvendo os missionrios catlicos, as lideranas polticas e os representantes da sociedade local, repercutiram em variadas posturas entre esses representantes. Observou-se, no interior desses posicionamentos, insuficincia terica e presena de concepes preconceituosas, em razo dos antigos problemas interpretativos da cultura do ndio, que no foram resolvidos ao longo do processo de integrao indgena na sociedade nacional, camuflando essa problemtica da posse da terra e da cultura do ndio com tratamento diferente do nacional e parecendo no existir. No bojo dessas discusses, surgiram outros conceitos como o de necessidades das sociedades, o de direitos que se apoiavam em regras universais. Algumas lideranas catlicas e indgenas resolveram apelar para os fundamentos nos direitos internacionais e autctones elaborados pela Organizao das Naes Unidas (ONU) e no de modelo de desenvolvimento chamado de auto-sustentvel118. Preocupados em legalizar a situao dos ndios e de suas terras, buscando propagar esperana na superao das desigualdades sociais e econmicas, essas lideranas reconheceram os limites e as aes polticas e culturais de cada grupo, em um amplo processo democrtico (CASTORIADES &
COHN-BENDIT, 1981).
118.
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Nessa regio amaznica, onde emergiam preocupaes latifundirias, tenses culturais e polticas entre ndios e no-ndios, esses novos conceitos ampliavam as confusas interpretaes entre as lideranas dos ndios, da Igreja Catlica, do Estado e da sociedade local que, num discurso liberal, preconizavam a participao de todos os habitantes da regio, na poltica governamental. Foi nesse perodo (final de 1960 e decorrer de 1970) que apareceram referncias da realizao de encontros entre os lderes indgenas (Makuxi, Wapixana, Taurepang, Ingarik), na escola da misso de Surumu119, com apoio da Igreja Catlica, pela busca de direitos da identidade tnica, numa reestruturao da sua prpria cultura no contexto nacional (CIDR, 1989). Os ndios passaram a mostrar, por meio de suas reivindicaes, que o momento poltico era outro, que o perodo da sujeio do ndio ao branco era uma situao do passado. Nesses debates, as lideranas e os missionrios procuravam anular a imagem do ndio como o no civilizado ou em vias de extino, duas representaes que caracterizaram a compreenso das etnias indgenas pelo senso comum. Os ndios apresentaram modelos de necessidades distintas do modelo capitalista/nacional, com base na explorao agrcola e pecuria. No modelo indgena, o centro das necessidades era o reconhecimento da cultura: os ritos, os mitos que organizavam o social satisfazendo formas de necessidades da vida coletiva e de parentesco com a terra. Contudo, surgiram ndios que, na relao de pacificao/integrao na sociedade nacional local, na introduo das necessidades econmicas do sistema capitalista, abandonaram essas formas scio-culturais coletivas e de parentesco
119. Por meio dos cursos profissionalizantes e discusses sobre o papel do ndio na sociedade local, os ndios que freqentavam a misso do Surumu ganhavam certos entendimentos sobre liberdade identitria e cultura indgena. Nessa regio, os lderes indgenas realizavam encontros para discutirem sobre a problemtica situao do ndio, no processo de integrao na sociedade nacional, especialmente as questes relacionadas terra, alcoolismo e prostituio. As reunies recebiam apoio dos missionrios catlicos e leigos vinculado ao CIMI (Conselho Indigenista Missionrio) defensores dos direitos dos ndios como primeiros habitantes da regio (CIDR, 1989 e 1990).
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com a terra. Eles apresentaram um modelo indgena vinculado a uma rede de interesses (individual/coletivo), com um conjunto de necessidades, no qual o econmico tornou-se o centro. Diante dessa nova postura, as reaes dos ndios em busca de direitos e desenvolvimento com apoio dos missionrios catlicos, sem respaldo jurdico nacional, no eram aceitas pelo Estado e nem pela sociedade local durante essa fase de conduo poltica para um sistema democrtico. A poltica indigenista e o conflito entre reivindicaes de direitos e desenvolvimento, presentes na contempornea histria local, no se desvinculou da herana cultural de no saber lidar com o outro que diferente, eliminando o que incomoda
(VERHELST, 1992) na realizao do interesse estatal em jogo.
Desta forma, outra vez, o exerccio de direito por coero social, que garantiram os princpios de usurpao da terra amaznica (e do ndio como parte dela) pelos europeus no sculo XVI e legalizada (como direito de posse) em favor dos portugueses com o Tratado de Tordesilhas (1750), aqui interpretado como extino dos direitos do ndio sobre a terra e sua organizao scio-cultural, parece perdurar no incio do sculo XXI em Roraima. Para o exerccio do direito por ndios e brasileiros, na busca de solucionar o impasse de identidade e da propriedade, o desafio dever ser o de fundamentar modelos de reconhecimento dessas mudanas e das novas necessidades sociais em Roraima, diante do novo tempo: quem e quem no ndio? Como usufruir os recursos da terra respeitando-se os direitos de concepes individuais e coletivas? Sem respostas e uma efetiva soluo para os impasses, as etnias indgenas, com o apoio da Diocese de Roraima120, a partir da segunda metade dos anos 70,
120. A Diocese foi instalada na segunda metade dos anos de 1970, tendo como primeiro Bispo Diocesano D. Aldo Mongiano (da Misso Consolata), momento de maior discusso da causa indgena e ampliao da solidariedade aos ndios, tanto pela Diocese como por instituies oficias e no-governamentais (nacionais e internacionais).
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registraram nos seus encontros (reunies ou assemblias indgenas no Surumu) reaes de descontentamento com relao aos seguintes pontos: a) questo do direito de usufruto e posse da terra; b) o processo educacional do governo local que eliminava os atributos da cultura do ndio; c) o no reconhecimento de seus direitos sociais e culturais, com base no processo etno-histrico amaznico, com organizao social diferenciada (ausncia de Estado) e primeiros habitantes (a terra era ao mesmo tempo abrigo e parente). Neste horizonte de conscientizao identitria do ndio, as figuras do tuxaua121 e dos lderes122 indgenas ganharam fora poltica como novas formas de representao e organizao scio-cultural que passaram a conduzir e alterar a nova ordem poltica e organizao da vida na maloca. Mesmo assim, o sentimento de insatisfao tem se mostrado muito forte entre os ndios que no vm encontrando apoio governamental para solucionar esse conflito entre ndios e no-ndios, com as mudanas ocorridas nas ltimas dcadas do sculo XX. Durante a realizao de Assemblias Indgenas, na misso Surumu, com o apoio da Diocese de Roraima, destacamos alguns contedos desse novo momento:
O Tuxaua Laurindo, Makuxi da Maloca Cantagalo, afirmou: Meu av dizia que, desde o comeo da maloca do Limo at o Monte Roraima, a terra dos ndios. Como que, ento, tem muitas fazendas? Eles sabem que a terra nossa. Tem muitos cajueiros no p da serra da Memria, e foram os meus avs que plantaram (CIDR, 1990:57). O Tuxaua Chico Ernesto, Wapixana da Maloca do Livramento, disse: Temos o problema da terra; somos poucos, mas temos que segurar o que nosso. A FUNAI prometeu muitas vezes a demarcao das terras, mas s papo furado. Os gachos chegam, cercam muita terra e querem sempre mais, provocando brigas. Os velhos tuxauas falam do tempo de Rondon, que deu para eles uma farda e uma corneta. Rondon dividiu as terras entre os ndios (CIDR, 1990:57).
121. De acordo com as narrativas de alguns velhos Makuxi e Wapixana, o termo Tuxaua foi criado pelos missionrios da Guiana e para outros foi pelo General Rondon, que ao nomear o lder indgena deu uma farda militar e uma trombeta. Hoje o Tuxaua identifica o chefe da maloca e eleito pela comunidade indgena. Antes do contato com o branco, a maloca era governada por um conselho de ancios. 122. Jovens ndios, instrudos no ensino formal, que foram se destacando como auxiliares dos tuxauas nas articulaes polticas entre a maloca e o Estado ou entre a maloca e as organizaes oficiais e no-governamentais nacionais e internacionais.
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Os ndios no concordam com a poltica desenvolvida pela Funai que no consegue proteger os direitos dos ndios e nem expulsar os brancos das reas demarcadas para as etnias indgenas. Ao interpretar o momento presente, o ndio faz uso da memria cultural tribal que , ao mesmo tempo, o documento histrico sobre o passado e o presente, desde o comeo a terra do ndio dizia o av. Fizeram denncias sobre cobranas de impostos e taxas da propriedade, mas a Funai alertou que o ndio no paga imposto:
O Tuxaua Severino, Makuxi da Maloca de So Jorge, comentou que: Os fazendeiros cercaram as terras e ns mesmos permitimos isso. Antes o SPI defendia as terras dos ndios, depois chegaram os brancos dizendo que o SPI no existia mais e ocuparam as nossas terras. Meu pai no deixou entrar ningum e foi cadastrar a nossa terra. Depois chegou o IBRA e disse que devamos pagar e eu paguei. Depois chegou o INCRA e foi a mesma coisa. Paguei quatro vezes nestes quatro anos. Por fim veio a FUNAI. O delegado me nomeou tuxaua e disse que o ndio no devia pagar nada, porque a terra nossa ( CIDR, 1990:58).
Esse texto, publicado pelo Centro de Informao da Diocese de Roraima, nos mostra como o indgena ainda no consegue entender o Estado brasileiro e a necessidade de mant-lo com taxas, inclusive sobre a propriedade. Ou seja, embora ser cobrado, neste caso, justifica que a posse da terra lhe reconhecida, a leitura indgena incapaz de compreender sua realidade inserida no processo social nacional, o que provoca sofrimento. Por outro lado, a FUNAI no legalizou a terra e nem expulsou os invasores das reas reivindicadas pelos ndios. Assim, possvel considerar que os mecanismos polticos e jurdicos do Estado, na dominao do ndio e da terra, passam pela coero, capital e conhecimento que transformam a cultura e dividem as famlias indgenas:
O Tuxaua Alcides, Wapixana da Maloca da Barata, afirmou: Tambm na minha maloca as pessoas no esto unidas, mas acredito que, continuando o nosso trabalho, todas iro entender. Muitos pedem para trabalhar para os brancos. Eu sou contra, porque no lugar de defender o que nosso, vamos aumentar o dinheiro do bolso dos brancos (C IDR, 1990: 55). O Tuxaua Jac, Makuxi da Maloca do Arai, argumentou que: Muitas das nossas filhas casam com civilizados e depois nos tratam como bichos. Um dia fui na casa de um 148
civilizado, pai do meu genro. Fui com meu genro para pedir-lhe um emprstimo. Ele nem me convidou para entrar, deixou-me debaixo de chuva. Quando soube que era eu ainda disse: - Ah!, pensava fosse gente mas s um caboclo. Por isso que eu digo s minhas filhas que no casem com civilizados (CIDR, 1990:55).
Os textos acima evidenciam a conscincia poltico-econmica do ndio que faz denncias sobre a ruptura de sua prpria estrutura organizacional, motivo de sofrimento ao pensar nos parentes integrados. Desta forma, muitos trabalham para o branco, aspiram desfrutar das benesses da vida do branco que o v como bicho e, aparentemente, recusa relaes de dependncia. No conjunto de necessidades123 do ndio, utiliza-se dois caminhos: necessidades coletivas ou necessidades individuais/privadas. Por meio dessas Assemblias Indgenas, em geral realizados na misso do Surumu, a Diocese de Roraima reordenou sua poltica indigenista e buscou apoio nacional e internacional para resolver essa problemtica indgena. Para os missionrios catlicos, os ndios e os no-ndios podem conviver em consenso numa mesma regio. No entanto, em razo da indefinio fundiria e de uma poltica econmica privilegiando a elite social, a histria do tempo presente roraimense definida por violentos confrontos envolvendo Estado, ndios e nondios na disputa de propriedade da terra e no usufruto dos recursos ambientais. Em meio aos sentimentos de insatisfao, voz corrente na sociedade local indagar por que o pensamento humanista da Diocese de Roraima, que optou radicalmente a favor do reconhecimento identitrio e da terra do ndio, abandonou a massa populacional pobre, habitando os bolses de misria da periferia de Boa Vista, abrindo caminho para as misses protestantes. Tal questo, evidentemente, merece tratamento autnomo, no possvel no presente trabalho.
123. O conceito faz parte da proposta de desenvolvimento sustentvel de explorao ambiental em prol da coletividade, que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer as das geraes futuras (cf. WCED. Our Common Future. 1987).
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A partir de 1968, por iniciativa dos padres da Consolata, os tuxauas de algumas regies comearam a reunir-se. A ocasio era dada pelos cursos de instruo religiosa que os padres desenvolviam, geralmente, na misso de Surumu, onde funciona o internato. Estas reunies anuais davam aos tuxauas a oportunidade de encontrarem-se e, fora das palestras dos padres, discutirem os problemas das malocas (CIDR , 1990:43).
Essa iniciativa dos ndios foi influenciada pelos movimentos sociais que vinham acontecendo dentro e fora do pas. As reunies indgenas no Surumu foram o marco desencadeador de significativos confrontos culturais e polticos entre os prprios ndios e de suas relaes com segmentos da sociedade roraimense. Entres os movimentos que instigaram as reivindicaes dos ndios estavam os de atuao das esquerdas (intelectuais nacionalistas, dos operrios e camponeses) que buscavam uma identidade nacional de interesse comum, inspirados nas manifestaes culturais e populares, e nas revises scio-polticas defendidas por intelectuais que apontavam novos caminhos em defesa da liberdade e justia social. Por isso, as reunies dos tuxauas e lderes indgenas com discusses voltadas para a questo da identidade tnica, fomentando reaes contra o no reconhecimento da cultura do ndio pelo branco, ganharam fora poltica aps a solidariedade da Diocese de Roraima, em fins dos anos 70. Assim sendo, no desenrolar dessas reunies, ampliaram-se os argumentos humanitrios de defesa da cultura e do direito da terra para usufruto das naes indgenas que ganharam novos adeptos:
Em 1977 a situao mudou sensivelmente. Naquele ano os padres convidaram pessoas do CIMI (Conselho Indigenista Missionrio) e modificou-se a metodologia da reunio: foi deixado todo o tempo para que os tuxauas apresentassem, livremente, problemas, sugestes, etc. Para sublinhar e reforar a mudana, naquele ano a FUNAI e a polcia federal interviram para proibir a continuao da reunio. Mas a idia de reunies diferentes j estava lanada e no era possvel voltar atrs. Em 1978, seja por medo de atritos com a FUNAI, seja por divises internas, os padres no organizaram a reunio anual dos tuxauas. Recomeou-se em 1979 e continuam a ser realizadas, todos os anos, no ms de janeiro, na misso de Surumu. Participam tuxauas e secretrios das malocas Makuxi, Wapixana, Taurepang e Ingarik. Ultimamente so coordenados pelos prprios tuxauas e servem para traar linhas comuns de ao e procurar, juntos, solues aos problemas que as
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comunidades indgenas esto enfrentando. Alm destas reunies gerais, nestes ltimos anos, realizaram-se tambm encontros regionais, para a soluo de problemas relativos regio ou em preparao para a assemblia geral (CIDR, id., ibid.).
A FUNAI,
rgo
federal
responsvel
pela
poltica
indigenista,
teoricamente, atua no projeto de proteo e emancipao do ndio. O texto publicado pela Diocese de Roraima, anteriormente citado, forneceu indcios sobre o papel desse rgo em Roraima, com apoio da polcia federal teve, no evento indgena mencionado, uma reao opressora, proibindo as reunies dos ndios do Surumu, que diferentemente dos demais, no seguiam o programa de emancipao. Na dcada de 1980, realizando assemblias e reunies, elegendo diretorias, registrando estatutos em cartrios, as etnias indgenas de Roraima foram se apropriando de novas formas de representao poltica. Ao mesmo tempo, acirraram-se as disputas pelo poder de controlar as novas representaes indgenas, pelo direito de interferir em determinados assuntos como educao e demarcao de terras. Nesse nterim, surgiram novos lderes e novas possibilidades de alianas e encaminhamento de reivindicaes junto a rgos do governo e entidades de apoio ao ndio:
Na reunio geral de 1983 participaram cerca de 250 ndios, entre os quais 72 tuxauas. Nesta, conseguiu-se dar um passo frente na organizao da defesa contra a invaso dos brancos: foi decidido, seguindo o exemplo das malocas das serras, organizar, em cada regio, um Conselho das Comunidades formados por alguns tuxauas da respectiva rea. Este conselho tem a tarefa de coordenar as atividades das vrias malocas e, em ocasio de brigas ou problemas com os brancos, apoiar as comunidades para resolverem juntos todas as questes. Nos meses sucessivos reunio, foram formados conselhos nas regies de Surumu, Cotingo, Normandia, Taiano e Serra da Lua. No contexto das reunies dos tuxauas, alm dos conselhos, nasceram novas estratgias indgenas perante a invaso: as cantinas e os projetos125 de gado para as comunidades dos ndios (CIDR, 1990:44).
As cantinas, chefiadas pelo tuxaua, comercializavam por meio de trocas, vendas e compras de produtos para os ndios na maloca. Essas cantinas substituram os pequenos comrcios de propriedade dos fazendeiros que exploravam o trabalho do ndio na troca de produtos. O preo dos produtos era decidido pelo fazendeiro e o ndio estava sempre na dependncia econmica. O projeto de criao de gado comunitrio coordenado pelos ndios desenvolveu-se com base na experincia da cantina. Com apoio da Diocese de Roraima e
125.
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A partir da referida dcada, as etnias indgenas foram, paulatinamente, ganhando espao na mdia local, nacional e internacional, realizando campanhas de defesa da identidade tnica e denncias das ameaas contra os direitos dos ndios diferenciados da sociedade nacional local. Contando com ajuda da Diocese de Roraima, os ndios promoveram encontros com a finalidade de redescobrirem a sua identidade e os seus direitos tnicos (Makuxi, Wapixana, Ingarik, Taurepang, Yanomami, Wai Wai), fazendo valer a memria cultural que registrou a vivncia dos ancestrais instalados h milhares de anos sobre o solo amaznico e organizados em sociedades estruturadas, sendo revitalizada nos contatos com os parentes isolados, habitando o interior da regio. Nessa retomada de conscincia identitria, o ndio no buscava apenas uma nova continuidade tnica, mas o reconhecimento da diferena cultural que afirma a sua prpria identidade (SEMPRINI, 1999:14). Apesar dessas articulaes organizacionais e de representao entre os ndios, com relao ao percentual da populao indgena em Roraima, no h um registro recenseador indgena. A dificuldade de um censo indgena decorre da idia de que a figura do ndio pertence ao nosso passado e porque boa parte dos indgenas recenseados se vem como brancos. Nessa confusa realidade e identidade indgena, existem, tambm, os grupos isolados ou recm-contactados, que fugiram ou que no foram envolvidos no processo de pacificao. O termo mestio (branco com ndio) no usado nessa regio, quando isso acontece faz referncia ao mestio imigrante de outras regies do pas. Os poucos levantamentos feitos sobre os ndios apresentam variao numrica entre os rgos. No entanto, fala-se de uma populao aproximada de 25 mil pessoas, distribudas em diversas etnias. As principais so: Ingarik,
tendo o Conselho Indgena como responsvel pelo projeto, os ndios receberam ajuda financeira do exterior e executaram o projeto do gado ganhando certa autonomia econmica, gerando disputas com o fazendeiro na posse da terra (CIDR, 1990:44-7).
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Maiongong, Makuxi, Taurepang, Wai Wai, Waimiri-Atroari, Wapixana, Yanomami, entre outros grupos menores, no documentados. Patrcia Ferri (1990) apresentou um estudo sobre essa temtica em Roraima e identificou uma populao aproximada de 37 mil ndios, distribudos entre as oito etnias. O ISA (Instituto Socioambiental), uma organizao nogovernamental, voltada para essas questes da populao indgena no Brasil, apontou alguns dados estimativos sobre o total de ndios de cada etnia mais conhecida no Estado:
Etnia
Ingarik
Roraima
Roraima
Ano
1994 1990 1992 1990 1992 1994 1990 1989 1992 1994 1994 1990 1994 1988 1992
(Estados e Pases)
Guiana Venezuela Roraima Venezuela Roraima Guiana Roraima Venezuela Roraima/Amazonas/Par Roraima Guiana Roraima/Amazonas Roraima/Amazonas Venezuela
O perodo de 1975 a 2000 foi assinalado por violentos embates entre o Estado e a Igreja Catlica na disputa de poder sobre o ndio. Por sua vez, o ndio se organizava em Assemblias e Conselhos, ganhando apoio de ONGs nacionais e internacionais, solidrias a sua causa. A Igreja, representada pela Diocese de Roraima, adotou novas normas com base nas instrues da Declarao universal
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dos direitos humanos, das normas internacionais enunciadas pela Conveno de Genebra N 107 da OIT (1957), das revises parciais da Conveno N 169 126 (1991) e das recomendaes relativas s populaes aborgenes e tribais, alm de outros instrumentos internacionais referentes discriminao dos povos indgenas, que foram elaborados entre os anos de 1950 e 1980. Essa poltica indigenista do governo do Territrio, que visava o processo de segregacionismo, passou a disputar, com a Diocese de Roraima, o controle nesse processo pelo qual o ndio era absorvido na cultura nacional. Nessa tarefa indigenista, a FUNAI desempenhou papel ambguo, no se diferenciando da funo do SPI, que na teoria tinha viso humanista e na prtica tornou-se instrumento opressor do ndio. Algumas vezes, junto com a Diocese de Roraima, a FUNAI apoiara e financiara formas comunitrias de criao de gado nas malocas, visando a autonomia dos ndios. Em outros momentos, junto ao governo local, ampliou o nmero de postos indgenas nas malocas e a instalao de escolas indgenas (com professores brancos) mantidas pelo governo, visando qualificao profissional indgena para o mercado roraimense. Mas, em geral, o ndio enfrentava dificuldades na conduo desses projetos, tanto por conta dos programas assistencialistas do governo (local/federal) como pelos conflitos na disputa de terra com o fazendeiro e mineradoras, que olhavam o ndio como posseiro/grileiro 127. A soluo das dificuldades esbarra na reviso constitucional e elaborao do Estatuto Indgena que tramita no Congresso Nacional desde a ltima dcada do sculo XX, geradora da manuteno ideolgica integracionista que no o reconhece como organizao social diferenciada do quadro social nacional.
126. Conveno da Organizao Internacional do Trabalho referente aos Povos Indgenas e Tribais nos pases independentes. A Conveno contou com o apoio da Organizao das Naes Unidas e do Instituto indigenista interamericano (cf. BARBOSA, 2000). 127. Esse tema ser tratado no Captulo 3 e retomado no Captulo 4.
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Ressalta-se que as etnias indgenas de Roraima iniciaram o movimento de reconhecimento tnico cultural desde a dcada de 1960 e tiveram que esperar at o final dos anos de 1980, momento da promulgao da nova Constituio Federal, para, na teoria, ganhar o reconhecimento de sua organizao social e cultural enunciados nos artigos 231 e 232. Nessa realidade concreta, o ndio emprega elementos de sua cultura em suas prticas cotidianas, que o branco julgava que j fossem extintos. Alm dessas questes, a migrao do ndio para a cidade de Boa Vista preocupou as organizaes indgenas. As constantes secas reduzindo a pesca e a caa, a baixa produtividade da roa, causando insatisfao e muita pobreza, a invaso das mineradoras em reas dos ndios, levaram grande contingente indgena para a capital Boa Vista. Vivendo nesse ambiente estranho que a cidade, os ndios reclamavam que a sociedade branca no oferecia melhores condies para trabalhos estveis128. Diante dessas dificuldades, as lideranas indgenas, por meio do Conselho Indgena de Roraima (CIR) e outras ONGs indgenas, buscavam dar apoio aos parentes129 que migraram para a capital, faziam denncias sobre os conflitos entre o Estado, os ndios e no-ndios envolvendo questes referentes aos garimpos e violncias vrias (alcoolismo, prostituio)130. Essa populao indgena que chega Boa Vista nem sempre procura a FUNAI ou o CIR (Conselho Indgena de Roraima) ou APIR (Associao dos Povos Indgenas de Roraima) que so os rgos e as duas maiores entidades nogovernamentais que do apoio ao ndio. Durante uma das vrias entrevistas
128. A mquina de fazer poltica do Estado, envolvida nas barganhas eleitoreiras, oferecia funes ou atividades no servio pblico, por meio de projetos das secretarias e pago por comisso, visando captao de votos na eleio de 1990. 129. Parente um termo usado pelo ndio para identificar a relao familiar entre os prprios ndios. Essa relao de parentesco envolve os distintos troncos lingsticos porque todos descendem dos mesmos ancestrais possuidores de vnculos de parentesco com a terra (mitos e ritos unificando o mundo csmico e o terreno). 130. Essas consideraes so baseadas em nossas entrevistas junto ao CIR e a FUNAI/RR , durante o ano de 2000, e notcias veiculadas na mdia local, nesse mesmo perodo.
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concedidas mdia local, o administrador da FUNAI/RR, Walter Bls, comentou que, em muitos casos, o ndio que abandona a maloca e chega Boa Vista no se v como ndio, j que fala portugus e tem hbitos distintos da maloca. Sobre essa mesma questo, o Coordenador do CIR, Jernimo Pereira, afirmou que o ndio quando chega cidade tem vergonha de identificar-se como ndio por causa do preconceito branco contra o ndio 131. Segundo o Coordenador do CIR existe uma grande dificuldade de vencer esse forte preconceito e conquistar seus direitos como prev a Constituio Federal de 1988 e a Estadual de 1991. Essa questo constitucional tornou-se um outro impasse poltico-jurdico, na relao do Estado com os ndios, que no compreendem o porqu da Constituio Estadual (1991) que no artigo 173 reconheceu os Direitos dos ndios, conforme os enunciados nos arts. 231 e 232 da Constituio Federal (1988), e no so aplicados: por que o Estado/Unio conserva a poltica de domnio sobre o ndio e suas terras? Os direitos dos ndios enunciados nos referidos artigos constitucionais, o processo educacional indgena (da Igreja, da FUNAI e do Governo de Roraima) e a demarcao das terras tornaram-se temas polmicos dentro das organizaes indgenas e das esferas do governo e da sociedade roraimense132. Durante os encontros dos ndios133 aconteceram descompassos interpretativos das normas e divergncias de interesses em jogo e no se conseguia avanar no fortalecimento da Assemblia Indgena, que comeou a se fragmentar com as famlias indgenas divididas: algumas apoiavam o programa emancipatrio do governo, outras defendiam o resgate de etnicidade diferenciada do nacional.
Esse tema ser retomado no Captulo 4. Os artigos constitucionais, a tentativa de aplicabilidade dos artigos e a questo fundiria sero retomados nos captulos 3 e 4. 133. A regio do Surumu, como o lugar politizador e multicultural indgena, deu incio as reunies dos lderes e representantes dos ndios de Roraima e inspirou a organizao de conselhos e assemblias nas malocas das distintas regies (serras, florestas e lavrados).
132. 131.
157
Nesse processo de politizao do ndio, foi implantada uma Associao Geral dos Tuxauas (chefes indgenas) vinculada Diocese de Roraima. Essa associao, com estrutura e organizao semelhante s associaes da cultura ocidental, constituiu-se em importante instrumento de representao poltica do ndio, estimulando entre as etnias indgenas a formao de associaes e reorganizaes de escolas bilnges. Tal associao dos Tuxauas desenvolveu, ao mesmo tempo, uma reordenao na formao de professores ndios e buscou alternativas para reativar a identidade tnica, principalmente entre os jovens que tinham vergonha de se identificarem como ndios. Rearticulando uma poltica indigenista mais prxima dos anseios dos ndios, essa associao dos tuxauas foi a responsvel pela fundao do Conselho Indgena de Roraima (CIR)134 e demais associaes: Associao dos Povos Indgenas de Roraima (APIR), Organizao dos Professores Indgenas de Roraima
(OPIR), Organizao das Mulheres Indgenas de Roraima (OMIR), entre outras
pequenas organizaes indgenas na regio. No comeo desse processo de representao e organizao indgena, todos os ndios estavam vinculados aos missionrios catlicos. Todavia, com a entrada dos missionrios protestantes (Misso Evanglica da Amaznia - MEVA), da instalao da Diocese de Roraima (final de 1970) assumindo postura radical em favor da etnicidade e da terra do ndio diferenciado do nacional, da funo ambgua da
FUNAI (ora em favor do ndio e ora contra), dos programas assistencialistas do
governo (federal/local), as famlias indgenas ficaram divididas: ndios defensores da Diocese (pr-tradio), ndios a favor do Estado e sociedade nacional local (pr-nacional).
O CIR composto pelos seguintes rgos: (I) Assemblia Geral; (II) Coordenao Geral; (III) Conselhos Regionais; (IV) Coordenao Aplicada. A Assemblia Geral do CIR se tornou o rgo mximo de decises e suas decises sero tomadas sempre pela maioria simples de seus membros presentes na reunio. O CIR dever intermediar os entendimentos entre ndios e no-ndios na sociedade local (cf. Estatuto Social do CIR, Boa Vista/RR: CIR, 1992).
134.
158
Passado mais de quatrocentos anos, manteve-se um conflito entre os ndios: apoiar ou no os colonizadores. Entre os sculos XVI e XVII, os holandeses tentavam seduzir os ndios para ficarem ao seu lado, atuando na rota comercial. No sculo XVIII, os portugueses, por meio dos Aldeamentos, tentavam civilizar o ndio e tomar posse de sua terra. Assim, esse processo dilacerador da cultura dos ndios, que os divide entre si, perdura at o incio do sculo XXI. No entanto, apesar das divises internas entre as prprias etnias indgenas135, todos os tuxauas e lderes dos ndios de Roraima concordavam que essa discusso estava vinculada a um movimento social, poltico, antropolgico e jurdico mais amplo. Os ndios de Roraima, seguros de sua memria cultural e organizao social (interpretadas pela cultura nacional como ausncia de Estado e sem organizao
social, portanto, sem existncia) e diante do jogo de interesses entre esferas do
governo estadual e federal, cobram das autoridades responsveis pelo reconhecimento de seus direitos tnicos, posturas mais definidas em relao ao conflito. No auge dessas articulaes e reivindicaes, os povos indgenas, que desde a Constituio do Imprio foram considerados cidados brasileiros porque nasceram no territrio do Brasil, tendo documento de registro nacional ou no, procuram alternativas para uma convivncia mais pacfica, embora, as possveis solues se restrinjam s teorias:
O lder indgena e presidente da SODIUR, Lauro Barbosa, est convencido que o atual presidente da FUNAI, Carlos Frederico Mars, apesar dos laos profissionais e amizade com o Conselho Indgena de Roraima (CIR), vai ouvir as duas correntes de pensamento indgena sobre o relacionamento entre ndios e no-ndios. Mars deve vir a Roraima ainda este ms. Lauro conversou com o Presidente da FUNAI, no final do ano passado, durante o encontro da Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira (COIAB), em
135. Essa diviso interna dentro das prprias famlias indgenas, sejam elas Makuxi (Karib), Wapinaxa (Arawak) ou qualquer outra, foram comentadas na primeira parte desse trabalho (XVI-XVII), no Captulo 1, e sero retomadas no Captulo 5.
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Manaus (Am) e exps seu ponto de vista sobre o processo de demarcao Raposa/Serra do Sol. Lauro ressaltou que o presidente da FUNAI no pode conduzir os destinos dos ndios de Roraima ouvindo s as sugestes das lideranas do CIR que tem posies mais radicais que as lideranas da SODIUR. Para o CIR a demarcao em rea nica e expulso dos no-ndios da reserva; para a SODIUR a demarcao em ilhas e busca de conciliao entre os direitos dos ndios e dos no-ndios (FBV, 15 e 16/01/00, p. 7).
A posio do presidente da SODIUR (Sociedade de Defesa dos Povos Indgenas Unidos de Roraima) mostra outra viso do ndio de Roraima diante das mudanas polticas e econmicas envolvendo o Estado, a sociedade local e o ndio, na virada do terceiro milnio. Aps a Constituio Federal de 1988, o representante da FUNAI apresenta-se como um defensor dos direitos do ndio (cf. arts. 231 e 232), que reconheceram o tratamento diferente entre ndio e nondio. Contudo, contrariando esse princpio constitucional, existem famlias indgenas integradas na sociedade nacional local que no desejam usufruir desse direito diferenciado. Esse posicionamento indgena ampliou os conflitos entre os prprios ndios e atende aos interesses de certos setores da sociedade local e governamental na conduo do interesse poltico e econmico sobre as terras dos ndios como propriedade privada. Outro questionamento que tem gerado polmica: quem e quem no ndio em Roraima:
O procurador da FUNAI/Local, advogado Wilson Prcoma, pediu Polcia Federal que investigue suposta emisso ilegal de registro de indgena para o vice-prefeito eleito de Pacaraima, Francisco Roberto do Nascimento, que no teria esse direito por no ser ndio. Ele pede que o vice-prefeito responda por falsidade ideolgica e que o administrador regional da FUNAI, Martinho Alves de Andrade Jnior, seja responsabilizado tambm, mas por crime de responsabilidade. Para Prcoma, Francisco Roberto no reconhecido pelas lideranas indgenas e no tem vivncia entre os ndios. Ao contrrio, uma pessoa de destaque na sociedade nacional/local, brilhante jogador de futebol, conhecido como Chico do Bar, e depois, conhecido como o Chico Roberto do Banco do Brasil, por ter trabalhado nesta instituio financeira. Para o procurador da FUNAI, a forma como so concedidos os registros para ndios pode abrir precedentes para quem no ndio e tem propriedades em reas pretendidas pela FUNAI para permanecerem nas reservas indgenas (FBV, 06/11/00, p. 4).
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branca que entre os difusos interesses enxergava a presena fsica do ndio como uma ameaa sua posio no espao social de Roraima. Essa questo, que parece ter trazido uma crise de identidade local, colocou em dvida os critrios que legalizam a identidade tnica:
O administrador regional da FUNAI, Martinho Alves de Andrade Jnior, respondeu ao procurador do prprio rgo que o registro emitido para Francisco Roberto obedeceu a critrios legais. Para ser ndio preciso de duas questes bsicas. A primeira se reconhecer como ndio. E a segunda a comunidade o reconhecer como indgena. Para Martinho Andrade, alm de Chico Roberto se reconhecer como ndio, a FUNAI tem uma declarao do tuxaua, que o representante da comunidade, atestando que o vice-prefeito eleito ndio. Para o administrador regional, o tuxaua responde pela comunidade. Para ele complicado o questionamento sobre quem ou no ndio. H casos em que a comunidade apontou uma pessoa como ndio, e a pessoa negou que era ndio (FBV, 06/11/00, p. 4).
Esse questionamento dos representantes da FUNAI/RR apontou para antigos mecanismos de dominao cultural branca sobre os ndios. Fica difcil para a sociedade local (ndios e no-ndios) entender os mecanismos de poder que legitimam, em um processo democrtico, tanto a defesa do territrio como a proteo de uma cultura tnica diferenciada da nacional:
Francisco Roberto, vice-prefeito de Pacaraima, mostrou documentos comprovando sua descendncia e o registro foi concedido em 1 de setembro, numa ao itinerante realizada em Pacaraima. Para Chico Roberto, O Estatuto do ndio diz que at a terceira gerao considerada indgena. Contesta tambm a afirmao de Wilson Prcoma sobre a falta de vivncia indgena, e afirma ter vivido na regio de Surumu onde estudou inclusive com alguns dos atuais tuxauas da regio. Ficou por l at os 15 anos de idade e veio para Boa Vista, onde passou a trabalhar no Banco do Brasil, estudar e nunca perdeu contato com os ndios da regio. Para Chico Roberto se o procurador da FUNAI no aceita o documento, vai ter que provar que ele no ndio (FBV, 09/11/00, p. 4).
Essa discusso necessita de maiores aprofundamentos para que a sociedade local possa superar a viso etnocntrica europia e revisar o seu prprio papel no processo histrico, sua prpria vida e destino, descobrindo
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nesse processo a cidadania ou identidade tnica136. O desafio parece ser o de amadurecer as ideais constitucionais e no o de expropriar o ndio que deseja reatar relaes de parentesco com a terra, resgatando o direito originrio. Preocupados com uma educao indgena voltada para contedos programticos relacionados organizao scio-cultural e lingstica indgena, os lderes da Organizao dos Professores Indgenas de Roraima (OPIR) promoveram tambm um Seminrio para discutir essa formao dos professores, que ensinam nas escolas da rede pblica (instaladas nas malocas) e so mantidas pela Diviso de Educao Indgena (DEI/SEC) do governo estadual:
No II Seminrio de Educao Indgena, na Maloca Canauanin, com participao de professores do Chile, Quito, Mato Grosso e Venezuela, o professor Enilton Andr, Coordenador da OPIR, disse que os professores indgenas encontram dificuldades para realizar o vestibular tradicional. Uma delas a diferena entre os critrios do vestibular e a formao dos ndios que freqentam cursos de formao diferenciada (Magistrio Indgena). A legislao permite e garante ao ndio uma formao diferenciada. Para o coordenador a UFRR (Universidade Federal de Roraima) no tem professores especializados na formao diferenciada para o ndio, a OPIR dever participar da seleo de professores para o curso superior, um dos critrios o comprometimento com a causa indgena. Alm do curso de Pedagogia voltado para a formao especfica do ndio, j h propostas para formao nas reas de agronomia, sade, veterinria, direito e economia (FBV, 15/09/00, p. 10).
Durante essa discusso, foi analisada uma proposta de Curso Superior de Pedagogia Indgena e para alcanar esse objetivo buscaram parceria com a Universidade Federal de Roraima (UFRR). Os representantes das organizaes indgenas exigiam um curso diferenciado da pedagogia dos brancos e para enriquecer tal tema, assegurando um compromisso em favor do ndio, ampliaram os debates:
Cerca de 400 professores indgenas que participaram do II Seminrio de Educao Indgena decidiram fazer parceria com a Universidade Federal de Roraima ( UFRR) para implantao do Curso Superior de Pedagogia Indgena. O evento foi promovido pela OPIR, na Maloca Canauanin, municpio do Cant. O tema principal foi discutir o ingresso de professores indgenas no ensino de terceiro grau. Foi criada uma Comisso conjunta,
136. Embora a etnia possa ser estabelecida por simples mapeamento de DNA, o pertencimento duplo (reconhecer-se e ser reconhecido) a base de qualquer identidade, apesar de que ele possa tornar-se mecanismo politicamente manipulado para fins de excluses e/ou incluses sociais.
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entre representantes da OPIR, UFRR, FUNAI e outras entidades parceiras, para elaborao de um projeto de criao do Curso Superior de Pedagogia Indgena. A Comisso tem at dezembro para apresentar o projeto que ser analisado pela coordenao da OPIR. O Coordenador da OPIR, professor Enilton Andr, esclareceu que a preocupao dos professores indgenas no est restrita ao curso de Pedagogia, mas s demais reas de estudos. Queremos formao de qualidade em todos os nveis de ensino. Para o coordenador, esta a primeira vez que se discute no Brasil uma formao superior diferenciada para professores ndios (FBV, 18/09/00, p. 11).
Nessa linha de ao, a Organizao de Professores Indgenas de Roraima (OPIR) continuou as discusses para formular uma proposta vivel ao desejo de melhorar a formao dos professores que atuam nas malocas indgenas. Tais reformulaes educacionais para os ndios tinham como subsdios os fundamentos da Constituio de 1988, que prev no s o reconhecimento da organizao scio-cultural dos ndios como tambm um tratamento diferenciado para as etnias indgenas:
Reunidas num II Seminrio de Educao Indgena de Roraima, na Maloca do Canauanin, no Municpio do Cant, as lideranas indgenas disseram que no querem somente o curso de Magistrio como teto para os professores lecionarem em reas indgenas. O coordenador da OPIR, Prof. Enilton Andr disse que o objetivo do Seminrio foi discutir a formao universitria do professor ndio. Existem 426 professores ndios nas escolas das malocas de Roraima. A OPIR tem procurado habilitar os professores indgenas para pesquisar a sua prpria histria, discutir alternativas sociais e econmicas auto-sustentveis para as comunidades indgenas (FBV, 19/09/00, p. 10).
As discusses sobre essa proposta pedaggica das organizaes indgenas, que por meio da educao desejam reorganizar/resgatar sua prpria etnicidade, continuam por mais dois anos137. Elas esbarraram em normas do MEC (Ministrio da Educao e Cultura) que tem dificuldades jurdicas na conduo dessa questo, apesar dos cursos fundamentais e cursos mdios em pedagogia j funcionarem diferenciados do nacional.
137. No primeiro semestre de 2003 o curso Superior Indgena foi implantado na Universidade Federal de Roraima (UFRR). Aps a realizao de um vestibular especfico, deu-se incio a primeira turma. Esse tema ser retomado no Captulo 5.
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FIGURA 06 II Seminrio de Educao Indgena de Roraima, realizado durante Assemblia Indgena. O tema principal foi a formao superior de professores indgenas. Foto: Folha de Boa Vista, 19/09/00, p.10.
Aproveitando o evento indgena de discusso educacional, o governador de Roraima pronunciou-se afirmando que:
Pretende criar um Instituto Superior de Ensino para preparar o professor para as escolas de Roraima. Durante o encerramento do II Seminrio de Educao Indgena de Roraima, na Maloca Canauanin, no Cant, o Governador disse aos participantes do Seminrio que o Estado tem interesse na formao do professor ndio e que a OPIR est convidada a fazer parte da equipe que est discutindo a formao do Instituto. O instituto tem a coordenao de uma equipe da Frana em convnio com o Instituto Francs. Para Neudo Campos, os ndios tero papel importante na formao do Instituto e afirmou que tero vagas em cursos diferenciados. O governador disse que Sou Macuxi, nasci aqui, e no vou sair daqui. Mas sei que tenho esse compromisso com a preparao do futuro de Roraima, que est na educao, uma educao de qualidade, que prepare o nosso aluno de forma a que ele pense no futuro de Roraima (FBV, 19/09/00, p. 10).
Apesar de algumas alteraes nos mecanismos do sistema poltico estadual em favor do ndio, percebeu-se o comportamento ambguo do executivo estadual por meio de seu discurso: Sou Makuxi.... Essa fala, sustentada na relao de domnio, com mecanismo estratgico da mquina de fazer poltica, mascarava o conflito (ndios e no-ndios) e o interesse de ordem poltica e econmica. Ao
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apropriar-se da identidade Makuxi (maior contingente tnico no Estado, cf. Quadro 01,
acima, p. 136), no sentido amplo de ser ndio, o governador nega aos demais
grupos tnicos a possibilidade de convivncia plural, num mesmo territrio, de sistemas polticos jurdicos diversos, j que privilegia a etnia majoritria. O discurso do governador de Roraima nos mostra, justamente, a manipulao do pertencimento mencionado no texto acima. Em forma muito resumida e simplificada, podemos dizer que, aos olhos da sociedade nacional local, tornou-se difcil compreender a transio entre a prtica de pacificao indgena (eliminao da identidade do ndio) por uma poltica de reconhecimento scio-cultural indgena. Dentro do histrico da situao dos ndios, aos olhos das lideranas indgenas, no ficou claro porque as terras no so demarcadas e porque tambm so disputadas pelo governo de Roraima.
FIGURA 07 Os ndios reivindicam homologao da Reserva Raposa/Serra do Sol em rea nica. Manifestao na Maloca Maturuca. Foto: Folha de Boa Vista, 28/12/98, p.04.
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Um nmero crescente de perguntas sem respostas vai ampliando esse contexto: quem est conduzindo o interesse na omisso do governo federal e estadual e quais so as foras polticas que protegem os omissos? Por que os projetos de segurana para a Amaznia, a presena do Exrcito e da Polcia Federal no conseguem impedir que as mineradoras se instalem nas terras indgenas e nelas permaneam?
138. As ONGs indgenas vinculadas ao Conselho Indgena de Roraima defendem uma poltica de reconhecimento e respeito da cultura e da lngua indgena (pr-tradio). A tomada de conscincia da identidade tnica denotou o fortalecimento prioritrio na demarcao das terras indgenas em rea nica e da expulso dos no-ndios da reserva demarcada. Ao contrrio dessas ONGs, existem ONGs indgenas no vinculadas ao Conselho Indgena de Roraima que defendem a demarcao das terras indgenas em ilhas e o respeito posse dos nondios na regio, como tambm parcerias em projetos de desenvolvimento governamental (pr-nacional). Alm disso, mais de 70% das terras do Estado pertencem ao domnio da Unio como: IBAMA, INCRA, EXRCITO, FUNAI. Nesse contexto de indefinio fundiria, nem o Estado e nem a sociedade local conseguem atrair verbas para seus projetos seja na rea social, econmica ou cultural. Esse assunto ser retomado no prximo captulo, item 3.2.
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identificados como bode expiatrio das atuais condies polticas econmicas do habitante de Roraima. Para a elite social local139, essa condio de pobreza no Estado, desencadeada pela indefinio latifundiria causou o impedimento da no explorao dos recursos naturais, privou a regio de um desenvolvimento que melhorasse o oramento estatal e a distribuio de renda social local. Mediante a disputa, a questo tnica transformou-se no tema polmico entre o Estado e a sociedade de Roraima. Tal problemtica tnica, que se fez presente em vrios momentos do processo histrico da regio, nutre, no seu interior, tenses sociais no gerenciamento da diferena cultural, nos mecanismos de partilha poltica e econmica de um novo espao de poder policntrico, que o movimento de redemocratizao do pas, nas duas ltimas dcadas do sculo XX, colocou como desafio sociedade roraimense do tempo presente. Conjuntamente ao movimento de reao dos ndios em favor de seus direitos, o fortalecimento de oposio liderado pela sociedade no-indgena unificou interesses do governo estadual e dos setores representativos da sociedade roraimense. Instrumentalizados com as benesses da mquina de fazer poltica governamental, esses representantes conduzindo o monoplio e o poder da poltica local, apontaram propostas alternativas de desenvolvimento e buscaram recursos para definir a questo fundiria de Roraima, mas sem sucesso:
Ao assumir o seu segundo mandato o Governador de Roraima, Neudo Campos (PPB), afirmou, durante o discurso de posse, que ir devolver o emprego aos que foram demitidos do Estado e dar queles que no o tinham, s que na iniciativa privada. (...) que vai buscar investimentos para trazer indstrias de outros estados para que se instalem em Roraima e reforou que vai privatizar principalmente a CODESAIMA (Companhia de Desenvolvimento de Roraima). (...) vai fechar, definitivamente, os rgos que representam uma sobrecarga demasiado pesada para dar prioridade aos seguintes setores: Educao, Sade, Segurana, Bem-Estar e adotar polticas de estmulos Agricultura, Indstria,
139. Esse grupo social de poder poltico e econmico, partilhando dos privilgios da esfera governamental, constitudo por descendestes dos pioneiros brancos e de novos grupos imigratrios que chegaram aps os anos de 1970: nordestinos, sulistas, do centro-oeste, sudeste. Grande parte desse novo contingente tem escolaridade universitria, so micro-empresrios, profissionais liberais ou fazendeiros.
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Comrcio e Turismo. (...) Para alcanar essas metas, o governador disse que a infraestrutura bsica como o asfaltamento da BR-174 e a energia de Guri (Venezuela) so essenciais. (...) o comrcio roraimense precisa romper as divisas em direo a Repblica da Guiana. (...) a bancada federal apresentou emenda de R$ 18 milhes para que o 6 BEC (Batalho de Engenharia e Construo) pavimente a BR-401, do quilmetro 100 at Normandia. Precisamos conquistar e nos integrar com a Guiana, Paramaribo e Guiana Francesa, afirmou. A questo indgena colocada por Neudo Campos como um dos empecilhos, principalmente a demarcao da Raposa/Serra do Sol, em rea nica e a desapropriao das propriedades da reserva So Marcos. As demarcaes, segundo ele, esto sendo tratadas pelo Governo na esfera judicial para que no se cometam os exageros praticados de forma unilateral quando da demarcao da reserva Yanomami (FBV, 04/01/99, p.03).
A mistificao do interesse relevante para o desenvolvimento do Estado e o bem-estar da sociedade local flagrante, principalmente, no momento de explicao das propostas governamentais pelo Executivo local, registrados no texto acima. Os discursos do governador mudam segundo a platia (ndios e nondios), utilizando idias e justificativas, cujo trao comum no revela o desejo, economicista e eleitoreiro, da posse e explorao da terra em nome do povo e do interesse de Roraima. Essa abordagem etno-histrica marcada pela defesa da definio fundiria e redefinio geopoltica em Roraima foi tambm o principal enfoque no discurso de posse dos Deputados Estaduais, nesta 3 administrao Legislativa do Estado140. O Deputado do PFL, Iradilson Sampaio, fez um caloroso discurso em nome dos deputados que se reelegeram, tecendo elogios sobre a imagem dos bravos pioneiros colonizadores e comentando que a demarcao em rea contnua da Raposa Serra do Sol maculava os acontecimentos do processo histrico do recente passado. Segundo o parlamentar, o governo federal deveria reorientar a problemtica fundiria no Estado, adotando um programa inspirado nas reivindicaes do povo roraimense, principalmente nos setores econmicos, segurana e descentralizao estatal.
140. Representantes polticos, eleitos no pleito eleitoral de 1998, tomaram posse no dia primeiro de janeiro de 1999, para o perodo de 1999-2002, prometendo resolver a questo fundiria. Nos Captulos 4 e 5 esse tema ser retomado.
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Com o objetivo de auxiliar no acompanhamento do caso em questo (Raposa/Serra do Sol) foi criada uma Comisso da OAB/Local (Ordem dos Advogados do Brasil), tendo como presidente Silvino Lopes, e mais os membros Hitler Lucena e Alcides Lima. Em depoimento oferecido comisso, o rizicultor Paulo Csar Quartiero disse:
Estamos aqui em Roraima gerando emprego e pagando todos os impostos durante 21 anos de trabalho e vem um arrasto da FUNAI que no d nenhuma chance de individualidade e particularidades do Estado (FBV, 07/01/99, p. 04).
Mediante tal situao, para a FUNAI, a posse de um territrio pelo ndio condio coletiva sobrevivncia tnica, inclusive ao que diz respeito ao sepultamento dos parentes, pois a terra est coesa aos seus ritos e mitos de f. Para o no-ndio que est na regio h 21 anos e paga imposto a relao com a terra de negcios, de propriedade, onde a terra de sepultamento de seus familiares pode ser trocada de dono na relao comercial de domnio governamental. A respeito do processo de demarcao da reserva indgena da Raposa/Serra do Sol, o advogado Hitler Lucena fez o seguinte comentrio:
A demarcao foi feita de cima para baixo porque seria uma imposio de pases como Inglaterra e Estados Unidos. Essa demarcao sempre teve um aparato de entidades ambientalistas e organizaes anglo-americanas (FBV, 07/01/99, p. 05).
Isso significa que se desloca, portanto, a responsabilidade de opo, atribuindo-as s foras estrangeiras e no as decises nossas. Entretanto, surgiram manifestaes populares coordenadas por representantes polticos e dos setores econmicos, com discursos proferidos de forma simplista, reduziam a problemtica social, poltica e econmica do Estado a esse conflito entre minoria indgena e maioria no-indgena. A reao da sociedade no-indgena habitante de Roraima revela-se como um sintoma do tempo presente e indicador da necessidade de uma mudana no s terica, mas prtica desse sistema poltico, social e econmico de grande
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importncia para a derrocada da cultura paternalista estatal, que impede a concretizao do que diz a lei maior. Apesar da retrica do respeito ao pluralismo scio-cultural e reconhecimento do direito de posse da terra pelo ndio, visvel a forma de apartheid, que mantm distante da partilha poltica estatal os ndios contrrios ao processo aceitvel141 de integrao na sociedade nacional.
FIGURA 08 Manifestao por no-ndios contra a demarcao Raposa/Serra do Sol, na praa do Centro Cvico, em Boa Vista. Protesto de empresrios com distribuio de carne e arroz para os populares. Foto: Folha de Boa Vista, 08/01/99, p. 05.
Diante do que j foi exposto, podemos considerar que essa diferena cultural do ndio, na formao da sociedade brasileira, assumiu formas confusas numa situao de mistura racial que tradicionalmente foi incorporada nos discursos governamentais de esprito igualitrio. Nesse processo, tal como no
141. Estamos falando sobre o processo de civilizao que introduzia o ndio na sociedade como brasileiro-nato. Apesar do processo apresentar o ndio como um membro natural da sociedade nacional, essa convivncia entre brancos e ndios mostrou-se no salutar aos povos indgenas.
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passado, em que o Estado e a sociedade no aceitam o outro que diferente, o ndio dever perder seu referencial tnico, abandonando a idia de reivindicao identitria cultural diferenciada que gerou, nos ltimos vinte anos do sculo XX, violentos conflitos sociais e incertezas polticas econmicas no processo de formao do Estado, da normatizao dos direitos e do exerccio democrtico. Desta maneira, o xodo rural indgena reforou a seguinte idia de alguns segmentos da sociedade local: h muita terra para pouco ndio, sem compreender o processo de migrao indgena para o centro urbano, os discursos e propostas de soluo desse conflito tornaram-se incompreensveis: como grupos sociais, polticos, religiosos que atuam na sociedade local trabalham os fundamentos constituintes previstos para a construo de uma sociedade livre, justa e solidria?
A Companhia Telefnica de Roraima (CTR), que inaugurou os servios de telefonia, foi criada em 1966. Em 1972, a Lei Federal 5.792 (11/julho/1972) incorporou a Companhia no Sistema Nacional de Telecomunicaes (Telebrs), sendo denominada de Telaima (Telecomunicaes de Roraima Sociedade Annima).
142. At a dcada de 1970, a figura do operador de telgrafo era fundamental nesse processo de telecomunicaes em Roraima. O Telex foi um servio muito utilizado nesse sistema de transmisso e recepo de mensagens escritas.
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Mas foi o rdio que exerceu grande importncia no processo histrico de comunicao na bacia do Rio Branco. A primeira emissora de radiodifuso sonora de Boa Vista surgiu na dcada de 1950. Era a Rdio Difusora de Roraima, com capacidade de 1 KW, que levava ao ar programas musicais, sentimentais, educativos, noticiosos e outros. Acompanhavam-se, ainda, pelo rdio143, as notcias do mundo atravs da Hora do Brasil e da BBC de Londres. At o incio da dcada de 1970, o meio de transporte mais importante que ligava Roraima s outras regies do Brasil eram transportes fluviais, que percorriam o caminho das guas (Branco, Negro, Amazonas, Atlntico). No trecho entre Manaus e Boa Vista eram utilizadas as balsas e pequenas embarcaes por causa das cachoeiras e corredeiras que dificultavam a navegao. Esse traado acidentado da rede hdrica roraimense no permite navegao de embarcaes de grande porte e, em conseqncia, o nico porto fluvial existente na regio est localizado em Caracara e est em ms condies. Durante o perodo das cheias, pequenas embarcaes chegam at Boa Vista, no Porto do Cimento. A comunicao por meio de transportes areos para Boa Vista tiveram incio nos anos de 1920. Nesse perodo, foram registrados os primeiros vos realizados por misses militares. Contudo, o maior destaque ficou para o hidroavio da expedio de Alexander Hamilton Rice, que em 1924 sobrevoara a regio efetuando estudos de reconhecimento. Essa expedio exploratria popularizou, em Roraima, a primeira foto area da pequena cidade de Boa Vista com suas trs principais ruas paralelas ao Rio Branco (Figura 09).
Hoje, o rdio continua a ter importncia no Estado, mas a estao de TV Roraima (Canal 4. funcionando desde 1974 e oficialmente inaugurado em 1975) vem ampliando sua influncia sobre a maneira de ser e viver do morador da bacia do Rio Branco. At o ano de 1987, a TV Roraima foi a nica estao de televiso na regio a retransmitir quase toda a programao da Rede Amaznica e Rede Globo. Hoje, operam: TV Boa Vista (Rede Manchete), TV Tropical (Rede Tropical e SBT), TV Cabura (Rede Bandeirantes), TV Diamante (Rede Record), TV Makuxi (universitria-TVE) (cf. Ambtec, 1993:158).
143.
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Os registros sobre os primeiros vos comerciais entre Boa Vista e Manaus e para os pases vizinhos (Boa Vista/Georgetown, na Guiana; Boa Vista/Caracas, na
Venezuela) so dos anos de 1970. Nesse contexto areo, a empresa Cruzeiro do
Sul que foi substituda pela Varig144 estabeleceu vos regulares ligando Boa Vista as outras regies do Brasil. Ainda nos anos de 1970, foi inaugurada a rodovia BR-174145 ligando Boa Vista a Manaus e Caracas, construda na direo norte e sul de Roraima e seguindo a rota fluvial do Rio Branco. Para ligar o municpio de Boa Vista Guiana foi construda a BR-401. No existe uma rede ferroviria na Regio, mas a partir da construo das rodovias federais foi possvel conectar diferentes estradas e caminhos estaduais criando um sistema rodovirio que aumentou o fluxo de transporte e pessoas nessa regio. importante acrescentar que o governo de Roraima buscou integrar-se na malha viria nacional, com propsito de aumentar as benesses da populao branca e dos negcios comerciais. Sem clareza nos objetivos de desenvolvimento para a Amaznia, desde o governo militar do ps-1964 atravs do PAEG
(Programa de Ao e Estratgia do Governo) e do PND (Plano Nacional de Desenvolvimento)
povoamento de regies fronteirias desabitadas, estabelecendo a integrao e a soberania nacional. Dentro desse enfoque, o plano econmico seguia a meta da integrao dos mercados (regionais/nacionais) aproveitando as hidrovias e as rodovias, favorecendo a comunicao e a segurana do pas (cf. FREITAS,
1991:71/76).
144. No final da dcada de 1980 e comeo de 1990, as empresas areas Transbrasil e Vasp tentaram operar nessa linha comercial roraimense sem sucesso. A Varig continua at o atual momento (2003) como a nica empresa monopolizadora do transporte de passageiros de Boa Vista. Apesar disso, existe um fluxo de pequenos avies tanto de particulares como de empresas de txi-areo na regio. 145. Essa rodovia federal, com 1.000 km em territrio brasileiro e 800 km em terras venezuelanas, liga Boa Vista cidade porturia da Venezuela, Puerto Ordaz, em conexo com os pases caribenhos, Estados Unidos e Europa.
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Tais medidas serviram para, alm de assegurar a conquista e a defesa, fomentar as atividades agro-industriais (fbrica de raes e indstrias processadoras de
alimentos e refrigerantes) explorando as matrias primas da regio. Serviram,
tambm, para o levantamento de dados relativos aos problemas fundirios, promover uma poltica de colonizao (novas correntes imigratrias) que organizasse e mantivesse os antigos e os novos ncleos agrcolas (que produzem milho, arroz,
feijo, banana, mandioca, soja, etc.) sem esquecer a pecuria que auxiliou na unificao
da cultura luso-brasileira. Essa ao do governo de Roraima em parceria com o governo federal, ampliando a rede viria estadual/federal com o objetivo de revalorizar a terra e consolidar a meta geopoltica de integrao e soberania nacional (com o auxlio e
modernizao das comunicaes e dos transportes) favoreceu a incorporao dos novos
contingentes imigratrios (no-indgenas e indgenas) que foram reabsorvidos num espao social mais homogneo. Tal ao poltica de tradio coronelista, fortalecedora do poder governamental frente s lideranas e elite social local, deu continuidade estrutura agrria arcaica por meio dos novos assentamentos agrcolas. Alguns desses assentamentos tinham irrigao mecanizada, para o cultivo de gros, sendo a soja e o milho os lderes dessa produo. Aps o exposto, pode-se dizer que o ndio era como joguete indefeso de uma estrutura social poderosa que o manipulava em funo de seus interesses. Ora era visto como parte da natureza (sculos XVI-XVII), ora como propriedade associada terra e, portanto, escravizado a quem a explorava economicamente (sculos XVIII-XIX). Desde o incio do sculo XX at 1988, o ndio era observado como parte integrante do todo nacional e, de 1990 ao incio do sculo XXI, para alguns segmentos sociais como empecilho ao desenvolvimento.
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identidade nacional. As bases desse projeto eram integrao racial e reforo da unidade territorial (CAPELATO, 1998). Alm disso, os polticos aspiravam justificar a ocupao e a integrao das terras desabitadas, as quais eram j tradicionalmente ocupadas por outras etnias (DIEGUES, 2001). Esse modelo unificador de tendncia poltica e econmica trouxe tona antigo conflito em relao ao territrio e s fronteiras nacionais. Essas terras eram vistas como possveis espaos de explorao capitalista estrangeira, que estava aliada a grupos nacionais. Difunde-se a necessidade de unificao tanto da sociedade brasileira quanto do seu territrio e a compatibilizao dos interesses em prol do desenvolvimento e da soberania nacional, sob a gide do governo federal:
O nacionalismo brasileiro, de carter sociolgico positivista, forneceu instrumental para explicar e apontar solues para os problemas de natureza racial/tnica e de ordem material relacionada ao desenvolvimento econmico. Nos anos 30, as teses raciais foram associadas a um projeto de tentativa de recuperao do homem do campo, que se dirigia para a cidade em virtude do grande xodo rural ocorrido no perodo. No discurso nacionalista, a figura do caboclo, sertanejo, jeca-tatu, caiara, caipira, variantes da imagem do elemento rural (...), at ento depreciado, passou a ser visto como cerne e vigor da raa (CAPELATO, 1998:216-7).
O texto acima utiliza idias marcantes do conflito amaznico, como os problemas tnicos enfrentados pelo Estado-Nao e pelos representantes da elite poltica e econmica, especificamente, pelos lderes do municpio de Boa Vista do Rio Branco. Estes tentavam solues para uma sociedade (ndios e nondios) cujos interesses e posies ideolgicas eram encaminhados segundo o desejo do momento e nem sempre respeitavam as normas oficiais do pas em relao situao e ao reconhecimento do direito territorial do ndio. Nessa construo da sociedade e do Estado no governo Vargas, Capelato (1998) apontou para uma das preocupaes do projeto do Estado Novo com os problemas da etnicidade e do desenvolvimento. Tal projeto tinha como um de seus objetivos a recuperao do homem do campo/natureza, fixando-o na regio
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de fronteira e valorizando elementos da cultura rural. Boa Vista do Rio Branco, que na dcada de 1930 era municpio do Amazonas, constituiu-se em importante pilar da construo da nova identidade nacional coletiva. O projeto do Estado Novo, com discurso nacionalista, valorizou a figura do caboclo que nesse municpio nada mais era do que o ndio pacificado, transformado em pea fundamental na defesa da fronteira nacional. Esse projeto fortalecia a urgente necessidade de se criar um Estado forte, sempre ameaado por interesses de grupos internacionais associados com corruptos locais/nacionais (LAUERHASS,
JR., 1986:83-84).
Com base nessas aspiraes, a criao de novos Territrios Federais iria garantir tanto o povoamento das reas desabitadas, quanto o controle do Estado brasileiro de suas reas fronteirias, um dilema recorrente desde o sculo XVIII.
Nesse contexto de interesse do Estado pela integrao nacional, apareceu o medo do governo brasileiro de perder a Amaznia para estrangeiros que clandestinamente exploravam a regio. Esse medo tinha como base as supostas
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informaes de colaborao indgena e conivncia das autoridades corruptas locais com os grupos internacionais. A Amaznia estaria perdendo sua riqueza vegetal e mineral (FERREIRA, 1994:100-101). Assim, podemos dizer que se fundamentou a idia constituda pela unio perptua e indissolvel dos Estados, Distrito Federal e Territrios em Estados Unidos do Brasil146, buscando-se novas armas tericas e legitimidade jurdica no programa de povoamento e defesa fronteiria brasileira. Para isso, a criao dos Territrios Federais147 foi considerada como pea importante nesse mosaico scio-poltico brasileiro da terceira dcada do sculo XX. O governo precisou rever seus mecanismos polticos para conservar unificado o imenso corpo fsico e cultural da Nao brasileira. Essa proposta tinha como apoio os princpios enunciados na Constituio Federal de 1937, que propagava fundamentos de interesses voltados para a ocupao e a defesa do territrio nacional. Tais questes subjacentes problemtica de regulamentar e instaurar a unidade brasileira fez parte, tambm, do antigo e sutil objetivo militar-administrativo proposto pelo programa governamental do perodo colonial e que se estendeu at a Primeira Repblica na incorporao da bacia do Rio Branco: uma imigrao branca, que estabeleceu procedimentos de civilidade, eliminando qualquer vestgio indgena/nocivilizado. Contudo, tal proposta tinha como apoio a mo-de-obra do ndio, que participaria da construo de um espao social direcionado para defender a terra em favor do Estado Luso-brasileiro.
Esse enunciado, previsto no artigo primeiro da Constituio da Repblica dos Estados Unidos do Brasil de 1934, no previa a criao de novos Territrios Federais (na poca s existia o Territrio do Acre). Mas, como foi usado o plural (Territrios), revelou-se a constante preocupao dos constituintes em manter a forma de governo controlando por meio da ocupao o territrio unificado, que desde o sculo XIX vivia conflitos nas suas fronteiras sempre em litgio. Tal preocupao do governo Vargas se fez presente, tambm, nos governos coloniais (Constituio de 1824 e a unificao das provncias) e da Primeira Repblica (Constituio de 1891 e a unificao dos Estados) (cf. FREITAS, 1991; MARS, 1999). 147. A noo de Territrio Federal, com administrao controlada pelo poder governamental central, surgiu com a incorporao do Estado Independente do Acre, aps negociaes diplomticas com a Bolvia. Isso fez aumentar a expanso territorial do pas e a defesa de uma longnqua fronteira, dando subsdios polticos e jurdicos para que o presidente do Estado Novo repensasse a diviso geopoltica do Brasil (cf. FREITAS, 1991).
146.
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Desse modo, a idia de ocupao dos espaos amaznicos vazios ou desabitados determinava a antiga concepo dos conquistadores ibricos: ndio e terra estavam coesos na viso de mundo natural/selvagem, que deveria ser apossado e cristianizado. O Estado mostrou um discurso elitista em relao ao trabalho do ndio, ora exaltando-o como civilizado e ora considerando-o como um canibal/selvagem. Nessa experincia de amor e dio do Estado com relao ao ndio, protegendo-o ou escravizando-o, a Constituio do Brasil de 1934 definia no Art. 129 princpios de direitos para os ndios:
Ser respeitada a posse de terras de silvcolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado alien-las (Constituio da Repblica dos Estados Unidos do Brasil, de 1934. Apud. MARS, 1999:66).
Esta Constituio identificava o ndio como silvcola (sem Estado, sem organizao scio-cultural), concedendo-lhe o direito de posse da terra, vista como abrigo fixo148 e destinada ao uso exclusivo dos ndios. Nesse texto constituinte, o ndio no era visto como um elemento tnico distinto, mas como um habitante da selva, que teria a posse da terra desde que dela no sasse. Tendo a posse e no a propriedade, o ndio no possua o direito efetivo terra. Ele era considerado hspede do Estado proprietrio e era usado como fronteira viva, como guardio do territrio nacional. A Constituio brasileira de 1937 forneceu ao governo Vargas instrumentos de poder poltico que permitiram a centralizao do governo e a implantao do projeto de integrao nacional. A relao poltico-jurdica entre o Estado e os ndios no foi alterada nessa Constituio, pois conservou no artigo 154 a mesma redao constitucional posterior.
148. A faixa de terra habitada pelo ndio no igual ao territrio circundante da fazenda, pois a idia de espao-social do ndio distinta do espao-social do branco. Da o Estado prendera o ndio, na forma da lei e no interesse da soberania da Nao, fixando-o numa faixa de terra limitada.
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Durante o governo militar, em 1967, quando foi extinto o SPI (Servio de Proteo ao ndio), o governo federal incluiu entre os bens da Unio as terras ocupadas pelos Silvcolas (cf. MARS, 1999) e criou a FUNAI (Fundao Nacional do ndio) para gerenciar as questes indgenas. Essas caractersticas ambguas na relao poltica entre Estado e ndio marcaram as propostas para o planejamento de polticas pblicas e a criao dos Territrios Federais durante a gesto do Estado Novo149, conforme a perspectiva de metas do Plano Especial de Obras Pblicas e Aparelhamento da Defesa Nacional, de 1939. A organizao e a prtica desse plano definiram formas para promover a ocupao e a defesa do territrio nacional, respeitando os princpios da Constituio de 1937. No faremos uma discusso comparativa sobre o entendimento de Territrio de domnio federal ou de domnio estadual no Brasil e em outros pases, embora tenhamos conhecimento de Constituies de Estados com organizaes federadas sem uma rigidez nas alianas das unidades federativas, como o modelo norte-Americano. Na Argentina, por exemplo, a figura do Territrio, governado sob o poder Central em concordncia com o Senado, teve representao num curto estgio pelo qual passaram algumas regies, antes de se transformarem em provncias (TEMER, 1975). Nesse sentido, os problemas do municpio de Boa Vista do Rio Branco foram transferidos do Estado do Amazonas para o poder central instalado no Rio de Janeiro. O Presidente Getlio Vargas, em 1943, assinou o Decreto Lei n.
As idias que serviram de base ao Estado Novo j tinham animado discusses tericas politicamente representadas em imagens, gestos e ritos, durante a Semana de Arte Moderna realizada por artistas brasileiros, no Teatro Municipal de So Paulo, em fevereiro de 1922. Na referida Semana, iniciou-se um discurso ideolgico e um movimento de reconstruo da identidade brasileira, da busca de uma cor nacional que simbolizasse o povo brasileiro. As escolhidas foram: o verde das florestas e o amarelo simbolizando as riquezas da me ptria, especialmente o ouro. Figuras populares (caipira, caboclo e ndio) foram exaltadas como elementos da cultura nacional. Nesse sentido, tal discurso ideolgico e imagens idealizadas da figura do ndio, tambm, foram usados e glorificados no Estado Novo. As figuras populares e indgenas foram cantadas por meio do canto orfenico, disciplina obrigatria nas escolas pblicas at os anos 50, unificando as diferentes vozes em coro nacional.
149.
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5.812, criando os territrios do Amap, Rio Branco, Guapor (Rondnia), Iguau e Ponta Por, os dois ltimos extintos pela Constituio de 1946
2000). (CAVALCANTE,
Essa medida governamental resultou na criao do Territrio Federal do Rio Branco em 13 de setembro de 1943, assim denominado graas ao curso dgua que banha a cidade de Boa Vista. No entanto, em decorrncia da coincidncia toponmica entre esse Territrio e a capital do Acre, em 13 de setembro de 1962, o seu nome foi mudado para Roraima150. A proposta de instaurao do Territrio Federal, do presidente Getlio Vargas, considerou vital para o desenvolvimento econmico o povoamento que recuperaria e integraria o ndio sociedade nacional. Assim sendo, a ordem geopoltica e a explorao dos sertes do Rio Branco, como base para fixar o civilizado nessa terra distante e hostil, favoreceria a integrao e a defesa dessa fronteira que definiria o territrio nacional. O presidente prometia que todos os brasileiros participariam dessa nova ao estrutural do sistema poltico do Estado Novo. Afirmava o governo: todos so iguais; o que vem do povo brasileiro bom. Esses foram os lemas dos projetos educacionais que partiam do tom patritico ordenando a unificao cultural brasileira sob a batuta do poder central (cf. OLIVEIRA, 1991:36-7). Sob essa perspectiva, o governo do Territrio Federal do Rio Branco reativou, na virada dos anos de 1940 para 1950, programas de desenvolvimento tanto urbano como rural: as novas construes pblicas, a reforma urbanstica, incentivos ao comrcio e agropecuria. Essas propostas faziam parte das metas governamentais institudas no planejamento das polticas pblicas, que foram apoiadas na Constituio Federal de 1937. Observou-se, no contedo poltico
Roraima o nome do monte mais expressivo da regio, localizado na fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana. A troca do nome se deu por causa dos transtornos causados no envio, muitas vezes para o lugar errado, de correspondncias ou cargas com destino ao Rio Branco (capital ou Territrio?), como tambm do embarque de passageiros, em Manaus, com destino ao Rio Branco, que, chegando localidade descobriam frustrados que estavam no Rio Branco errado (cf. OLIVEIRA, 1991:9).
150.
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dessas propostas, a idia de conquista e defesa dos limites fronteirios da nao brasileira. Para implementao dessa ao, o governo do Territrio Federal recrutou, para os trabalhos rurais e de minerao, toda a populao indgena que ainda se fazia presente nesse contexto amaznico151. Com isso, novas estratgias foram formuladas para a caa ao ndio. Os idelogos do Estado Novo e o prprio governo federal demonstraram interesse na valorizao da imagem do ndio, que atuaria como uma defesa da fronteira amaznica. O discurso poltico da administrao era favorvel aos ndios, mas na prtica no o era. O Estado via o ndio como mo-de-obra sempre disponvel, tomando como justificativa a defesa do Estado e dos valores nacionais. Nesse caso, as instrues de defesa da terra eram mais destacadas do que um efetivo desenvolvimento scio-ambiental dessa regio fronteiria que pudesse beneficiar a populao local. Acompanhando esse pensamento, podemos dizer que a formao do Territrio Federal do Rio Branco firmou-se em trs pressupostos: a) defesa da terra; b) povoamento; c) civilizar o ndio. O projeto poltico do Estado Novo de transformar o ndio naquele que ideal e forte152, possibilitou, teoricamente, a valorizao do ndio como elemento importante da construo e delimitao dessa fronteira amaznica. Contudo, o projeto no reconhecia o prprio direito indgena, ligado noo de famlia tnica ou de coletividade indgena, que deveria ser abandonada ou eliminada.
151. As primeiras notcias sobre a abundncia em ouro e diamantes foram divulgadas na dcada de 1930. Durante a fase de criao do Territrio Federal, a regio contava com um grande contingente de garimpeiros que, auxiliados pelo trabalho do ndio, desenvolviam a minerao. Como exemplo, no ano de 1943, a produo de ouro e diamantes representou cerca de 59,6% do valor total da produo, enquanto que a pecuria contribuiu com 26,8% desse total. Esse tema foi abordado no Captulo 2, no item 2.2. 152. Na imagem idealizada pelo romantismo brasileiro, veiculada durante o sculo XIX, o ndio era visto como heri, modificado e civilizado, nos personagens de Jos de Alencar e Gonalves Dias.
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Assim, as diretrizes da poltica indigenista do SPI pareceu atuar de forma expressiva na transformao do ndio em branco, auxiliando e legitimando a proposta de unidade nacional, que fez parte dos fundamentos e das justificativas dos projetos de ao da era Vargas, tanto da poltica federal como da local. Essa sistematizao e eliminao da figura do ndio na regio foram peas fundamentais na aplicabilidade da frmula do projeto pedaggico para o territrio nacional:
Nesse contexto de preocupaes com a formao da nova identidade poltica, a educao foi considerada como elemento prioritrio para a introduo de valores criados para conformar a identidade nacional coletiva (...) A composio dos livros didticos passou a ser orientada pelos objetivos estabelecidos pelo novo regime em relao ao papel da educao (...) (CAPELATO, 1998:218).
Na viso do projeto pedaggico, que associava ao ndio valores patriticos, o essencial era diminuir as diferenas culturais integrando todos (ndios e nondios) ao projeto de unidade nacional de concepo humanista em que os sinais da Segunda Guerra Mundial conduziam novos posicionamentos nas relaes internacionais, alterando o cotidiano nacional e cobrando uma posio do governo Vargas, dadas as circunstncias do momento. Posteriormente, a Constituio brasileira de 1946, enunciando ideais democrticos, manteve, em parte, a situao do Estado Novo, embora tenha feito certas mudanas, como eleies livres e garantias individuais (DEUS &
BERCITO, 1999:69). Do ponto de vista jurdico, o direito do ndio seguia as
mesmas orientaes constitucionais passadas (1934, 1937, 1946) e, na prtica, a memria histrica do ndio era folclorizada ou idealizada na figura do hospitaleiro, do caboclo usado como mo-de-obra disponvel para todos os servios. Caracterizado pela absoluta centralizao do poder e tendo os Estados Unidos como referncia, o projeto do governo brasileiro, oscilava entre desenvolvimento e nacionalismo. O avano da industrializao nacional esboou
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novo padro de comportamento dos grupos sociais e dos diversos movimentos polticos que atravessaram o governo Vargas at Kubitschek (RODRIGUES, 1996). No conjunto de mobilizao poltica e aspirao de desenvolvimento econmico, as metas para a Amaznia continuavam presas ao programa de integrao e soberania nacional (povoamento e defesa da terra). Tudo isso criava condies ao Estado para a poltica de embranquecimento do ndio, a qual redimensionava a destruio cultural indgena, que estava sendo incorporada no projeto sciocultural dos Estados ocidentais. Esse modelo poltico, econmico e jurdico do Estado em relao ao ndio se fazia presente desde a reforma do Marqus de Pombal no sculo XVIII (cf.
Captulo 1). O Marqus no conseguiu ver ou entender o modelo de organizao
tribal, interpretado na poca como no-civilizado ou sujeito sem direito. Assim posto, podemos considerar que a cultura e concepo do pensamento burgus na formao do Estado, que defensor da propriedade e direito individual, no tm mecanismos para o reconhecimento de direitos prprios de coletividade, nesse caso, do ndio. Na poltica de estruturao do Estado, os governadores dos Territrios eram nomeados pelo Presidente da Repblica, que atendia s indicaes polticas segundo os interesses da elite social e econmica. Nesse jogo da nova ordem poltico-administrativa, quando havia desentendimentos entre os aliados federais (Congresso Nacional) e os do Rio Branco, o governador do Territrio era exonerado e o padrinho poltico indicava outro para ocupar o lugar. Nunca as diferenas foram to evidentes entre os governadores e os governados, pois os governadores indicados eram estranhos regio e passavam pouco tempo no Rio Branco, fundamentalmente peas do jogo poltico federal. Mais uma vez, na gesto do Territrio Federal, o governo central e o seu representante na administrao pblica local, recorreram ao antigo projeto
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facilitador da modernizao do lugar com tcnicas reformistas para melhorar a vida dos no-ndios:
A caminhada indgena se tornou extremamente sofrida e marcada por um sem nmero de acontecimentos violentos. Sem dvida, que o branco pioneiro, que chegou a Roraima, lutou e sofreu para sobreviver. Mas, muitas vitrias do branco foram alcanadas custa do ndio. (...) os ndios denunciaram a situao de injustia e a opresso em que viviam ao Servio de Proteo ao ndio (SPI), sem nunca melhorar a situao indgena (CIDR, 1990:5).
O texto acima, foi elaborado por pesquisadores catlicos do Centro de Informao da Diocese de Roraima 153, denunciou o drama vivido pelo ndio dos anos 20 at os iniciais dos 60, quando o silncio escondeu a situao real: o fazendeiro comea a cercar as terras, ocupando, progressivamente, a terra indgena (CIDR, id.:8). Dessa maneira, o relacionamento entre fazendeiro e ndio revelava uma relao entre senhor e servo e no entre patro e empregado, isto , nenhum direito trabalhista observado para os ndios (id. ibid.:10). Nesse sentido, o projeto do perodo de Territrio Federal, preocupado mais com o controle de poder sobre a terra, redimensionou a ocupao por meio da implantao de novos ncleos agrcolas154, com apoio local na figura do governador. Este buscou dar uma nova urbanizao capital do Territrio, com o objetivo de enfatizar o carter branco da cidade. Assim, em 1945, o traado primitivo da cidade (em rea mais elevada e livre das enchentes) foi aumentado e estruturado segundo critrios urbansticos. O planejamento seguiu um projeto semelhante ao que foi realizado posteriormente no centro urbano de Goinia ou de Braslia. Tendo como base o Rio Branco, o novo planejamento ganhou forma
153. So Boletins (mimiografados) publicados pela Misso Consolata sobre as atividades realizadas com os ndios de Roraima. Entre 1979-81 foram publicados um total de 16 Boletins e no perodo de 1982-83 um total de 3. Nesse ltimo perodo, o Conselho Indgena de Roraima (CIR) iniciou a publicao (espordica) de Boletins e Carta Aberta (mimiografados) sobre as atividades realizadas nas Assemblias indgenas de Roraima. 154. O governo e os colonos estavam envolvidos em projetos de combate sava e ao cupim, mas, contavam com instalao de mquinas de beneficiamento do arroz e de um aviamento para farinha de mandioca. A prtica de minerao nos anos quarenta era intensa, no entanto, no aparece oficializada nos projetos governamentais (cf. pp. 128/139).
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de um leque, com a implantao de avenidas radiais iniciadas na ampla praa circular do Centro Cvico, por sua vez cortadas por ruas circulares155. Essa operao urbanstica estendeu-se por toda a dcada de 1950 e dividiu a cidade em cinco bairros: Centro, Porto da Olaria, Ri-Couro, Caxang e Ipase. Nessa dcada, a circulao interna seguia a mesma tradio cultural anterior: a pequena populao caminhava a p ou era conduzida pelos poucos carros de aluguel e bicicletas; a carga era transportada por cavalos ou carro de boi
(OLIVEIRA, 1991:26). A nova feio urbana ajudava a romper com o habitat
silvcola. Com as reformas urbansticas e a tentativa de embranquecer o ndio, algumas famlias Makuxi, Taurepang e Ingarik demonstraram resistncia integrao na sociedade nacional, e ficaram temerosas com relao s aes violentas dos brancos, deslocando-se para o interior das regies de lavrados ou serras. Nesse sentido, o governo tinha o apoio do SPI local de interveno na esfera cultural do ndio que era inserido na cultura urbana. Como no existem, na realidade indgena, documentos escritos, pois as famlias de ndios estratificam seu passado/presente de acordo com a conscincia mtica registrada na memria corrente das tribos da regio, no temos dados sobre o nmero total de famlias e quais as etnias que foram integradas ou que esto em vias de integrao na sociedade nacional, como tambm daquelas que buscam direitos originrios (terra, lngua, tradies sociais e culturais).
155. Projeto do engenheiro Darci Aleixo Deregusson e implantado pelo governador do Rio Branco, Ene Garcez, em 1945.
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FIGURA 09 Vista area de Boa Vista do Rio Branco, em 1924. Expedio Rice (1924/41). (Legenda e Foto: RICE,
1978)
Vista area de Boa Vista, com as transformaes aps a dcada de 1960-70. Fotos: D. Nogueira
Admitindo o apoio da sociedade local, o governo do Territrio Federal fortaleceu as alianas polticas com a elite social rio-branquense. importante dizer que a distribuio de cargos pblicos foi um dos principais elos das alianas no domnio governamental, privilegiando segmentos sociais coniventes com o
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projeto. Nesse jogo poltico e econmico, comandado pelo governo local, muitas famlias indgenas demonstraram uma capacidade de incorporar elementos da cultura nacional, que vo dos aspectos lingsticos, da sade, da habitao, da educao, sem um total rompimento com as razes culturais, quando os seus efeitos comearam a se manifestar nas reunies dos tuxauas no Surumu, em fins da dcada de 1960, em pleno sistema poltico do governo militar. Novas intervenes fsicas no espao construdo voltariam a se apresentar nos anos de 1960, para marcar a presena do Estado central na Amaznia. Assim, o plano urbano da cidade de Boa Vista foi aumentado, sendo suas ruas ampliadas e asfaltadas e as praas gramadas e arborizadas. Contabilizou-se, nesse perodo, um total de novecentos carros nacionais, oitocentas motocicletas importadas e alguns Mini-Mokes156, bem como muitas bicicletas. Nas dcadas de 1960 e 1970, o Territrio Federal de Roraima viveu a euforia das novas imigraes (cf. p. 175), atradas pelas obras do governo local em parceria com o federal na renovao de infra-estruturas e construo de rodovias federais e estaduais, dos novos ncleos de assentamentos157, das construes militares (unidades administrativas e vilas) e civis (unidades residenciais). O governo local e o central, em aes conjuntas ou paralelas, receberam apoio da FUNAI, que substituiu o SPI em 1968, desenvolvendo uma poltica de emancipao do ndio e controlando as malocas para garantir a civilizao de seus membros. medida que essa situao ia mais e mais se consolidando, a elite local barganhava os privilgios na esfera do governo e no participava nas definies dos rumos da Unio. Nesse sentido, a burocracia central de interesse desenvolvimentista passou a alterar o cenrio local aps a instaurao do regime militar de 1964. A construo de caminhos terrestres capazes de assegurar o contato fcil e permanente de Roraima com o restante do pas, promovendo o aproveitamento dos potenciais econmicos da regio, tornou-se prioritrio no plano desenvolvimentista para essa regio amaznica.
Mini-Moke era um pequeno veculo australiano com trao dianteira, que podia flutuar nos rios e igaraps. No final dos anos 60, com o movimento revolucionrio na ex-colnia britnica, famlias inglesas (brancas) conseguiram fugir da Guiana nesses pequenos veculos e chegar at Boa Vista (cf. OLIVEIRA, 1991:26). 157. O projeto de colonizao era dirigido pelo Incra (Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria) que promoveu uma intensa propaganda para atrair colonos para essa regio amaznica, distribuindo terras para as famlias que desejavam povoar essa regio.
156.
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A ordem era integrar o espao fsico e unificar a cultura: estradas cortando lavrados e florestas ligando a cidade de Boa Vista a malocas e ncleos agrcolas, com outras estradas e vias vicinais. No entanto, por falta de clareza na execuo dessa rede viria, algumas estradas eram interrompidas no meio da floresta por esbarrarem em reservas indgenas, a BR-210 sendo um exemplo. Esse projeto poltico e econmico criou mais tenso158 entre colonos e ndios159 na disputa por terras e competio por recursos entre os diferentes projetos agrcolas e pecurios, controlados pelo Estado. Homens e mquinas abriram os caminhos da integrao e inauguraram o milagre da nova conquista amaznica. O governo reconhecia a presena dos ndios integrados ou em vias de integrao nas reas das novas colnias agrcolas. Para o Estado, a terra destinada para explorao agrcola e pecuria, como colnia agrcola, poderia incorporar o trabalho e a convivncia de ndios e no-ndios, na tentativa de torn-los pequenos empreendedores. O projeto traado no papel possibilitava a incorporao dessa regio ao territrio nacional. Dessa maneira, o ndio era compulsoriamente includo no projeto e, se protestasse, seria considerado obstculo ao progresso de Roraima e de toda a Nao (CIDR, 1990:8). Alguns lderes indgenas, principalmente os das etnias Wapixana e Makuxi, manifestaram o desejo de se urbanizarem, levando essa aspirao civilizadora aos demais parentes. De outro lado, sem deixar a relao de parentesco com a terra, outros lderes indgenas (Wapixana, Makuxi, Ingarik, Taurepang) contrapropuseram-se forma do projeto de integracionista
158. A fronteira do Brasil com a Guiana vivia em alerta, pois os habitantes da colnia inglesa lutavam pela independncia. Alm disso, havia, tambm, momentos conflitantes entre brasileiros e venezuelanos por conta da minerao de ouro em regies de fronteiras entre os dois pases, nos anos 60 e 70. 159. Em fins dos anos 60, os ndios comearam a organizar-se em Assemblias com o apoio da Igreja Catlica de Roraima, e surgiram, alm disso, os confrontos armados na disputa pela terra entre fazendeiros e ndios. A partir dessa poca, os ndios comearam o projeto de criao comunitria de gado e roas mecanizadas (CIDR, 1989:51).
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do governo federal, defendida pelos parentes e comearam a organizar-se em Assemblias reivindicando os direitos de primeiros habitantes da regio. Esse desacordo entre as famlias indgenas sinalizou ao Estado nacional o fortalecimento da poltica tutelar, de incorporao do ndio na cultura nacional. Tal poltica reativou o conflito interno indgena aps 400 anos de envolvimento compulsrio nos problemas comuns sobre posse da terra e identidade cultural (indgena/nacional). Os idelogos governistas, por meio do projeto que alterou o traado urbanstico, desejavam apagar as marcas da antiga fazenda Boa Vista. Reinstalaram a infra-estrutura governamental, programaram o corredor de exportao e importao, que era de grande valia para ligar Roraima esfera comercial nacional e internacional. Nessa situao, o conflito interno indgena e o embate entre ndios e no-ndios (fazendeiros, polticos) disseminaram violncias e incertezas na soluo do conflito. importante lembrar que, aps a instaurao do governo militar, os trs Territrios Federais passaram ao comando das Foras Armadas: Amap era governado pela Marinha, Rondnia pelo Exrcito e Roraima pela Aeronutica, com tudo disposto para que se tornassem reas de segurana mxima nacional, deixando de fora uma proposta poltica e econmica favorvel ao campo social local. Assim, com a instaurao do governo militar, o novo grupo de coalizo governista (local/federal) procurou sustentao poltica para a execuo dos programas econmicos. Em 1972, novas metas foram implantadas com o I PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) que previa a execuo do Programa Corredores de Transportes. Nele, seria montado um complexo integrado de rodovias, ferrovias e portos, que funcionariam como Corredores de Exportao (MARQUES, 1972:40). Alm do PND, foi criado, tambm, o PIN (Programa de Integrao Nacional), cujos lemas eram Desenvolvimento com
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segurana e Integrao Nacional. A bandeira dessa campanha poltica do governo federal foi baseada no slogan: H terra para todos na Amaznia
(KOHLHEPP, 1984). Essa campanha atraiu para os assentamentos agrcolas de
Roraima, um grande contingente de nordestinos que fugiam da seca, cujo pice aconteceu em fins dos anos 70. Essa inteno poltica e econmica do governo militar denominada como alternativa para a reforma agrria (KOHLHEPP, 1979), transferiu para as terras da Amaznia Legal os problemas sociais no resolvidos de outras regies do pas. Ao implementar-se esse modelo de desenvolvimento econmico, ampliaram-se os conflitos j existentes em Roraima. As estratgias contidas no planejamento do PIN (Programa de Integrao Nacional), disponibilizando o territrio amaznico como plo de desenvolvimento, incentivaram atividades para integrar todo o territrio nacional por meio de grandes projetos de explorao econmica, da colonizao liderada pelo INCRA, promovendo a expanso da rede de transporte e comunicao. Nesse programa, a rodovia Transamaznica160 foi um dos projetos mais expressivos do governo central para a Amaznia (cf. HABERT, 1996:20). Na poca (1970-85), a FUNAI emancipava o ndio que abandonava a maloca migrando para a capital (Boa Vista), deixando a terra que era disputada por fazendeiros e por ndios que buscavam os direitos etnicidade:
Para os ndios, s com a mudana de gesto das fazendas e a conseqente nova relao que vai se instaurando com os fazendeiros que a questo da terra torna-se tal, isto , at que o fazendeiro no cerque a terra e no impea a caa e a pesca, o problema no percebido. Para os fazendeiros, s a partir das novas pretenses dos ndios e da categoria de sujeitos que estes vo, cada dia mais, assumindo. Assim, comea-se a falar de demarcao das terras indgenas e o problema comea a preocupar os fazendeiros, com reaes diferentes segundo a gerao qual pertencem (CIDR, 1990:35).
A Rodovia Transamaznica, cujas obras foram iniciadas em setembro de 1970, era a mais extensa das conexes rodovirias nacionais de interligao amaznica. Horizontalmente, ela ligaria a cidade de Joo Pessoa, na Paraba, s estradas do Acre, at atingir as fronteiras com o Peru. Tal projeto no foi concludo e a rodovia foi engolida pela floresta sem ligao com lugar nenhum, tornando-se um dos exemplos de grandes projetos no efetivados.
160.
191
Essa reao reivindicatria dos ndios com relao terra surgiu no final dos anos 60, na regio do Surumu (cf. Cap. 2, pp. 132-33). Nessa poca, o governo do Territrio Federal negou a existncia de conflito fundirio entre ndios e fazendeiros, pois, segundo sua viso, todos viviam numa relao de compadrio ou de trocas de servios sem delimitao rgida entre a fronteira das propriedades e das relaes scio-culturais. As sedes das fazendas e Malocas conviviam sem atritos fundirios, os ndios circulavam sem obstculos pelas terras, cultivavam roas, caavam e chegavam aos rios e lagos para usufrurem da gua e da pesca. Com a chegada dos novos fazendeiros (paulistas, paranaenses, gachos), nos anos 70, evidenciou-se a mudana no gerenciamento das fazendas, com o fechamento da circulao indgena pelas terras cercadas. Os novos empresrios da agropecuria, sem entender o conjunto de significaes culturais do ndio nessa regio, inauguraram uma nova fase de embates envolvendo ndios, nondios e o Estado. Aps o bloqueio com cerca, o ndio foi proibido de transitar pela terra que originariamente lhe pertencia e a nica soluo para as etnias indgenas parecia ser a de integrao no projeto social nacional. Para o governo, os ndios dividiram-se em dois grupos: os que buscavam emancipao (pr-nacional) e os que buscavam direito tnico (pr-tradio); o primeiro era digno de seduo do Estado, visto como um cidado brasileiro e o segundo, representava um problema. A FUNAI tinha uma relao paternalista e autoritria com os ndios, haja vista que o indigenismo oficial tinha por fim a transformao de todo ndio em branco:
Qualquer que seja a forma assumida localmente pelo conflito, a FUNAI, com poucas excees, parte do pressuposto que o culpado sempre o ndio e, por isso, ele que tem que demonstrar a sua inocncia e no o fazendeiro. Chega-se ao absurdo de que o ndio a invadir as terras do fazendeiro, (...) O advogado da FUNAI obrigou os ndios a assinarem um documento onde reconheciam, de fato, serem os invasores (CIDR, id.:17).
Os fazendeiros tinham proposto ao governo deslocar os ndios para as terras ao norte de Roraima, mas todas as reas pretendidas (pelos ndios) foram
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invadidas por novos imigrantes fazendeiros e empresrios da agro-indstria, posseiros (pequenos agricultores/comerciantes) ou pelo Estado por meio dos projetos/assentamentos do INCRA. Assim, novas propostas pediam a transferncia do ndio para o interior da mata (CIDR, 1990:35). Tal idia foi rejeitada pelos ndios, que buscavam identidade cultural indgena e passaram a exigir da FUNAI um posicionamento em relao demarcao das reservas indgenas. Os ndios tinham respaldo jurdico, mas existia uma lacuna na orientao da matria acompanhada pela legislao ordinria (desde a Constituio brasileira de 1934) referente aos direitos indgenas. Esses dispositivos constitucionais dependem de legislaes regulamentadoras garantindo o exerccio jurdico do ndio. A FUNAI no apresentava uma soluo de cunho coletivo para as etnias e para os postos indgenas administrados por ela. Em todo o Territrio Federal de Roraima, esses postos desenvolviam atividades de dependncia do ndio, pois a poltica indigenista do Estado acreditava que ele deixaria de ser ndio e se amalgaria no sistema nacional, tornando-se capaz de exercer os direitos da vida civil (MARS, 1999). Diante de tais impasses, no decorrer do projeto governamental, tornou-se necessrio implementar rgos gestores para garantir a aplicabilidade desse programa na Amaznia. Desse modo, o presidente da Repblica, marechal Castelo Branco, criou instituies e rgos oficiais para auxiliar na tarefa polticoadministrativa da regio, visando o seu progresso de cunho capitalista. Tal viso de desenvolvimento amaznico tinha como meta garantir a segurana nacional e integrar todo o territrio brasileiro. O objetivo do governo federal era o de construir um Brasil que se tornaria uma Grande Potncia at o final do sculo XX (HABERT, 1996), j que era visto por ele como um pas prspero e pacfico.
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Assim, promoveu-se um grande projeto de explorao econmica, de colonizao e de integrao da regio amaznica rede viria nacional. Para o sucesso do projeto nacional, firmando a presena do Estado nessa regio, o ndio, identificado como incapaz de produzir qualquer excedente, deveria ser libertado dessa forma atrasada de subsistncia se tornado um aliado do Estado nacional, na instituio da nova necessidade econmica e poltica de um Brasil Grande e fraterno. Essa retomada governamental contribuiu para a instalao do Banco da Amaznia S. A. (BASA), em substituio ao Banco de Crdito da Amaznia (BCA), pela lei 5.122 (28.09.66); a Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia
(SUDAM), pela lei 5.173 (27.10.66); e, por fim, a Zona Franca de Manaus, pelo
decreto-lei de 28.02.67, com sua respectiva superintendncia, a SUFRAMA. Alm desses rgos, pela lei 5.174 (27.10.66), foram criados novos incentivos para expanso dos negcios, isenes e dedues tributrias para investimentos na regio amaznica (cf. COSTA SOBRINHO, 2001:23). As parcerias entre o governo central e o de Roraima foram aos poucos criando estratgias para a convivncia entre o governo militar e a base polticoeconmica local, promovendo uma melhor integrao com a expanso das redes de transporte e comunicaes. A pequena burguesia roraimense necessitava reorganizar o sistema de alianas mantenedoras do sistema poltico do Brasil aps 1964. Para consolidar e organizar o poder administrativo roraimense, as principais intenes governamentais (federal/local) de desenvolvimento para a regio estavam apoiadas nas seguintes metas: a) propagandas do governo gerenciadas pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria) reorganizando as novas correntes imigratrias de diferentes regies brasileiras;
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b) reativao dos assentamentos que foram abandonados pelos colonos161 e implementao de novos ncleos agrcolas; c) instituio de diretrizes162 que favorecessem a permanncia do colono no ncleo agrcola; d) facilitar comunicao, por meio de estradas, com o projeto rodovia Transamaznica e Perimetral Norte163. Construir a regio em espao social civilizado era, tambm, parte dos objetivos contidos no programa da Secretaria Geral do Territrio Federal que no eram diferentes do Plano Nacional de Desenvolvimento e do Plano de Integrao Nacional: a ocupao das terras promovendo a integrao e defesa territorial, tratando de fazer do ndio um aliado e, ao mesmo tempo, um brasileiro-nato. Entre os anos de 1964 a 1985, o governo de Roraima e o governo brasileiro centralizaram aes e planejamentos voltados para ocupar as reas de fronteira, com imigrantes brancos, e para desenvolver a agricultura e a pecuria, na tentativa de integrar essa regio federao brasileira. O INCRA era o rgo federal que conduzia o programa. Por meio dessa poltica governamental foram instalados, entre 1982 a 1991, seis municpios164. Para tanto, o governo ofereceu os seguintes incentivos ao migrante colono e ao ndio emancipado: apoio financeiro, doao de ferramentas agrcolas, sementes e mudas, assistncia tcnica por parte de agrnomos e veterinrios, assistncia mdica e hospitalar, transporte gratuito para a produo chegar ao
161. Com a dcada de 1960, as atividades no garimpo clandestino (ouro e diamante) entravam em decadncia, mas as novas construes urbanas (obras de infra-estrutura), aberturas de estradas e rodovias, os novos ncleos agrcolas e incentivos financeiros abriram outras oportunidades de trabalhos na regio. 162. O programa econmico, com base para a explorao agrcola, preconizava a construo de estradas vicinais, usinas hidreltricas, explorao mineral e florestal, criando um clima de progresso e satisfao pessoal. 163. A Perimetral Norte (BR-210) atravessaria toda Amaznia brasileira de leste a oeste, percorrendo 4.650 km em plena selva para estabelecer nova ligao entre o oceano Atlntico e a fronteira do Acre no Peru, dando cobertura a todos os acessos s regies de fronteira com as Guianas, Venezuela, Colmbia e Peru, cruzando a BR-174 interligada a BR-401 (em Roraima). A Perimetral Norte partiria de Macap, capital do Estado do Amap, cruzando os Estados do Par, Roraima, Amazonas at o Acre. Esse projeto no foi efetivado, ficando toda a rea construda dentro do Estado de Roraima, ao leste em litgio com a reserva Wai Wai e a oeste com a reserva Yanomami. 164. Esse tema ser tratado no item 3.3, abaixo.
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distante mercado consumidor. Esses e outros benefcios eram fundamentais para garantir a fixao do homem branco e do ndio civilizado na terra que ainda era considerada selvagem. Esse modelo de unidade, seja de assentamentos ou de conservao, reacendeu antigos conflitos fundirios entre ndios e no-ndios, pois as reas ditas desabitadas ou intocadas eram j tradicionalmente ocupadas por ndios considerados isolados/selvagens, como os WaimiriAtroari. O ndio, no sculo XVIII, era visto como um animal selvagem. Todavia alguns ndios aderiram cultura do gado introduzida no Rio Branco, deixaram de ser considerados no-civilizados. Esse pensamento de desvalorizao da cultura do ndio, reapareceu, no final do sculo XIX e por todo o sculo XX, na idia de parques nacionais concebidos pelo Estado e demarcados em imensas reas de terra desabitada ou selvagem para preservao da vida em seu habitat natural (DIEGUES, 2001). As correntes migratrias dos anos 70 (em grande parte militares e
Em 1964, a fronteira brasileira com a ex-Guiana Inglesa viveu um conflito em razo da revoluo entre os ingleses habitantes da Guiana e o Imprio Britnico. Os ingleses defensores da autonomia estatal entraram em luta contra a Gr-Bretanha, transformando a Guiana em um Estado independente. Em 1968, surgiram novos incidentes na reorganizao do espao social e da poltica interna, na qual os habitantes nativos (maioria negros) expulsaram do poder administrativo a elite britnica local (branca). Muitas famlias fugiram para Roraima, depois se deslocaram para outras regies do Brasil, dos Estados Unidos, Canad e Europa.
165.
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A nova dinmica scio-cultural, com imigrantes166 de diferentes experincias culturais, ampliou o grupo social de oposio ao ndio. Esse grupo encarnou a concepo burguesa clssica de que o Estado nacional e o direito privado no tinham lugar para o direito coletivo do ndio que, deveria ser eliminado dando lugar ao exerccio de direito do cidado livre (MARS, 1999). O governo (local/federal) buscava compatibilizar os diferentes interesses polticos e econmicos das elites tradicionais167 locais, dos missionrios, dos administradores da FUNAI e dos lderes indgenas. Teria que possibilitar a participao de todos na esfera governamental da regio, aglutinando os interesses da nova forma de representao (setores da sociedade constituda
por representantes do comrcio, da agro-pecuria, dos militares, dos polticos e dos religiosos).
Para eliminar esses conflitos fundirios no Estado foram tomadas as primeiras iniciativas governamentais, com a elaborao e implantao de uma poltica de diviso de terras mais abrangente: o Projeto Fundirio Boa Vista 168 de 1972, foi criado para nortear uma poltica agrria e solucionar a questo das terras em Roraima. Tal objetivo no foi alcanado e os tcnicos responsveis pelo setor esperavam que o tema fosse retomado com a instalao do Estado em 1991 (cf.
Fundao AMBTEC, 1994). Nessa poca, apesar do frgil avano econmico, os
Os militares que chegavam e atendiam as instrues para a defesa da fronteira nacional em conflito, a elite civil que chegava e atendia a emergncia tecnoburocrtica com as novas instituies e rgos governamentais instalados em Boa Vista, as famlias britnicas que chegavam fugindo dos conflitos armados na Guiana (o Estado Independente e desestruturado em sua vivncia poltica, social e econmica). Do ponto de vista terico, a presena fsica desses grupos sociais e suas vivncias e interesses diferentes em Roraima, em fins dos anos 60 e comeo dos 70, aumentavam a difcil experincia scio-cultural (entre ndios e no-ndios) que estava em curso. 167. Os descendentes dos pioneiros brancos. 168. Tal projeto tinha por finalidade transferir para Roraima o gerenciamento das terras da Unio. O INCRA (Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria) fora criado pelo poder federal em 1970 e era o rgo responsvel pelas terras dessa regio.
166.
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conflitos entre ndios e no-ndios na disputa das terras aumentaram e ganharam repercusso nacional e internacional169. Esse projeto no ofereceu uma soluo ao desafio existente: um mosaico scio-cultural e diferentes interesses econmicos no usufruto da terra. Sem avanos concretos nessa questo, em 1976, o referido projeto sofreu novas mudanas e foi denominado Projeto Fundirio Roraima. Ele estava subordinado Coordenadoria Regional do Extremo Norte, com sede em Manaus, que detinha o poder jurdico sobre toda a regio do ento Territrio Federal de Roraima. Com uma frgil atuao decorrente da distncia do foro de decises e da precariedade entre as comunicaes internas e externas (como no recente passado), esse projeto tambm no solucionou os impasses fundirios. Tal situao no aconteceu s em Roraima mas tambm em outras regies brasileiras que viviam em conflito fundirio, causado pelos movimentos sociais, ocorridos na fase de transio poltica, iniciada nos anos 70. Nesse sentido, a partir da dcada de 1970, com o processo de redemocratizao do pas, o Estado nacional percebeu que as etnias indgenas haviam crescido e se organizado, pressionando, por meio de movimentos polticos, o reconhecimento de seus prprios direitos originrios e de organizao cultural distinta da nacional. Com a publicao do Estatuto do ndio em 1973, as organizaes indgenas de Roraima comearam a pensar na possibilidade de demarcao de suas terras, entrando em litgio com os fazendeiros. Estes, por sua vez, organizados em Cooperativa dos Pecuaristas, protestaram contra as
169. Cf. Comentrios nossos e nota do Jornal do Brasil (25/06/89) no Captulo 3, pp. 130/133. Campanhas em prol dos ndios contra a permanncia de mineradoras e garimpeiros em terras indgenas pela Diocese de Roraima com apoio de ONGs nacionais e internacionais, entre 1987-90. Relatrio da ONG FOEI (Friends of the Earth, em 14/04/91) de apoio ao projeto do Programa Piloto (PPTAL) do governo brasileiro em parceria com o G-7, para a Amaznia Legal. Declarao Indgena, em Luxemburgo/Blgica, durante a Conferncia sobre o Programa Piloto (PPTAL) do governo brasileiro em pareceria com o G-7, para as florestas amaznicas, em 9/06/91. Briefing on the G-7 Pilot Programme for Brazil. Relatrio da ONG OXFAM, em 12/07/91.
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reivindicaes dos ndios e solicitaram ao governo uma redefinio fundiria, salvaguardando os seus prprios negcios com a terra:
Se excluirmos as fazendas histricas que obtiveram ttulos de propriedade ainda na poca da Colnia (Gro-Par) ou do Estado Republicano do Amazonas, o restante das fazendas ou est sem nenhum reconhecimento oficial, ou tem apenas ttulo de posse e no de propriedade. Nestes casos, sendo difcil a transio de um dono para outro, os fazendeiros que querem vender (ou comprar), agem da seguinte maneira: vendem ao comprador as benfeitorias (barracos, rvores frutferas, cercados, curral, etc.) e, com isso, o novo dono adquire, automaticamente, o uso da terra. Assim os ndios vem mudar de patro a terra que, no fim das contas, reconhecem como prpria. E, claramente, o novo dono, talvez, nem sabia que havia ndios nas terras compradas (CIDR, 1990: 8).
Nesse quadro, acentuando a imagem de um aparente processo civilizatrio de Roraima, tornaram a emergir os dois grandes focos de atritos na sociedade local: os conflitos entre identidades/culturas e a indefinio fundiria. A derrota do governo e da elite nacional local nesse processo se dava pela quase agregao das etnias indgenas na sociedade brasileira. O governo do Territrio Federal acreditava que os enfrentamentos tnicos seriam dissolvidos no contexto social roraimense estreitamente inserido na herana histrica, que obrigava o ndio a abandonar sua prpria identidade tnica, assumindo a nacionalidade brasileira e a tutela do governo:
O tuxaua Bento, Wapixana, da maloca de Ara denunciou: chegou um fazendeiro e disse que ele tinha muito dinheiro no banco e podia matar qualquer ndio como se mata cachorro. (...) a superioridade dos brancos compe-se do elemento principal da sociedade dos brancos: aquele que tem dinheiro domina. o dinheiro que permite aos brancos dominarem os ndios. Esta ideologia acaba envolvendo tambm o ndio: por meio do dinheiro que o branco convence o ndio a trabalhar para ele e assim consegue dividir a maloca (CIDR, 1990:55).
No que se refere ao registro acima, perceptvel a repetio com que imposta ao ndio a noo de que tudo tem um valor econmico. O ndio seria ento como uma propriedade, uma parte da terra, integrado sua fauna. Em outro momento, na medida que os grupos indgenas eram considerados semelhantes aos pequenos produtores pobres - os posseiros - a questo fundiria
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teve equvocos constitucionais quanto regulamentao da matria, que foram herdados das normas de organizao do poder brasileiro. Nesse jogo de poder, os incentivos governamentais foram aplicados s necessidades das correntes imigratrias e aos negcios da agropecuria. Nessa tradio monocultural, o governo local foi buscar alianas polticas e jurdicas para a transformao do espao social, criando novos municpios, com vistas retomada da pacificao dos ndios170 e apoio aos migrantes colonos com a instalao de novos ncleos urbanos. O principal objetivo desse planejamento governamental era fixar o homem branco na regio. Todavia, com as precrias condies dos ncleos agrcolas e a dificuldade de transporte para colocar no mercado consumidor os seus produtos171 os imigrantes colonos abandonavam a atividade agrria. Esses ncleos estavam constantemente recebendo novas famlias de colonos brancos, que chegavam em busca de melhores condies de vida, seduzidos pelas propagandas governamentais. Sem conseguirem firmar uma autonomia econmica, essas levas imigratrias, isoladas geograficamente, formavam uma outra corrente migratria interna. Instalavam-se em outras reas de assentamento com melhores condies de infra-estrutura ou migravam para a capital, engrossando os bolses de misria na periferia urbana de Boa Vista. Entre os anos de 1960 at os de 1980, essas estratgias polticas do governo Federal em parceria com os governadores172 de Roraima, tornaram perceptveis as reformas na regio por meio do planejamento infra-estrutural urbano e do programa virio, abrindo conexes entre as estradas e as rodovias. Essas reformas possibilitariam a melhoria dos servios pblicos e do transporte
170. 171
O processo de civilizao do ndio estava constantemente voltando ao ponto zero. Devido longa distncia entre o ncleo agrcola e o mercado, muitas vezes os produtos pereciam no
local.
172. Entre os governadores construtores estavam: o Coronel Hlio da Costa Campos, o Coronel Fernando Ramos Pereira e o Brigadeiro Ottomar de Souza Pinto.
200
da produo agrcola, reduzindo os custos e o tempo em relao ao sistema fluvial, oferecendo ao homem do capital oportunidade de investimentos para acelerar o desenvolvimento econmico de Roraima.
ANO
1940 1950 1960 1970 1980 1991
TOTAL
10.541 18.116 28.304 40.885 79.159 217.583173
Ano
1940 1950 1960 1970 1980 1991
Total
100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00
Quadro Demonstrativo 03 Estado de Roraima. Populao Rural e Urbana: importncia relativa (%) 1940/ 1950/ 1960/ 1970/ 1980/ 1991
Fonte: IBGE. Censo Estado do Amazonas (1940). Censo Roraima (vrios anos). Apud BARROS, 1995.
Embora no claramente definidas, nem nas leis nem nos programas, as medidas polticas e econmicas governamentais beneficiavam a elite local, enquanto a massa populacional e, inserida nela, o ndio ficava de fora. Observamos que, nos anos 70, Roraima contava com um total de 40.883 habitantes residentes e, em 1980174, o total aumentou para de 79.159, sendo que 61,57% desses habitantes estavam concentrados na capital Boa Vista.
173. O Censo faz referncia populao branca e, como j foi dito, no h um recenseamento sobre as etnias indgenas: Makuxi, Wapixana, Ingarik, Taurepang, Yanomami, Mayongong, Wai Wai, Waimiri-Atroari, entre outras menores. No entanto, h alguns dados levantados por pesquisadores, da FUNAI e de ONGs comentados no Captulo 2, pp. 135-136 e demonstrados no Quadro 01. De acordo com o Censo acima, do total de 217.583 habitantes no Estado, 122.600 eram residentes na capital Boa Vista (IBGE, vrios Censos). 174. At 1980, o Territrio Federal de Roraima contava apenas com dois municpios: a capital Boa Vista e Caracara como cidade-porto que recebe os transportes fluviais de carga destinados capital. O transporte entre
201
Ao longo do processo de conquista e colonizao dessa regio amaznica, verificamos trs diferentes posturas indgenas. Algumas famlias dos grupos indgenas (Yanomami, Wai Wai, Ingarik, Waimiri-Atroari) preservaram sua tradio cultural (organizao social, lngua, mitos, ritos), representante da sua relao com o mundo natural. J outras famlias indgenas dos grupos (Makuxi, Wapixana, Tauerpang) e tambm dos mesmos grupos tnicos anteriores optaram por romper com o passado cultural, no mais vendo a terra como um ente familiar e sim como um referencial para o comrcio. O terceiro contingente de famlias indgenas (Maiongong e, tambm, dos mesmos grupos tnicos citados), por um lado conservou parte da memria dos velhos de forte relao com a terra mas, igualmente, em menor grau passou a v-la como fonte possvel de comercializao. Nessa histria contempornea das relaes entre as famlias indgenas, divididas pelo novo tempo de relaes poltico-sociais com o Estado, a tradicional guerra e troca tribal, parte constituinte da cultura original, apareceram como aes conflitantes entre os grupos indgenas. O conflito interno entre as famlias indgenas j estava presente no sculo XVIII, quando a administrao portuguesa, por meio dos Aldeamentos e Fortes, imps novas formas polticas e culturais dividindo as famlias Wapixana, Makuxi, Sapar, Paravilhana e outras que se deslocaram para os ncleos de comercializao holandesa, ou fugiram dos brancos indo para o interior da selva ou tentaram ser iguais aos brancos, civilizando-se. Esse processo desencadeador de significativos confrontos polticos e culturais entre as famlias indgenas instigou novos conflitos de identidade e questionamentos ligados aos direitos indgenas nos ltimos trinta anos do sculo
Caracara e Boa Vista feito por estrada, por causa das cachoeiras e/ou corredeiras no trecho do Rio Branco entre os dois municpios dificultando a navegao de embarcaes de maior porte. Aps a abertura da BR-174, o fluxo de transportes, mercadorias e pessoas aumentou.
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XX, dividindo as prprias famlias e aumentando os seus sofrimentos em relao identidade cultural. Os ndios indagavam o intrprete (FUNAI) e o julgador (Poder Judicirio) e no conseguiam entender o que dizia o texto constitucional e os equvocos na sua aplicabilidade. Para o ndio, o final da dcada de 1980 se apresentou como um novo tempo, distinto das cruis e desumanas aes do antigo SPI (Servio de Proteo ao ndio), que nem sempre aplicava a poltica indigenista em favor do ndio:
O SPI, a partir de 1950, iniciou um processo de decadncia administrativa, fruto de corrupo, uso indevido das terras indgenas e suas utilidades, venda de atestados de inexistncia de ndios, que possibilitavam o extermnio e legitimavam a usurpao das terras, tornando-se um instrumento de opresso do Estado contra as populaes indgenas, exatamente o contrrio dos objetivos para os quais fora criado quarenta anos antes (MARS, 1999:58).
A situao de desmando e injustia, geradas pela agncia indigenista oficial, permitiram a aplicao de mecanismos opressores ao ndio, em desrespeito legislao ento vigente e, na maior parte das vezes, no era considerada a existncia indgena. Entre os anos 40 at os iniciais dos 80, a poltica indigenista punia com normas do Direito Penal o ndio que reagia contra esse projeto social nacional. Na realidade, quando no havia entendimento oficial, doutrinrio ou jurisprudencial discordante, na aplicao de pena ao ndio, o Direito se mantinha em um silncio envergonhado (SOUZA FILHO, 1994:164). A leitura poltico-jurdica estabeleceu novos entendimentos sobre o ndio contra a emancipao, que ganhara fora aps a troca do SPI pela FUNAI (1968). Nesse sentido, a poltica indigenista do Estado ganhou, tambm, algumas alteraes aps a elaborao do Estatuto do ndio, criado com a Lei n. 6001, de 19 de dezembro de 1973, ainda em vigor175.
175.
203
Esse Estatuto apresentou um conjunto de regras para o entendimento das diversas organizaes scio-culturais dos ndios, de suas crenas e lnguas indgenas, indicando um tratamento diferente de acordo com o seu grau de emancipao, na tentativa de romper com o projeto de integrao indgena na sociedade nacional. Contudo, sem apoio constitucional e legalizao pelo Poder Judicirio, as normas desse Estatuto eram aplicadas pelo juiz segundo o princpio do grau de integrao do ndio na sociedade nacional. Assim, ofereceu subsdios para a compreenso do prprio termo que identifica a populao tribal e previa, no artigo 4, uma classificao de trs categorias indgenas: a) isolados (famlias que vivem na maloca sem contato com branco, preservando a cultura original); b) em vias de integrao (famlias que vivem na maloca ou no centro urbano, recm contactadas e com aspirao a civilizao); c) integrados (famlias que assumiram a cultura nacional, vivem nos centros urbanos e no desejam ser identificadas como indgenas). Tal classificao no foi alterada aps a Constituio Federal de 1988 e todos so reconhecidos pelo termo genrico de ndios. Quando os ndios so incorporados na sociedade nacional exercem os mesmo direitos civis, ainda que conservem suas prprias organizaes scio-culturais (cf. SOUZA FILHO,
1994:153/168; MARS, 1999:53/78). De qualquer maneira, patente a concepo de
marginalidade em que visto, pelos dirigentes, o ndio que preserva sua cultura: isolado.
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Como nos programas176 anteriores do poder central, novamente, a proposta governamental de cunho poltico e econmico para a Amaznia, na gesto dos presidentes militares, tinha, tambm, o interesse voltado para a ocupao e a defesa da terra desabitada. Na tentativa de estabilizar a crise econmica, um dos objetivos governista era o expurgo dos sujeitos polticos e atores sociais corruptos com medidas duras para o fechamento de todas as torneiras de recursos para o clientelismo177 (ABRUCIO, 1998:60). Alm disso, os governos militares, em nome da ordem e defesa da nao, apoiaram campanhas contra a ameaa comunista. Assim sendo, as reunies realizadas pelos tuxauas e lderes indgenas na misso Surumu eram tambm consideradas como ameaa ao projeto de emancipao indgena. A FUNAI, que olhava tais encontros como subverso antipatritica, definiu uma linha de ao em que deveriam ser ignorados os tuxauas e lderes indgenas e proibiu as reunies (id., ibid.). Esse conflito entre ndios e no-ndios, envolvendo a organizao do poder pblico local, ganhou mais complexidade com o surgimento do INCRA (Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria). Esse rgo federal, criado pelo Decreto-Lei n. 1.110 de 1970, tornou-se responsvel pelas terras em Roraima. Em parceria com o governo, estadual esse rgo gerencia os projetos de colonizao/assentamento, sendo auxiliado pelas prefeituras dos municpios estaduais. Nessa realidade fundiria, existem algumas reas destinadas a particulares, algumas possuindo ttulos e outras esperando uma definio competente e
176. Esses programas eram voltados para os ncleos agrcolas, criados para garantir a posse da terra pelo Estado que gerenciava tudo por meio do INCRA. Como no apresentavam infra-estrutura adequada, tais ncleos eram, em geral, abandonados. Contudo, alguns, sobreviveram desenvolvendo criao de animais (porco, carneiro, galinha) e lavoura de subsistncia. 177. Um exemplo de fechamento das torneiras a extino do SPI (Servio de Proteo ao ndio), em 1967, causada por escndalos relacionados corrupo, pelo uso indevido das terras indgenas, possibilitando usurpao de legitimidade (ocupao de boa-f) em favor dos no-ndios (cf. MARS, 1999:58).
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registro oficial. Alm disso, existem as terras sob domnio de outras instituies federais: sob jurisdio da FUNAI esto as reas reivindicadas para as reservas indgenas, enquanto as que esto sob jurisdio do Exrcito aquelas destinadas a se tornarem reas de defesa das fronteiras, com fortificaes e construes militares. As terras demarcadas como unidades de conservao e preservao ecolgica, como tambm os parques nacionais, so gerenciadas pelo IBAMA. As normas que reconheciam a reivindicao das terras, envolvendo ndios, no-ndios e instituies governamentais em Roraima foram, na maior parte, elaboradas aps os anos 80, principalmente com a promulgao da Constituio Federal de 1988. No entanto, no dispomos do percentual da diviso de terras entre os segmentos sociais j citados, entre 1970-80178. Porm, no incio dos anos 90, foi divulgado o seguinte percentual das reas sob tais entes:
rgo Percentual rea (ha) INCRA 28,02 6.447.052,5 FUNAI 39,40 9.067.438,4 EXRCITO 2,85 656.000,0 IBAMA 2,11 487.000,0 DEVOLUTAS 5,41 TOTAL 77,79 16.657.490,9
Quadro Demonstrativo 04 Terras sob o domnio da Unio em Roraima. Fonte: Ambtec, 1993. Diante dessa situao fundiria, o Executivo estadual disputa com o federal o aumento do percentual de terras estaduais que somam um pouco mais de 10% de sua rea territorial total.
178. Esse perodo foi de tenses sociais crescentes por causa da organizao dos ndios ligados Diocese de Roraima, dos programas para o desenvolvimento e integrao da Amaznia Legal ao territrio nacional (PND e o PIN, p. 187) que atraram contingentes que fugiam da seca e do desemprego, como tambm, burocratas, militares e civis, os quais foram inseridos numa situao scio-cultural e fundiria desconhecida.
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A situao do ndio, sem uma efetiva garantia de direito como primeiro habitante, permitiu ao executivo estadual dar a tal situao uma importncia poltica. Os interesses dos ndios eram regulados segundo os interesses do prprio governo e da elite local e disso se tinha clara conscincia:
No comeo de 1982, com a presena de autoridades civis e religiosas, foi inaugurada uma agncia do Bamerindus em Boa Vista. Parecia ser um banco a mais no meio dos muitos que j funcionam em Boa Vista, mas no foi bem assim. O Bamerindus comeou a comprar as terras localizadas s margens das estradas BR-174 e BR-401. Assim chega tambm em Roraima esta maneira de usar a terra: o investimento imobilirio. Alm do que, o banco poder realizar investimentos concretos nas propriedades, bem como servir de testa-de-ferro para outros capitalistas do sul do pas. Quilmetros de cercados j foram construdos para delimitar estas terras e instalaram placas proibindo a entrada de estranhos. No comeo de 1983, essa privatizao de terras j inclua parte da rea dos ndios Wapixana da regio do Taiano e fica difcil prever o que acontecer no futuro (CIDR, 1989:78).
Contudo, a percepo do grupo de pesquisadores do Centro de Informao da Diocese de Roraima, que delineava a conscincia dos problemas pendentes da dcada de 80, no atingiu polticos e governantes. Os mesmos problemas chegaram at os anos 90, e de novo sem voz e sem vez, o ndio continuou perdendo seu territrio explorao imobiliria do capital, nesse projeto econmico voltado para a privatizao da terra. Ao buscar recursos para projetos de explorao agro-florestal e agropecuria, o governo, apregoando benefcios para todos, no abria mo das terras que poderiam dar lucros ao Estado/Unio, introduzindo um processo de especulao, de concentrao fundiria e invaso por grupos de explorao de minrios:
Desde 1983, com a promulgao do Decreto n. 88.985, pelo ento presidente Figueiredo, abrindo as terras indgenas minerao179, as presses contra os ndios tm evoludo de forma crescente, embora com variaes de tticas por parte dos setores envolvidos. De um lado, as empresas de minerao tentam ganhar no papel a legalizao das reas de pesquisa de lavra como condio de segurana para seus investimentos de capital. De
O projeto Radam-Brasil de aerofotometria divulgou, em 1975, notcias dando existncia de minrios preciosos (ouro, urnio, cassiterita) na rea territorial reivindicada pelos ndios Yanomami. Em 1983, com o Decreto do Presidente Joo Figueiredo, regulamentando minerao branca em terras indgenas, grandes grupos de minerao foram estimulados para atividades de explorao nas terras de Roraima. Em 1988, essa atividade extrativa mineral, em terras consideradas indgenas, ganhou fora com autorizao do Presidente Jos Sarney, em parceria com o governo de Roraima (Romero Juc).
179.
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outro, os empresrios do garimpeiro fomentam invases e intruses de garimpeiros em vrias reas indgenas, buscando por meio do fato consumado, antecipar-se s empresas. Entre os dois tipos de invasores esto os ndios, acossados e desinformados, sujeitos a manobras de cooptao e forados a negociar em condies extremamente desiguais (Dossi CEDI-CONAGE, 1988. Apud ROCHA, 1994:218).
Semelhante aos acontecimentos do passado, os invasores saqueavam as terras dos ndios em busca do ouro e diamantes, e, no processo, destruam ou dividiam as famlias (a favor ou contra o branco) forando-os ao trabalho em prol de projeto econmico alheio. Esse modelo de desenvolvimento foi acentuado aps 1985, quando garimpeiros atuaram em diversas reas180 de Roraima. O governo local, em parceria com o federal, deu um novo arranjo geopoltico a Roraima no incio da dcada de 80. Novas reas territoriais de municpios181 foram instaladas, embora contestadas pelas etnias indgenas (cf.
Mapas 05 e 06, abaixo pp.250-251), que aguardavam pela legalizao de seus direitos
como primeiros habitantes. Essa dramtica realidade experimentada pelo ndio, que era expulso da terra onde sempre viveu, foi novamente ignorada na cristalizao da diviso poltica, exclusivamente branca, da terra de Roraima.
180. 181.
Territrio dos Yanomami, dos Makuxi, dos Ingarik, dos Wapixana, dos Wai Wai, entre outros. Esse tema ser retomado abaixo, no item 3.2.
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aumentando o poder de barganha do executivo roraimense, privilegiado pelo trajeto da redemocratizao brasileira. Tais medidas se cristalizaram na Lei Federal n. 7.009 de 1 de julho de 1982 que instalara seis municpios: Mucaja, So Lus do Anau, So Joo da Baliza (com terras desmembradas de Caracara), Normandia, Bonfim e Alto Alegre (com terras desmembradas de Boa Vista). A partir desse desmembramento das imensas terras pertencentes aos municpios de Boa Vista e Caracarai, dentro de um sistema governamental de controle tanto administrativo como geopoltico, o governo de Roraima ampliou o seu poder formando coalizes com os governos e os representantes polticos dos novos municpios. Essa estratgia poltica governamental, com caractersticas da antiga prtica cultural coronelstica, assegurou ao executivo do Territrio Federal e seus aliados polticos, poder de atuao conjunta tanto na esfera das relaes locais como na esfera Federal. Esse modelo poltico roraimense, aparentemente descentralizado, foi adotado no s nessa regio amaznica mas tambm em outras regies brasileiras. Isso possibilitou uma ilusria participao dos municpios e da sociedade local (ndios e no-ndios) nas polticas pblicas e administrativas do governo. Contudo, o projeto poltico de criao de novos municpios pelo governo entrou em choque com as reivindicaes de demarcao de reas indgenas pelos ndios ligados Igreja Catlica. As instituies governamentais (local e central) passaram a disputar entre si e com os ndios as mesmas reas territoriais. Em 1983, o Bispo Diocesano escrevera uma carta aos catlicos de Roraima pedindo para que olhassem essa situao indgena e convidara os fiis para uma avaliao das injustias de que os ndios eram vtimas. Embora tenham decorrido quase dez anos, a situao no fora alterada e a carta do Bispo foi
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reimpressa em 1990, momento de grande tenso envolvendo o Estado, empresas mineradoras e ndios que tiveram suas terras invadidas por um grande contingente de garimpeiros (cf. Cap. 2, item 2.2). Diante do quadro de violncia e perseguio aos ndios, o Bispo Diocesano, novamente, fazia um convite aos fiis para refletirem sobre essa questo da terra e da angstia do ndio:
Tm acontecido coisas de difcil explicao. Em reas indgenas continua-se incentivando a fazenda fazer benfeitorias e probe-se muitas vezes o ndio de atuar. Na Maloca do Temerm um fazendeiro tocou fogo na residncia do ndio. O mesmo aconteceu no Mudubim e Xeriqui. As providncias tomadas para moderar estes excessos foram quase nulas e pelo contrrio por uma ao de defesa realizada pelos ndios da Barata, para se proteger das ameaas do fazendeiro, foi logo aprisionado o Tuxaua e mantido quinze dias incomunicvel, alegando imaginria emboscada (Carta Pastoral sobre os ndios, 1983, Apud, CIDR: 1990: 83).
Abria-se, assim, discusso sobre o amplo confronto de interesses pelas terras de Roraima, com a Unio, o Estado, os ndios e os no-ndios (fazendeiros e empresrios da agro-indstria, comerciantes) disputando as mesmas reas, com objetivos diversos. Entre 1980 a 1982, a FUNAI tinha sido pressionada pelos ndios ligados ao
CIR (Conselho Indgena de Roraima) e Diocese de Roraima e, com isso,
formalizou a situao jurdica com a demarcao de pequenas reas indgenas182 (ilhas) dentro dos territrios que no estavam envolvidos em grandes conflitos. A
FUNAI havia prometido pagar indenizao das benfeitorias existentes, mas no
cumpriu o combinado e os ndios no aceitaram a presena de brancos nas reas demarcadas. Assim, eles retiraram os marcos colocados pelos tcnicos da FUNAI que delimitavam o terreno (CIDR, 1990). A confuso foi ampliada: a FUNAI no se entendia com a Igreja Catlica, os ndios e os no-ndios reagiam contra os decretos de delimitao da FUNAI, o governo do Estado criava municpios e o
182. rea Indgena Mangueira, Ponta da Serra, Ara e Mano-Pium, com grande contingente Makuxi, localizadas dentro de terras que eram de posse (ocupao de boa-f) (cf. CIDR, 1989:78).
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Federal projetava parques nacionais e programas de explorao do ecoturismo. Essa situao perdura at o nosso momento (2003) na Justia Federal. Esse modelo, envolvido em processo de impedimento ou ameaa, intensificou a tal ponto a confuso fundiria em Roraima, que, aps 1991, as reas de fronteiras internacionais (Guiana e Venezuela) reivindicadas pelos ndios e o governo local ganharam novos adeptos na disputa, com a entrada do Exrcito na construo de Pelotes de Fronteira, por meio da implantao do Projeto Calha Norte do governo federal. Os textos constitucionais (Federal/Estadual) e os vrios desencontros envolvendo os interesses polticos e econmicos dos habitantes de Roraima, no eram percebidos ou, mesmo, escamoteados, que, apesar deles, o territrio reprogramado, feio branca, em novas divises polticas.
Roraima. Contudo, no temos notcias de recenseamento dos ndios concentrados nos bairros perifricos da capital ou nos bolses de misria urbana, embora saibamos que seu contingente aumenta, com grupos vindos at do exterior:
Os ingleses, como so chamados os ndios vindos da Repblica Cooperativista da Guiana, representam para a sociedade boavistense a nova mo-de-obra barata. So explorados e discriminados. No sabem nem falar portugus, comenta muita gente. Aceitam qualquer tipo de trabalho. Muitos acabam sendo presos. Parecem repetir a mesma triste histria dos parentes brasileiros que moram na cidade (FERRI, 1990:39).
Tambm Wapixana ou Makuxi, residentes nas terras que delimitam a fronteira entre o Brasil e a Guiana, aviltados em seus direitos tnicos, fogem dos conflitos com os no-ndios pela posse do territrio da maloca e buscam melhores condies de vida na capital do Estado, onde esto situados nas camadas mais baixas da sociedade. Essa situao do ndio na capital do Estado, entre 1988-91, gerou, outra vez, a necessidade de criao de novas alianas mediadoras entre ndios e nondios no contexto urbano:
Em todo caso, nunca os brancos conseguiram colocar-se como nicos mediadores das trocas e, onde o fizeram, introduziram a monetarizao que degradou o sistema. Os ndios continuaram a relacionar-se entre si, mas utilizando as novas mercadorias dos brancos junto a seus produtos tradicionais. Contudo, sendo agora as mercadorias de origens culturais diferentes (indgenas e branca), atribuio de valor tradicional, misturouse ao valor dos brancos, isto , o dinheiro. Isso acontece mesmo quando o dinheiro no entra diretamente na troca (CIDR, 1989: 81).
Roraima), tentam impor-se como mediadoras entre os ndios que migraram para Boa Vista. Mas, por causa do preconceito que essas ongs indgenas encontram na cidade, em geral, o ndio foge dessa solidariedade.
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Assim, o contato entre ndios e no-ndios nos outros municpios no so diferentes do que ocorre na capital Boa Vista, embora ocorram variaes localizadas, em funo de problemas especficos.
A cidade surgiu em 1953, a partir de um pequeno aglomerado de moradias da colnia agrcola Coronel Mota. Em 1977, o povoado foi transformado em vila e, em 1982, com a Lei Federal n. 7.009 foi criado o municpio de Alto Alegre. Sua rea territorial de 26.109,70 km. Parte de seu territrio est dentro da reserva indgena Yanomami. Distncia de Boa Vista: 80 km. Em 1991, a populao184 era estimada em 11.211 habitantes, sendo 3.356 moradores urbanos (IBGE, 1991). 3.2.3 Bonfim
A cidade, que fica na fronteira com a Guiana, surgiu no final do sculo XIX. a porta rodoviria (BR-401) entre Brasil e Guiana. Tornou-se municpio
183. A partir daqui, todas as fotos que ilustram os Municpios so do Instituto Fecor de Pesquisa e Desenvolvimento. Boa Vista/RR. Abril de 2000. 184. O censo do IBGE (1991) no fez referncia populao indgena.
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em julho de 1982 pela Lei Federal n. 7.009. Na dcada de 1960, fora instalado o Primeiro Peloto Especial de Fronteira, aumentando o contingente militar na regio. Possui uma rea territorial de 8.131 km, 21% da qual (1.756,73 km) indgena. Distncia de Boa Vista: 124 km. Em 1991, o total de habitantes era de 5.436, sendo que 1.221 eram moradores urbanos (IBGE, 1991). 3.2.4 Caracarai
A pequena cidade porto surgiu como um lugar de descanso para tropas de gado que saam do antigo municpio de Moura 185, o qual deu origem ao Territrio Federal do Rio Branco e depois Roraima. As primeiras habitaes datam do incio do sculo XIX. Em maio de 1955, pela Lei 2.495, fora transformada em municpio. Sua rea territorial de 47.623,6 km, da qual 7.638,06 km so dos ndios Yanomami. Distncia de Boa Vista: 134 km. Em 1991, a populao era de aproximadamente 8.773 habitantes, sendo 5.139 moradores urbanos (IBGE, 1991).
Faltam estudos sobre esse importante municpio na consolidao do Estado portugus nessa regio do Rio Branco. O nome de Freguesia de Moura aparece no sculo XIX, no Decreto n. 132 de 09 de julho de 1865. Nesse Decreto, o territrio de Moura foi desmembrado, tendo seu limite abaixo das cachoeiras do Rio Branco, dando origem ao territrio da nova Freguesia de Nossa Senhora do Carmo (Boa Vista), com limite a partir dessa rea das cachoeiras at a fronteira com a Venezuela e Guiana, na poca indefinidas.
185.
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3.2.5 Mucaja
A cidade surgiu com a instalao de uma unidade do 6 Batalho de Engenharia e Construo nas margens do Rio Mucaja, para construir a BR-174 que ligaria Boa Vista ao Porto de Caracara, em meados da dcada de 1970. Na poca, j havia um pequeno ncleo comercial e de repouso, conhecido como colnia agrcola Fernando Costa, criada em 1951. Com a chegada do 6 BEC, dos operrios e seus familiares, o vilarejo aumentou o nmero de moradias e foi transformado em municpio em julho de 1982 pela Lei Federal n. 7.009. Possui rea territorial de 9.740 km e uma parte dessa rea est na reserva indgena Yanomami. Distncia de Boa Vista: 52 km. Em 1991, a populao era de 11.272 habitantes, sendo que 5.222 eram moradores urbanos (IBGE, 1991). 3.2.6 Normandia
Contam os antigos moradores que o pequeno ncleo urbano recebeu esse nome em homenagem a um grupo de condenados liderados por Henri Charrire (Pappillon). Ele teria escapado de uma priso de segurana mxima na ilha do
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Diabo, no litoral norte da Guiana Francesa, conseguindo chegar nessa regio. Resolveu fixar residncia no local, dando-lhe o nome de Normandia. O povoado foi transformado em municpio em julho de 1982 pela Lei Federal n. 7.009. Sua rea territorial de 7.007,9 km, sendo que 6.913,58 km so de rea indgena Raposa Serra do Sol, correspondendo a 98,65% do total. Distncia de Boa Vista: 183 km. Em 1991, a populao era estimada em 5.223 habitantes, sendo 1.146 moradores urbanos (IBGE, 1991). 3.2.7 So Joo da Baliza
O povoado surgiu nos primeiros anos da dcada de 1980, com a abertura da BR-210 (Perimetral Norte). Em julho de 1982 foi transformado em municpio pela Lei Federal n. 7.009. Sua rea territorial de 4.324,70 km, desse total 1.797,56 km so de rea indgena Wai Wai. Distncia de Boa Vista: 327 km. Em 1991, a populao era de 6.328 habitantes, sendo que 2.309 eram moradores urbanos (IBGE, 1991).
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O vilarejo surgiu com o projeto poltico e econmico do governo brasileiro de ocupao e integrao da Amaznia Legal, com a expanso das fronteiras agrcolas nacionais e a construo da BR-210. O lugar faria parte da nova transamaznica de integrao do Atlntico (Macap) ao Peru, como corredor de importao/exportao j que atravessaria os Estados do Par, Roraima, Amazonas e Acre. Esse projeto no foi efetivado e toda a rea construda est no Estado de Roraima. A vila foi transformada em municpio, em julho de 1982, atravs da Lei Federal n. 7.009. Sua rea territorial de 1.533,9 km, sendo 23,94 km de rea indgena Wai Wai, que corresponde a 1,56 do total. Distncia de Boa Vista: 305 km. Em 1991, a populao tinha um total de 3.778, sendo que 2.268 eram moradores urbanos (IBGE, 1991).
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Os Municpios de Boa Vista, Alto Alegre, Bonfim e Normandia concentram o maior nmero de pastagem natural e criatrio de gado. Os outros municpios, por se localizarem em reas de floresta, desenvolveram a pecuria com pastos plantados e ampliaram o desmatamento para a produo agrcola. At o incio dos anos 90, a produo agrcola nesses municpios era concentrada no arroz, mandioca, milho, feijo e banana. Nesse perodo, os incentivos fiscais da SUDAM (Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia) em Roraima, alm de quase inexistente, atenderam grupos de fazendeiros remanescentes dos pioneiros e setores do comrcio em Boa Vista (id., ibid.). O rgo Federal competente para o exerccio da legislao indigenista, que vigorou at o final dos anos 80, ps-Constituio Federal, no conseguiu proteger e nem dar aos ndios os direitos assegurados por lei. Ao contrrio, em alguns momentos, esse rgo responsvel por essa poltica indigenista, como o
SPI (Servio de Proteo ao ndio) ou a FUNAI (Fundao Nacional do ndio),
foi opressor ou deixou os ndios serem escravizados, como mo-de-obra sempre disponvel e barata, como fronteiras vivas na defesa dos interesses do Estado (Roraima/Unio), segregando-os pelo modelo pedaggico de esprito unificador nacional. Nessa conjuntura corporativista e nacionalista, as etnias indgenas de Roraima comearam a ltima dcada do sculo XX acreditando estar, finalmente, munidas de instrumentos legais, no mbito tanto Federal quanto Estadual, para encaminhar questes h 400 anos pendentes. No passado, o Estado e o branco disputavam o poder de propriedade sobre o ndio e a terra selvagem, hoje, o ndio e o branco disputam o poder de propriedade sobre a terra que da Unio. Nesse percurso, existem muitos pontos
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contraditrios merecendo estudos jurdicos, em relao aos textos da Constituio Federal de 1988 e da Constituio Estadual de 1991, referentes poltica indigenista. As etnias indgenas de Roraima esto cada vez mais se organizando, especificamente aps a promulgao das referidas Constituies. Observamos as formas de representaes e organizaes entre as lnguas e culturas das oito etnias186 mais conhecidas. Notamos que essas etnias se dividem: ou se associam ao Conselho Indgena de Roraima (CIR), em busca da identidade tnica e dos direitos coletivos, ou se ligam ao Estado, em busca da brasilidade e dos direitos privados/civis. Essas questes sero tratadas no prximo captulo (4).
Wapixana, Makuxi, Taurepang, Ingarik, Maiongong, Wai Wai, Waimiri-Atroari e Yanomami. Alm dos 83 artigos dispostos no Ato Das Disposies Constitucionais Transitrias e das Emendas.
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regionais (art. 3, III), revela o patente conhecimento de tal quadro. Claro est que o ordenamento jurdico brasileiro garante aos ndios a proteo das leis do pas, sujeitos a regulamentao especial com o objetivo de reconhecer medidas jurdicas adequadas em defesa de seus direitos de povos indgenas. De qualquer forma, interessante notar que povos so mencionados, na Carta Magna, apenas como estrangeiros (art. 4); ou seja, os princpios de igualdade, autodeterminao dos povos (art. 4, III), regem apenas as relaes internacionais e no as internas, uma vez que os povos indgenas no so reconhecidos como tal. Os artigos (5 a 17) do Ttulo II, que determinaram os Direitos e Garantias Fundamentais, apresentam a igualdade de todos perante a lei. O Captulo I, desse ttulo, dispe dos Direitos e deveres individuais e coletivos. importante notar que os nascidos no Brasil so brasileiros e, desse modo, a cidadania, o Direito Coletivo do ndio esto assegurados como membros da sociedade organizada pelo Estado. Da mesma forma, o Captulo II (Ttulo II), em seus artigos 6 e 7, que versa sobre os Direitos Sociais e do Trabalho deixa implcito que medidas jurdicas apropriadas devem garantir aos ndios, segundo suas culturas, o cumprimento de seus direitos perante a lei. O artigo 8, do referido Captulo e Ttulo, que trata da organizao do Direito Coletivo do Trabalho apresenta a organizao sindical e os interesses coletivos dos trabalhadores associados. H de se observar que tais dispositivos constitucionais devem ser aplicados tambm aos ndios, ressalvando-se, no entanto, as suas particularidades scio-culturais em relao aos demais brasileiros. O artigo 12 do Captulo III, Ttulo II, que discorre sobre a nacionalidade um ato declaratrio do reconhecimento do ndio como brasileiro nato, uma vez que nasceram em territrio brasileiro.
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Os ndios foram colocados tambm nas regras gerais dos artigos (18 a 43) referentes Organizao do Estado, dispostos no Ttulo III, necessitando de um ordenamento jurdico em relao a presena de uma organizao polticoadministrativa indgena diversa da nacional. Existe uma orientao no Captulo II do referido ttulo, que tem por assunto a Unio, no artigo 20, ao tratar sobre o assunto terra, os legisladores se recordaram de inserir que a propriedade das terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios da Unio (inciso XI). A seguir, no mesmo ttulo e captulo, no artigo 22, determina-se a competncia da Unio para legislar sobre as populaes indgenas (inciso XIV), bem como sobre naturalizaes (inciso XIII), emigrao, imigrao, extradio e expulso de estrangeiros (inciso XV). A insero das populaes indgenas (XIV), emblematicamente situadas entre naturalizaes (XIII) e expulses (XV) deve orientar e preparar nossa percepo para o que ainda deve ser esclarecido e regulamentado, assegurando ao ndio o exerccio de seus direitos perante a ao do Estado. Assim que, nos 91 artigos do Ttulo IV (arts. 44 a 135), apenas trs deles tratam de medidas jurdicas especficas aos ndios, ao estabelecerem a competncia exclusiva do Congresso Nacional em relao explorao (sic) das terras indgenas (art. 49, XVI). A competncia processante no julgo das disputas sobre direitos indgenas dada aos juzes federais (art. 109, XI) e a defesa dos direitos e interesses das populaes indgenas realizada pelo Ministrio Pblico (art. 129, V). Os artigos (136 a 144) do Ttulo V que versam sobre a Defesa do Estado e das instituies democrticas garantem a aplicao das normas de direito comum a todos os brasileiros. claro que o bom senso em defesa do direito do ndio dita limites prudentes ao jurdica brasileira.
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Tais orientaes constitucionais devem ser apreciadas no ordenamento jurdico referente aos ndios no cumprimento dos artigos (145 a 169) do Ttulo VI que tratam da Tributao e do Oramento. O indgena no tem direito tributrio. Ao expressar competncias legais nos 22 artigos do Ttulo VII (170 a 192) a Constituio Federal orienta direito comum para todos os brasileiros, proporcionando aos ndios, igualmente, o pleno exerccio dos direitos nacionais. No entanto, h orientao legal especfica as populaes indgenas referentes a proteo de suas terras e observaes para a explorao de seus recursos minerais188. De maneira geral, a problemtica do ndio brasileiro caracterizada por vises ideais, fruto do processo histrico e das condies de vida na comunho nacional, necessita de legislao ordinria, pois existe inequvoca manifestao de reconhecimento do potencial perigo de aes em terras indgenas. No Captulo III, do referido ttulo, onde so expostos princpios da poltica agrcola e fundiria e da reforma agrria (arts. 184 a 191), as normas constitucionais orientadoras da matria indgena, apesar de serem contempladas de forma comum aos demais brasileiros, aguardam ordenamento jurdico complementar em face as suas especificidades culturais, sujeitas ao regime tutelar, quando o povo indgena ainda no for emancipado. Do mesmo modo, para no ocorrer erros interpretativos das normas sobre o direito do ndio, os artigos (193 a 232) do Ttulo VIII, da Ordem Social, precisam de regulamentao ordinria para o entendimento e o exerccio comum dos ndios e no ndios.
Art. 176, 1. A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o caput deste artigo somente podero ser efetuados mediante autorizao ou concesso da Unio, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituda sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administrao no Pas, na forma da lei, que estabelecer as condies especficas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indgenas.
188.
222
O Captulo III, desse ttulo estabelece os princpios da Educao, da Cultura e do Desporto (arts. 205 a 217) e, na Seo I Da Educao, somente o artigo 210 que fixa o contedo mnimo do ensino fundamental insere normas referentes aos ndios. No pargrafo 2, desse artigo, assegurado ao ndio, alm do portugus, a utilizao de suas lnguas maternas e processos prprios de aprendizagem. No mesmo captulo, na Seo II Da Cultura, em conformidade com o artigo 215, 1, assegurado proteo s manifestaes das culturas populares, indgenas e dos de outros grupos. A partir dos captulos IV, V, VI at o VII, os textos constitucionais foram expostos de modo a considerar as orientaes legais comuns a todos os brasileiros. V-se, assim, que as populaes indgenas, marginalmente contempladas ao longo do texto constitucional, o so quase sempre em funo de suas terras e conseqente explorao das mesmas. Chegamos, assim, discusso do Captulo que trata exclusivamente das populaes indgenas, dispostos nos dois ltimos artigos do Ttulo VIII Da Ordem Social, que , tambm, o ltimo da Constituio, o Captulo VIII:
Art. 231. So reconhecidos aos ndios sua organizao social, costumes, lnguas, crenas e tradies, e os direitos originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo Unio demarc-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. 1 So terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios as por eles habitadas em carter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindveis preservao dos recursos ambientais necessrios a seu bem-estar e as necessrias sua reproduo fsica e cultural, segundo seus usos, costumes e tradies. 2 As terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios destinam-se sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. 3 O aproveitamento dos recursos hdricos, includos os potenciais energticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indgenas s podem ser efetivados com autorizao do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participao nos resultados da lavra, na forma da lei. 4 As terras de que trata este artigo so inalienveis e indisponveis, e os direitos sobre elas, imprescritveis. 5 vedada a remoo dos grupos indgenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catstrofe ou epidemia que ponha em risco sua
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populao, ou no interesse da soberania do Pas, aps deliberao do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hiptese, o retorno imediato logo que cesse o risco. 6 So nulos e extintos, no produzindo efeitos jurdicos, os atos que tenham por objeto a ocupao, o domnio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a explorao das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse pblico da Unio, segundo o que dispuser a lei complementar, no gerando a nulidade e a extino direito indenizao ou a aes contra a Unio, salvo, na forma da lei, quanto s benfeitorias derivadas da ocupao de boa-f. 7 No se aplica s terras indgenas o dispositivo no art. 174, 3 e 4.189 Art. 232. Os ndios, suas comunidades e organizaes so partes legtimas para ingressar em juzo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministrio Pblico em todos os atos do processo.
Em tais artigos fundamental termos conscincia de certos pontos nodais e analis-los em funo das expectativas de direito por eles gerados e dos descaminhos provocados por tais expectativas.
189. Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econmica, o Estado exercer, na forma da lei, as funes de fiscalizao, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor pblico e indicativo para o setor privado. 3 O Estado favorecer a organizao da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteo do meio ambiente e a promoo econmico-social dos garimpeiros. 4 As cooperativas a que se refere o pargrafo anterior tero prioridade na autorizao ou concesso para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpveis, nas reas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de acordo com o art. 21, XXV, na forma da Lei. Compete Unio:...(XXV) estabelecer as reas e as condies para o exerccio da atividade de garimpagem, em forma associativa.
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ora integrado - sempre manipulado estruturou diferenas, significativas nesse contexto, por demais graves para serem ignoradas. Assim, tratar de ndios, genericamente, responde a interesses do Estado nacional, e causa conflitos insolveis, como veremos a seguir: a) a expresso habitadas em carter permanente, enunciada no teor do 1, e o termo terras tradicionalmente ocupadas ( 2) esbarram na diferente concepo de tradio e de tempo conforme percebidas na cultura branca dominante e nas indgenas. Nesse sentido, revelam uma diferena interpretativa em relao tradio indgena que semi-nmade, fundada no ciclo da natureza e em situaes polticas inter-tribais. A relao do ndio com a terra, incorporada na dialtica entre homem-mundo natural e seus conseqentes deslocamento pelo territrio ficam anulados pela definio de uma permanncia inexistente. Ao ndio deve-se garantir, sobretudo, a circulao, j que obrig-lo a uma fixao alheia sua cultura , obviamente, contribuir para o conflito. Ora, a segunda parte do pargrafo primeiro revela o conhecimento de tais necessidades, anuladas, juridicamente, pelo termo permanente ali usado no conceito branco, enquanto que, para o ndio, sua permanncia na terra significa seu direito bsico de circular por vastas reas. O contexto scio-espacial indgena marca os caminhos da memria contextualizados por seus deslocamentos cclicos (que refazem a relao homem-natureza) pontuados em distintos lugares do seu territrio, de dimenses no acessveis aos critrios scio-espaciais do branco. O fazendeiro de Roraima, por exemplo, que habita uma rea de lavrado h 50 anos, no entende a chegada das famlias indgenas, dos remanescentes das antigas naes habitantes daquele lugar, retornando ao ponto inicial dos seus deslocamentos cclicos iniciados h bem mais de 500 anos. A posse, para o ndio, no , portanto, a imobilidade que caracteriza a ao de posse do branco. Por outro lado, dentro da cultura jurdica dos estados ocidentais, a posse difere radicalmente da propriedade e, ao ndio, original e inegvel ocupante destas terras, oferece-se a posse permanente, com proibio de qualquer negociao comercial ou seu usufruto por no-ndio; b) o dito ouvidas as comunidades afetadas e a palavra participao, entre os enunciados que definem o 3, que orienta normas de explorao da terra, so, na forma da lei, favorveis ao Estado, pois essa redao constitucional no foi normatizada em funo do ndio mas sim de quem os ouve e, claramente, decide. Aos ndios negada a faculdade de deciso sobre o mais importante elemento constituinte de sua cultura, a terra; c) a expresso so inalienveis e indisponveis, disposta no enunciado do 4, significa a responsabilidade do Estado na poltica indgena em comunho com o
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projeto social nacional. Assim, a inalienabilidade e indisponibilidade, alm da no prescrio de tais direitos, que aparentemente do ao ndio sua eterna segurana, no admite, em princpio, que o ndio nunca poder vender ou trocar sua terra. Ou seja, caso o ndio for inexoravelmente empurrado rumo cidadania nacional e, quando atingi-la, com direito a voto, ao alistamento militar, a estudo, a viver civilizado, ele no perder seus direitos originais, impenhorveis os seus bens; d) o 5 estabelece nada mais, nada menos do que algo absolutamente banal e corrente em relao a todos os cidados de um pas e no apenas a minorias tnicas: a remoo de populaes em eminncia de catstrofes ou epidemias e seu retorno passado o perigo; e) no incio do texto do 6, o termo so nulos e extintos os atos de povoamento e de poder poltico-econmico branco em terras destinadas aos ndios, ainda no adquiriram existncia real para as naes indgenas. A marginalizao do ndio encontra apoio no prprio texto constitucional do referido pargrafo, quando especificado, alm de qualquer dvida, que tal ser ressalvado diante de relevante interesse pblico da Unio. No final desse pargrafo, o texto constitucional no assegura o pagamento de indenizao, pela Unio, ao branco invasor, a no ser aquela referente s benfeitorias feitas na ocupao de boa-f. Tal dispositivo, que em princpio parece privilegiar o branco, na realidade assume, mesmo que no claramente, as responsabilidades do Estado na induo de ocupaes de terras virgens, algo que, como estamos vendo, vem se repetindo h mais de 400 anos. Ao mencionar boa-f, princpio claramente de ordem moral e de foro ntimo, o texto constitucional abre caminho para solicitaes baseadas em pretenses impossveis de serem contestadas em mais de 90% dos casos190. Tais ocupaes, ocorridas ao longo dos ltimos 100 anos, deram-se de maneira claramente ilegal, sem ttulos de qualquer natureza e, muitas vezes, em terra sabidamente indgena. Se um dos princpios do Cdigo Civil que no dado ignorar a lei, dar abertura, na Carta Magna, as indenizaes provenientes de ocupao de boa-f a quem a ignora , salvo melhor juzo, o Estado ignorando suas prprias leis. No demarcando as terras indgenas e no criando mecanismos de real vigilncia sobre elas, a Unio se oferece como palco reproduo de situaes de conflitos insolveis. Em termos claros: o poder pblico convida o branco a ocupar terras virgens que no o so, sem mostrar-lhe as fronteiras das possibilidades legais. Tais ocupaes tm a brecha constitucional de serem consideradas de boa-f e
As fazendas instaladas em Roraima no perodo colonial (sculos XVIII-XIX) possuem ttulos dados pelo Governo do Gro-Par ou do Estado do Amazonas (perodo republicano). Assim, as demais fazendas instaladas na regio, nos ltimos 100 anos, aguardam deciso fundiria e no tm reconhecimento oficial, possuindo apenas ttulo de posse e no de propriedade (cf. ALMEIDA & MOURO, 1976:75 e comentrios nas pp. 179/81).
190.
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a Unio deve pagar por elas. Se no bastasse tal quadro surrealista, o branco, na maior parte das vezes, recusa-se a aceitar as indenizaes da Unio e o crculo vicioso se mantm. Os casos de maiores evidncias nos enfrentamentos esto relacionados s reservas indgenas Raposa/Serra do Sol, Yanomami, WaimiriAtroari e Wai Wai.
ndios
CIR193 e ONGs Indgenas ONGs indgena contrrias ao CIR
Brancos
Posseiros Fazendeiros Mineradoras
Unio191
Estado192
OAB/RR
191. 192.
Como proprietria. Estado de Roraima como mediador com partido tomado. 193. Conselho Indgena de Roraima ligado Diocese local.
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O texto constitucional elaborado, entre 1987-88, por constituintes que se imaginavam de perfil humanista, capazes de dar ao pas a sonhada democracia nacional, gerou expectativas de direito provocadoras do aprofundamento dos canais de desencontro entre as prprias famlias indgenas e entre os ndios e os brancos, alm dos j existentes entre o Estado e a Unio. Os ndios no so ouvidos (direito garantido no art. 231, 3) e enfrentam-se com mineradoras e garimpeiros em terras consideradas reas indgenas, ali estabelecidos sem o aval do Congresso Nacional (id., ibid.). Esses diferentes grupos sociais e representantes governamentais aguardam diretrizes do setor jurdico que, junto ao Estado/Unio dever regulamentar medidas legais do direito dos ndios, esclarecendo o direito diferena de sua organizao social, costumes, lnguas, crenas e tradies e os direitos originrios de posse da terra. Inclusive, diante dos novos tempos, a posse da terra pela nao indgena, de cunho coletivo e dinmico, que dever ser fixada em carter perptuo, no fora tratada em pormenores jurdicos para sua aplicabilidade. Tal conflito experimentado tanto no contexto rural como urbano de Roraima. Uma das mais srias polmicas geradas por esses postulados jurdicos o caso194 da reserva So Marcos (antiga fazenda particular do sculo XVIII), que desde 1916 era administrada pelo SPI (Servio de Proteo ao ndio) como se fosse uma rea indgena. Com a Portaria n. 1.149, de 22/11/80, a FUNAI legalizou o territrio da fazenda, demarcando-o como rea para usufruto exclusivo dos ndios. No entanto, foi questionado pelos brancos habitantes de So Marcos se essa ao era justa, pois essa reserva continha 50 fazendas de
Na mesma poca (1979-82), surgiram, tambm outros casos envolvendo conflitos entre as delimitaes das terras pertencentes ao municpio de Normandia com as pertencentes reserva indgena Raposa/Serra do Sol. Alm dessa, a confuso fundiria envolveu as delimitaes das terras pertencentes ao municpio de Boa Vista com as da reserva indgena Yanomami. Esse tema foi mencionado no item 3.2 e ser retomado no Captulo 4.
194.
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pecuaristas, agrovila, importante posto comercial e de segurana denominado vila do BV-8 (transformado no municpio de Pacaraima, em 1995), etc. Toda essa estrutura branca seria desmontada? Os argumentos abordados nos textos constitucionais, legais e reguladores sobre ocupao da terra tradicional pelo ndio, deram espaos para parmetros antropolgicos discutveis. Os problemas de interpretao da necessidade da produo fsica e cultural do ndio, conforme seus usos, costumes e tradies, ampliaram os interesses da posse da terra entre o Estado (Roraima/Unio) e os segmentos da sociedade roraimense. Conforme a Lei Maior todos sero contemplados. No que se refere ao termo posseiro criou-se na regio uma nova situao relacionada ao conflito fundirio, onde os povos indgenas passaram a ser vistos como grileiros. O ndio que espera a concretizao de seus direitos no mais olhado como primeiro habitante, mas como usurpador da terra alheia. Some-se a isso, como mais elementos de desacertos, os projetos desenvolvimentistas (assentamentos, agro-pecuria, agro-indstria, mineradoras, com grau e formas de intrusamento nos territrios indgenas) cada vez mais agressivos, com interesses voltados para os recursos de valor econmico existentes nas terras em litgio, que generalizaram a crise com cooptao de algumas lideranas e famlias indgenas. A desfigurao que o Estado e segmentos da sociedade nacional fazem da Lei Magna amplia a confuso conceitual jurdica, poltica e econmica onde ningum abre mo de sua pretensa propriedade: nem mesmo o poder pblico. A leitura dos recentes dispositivos constitucionais cristalizadores desse conflito, os fundamentos do Estatuto do ndio em relao prpria conceituao de ndio e sua organizao cultural (cf. SOUZA FILHO, 1994; MARS, 1999, citados
acima, pp. 184/187), nos indicam que a Lei Magna adota princpios cujas
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culturalmente diferente, mas assegurada a sua cidadania nacional. O ndio, integrado ou em vias de integrao ou o isolado (estabelecido no contexto da memria cultural), que deseja ter reconhecido o direito de exercer a cidadania brasileira (possuir documentos, prestar servio militar, etc.) tem, em princpio, assegurados tais direitos na Carta Magna, sem perder a sua identidade indgena. No entanto, pode-se observar que o ndio s perder a identidade racial quando ele solicitar juridicamente, junto ao rgo competente, a sua emancipao.
Art. 14. Os Territrios Federais de Roraima e do Amap so transformados em Estados Federados, mantidos seus atuais limites geogrficos.
1 A instalao dos Estados dar-se- com a posse dos Governadores eleitos em 1990.
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2 Aplicam-se transformao e instalao dos Estados de Roraima e Amap as normas e os critrios seguidos na criao do Estado de Rondnia, respeitando o disposto na Constituio e neste Ato. 3 O Presidente da Repblica, at quarenta e cinco dias aps a promulgao da Constituio, encaminhar apreciao do Senado Federal os nomes dos Governadores dos Estados de Roraima e do Amap que exercero o Poder Executivo at a instalao dos novos Estados com a posse dos Governadores eleitos. 4 Enquanto no concretizada a transformao em Estados, nos termos deste artigo, os Territrios Federais de Roraima e do Amap sero beneficiados pela transferncia de recursos prevista nos arts. 159195, I, a, da Constituio, e 34196, 2, II, deste Ato.
Procurando agir dentro da nova ordem poltica de estruturao do poder administrativo do novo Estado, o governador197 e o seu vice estabeleceram, por medida provisria, a estrutura do poder Executivo de Roraima. Do mesmo modo, usando prerrogativas constitucionais, instalaram-se o Tribunal de Justia e o Tribunal de Contas. Os componentes dos dois Tribunais foram designados pelo governador, que nomeou, tambm, o Procurador-Geral de Justia para o Ministrio Pblico Federal. Em dezembro de 1991, a Assemblia Legislativa promulgou a primeira Constituio do Estado de Roraima. Os constituintes que elaboraram os textos asseguraram aos ndios direitos diferentes daqueles pertinentes sociedade nacional, tanto na Constituio Federal quanto na Estadual, acreditando, salvo melhor juzo, que tais enunciados constitucionais fossem dispostos de forma clara para que o Estado/Unio os cumprissem, na forma da lei. A Constituio Estadual de 1991 acabou corporificando grande parte das expectativas e dos desencontros de direito presentes na Carta Magna, como veremos abaixo.
Art. 159. A Unio entregar: (I) do produto da arrecadao dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados, quarenta e sete por cento na seguinte forma: (a) vinte e um inteiros e cinco dcimos por cento ao Fundo de Participao dos Estados e do Distrito Federal; 196. Art. 34. O sistema tributrio nacional entrar em vigor a partir do primeiro dia do quinto ms seguinte ao da promulgao da Constituio, mantido, at ento, o da Constituio de 1967, com a redao dada pela Emenda n. 1, de 1969, e pelas posteriores. ( 2) O Fundo de Participao dos Estados e do Distrito Federal e o Fundo de Participao dos Municpios obedecero s seguintes determinaes: (II) o percentual relativo ao Fundo de Participao dos Estados e do Distrito Federal ser acrescido de um ponto percentual no exerccio, at 1992, inclusive, atingindo em 1993 o percentual estabelecido no art. 159, I, a; 197. Ottomar de Souza Pinto e o vice Antnio Airton Oliveira Dias.
195.
231
Essa Constituio roraimense compreende 7 ttulos198 num total de 27 captulos enunciando os fundamentos e os objetivos que devero orientar as funes do legislativo, executivo e judicirio, determinados sistematicamente em um total de 184 artigos. Ao definir os artigos (1 a 3) o Ttulo I refere-se aos Princpios Fundamentais de formao do Estado como unidade inseparvel da Unio e aos objetivos para incentivar o intercmbio scio-econmico, cultural, poltico e ambiental, no mbito dos Estados da Amaznia Legal (art. 3, III). Semelhante ao disposto na Constituio Federal (88), trata genericamente do Estado, da sociedade livre, justa e solidria, do desenvolvimento regional e do bem comum de todos, reconhecendo a crise do quadro no s brasileiro como roraimense. Do mesmo modo que a Lei Magna, os povos indgenas so reconhecidos na comunho nacional, como habilitados para o exerccio da vida civil. Nesse sentido, no Ttulo II, que menciona os princpios dos Direitos e Garantias Fundamentais, o Captulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) apresenta todos os habitantes do Estado como iguais perante a Lei (art. 4) e, seguindo os mesmos rumos da Carta Magna (arts. 5 a 17), incorporou os ndios nesses princpios. O Captulo II (Ttulo II), que no artigo 5 trata dos Direitos Sociais 199, tambm reitera, em parte, a forma disposta na Constituio Federal (Ttulo VIII Da Ordem Social) onde o povo indgena tem os mesmos direitos, objetivando melhoria de sua condio de vida, como orienta os dispositivos do referido artigo. Nenhum dos 24 artigos do Ttulo III (arts. 6 a 29) estabelece ordenamento especfico para as populaes indgenas. O referido ttulo define a
Alm de 17 artigos dispostos nos Atos das Disposies Constitucionais. Os direitos sociais, nesse artigo da Constituio do Estado, foram definidos como: a educao, a sade, o trabalho, o lazer, a segurana, a previdncia social, a proteo maternidade e infncia, a assistncia aos desamparados.
199. 198.
232
Organizao do Estado, dos Municpios e da Administrao Pblica e, nesse caso, a organizao de uma administrao indgena dever ter as mesmas orientaes da nacional, repetindo, assim, os dispostos no Ttulo III da Constituio Federal referentes, tambm, Organizao do Estado, j comentada. O Captulo I (arts. 6 a 14), do ttulo acima, no artigo 11 (inciso XI) estabeleceu ao Estado competncia para proteger e conservar as florestas, a fauna, a flora e os campos gerais e lavrados, privilegiando a produo agropecuria e industrial (id., inciso XII) e tambm combatendo a pobreza e a marginalizao, estabelecendo polticas de integrao social dos setores desfavorecidos (id., inciso XIV). Os princpios propostos nesse captulo fazem, tambm, referncia genrica das populaes indgenas, como pessoas nascidas no territrio do Brasil. Os artigos (30 a 103) do Ttulo IV que versam sobre os fundamentos da Organizao dos Poderes (Legislativo, Executivo e Judicirio) e das instituies democrticas, legisladoras de princpios e regras que envolvem o cotidiano de todos os habitantes de Roraima, incluem a uma aluso aos povos indgenas, acatando grande parte dos dispostos no Ttulo IV (Organizao dos Poderes) da Constituio Federal, que mencionou de modo especfico os ndios em apenas trs200 dos 91 artigos do referido ttulo da Lei Magna. Os artigos (104 a 116) do Ttulo V que contempla princpios da Tributao e do Oramento tem como base a Carta Magna e Leis Complementares federais e, assim sendo, incluem genericamente as populaes indgenas em seus dispositivos tanto nos fundamentais para o Estado como nos demais municpios roraimenses. Isso comprovado na Seo VI (Captulo I, Ttulo V) que trata da Poltica de Incentivos com metas de apoio aos
200. Constituio Federal de 1988, Ttulo IV, artigo 49 (inciso XVI), artigo 109 (inciso XI) e artigo 129 (inciso V), j comentados.
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estabelecimentos de micro e pequeno porte dos setores agropecurios, agroindustrial, comercial e da prestao de servios (art. 110), no regulamentando medidas adequadas em tal poltica os ndios e suas terras. Nos 16 artigos do prximo Ttulo VI (arts. 111 a 132) que enuncia princpios da Ordem Econmica e Financeira, nem em seu Captulo III (Das Polticas Agrcolas, Fundiria, Pesqueira e Mineraria) observa fundamentos e valores necessrios ao desenvolvimento das populaes indgenas. A Constituio Estadual foi formulada de modo a reiterar a idia de cautela nas aes em terras indgenas, em conformidade com Ttulo VII (Da Ordem Econmica e Financeira) da Lei Magna, mas nada acresce para resolver a questo. Essas Constituintes (Federal/Estadual), como resultado de um equilbrio de foras e de interesses, necessitam de uma anlise jurdica dos conflitos internos as Constituintes e externos a elas, para que todos os brasileiros tenham maior garantia e defesa mais eficazes perante a lei. Assim, chegamos aos ltimos captulos e artigos (133 a 184) dispostos no Ttulo VII que aborda fundamentos da Ordem Social. Semelhante aos enunciados da Constituio Federal, esse ttulo confirmou os princpios observados no Ttulo VIII (Da Ordem Social) da Carta Magna. Essa comprovao ficou evidenciada quando da fixao de paradigmas constitucionais referentes aos povos indgenas estarem inseridos abaixo de captulos que enunciam fundamentos Da Seguridade Social, com princpios especficos assistncia social Da Famlia, Da Criana, Do Adolescente e do Idoso, sendo acrescido os Portadores de Deficincia. Esse ttulo foi o nico que considerou as naes indgenas, apresentando-as no Captulo VII (Dos Indgenas, Art. 173)201.
201. Seguido de Captulos que tratam Da Defesa do Consumidor (Cap. VIII), Da Segurana Pblica (Cap. IX), Da Poltica Habitacional (Cap. X), Do Sistema de Transporte (Cap. XI) e Da Comunicao Social (Cap. XII), os quais incorporam os ndios em comunho nacional.
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A novidade que parece assumir tal descompasso normativo aos direitos dos ndios se observa nos termos populao e ndios. Essas complexas nomeaes e conceituaes aumentaram as confuses, pois h algumas divergncias nas interpretaes entre os estudiosos que tentam elucidar tais termos, relevantes para a tomada de decises no mbito do universo indgena. No abriremos uma discusso sobre os dois termos. No entanto, os estudos etnolgicos definem o ndio como o indivduo nascido na etnia indgena, designando desse modo o nativo do Novo Mundo desde o sculo XV. Esse nativo compartilha de um conjunto de traos e elementos bsicos, que so comuns a todos indgenas e os diferenciam entre si e, tambm, da sociedade branca. A lngua, como exemplo, um dos aspectos da diversificao cultural indgena. J o temo populao aparece nos estudos fazendo referncia ao conjunto de indivduos habitantes de determinado lugar, regio, pas. Designa, em geral, sociedades organizadas em Estado mas, quando se referem populao indgena ou tribal do tratamento de categoria particular e inserida no Estado branco, municpio ou regio de controle estatal. A sociedade branca tolhe, portanto, ao termo populao indgena, a idia de organizao scio-cultural do ndio: so apenas nmeros dentro do universo mais vasto da sociedade nacional. Os textos constitucionais (Federal e Estadual) instituram uma nova idia tanto de Direito como de Estado (o Estado Democrtico) e incorporaram princpios de transformaes da situao existente. Esses textos inovaram por demonstrarem certo interesse em inclurem os ndios como grupos culturais
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distintos da sociedade nacional. No entanto, as concepes jurdicas que lhes servem de fundamento no apresentaram orientaes jurdicas especficas sobre o Direito Coletivo ou o Direito Originrio, absolutamente vitais para a questo indgena. Na literatura jurdica (cf. MELLO, 1984; SIDOU, 1990; NUNES, 1995) encontramos referncias sobre Direitos Coletivos, no plural, mas referindo-se s garantias dispostas na Constituio Federal (88) em conformidade com o artigo 5202 que trata genericamente de princpios do Direito Coletivo do Trabalho (o mesmo que Direito Sindical), relacionado com as associaes de empregados e empregadores. Quando citam Direito dos Povos esto usando os mesmos princpios universais dos Direitos Humanos203 e dos Direitos Fundamentais204, sem que nenhum desses contedos jurdicos revelem concepes de Direito Coletivo ou Direito Originrio dos ndios. A real questo subjacente s dificuldades de se definir os direitos indgenas a idia de identidade coletiva. A cultura branca nacional, de carter segregacionista no dispe, no IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstico), de mecanismos para o recenseamento de cidadania coletiva. O ndio identificado como parte de famlias indgenas integradas, em vias de integrao ou isoladas (em distintos modos de vida tradicional num contexto de desenvolvimento econmico e de mobilidade crescente) so conduzidos inexoravelmente cidadania brasileira.
Art. 5. Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana e propriedade, nos termos seguintes:... dispostos em 77 incisos. 203. Direitos com base na histria e Declarao aprovada por Assemblias Constituintes aps a Revoluo Francesa (1789,1793 e 1795). Inspirados na Declarao de Independncia dos Estados Unidos da Amrica de 1776. So direitos considerados inerentes ao homem como ser social, independentemente de sua raa, sexo, idade e religio, que lanam os fundamentos tericos das modernas democracias liberais e socialdemocratas. Assim, os Direitos Humanos so reivindicaes de liberdade e igualdade para todos os seres humanos (cf. SIDOU, 1990). 204. Cf. Constituio Federal de 1988, artigos 1 a 4: Dos Princpios Fundamentais. Artigos 5 a 17: Dos Direitos e Garantias Fundamentais.
202.
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A reflexo sobre identidade ou direito coletivo inseridos no contexto da cultura ocidental vem recebendo crescente ateno por parte dos estudiosos que apontam, justamente, a negao do princpio de igualdade do cidado, dentro dos princpios de direito ocidentais:
O fator crtico parece ser o desenvolvimento ou no de idias alm da reapropriao da auto-estima da identidade coletiva da minoria de constituir uma comunidade no s diferente, mas essencialmente separada da sociedade da maioria; ou pior ainda, encarregada de uma tarefa religiosamente sancionada contra esta sociedade. (...) Depende do dilogo entre as vrias culturas coabitando o mesmo espao decidir quais tendncias se tornaro predominantes. (...) Atribuir direitos coletivos especiais a grupos culturais ou biologicamente fechados, quaisquer as justificativas, no condiz facilmente com a cidadania que, no sentido ocidental do conceito, nega privilgios grupais e reconhece como cidado s o indivduo destitudo de (ou ao menos fazendo abstrao de) suas identidades comunitrias (DEMANT, 2003:380).
Assim, essa nova idia identitria conduzindo formalmente cidadania coletiva a nossa minoria indgena, no pode ser construda tendo-se em mente as normas e instncias atuais da cultura branca, que necessitaria de profundas alteraes:
A expresso Poltica Identitria tornou-se moeda corrente nos Estados Unidos. Ela significa as reivindicaes de determinadas minorias para que sua especificidade e sua identidade sejam reconhecidas e leis sejam criadas, podendo ir da simples concesso de direitos ou privilgios especiais at a concesso de formas de autonomia poltica e governamental (SEMPRINI, 1999:56).
Nesse sentido, a incluso do direito comunitrio indgena no contexto de Roraima, comprovadamente fracassou durante a dcada de 1990 porque tal direito ainda no tem um ordenamento jurdico e os interesses da prtica poltica do Brasil no incorporam formas de autodeterminao distinta da forma nacional branca. Alm desses conflitos, que envolvem interesses econmicos em relao ao territrio indgena, h outros envolvendo questes ideolgicas associadas Segurana Nacional. A diviso das opinies na sociedade roraimense se
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estabelece entre os que querem a defesa do territrio nacional contra estrangeiros e se opem demarcao de terras indgenas em rea nica e aqueles que defendem os princpios da lei que assegura os direitos de demarcao de terras aos ndios. Com isso, tanto os interesses polticos e econmicos que atuam no Estado como o desejo de ver aplicado os direitos indgenas aumentaram os conflitos, que chegaram ao seu pice com a criao de novos municpios, tratada no item 3.2 (acima) e, tambm, ser retomada no Captulo 4. Nesse novo momento poltico em que h a busca do modelo civilizatrio, das virtudes crists e das motivaes econmicas mundiais, os ndios do Territrio Federal do Roraima viram distanciar-se, principalmente com a instalao do Estado Federado em 1991, a possibilidade de manuteno de sua cultura, em funo de projetos governamentais voltados exclusivamente para o branco.
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CAPTULO 4
A primeira dcada do novo Estado
Os direitos constitucionais enunciados nos artigos 1 e 3 do Ttulo I (Dos Princpios Fundamentais) da Constituio Federal de 1988 e reiterados pela Constituio Estadual de Roraima de 1991 (cf. Captulo 3, itens 3.3 e 3.4), eram, sem dvida, os principais orientadores para a atuao dos governantes, tanto de Roraima quanto do Brasil, referentes s legislaturas205 da dcada de 1990 at dezembro de 2002 e, como tal, deveriam ter sido aproveitados. O despertar do novo Estado de Roraima v os pequenos campos de pouso no meio da floresta roraimense bombardeados pelo governo federal, que acabava com o sonho do El Dorado dos garimpeiros e empresas mineradoras que viviam o boom do ouro em reas indgenas. Em 1991, a populao do Estado era de 217.583 habitantes (IBGE, 1991) e boa parte dela era envolvida direta ou indiretamente com os garimpos. Nesse referido ano, Roraima enfrentava dificuldades em manter os colonos nos assentamentos pela carncia de infra-estrutura tanto econmica como social. A capital Boa Vista recebia os colonos que abandonavam os lotes e aumentavam a misria urbana, necessitando de investimentos e ampliao da infra-estrutura para atender cerca de 122.600 habitantes (IBGE, 1991). No existe um censo sobre as famlias indgenas que migraram, tambm, para Boa Vista fugindo dos confrontos (ndios, fazendeiros, garimpeiros, empresrios) nas reas das malocas.
Em Roraima, a primeira referente ao perodo de janeiro 1991 a dezembro de 1994; a segunda, de janeiro de 1995 a dezembro de 1998; a terceira, de janeiro de 1999 a dezembro de 2002. Os representantes do executivo estadual foram: Brigadeiro Ottomar de Souza Pinto e engenheiro Neudo Campos nas duas ltimas legislaturas. Na Presidncia da Repblica tivemos Fernando Collor de Melo e, depois do Impeachment, Itamar Franco at 1994, nas duas ltimas Fernando Henrique Cardoso.
205.
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Para mudar essa situao, novas medidas governamentais foram tomadas no ano de 1992, tendo por fim o fortalecimento do poder local, em parceria com o federal, na soluo do conflito envolvendo o Estado, ndios e no-ndios. No dia 8 de setembro de 1992, o governo federal editou a Instruo Normativa n 3, com novos preceitos legais, considerados por tcnicos governistas como um gil e eficiente mecanismo para normatizar a situao fundiria em Roraima. Contudo, o instrumento governamental, que visava a soluo equilibrada na estruturao do novo espao social roraimense, tambm enfrentou dificuldades para sua aplicao. Considerando a localizao geogrfica roraimense, com limites fronteirios internacionais, tornou-se difcil o recurso cabvel na legalizao das terras estaduais. A Fundao do Meio Ambiente e Tecnologia de Roraima (AMBTEC), embora mesclando informaes e normas, apontava dados da atual situao das terras em Roraima, lanando dvidas sobre a soluo fundiria, pois mais de 76% do territrio de propriedade da Unio, sendo administrado por rgos federais impedidos de abrir mo da jurisdio sobre esse territrio (cf. Cap. 4, p. 201):
Segundo o Inciso II, do Artigo 20206, e do Pargrafo 2 da Constituio Federal, e conforme o Artigo 1 da Lei 6.634, de 2 de maio de 1979, todas as terras localizadas em faixa de fronteira, numa largura de 150 km, so propriedades da Unio. Igualmente so patrimnio federal as terras que margeiam rios e igaraps. Alm disso, tambm so propriedades da Unio todas as terras que tenham sido registradas em seu nome, durante os 19 anos de vigncia do Decreto-Lei 1.164/71. Dessa forma, mais de 76 por cento das terras de Roraima pertencem, legalmente, ao patrimnio da Unio, estando elas sob jurisdio da Fundao Nacional do ndio FUNAI, do Instituto Nacional do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renovveis IBAMA, do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria INCRA e do Ministrio do Exercito (AMBTEC, 1993: 35).
Some-se a isso que as terras habitadas pelas diferentes etnias indgenas so de propriedade da Unio.
Art. 20. So bens da Unio ...(II) as terras devolutas indispensveis defesa das fronteiras, das fortificaes e construes militares, das vias federais de comunicao e preservao ambiental, ...( 2) A faixa de at cento e cinqenta quilmetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, considerada fundamental para defesa do territrio nacional, e sua ocupao e utilizao sero reguladas em lei.
206.
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Em meio a esses problemas, contudo, a ltima dcada do sculo XX dava esperanas aos habitantes de Roraima, com a inaugurao do novo governo, que prometia respeitar os direitos constitucionais, vistos como propiciadores oficiais de solues. Para alguns estudiosos, essa Constituio Federal garante a construo de uma sociedade mais justa, pois respeita os direitos da populao indgena: a mais democrtica de todas que o Brasil j teve, e se inscreve na linha das Constituies democrticas europias elaboradas depois da Segunda Guerra Mundial, das quais, alis, sofreu bastante influncia (DALLARI, 2001:49). No entanto, essas Constituies (Federal e Estadual) provocaram situaes violentas e discusses sobre legalidade e injustia, na relao entre Estado, ndios e no-ndios, em funo de suas incoerncias de base, como apontado acima, s pgs. 187. Como implantar a Constituio Estadual de 1991? As referidas incoerncias de base no so percebidas e nem discutidas pela sociedade e o poder pblico omisso frente a elas. Na fase final de transio poltica previamente s Constituies, os governadores indicados para Roraima tinham ganho certa autonomia e controle sobre as bases polticas e as bancadas federais. Tal situao desagregadora de coalizo poltica nacional fortalecendo a local ganhou fora aps a Constituio Federal de 1988 e o modelo unificador do federalismo foi se tornando frgil em conseqncia da democratizao do novo sistema poltico do Brasil dos anos 90
(ABRUCIO, 1998).
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(39,49%), Romero Juc Filho (PDS) com 22.349 (32,58%), Getlio Alberto de Souza Cruz (PSDB) com 8.407 (12,23%), Neudo Ribeiro Campos
(PRN)
com
3.025 (4,40%), Roberto Dragon da Silva (PT) com 1.195 (1,73%), Belgerac Vilela Batista (PSC) com 659 (0,95%). No segundo turno, Ottomar Pinto207 foi eleito com 32.506 votos (50,33%), ultrapassando Romero Juc que obteve 28.993 votos (44,89%) (Fundao Ambtec, 1993:271). Aps a instalao do aparato institucional e organizacional das diversas esferas do poder governamental estadual, o governador tomou posse em 1 de janeiro de 1991 e em dezembro do mesmo ano a Constituio Estadual foi promulgada. Essa Constituio enunciou dispositivos gerais da administrao pblica, no seu artigo 19, encaminhando ao executivo estadual o cumprimento dos princpios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. A primeira legislatura da Assemblia Legislativa de Roraima ganhou o reforo de 24 deputados estaduais eleitos nesse pleito de 1990. Do total de deputados estaduais eleitos, apenas 30% era nascido em Roraima, enquanto que do total da bancada federal208 (deputados e senadores) nenhum era nascido em Roraima, embora todos se dissessem empenhados em concretizar o grande anseio da sociedade roraimense: solues para os conflitos fundirios entre ndios e no-ndios. No que se deva considerar o local de nascimento como credencial para empenho poltico. Estes dados, contudo, apontam para uma situao de
207. O pernambucano Ottomar de Souza Pinto fez parte, tambm, do grupo dos governadores militares indicados para o Territrio Federal de Roraima pela Aeronutica no perodo de 1964 at 1985. Como governador nomeado pelo presidente do Brasil, o Brigadeiro Ottomar assumiu o Governo do Territrio Federal em abril de 1979, substituindo o Coronel Fernando Ramos Pereira. Com as mudanas polticas no cenrio brasileiro decorrente das eleies de 1982, a abertura poltica acelerando o fim do governo militar, o movimento Diretas J, apontaram Roraima como o novo campo poltico propulsor ao federalismo. Nesse sentido, ex-governadores do ex-Territrio Federal, retornaram para Roraima e estabeleceram alianas com as elites locais, instituram currais eleitorais, estratgias para usufruto da mquina pblica na poltica local e no controle da bancada federal, entre outros mecanismos da poltica de troca de favores propcios aos interesses pessoais e estruturao de poder da nova base poltica roraimense, favorecida pela redemocratizao brasileira. 208. Entre os Deputados Federais eleitos no pleito de 1990, Tereza Juc (PDS, esposa de Romero Juc, ex-governador), concorreu s eleies municipais de 1992, sendo a primeira mulher eleita para governar Boa Vista, tomando posse em 1 de janeiro de 1993, para o perodo de 1993-96, assumindo na Cmara dos Deputados o seu suplente, Luciano Castro.
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configurao dos destinos roraimenses a pessoas de recente e parcial vivncia dos problemas da terra e da sociedade que representam. No decorrer dos quatro anos de mandato, observou-se que o governo estadual esqueceu os dispositivos constitucionais e voltou sua ateno para a questo fundiria, reivindicando a transferncia das terras da Unio para o poder do Estado de Roraima, alimentando os debates entre os representantes dos setores governamentais e econmicos na busca de recursos para ampliar os negcios da agropecuria e da agroindstria, melhorando a situao dos no-ndios, especialmente os da rea comercial e empresarial. Com relao aos ndios, o governo em parceria com a FUNAI continuou o projeto pedaggico de interveno civilizadora para educar o ndio segundo a idealizao do Estado. Foram instaladas escolas em todas as malocas indgenas com a finalidade de emancipar todas as crianas e conduzir o ndio sociedade nacional local:
(...) so escolas multi-sries, isto , agregam alunos de diferente nvel escolar numa nica sala. (...) Freqentemente o ensino s vai at a 4 srie do 1 grau. Quando existem fazendas na rea, tambm os filhos dos fazendeiros freqentam a escola da aldeia. A programao escolar imposta pelo governo e tem contedos tpicos de cultura europia (histria da Grcia e de Roma antiga, por exemplo). A lngua falada o portugus e no reconhecido o uso da lngua indgena (FERRI, 1990:47).
Nesse processo governamental, a FUNAI local viveu uma duplicidade na sua atuao poltica, ora apoiando o governo estadual no projeto de integrao do ndio na cultura nacional e ora apoiando o Conselho Indgena de Roraima
(CIR) na tentativa de legalizar os direitos constitucionais dos ndios.
O projeto pedaggico antes mencionado queria eliminar a figura do ndio seminmade e sem escrita. O sistema educacional do governo transformou-se em sistema de combate lngua e ao processo prprio de aprendizagem indgena, provocando ciso entre os lderes e tuxauas das malocas. Na prtica, o projeto do executivo estadual no era coerente entre a fala (quando afirmava o exerccio das
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funes de um Estado democrtico) e a aplicabilidade do projeto que cumpria funes de um Estado ainda autoritrio e marcadamente homogeneizado. Para efetivar tal proposta governamental, utilizou-se a idia oriunda do projeto poltico gerado no Estado Novo, que apresentava o ndio na tica idealizada do heri209, visando integr-lo na sociedade civilizada e, ao mesmo tempo, com a eliminao dos traos culturais do ndio em Roraima, usurpar os seus direitos constitucionais negociando a questo da terra com a figura do emancipado o qual no entendia que a emancipao cancela definitivamente tal direito:
Nunca os polticos e os governantes de Roraima se preocuparam com as peculiaridades e as diferenas das populaes indgenas que passam por um processo de integrao. S se quer utilizar a fora de trabalho que os ndios oferecem em troca de garantias mnimas de sobrevivncia. Polticos e governadores se preocupam apenas com o potencial eleitoral dos ndios. Presentes, subornos, ameaas, politicagem e cachaa entram nas malocas e nos bairros pobres de Boa Vista todas as vezes que se aproxima um pleito eleitoral (FERRI,
1990:78).
O texto acima mostra a conscincia quanto atuao dos polticos dentro e fora da maloca, usando o ndio segundo os interesses do momento eleitoral. Essa estrutura do poder estatal no propicia a superao dos problemas que envolvem ndios (pr-tradio e pr-nacional) e no-ndios. Tal situao pode ser compreendida a partir da identificao da ideologia emancipacionista que orienta a tutela do ndio por meio de rgos assistencialistas de apoio ao governo:
Enquanto isso, a ASTER e LBA desenvolviam as suas aes integracionistas, sobretudo nas malocas indgenas localizadas perto de Boa Vista. Em particular a LBA no esconde as suas finalidades e a sua campanha de documentao para os ndios, comprova-as claramente: um ndio com carteira de identidade, ttulo de eleitor, CPF, etc., est j integrado e em nada difere, segundo este rgo, de qualquer outro morador de Roraima. Alm do mais, no tribunal o juiz da comarca local considera oficialmente emancipados os ndios que possuem esses documentos (CIDR, 1990:5).
209. Nessa viso a figura do ndio colocada no passado, na figura romntica do nativo viril que auxiliou os colonizadores luso-brasileiros na conquista e defesa do territrio nacional. Nessa perspectiva, hoje, o ndio identificado como emancipado e brasileiro-nato. O ndio isolado visto como parte da terra selvagem, necessitando civiliz-la instalando e modernizando o novo espao social.
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Esse texto denuncia, claramente, os mecanismos da eliminao do ndio pelo projeto de emancipao, que foi rejeitado pelas famlias indgenas as quais se organizaram e integraram o Conselho Indgena de Roraima (CIR) na virada dos anos 80 para os 90. At o final dessa primeira legislatura (1994), os idelogos do governo federal e do estadual envolvidos na soluo do conflito da transferncia legal das questes da alada federal para o poder estadual, no haviam resolvido tal conflito que perdura at o incio do sculo XXI. No bojo dessa questo, podemos considerar trs aspectos que dificultaram o entendimento entre a esfera de poder governamental (estadual e federal) e a sociedade local (ndios e no-ndios): a) a viso cultural e de parentesco com a terra experimentada pelo ndio210, como valorizao da organizao social, onde predomina a solidariedade coletiva e que emprega, independente do poder governamental, formas de autogesto; b) a forte relao capitalista de explorao e de monoplio da terra experimentada pelo branco e famlias indgenas integradas ao projeto social nacional, como um valor comercial, onde predomina o interesse pessoal, um modelo poltico econmico que reifica a terra; c) a importncia dada defesa da terra, privilegiando o interesse da soberania do Estado-Nao segundo as estratgias polticas do governo federal em parceria com o estadual, os quais propagam discursos com possibilidades do exerccio democrtico pela sociedade local e na prtica usam a cultura do coronelismo. O Estado e a sociedade local (indgenas e no-indgenas) eram de opinio que a impossibilidade de demarcao e titulao das terras impediam a entrada de recursos para o desenvolvimento e a consolidao poltica do novo Estado. Tal questo foi amplamente debatida por tcnicos e representantes governamentais quando da discusso da Reforma Constitucional, em fins de 1993. Todavia, sem uma coeso dos interesses em jogo entre o grupo representativo do Estado,
De acordo com o Estatuto do ndio de 1973, essa viso citada acima seria do ndio considerado isolado, sem contato com o branco, pois a viso mtica do ndio com a terra foi sendo eliminada da cultura do ndio em vias de integrao e dos integrados na sociedade nacional. Dentro desses dois ltimos grupos de ndios surgiu um outro grupo que busca resgatar a identidade tnica, por meio da memria cultural preservada pelos parentes isolados.
210.
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dos ndios e dos no-ndios, a equipe do governo estadual no alcanou um ponto conciliador dos interesses e nem conseguiu superar o impasse fundirio 211 que continuou. Desse modo, parece que o primeiro legislador observou apenas o enunciado do pargrafo primeiro212 do artigo 14 do ADCTC/88 (Ato das Disposies
Constitucionais Transitrias, cf. acima, p.212), pois propagou o exerccio democrtico e
justia para todos, mas, na prtica, deu continuidade dominao poltica e econmica. Assim, o executivo estadual em parceria com o federal, no fez referncia aos direitos constitucionais dos ndios, tratados na Constituio Federal (88) e na Constituio Estadual (91) (cf. acima, pp. 205-206 e 216). Alm desses artigos, no foram respeitados os dispostos no art. 67 do ADCT213, que enunciou: A Unio concluir a demarcao das terras indgenas no prazo de cinco anos a partir da promulgao da Constituio. Ou seja, reconheceu a posse da terra pelo ndio e deu limite entre 1988-1993 para concluir toda a demarcao das reservas indgenas, o que no aconteceu. Contudo, nesse contexto da situao do ndio de Roraima posterior s organizaes e s reivindicaes em prol do reconhecimento dos direitos constitucionais dos ndios, o CIR (Conselho Indgena de Roraima), OPIR (Organizao do Professores Indgenas de Roraima), APIR (Associao dos Povos Indgenas de Roraima), OMIR (Organizao das Mulheres Indgenas de Roraima), entre outras pequenas organizaes indgenas na regio, recebendo ajuda da Diocese de Roraima, conseguiram introduzir nas escolas indgenas um modelo pedaggico diferenciado do nacional, valendo-se do reconhecimento do direito educao bilnge (portugus-indgena) lhes est garantido pela
Esse tema ser tratado no prximo captulo. O Pargrafo Primeiro do Art. 14 do ADCT, da Constituio Federal de 1988, enunciou que a instalao dos Estados dar-se- com a posse dos governadores eleitos em 1990. 213. Dos 83 artigos dispostos no ADCT da CF (88), apenas o artigo 67 mencionou dispositivos especficos aos direitos dos ndios e a Unio no cumpriu tal direito criado pela sua Lei Magna.
212. 211.
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Constituio Federal de 1988, no Captulo III Da Educao (art. 210, cf. Cap. 3,
item 3.3).
Essa realidade dual (portugus-indgena) de um ensino comum com valores da cultura nacional e regional, formados segundo a tradio cultural ocidental, dando chance ao ndio de vivenciar a sua prpria experincia cultural, funciona ainda, contudo, sob o mesmo modelo pedaggico para integrar o ndio ao projeto social nacional, com contedos de base nacional, sem considerar as especificidades regionais. Nesse processo de dominao sobre o outro, as mediaes estabelecidas entre o governo estadual e o federal privilegiando interesses econmicos em nome do povo e da soberania nacional, beneficiaram a elite e a pequena burguesia, pois o projeto poltico definiu como ncleo central de suas estratgias a civilizao da regio para integr-la ao nacional: a) a modernizao urbana de Boa Vista; b) a construo das rodovias: BR-174 (ligando Manaus at Caracas/Venezuela, passando por Boa Vista), BR-401 (interligada com a BR-174, liga Boa Vista a fronteira da Guiana) e BR-210 que se popularizou como Perimetral Norte. Alm dessas, a construo de pontes e novas estradas estaduais e as estradas vicinais, instaurando uma ampla rede viria em Roraima; c) a elaborao e a instalao, em parceria com o Incra, de vrios projetos de assentamento agrcola ao longo das rodovias, principalmente na Perimetral Norte e nas denominadas vicinais; d) o aumento de servios/cargos em Boa Vista, controlados pelo poder da mquina burocrtica governamental, conseqncia das correntes imigratrias; e) o fluxo de garimpeiros que tornou evidente os problemas associados s reas indgenas214; f) os movimentos de reaes indgenas e no-indgenas, aps a Constituio Federal de 1988, influenciadas pelas presses de grupos ambientalistas (nacionais e internacionais) com perspectivas de pr fim a essa situao conflitante entre os
214.
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habitantes roraimenses (ndios e no-ndios) com vistas ao desenvolvimento sustentvel como ponto de partida. As controvrsias polticas, culturais e jurdicas referentes essa questo, envolvendo Estado, ndios e sociedade nacional local, apontaram para a necessidade de redefinir-se a posse da terra e o papel do ndio no Estado. Contudo, s vezes a terra entendida como propriedade individual e s vezes como usufruto coletivo. Tais caractersticas enunciadas nos textos constitucionais da cultura escrita reorganizando elementos da memria de uma cultura no ligada s concepes de tempo brancas, com registros de terras gerenciados pelo
INCRA (Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria) e direitos de posse
conduzidos pela FUNAI (Fundao Nacional do ndio) estranha aos ndios, gerando mais confuso e sofrimento quele que procura os direitos originrios (cf. Captulo
2, p. 129/131).
O novo governador215 revelou certa preocupao com as presses das diferentes formas de representaes (indgenas e no-indgenas) que reivindicavam normas constituintes216 favorveis aos direitos e exerccio democrtico. Esses direitos so enunciados nos artigos 1 e 3 do Ttulo I (Dos Princpios Fundamentais) da Constituio brasileira de 1988 e reiterados pela Constituio Estadual de 1991, cobrando da administrao pblica obedincia aos princpios de legalidade, impessoalidade e moralidade217, na esfera pblica
215. O segundo governador eleito no pleito eleitoral de 1994 (Neudo Campos, PPB) e o seu vice (Airton Antnio Soligo Cascavel), para o perodo de 1995-98, ganhou a eleio com o apoio do governador Brigadeiro Ottomar Pinto (PTB), mas por divergncias tanto polticas como de interesses pessoais no usufruto da mquina burocrtica estatal, aps a posse do novo executivo estadual, houve um rompimento nas relaes entre Neudo e seu padrinho poltico (Ottomar), os quais passaram a liderar grupos opositores na disputa de poder sobre a base poltica local e a bancada federal. O Brigadeiro Ottomar Pinto foi eleito Prefeito Municipal de Boa Vista, no pleito municipal de 1996, para o perodo de 1997-2000. Nas eleies municipais de 2000, o Brigadeiro tentou reelegerse, mas perdeu para Tereza Juc (PSDB) que foi novamente eleita para governar Boa Vista, tomando posse em 1 de janeiro de 2001, com trmino do mandato em dezembro de 2004. 216. Constituio Federal de 1988 e Constituio Estadual de 1991, assegurando princpios (Arts. 1 e 3) para o governo adotar como programa democrtico, na construo de uma sociedade justa e solidria. 217. Cf. Seo I, do Captulo VII Da Administrao Pblica, no seu Art. 37. A administraa pblica direta e indireta de qualquer dos Poderes da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios obedecer aos princpios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficincia e, tambm, ao seguinte: ... Os
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roraimense. Houve, assim, uma tentativa de coibir os conflitos do Estado de Roraima, oriundos da poltica coronelista, que no respeitava as normas democrticas apontadas nas referidas Constituies. Mas, no segundo pleito eleitoral do novo Estado, realizado em 1994, no houve significativas mudanas na renovao da bancada dos deputados eleitos para a Assemblia Legislativa Estadual (a maioria foi reeleita), apesar de terem sido reduzidos para 17218 o nmero de deputados diplomados. Das duas vagas para o Senado Federal, uma foi ocupada por Romero Juc 219 (PFL) e a outra por Marluce Pinto (PMDB), que conquistou sua reeleio. Dessa maneira, ao tomar posse em janeiro de 1995, o governador elaborou metas para o seu programa enunciando as seguintes idias: a) valorizao do ser humano e oferecimento de possibilidades para o exerccio democrtico, no seu perodo de comando estadual. Para tanto, atribuiu prioridade para questes sociais tanto das etnias indgenas como dos milhares de imigrantes que haviam chegado em Boa Vista aps 1985, aumentando os bolses de pobreza na periferia da capital do Estado; b) programas sociais (sade, educao, habitao, agropecuria e agroindustriais), na melhoria da qualidade de vida dos ndios e dos no-ndios, como indivduos pertencentes sociedade nacional local; c) transformar Roraima no corredor de importao e exportao, na busca de autonomia econmica, consolidando o transporte rodovirio pela BR-174 na construo de uma ponte sobre o Rio Branco, no trecho prximo de Caracara, que realizado por balsa220, alm de uma proposta que viabilize a importao de
enunciados foram distribudas de I a XXI incisos e, tambm, entre dez pargrafos, normatizando os princpios da administrao pblica (cf. Constituio Federal de 1988). Tal dispositivo desse artigo foi reiterado pela Constituio Estadual de 1991, no art. 19. 218. Na primeira legislatura tomaram posse 24 deputados estaduais, mas por questes de interpretaes das normas eleitorais, na segunda legislatura foram diplomados somente 17, enquanto aguardavam-se uma definio do processo e os cabveis recursos relativos ao nmero de deputados para a ALE/RR, que tramitava no Tribunal Regional Eleitoral/RR. 219. Romero Juc, pernambucano, ex-presidente da FUNAI, ex-governador do Territrio Federal de Roraima, indicado pelo poder poltico central, no perodo de transio para estado (durante a segunda metade da dcada de 1980). A Senadora Marluce Pinto (esposa do Brigadeiro Ottomar Pinto) faz parte do grupo poltico opositor tanto ao Senador Juc quanto ao governador Neudo Campos. 220. Tal ponte sobre esse trecho prximo de Caracara foi inaugurada em outubro de 2000, durante o segundo mandato do governador Neudo Campos, custando ao governo federal um valor de R$ 23,8 milhes. Cf. FBV, 31/10/00.
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energia eltrica da Central Hidreltrica da Macgua, do complexo de GURI, na Venezuela. As idias contidas no programa do executivo estadual fundiam-se num confuso jogo poltico e econmico que integrava princpios democrticos, programas sociais para melhorar a qualidade de vida dos ndios e dos nondios, demonstrando certa preocupao com a massa popular atribuindo prioridade para os bolses de misria na periferia da capital surgidos com os fluxos imigratrios (nordestinos, sulistas e ndios). Para resolver esses problemas, melhorando a vida dos habitantes de Roraima, o governo se valeria da compra de energia eltrica da Venezuela, privilegiando o setor agroindustrial, que alimentaria as pretendidas exportaes. Contudo, o principal recurso para tal ao do governador prov do poder central, pois o grande afluxo de verbas na regio continua sendo gerado pelo funcionalismo pblico que, evidentemente no comporta o trabalho indgena.
Para o administrador regional da Funai, Walter Bls, no centro urbano de Boa Vista e demais municpios de Roraima esto espalhados cerca de 11 mil ndios. Os ndios chegam em busca de outras oportunidades que no sejam plantar e fazer peas artesanais. Walter Bls diz que a responsabilidade por esta populao indgena no s da Funai, mas das organizaes indgenas como o CIR (Conselho Indgena de Roraima) e APIR (Associao dos Povos Indgenas de Roraima). Para o administrador, quando a Funai foi criada era um rgo de integrao do ndio na sociedade nacional. A Constituio de 1988 mudou isto e o papel da Funai de assistir e garantir os direitos dos ndios. Ele comenta que a maioria dos ndios que chegam na cidade no procura a Funai. O ndio que est fora da maloca no se v como ndio, ele fala portugus e no se reconhece ndio. Esse comportamento foi constatado pelo Coordenador do CIR, Jernimo Pereira da Silva, o qual comenta que o ndio quando chega cidade tem vergonha de identificar-se como ndio. Sem emprego e um lugar decente para morar, muitos ndios entram nas drogas e as ndias se prostituem para conseguir dinheiro. H em Roraima um forte preconceito com a cultura do ndio
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Estado. A FUNAI e as duas maiores ONGs indgenas (CIR e APIR) no possuem dados exatos sobre as etnias indgenas que deixaram as malocas e se envolveram com drogas e prostituio no centro urbano de Boa Vista e demais municpios de Roraima. Na ltima matria da FBV, fica claro que o projeto poltico do Estado no parece disposto a resolver o sofrimento do ndio que, desprovido de instituies polticas em favor de sua prpria identidade, submeteu-se ao submundo urbano. Das trs idias centrais do programa proposto pela segunda legislatura estadual, somente a construo da ponte sobre o Rio Branco e a importao da energia eltrica de GURI/Venezuela foram efetivadas: a primeira, como facilitadora do transporte rodovirio entre Manaus e Caracas passando por Boa Vista; a segunda, resolvendo o problema enrgico de Roraima com possibilidade de atrair investimentos para a agroindstria. No entanto, no decorrer da gesto governamental foram efetivadas. Contudo, foi nessas inter-relaes de circunstncias que o executivo estadual222 reelegeu-se e conseguiu seu segundo mandato numa acirrada disputa com os opositores. Dentro dessa rede de lealdade submetida ao domnio de patronagem e aps os resultados da eleio de 1998, o governador e o seu vice 223 tomaram posse no dia primeiro de janeiro de 1999. Como outra pea importante na engrenagem de atuao poltica nessa terceira legislatura do novo Estado, a a regio no foi transformada em corredor importador/exportador e as melhores condies de vida de seus habitantes no
222. O governador Neudo Campos (PPB) e seu vice Flamarion Portela (PSL) ganharam as eleies no pleito eleitoral de 1998, para o perodo de 1999-2002. 223. Com apoio de Neudo Campos, Flamarion Portela foi eleito governador de Roraima, no pleito eleitoral de 2002, para o perodo de 2003-06, depois de ter disputado o segundo turno com Ottomar Pinto (PTB). Essa caracterstica particular na poltica local conectada com a bancada federal, no que se refere ao cargo de governador de Roraima, parece firmar-se a continuidade do poder governamental que passado entre o atual governador e seu afilhado poltico, candidato a sucessor, na conduo do poder. O Brigadeiro Ottomar, primeiro governador, passou o cargo para seu afilhado Neudo que ficou no cargo por duas legislaturas, e, por sua vez, passou para o seu afilhado Flamarion, a quarta legislatura estadual.
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Assemblia Legislativa Estadual passou a contar novamente com um total de 24 parlamentares, aumentando para 42% o percentual de parlamentares nascidos em Roraima. Desse total, onze deputados foram eleitos pela primeira vez, cinco pela segunda vez, seis pela terceira vez e dois que retornaram aps uma frustrada candidatura para reeleio, em 1994. Durante o discurso de posse, o governador retomou o tema referente a uma administrao pblica voltada para aes sociais que favorecessem a todos os habitantes do Estado:
(...) Vou luta em busca dos investimentos para que as indstrias aqui se instalem. Vou assumir o nus de atitudes pouco populares, mas extremamente necessrias. (...) Ser um governo orientado para a busca do bem-estar das pessoas mais carentes. Bem-estar representado, por exemplo, por um eficiente sistema de atendimento Sade. Bem-estar representado tambm por uma boa educao que o Estado deve proporcionar s nossas crianas (BN, 02/01/99, p. 03).
O executivo estadual afirma que vai em busca dos investimentos para indstrias que se instalem no Estado, como se o Estado no estivesse envolvido em graves conflitos fundirios. Ao fazer referncia sobre a massa pobre da sociedade que vive na periferia de Boa Vista, o governo no cita o contingente indgena que divide com o migrante pobre esses bolses de misria. O direito ao bem-estar e a boa educao, comum como direito a todos os habitantes de Roraima, no cita como ser a participao do ndio (integrado, em vias de
(...) Transformar Roraima num estado pujante, cheio de oportunidades para o seu povo tudo o que quero. O tempo em que isso vai se tornar uma realidade, infelizmente, no depende s de mim. Vocs mesmos so testemunhas de que nosso trabalho sofre interferncias da crise internacional e nacional. Alis, a recente demisso de funcionrios que tivemos que fazer neste final de ano foi uma prova disso. Os cortes na folha de pagamentos foram uma exigncia do Governo Federal para que nos enquadrssemos nas novas regras do ajuste fiscal. (...) Vou trabalhar cada dia deste governo para devolver a renda daqueles que perderam seu emprego e dar emprego queles que no tinham, no no Governo, mas na iniciativa privada produtiva (BN. id, ibid).
No discurso do governo estadual, h fortes promessas para um futuro diferente em meio a um presente em crise, com o governo federal pedindo ao estadual que enxugasse a mquina pblica. No entanto, o amanh promissor no contar com a ajuda do Estado, j que ele transferiu para a iniciativa privada a responsabilidade de empregar os roraimenses:
(...) Informo que o problema fundirio e a grave questo das demarcaes de reservas indgenas no nosso estado, especialmente a gleba So Marcos e a pretensa reserva Raposa Serra do Sol, esto sendo tratadas por este Governo no mais na esfera administrativa, mas sim, para fazer valer a deciso do sentimento do povo de Roraima, na rea judicial. (...) vou ter que bater na porta dos investidores e industriais para mostrar a todos a tima opo que Roraima representa; vou usar de todos os argumentos; vou ser o maior vendedor deste estado; vou trabalhar duro, e podem estar certos, nossas chances so muitas! Conheo bem este Pas e sei o que cada estado tem para oferecer (BN. id, ibid., grifos nossos).
O executivo estadual, ao se referir poltica indigenista de cumprimento aos textos constitucionais, deixa claro, de maneira pouco velada, sua no aceitao das demarcaes das terras em questo. Para tanto, privilegiando o Estado dentro de um ilusrio cenrio democrtico, o governo reorganizou as alianas com as bases locais e a bancada federal contra o ndio que no deseja ser emancipado. A poltica indigenista, em especial aquela desenvolvida com base nos direitos constitucionais, no aparece nos contedos de enfoque dos representantes governamentais, dos setores polticos e econmicos da sociedade local, das organizaes indgenas vinculadas ao Estado (pr-nacional). As
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manifestaes dos ndios ligados ao CIR (Conselho Indgena de Roraima, pr-tradio), contudo, so claras:
Assemblia Geral das lideranas do Conselho Indgena de Roraima (CIR) reuniu cerca de 800 ndios e aproximadamente 150 tuxauas na Maloca Pium, a 130 quilmetros ao norte de Boa Vista, no Municpio de Alto Alegre. Definindo a poltica indgena para o ano 2000, um dos pontos principais defendidos pelas lideranas do CIR a demarcao da Raposa/Serra do Sol. Na rea da poltica partidria, eles decidiram que os coordenadores do CIR no podem se candidatar a nenhum cargo eletivo nas eleies no perodo em que durar o mandato da diretoria. Os ndios vo aumentar a presso para o Governo Federal homologar a reserva em rea nica e tambm pressionar a Funai na demarcao de todas as terras indgenas em Roraima. As lideranas indgenas no vo aceitar nenhuma imposio de projetos elaborados (Governo, Funai, ONGs) e executados nas reas indgenas sem a consulta dos ndios. Ser criada uma Comisso do CIR e da FNS (Fundao Nacional de Sade) para discutir projetos de sade. Na educao, uma poltica educacional diferenciada no ensino pblico. H escolas indgenas que esto na Diviso do Interior e eles propem que todas sejam repassadas para a Diviso de Educao Indgena da Secretaria de Educao. As lideranas querem que as comunidades faam a indicao dos professores ndios para as escolas. O CIR no vai mais aceitar pesquisas cientficas dentro das reservas sem autorizao das ONGs indgenas e da comunidade envolvida (FBV, 11/02/99, p. 3).
Inserida na mesma questo indigenista, a Diocese de Roraima, as lideranas do CIR, o executivo estadual e representantes da poltica local/federal registraram suas divergncias em relao poltica indigenista. A principal questo que as lideranas e representantes das ONGs indgenas ligadas ao CIR reivindicaram a posse da terra com base na Constituio (Federal/Estadual), enquanto que as lideranas e representantes das ONGs indgenas associadas ao Estado reivindicam a posse da terra dentro da viso de propriedade privada, sem fazer referncia aos artigos constitucionais dos direitos indgenas. As lideranas e representantes do Estado e da sociedade local (governo estadual, prefeitos, senadores, deputados estaduais/federais, vereadores, dos setores da economia/empresarial, etc.) reivindicaram a posse da terra respeitando-se o processo de colonizao pelo Estado que conquistou a terra e que tem a tutela do ndio.
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O Estado adotou medidas para favorecer os seus suportes polticos, semelhantes aos que vinham sendo usados durante a fase de transio governamental (1985-90) e, com apoio da FUNAI, intervinha em quase todas as malocas e assumia a gesto financeira para os ndios aliados ao projeto eleitoreiro. Ainda que os juristas de Roraima achassem que o sistema jurdico deveria contemplar a regulamentao das questes indgenas a omisso persistiu:
Foi no curso das ltimas eleies que emergiu, com clareza, a atitude do governo perante as malocas indgenas. Em trs anos de atividades o governador Ottomar de Souza Pinto conseguiu que 30% dos ndios tornassem-se eleitores e apoiassem suas escolhas eleitorais. Comea, assim, tambm nas malocas, o carnaval das campanhas eleitorais, realizadas com presentes e ameaas, viagens contnuas de polticos e cabos eleitorais, etc. (...) Os vrios polticos tentavam ganhar os votos dos ndios e, mesmo que a Funai tenha proibido os comcios nas malocas, estas foram continuamente invadidas (CIDR, 1990:15).
Esse particularismo, nos ltimos anos do sculo XX, no permitiu aos ndios um fortalecimento em prol de seus prprios direitos tnicos e acabou por dividir as famlias indgenas que se reconheciam no projeto governamental de integrao nacional. Uma parcela dos ndios que desejarem integrao alvo dos interesses eleitoreiros, enquanto outra, que busca direitos originrios, rebelam-se contra o poder executivo local. Nesse quadro, a poltica educacional tornou-se outro ponto de discrdia entre as distintas formas de representao e lideranas. O Estado, por meio da Diviso de Educao Indgena, mantm escolas nas malocas com ensino diferenciado das escolas para os no-ndios, ministrando aulas em portugus e tambm na lngua indgena. Contudo, existem tambm escolas nas malocas que esto vinculadas Diviso do Interior, que so mantidas, tambm, pelo Estado, com ensino igual para ndios e no-ndios, sem fazer referncia lngua e cultura do ndio. Na briga pela mudana do modelo pedaggico ministrado nas escolas indgenas, as divergncias internas entre as famlias indgenas persistiram: os
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representantes do CIR (Conselho Indgena de Roraima) que reivindicavam identidade tnica desejavam que todas as escolas indgenas fossem administradas pela Diviso de Educao Indgena, com ensino diferenciado dos no-ndios, enquanto que os representantes das ONGs contrrios ao CIR, que estavam em processo de integrao ou integrados na sociedade nacionais local, no queriam tratamento diferenciado na poltica educacional. O poder governamental, juntamente com a elite local, estabeleceu mecanismos de poder sobre os seus eleitores que eram trazidos de diferentes pontos da regio, urbana e/ou rural, estreitamente vigiados, cada qual munido de sua cdula de voto, at o local de votao e, em seguida, o candidato eleito oferecia uma festa para todos com churrasco e bebidas, para celebrar a vitria. Nessa disputa, o ndio no associado ao CIR entrou na poltica local, como candidato (vereador, prefeito, deputado estadual) e registrou o seu discurso contra a identidade tnica e tratamento diferenciado do cidado brasileiro:
O lder indgena Jonas de Souza Marcolino, integrante da SODIUR (Sociedade de Defesa dos Povos Indgenas Unidos de Roraima), eleito vereador (PSL) na primeira eleio do municpio, favorvel ao entendimento entre brancos e ndios, coloca seu nome como candidato a vice-prefeito, numa chapa que dever ser encabeada pelo vereador Joo Valdr (PSL). Jonas destaca a ateno especial do Governo de Roraima para a sede do Municpio de Pacaraima e vilas (malocas), em especial a do Conto, onde h projetos de parcerias. Faz crtica ao atual executivo municipal que se mostra ausente e as aes de desenvolvimento em Pacaraima so do Estado ou exclusivamente com recursos federais. Como lder indgena, Jonas pensa diferente das lideranas do CIR (Conselho Indgena de Roraima) e TWM (ONG do povos Taurepang, Wapixana, Wai Wai, Waimiri-Atroari, Makuxi, Mayongon). Para ele uma ironia, lideranas radicais lanarem candidaturas a prefeito e para a Cmara Municipal. Jonas discorda da idia do CIR de que a sede do Municpio de Pacaraima deve ser indenizada e os no-ndios retirados da rea So Marcos e Raposa Serra do Sol. Para Jonas possvel a convivncia entre brancos e ndios (FVB, 06/01/00, p. 7).
A situao de o ndio est, ao mesmo tempo, ligado relao coletiva e idia de ver-se como civilizado continua mantendo-o em posio ambgua. O ndio oscila entre o protecionismo estatal, marcado pela ideologia de unificao, de defesa da terra em favor do Estado e da sociedade nacional, e na
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sua prpria vivncia na diversidade e especificidade cultural. As ongs indgenas no vinculadas ao CIR participam na poltica local, fortalecem o Estado e as bases polticas, contra os parentes que desejam direitos constitucionais:
Em Roraima no existe s a opinio do CIR e da Igreja Catlica. A SODIUR (Sociedade de Defesa dos ndios Unidos de Roraima) defende demarcao em ilhas e parcerias com o governo federal, estadual e municipal, para que os ndios encontrem o caminho do desenvolvimento. O presidente da SODIUR, Lauro Barbosa, disse que ouviu denncias de outras lideranas indgenas e outros Estados de que as ONGs pressionam pela demarcao e depois abandonam as comunidades, atendendo somente os interesses externos. Em Roraima o CIR trabalha para massacrar outras ONGs indgenas e lideranas, com tentativa de implantar um perigoso domnio nico, um espao de governo ditatorial (FBV, 29/12/99, p. 7).
Em diferentes momentos da dcada de 90, essa temtica da demarcao em ilhas opondo-se rea contnua, que faz parte do projeto da
FUNAI/CIR/Diocese de Roraima, tornou-se a questo central que atravessou a
maior parte das reflexes e preocupaes dos habitantes de Roraima, discutidos nos distintos fruns da regio. Os textos publicados e divulgados pela mdia local contriburam para a divulgao, denncia e crtica, informando e formando grande parte da sociedade de Roraima sobre essa histrica situao fundiria da caminhada dos povos indgenas, divididos na busca por direitos originrios e emancipao, mas esquecendo-se que todos querem, basicamente, melhores condies de vida. A questo fundiria marcou os discursos de posse dos governadores e deputados estaduais por toda a dcada de 90. Durante a posse dos parlamentares da Assemblia legislativa do Estado (ALE), em janeiro de 1999, o deputado Iradilson Sampaio (PFL), por exemplo, falou em nome dos reeleitos e fez um pronunciamento acalorado em favor do branco:
A demarcao em rea contnua Raposa Serra do Sol nos d a impresso de que o manto da ignorncia obscureceu os fatos histricos e presentes. A imagem dos bravos pioneiros colonizadores propositadamente denegrida, como se fossem especuladores de terra. Na atual poltica adotada pelo Governo Federal, nas demarcaes de reservas, abandona-se quem produz e revigoram-se imagens obsoletas e preconceituosas contra o homem do 257
interior. como se fossem eles sonegadores de esperanas. Roraima espera que o Brasil e o Governo Federal tenham a coragem e o discernimento poltico de reorientarem tudo o que at hoje foi feito, esto para fazer, em termo de demarcaes. simplismo e ingenuidade, talvez m-f, imaginar combater a misria, a fome e as doenas que campeiam nas comunidades indgenas, reservando a elas apenas grandes reas (FBV, 04/01/99, p. 05).
Essas idias representam a viso da quase totalidade da Assemblia Legislativa do Estado que, sem uma ampla anlise dos direitos indgenas previstos na Constituio Federal/88 e na Estadual/91, abordou a questo da posse da terra baseando-se em uma unilateralidade histrica que no pode ser seno prejudicial aos interesses gerais. De fato, o acirramento do partidarismo pr e contra as demarcaes, obscurecem razes srias presentes nos dois plos de argumentaes:
A Comisso mista da ALE formada por deputados estaduais e produtores rurais dever ouvir o procurador-geral do Estado e lideranas indgenas na busca de solues para os problemas econmicos e sociais decorrentes da demarcao da reserva indgena Raposa Serra do Sol. O ex-prefeito de Normandia, deputado Gelb Pereira (PDT) comentou: H uma presso internacional (G7) contra o Brasil, os ndios e a ecologia so usados pelos interesses econmicos estrangeiros (FBV, 07/01/99, p. 3).
Uma delas no h que ignor-la a da ingesto estrangeira, muitas vezes motivada por internacional boa vontade mas, de qualquer forma, igualmente mal informada de nosso processo histrico e, quase sempre, inaceitavelmente desinteressada pelo elemento branco da contenda. Ou seja, concepes de bandido e mocinho, que servem para resolver culpas passadas de naes amigas, no podem intervir em nossa realidade, independentemente de qualquer fantasma de pretenso econmica. Coerentes com sua unilateralidade, os representantes da ALE tomaram algumas medidas na tentativa de reverterem a deciso do Ministrio da Justia que assinou a Portaria n. 820 (dez/98) demarcando a Raposa Serra do Sol. Nesse sentido, as formas de representao e lideranas so inerentemente frgeis e negociadas entre os envolvidos na partilha do poder poltico e posse da terra.
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Na viso dominante est a ideologia integracionista, na qual as reivindicaes pelo reconhecimento dos direitos constitucionais dos ndios eram reguladas pelo governo estadual segundo os interesses polticos e econmicos em favor do Estado. Assim, o Estado, apesar de sua Constituio reconhecer os direitos indgenas, tem sido o algoz da situao dos ndios:
O prefeito de Boa Vista, Ottomar Pinto (PTB), afirmou que se Braslia no ouvir as reivindicaes de Roraima preciso usar da violncia para contestar a demarcao da reserva indgena Raposa/Serra do Sol. Para o prefeito a demarcao obedece a pretenses de ONGs internacionais para congelar as reas mais ricas em minrios do mundo. uma orquestrao de entidades anti-nacionais para tomar a Amaznia e o Exrcito do Brasil no tem como confrontar as naes como Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha. Lembrou o tempo em que foi Governador de Roraima, h seis anos, que conseguiu reunir foras polticas e convencer o ento Ministro da Justia, Maurcio Corra, a engavetar a demarcao Raposa/Serra do Sol. Para o prefeito a demarcao em rea nica legal porque obedece lei, porm ele entende que no legtima porque vai impedir o desenvolvimento de Roraima (FBV, 08/01/99, p.3, grifo nosso).
, assim, visvel a concepo de que grupos internacionais manipulam os ndios desprotegidos do Estado, dos grupos que se encontram isolados sem o controle da FUNAI, usufruindo ilegalmente dos recursos naturais que devem ser explorados pelo Estado. Tal posio consolida ainda mais o ideal da tutela sobre o ndio e suas terras, que devem ser geridas pelo branco, em defesa do interesse nacional (cf. Cap. 3, item 3.1). A terceira legislatura do novo Estado esbarrou em divergncias conceituais presentes nas propostas de desenvolvimento, nos constantes conflitos jurdicopolticos e violentos embates armados entre ndios e no-ndios que disputavam a posse de uma mesma terra, em uma luta acirrada, uns pela demarcao de reservas indgenas e outros pela municipalizao das mesmas reas. Os projetos de assentamento de colonos, gerenciados pelo INCRA, em parceria com o governo estadual, continuavam apresentando dificuldades na manuteno dos assentados. Apesar de o projeto poltico governamental incentivar apoio financeiro para a permanncia do colono na terra brava, o
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abandono era constante em decorrncia da precariedade das estradas e rodovias224, alm das longas distncias e da falta de transporte para o escoamento dos produtos (arroz, milho, feijo, banana, soja, etc.) no mercado. O Projeto de Assentamento na regio do Jatapu, por exemplo, ao Sul do Estado e prximo reserva indgena Wai Wai, fora criado em setembro de 1983 para atender cerca de trs mil famlias de imigrantes, com uma rea de 230.800 hectares. Cada famlia receberia um lote aproximado de 60 hectares. Em 1991, aps a retomada desses assentamentos com a instalao do Estado, havia um total de 1.091 famlias assentadas e habitando as terras do Municpio de so Joo da Baliza, no atingindo, portanto, o objetivo inicial. A proximidade com a reserva gerou conflitos e a maioria dos brancos no se adaptou ao local, sobretudo em vista proibio de minerao. Esse projeto de ao do governo estadual de acordo com as prioridades do federal, no povoamento e defesa da terra no extinguiu o conflito entre o governo central, o estadual e a sociedade local (ndios e no-ndios), criado pela diversidade de interesses na posse e no usufruto da terra que de propriedade da Unio. Ano
1991 1996 1997 1998 1999 2000 2001
TOTAL
217.583 247.13 254.499 260.7.05 266.922 324.152 337.237
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Nesse sentido, no conjunto das organizaes sociais e das legislaturas, merece maiores estudos a participao do ndio, pois, observamos que existem, ainda hoje, a cultura e a lngua de famlias do tronco lingstico Karib (Makuxi) ou Arawak (Wapixana), documentadas desde o perodo colonial por holandeses, espanhis, ingleses e portugueses. Tais prticas culturais se encontram inseridas na histria do tempo presente roraimense embora no sejam compartilhadas por alguns grupos dessas prprias famlias Makuxi ou Wapixana, j integradas na sociedade nacional e vivendo da relao comercial com a terra225. No embate pela posse da terra, o executivo estadual espera que a Unio lhe consigne a parte do territrio que lhes cabe de conformidade com a transformao de Territrio Federal em Estado Federado. A sociedade local (ndios e no-ndios) necessita da compatibilizao das aes do governo estadual e federal como mediadores do conflito e no como parte interessada. Em nenhum momento, entre o perodo 1988-2002, a sociedade local percebeu a alterao profunda do status quo do governo (local/central) ou da lgica de sobrevivncia dos representantes polticos e da elite boavistense. Para melhor compreenso da postura assumida por esses governantes, na primeira dcada de Roraima, como Estado Federado cabe, de incio, colocar algumas indagaes de ordem mais geral: qual a funo atribuda ao Estado em relao aos princpios fundamentais da Constituio Federal (88) e da Constituio Estadual (91)? Qual a concepo de exerccio de cidadania expressa pelos representantes do poder estatal e da sociedade local (ndios e no-ndios)? Tais questes suscitam uma reflexo sobre o significado de Estado democrtico de direito, o poder do Estado e os interesses em jogo ao qual ele serve.
Em nossa atualidade, existem pequenos ncleos familiares de makuxi, por exemplo, habitando parte do territrio de Roraima como o da Guiana comunicando-se somente em lngua Makuxi. No entanto, seus lderes e representantes tnicos comunicam-se tanto em Makuxi e Portugus como Makuxi e Ingls, nas distintas relaes fora do convvio da maloca, cujo limite territorial distinto do limite do Estado-Nao. Outro exemplo, o Yanomami que habita o Brasil e a Venezuela.
225.
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A atuao do executivo estadual em relao ao controle das lideranas polticas na bancada de Roraima na esfera federal controlava tambm parte dos deputados estaduais e prefeitos, que se constituram em importantes peas na mquina pblica de fazer poltica, como cabos eleitorais para as eleies tanto dos deputados federais como dos senadores, alm dos representantes da Assemblia Legislativa (ALE) e do executivo estadual. Assim, o governo estadual fornecia a logstica necessria para as campanhas eleitorais e, depois das eleies, reordenava o controle de poder para governar, apoiado nessa malha de alianas individuais e no partidrias/coletivas.
O deputado federal de Roraima, Salomo Cruz (PSDB), vai propor que em sinal de protesto contra a demarcao em rea nica da Raposa Serra do Sol, a bancada de Roraima vote contra todas as matrias que o Governo Federal apresentar durante esse perodo de convocao extraordinria no Congresso Nacional. A proposta dever ser feita aos demais parlamentares da bancada da Amaznia. Boicotando as propostas do Palcio do Planalto, uma forma de chamar ateno para as defesas dos representantes do povo de Roraima. No temos a inteno de ser contrrios as matrias do Governo Federal, mas fundamental ouvir as propostas da populao de Roraima (empresrios, fazendeiros, ndios) que est envolvida na rea pretendida, que defendem a demarcao da reserva em ilhas. Salomo Cruz vai procurar o lder do partido, deputado Acio Neves (PSDB-MG), para coloc-lo a par da situao de Roraima, quanto aos problemas sociais e econmicos que sero acarretados com a demarcao Raposa Serra do Sol. O relato a Acio Neves ser entregue Comisso de Meio Ambiente e Minorias, da Cmara dos Deputados, propondo nova avaliao da problemtica indgena em Roraima (FBV, 09 e 10/01/99, p. 4, grifo nosso).
Ou seja, a estruturao das foras polticas, em nome do Estado de Roraima, valorizou argumentos em nome do bem-estar da coletividade, embora fique claro tratar-se apenas daquela branca. Os representantes do povo de Roraima (empresrios, fazendeiros, ndios civilizados) no aceitaram as diferenas scio-culturais e isolaram o problema do ndio ligado ao CIR (Conselho Indgena de
Roraima) que reivindicava direitos constitucionais.
Nessa viso poltica, o Sistema Judicirio trata a realidade scio-cultural de modo homogneo e isso tornou o conflito local mais complexo, pois os argumentos escondiam interesses difusos em favor do Estado, que aparecia mais
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como um concorrente na posse da terra do que um mediador na busca de uma soluo para esse conflito. Diante de tal situao, a conjuntura roraimense dos ltimos dez anos do sculo XX, para essa sociedade local que tem como desafio conciliar os interesses poltico-econmicos e culturais, foi surpreendida com a entrada do Estado/Unio na contenda, tornando o embate mais violento.
A poltica do novo Estado, em funo da ideologia branca de ocidentalizao dos ndios e posse da terra, deu ao indgena integrado ou em vias de integrao, na sociedade nacional, um papel essencial, o de seduzir os parentes rebeldes para ingressarem no novo poder estatal. Cristalizando esse conflito gerado pelos descaminhos de mais de 400 anos de histria e desacertos dos textos constitucionais, que no apenas medeiam os conflitos como deles so partes interessadas, o governador de Roraima fez novas mudanas fsicas no Estado, favorecendo o projeto de embranquecimento
226. Esses municpios estaduais foram descritos no Cap. 3, item 3.2. Os antigos e os novos municpios esto ilustrados no Mapa 05 e as reas indgenas no Mapa 06, baixo, pp. 250-51. 227. Cf. Reportagem A morte ronda os ndios na floresta: a febre do ouro est dizimando velozmente os ianomamis, o povo mais primitivo e isolado da Terra, publicada na Revista Veja, edio 1148 de 19/09/90.
263
1994) criaram dois novos municpios: Iracema (com terras desmembradas de Mucaja) e Caroebe (com terras desmembradas de So Joo da Baliza).
Em 1995, instalaram-se mais cinco municpios, criados pelas Leis estaduais de nmeros 96, 97, 98 e 100 de outubro de 1995, Amajari, Pacaraima, Uiramut, Cant e Rorainpolis. 4.2.1 Amajari
Em 1975, com a instalao de um bar de propriedade do Senhor Brasil na regio, deu-se origem ao pequeno aglomerado urbano. Em outubro de 1995, a pequena vila denominada Brasil, que dista 154 km de Boa Vista, foi transformada em municpio de Amajari pela Lei Estadual n. 097. Tem rea territorial de 28.558,4 km, com 58,71% dela delimitada por terras indgenas Yanomami. Com o fluxo de garimpeiros alterando a massa imigratria entre 1987-90, a populao do municpio em 1991 era de 10.903 habitantes e, em 2001, era estimada em 5.455 habitantes (IBGE, 2001).
228. A Serra do Tepequm, pela rodovia RR-203, est 100 quilmetros distante do municpio de Amajari, um vulco extinto e tem 1.100 metros de altitude. Faz parte da regio fronteiria com a Venezuela. Entre as dcadas de 1930 at 1950 atraiu numerosos grupos de garimpeiros com a explorao de diamantes. Entre 198790, viveu a febre do ouro e essa prtica garimpeira continua com menor intensidade.
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4.2.2 Cant
Esse ncleo urbano, distando 32 km de Boa Vista, originou-se da colnia agrcola Brs de Aguiar, pertencente ao vilarejo do Bonfim, em meados do sculo XX. Em outubro de 1995, pela Lei Estadual n. 099, tal colnia foi denominada Cant e transformada em municpio. Tem rea territorial de 7.691 km dos quais 419,13 km so de rea indgena. Em 1991, tinha uma populao de 4.042 habitantes e em 2001 era de 8.922 habitantes (IBGE, 2001). 4.2.3 Caroebe
O ncleo urbano, que dista 354 km de Boa Vista, surgiu com as pequenas vilas denominadas Entre Rios e Jatapu, que apareceram com a construo da BR210 (Perimetral Norte, na dcada de 70) e da usina hidreltrica que fornece energia para a regio sul do Estado. Com o desmembramento das terras do municpio de So Joo da Baliza, em novembro de 1994 pela Lei Estadual n. 82, esse aglomerado urbano foi transformado no municpio Caroebe. Sua rea territorial de 12.098,5 km, dos quais mais da metade (6.376,32 km) so reas de reserva indgena Wai Wai. Em 1991, a populao era de 3.647 habitantes e em 2001 foi estimada em 5.775 habitantes (IBGE, 2001).
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4.2.4 Iracema
O municpio de Iracema, distando 92 km de Boa Vista, est localizado entre a margem do Rio Branco e a BR-174; no seu territrio de floresta e serras existem inmeras cachoeiras. O imigrante maranhense Milito Pereira Costa comprou um lote agrcola nessa regio e doou parte da terra para os parentes que chegavam da terra natal. O primeiro povoado surgiu dessa grande migrao do Maranho na dcada de 1970 e a vila tornou-se municpio em 1994. Possui uma rea territorial de 14.403,9 km, dos quais 80% (11.585,84 km) so de rea indgena Yanomami. Em 1991, apresentou um total de 2.163 habitantes e em 2001 era estimada em 5.027 habitantes (IBGE, 2001). 4.2.5 Pacaraima
O povoado, que dista 212 km de Boa Vista, era conhecido como BV-8 (marco Brasil/Venezuela n 8), fora desmembrado do municpio de Boa Vista e transformado em municpio de Pacaraima, pela Lei Estadual n. 096, em outubro de 1995. a porta rodoviria (BR-174) entre o Brasil e a Venezuela e tem em rea territorial de 12.098,5 km, dos quais 66% (8,063,90 km) esto em rea indgena So Marcos. Nessa rea h um conjunto de fazendas, malocas, vilas
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agrcolas e a sede municipal. Distncia de Boa Vista: 212 km. Em 1991, contava com uma populao de 4.099 habitantes e em 2001 era estimada em 7.229 habitantes (IBGE, 2001). 4.2.6 Rorainpolis
Distando 219 km de Boa Vista, o aglomerado urbano surgiu com a vila de assentamento do Instituto de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA), nos anos 70. Foi transformado em municpio, em 17 de outubro de 1995 pela Lei Estadual n. 100, com o desmembramento das terras do municpio de So Luiz do Anau. Possui uma rea territorial de 33.745 km e, deste total, 18, 53% (6.254,25 km) so de rea indgena Waimiri-Atroari que fica no sul do municpio. Em 1991 tinha uma populao de 5.496 habitantes e em 2001, contava com um total de 18.803 habitantes (IBGE, 2001).
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4.2.7 Uiramut
A vila que deu origem ao municpio de Uiramut, emancipado em 17 de outubro de 1995, pela Lei Estadual n. 98, pertencia ao municpio de Normandia. A populao do municpio quase toda pertencente s etnias indgenas Makuxi e Ingarik. Das 40 escolas mantidas pelo municpio, 38 ministram aulas para crianas indgenas, em portugus-makuxi e portugus-ingarik. O municpio est a 315 km de Boa Vista e possui uma rea territorial de 8.090,7 km, da qual 97,97% (7.925,95 km) so da reserva indgena Raposa/Serra do Sol.
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(FREITAS, 1997)
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N 01
rea/Km 54.691
Situao Delimitada
02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12 13 14 15
Raposa/Serra do Sol So Marcos Anta Santa Ins Anans Cajueiro Ara Ponta da Serra Pium Xururuetam Barata/Livramento Ouro Raimundo Sucuba
Identificada Demarcada Demarcada Demarcada Demarcada Demarcada Demarcada Demarcada Demarcada Interditada Delimitada Demarcada Delimitada Demarcada
Municpio Boa Vista/Alto Alegre/Mucajai Caracarai Normandia/Boa Vista Boa Vista Alto Alegre Boa Vista Boa Vista Boa Vista Boa Vista Boa Vista Boa Vista Normandia Mucajai Boa Vista Mucajai Alto Alegre
N 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31
rea Indicada rea/Km Bom Jesus 8 Jaboti 80 Serra da Moa 116 Mano Pium 433 Recanto da Saudade 137 Jacamim 1.070 Wai Wai 3.300 Trombetas/ Mapera* 4.500 Malacacheta 161 Canauani 63 Taba lascada 70 Truaru 56 WaimiriAtroari 6.640 Boqueiro 139 Mangueira 40 Amingal 76 TOTAL 93.531
Situao Demarcada Delimitada Demarcada Demarcada Delimitada Delimitada Delimitada Interditada Demarcada Delimitada Delimitada Delimitada Demarcada Delimitada Demarcada Demarcada
Municpio Bonfim Bonfim Boa Vista Bonfim Bonfim Bonfim S.J. Baliza S.J. Baliza Bonfim Bonfim Bonfim Alto Alegre So Luiz Alto Alegre Mucajai Alto Alegre
Com esse processo de desconcentrao espacial do sistema poltico e administrativo que visava apoio federal ao governo estadual, o Estado de Roraima viu-se composto por quinze municpios no curto espao de 13 anos (1982-1995). O censo de 1995 estimou o total da populao do Estado em 262.200 habitantes, sendo 70,5% residentes na rea urbana de Boa Vista e somente 29,5% moradores da zona rural (IBGE, 2000). Ou seja, alocar 14 municpios para apenas 29,5% da populao indica a fragmentao poltica do espao como mecanismo de oposio aos direitos indgenas. Desta forma, o crescimento do eleitorado nos ltimos anos do sculo XX, relacionado ao processo de imigrao para o novo Estado, foi significativo para esse aparato da agenda poltica do governo estadual e municipal, tanto na reordenao das bases polticas como no controle das lideranas na bancada federal de Roraima. Essa ao do executivo estadual e do prefeito de Boa Vista tornou-se um importante mecanismo de domnio sobre o curral eleitoral e efetivou estratgias de poder na sobrevivncia dos privilgios da elite poltica roraimense.
Ano Eleitores 1990 1992 1994 1996 1998 2000 2002 86.226 101.722 119.888 140.504 170.621 186.047 187.266 Crescimento Absoluto Crescimento (%) 15,23 15,15 14,67 17,65 8,29 0,65
271
ZE
Municpios 1 Boa Vista Total 1 ZE 2 Caracara 2 Iracema 2 Mucaja Total 2 ZE 3 Alto Alegre 3 Amajari 3 Boa Vista (Rural) 3 Bonfim 3 Cant 3 Normandia 3 Pacaraima 3 Uiramut Total 3 ZE 4 Caroebe 4 Rorainpolis 4 So Joo da Baliza 4 So Luiz do Anau Total 4 ZE Totais da UF
Aptos 112.493 112.493 9.131 3.672 7.244 20.047 7.976 4.288 893 4.681 7.820 3.782 4.432 2.236 36.108 3.656 7.220 3.653 4.089 18.618 187.266
Essa sociedade eleitoral j fez denncias sobre o executivo estadual, procurando respostas para o no cumprimento dos enunciados na Constituio Federal/Estadual, especialmente, em seu artigo primeiro, incisos III (a dignidade da pessoa humana) e IV (os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa) e no conseguem compreender a permanncia desse jogo de interesse polticoeconmico, centralizado no governo estadual que controla parte das lideranas da
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elite/poltica local, no velho esquema da poltica de favor, no evidenciando uma poltica indigenista para a soluo dos impasses fundirios. Ao longo dos anos 90, fazendo uso de mecanismos governamentais na multiplicao dos municpios e solicitando do governo federal a reforma fundiria, o governo estadual encampou luta pela titulao de terras para os cidados do Estado, que em conjunto, buscavam recursos e viabilidade de entrarem no mercado nacional e internacional. Assim, o governo afirmava:
equivocado o sentimento pessimista que invadiu expressiva parcela da sociedade roraimense. Roraima vivel e comporta investimentos, principalmente na relao com o mercado internacional, disse ontem, o secretrio estadual de Planejamento do governo de Roraima. (...) hoje, a Secretaria de Planejamento tem funo estratgica buscando viabilizar investimentos, que no sejam necessariamente com recursos da Unio ou do Estado. Segundo ele, nesse sentido, existem contatos com vrios empresrios. Isso no quer dizer uma empresa, mas, um aglomerado delas, interessados na localizao do Estado e facilidade de colocar os produtos por ele gerado no mercado internacional. (...) Assim, nos queremos inverter a equao hoje existente, quando as transferncias do governo federal representam 80% dos recursos do Estado, destaca (FBV, 12/01/99, p. 4).
Isto quer dizer que, o impasse para o desenvolvimento da regio estaria em como estabelecer revises legais na definio fundiria, para atrair investidores possibilitando a independncia do Estado que sobrevive de verbas da Unio. O governo estadual aponta a posio geogrfica de Roraima como bandeira para entrar no mercado internacional:
Dos R$ 85 milhes que o Governo do Estado pretende usar neste ano para as reas de infra-estrutura e investimentos, mais da metade dever ser destinado para o setor da Agricultura. A informao do secretrio de Planejamento, Srgio Pillon, que assegurou que a aplicao do dinheiro s vai ocorrer a partir do segundo semestre do ano. (...) Assim, embora ainda no se tenha o valor exato de quanto deve ser gasto com incentivos Agricultura, o secretrio anuncia que este setor o que rene o maior nmero de projetos de desenvolvimento, entre os quais, o Gro-Norte, que quer plantar em Roraima 200 mil hectares de soja, milho e feijo. Outro programa que est sendo proposto ao Governo, segundo Pillon, a implantao de um plo de tecelagem, a partir da plantao de algodo. Ele explicou que investidores de Taiwan esto propondo a compra de algodo produzido em Roraima para abastecer o plo de tecelagem que dever ser criado com incentivos do Estado e importado para os Estados Unidos e Europa. (...) com a chegada da energia de Guri, a Agricultura deve dar um grande salto na produo de pelo menos trs tipos de
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fruta: manga, melo e melancia. (...) geograficamente Roraima est bem localizada para atingir o mercado internacional, finalizou (FBV, 25/01/99, p. 3).
Ou seja, no haveria, na regio, obstculos plena ocupao de seu territrio e explorao das riquezas naturais, podendo ser rea estratgica para a exportao, para o mercado consumidor no s dos estados do Amazonas e Par mas da Venezuela e Guiana, e ainda aos mais distantes, Caribe, Estados Unidos e as naes europias. Em linhas gerais, o registro desse discurso governamental constitui o correlato ideolgico considerado eficaz pelo poder administrativo e no percebemos, na mdia, interpelaes por parte da populao local (ndios e nondios) sobre esse assunto ou o engajamento consciente dessa populao, no esforo de mudana dessa situao local. Os programas governamentais pareciam no implementar uma poltica que libertasse a grande parcela dessa sociedade presa a uma conhecida economia do contra-cheque229 e da dependncia das aes dos governos, federal e estadual:
Grande parte dos bens consumidos em Roraima tem procedncia externa e supre a vida comercial do Estado que volta realidade anterior ao garimpo sustentada em grande parte pelo salrio dos servidores pblicos. Essa situao agrava a sade financeira da maioria das empresas, pois, como herana do auge do garimpo, a rede de abastecimento, hoje, maior do que a necessria. (...) Dessa forma, so freqentes as vendas atravs do cheque pr-datado, uma transao onde o cliente desfruta de crdito devido ao seu relacionamento com o comerciante e por sua condio de funcionrio pblico. A atividade comercial em Roraima sempre enfrentou fases de expanso e fases de desacelerao. (...) A integrao com os pases vizinhos, caminho vislumbrado para a retomada do crescimento da atividade comercial a grande meta para acelerar e construir uma sociedade economicamente forte em Roraima (AMBTEC, 1993: 315).
Contudo, apesar do discurso governamental, o quadro se agrava ainda mais, graas presena de contingentes indgenas obrigados a lidar com a circulao da moeda, experincia que, at ento, no fazia parte do seu cotidiano.
229
Em Roraima o hollerith do funcionrio pblico popularmente conhecido como contra-cheque. O comrcio local movimentado, em grande parte, pelo cheque pr-datado dos servidores pblicos tendo como aval os seus prprios contra-cheques.
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O final do ano 2002 chegou e o governo da terceira legislao no cumpriu a sua prpria agenda poltica de soluo do conflito fundirio entre ndios e nondios, bem como de transformao de Roraima em um plo exportador e importador. Isso no aconteceu e os conflitos foram transferidos para a nova gesto do governo estadual e federal, que prometeram analisar tal situao, que ainda continua presa antiga prtica colonial do sculo XVIII. Em grande parte, toda essa situao conflitante na histrica construo desse Estado parece estar relacionada aos ltimos acontecimentos dos anos 90: a redemocratizao do pas, a criao de comisses de inquritos parlamentares, a denncia a respeito dos polticos corruptos, o processo eleitoral sob o controle da mquina pblica, a poltica de excluso, os fenmenos financeiros internacionais agravando a economia brasileira/local.
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julgado e determinado alternativas que, na maioria dos casos, ditam a poltica pelos caminhos do coronelismo. Nesse sentido, no que diz respeito questo da terra, por toda a dcada de 90, circulou documentao230 de defesa da demarcao das terras indgenas, que continha, tambm, denncia de invaso de territrios reivindicados pelos ndios. Esse movimento em favor do ndio foi se desenvolvendo nas mais diversas direes. Cresceu o interesse entre os prprios ndios pela posse da terra e preservao da identidade tnica, pela presena fsica e interpretao da cultura do ndio, em princpio asseguradas pelas Constituies (federal/88 e estadual/91). Contudo, nesse trajeto de organizao em Assemblias e Conselhos surgiram, entre as prprias famlias indgenas, controvrsias em relao identidade cultural. Famlias Makuxi ou Wapixana, por exemplo, associaram-se ao projeto de emancipao nacional e, ao lado do Estado, buscaram condies de participao na partilha e reconstruo do quadro social, poltico e econmico roraimense/brasileiro, enquanto parentes Makuxi ou Wapixana, junto ao Conselho Indgena de Roraima (CIR), lutam contra o projeto de emancipao e buscam reconhecimento dos direitos originrios.
230. Esses documentos so: a) Ao de protesto e abertura de processos pelos fazendeiros, rizicultores, empresrios em favor do Estado e contra os ndios que desejam direitos constitucionais; b) aes de protestos, cartas, pedidos de inquritos pelos ndios ligados ao Conselho Indgena de Roraima enviados ao governo federal, Ministiro da Justia, FUNAI, ONGs em favor dos ndios; c) liminares, portarias do Ministrio da Justia em favor dos ndios que lutam pelos direitos constitucionais; d) pedidos de abertura de inquritos pelo Conselho Indigenista Missionrio (CIMI), Conselho Indgena de Roraima (CIR), Fundao Nacional do ndio (FUNAI) ao Ministrio Pblico sobre agresses sofridas pelos ndios; e) aes de protestos, cartas em favor do Estado pelas organizaes indgenas ligadas ao governo estadual e contrrias ao CIR; f) ao popular e liminar em favor do Estado contra os direitos constitucionais dos ndios pela Ordem dos Advogados do Brasil local (OAB/RR); g) ao e pedido de anulao pelo procurador-geral do Estado contra o Ministrio da Justia que demarcou reservas indgenas em rea nica; h) aes de protestos, abertura de processos por prefeitos, vereadores, deputados (estaduais e federais), senadores em favor do Estado contra os direitos constitucionais dos ndios que reivindicam terras em rea nica, etc.
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Identificao
Representao
Causas de Defesa
Desenvolvimento
social, sade, educao, poltica, demarcao em rea nica, preservao da cultura do ndio. Propostas semelhantes a do CIR.
Causas opem
que
se
Demarcao das reas indgenas em ilhas e permanncia dos nondios dentro da reserva. Idem.
em todas as reas do conhecimento. Preservao da cultura do ndio. preservar, Etnias Taurepang, Wai ndios de Roraima Reviver, divulgar a cultura dos Wai, Waimiri-Atroari, vinculados ao CIR. ancestrais ndios. Wapixana, Makuxi (TWM). Organizao das Mulheres indgenas de Reivindicam direitos scioMulheres Indgenas de Roraima vinculadas ao culturais e polticos para as mulheres indgenas. CIR. Roraima (OMIR).
Formal Educao Formal com indgenas Educao Igreja diferenciada para o ndio grade curricular igual para ndios e no-ndios.
Desrespeito cultura do ndio. Demarcao das terras indgenas em ilhas. Desrespeito organizao scio-cultural do ndio, demarcao das terras em ilhas.
231. Todas as informaes dos quadros demonstrativos so provenientes de artigos e notas, que foram veiculadas na imprensa local, como tambm das consideraes retiradas de depoimentos em diversos fruns de discusso, realizados em Boa Vista por rgos oficiais e no-governamentais, sobre a temtica indgena e a sociedade nacional local, durante os ltimos dez anos do sculo XX.
278
Identificao
Representao
Causas de Defesa
Causas opem
que
se
Sociedade de Defesa ndios de Roraima no Desenvolvimento social, Demarcao das reservas dos ndios Unidos do vinculados Igreja sade, educao, poltica, indgenas em rea nica, demarcao das reas em separao entre ndios e Monte Roraima Catlica.
ilhas, integrao do ndio na sociedade brasileira. em Aliana de Integrao e ndios de Roraima no Desenvolvimento todas as reas do Desenvolvimento das catlicos. conhecimento e integrao Comunidades Indgenas do ndio na sociedade de Roraima - ALIDICIR. nacional/local, e demarcao das reas em Associao Regional dos ilhas respeitando a ndios do Rio Quin, permanncia dos noCotingo e Monte ndios. SODIUR. no-ndios. Demarcao das reservas indgenas em rea nica, separao entre ndios e no-ndios.
Roraima - ARICOM
Quadro Demonstrativo 10 Organizaes No-Governamentais Indgenas (ONGs Locais no vinculadas ao CIR) Identificao Representao Causas de Defesa Causas opem a que se
Comisso para Criao ndios Yanomami e os Preservao da cultura e Garimpeiros em reas do Parque indgenas dos Yanomami. no-ndios defensores criao do Parque Yanomami Yanomami. da causa Yanomami.
CCPY.
Sade
URIHI.
Yanomami
ndios Yanomami e os Programas de Sade Minerao aurfera em indgenas dos no-ndios e Yanomami, preservao da reas cultura Yanomami. Yanomami. profissionais que defendem a sade e a cultura Yanomami.
Quadro Demonstrativo 11 Organizaes No-Governamentais em favor da causa indgena (ONGs Locais) Identificao
Grupo de Trabalho
Representao
ONG
Causas de Defesa
Causas opem
da floresta.
que
se
Amaznico GTA.
nacional na regio Defensora do Programa Desrespeito ao meio Piloto Ambiental do PPG- ambiente e s populaes Amaznica.
7, faz intermediao entre discursos e projetos das ONGs nacionais com as internacionais. nacional Preservao e conservao do meio ambiente. Demarcao de terras indgenas em rea nica. Independncia do ndio.
ONG
ambientalista.
Desrespeito ao meio ambiente. Demarcao da Raposa Serra do Sol em ilha e permanncia dos no-ndios na rea.
279
Identificao
MOVIMONDO/Itlia.
Representao
ONGs
Causas de Defesa
Causas opem
que
se
de solidariedade da Comunidade Europia que Bretanha. representa perigo para a soberania do Brasil. Plano de ajuda na rea de Idem. Mdicos Sem ONG da Comunidade sade aos ndios. Fronteiras/Holanda. Europia. Intermediao entre a Idem. Unio Europia no ONG transnacional. solidariedade nacional com Brasil (ECHO). a internacional. Plano de ajuda aos ndios e aos pequenos agricultores nondios, vtimas de estiagem e queimadas. OXFAM
da elite da Comunidade Plano de ajuda aos ndios e Discurso aos pequenos agricultores nacional/local contra a Europia no-ndios, vtimas estiagem e queimadas.
da
Gr-
Identificao
Diocese de Roraima.
Representao
Causas de Defesa
Causas opem
que
se
nica. Respeito ao ndio que queira continuar sendo ou no ndio. Missionrios Igreja Protestante, Evangelizao do ndio e integrao na Evanglicos (MEVA)232. ndios e fieis no-ndios sua sociedade nacional local. evanglicos. Conselho Indigenista Igreja Catlica e ndios Respeito e preservao da cultura do ndio. Missionrio (CIMI). catlicos. Demarcao das reservas indgenas em rea nica.
ndios catlicos e fiis Preservao da cultura do Demarcao das reservas no-ndios defensores ndio. Demarcao das indgenas em ilhas e reservas indgenas em rea permanncia dos noda causa indgena.
ndios dentro das reservas. ndio no-cristo.
Demarcao das reservas indgenas em ilhas e permanncia dos nondios nas reservas.
Quadro Demonstrativo 14 Igreja ou instituio Religiosa que influencia as comunidades indgenas locais
Identificao
Representao
Causas de Defesa
Causas opem
que
se
Fundao Nacional do FUNAI/local ndio (FUNAI), vinculada Governo Federal ao Ministrio da Justia. ndios de Roraima
Antes da Constituio/88, Conflitos sociais e a integrao do ndio na culturais entre ndios e sociedade nacional. Ps- no-ndios. Constituio/88 prestar assistncia e garantir o direito do ndio.
232. MEVA (Missionrios Evanglicos da Amaznia) um grupo de missionrios mantidos por diferentes correntes protestantes de igrejas dos Estados Unidos. Esses missionrios, com sede em Boa Vista, tm atuado em vrias malocas indgenas, como a dos ndios Makuxi, Taurepang, Wapixana, entre outros, e propiciaram a criao de conflitos familiares dentro de uma mesma etnia indgena convertida ao catolicismo.
280
Instituto Brasileiro dos IBAMA/local Recursos Naturais e Governo Federal Renovveis (IBAMA), vinculado ao Ministrio do Meio Ambiente. Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA), vinculado ao Ministrio do Desenvolvimento Agrrio. Universidade Federal de Roraima (UFRR), vinculada ao Ministrio da Educao. INCRA/local Governo Federal
Parcerias com o Banco Mundial e ONGs em projetos ecolgicos e autosustentveis dos recursos naturais.
O discurso da elite roraimense de que as reas congeladas so prejudiciais ao desenvolvimento do Estado. Poltica fundiria que Conflitos pela posse da possa atender o fluxo terra entre ndios e nomigratrio e o ndios em Roraima. deslocamento de nondios retirados das reas indgenas em Roraima. Parcerias e discusso na Comisso para Criao do Ncleo de Formao Superior Indgena vinculado Pr-Reitoria de Graduao, com representao da OPIR, do CIR, da CCPY, da OMIR, FUNAI, Diviso de Ensino Indgena/SEC/Est/de Educao, Cultura e Desporto (DEI-SECD). Empenho dos parlamentares (senado e cmera) e Governo de Roraima na obteno dos recursos de apoio aos projetos e agentes de sade que atuam nas reservas indgenas. Projetos e polticas pblicas do governo brasileiro envolvidos na conservao e proteo ambiental. Programas de proteo s populaes e terras indgenas. Ensino com critrios iguais para ndios e no-ndios.
Ncleo Interinstitucional de Sade do ndio (NISI), setor da Fundao Nacional de Sade (FNS), vinculada ao Ministrio da Sade. Secretaria Tcnica do Programa de Proteo s Florestas Tropicais para toda a Amaznia Legal (PPTAL), com Coordenao vinculada ao Ministrio do Meio Ambiente. Presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso.
Conflitos entre lideranas indgenas e lideranas polticas de Roraima. Presena de garimpeiros em reas indgenas.
Representa no Brasil os interesses do Programa Piloto do Grupo dos Sete Pases mais ricos do Mundo PPG7 (Estados Unidos, Canad, Alemanha, Frana, Itlia, Reino Unido e Japo).
Degradao ambiental. Conflitos sociais que dificultem a demarcao das terras dos ndios.
Governo do Brasil.
Parceria do G7 no Brasil Discursos de um segmento na demarcao de reservas da sociedade local que indgenas em Roraima. afirmam que o governo federal no tem condies de terminar a obra de demarcao das reas indgenas, solucionando os impasses entre ndios e no-ndios.
Quadro Demonstrativo 15 rea Federal que influencia polticas pblicas ou programas de desenvolvimento para Roraima
281
Identificao
Representao
Causas de Defesa
Causas opem
que
se
Demarcao de reserva Governador de Roraima Governo do Estado de Desenvolvimento sustentvel. Programa de indgena em rea contnua. Neudo Campos (PPB). Roraima. Educao Formal diferenciado para o ndio. Demarcao das reas indgenas em ilhas. Uso da violncia para contestar a homologao da Raposa Serra do Sol em reserva indgena em rea nica. A regio rica em minrios e deve ser explorada pelos brasileiros e no por ONGs internacionais. a favor da reserva indgena e defende parcerias com os ndios. Necessidade de investir em reas fora das reservas indgenas. Parcerias com os ndios. Prope projetos da prefeitura na rea de agricultura. Desenvolvimento sustentvel. Demarcao das reservas indgenas em ilhas respeitando a permanncia dos nondios na regio. Desapropriao de fazendeiros e pequenos agricultores. Demarcao indgena em No aprova internacionais congelar indgenas.
Prefeito do municpio Governo Municipal da de Boa Vista Ottomar Capital de Roraima. Pinto (PTB).
Prefeito do municpio Governo Municipal de Normandia Vicente fronteira Brasil/Guiana. Adolfo Brasil (PSDB).
Prefeito do municpio Governo Municipal de Pacaraima Hiprion fronteira Oliveira (PFL). Brasil/Venezuela. Senadores de Roraima. O povo de Roraima no Romero Juc (PFL), Senado Federal. Marluce Pinto (PMDB), Mozarildo Cavalcanti (PFL).
Conflitos sociais e separao entre ndios e no-ndios. Demarcao das reservas indgenas em rea nica. Desapropriao dos nondios da regio.
Deputados Federais de O povo de Roraima na Idem. Roraima. Cmara Federal. Deputados Estaduais de O povo de Roraima na Idem. Roraima. Assemblia Legislativa Estadual. Vereadores de Roraima O povo de Roraima na Idem. Cmara Municipal de Boa Vista.
Idem. Idem.
Idem.
Demarcao das reservas Empresrios de Produtores agrcolas, Desenvolvimento socioeconmico. indgenas em rea nica. Roraima: Federao do pecuaristas, Demarcao das reservas Desapropriao dos Comrcio (FECOR), comerciantes. indgenas em ilhas produtores e fazendeiros Federao da respeitando a permanncia da regio. Agricultura (FAER) e dos no-ndios na regio. Associao Comercial e Industrial de Roraima
(ACIR).
282
Ao popular para impedir homologao da reserva indgena Raposa Serra do Sol em rea nica com expulso de todos os nondios da regio.
Demarcao das reservas indgenas em rea nica. Anulao de Decretos estaduais que criaram municpios em reas indgenas.
Quadro Demonstrativo 16
Representantes da Sociedade Nacional local
283
culturais), tendo como apoio projetos com estratgias no-indgenas de usufruto sustentvel de recursos naturais, aproxima-se do padro do Parque Indgena do Xingu (Mato Grosso) de garantia, ao ndio, de um espao scio-cultural permanente e geograficamente contnuo. Temos, at o momento, cinco ONGs indgenas (CIR, APIR, OPIR, TWM,
OMIR) e quatro ONGs no-indgenas (CCPY, URIHI, GTA, ISA) que, com o aval da FUNAI e participao de instituies catlicas (Diocese de Roraima e CIMI), vm
defendendo a demarcao em rea nica. Em contraposio, a defesa da demarcao em ilha, que uma reivindicao dos ndios integrados e de segmentos da sociedade nacional, significa uma rea dividida em partes cuja ocupao seria entremeada por ndios e no-ndios, constituindo-se num territrio fragmentado em lotes, com uma clara poltica compensatria por parte do Estado em favor da sociedade nacional que vem sendo, h sculos, instada a ocupar o vazio amaznico. Os projetos da Unio para a demarcao das terras sempre considerou mesmo que no claramente explicitado o modelo de reas nicas. Tal modelo se firma na convico de que s a rea nica capaz de garantir proteo manuteno da cultura indgena, inclusive rechaando os contatos com os brancos. Em 1992, por ocasio das manifestaes pelos 500 anos de resistncia indgena na Amrica Latina, diante das dificuldades dos ndios, deslocados de suas malocas e terras para a capital Boa Vista, o Conselho Indgena de Roraima (CIR) e a Diocese de Roraima tentaram romper com o paradigma tradicional do projeto assimilacionista do Estado, ainda presente nos anos 90. Em termos concretos, os ndios ligados a estas duas entidades, manifestaram seu protesto no centro da capital, chamando ateno para o reconhecimento oficial dos
284
fundamentos de seus direitos constitucionais, reivindicando do Estado mecanismos legais para o reconhecimento de seus direitos originrios:
Ao ndio o que sempre foi do ndio, a palavra final do Conselho Indgena de Roraima (CIR) quando o assunto terra indgena. No ltimo dia 12 de outubro, os ndios se reuniram no Centro Cvico para o lanamento da campanha pela demarcao da rea Indgena Raposa Serra do Sol (AIRASOL). mais uma promoo em defesa da causa indgena no Estado de Roraima, explicou o coordenador do CIR, Clvis Ambrsio. Ele esclareceu que o direito terra necessrio sobrevivncia fsica e cultural das comunidades indgenas. Direito esse que anterior formao do Estado Brasileiro e significa o reconhecimento de que os colonizadores portugueses quando chegaram ao Brasil em 1500 encontraram povos que eram detentores de direitos, como a terra que possuam (FBV, 15/10/92, p. 4).
O lder e coordenador do CIR, que foi tambm o idealizador do lanamento dessa campanha em favor da demarcao da rea Indgena Raposa Serra do Sol (AIRAROL, cf. Mapa 06, p. 251), acreditava na solidariedade dos nondios de Roraima. Os ndios associados ao CIR esperavam o apoio do Estado e da sociedade em favor do seu direito como primeiro habitante. No entanto, a recepo da manifestao do ndio contra o no cumprimento dos direitos constitucionais pelo Estado foi desastrosa, pois exps no apenas a dificuldade do Estado em lidar com essa situao histrica de sua prpria relao com o ndio como, tambm, as reivindicaes dos no-ndios que pretendiam conquistar/legalizar o que era de propriedade da Unio em Roraima: as terras. Essa campanha indgena, liderada pelo CIR em prol da AIRASOL, provocou uma crescente organizao das lutas por direitos entre ndios e no-ndios e ainda muitas rupturas internas entre as famlias indgenas: as que buscavam junto ao
CIR o resgate dos direitos de organizao scio-cultural originria (com a posse
coletiva da terra) e aquelas que estavam ao lado do Estado e aspiravam a seus prprios direitos civis e de propriedade privada. Os ndios Makuxi, Ingarik, Wapixana, Taurepang, Wai Wai e outros pequenos grupos vinculados ao Conselho Indgena de Roraima (CIR) pedem a demarcao em rea nica e expulso de todo branco do territrio demarcado.
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A Unio, evidentemente, no ignora tais necessidades indgenas e nem os conflitos por elas gerados, buscando introduzir cunhas de ao paliativa, que contemplassem todas as partes envolvidas. Nesse sentido, a criao do Parque Nacional Monte Roraima, como rea de preservao ecolgica dentro da rea reivindicada pelos ndios Ingarik com clara inteno de contentar a gregos e troianos, no convence as lideranas indgenas:
O parque foi criado pelo decreto presidencial em 28 de junho de 1989. As lideranas indgenas Ingarik querem as terras demarcadas e ameaam prender quem est explorando o turismo sem autorizao da comunidade. O lder indgena Dlson Ingarik disse que a comunidade Ingarik contra a instalao do Parque Nacional Monte Roraima, ao norte do Estado, porque os ndios no foram consultados233 pelo IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente). Ns somos contra o parque. A maioria das pessoas ainda no sabe o que isso significa. Para ns, o que mais interessa no momento a homologao da Raposa/Serra do Sol, em rea contnua, afirmou durante a segunda Assemblia Geral do Povo Ingarik (FBV, 08/11/00, p. 6).
Parte das terras da Reserva Indgena Raposa Serra do Sol, a rea dos Ingarik, ferrenhamente defendida por seus lderes contra a aproximao do Estado, mesmo que esta se d de modo politicamente correto, na forma de um Parque Nacional que tem estatutos jurdicos de preservao contra ocupao econmica permanente. A atuao da Unio vem, de fato, incidindo negativamente, de h muito tempo e com insistente presena nos dias de hoje, no quadro dos conflitos, acirrando-os:
No dia 29 de abril de 1998, o presidente Fernando Henrique Cardoso assinou o decreto, em Braslia, de criao de mais dois parques nacionais no municpio de Caracara Viru e Serra da Mocidade. Em Roraima, so 3.827.128 hectares de terras destinadas somente a unidade de conservao. O Parque Nacional de Viru tem 227 mil hectares e o Parque Nacional de Serra da Mocidade 350,4 mil hectares de extenso. As duas localidades ficam na regio do Baixo Rio Branco, entre a Estao Ecolgica de Niqui e a regio de Catrimani, que faz parte da reserva indgena Yanomami. O Estado de Roraima tem ainda em seus 225.131 quilmetros quadrados, reas de domnio do Incra (28%), Funai (40%),
233. Consulta essa prevista na Constituio Federal de 1988, estabelecendo a competncia exclusiva do Congresso Nacional em relao explorao (sic) das terras indgenas, com aval das etnias afetadas (Art. 231, 3).
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Exrcito (2,85%), Ibama (2,11%) e de terras devolutas que tomam cerca de 5% do Territrio. O Estado dispe apenas de 10% da sua rea, mas ainda no regulamentada
(FBV, 02 e 03/05/98, p. 6).
Unio, Estado, instituies pblicas, Igreja e organizaes nogovernamentais entram, assim, em choque frontal:
O Ministro da Justia, Renan Calheiros julgou improcedentes todas as contestaes dos fazendeiros. A Portaria n. 820 (11.12.1998) que demarca a reserva Raposa Serra do Sol em rea nica e assinada pelo Ministro Renan Calheiros, desconsidera o despacho do Ministro Nelson Jobim excluindo reas habitadas por no-ndios. A Portaria exclui dos limites da terra indgena apenas uma rea militar onde ser implantado o 6 Peloto Especial de Fronteira, em Uiramut. Para o Ministro Renan Calheiros e para os ndios da Raposa Serra do Sol, o Municpio de Uiramut, vilas e fazendas deixaram de existir com a Portaria n. 820. Para Renan Calheiros, seria muita contradio o Estado entrar com uma ao contra o Governo Federal e depois ir at Braslia pedir recursos (FBV, 15/12/98, p. 5).
Indubitavelmente, a tentativa de compatibilizar interesses to divergentes acaba retirando o poder at mesmo dos institutos legais mais srios e, neste quadro, despachos e portarias se sucedem, se confundem e se anulam e o poder da Unio e do Estado se enfrentam e se desmoralizam mutuamente. Sem determinaes precisas e diante da baixa respeitabilidade do poder pblico, a sociedade toma nas prprias mos a soluo dos conflitos:
O Coordenador do CIR (Conselho Indgena de Roraima) e o Coordenador do CIMI (Conselho Indigenista Missionrio) foram at a Procuradoria Geral da Repblica pedir ao Ministrio Pblico Federal providncias para evitar novos conflitos no Municpio de Uiramut, que fica dentro da rea indgena Raposa/Serra do Sol. O Coordenador Regional do CIMI fez denncias tambm sobre a agresso que sofreu quando quase levou uma facada, em Uiramut. O CIR tambm pediu a Polcia Federal que investigue as mortes de dois adolescentes ndios que ocorreram no perodo do conflito (FBV, 13 e 14/02/99, p. 3).
No nos cabe, aqui, elencar e discutir a tipologia e qualidade dos conflitos, nem mesmo em termos de perdas de vidas humanas, embora, evidentemente, a tal no sejamos alheios. A veiculao de tais solues pessoais, contudo, de to grande constncia que acaba desmontando qualquer posio civil de estabelecimento de equilbrio por meios legais, como que tornando aceitvel os caminhos da violncia fsica mida, em contrapartida quelas institucionais.
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Se perde, assim, a possibilidade de defesa sria da questo real, aquela da reserva em rea contnua. 5.2.1.2. Demarcao das terras em ilhas A demarcao das reservas indgenas em ilhas e a permanncia do branco dentro da reserva so reivindicadas, at o momento, por quatro instituies
(ALIDICIR, SODIUR, ARICOM e OAB/RR), o governo de Roraima, prefeitos
municipais de Roraima, e a totalidade da representao poltica (senadores, deputados federais e estaduais e vereadores), empresrios e fazendeiros. Ganha corpo, assim, a reao contra a rea contnua, concretizada em vago projeto de demarcao em ilhas, com o Estado de Roraima tomando a frente de tal posio:
O secretrio estadual de Planejamento, Srgio Pillon, garante que h disposio poltica do governo em sair do discurso para a prtica. (...) No setor produtivo primrio o secretrio de Planejamento afirma que a indefinio fundiria o principal n que impede o desenvolvimento rural. Ele destaca que o governo do Estado contra a demarcao da reserva Raposa Serra do Sol em rea contnua (FBV, 12/01/99, p. 4).
Em funo de tal afrontamento, embora a referida Portaria 820 no tenha sido cancelada, as demarcaes da Raposa Serra do Sol no foram ainda homologadas. No decorrer do perodo, o Estado tem recebido o apoio no s de entidades brancas,
Uma comisso da OAB (Ordem do Advogados do Brasil) criada para acompanhar o caso Raposa Serra do Sol decidiu que vai aprontar hoje uma Ao Popular contra a homologao da reserva indgena para ser impetrada o mais rpido possvel na Justia
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Federal. Segundo o presidente da OAB, Ednaldo Nascimento, a ao ser com pedido de liminar, o que vai garantir uma deciso rpida, antes que o presidente Fernando Henrique Cardoso homologue a demarcao em rea nica. (...) Ele acredita que poder colocar a homologao sub jdice. Um juiz federal aqui mesmo em Roraima pode apreciar a ao com rapidez e ento a demarcao ficar suspensa at que se decida o mrito, disse Nascimento (FBV, 07.01.99, p. 4).
como daquelas entidades que representam os indgenas desejosos e decididos a se incorporarem na estrutura nacional:
Um grupo de aproximadamente 70 ndios ocupou ontem tarde a sede da Administrao Regional da FUNAI em Boa Vista/RR, para protestar contra a demarcao em rea nica da reserva Raposa Serra do Sol e da reserva So Marcos. As lideranas indgenas fizeram vrias denncias contra a atuao do rgo indigenista e exigiram dos diretores do rgo uma conversa por telefone com o presidente da FUNAI/Braslia-DF, Sulivan Silvestre ou com autoridades do Ministrio da Justia. Os ndios representam 44 malocas da regio das Serras, na Raposa Serra do Sol, e de outras comunidades da reserva indgena So Marcos, alm de 28 tuxauas. A Polcia Militar foi chamada para garantir a Segurana dos funcionrios, porm no conseguiu impedir a ocupao das salas da Operao Yanomami e a do administrador regional. A ocupao foi pacfica, mas no houve atendimento. Homens e mulheres acampam na sede at uma deciso oficial no atendimento das reivindicaes. O administrador Walter Bls est de frias e o interino Dlcio Igncio dos Santos alegou que no tinha conhecimento do problema. A ocupao da sede da FUNAI/RR foi organizada por trs ONGs indgenas (SODIUR, ARICOM, Aliana de Integrao Indgena) que so contra a demarcao da reserva em rea contnua. Para o presidente da ARICOM, Gilberto Makuxi, a demarcao das reserva em rea nica desejo da Igreja Catlica e de entidades internacionais. Gilberto Makuxi disse que o Ministro da Justia e o presidente da FUNAI devem vir a Roraima para ouvir o outro lado da histria das comunidades indgenas contrrias demarcao em rea nica. Estes grupos de ndios denunciam que esto sem assistncia de sade, educao e agricultura, e por isso defendem a permanncia de produtores rurais na regio e assistncia do Governo de Roraima. Para o presidente da SODIUR, Lauro Barbosa, h 4.858 ndios associados sua entidade que preferem parceria com o Governo do Estado porque esto abandonados pela FUNAI. Eles no querem seguir o caminho dos Yanomami que tm muita terra e esto abandonados. O tuxaua da Maloca Bananal, Marcolino de Souza, foi uma das lideranas que mais fez denncias sobre a falta de assistncia da FUNAI/Local (FBV, 14/01/99, p. 6).
Nota-se, como ponto de partida na considerao do documento acima, a tomada de posio indgena contra a FUNAI, justa representante dos indgenas pr-tradio e, portanto, isolacionistas em relao ao Estado nacional. Dessa manifestao tomaram parte as mais importantes ONGs indgenas contrrias demarcao da Raposa Serra do Sol em rea nica e conseqente
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expulso de seus ocupantes brancos: SODIUR (Sociedade dos ndios Unidos do Monte
Roraima), ARICOM (Associao Regional dos ndios do Rio Quin, Cotingo e Monte Roraima) e ALIDICIR (Aliana de Integrao e Desenvolvimento das Comunidades Indgenas de Roraima).
No desenrolar da manifestao em pauta, tomando posies e definindo aes para solucionar o conflito, as mulheres indgenas opinaram e a mulher do tuxaua Cludio Barbosa alertou que as mulheres indgenas recusam a tutela da
FUNAI que de pouca utilidade para os interesses indgenas e que no se importa
se elas e os seus filhos esto doentes ou com fome (cf. FBV, id., ibid.). A prpria incluso das mulheres em tal protesto pode nos apontar um dado de fato em nada irrelevante: a efetiva participao do elemento feminino em um conflito de carter poltico, algo estranho cultura indgena e perfeitamente presente naquela nacional qual tais grupos, a propsito, visam se integrar. As mulheres vm sendo, alis, uma presena cada vez mais constante nas reivindicaes e, como contrapartida, o movimento pr-rea nica tambm comea a t-las organizadas (cf. p. 259, Quadro 09). A fala dos representantes das trs maiores ONGs indgenas do Estado no ligadas ao CIR e Diocese de Roraima (Gilberto Macuxi da ARICOM, Lauro Barbosa da SODIUR, tuxaua Marcolino de Souza da ALIDICIR) evidenciou o desejo de proteo e integrao do ndio na sociedade nacional, proteo esta que faz parte da agenda poltica local, do governo estadual e municipal com apoio dos senadores e deputados federais/estaduais e representantes de segmentos da sociedade local (fazendeiros, comerciantes, agricultores). Essas organizaes indgenas so constitudas pelos Makuxi, Wapixana, Taurepang e outros que so identificados como brasileiros natos, de idias e prticas culturais diferenciadas de grupos de suas prprias etnias vinculadas ao CIR. H que se compreender, portanto, que as menes proteo aos ndios nos discursos polticos
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roraimenses se prendem exclusivamente aos ndios partidrios da prpria integrao no projeto nacional. O texto destacava, tambm, a percepo da caminhada desses ndios como objeto-sujeito de sua prpria histria na formao desse Estado, da situao atual do pas e os seus problemas, ainda pendentes desde a fase inicial de Territrio Federal: a situao das terras; o conflito interno entre os prprios ndios; o conflito envolvendo ndios, no-ndios e o Estado/Unio; a poltica indigenista do Estado/FUNAI que no soube resolver a posse da terra pelo ndio; o projeto poltico do Estado que no proporcionou ao ndio civilizado as prometidas benesses na sociedade brasileira e posse da terra segundo os limites individualistas do direito privado, que, tambm, j se faziam presentes na poltica pombalina do sculo XVIII (cf. Cap. 1, itens 1.4 e 1.7). Os segmentos das etnias indgenas associados ao processo poltico estadual/nacional procuraram oficializar o seu papel nesse processo histrico em formao, combatendo os parentes ndios que desejam a expulso dos brancos vizinhos e a demarcao da reserva em uma unidade territorial (cf. Cap. 2, itens 2.3, 2.4
e 2.5) e a ruptura de uma monoconscincia indgena tornou-se definitivamente
clara:
O produtor Vicente Gianluppi afirmou que o Governo Federal promove o esvaziamento econmico do Estado, a partir da indisponibilidade das terras. O presidente da APIR (associao dos povos indgenas de Roraima), o tuxaua Firmino Alfredo da Silva, defendeu a demarcao da reserva Raposa/Serra do Sol em rea nica porque o ndio nmade, precisa se movimentar na rea em busca de caa e pesca. A demarcao em ilhas implica no isolamento do ndio. O tuxaua Jos Lauriano, membro da SODIUR (sociedade dos povos indgena do norte de Roraima), declarou-se favorvel a demarcao em ilhas porque os ndios querem espao para ter acesso modernidade, ter oportunidade de emprego, crescer como ser humano e no ser dominado pela Funai e pela Igreja Catlica que pregam o retorno ao primitivismo. Laurindo disse que no querem ser iguais aos Yanomami. Ele disse que os estrangeiros no esto interessados no ndio, mas os tm como escudo. Prova disso so os Yanomami que esto isolados, morrendo de fome, doentes. Para o Vereador Jonas Marcolino (PSL), que tuxaua da Maloca Conto, o ndio um cidado brasileiro que quer e deve ter o direito de viver em harmonia, de forma pacfica junto com os no-ndios. Ele enfatizou que nasceu ndio e vai morrer ndio, mas quer continuar crescendo como ser humano e este isolamento no querer que o ndio cresa como cidado. O vereador 291
Parim Brasil (PSDB) fez crticas aos polticos descompromissados com os interesses de Roraima. Ao afirmar que a demarcao destas reas iniciou em 1974, disse que desde ento ningum reagiu para evitar o continuado avano das pretenses, especialmente os polticos que chefiaram o executivo e tambm tiveram mandato no parlamento federal. O representante do Governo explicou que o Estado quer conquistar na Justia o direito da demarcao em ilhas e apresentou trs argumentos que do base as teses jurdicas: Roraima, ndios e a soberania. Para o Governo invivel ao desenvolvimento de Roraima com demarcao em rea contnua. O ndio precisa ter garantido os direitos educao, sade, progresso, evoluindo como ser humano e no como tratam muitas Ongs internacionais que olham o ndio como animal. A questo da soberania do Governo brasileiro de no gerenciar sobre as reas indgenas depois de homologadas sob presses internacionais (FBV, 28/01; 99, p. 3).
Alm do rompimento da monoconscincia indgena, o texto acima nos leva discusso de outra vertente subjacente ao conflito, que o medo e a recusa da internacionalizao.
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Diocese de Roraima compraram alimentos para 182 comunidades indgenas e famlias de pequenos agricultores. Ontem iniciou a segunda fase de distribuio de 130 toneladas de alimentos que iro alimentar 3.524 famlias, incluindo tambm ndios Yanomami (FBV, 21/05/98, p. 6).
Nesse caso, tais ONGs se fizeram presentes em Roraima para ajudar os ndios e os pequenos agricultores que foram vtimas das queimadas e da estiagem que castigou o Estado entre fevereiro e maro daquele ano. Alm da solidariedade internacional para o abastecimento de gua e alimentos, outras aes se voltaram para sade e agricultura nessa primeira fase do projeto. Explicando o interesse das ONGs europias em Roraima, durante entrevista na mdia local, o representante da MOVIMONDO, Vicenzo Pira, disse que essas ONGs dariam, tambm, um apoio tcnico a projetos de tecnologia auto-sustentvel para as entidades envolvidas com os ndios. Tal solidariedade internacional provocou desconfianas entre as lideranas polticas e segmentos da sociedade roraimense:
Vicenzo Pira classificou como fofoca da elite local que a ajuda da Comunidade Europia representaria um perigo a soberania do Brasil. Para citar um exemplo de que h uma sintonia internacional de ajuda ao pas, ele disse que o presidente Fernando Henrique Cardoso assinou um acordo, em outubro de 1997, com a ONU (Organizao das Naes Unidas) para preservar as florestas tropicais. A soberania do Brasil no est em discusso nesse momento, destacou. O que estamos discutindo agora a autonomia das comunidades indgenas que precisam tambm que suas terras ocupadas sejam demarcadas. Para ele, as populaes indgenas precisam ter a garantia da terra para continuar sobrevivendo (FBV, id., ibid., grifo nosso).
Para alm da bvia afirmao da Comunidade Europia no pretender cindir a soberania brasileira, devemos observar o postulado do auxlio que levaria autonomia indgena. Tal autonomia, em princpio econmica e baseada em projetos ecologicamente corretos e auto-sustentveis, tambm defendida por entidades brasileiras tais quais o GTA, ISA, CIMI, CCPY, URIHI, CIR, APIR, OPIR,
TWM, OMIR (cf. Quadros, 09, 11 e 12, pp. 259-60).
Claro est que, em se tratando de colaborao internacional, a questo da soberania sempre se coloca. Contudo, independentemente do ponto de partida
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desses processos de ajuda, solidariedade ou, at mesmo, estudos envolvendo contato com a terra, gente e instituies de um pas, bvio que tal pas deve necessariamente e sempre, exercer controle sobre tais aes. O medo em relao aos projetos de estudos amaznicos com a colaborao cientfica internacional no novo. Nos anos de 1950, surgiram debates e protestos relacionados criao do Instituto Internacional da Hilia Amaznica (IIHA)234. Violentas discusses eram realizadas no Congresso e na Cmara e, tambm, na Imprensa, lideradas pelo ex-presidente Artur Bernardes
No contexto da guerra fria, com a campanha nacionalista do petrleo ganhando corpo desde 1947, as representaes europias da ONU e UNESCO eram apontadas como bolcheviques: perdia-se a Amaznia e o pas ficaria nas mos dos comunistas (PEPITJEAN & DOMINGUES, 2000). Esse medo sufocou o projeto do IIHA que tinha todos os elementos de um grande projeto de colaborao cientfica internacional, idealizado, desde 1942, por Paulo Carneiro, um cientista brasileiro srio, bioqumico com ps-graduao em Paris, trabalhos no Instituto Pasteur, onde sintetizou o curare. Contudo, os dois anos de funcionamento provisrio do IIHA, sob presidncia de Heloisa Alberto Torres, diretora do Museu Nacional do Rio de Janeiro, tinha mostrado vrias perspectivas aos pesquisadores brasileiros e, em
234. Tal Instituto seria mantido pelos pases da Hilia (Frana, Inglaterra, Estados Unidos, etc.) e contaria com verbas da UNESCO e colaborao de cientistas ingleses, franceses, americanos, entre outros.
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1951, criava-se o CNPq que, em 1954, revivia os ideais do extinto IIHA com a criao do INPA: Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia. A colaborao cientfica internacional, que j contara com o interesse pela Amaznia de nomes como Humboldt, Wallace, Dates, Darwin e Agassiz, tinha agora um centro nacional para control-la e incentiv-la. Todavia, observa-se que o temor militar nunca aplacou, mostrando-se no projeto oficial que o abriga: o Calha Norte. O pretendido povoamento amaznico com apoio de unidade militar no algo novo, pois fizeram parte do projeto do poder central colonial do sculo XVIII, quando foram fundados os primeiros aldeamentos e as primeiras fazendas particulares, tendo o suporte administrativo-militar do forte So Joaquim, na regio do Rio Branco (cf. Cap. 1), atual Estado de Roraima. Tal modelo de soberana do Estado Luso-brasileiro era fundamental para o xito da posse e defesa da terra em nome do governo central. Essa idia de salvaguardar e ocupar as fronteiras amaznicas fez parte, tambm, do programa de governo federal em fins dos anos de 1970-80, quando o Conselho de Segurana Nacional projetou o Calha Norte. Esse projeto para defesa da fronteira Norte brasileira, do controle do narcotrfico e contrabando, de coibio da explorao mineral e vegetal ilegal e, tambm, de possveis incurses de guerrilheiros, foi divulgado pela mdia somente no ano de 1986, momento em que:
O Ministrio do Exrcito instalou na faixa de fronteira da regio Norte, quatro Pelotes Especiais de Fronteira. H outros dois em implantao e mais cinco so previstos
(ALMEIDA, 1992: 97).
Esse programa do governo federal recebeu apoio jurdico com os dispositivos constitucionais do artigo 20, XI, 2 que dispe: a faixa de at cento e cinqenta quilmetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres,
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designada como faixa de fronteira, considerada fundamental para defesa do territrio nacional, e sua ocupao e utilizao sero reguladas em lei235.
MAPA 07 Calha Norte (EUSEBI, 1991:37) Assim, o projeto Calha Norte, implantando unidades militares na fronteira norte amaznica, eliminaria as pretenses estrangeiras e integraria essa isolada regio ao centro econmico e poltico brasileiro. O papel do Calha Norte como cunha nacionalizadora capaz de desestruturar e dificultar ainda mais o j difcil processo de sobrevivncia das comunidades indgenas alarmou todos os interesses pela questo, que o viam como uma abertura penetrao do capital
235.
Constituio Federal de 1998, Ttulo III (Da Organizao do Estado), Captulo II (Da Unio).
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brasileiro e multinacional na Amaznia, que poderia avanar como um rolo compressor sobre as populaes indgenas (EUSEBI, 1991:36-37).
Esse rolo compressor civilizador precisava, antes de qualquer coisa, afastar o obstculo indgena, impedindo a demarcao de suas terras e concentrando os diversos grupos tnicos em pequenos ncleos, algo mais propcio ao trabalho de integr-los no projeto social nacional (id., ibid.).
A proteo do territrio amaznico e, ao mesmo tempo, sua ocupao, foram claras preocupaes do governo militar entre 1964 e 1985 (cf. Captulo 3, pp.
170/179) e o Calha Norte foi um dos pontos de sustentao de sua poltica. A
construo de suas bases, sendo, a maioria delas dentro de territrios indgenas, passou por muitos percalos, inclusive de ordens jurdicas, com vrias impugnaes legais que retardaram sua implantao fsica. Assim, dezessete anos aps a divulgao de sua criao, tal projeto ainda padecia de incompreenso no mbito da sociedade de Roraima:
Com surgimento do Sivam (Sistema de Vigilncia da Amaznia), o projeto Calha Norte perdeu importncia no Governo Federal e parlamentares querem saber o que est sendo feito. Se continuar a demarcao de terras indgenas nas reas de fronteira, na Amaznia, o projeto Calha Norte est fadado falncia. A opinio do deputado federal Jair Bolsonaro (PPB-RJ), conhecido por defender os militares e combater no Congresso a criao de novas reservas. Bolsonaro diverge de Romeu Tuma (PSC-SP). O senador acredita que o Calha Norte precisa ser redimensionado, porque de importncia vital para a Amaznia. Isso fica cada vez mais claro, porque o Calha Norte no um projeto militar, um projeto do estado para ocupao da Amaznia pela sociedade civil. Os dois parlamentares integram a Comisso Mista do Congresso que desde tera-feira visita unidades militares da Amaznia, principalmente os pelotes de fronteira que fazem parte do Calha Norte. Completam a Comisso os senadores Carlos Patrocnio, Ernandes Amorim, Joo Frana e Marluce Pinto, e os deputados federais Antonio Feijo, Carlos Airton, Geovani Queiroz, Hilrio Coimbra, Luiz Fernando e Salomo Cruz. A visita comeou por Roraima e encerra hoje em Tabatinga, aps serem visitadas as bases do Calha Norte em Surucucus (RR) e Maturuc, Auarets e So Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, alm de unidades militares sediadas em Boa Vista e Manaus. Falando com o conhecimento de quem chefiou vrias operaes no interior da Amaznia nos nove anos em que foi diretor da Polcia Federal, o senador Romeu Tuma disse que s as Foras Armadas esto cumprindo com sua parte no Calha Norte. O projeto tem que ser reequacionado para vingar. Para ele, o Sivam Sistema de Vigilncia da Amaznia, e o Sipam Sistema de Proteo da Amaznia, no sobrevivem se o Calha Norte no for implantado em toda a sua extenso. O papel da Comisso Mista, para o senador, o de trabalhar em cima da liberao de recursos para que o projeto tenha continuidade. J que todas as verbas passam pela aprovao do Congresso. Bem mais
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pessimista Jair Bolsonaro diz que o Calha Norte incuo. No h como transformar pelotes em plos de colonizao dentro de terras indgenas. Est na hora de acabar com estas demarcaes imensas, ou o Calha Norte no tem esperanas. O deputado disse ainda que protocolou pedido na Cmara para que projeto seu que prev a reduo da Terra Indgena Yanomami seja votado em regime de urgncia. Os deputados no vo votar a tramitao em carter de urgncia porque so venais e no vo ficar contra o governo (FBV, 07/11/96, p. 3, itlico nosso).
De fato, a Comisso Mista do Congresso (senadores e deputados), apresentou clara ciso de compreenso e fins do Calha Norte, com posies favorveis e outras que o vem como incuo. Em ambas, no entanto, fica-se evidente a crena na necessidade da colonizao das terras em questo, com a manifestao contrria s demarcaes vindo claramente a pblico. Passados quinze anos da divulgao do Calha Norte, algumas vitrias so obtidas por seus oponentes:
O juiz federal Helder Giro Barreto concedeu liminar anteontem que probe a construo de um Peloto Especial de Fronteira do Exrcito na regio de Uiramut, prximo aos limites da rea indgena Raposa Serra do Sol, a nordeste do Estado. H muito tempo as lideranas indgenas ligadas ao Conselho Indgena de Roraima (CIR) tentam impedir a continuidade das obras, que esto sob a responsabilidade do 6 BEC (Batalho de Engenharia e Construo). Os lderes indgenas alegam que no so contra a obra, mas justificam que o quartel iria perturbar a tranqilidade das aldeias e causar problemas como prostituio juvenil236 e insero de bebidas alcolicas. (...) A construo do Peloto de Fronteira em Uiramut faz parte do projeto Calha Norte, do Governo Federal, que tem como principal objetivo ocupar a faixa de 150 quilmetros na rea de fronteira (FBV, 05/01/01, 5).
Entretanto, as notcias do embate chegam mdia sem apontarem as questes de base e sem especificar com clareza os pontos em choque. Por outro lado, na formao da conscincia que leva os grupos locais ao, existe o velho fantasma da fase colonial (sculo XVIII, cf. Cap. 1): o medo em relao aos interesses de grupos internacionais na ocupao da regio.
236. A prostituio dos ndios, gerada pelos brancos, um assunto antigo nessa regio. Na dcada de 1920, os relatrios do Marechal Rondon, que esteve reunido com os ndios e inspetores do SPI (Servio de Proteo ao ndio), registraram as denncias dos lderes Makuxi, Taurepang e Wapixana sobre os atos abusivos sexuais juvenis e de mulheres indgenas por parte dos brancos, em alguns casos, envolvendo inspetores do SPI.
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Nessa instncia, o projeto Calha Norte teria como um de seus objetivos impedir a entrada no territrio nacional desses grupos estrangeiros que, valendose da questo indgena, estariam se apropriando do territrio amaznico:
Para o Conselheiro e Vice-Presidente do Tribunal de Contas/RR Amazonas Brasil, o projeto Calha Norte, implantado pelo governo brasileiro, a partir de 1986, seria a nica alternativa contra a internacionalizao da Amaznia. Ele cita trechos do documento Diretrizes Brasil N 4, elaborado em 1981 pelo Conselho Mundial de Igrejas Crist, em Genebra-Sua durante uma reunio do Conselho e liderado por vrias Organizaes NoGovernamentais. Item I nosso dever garantir a preservao do territrio da Amaznia e de seus habitantes aborgines, para o seu desfrute pelas grandes civilizaes europias, cujas reas naturais estejam reduzidas a um limite crtico. Esse documento definia estratgias para a ampliao de terras indgenas na Amaznia. Para Amazonas Brasil, Nessa perspectiva, uma vez feita a conquista geogrfica, os agentes inspiradores passaro a uma segunda fase, a de dominar, pela via econmica, os povos autctones. Amazonas Brasil garante que esta viso trgica vislumbra-se, exclusivamente, a partir do documento que ser votado na ONU garantindo aos ndios completo domnio das reas onde vivem, ou aonde venham a viver, conforme o interesse de seus tutores. O Calha Norte contrariava todas as intenes destes organismos internacionais para impedir a colonizao da Amaznia. De acordo com o documento Diretrizes Brasil N 4, o Conselho Mundial de Igrejas comenta que, esse imenso territrio e os seres humanos que o habitam so patrimnio da humanidade e no patrimnio dos pases cujos territrios, pretensamente, dizem lhes pertencer (FBV, 07/11/96, p. 3).
Para alm de confuso na data a referida reunio do Conselho Mundial de Igrejas Crists teria se dado em 1991 e no em 1981 chama ateno o fato do documento, Diretrizes Brasil n 4, s ter comeado a circular pela internet, livremente, em 2003 e, mesmo assim, fora do site do Conselho Mundial de Igrejas Crists, onde no est presente. O referido documento circula, sob a gide da Revista do Clube Militar (1991), no site www.geocities.com e sua reproduo importante para se entender a formao de opinio em termos de indignao nacional:
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DIRETRIZES BRASIL No 4 - ANO "0 PARA: ORGANIZAES SOCIAIS MISSIONRIAS NO BRASIL 1 - Como resultado dos congressos realizados neste e no ano passado, englobando 12 organismos cientficos dedicados aos estudos das populaes minoritrias do mundo, emitimos estas diretrizes, por delegao de poderes, com total unanimidade de votos menos um dos presentes ao "I Simpsio Mundial sobre Divergncias Intertnicas na Amrica do Sul". 2 - So lderes deste movimento: a) Le Comit International de la Defense de l'Amazonie; b) Inter-American Indian Institute; c) The International Ethnical Survival; d) The International Cultural Survival; e) The Workgroup for Indigenous Affairs; f) The Berna-Geneve Ethnical Institute e este Conselho Coordenador. 3 - Foram contemplados com diretrizes especificas os seguintes pases: Venezuela No 1; Colmbia No 2; Peru No 3; Brasil No 4, cabendo a Diretriz No 5 aos demais pases da Amrica do Sul. A AMAZNIA PATRIMNIO DA HUMANIDADE E NO DOS PASES QUE A OCUPAM DIRETRIZES: A - A Amaznia Total, cuja maior rea fica no Brasil, mas compreendendo tambm parte dos territrios venezuelano, colombiano e peruano, considerada por ns como um patrimnio da Humanidade. A posse dessa imensa rea pelos pases mencionados meramente circunstancial, no s por deciso de todos os organismos presentes ao Simpsio como tambm por deciso filosfica dos mais de mil membros que compem os diversos Conselhos de Defesa dos ndios e do Meio Ambiente. B - nosso dever: defender, prevenir, impedir, lutar, insistir, convencer, enfim esgotar todos os recursos que, devida ou indevidamente, possam redundar na defesa, na segurana, na preservao desse imenso territrio e dos seres humanos que o habitam e que so patrimnio da humanidade e no patrimnio dos pases cujos territrios, pretensamente, dizem lhes pertencer.
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NOSSO DEVER INDEPENDER, POR RESTRIO DE SOBERANIA, AS REAS OCUPADAS PELOS INDGENAS. NOSSO DEVER PROMOVER A REUNIO DAS NAES INDGENAS EM REUNIES DE NAOES.
C - nosso dever: impedir em qualquer caso de agresso contra toda a rea amaznica, quando essa se caracterizar pela construo de estradas, campos de pouso, principalmente quando destinados a atividades de garimpo, barragens de qualquer tipo ou tamanho, obras de fronteira, civis e militares, tais como quartis, estradas, limpeza de faixas, campos de pouso militares e outros que signifiquem a tentativa de modificaes ou do que a civilizao chama de progresso. D - nosso dever: manter a floresta amaznica e os seres que nela vivem, como os ndios, os animais silvestres e os elementos ecolgicos, no estado em que a natureza os deixou antes da chegada dos europeus. Para tanto, nosso dever evitar a formao de pastagens, fazendas, plantaes e culturas de qualquer tipo que possam ser consideradas como agresso ao meio. E - nosso principal dever: preservar a unidade das vrias naes indgenas que vivem no territrio amaznico, provavelmente h milnios. nosso dever: evitar o fracionamento do territrio dessas naes, principalmente por meio de obras de qualquer natureza, tais como estradas pblicas ou privadas, ou ainda alargamento, por limpeza ou desmatamento, de faixas de fronteira, construo de campos de pouso em seus territrios. nosso dever considerar como meio natural de locomoo em tais reas apenas os cursos d'gua em geral, desde que navegveis. nosso dever permitir apenas o trfego com animais de carga, por trilhas na floresta, de preferncia as formadas pelos silvcolas. F - nosso dever definir, marcar, medir, unir, expandir, consolidar, independer por restrio de soberania, as reas ocupadas pelos indgenas, considerando-as suas naes. nosso dever promover a reunio das naes indgenas em unies de naes, dando-lhes forma jurdica definida. A forma jurdica a ser dada a tais naes incluir a propriedade da terra, que dever compreender o solo, o subsolo e tudo que neles existir, tanto em forma de recursos naturais renovveis como no renovveis. nosso dever preservar e evitar, em carter de urgncia at que as novas naes estejam estruturadas, qualquer ao de minerao, garimpagem, construo de estradas, formao de vilas, fazendas, plantaes de qualquer natureza, enfim, qualquer ao dos governos das naes compreendidas no item 3 destas diretrizes. G - nosso dever: a pesquisa, a identificao e a formao de lderes que se unam nossa causa, que a sua causa. nosso dever principal transformar tais lderes em lderes nacionais dessas naes. nosso dever identificar personalidades poderosas, aptas a defender os seus direitos a qualquer preo e que possam ao mesmo tempo liderar os seus comandados sem restries. NOSSO DEVER GARANTIR A PRESERVAO DO TERRITRIO DA AMAZNIA PARA O SEU DESFRUTE PELAS GRANDES CIVILIZAES EUROPIAS.
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H - nosso dever: exercer forte presso junto s autoridades locais desse pas, para que no s respeite o nosso objetivo, mas o compreenda, apoiando-nos em todas as nossas diretrizes. nosso dever conseguir, o mais rpido possvel, emendas constitucionais no Brasil, Venezuela e Colmbia para que os objetivos destas diretrizes sejam garantidos por preceitos constitucionais. I - nosso dever: garantir a preservao do territrio da Amaznia e de seus habitantes aborgenes, para o seu desfrute pelas grandes civilizaes europias, cujas reas naturais estejam reduzidas a um limite crtico. Para que estas diretrizes sejam concretizadas e cumpridas, com base no acordo geral de julho passado, preciso ter sempre em mente o seguinte: a. Angariar o maior nmero possvel de simpatizantes entre pessoas poderosas, polticos, socilogos, antroplogos, jornalistas e seus veculos de imprensa. Cada simpatizante deve ser instrudo para que consiga mais dez colaboradores, e estes, por sua vez, aliciem mais dez e assim sucessivamente, at formarmos um verdadeiro exrcito de simpatizantes. b. Enfatizar o lado sensvel das comunicaes, permitindo que o lado bsico permanea embutido no bojo do objetivo, evitando discusses em torno do tema. No caso dos pases abrangidos por esta ao, preciso levar em considerao a pouca cultura de seus povos, a pouca perspiccia de seus polticos, vidos por votos que a Igreja prometer em abundncia. c. preciso infiltrar missionrios e contratados, inclusive no religiosos, em todas as naes indgenas, para aplicar o Plano Base destas Diretrizes, infiltrando-os tambm em todos os setores da atividade pblica, a fim de viabilizarem a boa execuo desse plano." (grifo nosso)
Fonte: http://www.geocities.com/toamazon/toafato3diretrizes.htm
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Basta controlar rapidamente os textos oficiais do Conselho Mundial de Igrejas Crists para perceber a extrema discrepncia de estilo com o documento acima. A provocao do brio nacional por demais primria (garantir a preservao do territrio da Amaznia para o seu desfrute pelas grandes civilizaes europias) e alheia s auto-definies da Europa, onde os pases, via de regra, no se proclamam grandes civilizaes europias. Os termos aliciar e infiltrar tambm no fazem parte da tnica dos documentos oficiais do Conselho Mundial de Igrejas Crists. Mais interessante ainda perceber que, a Igreja Catlica, grande defensora dos interesses dos ndios na Amaznia no faz e nunca fez parte do Conselho Mundial de Igrejas Crists! Todavia, serve aos propsitos dos inculcadores de medo, a caracterstica mundial do Conselho. Buscadas referncias junto s entidades que, em princpio, assinam o documento Diretrizes Brasil N 4, nada foi encontrado sobre ele, embora outras referncias ocorram sempre em termos de inimigos do Brasil em sites particulares237. O fenmeno da cobia internacional pela Amaznia, como algo ocorrente desde o sculo XVII, perfeitamente detectada como montagem ideolgica nas monografias dos cursos da ECEME-RJ - Escola do Estado Maior do Exrcito
(LEIRNER, 1995:130).
Lderes polticos e representantes do Estado baseiam-se nesses documentos para defender os interesses dos no-ndios e do Estado. No entanto, pressupem um confronto com a troca tutelar do ndio de patrimnio brasileiro para patrimnio da humanidade, sob a gide de grupos internacionais
237. Cf. sites: geocities.com/toamazon; Inter-American Indian Institute; International Ethnical Survival; International Cultural Survival; Workgroup for Indigenous Affairs. Agradecemos ao padre Jos Bizon, da Casa da Reconciliao, em So Paulo, pela referncia do documento Diretrizes Brasil (n.4 Ano 0), na Revista do Clube Militar (1991), no site www.geocities.com
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atrelados a grupos nacionais que esto se apropriando da biodiversidade gentica, de conhecimento das etnias indgenas e das terras amaznicas que deveriam ser desfrutadas pelo governo e pela sociedade nacional, nela includa os ndios:
O prefeito de Boa Vista, Ottomar Pinto (PTB), afirmou que a demarcao da rea indgena Raposa Serra do Sol obedece a pretenses de ONGs internacionais para congelar as reas mais ricas em minrios do mundo. uma orquestrao de entidades anti-nacionais para tomar a Amaznia e o Exrcito do Brasil no tem como confrontar as naes como Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha. Para o prefeito faltou iniciativa do Estado durante os ltimos anos para continuar a ter pulso firme diante do preconceito da FUNAI e de padres da Diocese de Roraima que armaram uma conspirao contra Roraima (FBV, 08/01/99, p. 3)238.
O medo da presena internacional na Amaznia abriu vrios fruns de discusses locais, organizados por instituies e rgos oficiais e nogovernamentais, sobre os riscos de internacionalizao de Roraima por meio das medidas do governo federal que criou novos parques nacionais interligados a reservas indgenas e parques ecolgicos (cf. acima, pp. 267-68), aumentando o conflito. Frente aos impasses dessa trajetria poltica e fundiria, e tendo em vista entender o novo papel do ndio na sociedade roraimense, o prefeito de Normandia, Vicente Adolfo Brasil239 (sem partido) manifestou opinio favorvel demarcao da reserva Raposa Serra do Sol e defendeu parceria com os ndios, como forma de garantir a permanncia do municpio que est dentro da reserva. Contudo, sem uma clara anlise poltica da situao e dos direitos indgenas240, ao ser pressionado pelas lideranas polticas e da elite local, o prefeito de Normandia
238. Esse assunto foi comentado no Captulo 4, item 4.1, p. 241, quando abordamos sobre os legisladores estaduais e suas propostas. 239. Conhecido como Gute Brasil o descendente dos pioneiros brancos, Vicente Adolfo foi reeleito prefeito no pleito eleitoral de 2000 com a sigla do PSDB. 240. O prefeito no deseja perder o municpio e no se inteirou da nova condio do ndio num contexto multicultural, privilegiado pelo reconhecimento de seus direitos originrios, enunciados nos artigos 231 e 232 da Constituio Federal de 1988 e reconhecidos pela Constituio de Roraima de 1991, no artigo 173 (cf. Cap. 3, pp. 223-224 e 235).
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mudou o seu discurso em relao a essa polmica situao roraimense, que no geral, v o ndio como propriedade:
Depois de admitir a demarcao na forma pretendida pela FUNAI, o prefeito de Normandia, Gute Brasil (Vicente Adolfo Brasil), recuou e quer aparar as arestas que, naturalmente, surgiram. Depois de afirmar que nunca se declarou favorvel rea contnua afirma: Considero irreversvel a demarcao porque acho tardia e frgil nossa mobilizao, perante as poderosas presses internacionais junto ao governo brasileiro. Acredito ser necessrio parceria e o apoio aos nossos ndios, para que se produza riqueza nas extensas reservas indgena (FBV, 16 e 17/01/99, p. 3).
vista dessa situao em conflito, surgiram programas de governo (federal/estadual/municipal) voltados para polticas pblicas com propostas ecodesenvolvimentistas241 local/regional e nacional, conectados com a globalizao. Houve, portanto, uma ampliao dos interesses e argumentos, contidos nos textos dos programas que fazem referncia defesa da Amaznia, como patrimnio nacional. Assim, nas ltimas dcadas do sculo XX, foram divulgadas discusses de especialistas da rea tecnocientfica alertando sobre a perda dos ecossistemas e da biodiversidade na Amaznia que acontecer a perda do bem-estar material no s dos amaznidas, mas dos habitantes de toda parte da terra:
(...) lembra-nos que um em cada quatro produtos vendidos nas farmcias, seja medicinal ou farmacutico, fabricado a partir de materiais extrados de plantas das florestas tropicais. Tais produtos incluem antibiticos, antivirais, analgsicos, tranqilizantes, diurticos, laxativos e muitos outros itens. As vendas comerciais desses diversos produtos no mundo inteiro atingem atualmente cerca de 20 bilhes de dlares por ano. Por isso mesmo, a nfase no valor medicinal da biodiversidade tornou-se uma constante nas advertncias dos experts mas h ainda outros benefcios que poderiam ser considerados: aqueles ligados agricultura e indstria (SANTOS, 1994:136-7). Observamos nesse texto de Laymert dos Santos, citado acima, a ntida
preocupao que deveria ter o governo brasileiro em regulamentar critrios para a questo da biodiversidade amaznica, vista como fonte natural de vantagens
241. Ecodesenvolvimento ou desenvolvimento sustentvel, conceitos que propem modelos alternativos de desenvolvimento, sublinhando a utilizao dos recursos naturais de cada ecossistema, com a participao da populao alvo/local, descentralizando tomadas de decises e defende tambm a solidariedade em relao s geraes futuras (cf. DIEGUES, 1992; PIETIL, 1990; PERROT, 1991).
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econmicas, rica em espcies biolgicas e em ecossistemas. Alm disso, no podemos nos esquecer do valor da memria cultural preservada pelos habitantes nativos, que deveria implementar as concepes de desenvolvimento sustentvel na rea agro-industrial amaznica. Em outras palavras, esse conhecimento indgena tem valor inclusive para o mundo do capital, uma vez que pode abreviar enormemente os tempos das pesquisas242. Todavia, o programa ecodesenvolvimentista no estabelece com clareza como e quais povos seriam beneficiados por tais polticas243. A regio de Roraima, que faz fronteira internacional com a Venezuela e a Guiana, apresentou problemtica ecolgica distinta entre florestas, serras e lavrados e uma multiplicidade social indgena e no-indgena. Questionamentos como esse ganharam fora poltica nos anos 90 e acentuaram ainda mais os confrontos sociais e multiculturais com a chamada revoluo do verde244. A partir da vrias lutas se intensificaram: a social, a ecolgica e a dos direitos dos povos tradicionais, entre eles os ndios. Essas lutas no ocorreram s em Roraima mas em outras regies do mundo e, a Amaznia, claramente, apresenta um grande atrativo para entes de toda espcie. Essas teorias ecolgicas, como pressupostos facilitadores do desenvolvimento, visando a explorao dos recursos naturais e o uso do trabalho humano, ganhou popularidade atravs dos documentos como a Estratgia Mundial para a Conservao245, o informe Nosso Futuro Comum246, da
242. Nesse sentido, trabalhos de Antropologia Cognitiva so conhecidos no meio acadmico j desde 1985: GARCIA, Wilson Galhego. Introduo ao universo botnico dos Kayov de Amamba (Tese de doutorado/USP, 1985). 243. A proposta de desenvolvimento sustentvel divulga o direito de utilizao sustentada das espcies e ecossistemas, na sua produo de alimentos e de certos produtos farmacolgicos. 244. Expresso que denominou uma das crises da relao histrica e social com o meio ambiente. Termo que denominou tambm as campanhas e discusses dos movimentos envolvendo atores sociais e sujeitos polticos implicados com o mercado e com as reivindicaes sociais e ecolgicas. Cf. WALDEMAR, 1998; VIOLA, E. et alii, 1998. 245. Cf. documentos elaborados por: UICN, PNUMA, WWF. World Conservation Strategy. Gland. 1980. Cuidar la Tierra. Estrategia para el futuro de la vida. Gland. 1991. Tais documentos de organismos internacionais registraram amplo questionamento sobre a explorao ambiental aproveitando a mo-de-obra local,
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Comisso Brundtland (ONU, 1987), Cuidar da Terra (UINC, WWF e PNUMA, 1991) e o informe da Comisso de Desenvolvimento e Meio Ambiente da Amrica Latina e Caribe (1991). interessante salientar como a idia de nossos indigenistas e defensores da causa indgena, fincada em mentalidade do aval internacional como testemunho de valor sua causa, traz ao debate pontos que, vistos como positivos, s o dificultam:
O coordenador do CIR (Conselho Indgena de Roraima), Jernimo Pereira da Silva, comentou que o Programa Piloto dos Sete Pases mais ricos do mundo ( PPG7) est financiando verbas para a demarcao das reservas indgenas. O PPTAL (Programa de Proteo s Florestas da Amaznia Legal) que financiado pelo PPG7, financia tanto o Governo Federal como o Governo Estadual no desenvolvimento de projetos econmicos e recursos para a demarcao. Explica que a Comisso do PPTAL que acompanha os trabalhos desenvolvidos pelo programa de demarcao formada por Representantes da FUNAI, CIR, FOIRN (Federao das Organizaes Indgenas do Rio Negro) e UNIACRE (Unio Indgena do Acre). H um empenho para que o presidente Fernando Henrique Cardoso homologue a reserva indgena Raposa Serra do Sol, mas h tambm o empenho na demarcao das reas menores, localizadas nas regies de Alto Alegre e Serra da Lua (FBV, 29/12/98, p. 4).
Assim, por mais interessante e srio que pudesse ser o referido PPTAL247, a simples meno a financiamento pelo G-7 acende e agita os temores da internacionalizao e perda da soberania. Tal questo assume propores que demandam meno presidencial:
Durante solenidade de assinatura da portaria de demarcao da reserva indgena Raposa Serra do Sol, no dia 12 de janeiro, o presidente Fernando Henrique Cardoso deixou bem
mas no deixaram claro o entendimento sobre o conceito sustentvel e sua relao com o conceito desenvolvimento. 246. Cf. WCED. OUR COMMON FUTURE. Oxford University Press, 1987. Esse documento tambm apresenta propostas auto-sustentveis, contudo, no deixou claro o processo de relaes que se estabelece entre o homem e o meio ambiente enunciado pelos conceitos sustentvel e desenvolvimento. Com base nesse documento vrios estudiosos empreenderam reflexes sobre tais propostas de preservao e explorao ambiental em prol do coletivo social, sem mostrar, tambm, uma clareza na sua aplicabilidade e quem seria o beneficiado com tais programas auto-sustentveis. (cf. PIETIL, 1990; PERROT, 1991; DIEGUES, 1992; BALE, 1993; DESCOLA, 1996). 247. PPTAL termo que passou a identificar o Programa Piloto para Proteo das Florestas Tropicais para toda a Amaznia Legal. A Comisso do PPTAL tem sede em Braslia e composta por representantes nacionais e internacionais ligados ao Grupo dos Sete Paises mais ricos (G-7) que lideram polticas pblicas sociais e ambientais no planeta: Estados Unidos, Canad, Alemanha, Frana, Itlia, Reino Unido e Japo. Tal assunto j foi mencionado na Introduo, Nota n. 5 e n. 6, p. 11.
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claro que as ONGs (Organizaes No Governamentais) so parceiros imprescindveis para continuar demarcando terras indgenas. Eu faltarei ao meu dever se no dissesse tambm que houve apoio internacional para essas demarcaes, discursou o presidente. E ns queremos que esse apoio se mantenha. A cooperao do PPG-7 (Programa Piloto do Grupo dos Sete Pases Mais Ricos) importante para que ns possamos fazer mais depressa a demarcao. Segundo FHC, havia no passado muita divergncia entre as entidades internacionais e o governo na questo da demarcao das reservas. Eu sei o que aconteceu, recentemente, l no Alto Rio Negro (AM), na demarcao de uma rea imensa, com o incentivo de organizaes no-governamentais, continuou o presidente. Acho que passou a poca em que Estado e no-governamentais guerreavam. preciso que os dois se unam para resolver os problemas das populaes que precisam de soluo, afirmou. Acho que ns temos as melhores condies para terminar essa obra de demarcao. A parceria do Brasil com o PPG-7 est tambm na demarcao de novas reas indgenas em Roraima. O governo brasileiro est disponibilizando verbas para o Programa de Proteo s Florestas Tropicais (PPTAL), para demarcar sete novas reservas indgenas que esto em processo de reconhecimento. Trs dessas reas indgenas j foram identificadas recentemente pela FUNAI (Fundao Nacional do ndio): Boqueiro, Jacamim e Muriru. As demais foram identificadas ao longo dos ltimos dez anos, mas esto em processo de reestudo para aumentar o tamanho fsico das reas: Barata/Livramento, Tbua Lascada, Moscou e Wai-Wai (FBV, 25/01/99, p. 4).
No entanto, nem mesmo as tentativas pacificadoras do presidente da Repblica ocorridas durante a referida solenidade serviram para acalmar os nimos. Assim, embora assinada a Portaria N 820 (11.12.98) de demarcao da Raposa Serra do Sol, pelo Ministro da Justia, ela foi contestada pelo Estado, ONGs indgenas pr-nacional, representantes da bancada federal, da estadual, da municipal, entidades do setor comercial e empresarial, OAB/RR e no foi at hoje homologada pelo governo federal e a questo continua a girar sobre os mesmos eixos at aqui apontados.
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constitui um poderoso mecanismo de integrao e elemento sine qua non para a cidadania plena. No caso indgena, este um novo ponto de conflito, j que as lideranas tradicionais lutam pela concretizao dos direitos constitucionais prpria lngua e ao ensino diferenciado248, enquanto que os integracionistas vem o domnio do portugus como parte fundamental do caminho em direo assimilao do ndio no projeto nacional. As ONGs indgenas CIR, APIR, OPIR, TWM e OMIR (cf. Quadro 09, p. 259), as
ONGS nacionais CCPY, URIHI, GTA, ISA (cf. Quadros 11 e 12, p. 260), as entidades
catlicas CIMI e Diocese de Roraima (cf. Quadro 14, p. 261), com o apoio da FUNAI, vem na educao formal indgena um pilar a mais para a discusso do ensino diferenciado que vem sendo ministrado nas escolas indgenas vinculadas Diviso de Ensino Indgena (DEI/SECD) do governo estadual. As ONGs indgenas SODIUR, ALIDICIR, ARICOM (cf. Quadro 10, p. 260), o governo estadual, executivos municipais de Roraima, e a totalidade da representao poltica (senadores, deputados federais e estaduais e vereadores), dos empresrios e dos fazendeiros so favorveis educao formal oficial, que integra o ndio ao projeto social nacional. Tal ensino ministrado nas escolas indgenas cujas comunidades esto em processo de emancipao, sendo de responsabilidade da Diviso de Ensino do Interior (rural) da SECD/RR249. Essa questo retrata o problema fundamental da opo pela tradio ou pela integrao ao nacional.
248. O percurso histrico da situao do ndio, a Constituio Federal de 1988, no Captulo III (Da Educao, da Cultura e do Desporto) do Ttulo VIII, em seu artigo 210 que fixa o contedo mnimo do ensino fundamental e nele insere dispositivos referentes aos ndios, estabeleceu no 2, desse artigo, a utilizao de suas lnguas maternas e processos prprios de aprendizagem (cf. Captulo 2, item 2.4; Captulo 3, item 3.3 e Cap. 4). 249. A poltica educacional indigenista dos ndios pr-tradio foi abordada no Captulo 4, pp. 234-35, quando os ndios ligados ao CIR e a OPIR apresentaram estratgias para as escolas indgenas da rede pblica de Roraima, sob a responsabilidade da D.E. Indgena/SECD, que no coincidem com as defendidas pela SODIUR e as outras ONGs indgenas pr-nacional, sob a responsabilidade da D. E. do Interior/SECD.
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Ora, como a questo indgena polarizada entre grupos de defensores e detratores, ambos igualmente apaixonados, perde-se o p de questes banais e vitalmente importantes, quais o censo da populao indgena nas cidades, suas situao scio-econmica, sua filiao tnica, etc., etc., etc. Como vimos no captulo 2, item 2.4 Reao e organizao indgena a manuteno da lngua indgena leva manuteno da prpria cultura e, como tal, vem sendo implementada, com o apoio do CIR, da Diocese de Roraima e da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Assim sendo, durante o perodo de 2000 at 2002, o CIR (Conselho Indgena de Roraima) e a OPIR (Organizao dos Professores Indgenas de Roraima), em parceria com a UFRR, organizaram discusses com apoio de ONGs indgenas, no-indgenas e da FUNAI na criao do referido curso Superior Indgena vinculado Pr-Reitoria de Graduao (cf. Captulo 2, item 2.4), com ensino exclusivo para os ndios. Tal curso teve seu primeiro vestibular diferente do nacional e iniciou sua primeira turma em maro de 2003:
No perodo de 6 a 14 de janeiro, a Universidade Federal de Roraima (UFRR) vai estar com inscries abertas ao processo seletivo para ingresso no curso de Licenciatura Intercultural, chamado de vestibular indgena. O curso especfico para professores ndios atuantes nas escolas indgenas da rede pblica de ensino. Ser a primeira turma, com oferecimento de 60 vagas. A taxa de inscrio (R$ 25,00) ser paga no Bradesco em nome da Organizao dos Professores Indgenas de Roraima (OPIR). Os documentos necessrios so: carteira de identidade, registro administrativo de ndio expedido pela FUNAI, cpia do diploma ou certificado de concluso do curso de ensino mdio e declarao original emitida pelo Departamento de Educao Indgena (DEI), especificando que docente em escola indgena da rede pblica. Tambm dever apresentar declarao original de apoio da
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comunidade indgena ao candidato, laudo mdico original (em caso de o candidato portar deficincia fsica e necessitar de algum atendimento especial). A seleo ser feita em trs fases, cada uma com valor de 10 pontos: prova de redao, entrevista e prova de ttulos. Redao e entrevista so eliminatrias e a de ttulo classificatria. A redao e entrevista podero ser feitas nas lnguas Makuxi, Wapixana, Taurepang, Yekuana, Ingarik e Wai Wai. O candidato deve indicar a preferncia na ficha de inscrio (FBV, 21 e 22/12/02, p.10).
As caractersticas do curso, como a do domnio da lngua indgena, o abre apenas a elementos indgenas ainda no dissociados de suas comunidades originais, uma vez formados, tais professores podero ensinar, indistintamente, tanto nas escolas pr-tradio, vinculadas Diviso de Ensino Indgena quanto nas integracionistas, vinculadas Diviso de Ensino do Interior. As diretrizes na conduo da Educao Indgena foram discutidas pelo Comit de Educao Escolar Indgena do MEC que fez, em 1998, a primeira verso dos Referenciais Curriculares Nacionais para as Escolas Indgenas (GRUPIONI,
1998). Existem impasses porque as escolas indgenas vm sendo absorvidas pelos
sistemas estaduais e municipais de educao e, nesse sentido, o Comit diz ser preciso: um estatuto prprio; responsabilidades divididas entre Unio, Estado e Municpio; parmetros250 para a formao de professores indgenas. Nesse processo de aprendizagem formal, seja ela com tcnicas indgenas ou brancas, o uso da escrita fundamental. Contudo, a prpria formalizao da educao indgena, pelo vis da escrita, envolve riscos notveis para sua cultura, uma vez que se choca com as formas de leitura indgena, baseada em grafismos e no em estruturas alfabticas. Ser possvel, portanto, capacitar o ndio para conviver com a sociedade branca mesmo que seja para rejeit-la sem alterar seus padres de percepo e de comunicao? Introduzidas tais alteraes, a nosso ver inevitveis, ainda possvel manter a indianidade? H como permitir a opo pela capacitao ou no? Pode-se educar sem que o educando perceba inteiramente o significado final do processo a que est sendo submetido?
250. Referncias curriculares tanto para a formao do professor como para a escola indgena que incorporem a problemtica intercultural, bilnge e diferenciada.
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possvel falar em indigenismo e em defesa da causa indgena sem discutir tais questes e para elas achar uma resposta, mesmo que provisria? Ora, como nem mesmo nos fruns mais abertos tais questes so tratadas, somos levados a pensar na necessidade premente de organizar a discusso em funo de questes bsicas de fundo e no naquelas contingentes de curto prazo.
Em apoio s ONGs indgenas e ao Estado contra a demarcao das terras em rea nica, essas trs grandes entidades do setor econmico estadual (FECOR,
FAER, ACIR) aderiram ao movimento pr-nacional que j vinha recebendo a
solidariedade dos representantes polticos, das lideranas da elite e da OAB local. Embora as matrias divulgadas na mdia local tambm apresentem a tica dos indgenas pr-tradio251,
As lideranas do Conselho indgena de Roraima (CIR) decidiram em Assemblia Geral a poltica que vo adotar at o incio do ano 2000 nas questes que envolvem desenvolvimento social, sade e educao. Um dos principais pontos relacionado demarcao de terras. Os indgenas vo aumentar a presso para o governo federal apressar
251. As estratgias polticas a serem adotadas pelos ndios pr-tradio, na presso ao governo para demarcar as terras indgenas, foram apresentadas no Captulo 4, pp. 234-35.
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a homologao da reserva Raposa Serra do Sol em rea nica e tambm pressionar a FUNAI (Fundao Nacional do ndio) a demarcar todas as terras indgenas de Roraima (FBV, 11/02/99, p. 3).
a imensa maioria das chamadas oferece argumentos ao habitante roraimense para juntar-se s manifestaes contra os direitos constitucionais dos ndios:
Para o grupo empresarial, a demarcao compromete mais de 70% da produo de gado de corte no Estado. (...) Os produtores de arroz devem perder para a reserva indgena 80% de suas terras que produzem hoje cerca de 50 mil toneladas por ano. Para o pecuarista, Jos Lopes, O ato pblico em defesa do desenvolvimento de Roraima, (...) Toda a produo na rea que vai do municpio de Normandia regio do Surumu, j foi comprometida (FBV, 07/01/99, p. 5).
O texto acima foi publicado na seo Cidade (jornal Folha de Boa Vista), com o ttulo Protesto Pecuaristas distribuem carne hoje, como um alerta aos habitantes desse Estado Federado sobre o perigo de Roraima se transformar numa grande maloca, comprometendo a civilizao e o desenvolvimento dessa regio da Amaznia Legal. Prejudicados em seus empreendimentos, os empresrios tentavam mobilizar a opinio pblica e o Estado contra a demarcao da reserva indgena Raposa Serra do Sol em rea nica. Em termos efetivos, isso se resume nos interesses da massa branca da populao, arrastada para Roraima ao longo de sculos de m-administrao territorial (cf. Captulos 1, 2, 3, e 4), sem uma orientao poltica equilibrada e de real considerao pelo ndio (seja isolado, seja integrado), chafurda em um pntano de individualismo e propostas imediatistas. Alm disso, preciso levar em considerao as vrias abordagens de campos cientficos em que a Histria, entre outras cincias, faz parte. Entretanto, no geral, as abordagens apresentam uma viso de explorao da Amaznia por meio de seus recursos econmicos e sustentveis sob uma trama de interdependncias cientficas, de homogeneidade geogrfica e ecolgica. Alguns
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textos, como Amazonia sin mitos (cap. V)252, mostram um discurso ambientalista que no explica esta vivncia amaznica por intermdio do desenvolvimento sustentvel que satisfaa as necessidades de ndios e no-ndios da regio. Nesse sentido, STAVENHAGEN (1984) tambm apresenta idias genricas sobre esse assunto e defronta-se com a questo tnica e etnicidade, da problemtica contempornea em relao ao desenvolvimento social e ambiental. Todavia, STAVENHAGEN (1991) amplia o entendimento de desenvolvimento evidenciando trs aspectos: poltica, etnicidade e etnocdio
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outras teorias com preocupaes desenvolvimentistas tendo como base o dinamismo evolucionista. Porm, essas pretenses conceituais no revelam com clareza o que STAVENHAGEN defende em relao ao desenvolvimento e as comunidades locais que sero beneficiadas com a explorao dos recursos ambientais. Assim, o desenvolvimento sustentvel para essa realidade amaznica apresenta uma tarefa que se supe por vrios caminhos: a delimitao e apreenso da etnicidade e etnocdio so elos importantes para o aprendizado sobre essa realidade multicultural amaznica, quando do planejamento de projetos de desenvolvimento. Nas trs ltimas dcadas do sculo XX, o governo de Roraima, em parceria com o Federal, visou o planejamento de infra-estrutura que possibilitasse tanto a construo como a melhoria (asfalto e pontes) das BRs 174, 401 e 210, no
O documento apresenta propostas da Comissin sobre Desarollo y Medio Ambiente de Amrica Latina y el Caribe (s/d). 253. De acordo com estudos antropolgicos, a etnicidade faz referncia condio ou conscincia de pertencer a um grupo tnico (mesma lngua, mesma organizao cultural, etc.). J o conceito de etnocdio referese a destruio da cultura de uma etnia por outro grupo tnico. Ou seja, pela imposio forada de um processo de aculturao a uma cultura por outra mais poderosa, fazendo-a desaparecer (cf. STAVENHAGEN, 1991; BARAZAL, 2001).
252.
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transporte da produo agrcola para o mercado amaznico (Manaus, fronteira com a Venezuela e com a Guiana). Nesse sentido, existem referncias ao compromisso do governo federal com o PPG-7 (Programa Piloto do Grupo dos Sete pases mais ricos, cf., acima, p. 288) no desenvolvimento de projetos econmicos sustentveis e na demarcao de terras indgenas. Tais propostas com metas de proteo ao habitante roraimense (ndios e no-ndios) propagam a descentralizao com a participao da sociedade local organizada. Existem tambm mega-projetos de desenvolvimento da Amaznia Legal do governo federal, com enormes interesses de participao de empresas privadas, e, entre esses o programa Avana Brasil (2000 com perspectivas at 2007) planeja investir US$ 40 bilhes (KOHLHEPP, 2002:48). O Estado de Roraima, que est ligado por rodovia Venezuela e Guiana, dever ser um entre os privilegiados no programa de agro-negcios: produo de gros (soja, milho, feijo, etc.). Todavia, verifica-se que em grande parte esses programas dificilmente so aplicados ou a populao local nem sempre chega a ter conhecimento dos resultados, visto que a indefinio fundiria uma questo de difcil resoluo. Dessa maneira, o ndio parceiro do CIR/APIR (Conselho Indgena de Roraima/Associao dos Povos Indgenas de Roraima) e da Diocese de Roraima (que reivindica direito originrio), em geral, entendido como um estorvo ao desenvolvimento e os projetos que o defendem como um retorno ao primitivismo. Cabe, assim, ao governo estadual torn-lo ser humano e garantir-lhe o acesso ao progresso/modernidade nacional, libertando-o da manipulao internacional. Contudo, a preocupao maior do executivo estadual consiste em disponibilizar as terras da Unio em Roraima e criar uma poltica unificadora para
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todos os ndios, como cidados brasileiros, assegurando o desenvolvimento econmico e a demarcao das terras ilhas que garantam a propriedade privada dos brancos ali estabelecidos. Tal inteno foi sutilmente expressa por representantes governamentais quando afirmaram que a soluo est na posse da terra pelo Estado de Roraima em nome da soberania nacional. H forte oposio, portanto, s lideranas e formas de representaes das etnias indgenas ligadas ao CIR/APIR que buscam manter ou reconstituir a prpria memria cultural, abandonando a nacional no caso dos grupos que j sofreram o processo de integrao. Nesse jogo de foras, os ndios ligados ao CIR/APIR acusam os fazendeiros e afirmam temer agresso:
O tuxaua Jaci Jos de Souza, da maloca Maturuca afirmou que os ndios no esto cometendo nenhum tipo de violncia nem ameaando os fazendeiros da rea Raposa Serra do Sol. Eles cometem violncia e colocam a culpa em ns, disse. No final da tarde de ontem ele retornou a Boa Vista e disse que as 60 reses (do fazendeiro de Uiramut) esto retidas em sua maloca por deciso das lideranas indgenas. Segundo ele, o gado fora apreendido para que os parentes do indgena baleado possam pagar seu tratamento. (...) As lideranas da regio tambm querem de volta o caminho apreendido ilegalmente pela Polcia Militar, quando a comisso de 40 tuxauas retornava da Assemblia Geral do Conselho Indgena de Roraima (CIR), e visitava a maloca Willimound, onde ocorreu o atentado (FBV, 12/02/99, p. 3).
Ainda sobre esse conflito na Raposa Serra do Sol/municpio de Uiramut, o vereador de Uiramut Francisco Rodrigues afirmou que so as lideranas indgenas do CIR que esto promovendo as invases:
O presidente da Cmara de Uiramut, vereador Francisco Rodrigues (PPB), disse que os ndios esto agindo de forma organizada para ocupar reas prximas das fazendas e roubarem o gado como ttica para expulsar os no ndios da regio. No devo nada ao CIR e nem ao Tuxaua de Maturuca, disse. A nica coisa que eu fiz de errado foi ajudar os moradores e os ndios do meu municpio, complementou. Rodrigues proprietrio da Fazenda Retiro, onde os ndios invadiram para pegar cerca de 70 reses. Para o vereador o CIR est promovendo esta invaso (...) O conflito entre ndios e fazendeiros no Municpio de Uiramut durou cinco dias. Os fazendeiros acusaram os ndios da Maloca Willimound, sete quilmetros da cidade de Uiramut, de roubarem cinco cabeas de gado do stio So Jos, (...) em busca de informaes, houve um desentendimento entre o fazendeiro e irmo do vereador de Uiramut que baleou um ndio. Em represlia, no mesmo dia, um grupo de ndios da Maloca Villemound foram at o stio So Jos e destruram a casa e
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saquearam os audes de criao de peixe, levando 11 mil alevinos e um cavalo ( FBV, id, ibid.).
No conjunto do contedo divulgado acima, percebemos que, no primeiro texto, as etnias indgenas integrantes do CIR (Conselho Indgena de Roraima) denunciaram que o confronto tivera incio pelos no-ndios. J o segundo texto, que tambm um texto denunciador, acusou os lderes do CIR como mentores do conflito contra os fazendeiros destruindo suas propriedades. Tal embate teve sua origem na suposta invaso dos ndios nas terras dos fazendeiros/vereador e no roubo de gado, resultando no confronto armado entre os representantes dos ndios e dos fazendeiros. Nesse embate, as lideranas e os representantes dos ndios pr-tradio, dos ndios pr-nacional e dos no-ndios devero colocar em prtica um modelo de desenvolvimento mais amplo que possa abranger princpios humansticos, possibilitando mudanas nesse conflito em curso (LOUREIRO, 2002:119) que seja compatvel com o novo momento poltico-cultural do Brasil democrtico, da tomada de conscincia e reivindicao de direitos. No entanto, na esfera governamental, j entrando em sua segunda legislatura, o Estado de Roraima, a partir de 1995, ainda no se demonstra capaz de equacionar as necessidades de sua populao nacional com aquela indgena. Em grande parte, o ndio pr-nacional depois de perder sua identidade indgena e relao tradicional com a terra, engaja-se no garimpo e concretiza a autodestruio (LOUREIRO, 2002:114). Nesse sentido, o desmatamento para explorao da pecuria extensiva, dos projetos com a explorao de madeira na regio amaznica que est atraindo empresas internacionais, como da Malsia, que tentam obter concesso para extrao de madeira em larga escala (KOHLHEPP, 2002:45), so modelos econmicos que abrem discusses sobre a preservao/explorao da
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biodiversidade amaznica. Do mesmo modo, a explorao do garimpo254 tambm atrai empresas mineradoras de grupos transnacionais que disputam concesses para explorao da terra ampliando o conflito local e a degradao scio-cultural e ambiental (SINGER, 1994:174). As confusas interpretaes e as discusses definindo idias e estratgias de propostas ecodesenvolvimentistas no deixam evidentes os entendimentos de sua aplicabilidade, das relaes scio-culturais e das formas de produo e os lucros que tornariam, por exemplo, o Estado de Roraima auto-sustentvel. O conceito mais conhecido que o da Comisso Brundtland255, quando se refere ao desenvolvimento sustentvel, aponta duas estratgias: a prioridade na satisfao das necessidades das camadas mais pobres da populao, e as limitaes que o estado atual da tecnologia e da organizao social impe sobre o meio ambiente
(DIEGUES, 1992:22/25).
As controvrsias tericas e as intenes para implantarem-se programas de preservao e explorao ambiental, envolvendo distintas relaes scioculturais e polticas econmicas, no apresentaram entendimentos na tarefa de compreenso e implementao do desenvolvimento local. Os lderes e representantes do Estado e da sociedade defrontam-se com essa nova ordem que prega concepes de uma poltica da diferena e da participao da sociedade nas polticas pblicas tanto para o territrio nacional como para o regional e local
(VERHELST, 1992; SMERALDI, 1994). E no nosso caso, tais programas devem
incorporar a satisfao das necessidades e dos direitos das populaes indgenas (pr-tradio e pr-nacional) e das no-indgenas, pois, em geral, so comumente pensados de maneira homogeneizante deixando de fora a discusso
Cf. Captulo 2, item 2.2; Captulo 3. p. 190. Os representantes das Comisses do Relatrio Brundtland (1987), presentes nas discusses internacionais, no resolveram essas questes tericas e prticas sobre a satisfao das necessidades bsicas e nem as diretrizes para que a populao possa participar de tais programas sociais e ambientais auto-sustentveis.
255.
254.
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multiculturalistica amaznica ou brasileira (RIBEIRO, 2000). Assim como a poltica no se realiza, o estudo cientfico tambm no. Aumentando as mudanas da cultura indgena, as reivindicaes de ndios (pr-tradio e pr-nacional) e no-ndios implicaram num processo de centralizao de poder tanto no executivo estadual como no federal e se perdem em projetos paralelos e duplicidade de propostas para uma mesma rea territorial, situao que persiste at hoje: a) programas de desenvolvimento social e econmico dos ndios pr-tradio com aval da FUNAI para rea dos ndios da Raposa Serra do Sol256, ao mesmo tempo, existem programas de desenvolvimento social e econmico dos ndios pr-nacional com aval do executivo roraimense para os muncipes de Uiramut e Normandia, alm da instalao da unidade militar que faz parte do Calha Norte e do Parque Nacional Monte Roraima, que so projetos do executivo federal;
b) programas de desenvolvimento social e do Parque Yanomami pela CCPY e na rea de sade pela URIHI com aval da FUNAI para os ndios pr-tradio da rea Yanomami, ao mesmo tempo, existem programas de desenvolvimento social e econmico do executivo estadual, em parceria com os executivos municipais, para os ndios pr-nacional e os muncipes envolvidos nessa rea indgena (Amajari, Alto Alegre, Mucaja, e Iracema), alm das propostas das mineradoras que tramitam no poder federal, do Calha Norte e do Parque Nacional do governo brasileiro;
c) programas de desenvolvimento social e econmico dos ndios pr-tradio com aval da FUNAI para a rea dos Wai Wai, que tambm recebem propostas desenvolvimentistas do executivo estadual, em parceria com os executivos municipais, para os ndios pr-nacional e muncipes do Caroebe e de So Joo da Baliza;
d) programas de desenvolvimento social e econmico dos ndios pr-tradio com aval da FUNAI para a rea dos Waimiri/Atroari, ao mesmo tempo, existem programas desenvolvimentistas do governo de Roraima, em parceria com o governo do municpio de Rorainpolis, para os ndios pr-nacional e os muncipes, alm desses territrios existem outras reas em conflitos.
256. A regio da Raposa Serra do Sol, entre serras e lavrados, habitada por etnias Makuxi e Ingarik, convivendo entre 90 malocas, tendo uma populao aproximada de dez mil ndios (FUNAI, 1993). Cf. Mapas 05 sobre a geopoltica de Roraima, em 1995 (p. 250, acima); Mapa 06 sobre as reas indgenas, em 1993 (p. 251).
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Na medida em que esses projetos so enunciados, como persiste sem soluo a sobreposio fsica de rea indgena a ser demarcada e municpios que a ocupam, sua implementao acaba abortada e os conflitos ganham maior peso:
Dizem que a demarcao da reserva Raposa Serra do Sol em rea nica vai acabar com 2.500 empregos. So seis usinas de beneficiamento de arroz que podero fechar, fazendo com que cerca de 60 milhes de dlares deixem de ser investidos anualmente em Roraima. Esses representantes iro mobilizar um protesto contra a demarcao com uma carreata e distribuio de arroz para o povo na praa do Centro Cvico. Durante o protesto ser lanado o Manifesto pela paz em Roraima, com a participao das entidades como: Associao Comercial e Industrial de Roraima, Ordem dos Advogados do Brasil, Federao do Comrcio do Estado e a Associao dos Arrozeiros (FBV, 30/12/98, p. 5).
Contudo, para impedir tais perdas, as expectativas de direito das populaes indgenas pr-tradio no seriam respeitadas como no o vem sendo desde 1988. O texto acima apresentou de forma convincente argumentaes contra a poltica indigenista da FUNAI e do CIR, apontando para as perdas da massa branca da populao. O executivo local manifestou o desejo de usar mecanismos polticos e jurdicos para reverter a lei:
O procurador-geral do Estado de Roraima, Luciano Queiroz, disse que o Estado no tem prazo para entrar com ao contra a homologao da reserva indgena Raposa/Serra do Sol em rea contnua. Argumenta que a Constituio Federal (88), no pargrafo 6 do artigo 231, que fala sobre os direitos dos ndios, no gera nulidade nem torna extinto nenhum direito s propriedades tituladas. H vrios ttulos definitivos de propriedades dentro da rea e qualquer ato administrativo, qualquer portaria, no tem poderes para anular esses ttulos (FBV, 29/12/98, p. 4).
Ora, as terras, de propriedade da Unio, que foram disponibilizadas aos ndios da Raposa/Serra do Sol pela Portaria n. 820 (11.12.1998), assinada pelo Ministrio da Justia, que demarcou a reserva em rea nica com a sada de todos os no-ndios da regio, no contempla, de fato, muitas posses legais de cidados brasileiros. A defesa da Procuradoria-Geral do Estado de Roraima, em nome da
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populao branca, leva confiana na impunibilidade do desrespeito s terras j demarcadas257. Para os representantes e lideranas do Estado e da sociedade nacional local o Ministrio da Justia deveria ter respeitado a existncia do municpio de Uiramut258 e dos empresrios e fazendeiros investidores na regio. A publicao da Portaria n. 820 favorecendo os direitos dos ndios ligados ao CIR fez aumentar os descontentamentos entre os representantes e lideranas das ONGs prnacional e segmentos da sociedade local. O Ministrio Pblico Federal recebeu denncia sobre a ocupao de centenas de garimpeiros na reserva indgena e que estariam ocorrendo conflitos armados:
Uma representao do NISI (Ncleo Interinstitucional de Sade Indgena)259 denunciou ao procurador da Repblica em Roraima, Felipe Bretanha, que centenas de garimpeiros invadiram a reserva Yanomami, e que esto fornecendo arma de fogo e munio para que os ndios apiem as atividades de extrao de ouro. O Secretrio Executivo do NISI, Clvis Ambrsio, disse que os profissionais de sade que trabalham na rea indgena Yanomami, j presenciaram mortes entre os ndios por desentendimentos sobre a questo do garimpo e os presentes (FBV, 20/11/00, p. 7).
Os diferentes lderes e representantes do Estado e da sociedade local (ndios e no-ndios) no se mostraram solidrios em eliminar legalmente esse cenrio de guerra na rea Yanomami. No jogo das foras de poder (federal e estadual) a dependncia de verbas da Unio colocou o Estado numa situao de submisso. No entanto, a duplicidade de propostas para uma mesma rea territorial de Roraima estimulou mecanismos de sustentao da poltica coronelista. Assim, o governo estadual foi atuando conforme o interesse do momento, postergando a resoluo do conflito.
A descrio dessas reas territoriais foram apresentadas nos itens 3.2.1 e 4.2.1, acima. Nesse municpio, est localizado o maior nmero de escolas indgenas financiadas pelo governo estadual, das 40 escolas existentes, 38 ministram ensino diferenciado em portugus/makuxi e portugus/ingarik para as crianas das referidas etnias indgenas (cf. Instituto FECOR/RR, abril/2000). 259. Cf. Quadro 15, p. 262, o NISI/FNS, com apoio do governo federal e da bancada federal de Roraima (Senado e Cmera), desenvolve projetos na rea de sade, enviando profissionais da sade para atuarem nas reservas indgenas.
258. 257.
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Esse novo Estado Federado, que no entende o ndio e nem as distores constitucionais, centralizou a governabilidade na formulao de uma poltica econmica, alegando que a aplicao do direito constitucional do ndio 260 impedir a vinda de empresrios que possam investir na regio. Contudo, sem aplicar uma ao com diretrizes eficientes para a auto-sustentao do Estado a questo da demarcao das terras continua:
O Secretrio de Planejamento do Estado de Roraima afirmou que h contatos com vrias empresas que querem instalar em Roraima negcios e produtos para entrarem no mercado internacional. (...) Para o Secretrio o empresrio s investe onde ele tem garantia e, neste caso, as terras de Roraima necessitam de definio (FBV, 12/01/99, p. 4).
Na medida em que esse jogo de interesses foi sendo expandido, o dilema do Estado e da sociedade roraimense, entre teoria e ao intergovernamental, ganhou novos mecanismos delimitados pelo gerenciamento entre as parcerias do governo do Brasil com o G-7 e o Banco Mundial, no apoio de polticas pblicas ambientais, em projetos que colidem com o temor da perda da soberania nacional (cf. acima, pp. 273/281). Mas, ao mesmo tempo, notamos tambm que existem outras intervenes resultantes da parceria envolvendo o governo do Brasil com os governos dos Estados e dos Municpios. Nesse caso, as intervenes261 aparecem nas propostas polticas de consolidao de suas plataformas eleitorais locais vinculadas ao apoio da bancada federal roraimense, buscando tanto o apoio como o financiamento de polticas pblicas, que possam favorecer a ampliao ou a instalao de novos municpios, legitimando a posse da terra entre a elite econmica da regio de apoio governamental.
260. Previstos nos arts. 231 e 232 da Constituio Federal/88 e reiterados no art. 173 da Constituio Estadual/91 (cf. Captulo 3, p. 205-206 e 216). 261. Dentro do jogo de foras polticas locais vinculadas ao nacional/internacional, o grupo de poder estatal busca apoio em aes que possam efetivar as antigas alianas polticas fortalecendo as suas prprias bases locais, na relao clientelista entre a elite local, os governos estadual e federal. Nesse jogo da poltica de mando no se leva em considerao a participao popular como prev a Constituio Federal, mas o interesse pessoal que elimina a possibilidade do exerccio democrtico.
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Tal aparato na manuteno de lealdades eleitorais e na articulao de propostas na esfera do governo local e nacional elimina o exerccio democrtico, no escapa a um olhar atento extremamente fcil aprovao de novos municpios em Roraima, parte do movimento causado pela Constituio Federal de 1988, que provocou seu aumento de 4.189 (em 1988) a 5.437 (1995) e 5.507 em 1977 (ABRUCIO, 1998: 32). Vemos, portanto, como o uso branco de certos direitos constitucionais se d de maneira acelerada, provocando no caso de Roraima, a institucionalizao de certos impasses que impedem o funcionamento de um Estado voltado para o interesse comum e pblico. A organizao econmica, poltica e scio-cultural do Estado se degrada, portanto, frente a algumas questes cuja resoluo no est sequer encaminhada: a) as resistncias contra o cumprimento da Constituio Federal de 1988 por parte de alguns representantes dos segmentos privilegiados tanto da sociedade como do setor governamental; b) o carter de controle do conjunto das operaes que envolvem a poltica local por parte do governo estadual/municipal, no uso da mquina pblica como instrumento de fazer poltica, de troca de favores; c) o uso de mecanismos dominadores ditos como politicamente corretos, no controle dos grupos indgenas, quando da impossibilidade de civilizar todos os ndios, tornando-os brasileiros natos, desejando o desaparecimento da figura do ndio tutelado para facilitar a posse da terra; d) os interesses pessoais dos representantes polticos do Estado e o conflito scio-poltico que acarreta o aumento dos bolses de misria urbana que agravam ainda mais as tenses e os conflitos sociais entre ndios e no-ndios, em grande parte imigrante/migrante, na periferia da capital; e) a garantia dos direitos da massa de populao branca legalmente estabelecida na regio.
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Numa sociedade local heterognea e de interesses contraditrios, aps o decorrer de dez anos de Estado Federado, os envolvidos nesse cenrio, Estado, ndios e no-ndios, devero considerar que a Constituio (Federal/Estadual) no ensina a governar, apenas assegura os princpios e preceitos que se pem para a realizao possvel do bom e democrtico governo (ROCHA, 2001:9).
A palavra Estado tem sido usada com to variados sentidos que sem um conceito esclarecedor no se fica sabendo em que sentido ela est sendo usada. (...) Na realidade, a noo de Estado, para ser completa, pode dar nfase maior ao fator jurdico, sem, no entanto, ignorar os fatores no-jurdicos. (...) parece-nos que se poder conceituar o Estado como a ordem jurdica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado territrio. Nesse conceito se acham presentes todos os elementos que compem o Estado, e s esses elementos. A noo de poder est implcita na de soberania, que, no entanto, referida como caracterstica da prpria ordem jurdica. A politicidade do Estado afirmada na referncia expressa ao bem comum, com a vinculao deste a um certo povo e, finalmente, a territorialidade, limitadora da ao jurdica e poltica do Estado, est presente na meno a determinado territrio (DALLARI,2002: 115/118).
O Estado e a sociedade roraimense (ndios e no-ndios) dotados de interesses diversos com relao posse e ao usufruto da terra deveriam nortearse por fundamentos comuns e normas existentes para que o Estado pudesse atuar em prol do bem comum a todos os habitantes de sua prpria jurisdio. Contudo,
(...) por expressar a vontade de uma sociedade muito heterognea e cheia de contradies, o texto da Constituio de 1988 revela a existncia de novos fatores de influncia social que j no podem ser ignorados, mas revela tambm a permanncia parcial de uma herana colonial negativa, preservando-se em pontos substanciais a dominao de elites conservadoras e reacionrias (DALLARI, 2001:50).
Ora, justamente tal herana colonial negativa e o domnio das elites conservadoras e reacionrias, acasteladas em princpios de individualismo, que impedem a ao fundamental: o estabelecimento do que seja, bem comum, que contemple brancos e ndios.
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CAPTULO 6
Consideraes Finais
As terras do atual Estado de Roraima entram para a histria do mundo ocidental no sculo XVIII, sob a gide da colonizao portuguesa que a via como regio estratgica para seu expansionismo na Amrica do Sul. Que em tal terra existissem criaturas humanas (Caribes, Makuxi, Wapixana, Macu, Paraviana, Guaripuna, Sapar, Jaricuna, Ingarik, Taurepang, Yanomami, Wai Wai, WaimiriAtroari, Maiongong, entre outras) nunca representaram nenhum obstculo s intenes de apropriao do Estado portugus bem como, com a independncia, s do Estado brasileiro. Aps 400 anos de ocupao branca e de ter passado por vrias estruturas de organizao e administrao poltica [como Forte So Joaquim do Rio Branco (1775/1788), ligado a Capitania de So Jos do Rio Negro; Freguesia de Nossa Senhora do Carmo, da Provncia do Amazonas (1858); Municpio de Boa Vista do Rio Branco, com a Constituio de 1891; Territrio Federal do Rio Branco (1943), Territrio Federal de Roraima (1962) e Estado em 1988], Roraima viu seus habitantes indgenas e no-indgenas - se mesclarem e, ao mesmo tempo, se estranharem e afrontarem, sempre em busca de ideais conflitantes com os interesses dos outros segmentos dessa sociedade pluri-composta. Hoje, finalmente, no incio do sculo XXI, podemos compreender o quadro dos resultados do choque de dois projetos, aquele branco, de integrao nacional, e aquele indgena, dividido inexoravelmente entre a manuteno de seu estatuto original e a integrao nacional. Explorado, escravizado, abandonado, tutelado, ao longo do processo, o ndio comea a fazer ouvir sua voz nos ltimos 30 anos. E o que ouvimos, e
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como a sociedade nacional roraimense acata o que ouve o que nos guia nas presentes concluses.
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No podemos mais ignorar que a introduo do ndio a este universo hostil fez surgir conflitos alheios sua histria. O processo de confronto sciocultural pelo qual essa sociedade amaznica construiu o Estado de Roraima, desde o Territrio Federal ao Estado Federado, mostra, ainda hoje, as cicatrizes desse processo. O falso discurso da integrao do ndio no projeto social nacional encobriu essa perda das razes culturais indgenas e as desestruturaes internas dos diversos grupos. A simples interferncia da ao educadora nacional na Amaznia, reclama levantamentos e detida reflexo. As relaes dominaosubordinao das naes tribais habitantes da terra invadida com o colonizador europeu reforam a submisso dos mais fracos e alteram a conscincia de um nmero considervel deles (BALANDIER, 1955). Em outras palavras, a relao dominao-subordinao tanto leva rebelio quanto cooptao do mais fraco, que aspira a igualar-se ao dominador para escapar da dominao. Mecanismo psico-social incidioso e silencioso (MOLES & ROHMER, 1978), ele mina inexoravelmente as estruturas sociais dos dominados, provocando ciznias irreparveis. Roraima um perfeito laboratrio para se observar tal fenmeno, com as faces indgenas pr-tradio e pr-nacional combatendo-se e, nesse processo, perdendo fora em relao s elites brancas, que continuam a ocupar implacavelmente os espaos tribais. Nessa marcha, o nacional trata os grupos indgenas de maneira uniforme, generalizando e homogeneizando situaes sob a eterna gide do ndio como obstruo ao progresso, manipulando os grupos pr-nacional (sobretudo em momentos eleitorais) e ignorando-os logo a seguir. Em decorrncia disso, a sociedade roraimense como um todo mantida refm do conflito:
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O presidente da ARICON (Associao Regional Indgena dos Rio Kin, Cotingo e Monte Roraima), Gilberto Makuxi, alertou que os conflitos na regio da Raposa Serra do Sol, vo recomear, bem como em outros pontos do Estado, com o que j est acontecendo na regio de So Marcos, municpio de Pacaraima porque, segundo ele, o Conselho Indgena de Roraima (CIR), e a Igreja Catlica, com apoio de ONGs internacionais, vo fazer presso e terrorismo, com o que vem ocorrendo em Pacaraima, antes que o novo Presidente da Repblica assuma, como forma de pressionar para homologar a rea Raposa Serra do Sol. Ele e os representantes da ALIDICIR (Aliana de Integrao para o Desenvolvimento das Comunidades Indgenas de Roraima) e da SODIUR (Sociedade de Defesa dos ndios Unidos de Roraima) faro mobilizao de alerta as autoridades em Boa Vista e em Braslia. Ameaam invadir a Catedral Cristo Redentor como forma de frear as ONGs e a Igreja Catlica que comearam a criar tumultos e mais uma vez semear a discrdia entre os nossos irmos. Gilberto Makuxi deixa claro que a invaso a Catedral, embora no revele dia nem hora que vai acontecer, no nenhuma ameaa, apenas fazendo valer o velho ditado que diz olho por olho, dente por dente (BN, 17/12/02, p. 9).
Todas as faces, assim, se mobilizam, em detrimento do bem comum, com a questo fundiria sempre em primeiro plano:
A Fundao Rainforest, dos Estados Unidos, encabeou uma campanha pedindo para que o presidente Fernando Henrique Cardoso homologue a reserva indgena Raposa Serra do Sol, demarcada em 1998, antes de deixar o governo. Um grupo de 76 ONGs (Organizaes No-Governamentais) da Europa, Indonsia, Malsia, Estados Unidos, Canad, Suriname e Brasil assinaram o documento entregue a FHC. A iniciativa partiu aps o Conselho Indgena de Roraima (CIR) receber, dia 12, o prmio Direitos Humanos 2002, e, no dia 10, o prmio Chico Mendes. Os prmios foram concedidos como forma de reconhecer as lutas e trabalhos junto aos povos indgenas de Roraima (FBV, 20/12/02, p. 6).
262. Flamarion Portela (PSL) foi eleito governador no pleito eleitoral de 2002, mas, como vice do governador Neudo Campos (durante a terceira legislatura do Estado, de 1999-2002) assumiu o governo de Roraima em 2002, com a sada de Neudo para as campanhas eleitorais pleiteando um cargo no Senado Federal.
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A participao estrangeira, usada como aval pela faco pr-tradio e como prova de perigo de internacionalizao pela faco pr-nacional, completa o quadro de rupturas. A produo acadmica local, que deveria servir para subsidiar decises da Unio, em geral no alcana tais reflexes histricas, sociolgicas e antropolgicas, associando-se ao panorama poltico e econmico, desenvolvendo perspectivas ora de orgulho exacerbado pela colaborao da cultura indgena na formao desse Estado ora expressando vergonha pelo atraso da cultura e pela pobreza instalada em Roraima, vistos (tanto pelos defensores quanto pelos detratores da causa dos ndios) como decorrncia da questo indgena no resolvida. A organizao de relaes antagnicas, alicerada nos papis desempenhados por indivduos diferentes, numa situao de contato, como o caso de ndios e no-ndios, estudada pela etnologia sob distintos pontos de vista. Roberto Cardoso de Oliveira (1996), por meio da investigao sistematizada sobre o ndio e o mundo do branco, destacou trs vertentes: a de mudanas sociais, de orientao britnica (que analisa as mudanas nas instituies e no entre os homens propriamente ditos), os estudos de aculturao, de orientao norte-americana (que analisa o contato intertnico e os fenmenos aculturativos decorrentes da situao de domnio de uma cultura sobre outra), e os estudos de situao, desenvolvidos pela escola francesa, que buscam avanar um pouco mais sobre essa sistematizao do contato intertnico em seu processo histricoestrutural, por meio de uma metodologia dialtica entre uma denominada cultura superior e uma cultura inferior (id.:38). No caso de Roraima, a utilizao da metodologia francesa propiciaria uma compreenso da estrutura social de brancos e ndios, colocando em evidncia o processo de povoamento europeu que pode explicar historicamente as
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transformaes scio-culturais decorrentes de tal situao intertnica. Essas trs metodologias de estudo revelam a complexidade da dimenso das relaes intertnicas e as possibilidades de se redimensionar o conhecimento e de se reconstruir um conjunto de idias favorveis aos programas interculturais e de solidariedade tanto para ndios (pr-tradio e pr-nacional) quanto para nondios, sem nos esquecermos dos habitantes frutos de 400 anos de miscigenao tnica. Nessa perspectiva, h estudiosos que, de longa data, como o prprio Roberto Cardoso de Oliveira (1978), no descartam a idia da integrao do ndio na sociedade nacional, desde que sejam consideradas as especificidades de cada grupo tnico. A historiografia, quase sempre maniquesta, que analisa as relaes intertnicas desse universo intercultural amaznico, no transmite a complexidade do conflito pois no leva em conta as diferentes posies entre os prprios indgenas. Mas, j h pesquisadores que buscam sistematizar estudos de etno-cincias e melhorar o conhecimento intertnico observados na Amaznia venezuelana, onde existem propostas para os indgenas com estratgias polticoculturais implementadas para valorizar e divulgar os parques nacionais e o ecoturismo coordenados pelas prprias famlias indgenas (ARVELO-JIMNEZ,
1991).
Ora, considerando-se que os Yanomami, por exemplo, ocupam parte do Brasil e Venezuela, linear concluir-se que qualquer tratamento de proteo de fronteira dado por estes dois pases regio, vai cindir o territrio desse grupo indgena. O lcito seria se pensar na importncia de programas bi-nacionais, o que pouco a pouco comea a ocorrer (cf. abaixo, pp. 324-325). Mas, enquanto isso, sem qualquer viso de conjunto, as autoridades constitudas carecem no s de dados mas da prpria percepo de que deveria
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busc-los, sobretudo aqueles referentes estatstica das opes indgenas pela tradio ou pelo nacional. Sem eles, os problemas subjacentes s opes continuaro sendo mal formulados, mal apresentados e no resolvidos.
livre das benesses do Estado, sem deixar evidente a inteno de reconhec-lo como proprietrio de suas prprias terras (BARAZAL, 2001:153), visto que o Estado nacional o proprietrio ltimo das terras em questo. De fato, o Estado nacional e suas polticas de perspectivas emancipatrias, aps a Constituio Federal de 1988, tomou medidas favorveis em relao ao ndio reconhecendo sua multiplicidade scio-cultural e direito na posse da terra, na condio inalienvel e indisponvel (art. 231, 4). Mas a Unio a legtima proprietria de mais de 70% das terras disputadas por ndios e no-ndios em Roraima (cf. Cap. 3, p. 189), sem nunca ter dado sinal de mediar efetivamente o conflito, com projetos que beneficiassem ndios e no-ndios de maneira equnime e contemporaneamente.
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Assim sendo, o processo de demarcao e/ou homologao das terras indgenas que tramitam no setor jurdico, encontram-se, ainda, num quadro semelhante ao de dez anos atrs:
Situao
Homologadas Identificadas Demarcadas Interditadas TOTAL
rea em km
67.079,70 22.475,00 4.000,00 6.000,00 99.544,70
Tais terras so de propriedade da Unio e o direito dos ndios o de posse e usufruto permanente, sem nenhuma perspectiva legal de tornarem-se seus legtimos proprietrios. Seguindo os meandros dos textos legais, veremos que o ndio, mesmo transformado em cidado brasileiro com CIC, RG e TE, jamais viver plenamente um dos pilares da sociedade que o integrou: aquele de propriedade privada. Assim, demonstrado que o ndio no usa a terra permanentemente (cf.
Cap. 3, item 3.3) estar aberto o caminho para a reintegrao de posse pelo Estado
proprietrio. Em outras palavras, o tutelado se emancipa mas o tutor no lhe entrega sua propriedade. Sob tal tica, toda e qualquer discusso sobre os direitos indgenas ilusria. Mesmo rgos como a ONU (Organizao das Naes
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Conselho Indgena Estadunidense, que um rgo subsidirio da ONU, aps srios debates, elaborou-se dois documentos oficiais, sob chancela da ONU: a Declarao de Organizaes, Povos e Naes Indgenas e a Declarao dos Direitos dos Povos Indgenas. Denunciando desrespeito e contradies s prprias leis de pases que ainda alojam First Peoples e First Nations264, foram solicitadas medidas concretas dos governos de tais pases em doze pontos: 1 O reconhecimento dos direitos indgenas a seus territrios ancestrais, incluindo sua recuperao e sua demarcao. 2 O reconhecimento, o respeito e a elaborao documental, de acordo com o direito internacional, de todos os tratados, convnios, acordos e outros pactos estabelecidos com os povos indgenas, como prioridade por parte das Naes Unidas e seus estados membros. 3 O reconhecimento e o respeito s formas de governo indgenas que se orientam pelos costumes e leis tradicionais. 4 O fomento e fortalecimento dos direitos de propriedade cultural e intelectual indgena, de acordo com o direito internacional e seus princpios. 5 A consulta s organizaes e naes indgenas para a ratificao da Conveno 169 da organizao Internacional do Trabalho. 6 A disposio em garantir assistncia legal e formao tcnica s organizaes e naes indgenas. 7 O fomento reforma de leis e polticas para que se reconheam os direitos soberanos dos povos indgenas, tanto no plano nacional quanto internacional. 8 O fomento e consolidao da educao, da cultura, da arte, da religio, da filosofia, da literatura e da cincia das naes indgenas. 9 A devoluo dos lugares histricos, os locais e objetos sagrados que pertencem s naes indgenas. 10 A demonstrao sincera de compromisso para com os povos indgenas, facilitando-lhes os recursos econmicos adequados para a tomada de medidas que sejam consideradas procedentes. 11 Que o secretrio geral das Naes Unidas e seus rgos, comisses e programas especializados, consultem os povos indgenas do mundo em nvel mais regionalizado possvel. 12 Que o secretrio geral das Naes Unidas crie imediatamente um programa indgena especfico que seja administrado e aplicado com a participao direta das naes indgenas.
264.
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Para alm da postura indubitavelmente correta de tais exigncias, perdeuse uma oportunidade privilegiada de se avanar o conceito de propriedade coletiva da terra como um dos direitos mencionado no item 1, algo que nem os especialistas que comentaram os documentos se deram conta (BARAZAL,
2001:149).
Queremos crer que se trata de um dos problemas basilares da questo indgena no Brasil a longo termo e que deveria ser estudada de maneira mais profunda, inclusive comparando-a com a recente legislao sobre os remanescentes dos Quilombos. A Constituio Federal de 1988 faz duas referncias aos Quilombos:
a) primeira, inserida na Seo II dedicada cultura, do Captulo III Da Educao, Da Cultura e Do Desporto, em seu Art. 216, dispe: Constituem patrimnio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referncia identidade, ao, memria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I as formas de expresso; II os modos de criar, fazer e viver; III as criaes cientficas, artsticas e tecnolgicas; IV as obras, objetos, documentos, edificaes e demais espaos destinados s manifestaes artstico-culturais; V os conjuntos urbanos e stios de valor histrico, paisagstico, artstico, arqueolgico, paleontolgico, ecolgico e cientfico. 5 Ficam tombados todos os documentos e os stios detentores de reminiscncias histricas dos antigos quilombos. b) a segunda est enunciada no Art. 68 do ADCT (Ato das Disposies Constitucionais Transitrias), da Constituio Federal de 1988, que dispe: aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhe os ttulos respectivos.
O texto do artigo 216 no faz referncia aos negros fugidos da escravatura, mas diz respeito aos negros seus descendentes e aos lugares ocupados por sucessores dos grupos de remanescentes quilombolas, enquanto que o artigo 68 do ADCT enuncia o reconhecimento das terras que os descendentes negros ainda ocupam, podendo ser demarcadas em reas certas ou determinadas, ou em rea comum, sem divises internas, de acordo com a situao encontrada nos locais
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selecionados, que depois de ouvidos os interessados, a Unio expedir os ttulos para permitir o respectivo registro imobilirio (CENEVIVA, 1996). Existe uma discusso sobre o tratamento constitucional dado ao negro e ao ndio, com alguns juristas, entre eles Walter Ceneviva (1996), ressaltando que a Constituio de 1934, no seu artigo 129 dera ao ndio dignidade constitucional ao reconhecer posse de suas terras, algo que os negros s teriam reconhecida com a Constituio Federal de 1988. Mesmo no caso dos remanescentes dos Quilombos, a situao contraditria pois o Projeto de Lei (1995) que visa regulamentar o Art. 68 do
ADCT, embora falando em propriedade coletiva: condomnio (item IV),
determina sua inalienabilidade sob qualquer pretexto (Cap. II, art, 12) o que uma leitura jurdica apressada pode concluir pela semelhana com a situao das terras indgenas, pelo igual significado prtico de posse definitiva e de propriedade inalienvel. de se convir, contudo, que a legislao v os remanescentes dos quilombos como patrimnio cultural da sociedade brasileira, tendo a Constituio Federal, inclusive tombado edificaes e stios (cf. acima, art. 202). So as aldeias indgenas patrimnio cultural da sociedade brasileira?
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barata na construo civil, nos servios de transportes de cargas e nos afazeres domsticos urbanos, da capital Boa Vista (cf. Cap. 2, Cap. 3 e Cap. 4). Como o prprio Estatuto do ndio (1973) aponta esse caminho via emancipao, classificando o ndio em integrado, em vias de integrao e o isolado (cf.
Cap. 3, pp. 186-187), trata-se, em primeiro lugar, de distinguir e definir bem a opo
final, discutindo a presente integrao que, simplesmente, incorpora o ndio s camadas mais carentes da populao brasileira, despossudo de suas terras, sua cultura e seus laos de famlia tribal. Os ndios brasileiros empreenderam a caminhada rumo retomada de sua conscincia identitria e os quatro segmentos envolvidos (isolados e inconscientes de tal luta; pr-tradio; pr-nacional e urbanitas alienados) merecem igual respeito do Estado, da Unio, da Igreja e da Sociedade civil. Contudo, o Estado de Roraima, j em sua quarta legislatura, no leva a cabo o cumprimento dos direitos indgenas enunciados nas Constituies (Federal e Estadual), privilegiando entendimentos para a demarcao das terras em ilhas, dentro de um ilusrio cenrio democrtico, organizando alianas com os ndios pr-nacional e a bancada Federal e Estadual contra o ndio que no deseja integrar-se no processo de emancipao. Nesse sentido, as manifestaes dos ndios pr-tradio (ligados ao CIR Conselho Indgena de Roraima) so claras (cf.
Cap. 4, p. 235).
A publicao da Portaria n. 820/98, do Ministrio da Justia, favorecendo os direitos dos ndios pr-tradio (ligados ao CIR) fez aumentar os descontentamentos entre os representantes e as lideranas das ONGs prnacional e os segmentos da sociedade local. Assim sendo, o executivo estadual manifestou o desejo de usar mecanismos polticos e jurdicos para reverter tal portaria (cf. Cap. 5, p. 301), presso ainda presente hoje:
A no homologao da reserva Raposa Serra do Sol em rea contnua no final do mandado do presidente FHC e um acordo para titularizao de terras em Roraima foram os dois
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temas principais das reunies esta semana entre o governador Flamarion Portela (PSL)265 com o ministro da Reforma Agrria e equipe de transio do governo federal. (...) Todos os seguimentos interessados no assunto, na opinio de Flamarion, devem sentar na mesma mesa e buscar um entendimento, evitando prejuzos para um lado ou para o outro. A deciso precisa ser tomada com maturidade. Sabemos que a presso de Organizaes NoGovernamentais e da Igreja muito grande, mas acreditamos que conseguiremos deixar a definio sobre a reserva Raposa Serra do Sol para o ano que vem, enfatizou o governador. Flamarion Portela props ao ministro Jos Abro uma soluo amigvel para que as terras da Unio em Roraima sejam transferidas para o Estado ou tituladas pelo Instituto Nacional de Reforma Agrria (INCRA) (BN, 21/12/02, p. 4).
A luta pela criao do Parque Nacional do Xingu, anteprojeto de Darcy Ribeiro de 1952, partia das premissas da imutabilidade cultural e de sua preservao no tempo, premissas essas vistas hoje como falsas j que sua defesa leva reproduo estereotipada de cultura. Tendo perdido, ou estando em vias de perder a conformao cultural que possua pr-contato com o branco, o indgena v-se agora defendido e protegido em direo a uma vivncia cultural que uma construo simblica do branco: as reservas demarcadas, zoolgico de ndio, no dizer contrariado do zologo Paulo E. Vanzolini, que acompanha a glamourizao e estilizao das culturas indgenas xinguanas desde os anos 40266. Seja de uma maneira que de outra, parece ocorrer sempre o
265. Aps a posse do presidente Luiz Incio Lula da Silva (PT), Flamarion trocou sua sigla partidria e adotou a sigla do partido do presidente. 266. Cf. Informao pessoal orientadora.
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De fato, no necessariamente o trinmio: alcoolismo, prostituio e drogas que provocam a desagregao das comunidades indgenas. No caso dos Yanomami de Roraima, teve sua parte a Lei do Menor Esforo, ou Law of the Least Effort, com a qual o antroplogo Leslie White guindou a Antropologia, em 1949, ao estatuto de cincia: os Yanomami se desestruturaram, tambm, graas fcil obteno de farinha, feijo, carne seca e roupas oferecidos pelos garimpeiros. Com a expulso dos garimpeiros, pela FUNAI e Polcia Federal, o caminho para a fome e a inanio foi rpido e os agentes da FUNAI e missionrios empenharam-se em re-ensinar malocas inteiras a voltar a reproduzir o prprio sustento. Como bem se discute, hoje, na A.B.A., aquele conceito de cultura que serviu de base s lutas contra missionrios, contra os contatos com a sociedade nacional, no recebe mais a concordncia e apoio da Antropologia pois prescindia da histria e histria mudana. Os ndios no so passivos mas co-agentes de sua histria e sua interao com a sociedade nacional deixou de ser vista, a partir dos anos 90, como um mecanismo de extino a ser evitado a ferro e fogo. Passa-se da defesa do isolacionismo dos anos 1910-1970 valorizao dos processos de transformao, pelo fortalecimento e preparo de um dos agentes histricos: o ndio (FAUSTO,
1998).
A questo tambm reside no distanciamento que os antroplogos deram ao debate indigenista. No Seminrio Idigenismo: Fim de Sculo267, o lder indgena Marcos Terena (funcionrio da FUNAI) abriu os trabalhos saudando a retomada do dilogo entre antroplogos e lideranas indgenas adormecido
267. Universidade de Braslia, 22 de maio de 1998, entre antroplogos, lideranas indgenas, institutos de apoio causa indgena, juristas.
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desde o surgimento do movimento indgena e necessitando ser retomado. Temos conversa atrasada, lembrou ele (BARRETO FILHO, 1998:16). Um dos atrasos , justamente, discutir as relaes e o papel da academia, das ONGs, das lideranas indgenas, dos missionrios, da Igreja e do Estado. A mesma Igreja que foi to combatida por seu proselitismo religioso, hoje a principal defensora da causa indgena que v a preservao do territrio em rea contnua como parte consistente da soluo da questo indgena no Brasil. Ora, a tradio e o isolamento de fronteiras so vistos, hoje, pela Antropologia como irreais e estereotipificadores. A Igreja continua, assim, na contramo da cincia e da histria? Ocorre que nmero consistente de missionrios de h muito deixou de lado o proselitismo religioso para defender o ndio da asma, da diarria, do raquitismo ... Os ndios so puros como crianas e crianas tem seu lugar assegurado no cu, mesmo que no sejam versadas em religio, declarou o missionrio Carlo Zacchini, missionrio da Ordem italiana da Consolata, revista
VEJA em 1990268.
Assim, o foco se desloca, hoje, da preservao da cultura preservao pura e simples do ndio e de seu patrimnio gentico e conhecimento tradicional do ambiente: Ao direito terra sobre a qual os ndios no tem juridicamente propriedade, devemos somar agora a preocupao com o direito propriedade intelectual (FAUSTO, 1998:22). A academia est, finalmente, acordando, como diria Marcos Terena?
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maiores historiadores do sculo XX, era gegrafo) tem estudado mudanas sociais em termos e em funo do espao. Essa nova categoria de mercadoria do mundo capitalista, o espao, continua ditando normas de ao, hoje, tanto quanto na pr-histria. O que no se pode continuar admitindo que o comportamento do homem do sculo XXI difira to pouco daquele pr-histrico... Exatamente da base do mundo capitalista os EUA nos chegam exemplos de como o espao e sua concepo indgena, devem ser estudados
(PINXTEIN et alii, 1983), justamente por ser parte integrante de nossa percepo e
cognio do ambiente (ITTELSON, 1973). Como bem estabelece a nova geografia, uma teoria do espao uma teoria da sociedade (LEFBVRE, 1974). O espao o mundo material socialmente produzido e portanto, como a sociedade, a produo do espao dinmica e permanente (ANDRADE, 1984). Ora, tal dinamismo provoca conflitos, cabendo ao Estado e sociedade civil geri-los, com projetos e ao participativa contnua. O processo de produo do espao , assim, um permanente movimento histrico dos grupos sociais dominantes entre si (por hegemonia no poder) e contra as classes subalternas (POULANTZOS, 1980:141-177). Isso gera a criao de espaos diferenciados j que diferentes setores da sociedade se apiam no Estado em defesa de seus interesses imediatos. Assim, o Estado de Roraima, veculo que a sociedade usa para atingir seus fins, como bem aponta Andrade (1984:20), no tendo projeto prprio, tem ficado merc das presses dos mais fortes:
O deputado estadual Mecias de Jesus (PSL) disse que a relao entre ndios e brancos desigual, com ampla vantagem para o ndio. Existem milhares de ONGs, os paises ricos (G7), parte significativa do Governo Federal e da Igreja e Seitas, que exploram a problemtica indgena e a simpatia do Judicirio e dos Ministrios Pblicos Federal e Estadual. Estes rgos no sabem diferenciar quando esto defendendo os direitos dos ndios e massacrando outros direitos, contrariando at a Constituio/88. (...) As lideranas indgenas se multiplicaram e mais de 50% da rea geogrfica de Roraima foi transformada em terra indgena. O deputado desconfia da conduta de governadores do Estado que no tomaram nenhuma providncia contra o avano das reservas indgenas. O
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brasileiro que defende o seu pas hoje marcado por uma espcie de crime, quando no processado por algum dessas instituies (ONGs, Igreja Catlica, IBAMA) beneficiadas pelas bandeiras ecolgicas. (...) Segundo Mecias fcil enxergar o silncio obsequioso de rgos como o Ministrio da Defesa, Ministrio das Relaes Exteriores que sempre preteriram os interesses nacionais em nome de queixas externas e da prpria sociedade que em sua maioria desconhece os reais interesses que movem essas discusses (FBV, 04/01/00, p. 7).
Nessa luta por aquilo que Moles & Rohmer (1978:103) chamaram de cristalizao geopoltica do espao, possvel criar-los no mbito da racionalidade ou num espao racional, partindo dos conceitos de Weber e Godelier, como sugerido por Santos (1978). Deste espao racional deve fazer parte a noo de co-presena, conceito sociolgico de (GIDDENS, 1987) que, associado noo da realidade geogrfica de vizinhana nos leva ao conceito de territrio compartilhado que as interdependncias sociais, inevitveis, usam como base de operao da comunidade (PARSONS, 1952), Apud SANTOS, 1996:255-56), que se constitui em uma mediao inevitvel para o exerccio dos papis especficos de cada um (WERLEN, 1993, Apud SANTOS, id., ibid.). Em outras palavras, s a adequada percepo das limitaes (MOLES &
ROHMER, 1978:33) que nos d liberdade espacial e autonomia social sem ferir
interesses divergentes. Segundo Gubta (2000:33) se partirmos da premissa de que os espaos (como construes sociais diversas) sempre estiveram interligados hierarquicamente, em vez de naturalmente desconectados, ento a mudana cultural e social no se torna mais uma questo de contato e de articulao cultural, mas de repensar a diferena por meio da conexo. Esses conceitos so abundantes no setor acadmico h mais de 30 anos
(DIAS & GALLAIS, 1968) e auxiliam a Antropologia a rever suas formulaes de
cultura (cf. acima, item 6.3.1), embora suas pistas estejam longe de atingir a conscincia dos defensores da causa indgena e mesmo das autoridades constitudas.
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Na busca de reformulaes tericas para o entendimento dessa situao, da relao entre sociedades e a convivncia num mesmo territrio, nos deparamos com estudos semelhantes ao de LEFORT (1991:27) quando faz referncia ao conjunto de princpios geradores das relaes que os homens mantm entre si e com o mundo. Concordando com esse autor, necessrio se faz, em comeo de milnio, repensarmos as tradicionais posturas polticas influenciadas pelas teorias hegelianas e marxistas da histria e ficarmos atentos s novas propostas que os homens mantm entre si em carter local, nacional e internacional. Ou seja, verificar as novas relaes intertnicas entre um material emprico diverso e o referencial terico que permita compreender os determinantes internacionais e nacionais nas propostas para essa regio amaznica. Refletindo sobre o papel da Amaznia nessa virada do milnio, Hlio Moura (1996), organizando pesquisas sociais na Amaznia, sugeriu como soluo ao conflito social uma profunda mudana de atitude com respeito poltica de desenvolvimento (MOURA, 1996:202). Que o interesse comum comea a tomar corpo entre os defensores da postura pr-tradio algo bastante visvel nos ltimos anos, em agosto de 1997, o Conselho Indgena de Roraima (CIR) organizou um Seminrio Internacional dos Povos Indgenas, realizado em Boa Vista, com o propsito de buscar alternativas para os impasses entre ndios (pr-tradio e pr-nacional) e nondios. Estiveram presentes nesse evento representantes polticos tanto de Roraima como de outras regies da Amaznia envolvidos na temtica indgena e recursos naturais (explorao do ecoturismo, minerao, madeira, medicina), alm dos lderes e representantes das etnias indgenas, da Diocese de Roraima, de
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Embora os representantes e lderes indgenas pr-nacional no se tenham feito presentes naquela ocasio, hoje, foram aumentando as posies tendentes ao bem comum:
O deputado federal, Airton Cascavel (PPB), props ao Governo de Roraima e bancada federal que se unam e defendam junto ao Ministrio de Justia e Presidncia da Repblica uma reavaliao da questo indgena e o processo de demarcao da Raposa Serra do Sol. Para o deputado todos os polticos de Roraima devem deixar de fora as divergncias, picuinhas polticas e cor partidria e lutarem juntos em defesa dos interesses de Roraima. Para Cascavel o Governador Neudo Campos (PPB) deve assumir o comando desse processo, tanto para a melhoria da qualidade de vida dos ndios quanto para o desenvolvimento do Estado. Para Cascavel a explorao das reas de reserva pelo setor do Ecoturismo e parcerias nas reas agrcolas podem muito bem render bons resultados s comunidades indgenas e ao Estado (FVB, 13/11/99, p. 03). 344
O prefeito de Pacaraima, Hiprion Oliveira (PDT), disse ser a favor da demarcao da rea urbana do municpio de Pacaraima, pois a cidade tende a crescer na esfera diagonal em direo fronteira com a cidade de Santa Elena de Uairn, na Venezuela, e no descendo a serra. Essa questo da demarcao dos limites do municpio tem gerado conflitos constantes entre os moradores da cidade e os povos indgenas da regio de So Marcos, que no aceitam a presena de no-ndios naquela rea. Ele reconhece que o municpio de Pacaraima no possui instrumentos legais para planejar de forma ordenada o crescimento da sua sede. Disse ser necessria a preservao do meio ambiente, respeitando a rea indgena. O povo indgena tem razo em demarcar com uma cerca a rea urbana, pois a forma como o crescimento [da cidade] vem ocorrendo no est correto, disse (FBV, 17/12/02). O juiz federal, Helder Giro, entende que o direito de demarcar reservas indgenas no absoluto e deva ser aplicado o princpio da proporcionalidade. Demarcao no s uma questo dos ndios, tambm do Pas, do meio ambiente, econmico, do Estado e do Municpio. A declarao foi dada pelo juiz federal, para quem o dilogo entre todos os segmentos fundamental para a soluo do problema. A Constituio Federal de 1988 disse o magistrado uma Carta de compromissos pontuais, entre os quais a demarcao das terras indgenas artigo 231 que deve ser cumprido, pelo menos at que se mude a Constituio. (...) Segundo Helder Giro, o que h que se encontrar o equilbrio. Sempre tenho dito que preciso superar o radicalismo, afastar os preconceitos, e, sobretudo, o alarmismo, o imaginrio de que a demarcao de terra indgena um passo para a internacionalizao da Amaznia. S perdemos este territrio se quisermos, ou, se formos fracos o suficiente para perder (FBV, 24/12/02, p. 03, grifo nosso).
Trata-se, portanto, de conseguir dirigir as foras da sociedade para longe do confronto que tende a perseverar pela inrcia das autoridades e pela ausncia de um efetivo projeto poltico que distanciasse as partes do centenrio confronto. Distanciar-se do confronto no significa ignor-lo ou evit-lo mas anul-lo em sua razo de ser, encontrando fronteiras muito vizinhas umas das outras sem justap-las totalmente (MOLES & ROHMER, 1978). No dizer de Ana Valria Arajo, especialista em direito indgena, Diretora e Membro do Conselho de Diretores da Rain Forest Foundation, o ideal que, ao invs de integr-los ns consegussemos interagir com eles269. Estamos nos aproximando do momento de decises que o pas e nossos primeiros habitantes merecem que sejam firmes e ponderadas:
269.
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O ministro da Justia, Mrcio Thomaz Bastos, afirmou nesta tera-feira em Braslia que a demarcao da Terra Indgena Raposa Serra do Sol passvel de reviso. H uma demarcao e falta homologao. A demarcao administrativa, mas, por natureza, pode ser revisada, disse na Comisso da Amaznia, na Cmara. Da audincia participou o governador de Roraima, Flamarion Portela, que se filiou recentemente ao PT. Ele defende a reviso da demarcao por considerar muito extensa a rea reservada aos ndios. Thomaz Bastos antecipou que vai a Roraima em junho para ver de perto a situao. Vou com papel em branco, minha idia no ter opinio. Vou fazer um levantamento, levando em conta que existe a demarcao. A demarcao de 1,6 milho de hectares ocorreu no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (O Estado de So Paulo, 20/05/03).
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FONTES E BIBLIOGRAFIA
FONTES
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