Dissertação Poliana Reis

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 164

UNIVERSIDADE FERDERAL DA BAHIA - UFBA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS - FFCH


PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
ESTUDOS ÉTNICOS E AFRICANOS

POLIANA NASCIMENTO DOS REIS

QUILOMBO E TERRITORIALIDADES:
a construção do território étnico São Joaquim de Paulo, no município de
Vitória da Conquista - BA

SALVADOR-Ba
2015
POLIANA NASCIMENTO DOS REIS

QUILOMBO E TERRITORIALIDADES:
a construção do território étnico São Joaquim de Paulo, no município de
Vitória da Conquista - BA

Dissertação apresentada ao Pós-Afro da


Universidade Federal da Bahia, para a etapa
de qualificação, como parte dos requisitos para
obtenção do grau de Mestre em Estudos
Étnicos e Africanos.

Orientador: Prof. Dr. Jocélio Teles dos Santos

SALVADOR-Ba
2015
Biblioteca CEAO – UFBA

R375 Reis, Poliana Nascimento dos.

Quilombo e territorialidades: a construção do território étnico São Joaquim

de Paulo, no município de Vitória da Conquista - BA / por Poliana Nascimento dos Reis.


2015.

164 f. : il.

Orientador: Prof. Dr. Jocélio Teles dos Santos.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e

Ciências Humanas, 2015.

1. Quilombolas – Vitória da Conquista (BA). 2. Identidade social – São Joaquim de

Paulo (Vitória da Conquista, BA). 3. Territorialidade humana. I. Santos, Jocélio Teles

dos, 1958- II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências

Humanas. III. Título.

CDD – 305.8098142
POLIANA NASCIMENTO DOS REIS

QUILOMBO E TERRITORIALIDADES:
a construção do território étnico São Joaquim de Paulo, no município de
Vitória da Conquista - BA

Dissertação apresentada ao Pós-Afro da Universidade Federal da Bahia, para a


etapa de qualificação, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre
em Estudos Étnicos e Africanos.

Aprovada em 07 de outubro de 2015.

Banca examinadora

Jocélio Teles dos Santos – Orientador _________________________________


Doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP).
Universidade Federal da Bahia

Cíntia Beatriz Muller________________________________________________


Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS)
Universidade Federal da Bahia

Guiomar Germani__________________________________________________
Doutora pela Universitat de Barcelona, Barcelona (Espanha).
Universidade Federal da Bahia
AGRADECIMENTOS

E agora? Como expressar toda a gratidão que sinto por essas pessoas que
de alguma forma me fazem realizar o impossível? Amigas e amigos que nunca
saíram do meu lado. E como não poderia ser diferente, suportaram todas as
lamentações e desesperos que surgem nos dois anos de elaboração de uma
dissertação.
Ao lembrar-me de todas as pessoas que auxiliaram na produção desse
trabalho, não há como não agradecer em primeiro lugar a Júlia Garcia, minha amiga,
parceira de idas a campo, companheira de luta, exemplo que sigo. Ju, sinceramente
eu não sei como te agradecer. Obrigada por dar mais sentido aos meus dias e por
nunca ter me abandonado. Somos para sempre! A você só posso ofertar amor!
Agradeço ao Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos
Étnicos e Africanos, seus coordenadores e professores. Em especial, meu
orientador professor Jocélio Teles dos Santos, pela compreensão aos meus
posicionamentos políticos e ideológicos, por ouvir minha opinião, pela leitura
cuidadosa, orientação e paciência que teve durante o período do mestrado.
Às professoras Cíntia Beatriz Muller e Maria do Rosário pelas importantes
contribuições ao desenvolvimento dessa pesquisa a partir do exame de qualificação,
ambas fizeram críticas bastante construtivas e deram sugestões para as etapas
posteriores ao exame. À Guiomar Germane, pelas aulas e pela atenção.
Aos meus colegas do pós- Afro, principalmente à Glécia Carneiro e a Itamar
Rangel Vieira Júnior, deles tive apoio durante as aulas e amizade para vida inteira.
Às Flores, “benditas flores, sem vocês não sou ninguém”. Obrigada a Daiane
Santos, Rowenna Brito, Raquel Nogueira, Lícia Gabriela, Júlia Garcia, Sarah Martins
e Eliza Maia. Amo vocês.
Às amigas e amigos de Ribeira do Pombal: Thaisa Mirella, Nayara Costa,
Mércia Samyra, Carla Jamille, Flávia Cézar, José Márcio e Cleidson Oliveira. Vocês
são para a eternidade.
A Consulta Popular, as Negras Zeferinas e ao Levante Popular da Juventude
por revolucionarem minha vida. Ter vocês ao meu lado, me dá forças e alegria para
prosseguir na luta.
À Tatai, Taíse Macêdo, que desde os três anos de idade, acompanha e
protege tudo o que faço. Assim como a toda a sua família. Nossa família! Obrigada
pelo carinho, te amo.
À Anamaria Garcia, agradeço a amizade e o acolhimento de sempre. À Àdria,
por me fazer feliz. Ao seu lado não existe tristeza. Às amigas, Nathalee Cordeiro e
Juliana Maciel, que acompanharam meu desespero, durante as noites de estudos,
em nossa residência. Obrigada pelas madrugadas acordadas.
À Eveline Vieira, por ter me apresentado ao Pós-Afro, lido e auxiliado a
produção do meu projeto. Obrigada pela amizade. Á Tereza Cristina, por toda
dedicação, carinho e cuidado que sempre teve comigo. À Mariana Balen Fernandes,
pela amizade e pela experiência de ir a campo.
A Marco Aurélio Costa Oliveira, companheiro de luta e da vida. Obrigada
pelas dicas de leitura, ida a campo e por trazer poesia aos meus dias. Te amo!
Por falar em poesia, chegou o momento de agradecer a outra metade de
mim, porque assim são as irmãs, uma é parte da outra. À Renata Poeta, os meus
sinceros agradecimentos. Estarei sempre ao seu lado. A toda minha família, meu
avô que sempre teve orgulho das minhas conquistas, minhas tias e tios, em especial
a: Arivaldo Almeida por ser meu segundo pai, Valdelice Almeida (titia), tia Marlene,
Lidiana, tia Marilda, tio Zé, tia Rita, Raimundo Santos e tio Edvan. A todos os primos
e primas e a Matheus Vinícius e Antônia Gabrielle, que são meus filhos
emprestados. A minha bela, Carolina Bela e In memorian de tia Lita.
E por fim, quero agradecer as duas pessoas a quem devo a vida, as
conquistas, as coisas boas que trago em meu ser. À minha mãe, exemplo de mulher
forte e lutadora, que trabalhou a vida inteira (seja em casa ou na rua) para não
deixar faltar nada para as filhas. Por ela ver em suas “meninas” a riqueza que
possui. Obrigada por toda roupa lavada, pela comida gostosa, pela casa limpa e por
todo trabalho doméstico que sempre fez com tanta dedicação e sem pedir nada em
troca. E ao grande amor da minha vida, meu querido pai, Carivaldo Santos dos Reis,
que sempre dedicou o fruto do seu trabalho à felicidade da família. Obrigada pelos
repentes, pelas histórias, principalmente aquela em que gostaria de ter estudado
mais. Por vocês dois, me tornei professora.
Como visto, nunca estive sozinha. A todas e todos, os meus sinceros
agradecimentos!
RESUMO

Esta pesquisa teve como objetivo analisar os seguintes elementos: o processo de


autoidentificação quilombola, a construção do território étnico da comunidade negra
rural São Joaquim de Paulo e refletir sobre o significado político que permeia a
assunção dessa identidade coletiva. Foram levantadas questões como: a partir de
quais hipóteses a identidade social é redefinida enquanto quilombola e quais são os
marcadores identitários utilizados para a autoidentificação. Para tanto, buscamos,
através do método etnográfico, entender o processo de agenciamento de
identidades, os mediadores externos e os mecanismos acionados para a
reprodução/ manutenção desse grupo étnico, assim como o empoderamento político
dos seus membros a partir do resgate da memória coletiva e dos processos de
territorialidade e etnicidade.

Palavras-chave: comunidade negra rural, território étnico, monocultura, divisão


sexual do trabalho.
ABSTRACT

The present research aims to analyze the following elements: quilombola self-
identification process, the construction of the ethnic territory in the afro community in
São Joaquim de Paulo and a reflection about the political signification which
embraces that assumed collective identity. To do so the following questions were
arose: from which hypotheses the social identity is rebuild as quilombola and what
are the identity markers used in the self-identification. In doing so, we have seek
through the ethnographic method an understanding about the identities mediation
process, the external facilitators and the arrangement used in the reproduction/
maintenance of that ethnic group as such as the political empowerment of its
members considering the refreshment of the collective memory and ethnicity
territoriality process.

key words: afro agrarian community; ethnic territory; monoculture; sexual division of
labor.
LISTA DE SIGLAS

ABA - Associação Brasileira de Antropologia

ACC - Atividade Curricular em Comunidade

ADCT - Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

CAR - Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional

CDA - Coordenação de Desenvolvimento Agrário

CEAO - Centro de Estudos Afro-Orientais

CF - Constituição Federal

CPT - Comissão Pastoral da Terra

EC – Emenda Constitucional

FCP - Fundação Cultural Palmares

FMI - Fundo Monetário Internacional

GeografAR - Geografia dos Assentamentos na Área Rural

IBC - Instituto Brasileiro do Café

IGEO - Instituto de Geociências

INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

MDA - Ministério do Desenvolvimento Agrário

MPA - Movimento dos Pequenos Agricultores

MPF - Ministério Público Federal

MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

MTD – Movimento dos Trabalhadores Desempregados

RTIDs - Relatórios Técnicos de Identificação e Demarcação de Territórios

SEI - Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia

UFBA - Universidade Federal da Bahia

UNEB - Universidade Estadual da Bahia


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

1 TERRITORIALIDADE E IDENTIDADE DA COMUNIDADE NEGRA RURAL SÃO


JOAQUIM DE PAULO ............................................................................................... 18

1.1 QUE LUGAR É ESTE? SÃO JOAQUIM DE PAULO!..................................................19


1.2 QUANDO A LUTA COMEÇA ..............................................................................................28
1.3 O INÍCIO DAS ATIVIDADES DE CAMPO: CADÊ O DESERTO VERDE? ...............36
1.4 RETORNO CULTURAL: MINHA IDENTIDADE QUILOMBOLA.................................42
1.5 A MATRIARCA ERCÍLIA, O ESCRAVIZADO BIBIU E O LAVRADOR LAUDIONOR ...47
1.6 A DELIMITAÇÃO “SÃO JOAQUIM 1” E “SÃO JOAQUIM 2”: “COMO ASSIM? ISSO É
NOVO. NÃO EXISTE DOIS, É TUDO ‘SÓ’ UM SÓ...” ............................................................54
1.7 NA TENTATIVA DE RETORNAR AO PASSADO, AS LEMBRANÇAS DAS FESTAS
ANTIGAS SÃO FORTES ...........................................................................................................55
1.8 TERRITORIALIZAÇÃO: UM PROCESSO DE REORGANIZAÇÃO SOCIAL EM SÃO
JOAQUIM DE PAULO ...............................................................................................................59

2 MONOCULTURAS (CAFÉ E EUCALIPTO): EFEITOS SOCIAIS EM


COMUNIDADES QUILOMBOLAS. EM MEIO AO CONFLITO, COMO FICAM OS
MARCOS TERRORIAIS? .......................................................................................... 64

2.1 MONOCULTURA: “PRODUÇÃO QUE NÃO É FEITA PARA SATISFAZER QUEM


PRODUZ” ....................................................................................................................................65
2.2 COMO ERAM TOCADAS AS ROÇAS ANTES DA CONSOLIDAÇÃO DAS
MONOCULTURAS DO CAFÉ E DO EUCALIPTO: OS “ADJUNTOS” E “ROUBOS”! .........67
2.3 AS DUAS MONOCULTURAS INFLUENCIAM E AMEAÇAM OS MARCOS
TERRITORIAIS ..........................................................................................................................77

3 RELAÇÕES DE PRODUÇÃO E INTERAÇÕES SIMBÓLICAS COM O


TERRITÓRIO DE SÃO JOAQUIM DE PAULO: “AQUI, TODO TRABALHO É DA
TERRA.” .................................................................................................................... 87

3.1 DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO EM SÃO JOAQUIM DE PAULO ............................88


3.2 COM O QUÊ ELAS E ELES TRABALHAM? .....................................................................93
3.3 ATIVIDADES PRODUTIVAS EM SÃO JOAQUIM DE PAULO........................................97
4 AS IMAGENS QUE DÃO ROSTO À RESISTÊNCIA DE SÃO JOAQUIM DE
PAULO .................................................................................................................... 101

4.1 OUTRAS QUESTÕES SOBRE SÃO JOAQUIM DE PAULO ........................................102


4.2 ALGUNS MARCOS TERRITORIAIS E ESPAÇOS DE PRODUÇÃO ...........................137

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 157


11

INTRODUÇÃO

No Brasil, a concentração de terras gera inúmeros conflitos fundiários entre os


diferentes segmentos. Já no início da colonização, as terras foram repartidas com o
intuito de atender aos interesses da metrópole (Portugal). Desde então, a reforma
agrária, tão fundamental para a libertação do povo brasileiro, continua a ser um
projeto inconcluso e inconciliável com os interesses da classe dominante. De acordo
com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), cerca de 200 mil camponeses
continuam sem ter áreas de cultivo. A Comissão realizou um balanço dos fatos
ocorridos entre os anos de 2011 e 2014 e, segundo o documento resultante, a
disputa pela terra se intensifica ao vincular-se com a expansão da pecuária e das
monoculturas1.
Segundo dados do Fórum de Entidades e Movimentos Sociais do Sudoeste
da Bahia2, utilizando os dados do IGBE (2010), no estado baiano, 43% dos imóveis
têm até cinco hectares (ha) e são considerados insuficientes para garantir condições
dignas de trabalho e sobrevivência aos camponeses. Outro dado relevante
levantado pelo Fórum é o de que menos de 2% dos imóveis com mais de 500 ha
ocupam mais da metade das terras da unidade federativa.
A implicação social resultante do modelo nacional de acesso à terra, baseado
na propriedade privada, desde meados do Século XIX 3, e na permanência de
características essenciais para a dinâmica capitalista, é a reprodução de sujeitos
desterritorializados. Ou porque não têm acesso à terra, ou pelo fato de não
conseguirem produzir o necessário para a subsistência familiar, por falta de recursos
e/ ou assistência técnica necessária. Esse cenário é o resultado da perda ou
ausência de autonomia por parte do camponês, tanto sobre a terra quanto sobre a
força de trabalho.
As comunidades tidas enquanto tradicionais são ainda mais usurpadas nesse
processo, pois os seus modos de vida peculiar e laços de identidade que mantêm

1
http://www.mst.org.br/2015/03/03/relatorio-mostra-aumento-na-concentracao-de-terras-do-brasil.html
2
Cartilha Monocultivo de Eucalipto. É uma publicação do Fórum de Entidades e Movimentos Sociais
do Sudoeste da Bahia. O Fórum é uma articulação que conta com diversos membros e apoiadores,
dentre eles: MPA, CPT, MTD.
3
Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850.
12

com o território são, quase sempre, desconsiderados. Nesse contexto, outra


ressalva é que, para as mulheres, a divisão sexual do trabalho torna-se um
agravante nas relações de produção e em todas as dimensões das relações sociais.
O trabalho aqui apresentado diz respeito à investigação sobre a construção
do território étnico São Joaquim de Paulo, no município de Vitória da Conquista –
(BA). As informações provêm da reflexão feita sobre o projeto inicial, revisto durante
as aulas de metodologia e de dados etnográficos coletados por meio de incursões a
campo, além de levantamento bibliográfico e de informações ligadas ao contexto
histórico, relacionando esses dados às experiências do grupo.
A escolha teórico-metodológica teve como intuito compreender a comunidade
São Joaquim de Paulo na construção do território étnico. O percurso escolhido se
baseou no uso de múltiplas categorias, possibilitando o entendimento da
complexidade das representações espaciais e dos indivíduos que compõem esse
espaço. Por isso, também fez-se necessário destacar conceitos-chave, tais como:
território, territorialidade, paisagem, memória social, quilombo, agenciamento de
identidade, patriarcado, divisão sexual do trabalho, grupos étnicos e suas fronteiras.
Assim, o território é definido por elementos materiais e simbólicos e pela
relação de poder resultante das ações dos envolvidos em um dado espaço. Já a
noção de territorialidade está relacionada às lógicas conflitantes exercidas e
materializadas no território. A paisagem pode ser compreendida como herança da
acumulação dos tempos das transformações societárias e naturais, por meio de
suas cristalizações no espaço. Busquei recuperar elementos da memória social e
utilizá-los apoiados em dados históricos e geográficos, pois existe uma ligação
intensa entre a memória e o uso do espaço.
O termo quilombola é entendido a partir do seu sentido contemporâneo e
relacionado à questão étnica e a fatores territoriais. Sendo que a noção de definição
de fronteiras internas e externas também está atrelada a esse conceito. O
agenciamento de identidade consiste na autoconstituição de grupos sociais através
da influência de mediadores externos e internos. A agência é, aqui, interpretada a
partir da visão de Ortner (2006), na difícil tentativa de manter a distinção necessária
entre as “práticas de rotina”, por um lado, e, por outro, a “agência”, tida como ação
mais intencionalizada. Esse conceito é utilizado para o entendimento do processo
pelo qual passa o grupo estudado.
13

Por fim, patriarcado é visto como um sistema masculino de opressão às


mulheres e que determina a posição feminina na divisão sexual do trabalho e nas
relações sociais como um todo. Essa forma de divisão designa a atuação dos
homens, prioritariamente, na esfera produtiva, e das mulheres, tanto na esfera
produtiva quanto na reprodutiva. Em especial, as negras, pois se analisarmos a
conformação econômica e social brasileira, veremos a atuação dessas mulheres em
ambos os espaços, durante todo o processo. Mesmo invisibilizadas pela história,
vemos a sua presença nos tabuleiros, nas vendas e em diversas negociações.
Utilizei como importantes instrumentos de análise as entrevistas
semiestruturadas, a observação participante, diário de campo e fotografias. Essas
últimas foram empregadas não apenas como um mero objeto ilustrativo, mas com o
intuito de dialogar e fornecer novas informações ao presente texto. Ao longo do texto
denomino os participantes dessa pesquisa ora de quilombolas, ora de camponeses
ou comunidade negra rural, pois a identidade quilombola está em processo de
construção e os moradores do lugar se identificam pelo trabalho com a terra,
parentesco e ancestralidade negra.
A motivação para esta pesquisa veio do conhecimento prévio sobre a
existência de alguns conflitos na comunidade. Ouvi falar em São Joaquim de Paulo,
pela primeira vez, no ano de 2010, quando, após a visita de representantes da
Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA), foram-me confidenciados os
conflitos fundiários vivenciados pelos membros no território. Fiquei interessada na
história relatada, pois já havia conhecido uma comunidade denominada Barro
Vermelho, localizada no município de Santo Amaro, no recôncavo baiano, que se
encontrava em processo de agenciamento da identidade quilombola e fez surgir o
interesse pelo tema.
No ano de 2008, cursei, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), a
“Atividade Curricular em Comunidade (ACC): Estudo Ambiental do Médio Subaé”.
Fazíamos oficinas, entrevistas, palestras, em Barro Vermelho, sobre a questão
quilombola. A relação com a temática da luta pela terra por parte de um grupo étnico
ficou mais próxima quando me tornei monitora dessa disciplina, no ano de 2009. A
monitoria teve duração de um semestre.
Já era licenciada em Geografia quando escrevi um projeto para o Pós-Afro.
Na formulação da escrita, houve a tentativa de integrar os conhecimentos
geográficos à perspectiva étnica. A escolha não poderia ter sido outra, senão a
14

temática sobre a espacialização de uma monocultura, como a do eucalipto, em


territórios reivindicados como remanescentes de quilombo, ocasionando o processo
de desterritorialização dos vários sujeitos. Esse foi o primeiro conflito de que tive
conhecimento no local, que veio a ser a minha área de estudo, entre o grupo étnico
e os responsáveis pela expansão das plantações de eucalipto.
Tentei o processo seletivo do Pós-Afro no ano de 2012, quando tive o referido
projeto aprovado, porém não obtive êxito nas demais fases da seleção. Ingressei
como estudante regular em 2013 e, nesse meio tempo, havia sido convidada pela
antropóloga Mariana Balen Fernandes, a participar como assistente de Geografia na
produção de Relatórios Técnicos de Identificação e Demarcação de Territórios
(RTIDs) de quatro comunidades quilombolas4. Esse trabalho foi de grande
importância para aprofundar a minha experiência empírica e teórica.
Durante as aulas do mestrado, na disciplina Seminário de Metodologia e
Prática de Pesquisa, lecionada pelo professor Jocélio Teles, houve a reformulação
do projeto inicial, devido a importantes contribuições metodológicas e teóricas
construídas durante os encontros semanais. No referido projeto, ainda não havia
sido escolhida uma comunidade específica para ser o locus do estudo. Cursar a
disciplina em questão foi essencial para a definição do objeto de pesquisa, que, de
início, era a comunidade Laranjeiras. Entretanto, as lembranças sobre o conflito
existente em São Joaquim de Paulo, relatadas no passado, afloraram e foram
decisivas para a escolha do recorte espacial do presente estudo.
Além da disciplina supracitada, cursei outras que constituíram importantes
contribuições para a continuidade da pesquisa, tal como “Teorias da Etnicidade”,
que me proporcionou o contato com literaturas sobre grupos étnicos e raça,
conceitos fundamentais para o entendimento da temática aqui trabalhada. Assim
como “África: Tribo, Etnia e Nação - Conceitos e História”, cujas discussões sobre
agenciamento de identidades também foram de suma importância. Já “Organização
do Espaço Agrário”, componente curricular ofertado pelo Instituto de Geociências
(IGEO), foi de grande valia para aperfeiçoar os conhecimentos sobre conflitos
fundiários e suas diversas facetas: estrutura agrária, atuação dos movimentos
sociais no campo, além de ter estudado conceitos e categorias como classe,

4
Três comunidades localizadas no recôncavo baiano (São Brás, Kaonge e Santiago do Iguape) e
uma no município de Entre Rios (Fazenda Porteiras).
15

trabalho. Como mestranda, ainda participei do Programa Fábrica de Ideias e da


Linha de Pesquisa Étnica. Nessa última atividade, os projetos foram avaliados pelos
participantes e pelo professor responsável, ações que também ajudaram a
direcionar os passos que seriam dados.
Por último, fiz a disciplina Comunidades Tradicionais: Terra, Território e
Territorialidades, com a professora Guiomar Germani, responsável pelo grupo de
pesquisa Geografia dos Assentamentos na Área Rural (GeografAR). Esse
componente curricular concentrou elementos essenciais para o desenvolvimento do
presente trabalho. As aulas sempre se constituíram em importantes debates,
inclusive com a participação de grandes pesquisadores, a exemplo do professor
José Maurício P. A. Arruti, fonte de algumas das reflexões que norteiam esta
dissertação. Foi um momento para questionamentos e esclarecimento de dúvidas,
quando o antropólogo, que é referência na questão quilombola, relatou a sua
trajetória enquanto pesquisador e forneceu informações valiosas.
A apresentação do grupo de estudo GeografAR, pela professora Guiomar e
demais integrantes, trouxe como subsídios o elo que une as lutas sociais do campo.
Foi reafirmada a dimensão da luta por terra, dos trabalhadores e trabalhadoras
rurais sem terra expropriados, e a luta na terra, por comunidades tradicionais que já
estão ocupando o território ou parte dele. Esta luta é para permanecerem no
território e caracterizada como resistência ou “reexistência”, como diz o geógrafo
Carlos W. Porto-Gonçalves, pois é a resistência que garante a existência desses
grupos. A própria permanência de onde estão é o resultado da resistência histórica.
Depois de todas essas contribuições, participei do exame de qualificação,
com a mesa composta pelo professor orientador deste trabalho e as professoras
Maria do Rosário e Cíntia Beatriz Muller. As críticas construtivas das duas docentes
proporcionaram o acréscimo de bibliografias mais qualificadas para os temas
abordados na presente dissertação, tais como agência, territorialidade e identidade
étnica.
Ao escolher pesquisar em São Joaquim de Paulo, comunidade negra rural
situada no município de Vitória da Conquista, no sudoeste baiano, projetava
investigar o processo de espacialização do eucalipto e as consequências dessa
monocultura na vida dos indivíduos pertencentes ao território, reivindicado como
quilombo. No entanto, logo na primeira visita técnica, outros aspectos importantes
16

foram observados, a exemplo da monocultura do café, bastante difundida nas terras


da Comunidade.
Também pôde ser percebido que questões como: veiculação de discursos
étnicos, reclamações sobre a demora de titulação das terras, relações assimétricas
de gênero, poucas pessoas idosas formando o grupo e a negação da identidade
quilombola por parte de alguns, iriam permear as análises que estruturaram a
pesquisa. Diante disso, o foco do estudo foi redirecionado, fato que confirma a
imprescindibilidade da realização de atividades de campo, pois revelam contradições
não previstas durante a construção do projeto.
Sendo assim, a elaboração do texto final visou registrar os processos
geográficos de Territorialização, Desterritorialização e Reterritorialização (T-D-R) dos
sujeitos envolvidos. Para tanto, a presente etnografia tem como objetivo apresentar
a análise em torno do processo de autoidentificação, assim como da construção do
território étnico da comunidade negra rural São Joaquim de Paulo, e refletir sobre o
significado político que permeia a assunção da identidade coletiva.
Foram levantadas questões como: em que hipóteses a identidade social é
redefinida enquanto quilombola e quais são os marcadores identitários utilizados
para a autoidentificação. Busquei entender o processo de agenciamento de
identidade, os mediadores externos e internos e os mecanismos acionados para
reprodução/ manutenção desse grupo étnico, assim como o empoderamento político
dos seus membros a partir do resgate da memória coletiva e dos processos de
territorialidade e etnicidade. Na pesquisa de campo realizada com a comunidade em
questão, foram identificados alguns fenômenos que possibilitam a criação das
fronteiras étnicas do grupo (distintividade) e o seu engajamento político na luta pela
garantia do território pleiteado. Em todas as idas a campo, fui acompanhada de Júlia
Garcia5, que me auxiliou a fotografar o ambiente.
Destaco como marco do empoderamento político das lideranças de São
Joaquim o conhecimento da existência do artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT), da Constituição Federal (CF) de 1988. Com a
nova Constituição, muitas comunidades negras, dentre elas São Joaquim de Paulo,
puderam se organizar contando com o apoio de movimentos e organizações
(mediadores externos: instituições religiosas, movimentos sociais e partidos

5
Júlia Garcia é responsável pelas fotos nas quais apareço. Também contriubuiu com traduções de
textos em inglês e indicações de leituras para o presente trabalho.
17

políticos), que se empenharam na defesa dos direitos dessas populações. O ato de


recuperar a identidade quilombola foi, portanto, uma estratégia política encontrada
pelos sujeitos (mediadores internos) para superar os conflitos emergentes. Nesse
processo, a autoatribuição de identidades étnicas tem levado a algumas mudanças
na organização social e identitária dos moradores de São Joaquim, como veremos
ao longo do texto.
A dissertação está estruturada em quatro capítulos. No Capítulo 1,
contextualizo o quilombo São Joaquim de Paulo, a territorialização como um
processo de reorganização social e, nesse ínterim, a emergência/ recuperação da
identidade quilombola. No Capítulo 2, discutirei as contradições da espacialização
de monocultivos, como o eucalipto e o café, na vida dos moradores, associando, a
partir disso, passado e presente. Além de apontar os marcos territoriais identificados
durante as atividades, como forma de vislumbrar a ligação dos indivíduos com
aquele espaço. No terceiro capítulo, serão evidenciadas as relações de produção
(com ênfase na divisão sexual do trabalho) e as interações simbólicas do grupo com
o território, caracterizado por essas relações.
Assim, foi feita uma reflexão sobre a divisão do trabalho entre homens e
mulheres. Para a mulher, a divisão sexual do trabalho torna-se um agravante nas
relações de produção, já que muitas atividades são tidas enquanto masculinas,
dificultando ou impossibilitando-a de exercer as poucas alternativas que restam à
Comunidade, no momento em que esta vem perdendo a referência com o trabalho
na terra. Posteriormente, apresentarei os sujeitos da pesquisa, no Capítulo 4: “As
imagens que dão rosto à resistência de São Joaquim de Paulo”. Buscarei
demonstrar a história das pessoas que formam a comunidade através de pequenos
relatos sobre as suas vidas e também de fotografias. Ao longo de todo o texto, são
usados os depoimentos dos sujeitos participantes da pesquisa, pois compreendo a
importância das suas falas e a coautoria dessas pessoas neste trabalho final de
curso.
A pesquisa foi conduzida com base em duas questões fundamentais:
Primeiro, como o processo de construção da identidade étnica ocorre no território
reivindicado; e segundo, como as condições de vida da comunidade foram
modificadas devido à prática das monoculturas (eucalipto e café) na área de estudo.
Assim, definimos o objetivo de pesquisa: “como a comunidade negra rural São
Joaquim de Paulo constrói o seu território étnico?”.
18

1 TERRITORIALIDADE E IDENTIDADE DA COMUNIDADE NEGRA RURAL SÃO


JOAQUIM DE PAULO

Em todo o território brasileiro, ocorrem problemas no processo de


regularização das terras quilombolas. A origem das comunidades negras rurais está
relacionada ao passado escravocrata, bem como a conformação da estrutura agrária
nacional, pois o Brasil foi um país escravista durante mais de três séculos. Mesmo
tendo sido declarado o fim da escravidão, essa continua a ser um processo
inacabado. Por isso, ainda que reconhecidas na Constituição e em legislações
estaduais e municipais, as comunidades quilombolas enfrentam dificuldades para a
efetivação e regularização fundiária dos territórios ocupados.
A garantia do direito à terra a essas comunidades dá fim à invisibilidade social
histórica e exige alterações na estrutura agrária brasileira. Todavia, quando se trata
dos direitos da população negra, permanece a mesma lógica existente
anteriormente à “abolição da escravatura”, a da lenta transição e da negação da
condição humana, como problematiza Reis (2003, p.15): “Vista como mero
instrumento de produção da riqueza e, nesse sentido, considerada como mais um
dentre os bens dos proprietários rurais, à população negra do período escravista
negava-se, inclusive, a própria condição humana”.
Muller (2006, p.54) chama atenção para o fato de que:

[...] os escravos não eram considerados juridicamente humanos na


sociedade brasileira, eram animais sujeitos a regimes de engorda e
reprodução. Pior do que ser uma pessoa desprovida de “liberdade
individual” é ser uma “coisa”, na maioria das vezes, destituída do valor de
humanidade e da condição de pessoa.

Os escravizados negros empreenderam, durante o regime escravista,


distintas maneiras de oposição às opressões impostas. Segundo Reis (1996, p.15),
“embora não tivessem sido as únicas formas de resistência coletiva sob a
escravidão, a revolta e a formação de quilombos foram das mais importantes”. Essas
comunidades resistem, apesar do atual modelo hegemônico de desenvolvimento
atuar contrariamente, porquanto não reflete as condições de vida dos sistemas
comunitários e não compreende os padrões que fogem à dinâmica do capital,
desconsiderando fatores étnicos, ecológicos e de gênero. Desse modo, a natureza é
19

transformada em fonte de lucro e, em especial, no Brasil, serve principalmente de


base para as atividades de exportação, relegando a um segundo plano as
necessidades internas da classe trabalhadora.
O reconhecimento dos quilombos e, por conseguinte dos seus territórios,
também ocorre de forma lenta em Vitória da Conquista, onde há inúmeros desafios a
serem enfrentados. Por isso, o município é utilizado como recorte espacial para a
realização deste estudo, devido à existência de conflitos fundiários, com ênfase na
prática da monocultura do eucalipto e do café em comunidades tidas como
quilombolas.

1.1 QUE LUGAR É ESTE? SÃO JOAQUIM DE PAULO!

Até a data de 23 de fevereiro de 2015, existiam 2.474 comunidades


quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP), em nível nacional.
Dessas, 638 estão localizadas no Estado da Bahia e 16 no município de Vitória da
Conquista6.
A comunidade São Joaquim de Paulo encontra-se no distrito de Capinal, a 12
km da cidade de Vitória da Conquista (IBGE, 2010). Segundo o grupo de pesquisa
GeografAR7, no ano de 2010, havia cerca de 50 famílias. Em 2015, conforme uma
estimativa sem dados concretos da Associação de Agricultores Familiares de
Quilombo de São Joaquim de Paulo, existem, aproximadamente, 190 famílias. A
área estimada pelos moradores é de 200 alqueires e, de acordo com as informações
da Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR)8, o tamanho
corresponde a mil hectares, onde residem cerca de 750 pessoas.
Com relação ao acesso a equipamentos (aparelhos e programas sociais), a
infraestrutura da localidade resume-se à Escola Municipal Dom Vilela Almeida
Andrade, outra conhecida como Escola do Barracão e ao Posto de Saúde São
Joaquim de Paulo9. No que concerne à saúde, a ausência de um hospital leva à
busca do serviço em outros locais como na cidade de Vitória da Conquista ou
6
http://www.palmares.gov.br/?page_id=88#
7
http://www.geografar.ufba.br/site/default.php
8
http://www.car.ba.gov.br/
9
http://www.pmvc.ba.gov.br/v2/noticias/prefeitura-entrega-posto-de-saude-em-sao-joaquim-de-paulo/
20

mesmo na capital baiana. De acordo com a Secretaria de Saúde de Vitória da


Conquista, a localidade é atendida pela Equipe de Saúde da Família do distrito de
Capinal, responsável pelo atendimento, de forma itinerante, em 13 localidades.
Conforme Josefina Brito (conhecida como Tesinha), a construção do posto foi
possível graças à atitude de Ercília Salgado Vieira, que, de início, cedeu parte do
terreno para o atendimento da equipe médica e depois doou as terras para a
construção do prédio.
No período em que a entrevista foi realizada com a moradora Fernanda de
Jesus Salgado, o posto de saúde não havia sido inaugurado. A jovem de 23 anos
explicou as dificuldades enfrentadas e outras ausências de serviços essenciais,
como uma creche. A falta de creches afeta a dinâmica familiar e pesa na vida das
mulheres trabalhadoras. Na comunidade estudada, essa foi uma reclamação
exclusivamente feminina.

Poliana Reis (PR) – Para você, o que falta por aqui?


Fernanda de Jesus Salgado (FJS) – Um posto de saúde.
PR – O que tem aqui não funciona?
FJS – Às vezes, funciona; uma vez por semana. Falta também uma creche
pra colocar as crianças. Assim, ficava mais fácil trabalhar. Emprego
também. As pessoas vão trabalhar em Conquista porque não tem emprego.
Vão e voltam. Eu só voltei a morar em São Joaquim pra morar com minha
avó [conhecida na comunidade como a tia], que ficou viúva.

Atualmente, a comunidade conta com energia elétrica e é atendida pelo


Programa Água para Todos, do Governo Federal. Não há igreja católica, telefone
público, nem sede da associação de moradores. Segundo Luciene Santos, a
população quer a construção de uma igreja, onde, além de missas, ocorreriam as
reuniões dos associados. Estas acontecem em um pequeno espaço na casa de
Djanira Silva (Lourinha). Sobre os limites do território pleiteado e sobre os nomes
dos lugares que o compõem, as pessoas atribuem o conhecimento do perímetro ao
Sr. Robério Santos, como pode ser visto nos trechos dos depoimentos a seguir 10:

10
As três pessoas citadas nesse parágrafo são lideranças comunitárias. As duas mulheres lideram a
Associação Quilombola, sendo Luciene (48 anos) a coordenadora geral e Lourinha (44 anos) a
tesoureira. Robério (59 anos) é ex- coordenador geral da Associação. Mesmo não possuindo um
cargo, exerce grande influência sobre os demais moradores.
21

Poliana Reis (PR) – O que é que vocês reconhecem como sendo o


território São Joaquim de Paulo? Vai de onde até onde? Quais são os
pontos de referência? Onde é a entrada e onde é o final da comunidade?
Seu Zé – O final da comunidade, só Robério. Ele é quem sabe todo o
território de São Joaquim de Paulo. Ele dá todo o território.

PR – Então, o São Joaquim, a senhora me disse que era o Capinal, Barroca


e o que mais? Só isso?
Maria Alves Almeida – Eu acho que sim. A senhora não já tá informada
com Robério? Com esse povo não?

Filho de “Fifia” – É como eu lhe disse: tem coisas aqui, que só Robério pra
informar!

Diante disso, procuramos Robério Santos para informar o território


reivindicado e, em um primeiro momento, com o auxílio da sua irmã, Maria Santos,
do amigo, Aurino Ferreira e de Luciente Santos, o líder da comunidade nos disse
que, apesar de lhe conferirem o conhecimento sobre as informações dos limites
territoriais, a causa deve ser coletiva:

É... Falávamos de limites, não é? O que é o limite... O que é que a gente


compreende como este lugar, Quilombo São Joaquim de Paulo! E eu peço
ajuda, até porque a questão é coletiva. Se eu falhar, que eu vou ousar dizer
aqui, os dois mais velhos [Maria e Aurino] ‘vai’ lembrando aqui, assim
[risos]. Não tem jeito, querendo ou não, vocês são os mais velhos mesmo
[risos]. Diferente de mim.

E assim, relatou os seguintes confrontantes: extremo 11 1, Capinal e Quatis da


Fumaça; extremo 2, Fazenda Periquito (era um latifúndio e atualmente tem um
povoado dentro do local, homônimo à Fazenda), Fazenda Limeira, Fazenda
Graciosa, Jiçara e Ponteio; extremo 3, Fazenda Amaralina (chamada de Santa
Marta ou assentamento Amaralina), Caldeirão, (Fazenda Quatis, que é a atual
Fazenda Beija-Flor); e extremo 4, Fazenda Tapera e Fazenda Passagem. Os
lugares de referência foram materializados na produção do mapa apresentado na
Figura 1 (p. 22), onde busquei chegar o mais próximo do território descrito, apesar
de não ter acesso a determinados lugares. Por isso, o mapa final apresentou um
tamanho menor do que o território reivindicado.
O povoado denominado Jiboia também é reivindicado pela comunidade,
principalmente devido ao marco territorial chamado de Corredor da Jiboia. Já o
assentamento União, antigo Instituto Brasileiro do Café (IBC), de acordo com
Robério Santos, também faz parte do território reivindicado. Mas o depoente afirmou

11
A palavra “extremo” é utilizada pelo próprio Robério.
22

que a área será dispensada do mapeamento, quando da elaboração do RTID,


“porque não faz mais sentido mexer com tantas famílias aqui. Melhor deixar o povo
em paz, mas não se pode negar que aqui é território do quilombo”.
Em mais de um ano de pesquisa de campo, a composição do território foi
alterada algumas vezes. Essas mudanças eram esperadas e ocorreram por meio de
discussões em reuniões, realizadas com o intuito de debater quais os lugares que
entrariam na elaboração do mapa final e os que seriam abdicados. Portanto,
reafirmo que haverá diferenças entre o mapa aqui apresentado e o que será
produzido por representantes do INCRA.
Nosso mapa foi definido no último campo, realizado no dia 18 de julho de
2015, justamente para não restar dúvida quanto à inclusão de todos os lugares
reivindicados e para a garantia de que durante todo o processo ouvíssemos o maior
número de membros possíveis. A última reunião para discutir essa atividade foi
composta por: Djanira Silva, Robério Santos, Aurino Ferreira, Alício, Seu Nego,
Luciene Santos, Seu Zé, Orlando e Maria José. Após a definição do mapa final, fui a
campo coletar os pontos com o GPS Garmin (etrex). Não tive acesso ao interior de
alguns locais, como o Salangó e a Fazenda Casa de Telha. Robério Santos não quis
participar dessa atividade, alegando que já fez muito pela comunidade e os demais
presentes que deveriam ir.
Alguns dos presentes esboçaram muita preocupação em ter que abdicar de
determinados lugares para que o processo de titulação no INCRA seja agilizado. E
relataram que foram orientados a desistir de parte do território. Um advogado que
esteve na reunião indicou outra maneira de como os moradores deveriam atuar: “É
preciso afinar a história de vocês. É preciso que todo mundo afine o discurso e
saibam informar direito os lugares que vocês querem”.
Durante a pesquisa, sobre o conflito de terras e a conformação do território,
Robério Santos informou:

Os latifundiários começaram se organizando e acuando, cercando,


empurrando... Aí ‘começou’ as migrações. Infelizmente, isso aconteceu,
mas a gente tem conhecimento pleno de onde são os limites dessa
propriedade coletiva dos quilombolas. Isso dado na comunidade em geral,
mas como é que nós estamos, especificamente, tratando daqui de São
Joaquim de Paulo, onde eu moro. Nós moramos aqui e nos orgulhamos de
ser negros deste lugar.
23

Ponto X Y Descrição
1 304329 8344679 Divisa do Assentamento Amaralina com o São Joaquim
2 304171 8343654 Entrada de Barroca
3 304140 8343634 Atual casa de Lourinha, na Barroca
4 304006 8342448 Casa de Alício
5 304869 8340214 Estrada de Jararaca
6 305102 8339371 Estrada para o cemitério, fechada pelos fazendeiros
7 305691 8339022 Fazenda que divide o São Joaquim 1 e 2
8 305951 8339265 Jararaca – área loteada
9 308710 8338671 Divisa do São Joaquim com o Periquito (Toco Preto) Extremo
10 305651 8335431 Divisa do São Joaquim com Periquito (próximo à Fazenda Duas Vendas)
11 304894 8335713 Local das reuniões da Associação
12 304742 8335742 Entrada da Fazenda Beija-Flor
13 304603 8336272 Barracão
14 299202 8340129 Quatis da Fumaça
15 299269 8340326 Fazenda Austrália – eucalipto

Figura 1 – Mapa
Fonte: elaboração própria
24

Aurino Ferreira, como que a reviver a história, trouxe importantes informações


socioeconômicas, como a atividade do garimpo, que era realizada no passado e deu
origem ao espaço conhecido como Capinal:

Aurino Ferreira (AF) – O Capinal... Olha... Até 70, ninguém lembra, não
tinha Capinal. Tinha Periquito e Graciosa.
Robério Santos (RS) – Muito bem, é isso mesmo!
AF – Periquito, de João Dondon Gusmão, e Graciosa, de Zizinho e Deraldo.
RS – Isso mesmo!
AF – E uns garimpeiros ‘chegou’ e ‘abotou’ uma lona ali, onde tem uma
churrascaria muito bonita e...
RS – Div... Desculpe, Aurino, pra te ajudar... ‘Dividiu’ a Graciosa ali com São
Joaquim e montaram acampamento do garimpo, né, com Periquito e...
AF – ‘Fez’ aquela lona e ‘fez’ o acampamento dos garimpeiros. E aí
começou, mais tarde, o Capinal. O acampamento e Capinal.
RS – Década de 70? O acampamento?
AF – Eu vi 60.
RS – Sessenta. Foi!

Os limites territoriais foram alterados com o tempo, assim como a paisagem


12
de alguns lugares, a exemplo da antiga área de “roça” . Algumas fases dessa
transformação puderam ser constatadas durante as entrevistas coletivas e trabalho
de campo, ao serem relatados os diferentes períodos de produção (cana-de-açúcar,
café e eucalipto).13. Além dessas atividades, houve o garimpo, mencionado
anteriormente.
A entrevista coletiva foi realizada na casa de Robério. Estavam presentes
Luciene Santos, Maria Santos e Aurino Ferreira, que participou da entrevista a
pedido de Robério, com o argumento de que o colega é um dos moradores mais
antigos do lugar. Aurino sofreu um derrame há pouco tempo. Por isso, alguns
trechos da entrevista são incompreensíveis.
Nesse encontro, pude perceber que Robério exerce forte influência sobre as
pessoas da comunidade. Ao tentar falar com Maria, não obtive muitas informações,
pois ele a interrompia frequentemente, como poderá ser percebido durante a leitura
deste documento. Além de delegar à irmã tarefas domésticas para receber os
convidados (feitura de café, lanche), de modo que Maria teve que se ausentar em
vários momentos da sala onde estávamos reunidos.

12
Onde ficavam os lotes individuais.
13
Será relatado detalhadamente no Capítulo 3.
25

1.1.1 O mito de origem

Como acontece com a maioria das comunidades que reivindicam o status


quilombola, São Joaquim de Paulo também possui um mito de origem. Assim, no
dizer de Arruti (1997), os mitos de origem, que “constantemente são acionados pelos
grupos como forma de legitimar suas pretensões, justificar faccionalismos, explicar e
fundamentar rituais”, conformam a história local.
Segundo a narrativa contada por Robério Santos, a comunidade foi formada
a partir da fuga de um escravizado, chamado Paulo Salgado ou Paulo Preto,
proveniente do município de Caetité - BA. De acordo com os moradores, no início do
Século XIX, o senhor Paulo, fugindo da escravidão, encontrou no local as condições
ideais para a sobrevivência e para lá foi trazendo os seus parentes e mais outros
desertores do sistema escravista. O nome da comunidade é em homenagem a avó
de Paulo (Joaquina), que, segundo o líder comunitário, morreu de fome e sede, em
Caetité. O termo “São” foi acrescido pelo fato de se considerar aquele local como
uma terra santa e “Paulo”, devido ao escravizado fugido. Esse mito é bastante
difundido pelo senhor Robério e alguns moradores repetem a história contada por
ele, como é o caso de Luciene Santos:

Aí no começo, eu te falo, aqui não tinha terra. Não! Digo: não tinha dono. Aí
‘tinha’ os escravos e eles fugiam. Aqui chama São Joaquim de Paulo por
isso. E um desses escravos fugiu. E aí veio andando, andando, andando...,
vários dias, vários meses e chegou aqui. Quando chegou aqui, ele viu que
tinha a água, a terra que produzia muito bem, aí ele ficou. Só que aí, ele
pensou de ficar. E os parentes dele? Ele ficava vários dias escondido no
mato e ia trazendo os parentes e jogava aqui, só que esses parentes... Ele
trazia parentes, trazia amigos e ia botando aqui, aí quando eles voltavam lá,
tinha mais escravos que ‘queria’ vir. Aí foi formando São Joaquim de Paulo.

Os moradores mais velhos também relataram as suas lembranças sobre a


ocupação da terra e sobre como Paulo Preto chegou à Vila da Conquista, atual
Vitória da Conquista. O conflito entre as famílias conquistenses conhecidas como
“Meletes” e “Peduros” permeia a história de formação da comunidade. O artigo do
jornal O Município cita a luta entre as duas famílias:
26

Outro exemplo, também dramático de lutas entre famílias pelo poder local
foi a que teve como protagonista a família do Coronel José Fernandes de
Oliveira Gugé e a do coronel Emiliano Moreira de Andrade, a conhecida
guerra entre Meletes e Peduros, que iniciada em 1910, apenas chega a
termo em 1919, com a assinatura de um acordo de paz14.

Ao comparar a notícia do jornal e o depoimento a seguir, podemos perceber


que o período ao qual Robério Santos atribuiu como o da chegada de Paulo Salgado
ou Paulo Preto à Vila da Conquista fica no intervalo entre o ano de 1910 (marca o
início do conflito) e 1919 (ano de assinatura do acordo de paz). Nesse perído já
havia sido assinada a Lei Áurea, mesmo assim os moradores de São Joaquim,
consideram que no período existia escravidão.

Robério Santos (RS) – Quando ele [Paulo Salgado] chega nessa terra, que
hoje é chamada de Vitória da Conquista, na época era chamada de?
Maria Santos – Vila!
RS – Vila da Vitória, Vila da Conquista, tá? Então, numa época daquela lá,
de vila, acho que Vila da Conquista, parece, já no Século XIX, Paulo
Salgado chega com seus companheiros, em busca de trabalho e tal, pra
sobrevivência... Ali, dá de cara com um conflito de duas famílias rivais,
naquela vila, era pequena a cidade da qual já dei o nome há pouco instante.
Aí o que é que acontece?! Uma das famílias era apelidada de ‘Melete’, a
outra era apelidada de...
Aurino Ferreira – ‘Peduro’.
RS – ‘Peduro’. Só que, naquelas confusões de duas famílias... Claro! Só
‘morria’ negros. Por quê? Porque os negros eram comandados por
senhores e ‘tinha’ que fazer o que os senhores mandavam, o que
determinassem. Paulo Salgado, conhecido como Paulo Preto, que não
nasceu com a sina de ser bobo... Aquele catingueiro, quando viu que o
negócio ‘tava’ pegando, dando errado para os pretos, conversou com seus
companheiros e disse assim:
‘– Vamos fugir mais uma vez?’
‘– Mas Paulo, pra onde?’
Isso a história nos afirma, não é? Porque eu tenho cinquenta e poucos
anos. Eu não presenciei, mas a história ficou escrita em algum lugar aí. E
eu tive bisavô, eu tive avô, tive pai, como é que eu não sei de alguma
coisa? Pelo amor de Deus, né?

Como vemos no final do relato, o entrevistado exemplificou como a memória


foi transmitida ao longo do tempo, ao evocar os antepassados (bisavô e avô). Muitas
histórias foram transmitidas e passadas de geração em geração. Há a preocupação,
por parte dos mais velhos, de que os jovens aprendam e repassem a história do
lugar.

14
Jornal O Município. Novembro de 1997.
27

Robério Santos – E aí adentraram a mata adentro, nesta região daqui...


Quando chegaram aqui, neste lugar nosso hoje, encontraram tudo o que
aquele grupo precisava. O grupo de fugitivos ali, escravizados lá... Em
Caetité. Aí encontrou, aqui, terra fértil, água, eu digo assim, potável! Água
doce! Encontraram muita caça e muita pesca. Também o mel silvestre. Eles
queriam o quê mais na vida? Saúde e sossego! Saúde, porque o sossego,
já deram de cara com ele. Montaram o acampamento nesta terra aqui e aí
mais adiante, é... Paulo, ele começou a bolar um nome pra esta terra, que
ele achava que era uma terra santa. Ele titulou isto aqui de terra santa e
como segundo eles falaram, os mais velhos contaram, a gente vai continuar
contando essa história pra todo mundo. E espero que nossas gerações
posteriores também possam continuar contando essa história. [...] Essa é a
origem que eu, com cinquenta e poucos anos, conheço, do nome deste
lugar! Porque quem mora em determinada comunidade tem que saber da
origem da sua terra! Assim como nós sabemos que é necessário... Eu falei
com vocês há pouco, comentei com vocês há pouco, aquela coisa da árvore
genealógica. Todo mundo tem que escrever essas coisas, ok, gente? Não
sei se fui muito além nesses detalhes.

Já a memória de Dona Guiomar Souza relacionou a origem da comunidade


ao trabalho com a terra, o trabalho nas lavouras, executado pelos seus
antepassados:

Esta comunidade começou ‘com nós’ aqui. Porque nós ‘nasceu’ e ‘se criou’
aqui. Nós não ‘sabia’ se a Diná [proprietária da terra]... Não ‘sabia’ pra onde
nós ‘ia’, era só trabalho. Eu ‘mesmo’, fui criada aqui... Mamãe teve 14 ’fio’ e
foi tudo assim, trabalhando na roça. Até hoje eu gosto de trabalhar...

Os relatos sobre a origem da comunidade tiveram alguns elementos em


comum. Foi perceptível, a partir da análise das histórias, que a noção da gênese
comunitária está intrinsecamente relacionada às dimensões terra, trabalho/
escravidão e família. Ressalto que as narrativas encontradas foram as de que São
Joaquim de Paulo é uma grande família, pois todos e todas seriam descendentes do
Sr. Paulo Preto.
E junto das histórias e do mito, existe a mistura de elementos reais e
lembranças incertas, provenientes do “eu ouvir falar”
28

Luciene Santos – Isso ocorreu em 180015..., por aí... Que ‘começaram’


esse pessoal pra aqui. E aí foram ficando, ficando e aí que surgiu São
Joaquim de Paulo. Foi crescendo e como não tinha dono as terras,
resultado: e eles foram ficando com as terras e tudo. Só que aí, é... Pelo
que eu vi falando, lá por volta de 1957 a 1960, aí o governo exigiu todo
mundo ter documento de terra, só que o pessoal não sabia nem o que era,
né? Aí ‘foi’ chegando aqueles grandes, estudados, e foram pegando um
pedacinho de terra e tirando o documento, só que tiravam assim: ele
pegava um pedaço de um alqueire como se fosse dez. Aí aquelas pessoas
que vieram fugidas, já ‘tava’ dentro das terras deles. Aí não tinha como,
ficava ali, já ficava como empregado. Aí os fazendeiros ‘dizia’: ‘trabalha aqui
pra mim, eu vou te pagar. A terra é minha, eu tenho documento, eu te dou
um pedaço da terra pra você trabalhar’. Aí ‘teve’ uns que ‘passou’ fome e
foram embora.

Robério Santos: Na época do negro Paulo, não tinha documento, a terra


era de Deus. Com o golpe de 64, com a lei chamada medição, aqueles
fazendeiros que tinham o dinheiro e podiam pagar para o governo, viravam
dono da propriedade, que, no fundo, no fundo, não era deles.

De acordo com as entrevistas, os fazendeiros foram invadindo as terras e


tomando posse do território, ao utilizarem inúmeras estratégias. E, assim, a área foi
cada vez mais reduzida16, a ponto de colocar em risco a própria reprodução da
comunidade. Veremos essas formas de aquisição da terra de forma detalhada no
próximo subitem. O sentimento de pertença dos membros pode ser entendido a
partir da solidariedade entre o grupo, das estratégias de continuidade, dos laços que
os une e do vínculo que possuem com o território.

1.2 QUANDO A LUTA COMEÇA

A luta coletiva pela regularização do território pleiteado é analisada a partir da


compreensão do significado do termo quilombola na contemporaneidade e dos
processos de territorialidade empreendidos pelo grupo étnico. Por volta da década
de 1990, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) atribuiu um novo significado

15
Segundo Luciene, a comunidade teria começado no início do século XIX, anteriormente à abolição
da escravatura. Foi possível perceber a preocupação em demonstrar que, para ela, São Joaquim já
existia desde o período da escravidão oficial.
16
O território da comunidade diminuiu de 200 para 2 alqueires, de acordo com a entrevista de um
morador retratada no documentário São Joaquim: o Quilombo de Paulo Preto. Produzido por Luciano
Sapucaia e Thiago Alves, como projeto experimental de conclusão de curso de Comunicação Social
da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), sob a orientação da professora Rita de
Cássia Pereira. Nesse vídeo, Robério, data a origem da comunidade de 1824.
29

para as comunidades quilombolas, diferente da concepção de quilombo produzida


pela historiografia nacional.
De acordo com O’Dwyer (2002), na atual definição da ABA, o termo quilombo
não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de
comprovação biológica. Assim como não se trata, como se pensava anteriormente,
de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma
forma, nem sempre os quilombos foram constituídos a partir de movimentos
insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que
desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução dos
seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio. Onde
as relações são norteadas por “laços de parentesco e vizinhança, assentados em
relações de solidariedade e reciprocidade” (O'DWYER, 2002, p.18).
A territorialidade é um fenômeno tanto material quanto simbólico, traduzido
nas lógicas conflitantes exercidas no território. Portanto, a luta se dá a partir de
fatores territoriais que fazem emergir questões étnicas . Nesse contexto, um longo
conflito pela posse da terra, envolvendo os camponeses de São Joaquim de Paulo e
fazendeiros da região, incluindo sujeitos políticos conhecidos em nível nacional 17,
dura cerca de oito anos, contando a partir do momento em que lideranças da
comunidade reivindicaram a propriedade definitiva das terras ancestrais, conforme o
disposto no art. 68 da CF.
Para dar início ao processo e com vistas a uma nova organização interna,
definindo melhor a identidade do grupo, foi criada a Associação de Agricultores
Familiares de Quilombo de São Joaquim de Paulo, como uma representação jurídica
e de contestação política. É uma organização liderada por dez pessoas e composta
por coordenação, conselho fiscal e secretaria. Os associados pagam uma taxa
mensal no valor de três reais e as principais assembleias ocorrem no último domingo
de cada mês. Nessa perspectiva, a organização política local é estruturada nas
ações referentes à Associação, que tem um papel importante pela regularização
territorial e na afirmação identitária do grupo.
A comunidade em questão foi certificada junto a FCP no dia 28 de julho de
2006. O evento que desencadeou o pedido de regularização e titulação da
propriedade da terra no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

17
Nomes como Nilo Coelho.
30

(INCRA), segundo o Sr. José Moreira (o Seu Zé), se deu bem antes dessa data.
Começou a partir da exigência, por parte do Sr. Laudionor Santos, auxiliado pelo
advogado Rui Medeiros, do título das terras onde havia trabalhado e que eram
ocupadas por ele, naquele tempo. Dona Diná, antiga proprietária da terra, teria
doado parte do terreno para Laudionor. Todavia, assim como Seu Zé, os atuais
moradores questionam o caráter dessa doação. Como pode ser visto, também nos
depoimentos anteriores, relataremos como muitos fazendeiros adquiriram as terras
ancestrais de forma ilícita.
31

Poliana Reis (PR) – E como foi que a comunidade começou?


18
Seu Zé (SZ) – Começou com Laudionor Santos . A comunidade foi
batalhando aí, pra adquirir algum benefício aqui pra terra e... Eu cheguei por
aqui e já conheci eles [a família da esposa]... eu trabalhava de vaqueiro na
região. Comecei a vir pra aqui e comecei a namorar a minha esposa e entrei
na família. E ele [Laudionor] já tinha começado a comunidade, já tava
movimentando sobre a terra. Já tava trabalhando e tempos batalhando
‘mais’ o INCRA, sobre receber o título da terra. Eu morava aqui em cima, no
alto. Aí me casei. Naquele tempo, as casas ‘era’ tudo de enchimento. Eu fiz
turma, comecei a trabalhar na roça e tal, aí um dia eu saí pra trabalhar lá na
Casa de Telha. Eu trabalhava assim, braçal: roçando manga, limpando,
roçando, toco. Esse que era o trabalho nosso.
PR – Trabalhando para outra pessoa?
SZ – É! Fazendeiro. Agora, quando não tinha trabalho aqui, a gente ia
trabalhar na diária. Meus cunhados sempre batalhando sobre a terra. Aí
teve uma reunião no INCRA e... A posseira, que era Diná, dona dessa terra
aqui, que ela deixou a terra, uma parte da terra, pra ele..., porque eles
trabalhavam na terra, mas achando que a terra já era de antigos vizinhos,
que ‘era’ herdeiros, dos antigos, é..., dos avós, é..., bisavô, mas ‘cê’ sabe
que, naquele tempo, tinha muitos fazendeiros que iam, ‘botava’ o cara pra
trabalhar e por ali ‘enganava’ e por aí a terra ficava, né? Aí foi nada não.
Nisso, meu cunhado [Laudionor]... A fazendeira tinha uma parte da terra, a
fazenda era dela, tinha uma parte e cedeu pra ele. Mas né isso, né? Ele já
vinha batalhando, porque achava que a terra era propriedade dos herdeiros.

[...]

PR – E o que levou vocês a pedirem a titulação da terra no INCRA?


SZ – Meu cunhado era o mais sério. Ele era o mais proprietário e tinha um
pedaço maior da terra, ele trabalhava mais. Então, ele pediu à família pra
ficar com a área pra trabalhar. Ele batalhou, aí doutor Rui pegou a causa
pra poder resolver pra ele.
PR – Doutor Rui? Ele é advogado?
Luciene Santos (LS) – Ele é advogado. Foi ‘onde’ conseguiu esses
pedaços, por isso hoje todo mundo tem esses pedaços. Mas se não fosse
essa luta e também ajuda, muito da igreja, que ia dando ensinamentos às
pessoas daqui, de luta. Foi aí que todo mundo começou a saber que tinha
direito.
PR – Qual era a igreja?
LS – O pessoal da igreja católica. Aí foi dando conselho, né? Que tinha
obrigação dessas pessoas ‘ter’ terra. Aí que o pessoal começou ‘indo’ atrás.
PR – Então, tudo começou por conta da reivindicação de Laudionor?
LS e SZ – É. Laudionor!
PR – E quem tomou a frente?
SZ – Laudionor.
LS – Porque aqui é uma área quilombola, por ser antes, por ser de escravo
e tudo. Foi aí que a gente começou a correr atrás. É ‘aonde’ surgiu Nelson,
19
Marinaldo ... Achou a gente pra gente também, como muito o estilo dele,
pra gente ter certeza do que a gente tá lutando, né? Por que é que a gente
tá lutando?

18
Seu Zé se refere ao início da comunidade a partir do momento decisivo em que eles resolvem
reivindicar o território e não ao início de quando vieram as primeiras pessoas.
19
Representante da CAR.
32

Em 07 de janeiro de 2010, foi aberto um inquérito civil público 20, por parte de
Robério Santos, com o objetivo de acompanhar o processo de regularização
fundiária, bem como para apurar denúncias de que os vizinhos da Comunidade
estariam desrespeitando os direitos individuais e coletivos dos moradores. Tanto
avançando sobre as terras ou proferindo ameaças ao grupo quanto pressionando
para que as abandonem. Como foi o caso da família de Seu Laudilino Pereira e
Dona Arlete Gomes, que foi expulsa de onde morava e sonha em retornar para o
local de sua origem. No inquérito, também foi questionado o avanço do eucalipto
sobre o território.
Como visto, essa pressão sobre as terras tradicionais existe há muito tempo
na comunidade e também pode ser claramente percebida na dúvida admitida por
Dona Guiomar, durante a nossa entrevista:

Poliana Reis (PR) – Sua mãe plantava na roça dela ou trabalhava para
alguém?
Dona Guiomar (DG) – Plantava. Ela não trabalhava não, só trabalhava pra
‘os da roça’. Agora eu queria saber assim... Porque era uma roça, aí depois
dividiu, mas nós ‘trabalhava’ lá. Como foi que dividiu? Se era nossa?! E
depois eles ‘foi’ comprando tudo e vendendo e comprando...
PR – Quem são eles?
DG – Os fazendeiros. E era uma roça assim, ‘cê’ tá entendendo como é que
era? Não tinha porteira, não tinha cerca. Papai vendeu um pedaço de terra,
mas era tanto ‘fio’...
PR – E o fazendeiro que comprou a terra do seu pai, plantava o quê?
DG – Plantava? Plantava nada. Era de gado... Plantava nada!

De acordo com Robério, Paulo Salgado, considerado “o fundador do


quilombo”, vendeu pequenas parcelas da terra para alguns senhores e, dentre eles,
lembra o nome do Sr. Vivaldo Mendes, que passou a ser o “proprietário” da Fazenda
Quatis da Fumaça. Relatou, também, que foram várias as maneiras pelas quais a
Comunidade perdeu as terras. Dentre essas, atribui ao Estatuto da Terra de 1964,
lei criada no período da ditadura militar, que, supostamente, tinha o intuito de regular
os direitos e obrigações concernentes aos bens imóveis rurais, para os fins de
execução da Reforma Agrária, assim como para a promoção da Política Agrícola. A
ligação feita pelo entrevistado entre a perda de terras e o Estatuto faz sentido, pois
além das denúncias realizadas pelo informante, temos conhecimento de como os

20
http://6ccr.pgr.mpf.mp.br/atuacaodompf/inqueritosdocs/docs_classificacao_tematica/Portaria_01_20
10_instauracao_ICP_no_1.14.007.000001_2010-23.pdf
33

movimentos sociais do campo foram duramente reprimidos durante o período


conhecido como os “anos de chumbo”.

Robério Santos – Eu me lembro muito bem que o nosso amigo, advogado,


conselheiro, chamado Rui Medeiros, ele falou muito dessas questões pra
nós. Ele falou que na década... A memória aqui não lembra com precisão...
Lá na década de 60, acho que em 64..., o golpe de 64... o exército, criaram
uma lei lá de cima e essa lei veio oprimindo. E os posseiros, quilombolas,
famílias tradicionais que tinham suas terras, também passaram pelo
detector de metragem de tamanho de terra. Os fazendeiros também, os
latifundiários. E quando chegou essa tal de medição do Governo Federal e
atingiu também nossas pequenas terras. Só que, como foi que a gente
começou a perder as nossas terras que estão aí? Foram várias maneiras,
como eu tenho dito sempre. Quem tinha dinheiro, o fazendeiro, foi pagando
pra medir, porque tinha que pagar. Como nós quilombolas, famílias
tradicionais, não tínhamos, aí ‘aparecia’ os padrinhos, pagavam a medição
deles e pagavam também as nossas. Ah! Aí onde é que foi o perigo pra nós:
porque eles apareciam como ‘padrinho’, mas era mais como bicho-papão.
Pagavam nossa medição e nós não presenciávamos a medição. Foi aí que
eles começaram a engolir nossas terras, abocanhar nossas terras.

E, com esse artifício, o poder aquisitivo dos fazendeiros permitia que eles
pudessem pagar a medição da área. Uma das maneiras de expropriação da terra
era o apadrinhamento ou utilização do perfil paternalista para se aproveitarem da
fragilidade econômica e do baixo nível escolar das famílias. Segundo os
depoimentos, os fazendeiros pagavam a medição, mas os “herdeiros” não
presenciavam esse processo. Com isso, não podiam garantir que as medidas tinham
sido corretas. Para agravar a situação, os latifundiários pediam recompensas pelo
feito e, muitas vezes, era retribuído com a oferta da força de trabalho. Foi desse
modo que a família de Dona Arlete e Seu Laudilino foi expropriada das suas terras.

1.2.1 A família de Dona Arlete Gomes de Araújo e Seu Laudilino Pereira da Silva e o
desejo de retorno à terra natal

Entrevistamos a família do casal Arlete Gomes e Laudilino Pereira (Seu Bibi),


que foram expulsos de São Joaquim e, na atualidade, moram no assentamento
União (antigo IBC). Segundo Seu Bibi, por volta da década de 70, uma mulher
chamada Ana Mendes, através da “medição”, se apropriou das terras onde vivia a
sua família, a “terra dos herdeiros”, como ele chama. O senhor afirmou que possui
34

todos os documentos de compra da terra para comprovar a propriedade, mas Dona


Arlete ficou com receio de mostrar. Seu Bibi, emocionado, nos confidenciou que
mora no assentamento nos dias atuais, mas que quer voltar e morrer no local de
nascimento, de onde foi expulso. “Se eu morrer aqui, eu morro com raiva, agora, se
eu morrer lá, será a maior alegria minha”.

Seu Bibi – Eu nasci e me criei aqui em São Joaquim, minha família toda
nasceu e se criou aqui, aí chegou essa ‘mulé’ e tomou [voz trêmula]...
Tomou as nossas terras ‘toda’. Nana [Ana Mendes]! Primeiro, chegou com
um engenheiro de nome Antônio Porto, aí mediu a terra, eu lembro ‘cuma’
hoje: quando foi um dia, eu tava sentado lá no fundo, parou o carro e
‘chamou’ nós dois [ele e Dona Arlete]. Ele, a mão, e tirou a medida da terra.
Eu falei: ‘- Essa medida da terra tá certa?’. Ele falou: ‘- tá!’. Eu botei nos
advogados. Aí Naninha, essa que tomou a terra da gente, pegou outro
engenheiro parente dela e botou pra dividir a terra. Aí acabou tudo,
bagunçaram o negócio. Aquilo ali é uma herança, nosso sangue tá lá. Eu
achei... Ali foi herança e os herdeiros ‘tão’ mais do que sofrendo. Meus pais
moraram lá. Eu tenho planta de terra, documento. Tá tudo guardado, não
joguei nada fora. Ele morreu, mas tá tudo guardado aí.

As terras griladas foram ocupadas pelas culturas do café e, atualmente, do


eucalipto. Dentre as muitas estratégias utilizadas pelos latifundiários, outras práticas
foram realizadas, além da medição, tais como: fechamento de estradas, degradação
de fontes hídricas e proibição da retirada de lenha e de areia. Diante dos relatos,
pudemos entender melhor como o território se consolidou, com relação a como as
famílias adquiriram e como foram expropriadas de suas terras. Primeiro, perdendo-
as para os donos de engenhos, depois, para os fazendeiros do café e, atualmente,
para os “donos” dos campos de eucalipto e imobiliárias.

1.2.2 “Agora, eu sei que a lei nos protege!”

Então, como afirmaram Luciene Santos, Robério Santos, Seu Zé, Dona
Guiomar e demais depoentes, foram os representantes da igreja (CPT) e o
advogado Rui Medeiros que, durante o auge dos conflitos, orientaram os moradores
sobre os direitos quilombolas presentes no art. 68 da CF e em leis complementares.
A partir dos fatos relatados nos itens anteriores, parte da comunidade fortaleceu os
laços e se uniu para exigir tais direitos. Para O’Dwyer (2006, p.43):
35

A partir da Constituição Brasileira de 1988, o termo quilombo, antes de uso


quase restrito a historiadores e referido ao nosso passado como nação,
adquire uma significação atualizada, ao ser inscrito no artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) para conferir direitos
territoriais aos remanescentes de quilombos que estejam ocupando suas
terras, sendo-lhes garantida a titulação definitiva pelo Estado brasileiro.

Nesse sentido, enfatiza-se, nas configurações socioculturais, o caráter de


grupo, seus laços de pertencimento com o espaço que ocupam e as relações com o
território. Todavia, essa garantia contida na Carta Magna somente foi regulamentada
a partir dos decretos de 2003 e 2009, tanto na esfera federal quanto na estadual,
respectivamente. Houve uma lacuna de 15 anos desde a inserção desse artigo
constitucional que atribuía direitos, porém não definia a quem competiriam os
procedimentos administrativos para identificação, demarcação e delimitação dos
territórios quilombolas, até a efetivação dos decretos. “O artigo 68 ficou sem
qualquer proposta de regulamentação até 1995, quando (então associado às
festividades pela memória de Zumbi dos Palmares) ganha importância e passa a ser
alvo de debates e reflexões em âmbito nacional.” (ARRUTI, 1997).
O decreto federal 4.887/03 determinou que a implantação efetiva dos direitos
fundiários dos remanescentes de quilombo, com seus territórios certificados pela
FCP, seria realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), cabendo-
lhe a parte de coordenação e planejamento. Com relação à execução dos processos
de identificação, demarcação e delimitação das comunidades caberia ao INCRA e
aos institutos de terras estaduais, sendo que esses últimos se responsabilizariam
por certificar as áreas quilombolas presumivelmente localizadas integralmente em
terras devolutas. No caso da Bahia, foi regulamentado através do decreto estadual
11850/09, que a competência seria da CDA.
Contudo, até a atualidade, o reconhecimento não garantiu que as
comunidades fossem protegidas dos avanços de outros agentes no seu espaço,
afetando, em especial, seus recursos hídricos e área de vegetação. Diante disso,
afirmamos que, em São Joaquim de Paulo, especificamente, a luta começou desde
as pequenas reações empreendidas por seus membros ao processo de
desterritorialização que vinham sofrendo, mas ganhou materialidade quando o grupo
se viu extremamente ameaçado e passou a assumir a identidade quilombola, logo
após perceber mais uma das ações de agentes externos que intensificaria o risco de
perda do território: as plantações de eucalipto.
36

1.3 O INÍCIO DAS ATIVIDADES DE CAMPO: CADÊ O DESERTO VERDE?

No primeiro dia de pesquisa de campo, 25 de janeiro de 2014, fui acometida


por uma preocupação quanto à continuação do tema definido no projeto. Para
chegar até o local estudado, tive o auxílio da Sr.ª Luciene Santos e do Sr. Nego, pois
o acesso se dá através da BA 263, rodovia que leva a Ilhéus. Do início da localidade
até o local da reunião, o Sr. Nego explicou o que os lugares significavam: passamos
por uma área ocupada por ciganos, plantação de café, posto de saúde e grandes
fazendas. No entanto, percebemos apenas alguns eucaliptos plantados para servir
de cerca nas áreas periféricas dos terrenos.
Sendo assim, presenciamos poucas plantações de eucalipto e, em conversas
informais com algumas pessoas, sobre os conflitos que vivenciavam, o assunto, até
então, não havia surgido. Parecia que as plantações que me haviam sido relatadas
em momentos anteriores não interferiam nas relações cotidianas entre os sujeitos.
Fiquei feliz pelo fato da comunidade não passar por mais esse processo de
expropriação, mas triste por ter investido tempo em uma problemática,
aparentemente, inexistente.
No segundo dia de campo, 26 de janeiro de 2014, o relato sobre o eucalipto
reapareceu, bem como o motivo do silêncio no dia anterior. Após o depoimento de
Robério Santos, o “Negro Robério” ou “Robério Quilombola”, apelidos que gosta de
ser chamado, pudemos constatar que o “não falar” sobre o eucalipto ou o “não
lembrar” o que era produzido no local onde, atualmente, está disseminada a prática
dessa monocultura, representa, dentre outras vertentes, o receio das pessoas em
abordar o assunto. Para Candau (2012, p.16), restituir memória é restituir
identidades:

A memória, ao mesmo tempo em que nos modela, é também por nós


modelada. Isso resume perfeitamente a dialética da memória e da
identidade, que se conjugam, se nutrem mutuamente, se apoiam uma na
outra para produzir uma trajetória de vida, uma história, um mito, uma
narrativa. Ao final, resta apenas o esquecimento.

É preciso ter consciência de que “o tempo da lembrança é, portanto,


inevitavelmente diferente do tempo vivido, pois a incerteza inerente a este último
está dissipada no primeiro”. (CANDAU, 2012, p.66). Sendo assim, “a parte da
37

lembrança que é verbalizada (evocação) não é a totalidade da lembrança”


(CANDAU, 2012, p.33). O ato de esquecer e lembrar terá, nesses casos, um forte
cunho político.

Mesmo a narrativa mais atenta é trabalhada pelo esquecimento ao qual se


teme, pelas omissões que se desejam e pelas amnésias que se ignoram,
tanto quanto é estruturada pelas múltiplas pulsões que, na classificação de
nosso passado, nos fazem dar sentido e coerência à nossa trajetória de
vida. (CANDAU, 2012, p.76-77).

A primeira entrevista21 com Robério Santos e as dos demais interlocutores


foram decisivas para dar continuidade à pesquisa, assim como passamos a pensar
em novas estratégias para a realização do fazer etnográfico. Uma delas foi a de
tentar o contato com os outros sujeitos envolvidos no conflito sem afirmarmos quais
eram os objetivos reais do estudo, na tentativa de descobrirmos quais os interesses
dos responsáveis pelos campos de eucalipto. O contato não foi realizado até o
momento em que redijo o presente texto.
Apesar de ter ficado explícito que a expansão dos campos de eucalipto afeta
a dinâmica comunitária de forma negativa, como será relatado ao longo deste
trabalho, também foram constatadas outras questões que ameaçam a reprodução
do território étnico e, por isso, como já havia sido anunciado, optamos por
redirecionar o objetivo do estudo, no sentido de ampliar o foco da pesquisa. Sem, no
entanto, ter a pretensão de esgotar o tema.
Portanto, as primeiras impressões sofreram alterações, na medida em que a
pesquisa empírica foi concluída. Todavia, o momento inicial indicou os caminhos que
deveriam ser seguidos. Sendo assim, no decorrer da primeira ida a campo,
estruturada com a incursão de três dias em São Joaquim, ampliamos a nossa
compreensão sobre os conflitos fundiários enfrentados na área estudada, apesar do
pouco tempo de contato com os agentes envolvidos.
Já na segunda etapa da ida a campo muitas dúvidas foram suscitadas, fato
que contribuiu para as atividades de campo posteriores, assim como para o

21
A entrevista foi realizada na casa de Robério. Estavam presentes Luciene Santos, Maria Santos e
Aurino Ferreira. Este participou da entrevista, a pedido de Robério. Pudemos perceber que Robério
exerce forte influência sobre as pessoas da comunidade. Ao tentar falar com Maria, não obtivemos
muitas informações, pois ele a interrompia frequentemente, como poderá ser percebido durante a
leitura deste documento. Os termos utilizados por Robério também nos surpreenderam, já que o
mesmo alegou que não teve escolarização. Aurino Ferreira sofreu um derrame há pouco tempo. Por
isso, há alguns trechos da entrevista que são incompreensíveis.
38

desenvolvimento da dissertação. O trabalho de campo através da realização de


etnografia nos possibilitou conhecer melhor o processo de resistência empreendido
pela comunidade, desde a sua formação até os dias atuais.

1.3.1 Reunião de apresentação

A data 25 de janeiro não de 2014 foi escolhida de forma aleatória para ser o
dia do primeiro contato com a comunidade, mas sim, pelo conhecimento prévio de
que é prática local a realização das reuniões da Associação no último domingo de
cada mês. Além disso, essa foi a primeira reunião do ano de 2014. A minha
participação teve como objetivo pedir a permissão da comunidade para o
prosseguimento do estudo. Então, expliquei que seriam realizadas entrevistas,
oficinas e que, no período de um ano, faríamos visitas a São Joaquim de Paulo.
Ao planejar a apresentação, pensei em realizar uma oficina onde seriam
confeccionados mapas mentais. O mapa mental é a materialização das
representações espaciais que os indivíduos possuem do lugar. Para Archela, Gratão
e Trostdorf (2004, p.127):

Mapas mentais são imagens espaciais que as pessoas têm de lugares


conhecidos, direta ou indiretamente. As representações espaciais mentais
podem ser do espaço vivido no cotidiano, como por exemplo, os lugares
construídos do presente ou do passado; de localidades espaciais distantes,
ou ainda, formadas a partir de acontecimentos sociais, culturais, históricos e
econômicos, divulgados nos meios de comunicação.

Com esse procedimento, haveria a tentativa de entender como os sujeitos


reconhecem o seu território, tanto a parte ocupada na atualidade quanto a que era
utilizada pelos antepassados, antes dos processos de expropriação sofridos, além
de tentar visualizar de forma eficiente o território pleiteado. No entanto, decidi fazer
essa atividade em momento posterior, uma vez que a reunião mensal tem inúmeras
questões a serem discutidas. Os mapas mentais foram produzidos no quarto campo
e de maneira individual e os mais representativos foram usados no Capítulo 2.

Depois de me apresentar à comunidade, esclarecendo como gostaríamos de


realizar o trabalho, pedi permissão para o prosseguimento do estudo. Fui aceita com
39

alegria, obtive a permissão para continuar a pesquisa e agradeci o modo como fui
recebida. Esse primeiro momento foi, portanto, uma reunião de apresentação e
aprovação, caracterizado pelo diálogo, consentimento do grupo, visita e
reconhecimento da área de estudo. A participação nesse evento social possibilitou o
conhecimento dos moradores, problemáticas, busca de soluções por parte dos
presentes, assim como conjecturar como funciona o cotidiano daquelas pessoas.
Antes do início desse encontro, realizei algumas entrevistas, conversas
informais, agendei compromissos, observei e fotografei o ambiente. Foram gravadas
entrevistas com os seguintes moradores: Sr. Robério Santos, Sr. Aurino Ferreira,
Sr.ª Maria Santos (irmã de Robério Santos), Sr.ª Guiomar Souza, Sr. José Moreira
de Souza (Seu Zé) e Sr.ª Luciene Santos. Houve também conversas informais com
outros indivíduos, como o Sr. Nego e a Sr.ª Loura Silva (Lourinha).
Posteriormente, ao analisar o desenvolvimento do trabalho, percebi a
presença dessas primeiras pessoas desde a gênese da pesquisa até a sua
conclusão. A escolha dos entrevistados (as) se deu da seguinte maneira: primeiro
busquei os mais idosos presentes na reunião e depois entrevistei aqueles cujos
nomes apareciam com maior frequência durante as entrevistas, assim como seus
parentes e pessoas que, vez ou outra, apareciam durante as conversas ou
entrevistas, com o intuito de contribuírem.
No local, estiveram presentes 22 associados, sendo 15 mulheres e sete
homens. A abertura foi feita por Lourinha, que fez alguns repasses sobre a sua
participação em um evento no Conselho Quilombola de Vitória da Conquista. Os
presentes declararam que as reuniões, no passado, eram frequentadas por um
número maior de pessoas. Segundo as duas lideranças (Lourinha e Luciene), os
moradores estão desanimados “porque as melhorias demoram muito”. Após um
agradecimento a Deus pelas vitórias, foram relatadas algumas conquistas obtidas
pela atual gestão, como a aquisição de cisternas, referente ao programa federal
Água para Todos. Os beneficiários informaram como ocorre o processo de
implantação dos reservatórios de água e todos atribuíram as aquisições ao
acionamento da identidade quilombola.
Os assuntos debatidos no encontro foram em torno da importância da
participação nesse evento, pagamento da mensalidade à Associação, informações
sobre benefícios que haviam chegado, assim como aqueles que ainda precisavam
ser reivindicados, e “retorno cultural”. Foi explicado que a atual gestão da
40

Associação é formada somente por mulheres. Essa opção é para fortalecer o


empoderamento feminino.
Ao final da reunião, as lideranças, pediram aos associados para que
houvesse um retorno à “cultura antiga”. Foi proferido um apelo para que as pessoas
voltassem a dançar as músicas de antigamente, brincar de corda e de roda, olhar a
lua, pois, segundo Luciene Santos: “a cultura tem que voltar!”. E demonstrando
preocupação quanto ao futuro da identidade quilombola do seu lugar, afirmou que:
“a parteira acabou, a rezadeira acabou. Da nossa tradição, não tem mais nada”.
Nesse momento, o discurso da liderança remeteu-nos às leituras sobre produção/
reprodução de identidades e sobre agenciamento, pois o processo de se
reconhecerem enquanto quilombolas é, de fato, uma construção que conta,
inicialmente, com o auxílio de atores externos à comunidade e com o posterior apoio
e incentivo das novas lideranças internas que se formam durante esse processo.
Ortner (2006) faz uma análise sobre a questão da agência e da
intencionalidade dos atores. Seguimos o seu pensamento e referencial teórico, os
quais dão a entender que, quando nós, pesquisadores, usarmos agência, devemos
ter cuidado para não cairmos em ciladas.

[...] há um importante corpus de trabalho teórico que foi desenvolvido


precisamente para teorizar os ‘desejos e motivações’ e práticas de pessoas
reais no processo social (1) sem ‘dar precedência aos indivíduos em relação
aos contextos’; (2) sem importar pressupostos ocidentais, tais como a ideia
de ‘que os seres humanos podem triunfar sobre seu contexto por meio
apenas da força de vontade, [e] de que a economia, a cultura e a sociedade
são o produto agregado da ação e da intenção individuais’; (3) sem
desconsiderar ‘o pulsar das forças coletivas’; e (4) reconhecendo sempre a
onipresente probabilidade de consequências não intencionais. (ORTNER,
2006, p.50).

Portanto, houve a tentativa de realizar essa análise com base na dinâmica


“entre as práticas de pessoas reais” e as “estruturas da sociedade, da cultura e da
história”. A partir daqui, a mudança do objetivo pesquisado foi fortalecida.
41

1.3.2 A realização de mais campos: (re) explicação dos trabalhos

Entre os dias 4 e 8 de agosto de 2014, foi realizada a segunda incursão a


campo. Logo no início, encontramos algumas dificuldades, muitas delas, decorrentes
da distância entre Salvador e a comunidade. Esse entrave gerou problemas
relacionados à retomada do trabalho. Posteriormente, serviu de acúmulo de
experiência para as próximas idas a campo, quando não enfrentamos os empecilhos
que serão relatados.
No dia 5 de agosto, chegamos logo cedo à comunidade e o Sr. Nego nos
levou até Lourinha, cuja casa serviria de ponto de apoio no retorno das entrevistas.
No entanto, o fato de existir um tempo longo entre uma visita e outra fez com que
houvesse uma forte desmotivação entre os interlocutores. Lourinha não recordava
do que se tratava a pesquisa e houve críticas ao INCRA pela demora de titulação
das terras. Desse modo, nos confundiram com técnicos do Instituto. Por essa razão,
tivemos que reconquistar a confiança daqueles que gostaríamos que participassem
da pesquisa. Com o passar do tempo, após explicações sobre a realização do
estudo, a confiança e o envolvimento reapareceram e esses nos acompanharam em
todas as outras fases da pesquisa.
Nessa segunda ida a campo, 12 entrevistas foram formalmente realizadas.
Um dos possíveis interlocutores se negou a participar da pesquisa, alegando que
não era quilombola. Além das entrevistas, houve conversas informais, participação
em eventos e visitas a alguns marcos territoriais, como: o cemitério, o brejo, ida até a
entrada da Casa de Telha, proximidades do Corredor da Jiboia, Barracão,
Alambique, residência onde Ercília Salgado morava e proximidades do Salangó
(campo de eucalipto).

1.3.2.1 Mudanças na configuração do espaço agrário

Durante as visitas e entrevistas nessa segunda ida a campo, pudemos


dimensionar como a atual estrutura do campesinato é diferenciada das
42

configurações iniciais daquele espaço, como pode ser identificado nos trechos de
depoimentos utilizados nesta dissertação.

Robério Santos – Se anteriormente, pensando 50 anos atrás, até essa


data, se dividia as terras era por vales, valetas. Cortava o chão e ali,
naquela extrema onde tinha aquela valeta, um boi não tinha condições de
saltar de um lado pro outro. Porque, até então, naquela época, não tinha
chegado, talvez no Brasil, em outro lugar sim, mas não sei... Mas aqui na
região nossa não tinha chegado, eu diria nos anos 50, ainda não tinha
chegado o arame. O tão tradicional arame, que hoje limita tudo, divide tudo.
Até com energia já estão fazendo limite, né? Tão dividindo propriedade...
Mas é isso...

Seu Laudilino – O Salangó, eu mexi demais naquilo ali tudo. Cacei, pegava
lenha e usei a lagoa. Ali era de Dede Mendes. Lá, criava gado e cavalo de
raça. Dede Mendes vendeu pra Alfredo Brandão e, mais adiante, esse
vendeu pra Nilo Coelho. Hoje, nós não pode mais entrar.

Como visto, o uso coletivo da terra passou a ser propriedade privada de


poucos (os “outros”), onde os camponeses deixaram de ter autonomia sobre a terra,
sobre a força de trabalho e passaram a trabalhar no denominado “regime de meia 22”.
De acordo com Valdelice Salgado, ao ser questionada sobre como deveria ser São
Joaquim de Paulo, a depoente nos disse que tudo deveria ser como antigamente:

Valdelice Salgado (VS) – Por meu gosto, aqui ficava tudo ‘igual’ era.
Poliana Reis – E como era?
VS – Aqui? Essa ‘terrona’ aqui era tudo nosso. Isso aí era tudo aberto, aí
oh... Aqui tinha muito pé de jaca e subia em cima, tirava jaca, sentava,
chupava, ficava à vontade. Agora, hoje, aqui nós ‘sofre’ com as cercas.

A maior característica dessa fase do trabalho foi o estranhamento diante das


situações e respostas encontradas. Compreendemos que, em uma pesquisa, devem
ocorrer essas inquietações, do contrário, as atividades de campo não seriam válidas,
nem necessárias, pois já teríamos respostas prontas e verdades absolutas.

1.4 RETORNO CULTURAL: MINHA IDENTIDADE QUILOMBOLA

Recuperar ou recriar a identidade quilombola foi uma estratégia política,


encontrada pelos sujeitos para superar os conflitos emergentes. Por isso, a forte
preocupação e o receio demonstrado em não serem considerados quilombolas, caso

22
Regime em que parte do que é produzido fica para o proprietário das terras e uma pequena parcela
para os camponeses. Às vezes, esse regime é complementado com o pagamento de uma pequena
quantia em dinheiro.
43

não demonstrassem as mesmas práticas dos antepassados, e, assim, não


conseguirem “convencer” os responsáveis pelo processo de titulação do território
pleiteado. Muller (2006, p.44) faz a seguinte reflexão:

Ser ‘remanescentes de quilombos’ torna-se importante para aqueles que


reivindicam esse novo plano da identidade. Ela existe enquanto uma
unidade que se manifesta em um momento histórico e não é homogênea,
pois está cindida por tensões internas. Ao mesmo tempo em que encontra
razões para sentir-se um conjunto: tem uma origem compartilhada, é
perpassada por tensões que advêm da sociedade englobante, o racismo, o
desemprego, a desvalorização de sentimentos tradicionais que se
relacionam com a sua visão sobre o que a terra representa, e acredita estar
construindo um futuro possível em comum.

Nessa perspectiva, a autoatribuição de identidades étnicas tem levado a


algumas mudanças na organização social e identitária dos moradores de São
Joaquim. Arruti (2006) utilizou a etnicidade baseada na caracterização de grupo
étnico proposta por Barth. Para este autor (1998, p.124-135):

A etnicidade é uma forma de organização ou um princípio de divisão do


mundo social, cuja importância pode variar de acordo com as épocas e as
situações. [...], ou como um modo de organização das relações sociais, seu
conteúdo tanto quanto sua significação são suscetíveis de transformações e
de redefinições. Esse aspecto dinâmico da etnicidade está estritamente
ligado a seu caráter relacional.

Portanto, as transformações e redefinições de papéis, fatos e lugares, em São


Joaquim, devem ser considerados como elementos comuns ao processo de
etnicidade. Sobre a relatividade desse processo, de acordo com a época ou
situação, pode ser exemplificada com a revelação de um morador, de que Robério
Santos possui um lote em assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST). Fomos investigar no site do INCRA e descobrimos que é uma
informação verídica, como podemos visualizar na Figura 2 (p. 43).
44

Figura 2 – Nome de Robério Santos na lista de assentados


Fonte: INCRA23

Robério Santos, então, nos disse que, de acordo com a situação, atua como
líder quilombola e, a depender do contexto, identifica-se como assentado. Além
disso, elogia o Movimento, ao explicar os locais que compõem o território:

Robério Santos (RS) – Então... O nome lá é Fazenda Amaralina, que hoje


é até um assentamento da reforma agrária já, né? Do doutor Régis
Pacheco, ex- governador, ex- vereador, ex-prefeito, ex-tudo de Conquista;
ex-deputado estadual... Chegou a federal? Acho que não.
Poliana Reis (PR) – Então, a Fazenda Amaralina, que alguns chamam de
Santa Marta, é hoje um assentamento...
RS – Que alguns?
PR – Chamam de Santa Marta?
RS – Chamou?
PR – Não chamam mais?
RS – Chamam! Chama... Continua chamando!
PR – Santa Marta! E hoje, é um assentamento?
RS – Da reforma agrária!
PR – Da reforma agrária!
PR – E de quem era?
RS – Doutor Régis Pacheco, médico, né? Natural de Conquista.
PR – E qual é o movimento a que pertence o assentamento?
RS – Do MST! Que eu tiro meu chapéu! O MST também tem seus defeitos,
‘igual a eu tenho’, mas [para] o lado sadio do MST, eu tiro meu chapéu.
PR – Porque, quando a gente veio, eu vi uma placa do MTD [Movimento
dos Trabalhadores Desempregado].
RS – Tem! Tem! MBA, MTD... Tudo tem aqui.
PR – Então, do lado Norte, tem essa fazenda Amaralina, que chamam
também de Santa Marta, hoje é um assentamento do MST e era de Régis
Pacheco!
RS – Correto!

No contexto atual, apesar das reivindicações quilombolas possuírem aspectos


diferentes, se comparados aos de outras organizações sociais conhecidas, como do
MST, por exemplo, a luta é, principalmente, por reformas estruturais nas políticas

23
Imagem retirada do site do INCRA.
45

fundiárias. Cada um com as suas especificidades, os primeiros lutam pela terra e o


segundo empreende lutas para permanecer na terra/ território que já se encontra
ocupando parcial ou integralmente. A seguinte afirmação de Lourinha revela o ideal
de relação que deveria existir entre os diferentes grupos: “Nós, quilombolas, índios,
sem-terra, marisqueiras, somos a massa sofrida e temos que nos reunir”. Assim
como Germani (2010, p.291), entendemos que o caráter que envolve esses
movimentos é:

Aparentemente, contraditório, mas como parte do mesmo processo,


identifica-se a emergência e consolidação dos movimentos sociais no
campo, enquanto forças políticas de transformação social. Em especial, o
esforço empreendido pelos trabalhadores rurais sem terra para ‘entrar’ na
terra, como, também, organicidade dos povos e comunidades tradicionais
para retornar e/ ou permanecer nas terras que ocupam há muito tempo
através da luta e resistência pelo reconhecimento legal dos seus territórios,
legitimados historicamente pelo uso para reprodução material e imaterial da
vida.

Sobre a proximidade entre movimentos de agricultores e movimentos


quilombolas, Muller (2006, p.159-160) diz que essa é uma prática recorrente em
outras áreas quilombolas do país:

Em Sapê do Norte, no Espírito Santo, o movimento quilombola mantém


estreita relação com o Movimento de Pequenos Agricultores Rurais; em
Alcântara, no Maranhão, representantes do Movimento dos Agricultores
Sem Terra participaram, em dezembro de 2005, do Fórum em Defesa do
Território Étnico de Alcântara. Também em Alcântara, o Sindicato de
Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais – STTR sempre apoiou a causa
quilombola da mesma forma que a recíproca é verdadeira.

Dito isso, alguns elementos são utilizados para ressignificar o sentido de


pertencer a São Joaquim, dentre eles, a aproximação de movimentos de agricultores
e movimento quilombola24, a relação familiar, as atividades empreendidas no espaço
agrário, a cor, a relação com o passado escravista e a positividade do pertencimento
étnico. Se antes era considerado pejorativo ser descendente de escravizado, passou
a ser motivo de orgulho e sinônimo de luta para uma parcela dos moradores, como
podemos observar em alguns depoimentos aqui utilizados, em que são ressaltadas
características de fenótipos, como a cor, e quem é considerado como tendo sido
escravizado no passado tornou-se um símbolo de heroísmo. Por outro lado,

24
Membros que se afirmam quilombola e assentado. É a relação existente entre a comunidade negra
estudada, que reivindica um status quilombola, e os indivíduos de alguns assentamentos rurais.
46

veremos que algumas pessoas não se identificam enquanto quilombolas, porque


não querem ser tidas como negras ou descendentes de escravizados. Também
veremos a necessidade de afirmação de que todos são “parentes” e que sempre
trabalharam com a terra.
De acordo com Barth (2011), os grupos étnicos são definidos pelos próprios
sujeitos, através de categorias de atribuição e identificação eleitas por eles mesmos,
pois não é o isolamento geográfico que define um grupo étnico. Portanto, são
formados por fronteiras fluidas, constituindo, através do dinamismo dessas
fronteiras, um tipo de organização social com “um grupo de membros que se
identifica e é identificado por outro como se constituísse uma categoria diferençável
de outras do mesmo tipo”. (BARTH, 2011, p. 190).
As fronteiras avançam ou recuam, a depender das necessidades do grupo.
“Elas se estendem ou contraem em função da escala de inclusividade na qual se
situam e da pertinência, localmente situada, de estabelecer uma distinção Nós/
Eles.” (POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, J, 2011, p.158). Sendo assim, “[...] não
é o isolamento que cria a consciência de pertença, mas ao contrário, a comunicação
das diferenças das quais os indivíduos se apropriam para estabelecer fronteiras
étnicas.” (POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, J, 2011, p.40).
Logo, a comunidade em questão passa por um processo de
“requilombamento”, que consiste, segundo Carneiro (2008, p.2), em “estratégias
políticas das comunidades negras rurais, buscando os elos perdidos de suas origens
ou os processos identitários coletivos para alcançarem a titulação de suas terras”.
Simultaneamente à valorização da memória e dos laços de parentesco, há a
tentativa de resgate das histórias da escravidão e tradições, vistas pelas lideranças
locais como sustentáculo para a titulação do território reivindicado. Nesse ínterim,
algumas figuras emblemáticas são constantemente evocadas, como poderá ser visto
adiante.
Portanto, os depoimentos proferidos demonstram que a identidade coletiva,
outrora, era baseada em laços de parentesco e na identidade campesina. Todavia,
através do fortalecimento da identidade étnica, para embasar a reivindicação
territorial, o grupo passou a se reconhecer, principalmente, enquanto quilombo,
elegendo mecanismos de distinção para legitimar o pertencimento. Para Muller
(2005).
47

De certa forma, a luta que os levou à busca de um outro tipo de


reconhecimento viabiliza uma forma de leitura positiva da identidade negra
que possuem, ao mesmo tempo em que assegura a atenção do Estado às
necessidades que advêm do segmento camponês. Aliás, nesse sentido a
demanda de reconhecimento originou-se, em parte, da busca da
preservação do sentimento de “campesinidade”, que só pode ser
assegurado, neste momento, com a conquista de um espaço político que
comporte a diferença.

Por isso, nesse processo, ganhou força a imagem do Sr. Bibiu como um elo
do grupo com o período da escravidão; a da Sr.ª Ercília Salgado Vieira, a quem
coube o título de matriarca da comunidade, para exaltar questões ligadas ao
parentesco; e a de Laudionor Santos para representar questões ligadas ao trabalho
com a terra.

1.5 A MATRIARCA ERCÍLIA, O ESCRAVIZADO BIBIU E O LAVRADOR


LAUDIONOR

Como dito, a nossa atuação no campo se deu de modo a identificar


elementos fortalecedores e mantenedores da identidade social do grupo. Para isso,
a pesquisa foi apoiada em dados da memória social e houve a tentativa de entender
quais os critérios utilizados para eleger quem são considerados “os de dentro” e
quem são vistos como “os de fora”. As figuras de Bibiu, Ercília e Laudionor conferem
distintividade e união ao coletivo, pois são personagens constantemente evocados
no processo de construção da identidade quilombola.
A matriarca Ercília Santos teve 11 irmãos e 13 filhos, incluindo Robério, Oscar
e Maria Santos, que estão entre os nossos entrevistados. Nasceu no dia 10 de abril
de 1927 e veio a falecer em 26 de agosto de 2012. Em sua memória, foi gravado o
documentário: São Joaquim de Paulo - Uma História de Resistência25. Nesse vídeo,
a senhora relata que sua mãe morreu jovem e que ela teve que cuidar dos irmãos
pequenos. Talvez venha desse fato a nomeação de Ercília como a matriarca da
comunidade, assim como das ações praticadas por ela em vida, como a doação do
terreno para a construção do posto de saúde local. Na casa onde Ercília morou, há a

25
https://www.youtube.com/watch?v=muDoainv-Zs
48

especulação de se construir a igreja católica ou transformá-la em museu, como


forma de homenagear a matriarca. As duas opções serão votadas em assembleia.
Sr. Calixto ou Bibiu nasceu e morreu na antiga Fazenda Casa de Telha. De
acordo com os demais moradores, tinha problemas mentais e foi escravizado
durante todo o período em que viveu. Há relatos de que Bibiu trabalhava e tinha
como pagamento apenas as vestimentas e comida. E também de que era agredido
fisicamente.
Apesar de Bibiu ser bastante reconhecido por um grande número de
indivíduos da comunidade, o Sr. Esmeraldo não partilha a imagem do homem dessa
forma. E nos disse que, no lugar, nunca houve escravidão. Algumas outras pessoas
lembram o que viveram no passado e, mesmo não sendo a escravidão clássica,
classificam a forma como eram tratados nas relações trabalhistas como escravista.
Como no caso de Seu Zé:

Luciene Santos (LS) – O que é que acontece: no tempo mesmo da


escravidão, tinha aqueles senhores que tinham os escravos, mas
‘apanhava’ demais e ‘fugia’. Aqui em Caetité tinha aquele senhor que tinha
muitos escravos, apanhavam muito e ‘saía’ fugido.
Seu Zé (SZ) – Eu mesmo saí da fazenda fugido.
LS – Ele apanhou na fazenda.
SZ – Eu posso dizer que fui escravo, porque na fazenda onde eu fui criado,
aconteceu que eles ‘batia’ muito na gente. Eles marcavam a gente...

Por isso, mesmo tendo trabalhado no pós-abolição, Bibiu é considerado


escravizado pela maioria dos habitantes de São Joaquim de Paulo.
Laudionor Santos, marido de Ercília Salgado Vieira, é considerado a pessoa
que deu o pontapé para a reivindicação do território. De modo que seu nome é
sempre citado nas entrevistas e aparece relacionado ao exemplo de homem
trabalhador da terra. Ele faleceu no dia 19 de janeiro de 1993, sem ter o sonho de
titulação do território realizado. Após a morte de Laudionor, o filho Robério assumiu
a liderança na luta de recuperação das terras ancestrais, empreendida pelo pai. As
imagens desses três personagens são utilizadas pela comunidade para auxiliar na
eleição dos “de dentro” e dos “de fora”.
49

1.5.1 Identidade – “Nós ‘tudo’ aqui ‘é’ quilombola” X “Eu não sou ‘tirombola’”

A reconstrução identitária reforça o sentimento comunitário, porém, podem, a


partir desse processo, emergir contradições internas expressas entre os que se
autodenominam quilombolas e os que assim não se reconhecem. Nesse contexto,
foi possível perceber que o envolvimento político não se dá por todos os membros
da comunidade, mas sim, por algumas pessoas que são consideradas as lideranças
e os frequentadores das reuniões. Essas pessoas se identificam como quilombolas.
A maior evidência do processo de agenciamento de identidade e da aversão
à ancestralidade escravista foi constatada com a entrevista do Sr. Esmeraldo, que
nega a identidade quilombola e acusa o Sr. Robério Santos de induzir as pessoas de
São Joaquim a se reconhecerem enquanto remanescentes e descendentes de
escravizados. Esmeraldo, de início, não quis participar da pesquisa, mas depois
relatou porque não se sente quilombola.

Esmeraldo (E) – Isso aí, pra explicar, só os ‘véios’ de outro tempo, que eu
já sei o que é que vocês estão querendo.
Lourinha (L) – E o que é que nós estamos querendo?
E – Vocês estão querendo ‘descavar’ os ‘véio’, do tempo passado. Eu não
sei disso! Eu ‘tô’ com minha cabeça aqui... Vocês ‘tão’ querendo saber
quem foi dono disso aqui, quem ‘num’ foi... dos ‘tirombolas’...
L – E você não é quilombola não?
E – Eu? Eu não!
L – Você não mora dentro do quilombo?
E – Eu ‘num’ moro dentro... Eu moro aqui... Que negócio de quilombo! Não
tenho explicação.
L – Sim, mas você não mora dentro do quilombo não?
E – Quilombo?
L – Sim.
E – Eu não!
Poliana Reis (PR) – Você não quer me dizer por que não é quilombola?
E – Eu não! Quilombo... Eu sei lá que diacho é quilombo!
Marido de Lourinha (ML) – Quilombo ‘é’ os quilombolas!
E – Eu não... Quilombola é causa de índio, é isso, é aquilo...
PR – De índio?
E – É o que vocês estão querendo saber...
L – Meu marido que não é nascido aqui, ele se considera um quilombola.
E – Olhe, eu vou dizer a vocês: eu não sei explicar a vocês nada.
PR – Não, né?! Então, obrigada, Sr. Esmeraldo.
E – Eu não

Além de negar ser “tirombola”, ele desqualifica a imagem de Bibiu, tido pela
comunidade como o caso mais emblemático de morador escravizado de São
Joaquim de Paulo.
50

PR – De escravo, o senhor não quer falar também não?


E – Escravo? Não conheci escravo nenhum.
PR – Não conhece não, não é?
E – Negócio de escravidão, eu não sei responder, que eu não nasci na
escravidão.
PR – Não nasceu?
E – Eu nasci na liberdade! Eu nunca fui escravo.
ML – Nem nunca viu ninguém ser escravo aqui?
E – Eu não! Tinha uns escravos, de primeiro... Se tinha, se acabou, que eu
nem vi.
L – Quer dizer que tu, com essa idade, não conheceu nenhum escravo e
eu, na minha idade, conheci escravo?
E – Quem foi escravo?
L – Bibiu! Bibiu morreu escravo aqui, Seu Esmeraldo. Todo mundo sabe
disso.
E – Mas Bibiu foi criado lá pra casa de Tel [Telha]...
L – Então! E ele foi o quê? Foi um escravo!
E – Bibiu não foi escravo não. Foi um ‘pumbremático’, não sabia de nada.
L – Oh, Jesus! Por isso mesmo que ele era escravo.
E – Bibiu não conhecia ninguém, não sabia o que era nada... Bibiu era um
tolo aí, não sabia nem pensar nada. Era um homem que não sabia
conversar nada, nada... Era um bestão aí, andava aí, não sabia falar nada.
Não sabia nada.
ML – Pois eu sou escravo. Ou sou quilombola e descendente de escravo.
E – Pois eu não. Trabalhei na minha liberdade.
L – Até hoje é escravo, Esmeraldo, de um jeito ou de outro, nós somos
escravos.
PR – O senhor trabalhava com o quê?
E – Trabalhava aí pra todo mundo, eu trabalhava.
PR – Na roça?
E – Era na roça. Eu sou nascido e criado aqui dentro, trabalhando na roça.
Trabalhava uma semana pra um, uma semana pra outro, um dia pra um e
um dia pra outro. Mas negócio de escravidão, não teve não.
PR – Tá bom... Então, vamos, não é?
L – Quem ‘é’ aqueles ali?
E – Aquela ali é a mãe de Maria e o pai.
L – Nasceu e se criou aqui na comunidade?
E – Né daqui não. Foi nascido e criado em São Bento. Negócio de
‘tirombola’, eu não sei não. Eu não mexo com isso! Não ganho nada nisso.
Nada, nada. Nunca quis nada disso.
L – Mas por que você nunca ganhou?
E – Eu nunca recebi...
L – Mas por que você nunca recebeu?
E – Robério inventou um negócio aí e aqui e acolá. Nunca recebi nada, nem
de prefeitura, nem de ‘tirombola’. O que eu recebo aqui é do meu esforço.
L – Mas essas caixas aqui no seu terreiro já é um projeto dos quilombolas
[referindo-se à cisterna do Programa Água para Todos]. Essa caixa aí que
você tem... Foi um projeto que a gente correu atrás.
E – Esse projeto aí não é quilombola. Isso aí não é quilombola não...
L – Não, não é não? [fala com desdém].
E – Foi o governo
L – Ah, sim... Nós que não ‘corra’ atrás, que vai ‘vim’.
E – O quê? Não foi de maneira nenhuma. Que esse projeto aqui veio do
governo. Quem fez foi o governo. Eles ‘falou’ pra nós, que ‘veio’ aqui pra
fazer pelo governo. Não é negócio de ‘tirombola’, não, senhora.
51

A recusa em ser pesquisado é um dos direitos daqueles que fazem parte do


objeto de pesquisa, entretanto, o “não querer falar” pode informar mais do que a
“aceitação” em participar do estudo. Esse acontecimento, todavia, torna-se um
desafio para o cientista, que tem que garantir um caráter ético ao trabalho realizado.
Refiro-me à ética universal, à qual alude Freire (2011, p.17-18), aquela enquanto
indispensável à convivência humana:

Da ética que condena o cinismo [...], que condena a exploração da força de


trabalho do ser humano, que condena acusar por ouvir dizer, afirmar que
alguém falou A sabendo que foi dito B, falsear a verdade, iludir o incauto,
golpear o fraco e indefeso, soterrar o sonho e a utopia, prometer sabendo
que não cumprirá a promessa, testemunhar mentirosamente, falar mal dos
outros pelo gosto de falar mal. A ética de que falo é a que se sabe traída e
negada nos comportamentos grosseiramente imorais, como na perversão
hipócrita da pureza em puritanismo. A ética de que falo é a que se sabe
afrontada na manifestação discriminatória de raça, de gênero, de classe.

Foi essa a ética buscada quando utilizamos os dados fornecidos por


Esmeraldo, que nos permitiu utilizar a sua recusa, mas não quis falar sobre a
questão quilombola. Portanto, esse acontecimento se caracterizou como um diálogo
e não como uma entrevista.

1.5.1.1 “Eu não sou do time não: entre nós, eles!” Minha identidade quilombola

Em dados momentos, houve reclamações de alguns entrevistados por não


estarem “por dentro” da questão quilombola e pela ausência de convite para as
reuniões da Associação. Como pode ser visto no relato da Sr.ª Maria Alves de
Almeida, que, ao surgir o tema sobre a comunidade ter uma identidade quilombola,
teve a seguinte reação:

Maria Alves Almeida (MAA) – Já ouvi falar! Só que eu não faço parte.
Poliana Reis (PR) – Não faz parte por quê?
MAA – Porque eles nunca me avisaram pra participar de nada. Vejo falar,
mas não sou do time não [risadas]. Moro na comunidade, mas nunca me
‘convidou’ pra nenhuma reunião, nem nada.
PR – Mas a senhora acha que aqui é uma comunidade quilombola?
MAA – Acho, porque eu vejo o movimento deles. Só pode ser, né?
52

No discurso de outras pessoas, ao se afirmarem quilombola, ficou explícito a


influência das lideranças comunitárias. Como dito, a impressão foi a de que os
indivíduos daquele lugar sempre estiveram ligados pela questão do parentesco e
pela identidade campesina.
Após o processo de agenciamento de identidades, houve a construção do
“ser quilombola” e a tentativa de resgate da memória escravista, ou seja, a
identidade passou a ser étnica. Tal afirmativa pode ser comprovada a partir de três
frases recorrentes: 1. “Aqui, todo mundo é parente.”; 2. “Aqui, todo mundo sempre
trabalhou com a terra, sempre viveu e vive da terra.”; 3. “Agora, estamos sabendo
que somos quilombolas.”. Na entrevista de Valdelice Salgado, existem dois trechos
bastante esclarecedores:

Valdelice Salgado (VS) – Eu gosto de morar aqui demais, moça. ‘Cê’ é


doida?!
Poliana Reis (PR) – Por quê?
VS – Porque eu gosto. Aqui, eu tenho meus parentes ‘tudo’ perto de mim.
Tudo aqui é parente! Estranho, aqui, é só essa vizinha ali.
PR – É? Tem pouco tempo que ela mora aqui?
VS – Tem mais de 20 anos que ela mora aqui.

Nesse primeiro depoimento, é perceptível a identidade e a relação com os


parentes que formam a comunidade. A vizinha há mais de 20 é considerada
estranha ao grupo (eles), pelo fato de não fazer parte da família (nós). Já o segundo
trecho da entrevista, transcrito abaixo, traz muitos elementos para análise, tais
como: o início do reconhecimento de membros do grupo enquanto quilombola, o
lugar do fenótipo nesse processo, a importância da Associação e alguns tipos de
vantagens adquiridas devido à assunção quilombola pelos membros da comunidade
negra rural.
53

PR – Você acha importante ter uma associação?


VS – Eu acho. Em primeiro lugar, porque nesse negócio dos quilombolas,
ajuda muito. Que tinha uns meninos que, às vezes, precisava fazer um
curso, né? Hoje a gente vai ajeitar o ‘Bolsa Família’ e eles perguntam se
nós ‘é’ quilombola.
PR – É diferente o valor recebido?
VS – Não! O atendimento que é diferente. Lá, os quilombolas têm
prioridade. Eu fui lá pra recadastrar e um primo meu, Robério... Sabe quem
é Robério?
PR – Sim.
VS – Ele falou: ‘Cê’ fala que é quilombola, se perguntar diz que é
quilombola’. E eu sou quilombola. Não participo tanto das reuniões, mas
sou.
PR – E desde quando vocês começaram a se reconhecer enquanto
quilombolas?
VS – Quilombola? Foi... Não tem muito tempo não. Eu lembro que eu tive o
meu menino mais novo e já tem 12 anos que eu mudei pra aquela casinha.
E Robério chegou fazendo uma entrevista com minha mãe. Falou: ‘Oh,
Maria, você sabia? Vocês agora ‘é’ quilombola. Vocês não ‘é reconhecido’
como quilombola, mas vocês ‘vai ser conhecido’ como quilombola. E que
‘vai vir’ muitas coisas boas pra vocês, ainda. Que os quilombolas ‘vai trazer’
pra vocês. Vai ter reunião pra vocês ‘participar’, ‘cês vai’ associar’. Não sei
se minha mãe associou, mas meu esposo associou. Do meu conhecimento,
assim, que eu lembro, tem uns 12 anos.
PR – E pra você, o que é ser quilombola?
VS – Eu não sei não. O povo fala que é só negro que é quilombola, não?
PR – Você acha?
VS – Eu acho que é [...]. Quem tem a corzinha mais clara, aqui, não quer
ser quilombola não. Ninguém quer ser quilombola se é clarinho, aqui, não.
Quilombola, aqui, é só os negros. Disse que tinha um lugar aí, eu não sei se
é na África, não sei onde é, que só tem negro.

A constatação: “Quem tem a corzinha mais clara, aqui, não quer ser
quilombola não. Ninguém quer ser quilombola se é clarinho, aqui, não. Quilombola,
aqui, é só os negros.”, demonstra que a cor continua a ser um dos elementos
diferenciadores para determinar quem é ou não do grupo. No sentido de que
algumas pessoas que não se consideram negras, automaticamente, também não se
identificam enquanto quilombolas. E as que se consideram quilombolas, positivaram
o “ser negro”. As lideranças do lugar apoiam essa última atitude e a incentivam.
Segundo Reis (2003, p.18), existem algumas interpretações que explicam a negação
identitária para com a descendência escravista:

O fato de moradores não se perceberem como descendente de escravos


pode ser compreendido de diversas maneiras. Uma delas está ligada à
forma de tratamento dada aos escravos. Eles não eram vistos como
pessoas, mas como ‘peças’ ou ‘coisas’. Eram submetidos a maus-tratos, à
violência, à crueldade e à tortura, prevalecendo um total desrespeito à sua
dignidade. Diante da posição a que os escravos eram violentamente
submetidos, é compreensível que muitos moradores dessas comunidades
neguem a sua descendência.
54

Mais uma vez, foi reafirmada a percepção de que para os líderes da


comunidade a existência de uma identidade quilombola está extremamente
vinculada às práticas do passado, como se os membros tivessem que conservar
atitudes ou manter uma continuidade cultural e social. Exemplo disso são os apelos
de Luciene Santos na primeira reunião do ano, quando a liderança pede para que
haja um retorno da cultura antiga em São Joaquim de Paulo, como se fosse possível
um retorno à história para a garantia de um futuro.
Portanto, a perda e a tentativa de reaver o território constituem o processo de
T-D-R dos sujeitos, caracterizados por uma, também, “criação/ manutenção” da
identidade quilombola. No “novo/ antigo” território, os camponeses passam a
ressaltar elementos socioculturais, na tentativa de reforçar ou transformar e
comprovar as suas memórias do passado como um atual modo de vida. Parte da
comunidade de São Joaquim de Paulo reivindica, sobretudo como estratégia
política, uma identidade quilombola, diante da conjuntura econômica e social do
espaço reivindicado. Cabe ressaltar que essas constatações não descaracterizam a
importância dos laços identitários e não deslegitimam a luta quilombola. Pelo
contrário, reforçam a importância da ligação mantida com o lugar.

1.6 A DELIMITAÇÃO “SÃO JOAQUIM 1” E “SÃO JOAQUIM 2”: “COMO ASSIM?


ISSO É NOVO. NÃO EXISTE DOIS, É TUDO ‘SÓ’ UM SÓ...”

Durante os trabalhos de campo, houve referência a uma divisão da


comunidade em “São Joaquim 1” e “São Joaquim 2”. Buscamos saber os
parâmetros que justificam a cisão. Robério Santos declarou que essa é uma divisão
arbitrária e que tem como mentor o primo, o Sr. Esmeraldo. “São Joaquim 1”
representaria as pessoas que assumiram a identidade quilombola e “São Joaquim
2”, as que não se reconhecem em tal coletivo. Nem todos os moradores sabem o
que significa a divisão do São Joaquim e utilizam a distinção territorial de maneira
natural, como no caso de Dona América de Jesus:
55

América de Jesus (AJ) – Praticamente, é ‘só’ um só, mas eles colocaram


‘São Joaquim 1’ e ‘São Joaquim 2’.
Poliana Reis (PR) – E essa divisão existe há quanto tempo?
AJ – Pouco tempo. Por volta, assim, de oito anos.
PR – E qual o motivo da divisão?
AJ – Isso não sabemos!

A área chamada de “São Joaquim 2” se refere à parte mais alta do lugar e, no


passado, era conhecida como Bagaço. Recebia esse nome porque no espaço havia
máquinas utilizadas para o beneficiamento da cana-de-açúcar, de modo que existia
um acúmulo do bagaço que sobrava da fruta. Assim, o local recebeu esse apelido.
Fernanda Salgado alega morar no “São Joaquim 1” e disse que esse espaço
vai do posto de saúde até o início do “São Joaquim 2”. A divisa entre um e outro é
dada por uma fazenda, como pode ser visualizado no mapa. Dona Arlete e Seu
Laudilino também expuseram que essa é uma divisão nova e tem por volta de oito
anos, segundo os dois entrevistados. Ou seja, a divisão existe desde o inicio do
processo de titulação do território como quilombola.

1.7 NA TENTATIVA DE RETORNAR AO PASSADO, AS LEMBRANÇAS DAS


FESTAS ANTIGAS SÃO FORTES

Quando o assunto é festa, os rituais são relembrados com saudosismo pelos


antigos. A mais citada foi a denominada Terno de Reis.

Dona Arlete (DA) – Acompanhei os ‘reizeiros’. Batiam nos ‘tambor’!


Poliana Reis (PR) – A senhora gostava?
DA – Oxen... Gostava! Tinha um negócio de jogar toalha. O Terno de Reis
saía no dia 1 de janeiro, mas antes tinha o ensaio. Ensaiava pra no dia 1
cantar nas casas, geralmente, à noite. Saía meia noite, na virada. Já tinha
as casa escolhidas e ia ‘tudo’ caladinho e 12 horas batia os couros, aí o
pessoal levantava. Tinha as chulas, que ‘contava’ o nascimento do Menino
Jesus, os três reis magos. E parava e dava viva aos donos da casa... a
dona da casa era a flor da melancia. Viva o Santo Reis! Depois começava o
Samba de Roda. Hoje, eu não sei mais não. Tinha a contradança também.

No dia 6 de janeiro, era celebrada a reza e logo depois, a festa profana. Os


novos estilos de músicas, como o Arrocha, foram criticados durante as entrevistas.
56

Robério Santos – Que saudade da contradança, a sola dos pés fica


coçando pra fazer. Batia no tambor, fazia que ia e voltava e cada um fazia
um passinho. E a gaita ‘painhando’... Era bonito! Esse povo de hoje não tem
a nossa sorte não. Não tinha maldade, só irmandade e companheirismo.
Quando a lua tava bonita, aí dançava na roda, jogava uns versos. Jogue
uns versos pra nós, Dona Arlete!

E ela cantou alguns versos: 1. “Quem for daqui do São Joaquim, dá um repico
no sino, dá um beijo em Estela, nem que ela esteja dormindo”; 2. “Meu limão, meu
limoeiro, meu pé de jacarandá! Uma vez, esquindô lelê, outra vez, esquindô lalá.”. E
continuou: “Aí outra mulher vinha e repetia. Aí eu entrava de novo e jogava outro
verso. Como é? A gente esquece! Não lembro mais não! Hoje as festas ‘é’ tudo de
Arrocha. Não presta mais não!”. Robério concordou: “Hoje não presta mais não.”.
Alguns demonstram receio em participar de novas festividades e afirmam que
muitas comemorações não ocorrem mais, devido ao avanço da violência. “As festas
aqui, já ‘teve’, mas como é que faz festa com tanta coisa? Com tanta ‘matação’ de
gente”, disse Dona Maria Alves. Segundo Fernanda de Jesus Salgado, “não tem
mais, porque tem muita violência. Tinha festa junina, São Pedro. Não tem mais e faz
falta”. Maria Alves deu sinais de incômodo ao falar sobre datas festivas. Talvez, por
ser evangélica e os dias comemorativos estarem extremamente relacionados ao
calendário católico. Como a Festa do Padroeiro da comunidade, “São Joaquim
Santana”, que ocorre no dia 27 de julho. As entrevistas forma feitas pouco depois do
dia santo e Lourinha elogiou a solenidade que aconteceu em São Joaquim de Paulo.

1.7.1 As cantigas

Os trabalhos, no passado, eram embalados pelas cantigas. Desde as práticas


coletivas nas roças, nas casas de farinha, até o ato de lavar roupas na margem dos
rios. Todas essas atividades eram realizadas ao som das músicas que, na maioria
das vezes, retratavam o cotidiano. O entoar das “cantigas de trabalho” era uma
característica feminina, apesar de também serem cantadas pelos homens. Maria
Santos e Luciene Santos relembram, saudosas, as melodias do passado.
57

Poliana Reis (PR) – E tinha alguma cantiga, Dona Maria?


Maria Santos (MS) – Tem! Manda Robério cantar aí...
Robério Santos (RS) – Até... [cantando]. Tudo é Robério [risos]! Eu tô
acordado ‘nim’ vocês. Tudo é Robério [risos]!
PR – Cante pra gente, Dona Maria!
MS – Só Robério! Eu não sei não...
PR – A senhora sabe, que eu estou vendo.
RS – Lembre aí. As cantigas de trabalho, né? Era chamada cantiga de
26
trabalho, outra hora era chula e que naqueles ‘adjunto’ , nós chamava de
chula de boi. Vamos cantar um boi! Um tira um boi, o outro tira um boi, aí
nas cantigas de trabalho, isso acontecia, as mulheres ‘tinha’ suas rodas de
samba, de música, de cantiga, isso acontecia nas casas de roda. Olhe! O
nome, naquela época, o homem sem conhecimento, sem estudo, nós
‘chamava’ as fábricas de farinha daquela época, tudo rústico, de ‘caderoda’.
Nós queríamos expressar, ali dava a entender o seguinte, casa da roda, a
roda era a engenhoca de triturar a mandioca, de moer a mandioca.

[...]

MS – Ia lavar roupa e cantava!


RS – Nas cacimbas!
LS – Nas cacimbas.
RS – Mutirão de mulheres reunidas, naquele ‘roupal’, muita roupa. Tudo
gramado e aí cantigas, aquelas mulheres passavam o dia cantando.
LS – Oh, Robério, eu falando com elas aqui, que hoje aqui não tem água.
Não tem!
RS – Sim!
LS – Porque lá pra cima, os fazendeiros ‘fez’ tudo.

Um dos motivos pela redução da prática de entoar as cantigas é citado por


Luciene Santos. Como dito, muitas mulheres cantavam à beira dos recursos
hídricos, no entanto, sem a água, perde-se esse espaço coletivo. Apesar disso, foi-
nos apresentada uma cantiga nova, que segundo os moradores é uma composição
dos membros da comunidade e que retrata a atual luta quilombola.

26
Tipo de mutirão para a realização da lavoura. Será explicado adiante.
58

Oh lelé, oh lalá!
Chega de sofrer, eu quero é libertar!
Oh lelé, oh lalá!
Chega de sofrer, eu quero é libertar!

Vou falar do povo negro


Corajoso e sabe amar
Que beleza!
Os quilombolas tão botando pra quebrar!

Oh lelé, oh lalá!
Chega de sofrer, eu quero é libertar!
Oh lelé, oh lalá!
Chega de sofrer, eu quero é libertar!

O projeto majestoso
Que chegou pra libertar
Faz a ponte formiguinha
Faz a gente se ajudar
No sentido coletivo
Para juntos resgatar
Os direitos...
Não tenha medo, pois a lei vai amparar!

Oh lelé, oh lalá!
Chega de sofrer, eu quero é libertar!
Oh lelé, oh lalá!
Chega de sofrer, eu quero é libertar!

1.7.2 A Religiosidade da comunidade

Encontramos três tipos de manifestações religiosas, a saber: catolicismo,


instituições evangélicas e candomblé. Os católicos almejam a construção da igreja e
lamentam pelas poucas missas que ocorrem no local. Os evangélicos, da
Congreção Cristã do Brasil, fizeram reclamações sobre os dias comemorativos
fazerem referência somente ao catolicismo e tivemos contatos com pessoas que
antes eram evangélicas, mas após a construção da identidade quilombola,
passaram a ser candomblecistas. O motivo alegado é o de que, só a partir desse
momento, vieram saber a verdadeira história do seu povo negro. Segundo Luciene,
“tinha muita gente de outras ‘religião’ porque não conhecia nossa história, moça”. A
Umbanda foi citada por Robério Santos, que também falou sobre a perseguição que
sofre o candomblé:
59

Robério Santos (RS) – Por que eu falo isso? Porque a gente vai precisar
‘de’ falar da crença, religiosidade e tal... Nós tínhamos aqui candomblés e
sessões espíritas... disse que tem uma separação, eu ‘num’ estudei, ‘num’
sei fazer essas separações, aí tinha uma forma de candomblé, uma forma
de crença e veio também a Umbanda. Tudo tinha aqui...
Poliana Reis (PR) – Quando você diz tinha, é por que hoje não tem mais?
RS – Eu te agradeço até... Alguém tinha que fazer essa correção! Nós ainda
temos Umbanda aqui! O candomblé ainda reina por aqui! Mas é de uma
forma até restrita, porque as perseguições sempre foram constantes. A
diferença, hoje, no sentido perseguição, é porque tem uma camada de
nossos irmãos evangélicos, tem uma parte deles e isso eu não vou falar
com ódio nem rancor! São nossos irmãos! Não estou falando por uma
questão de ressentimento não. Estou falando de uma realidade do hoje.
Então, quem achou de seguir aquele homem lá, o Martinho Lutero, aí acha
que perdeu tempo ou acha que não valeu a pena viver da forma que
viveram, mas eu, como não acho que devo ser seguidor de Lutero, acho
que ainda tenho que estar com minha trilha de fé, que aprendi no passado,
sem querer ‘tá’ fazendo mal a ninguém, mas que na verdade, para mim, o
final de tudo é o Senhor Deus! [...] Cada um serve o seu Deus da sua
maneira, que acredita, mas voltando, só pra concluir... tinha aqueles
remédios caseiros, que permanecem no quintal aí... Até dos nossos irmãos
evangélicos, se você chega no quintal deles, você acha plantio de...
Luciene Santos – É! É sim! Acha mesmo.
RS – Das ervas medicinais, tá? O remédio, as ervas medicinais naturais,
aqui elas sempre ‘continua’, eternamente, valorizadas e acreditadas, porque
a gente costuma fazer chás e dar certo, não é? Porque abandonar nossas
ervas? Ah! A faculdade tá aí... O meu filho, o meu neto, vai fazer faculdade,
medicina e tal... Continue, parabéns! Abrir mão dos nossos princípios, de
nossas raízes? Jamais! Não tem doutor, com todo respeito que eu tenho
que dar, não vai haver doutor nenhum pra chegar no quilombo.

Portanto, também na religiosidade da comunidade, encontramos o processo


de construção identitária.

1.8 TERRITORIALIZAÇÃO: UM PROCESSO DE REORGANIZAÇÃO SOCIAL EM


SÃO JOAQUIM DE PAULO

Oliveira (1998, p.56) analisa a territorialização como um movimento pelo qual


uma comunidade se modifica, em função de formular uma identidade coletiva. A
reestruturação leva em conta as referências culturais, também relacionadas ao meio
ambiente e costumes religiosos da população:
60

O que estou chamando aqui de processo de territorialização é, justamente,


o movimento pelo qual um objeto político-administrativo — nas colônias
francesas seria a “etnia”, na América espanhola as “reducciones” e
“resguardos”, no Brasil as “comunidades indígenas” — vem a se transformar
em uma coletividade organizada, formulando uma identidade própria,
instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação, e
reestruturando as suas formas culturais (inclusive as que o relacionam com
o meio ambiente e com o universo religioso). E aí volto a reencontrar Barth,
mas sem restringir-me à dimensão identitária, vendo a distinção e a
individualização como vetores de organização social.

Para o autor, a noção de territorialização é definida como um processo de


reorganização social que implica:

a) A criação de uma nova unidade sociocultural, mediante o estabelecimento


de uma identidade étnica diferenciadora

Podemos perceber, por parte de Robério Santos e das atuais representantes


da Associação, em São Joaquim, a tentativa de formação de uma unidade
sociocultural, ao incentivarem os sujeitos a assumir uma identidade étnica
diferenciadora (quilombola).

b) A constituição de mecanismos políticos especializados

A formação da Associação de Agricultores Familiares de Quilombo de São


Joaquim de Paulo, bem como a tentativa da realização de uma cooperativa, por
parte das lideranças femininas, que gere emprego e permita organização e
empoderamento para as mulheres, são exemplos de mecanismos políticos
especializados na comunidade estudada.

c) A redefinição do controle social sobre os recursos ambientais

Uma das reivindicações dos moradores de São Joaquim é a de que os


recursos hídricos e a área conhecida como Areal, por exemplo, saiam do poder dos
latifundiários e passem a ser controlados a partir de regras próprias, criadas pela
coletividade.
61

d) A reelaboração da cultura e da relação com o passado

Representada pelos constantes exemplos utilizados por Robério Santos e


pelas representantes da Associação sobre o retorno cultural. Assim como com
relação às festas, à forma de se relacionar com os vizinhos, das relações de
trabalho e com os recursos naturais e o significado que dão ao lugar. De uma forma
geral, todas essas questões significam a reelaboração cultural que faz parte do
processo de territorialização da comunidade.
Uma importante contribuição para que se entenda o processo de
territorialização também está presente em Haesbeart (2005, p. 67-76), quando
afirma que:

A territorialidade, além de incorporar uma dimensão estritamente política,


diz respeito também às relações econômicas e culturais, pois está
intimamente ligada ao modo como as pessoas utilizam a terra, como elas
próprias se organizam no espaço e como elas dão significado ao lugar.

Sobre a relação singular existente entre as comunidades quilombolas e as


formas de territorialização, apropriação e uso da natureza, Almeida (2006 p.38-39)
observa que:

As múltiplas formas de apropriação e uso da natureza, designando


territorialidades específicas, convergem para o processo de construção do
território étnico das comunidades remanescentes de quilombos. Além de
requererem novos procedimentos de classificação oficial, elas consistem
numa conquista efetiva, historicamente consolidada, que não pode mais ser
ignorada técnica e juridicamente e por si mesmo perfila-se, em face do
conflito em jogo.

A territorialização, muitas vezes, é o resultado de relações conflituosas, pois


esse processo indica a interação ou embate com territorialidades já existentes ou
que surgem posteriormente. Segundo Silva (2012, p.3):

A sobreposição de territórios implica necessariamente em uma disputa de


poder. Desta forma, as comunidades quilombolas, ao se organizarem pelo
direito aos territórios ancestrais, elas não estão apenas lutando por
demarcação de terras, as quais elas têm absoluto direito, mas, sobretudo
elas estão fazendo valer seus direitos a um modo de vida.

Muitos territórios quilombolas são, atéo presente, alvo de disputas e conflitos


de interesses, fato decorrente, muitas vezes, da localização, pois foram formados
62

em locais estratégicos, caracterizados, quase sempre, como áreas ricas em recursos


ambientais (biodiversidade). Ainda de acordo com Silva (2012, p.3):

Estes territórios são alvos de diversos conflitos e disputas, pois, via de


regra, são sobrepostos a remanescentes florestais, cobiçados tanto para o
avanço de monoculturas, como a do eucalipto e da cana-de-açúcar, ou
expansões urbanas, quanto para áreas restritas à preservação ambiental.

No processo de territorialização, a paisagem é constantemente alterada. Em


comunidades tidas como tradicionais, a espacialização de empreendimentos,
monoculturas, afeta os costumes, modo de vida e ações da coletividade. Em São
Joaquim, houve o avanço das duas formas citadas acima: a da cana-de-açúcar e,
posteriormente, a do eucalipto, além do café. Desse modo, o conceito de paisagem
pode ser compreendido como espaço de herança da acumulação dos tempos das
transformações societárias e naturais, por meio de suas cristalizações no espaço.
Ab’ Saber (2003, p.9) apresenta sua ideia de paisagem: “Na verdade, ela é
uma herança em todo o sentido da palavra: herança de processos fisiográficos e
biológicos, e patrimônio coletivo dos povos que historicamente as herdaram como
território de atuação de suas comunidades”.
Ao longo da sua formação, a comunidade passa pelos três processos
geográficos citados: T-D-R. Podemos percebê-los através de todas as reações e
resistências empreendidas pelo grupo. Para Fernandes (IN: REVISTA NERA, 2005,
p.28):

Os movimentos das propriedades dos espaços e territórios são: expansão,


fluxo, refluxo, multidimensionamento, criação e destruição. A expansão e/
ou a criação de territórios são ações concretas representadas pela
territorialização. O refluxo e a destruição são ações concretas
representadas pela desterritorialização. Esse movimento explicita a
conflitualidade e as contradições das relações socioespaciais e
socioterritoriais. Por causa dessas características, acontece ao mesmo
tempo a expansão e a destruição; a criação e o refluxo. Esse é o movimento
do processo geográfico conhecido como T-D-R, ou Territorialização–
Desterritorialização–Reterritorialização.

Dito isso, é importante reafirmamos que os elementos identitários devem ser


considerados na luta por reconhecimento das terras de uso comum. Em suma, para
se manter e se reproduzir, toda sociedade necessita de uma circunscrição espacial,
que é condição e condicionante da existência. Sendo assim, observamos que:
63

Sociedade e território, vê-se, são indissociáveis. Toda sociedade, ao se


constituir, o faz constituindo o seu espaço, seu habitat, seu território. Ao
contrário do pensamento disjuntivo que opera por dicotomias, como quer
fazer crer o ainda hegemônico pensamento eurocêntrico moderno, não
temos primeiro a sociedade (ou o espaço) e depois o espaço (ou a
sociedade) – sociedade e espaço. Na verdade, sociedade é espaço, antes
de tudo, porque é constituída por homens e mulheres de carne e osso que,
na sua materialidade corporal, não podem prescindir da água, da terra, do
ar e do fogo. O fato de que os homens e mulheres sejam seres que fazem
História e Cultura, animais simbólicos que são, não os faz deixar de ser
matéria viva. Toda apropriação material é, ao mesmo tempo, e não antes ou
depois, simbólica. Afinal, não nos apropriamos de nada que não faça
sentido, que não tenha significado. (PORTO-GONÇALVES, 2006, p.163).

Dessa maneira, a apropriação feita por uma comunidade que reivindica o


status de remanescente de quilombo não pode ser considerada apenas pelo viés
material, pois esse não ocorre sem o simbólico.
64

2 MONOCULTURAS (CAFÉ E EUCALIPTO): EFEITOS SOCIAIS EM


COMUNIDADES QUILOMBOLAS. EM MEIO AO CONFLITO, COMO FICAM OS
MARCOS TERRORIAIS?

Constantemente, a comunidade passa por um processo de (re) configuração


territorial. Além das investidas dos fazendeiros, que utilizam artifícios para o avanço
das terras, sendo, no passado, para as plantações de cana-de-açúcar e,
posteriormente, para implantação dos cafezais. Nos últimos anos, ocorre a
expansão da monocultura do eucalipto. A produção de monoculturas em
comunidades tidas como tradicionais influencia o modo de vida dos indivíduos e,
nesse processo, alguns marcos territoriais são, invariavelmente, afetados. Isso
ocorre quando são (re) funcionalizados, desconfigurados ou postos no terreno do
esquecimento, muitas vezes de forma proposital, para acelerar o processo de
expropriação das terras.
Para exemplificar a afirmação supracitada, temos, em São Joaquim de Paulo,
o antigo marco territorial conhecido com Salangó, onde, anteriormente, eram
realizadas atividades agropecuárias e extrativas. Atualmente, o espaço é
reivindicado pelos membros da comunidade, pois virou um campo de eucaliptos.
Além do Corredor da Jiboia, que servia de passagem, principalmente para o
cemitério, os moradores tem o acesso negado ou dificultado pelos donos dos
cafezais. Há ainda o brejo e demais recursos hídricos que, segundo relatos, pelo
fato de serem utilizados de forma inapropriada, apresentam características de
esgotamento. Também houve acusações de que os fazendeiros do café degradaram
algumas nascentes, como forma de pressionar a população para sair das suas
terras. E muito recentemente, os moradores sofrem ameaças quando retiram areia
do espaço conhecido como Areal. Representantes do IBAMA foram até o local para
apurar denúncias e alertaram que a areia não deve ser removida. No entanto, as
lideranças alegaram que essa prática é bastante antiga e que utilizam a areia para
aterrar pequenos terrenos, construção, reforma, dentre outros usos.
São Joaquim de Paulo não foi escolhida por mero acaso para ser o palco
dessas ações denunciadas, mas sim por possuir características necessárias à
reprodução dos monocultivos, tais como terras férteis e disponibilidade de
65

determinados recursos naturais. A região sudoeste apresenta potencialidades para a


implantação de atividades agropecuárias e silvícolas.

A existência de distintos geoambientes na Região Sudoeste da Bahia [...],


com diferentes tipos de solo e clima, permite que a Região apresente
amplas potencialidades para a implantação de uma quantidade diversificada
de explorações agropecuárias e silvícolas. A atividade silvicultora foi
retomada, levada pela retirada da cobertura vegetal nativa para a produção
de carvão e lenha. (COSTA; OLIVEIRA, 2007).

De acordo com as características geoambientais, o município de Vitória da


Conquista está inserido em área de tipologia climática classificada como semiárido,
subúmido a seco, e úmido a subúmido (SEI, 2007). Os tipos vegetacionais
existentes são floresta estacional decidual e caatinga árbórea, sem palmeiras (SEI,
2007). Na área, existe parte expressiva dessa vegetação, apesar do processo de
degradação sofrido com o decorrer do tempo. Além da tipologia vegetal indicada,
encontramos uma vegetação modificada pelas atividades antrópicas, a exemplo do
eucalipto que reveste o Salangó. Veremos, a seguir, como as monoculturas afetam o
cotidiano da comunidade estudada e o seu “calcanhar de Aquiles”: os marcos
territoriais.

2.1 MONOCULTURA: “PRODUÇÃO QUE NÃO É FEITA PARA SATISFAZER


QUEM PRODUZ” 27

Em São Joaquim, o desafio consiste em superar os conflitos gerados devido


às diferentes lógicas de uso e apropriação do espaço agrário, como no exemplo da
monocultura do eucalipto e dos cafezais, presentes concomitantemente no lugar. As
áreas onde estão os monocultivos eram utilizadas, no passado, pelas famílias, para
outras atividades, como pastagem, caça, agricultura de subsistência e rituais
religiosos. De acordo com as ideias de Porto-Gonçalves (2006, p.28), a monocultura
não visa satisfazer as necessidades locais:

27
Subtítulo baseado na citação de Porto-Gonçalves (2006).
66

[...] a monocultura revela, desde o início, que é uma prática que não visa
satisfazer as necessidades das regiões e dos povos que produzem. A
monocultura é uma técnica que, em si mesma, traz uma dimensão política,
na medida em que só tem sentido se é uma produção que não é feita para
satisfazer quem produz. Só um raciocínio logicamente absurdo, de um
ponto de vista ambiental, mas que se tornou natural, admite fazer a cultura
de uma só coisa.

É sabido que a monocultura é uma prática que afeta, sobretudo, comunidades


tradicionais, devido à forte relação dos seus membros com o lugar. Contudo, muitas
comunidades negras rurais, a exemplo da estudada, reagiram e resistiram à lógica
imposta pelo modelo de produção vigente e entendem o território como um bem de
uso comum28, assim como era no passado. Dessa forma, empreendem um processo
de resistência e reivindicação contra a atuação dos agentes externos. Uma das
maneiras é reforçar os laços de grupo e defender a forma de uso coletivo do
território. Segundo Almeida (2006, p.101):

O uso comum do território designa situações nas quais o controle dos


recursos básicos não é exercido livre e individualmente por um determinado
grupo doméstico de pequenos produtores diretos ou por um de seus
membros. Tal controle se dá através de normas específicas, instituídas para
além do código legal vigente, e acatadas, de maneira consensual, nos
meandros das relações sociais estabelecidas entre vários grupos familiares
que compõem uma unidade social.

Anteriormente à expansão das monoculturas, os moradores afirmaram que a


terra não tinha dono e, apesar da existência de lotes, o terreno não era cercado, e
sim dividido no formato de valetas, com um estilo de cerca que já foi mencionado
neste texto. Segundo Aurino Ferreira, “as terras eram divididas por uma espécie de
cerca, chamada vale. Furava o chão, abria a valeta e os animais não passavam”.
Esses eram criados por um método denominado de solta, que consiste em organizá-
los sem a necessidade de permanecerem presos e, mesmo assim, ser possível,
facilmente, identificar a quem se dava a propriedade do animal.
De acordo com os moradores, a lógica de uso do território nem sempre foi a
classicamente reconhecida em comunidades tradicionais, de espaços de uso
coletivo. Existiam espaços coletivos, como área de caça e onde ocorriam as
atividades extrativas; as casas de farinha, que mesmo tendo um proprietário, seu
acesso era destinado a toda a comunidade; o brejo e demais recursos hídricos.
Entretanto, as roças eram divididas em lotes, fato que se intensificou após o avanço

28
Mesmo com a existência de lotes, o território é reconhecido como de uso comum.
67

das cercas dos fazendeiros. Todavia, a maneira de produzir era coletiva, a exemplo
dos adjuntos ou roubos. Só que a atual configuração do espaço agrário, com a
atuação de outros sujeitos, ocasiona alterações nesse modo de vida e os adjuntos e
roubos não são mais práticas comumente utilizadas pelos membros da comunidade.

2.2 COMO ERAM TOCADAS AS ROÇAS ANTES DA CONSOLIDAÇÃO DAS


MONOCULTURAS DO CAFÉ E DO EUCALIPTO: OS “ADJUNTOS” E “ROUBOS”!

Os “adjuntos” ou “roubos” consistiam em um sistema de ajuda mútua na


execução de atividades na lavoura, por parte do grupo, para algum companheiro (a)
que estivesse passando por dificuldades ou impossibilitado de realizar as tarefas no
seu lote de terra. Esses métodos de trabalho também podiam ser executados para
um fazendeiro solicitante dessa prática coletiva, que tinha o intuito de obter
vantagens temporais e financeiras. No primeiro caso, ao perceber que uma
determinada família passava pela situação descrita, a comunidade se unia e, através
de trabalho, festa e cantiga, colocava em prática laços de solidariedade. Já no
segundo caso, os fazendeiros transformaram essa prática cultural em mais uma
forma de exploração dos trabalhadores e trabalhadoras.
Na entrevista coletiva, foi explicado como os fazendeiros se apropriaram
dessa prática criada pela comunidade e denominada “roubo” e passam a chamá-la
de “adjunto”. Às vezes, os próprios membros da comunidade utilizam os dois termos
como sinônimos.
68

Robério Santos (RS) – Pensando no social, eu agora vou pedir a vocês pra
colaborar, porque eu ‘tô’ falando demais. Vamos lembrar dos ‘adjuntos’!
Como é que as pessoas ‘tocava’ as roças? Porque não se tinha dinheiro,
não é? Dinheiro era uma coisa muito restrita nos bolsos dos quilombolas.
Vamos lembrar aqui, como é que a gente tocava as roças, que, inclusive,
até os fazendeiros, os latifundiários, senhores de engenho, eles ‘usava’ das
nossas práticas, usando nós próprios. Era uma prática nossa, mas eles
‘achava’ bom, eles viam que era bom, aí puxava pra lá, pra fazer plantio,
mas já estou falando... Fale! Fale por favor! Fale um pouco disso!
Aurino Ferreira (AF) – O ‘adjunto’... Foi nós que...
RS – Iniciativa nossa!
AF – Nós ‘fazia’ com 20 pessoas, 30, mais...
RS – Agora... Muito interessante...
AF – Tinha uma roça, limpava tudo em um dia. A gente foi crescendo e foi
crescendo e foi o tempo... Então, eles chegavam aqui e ‘pegava’ um
moreno desses...
RS – Moreno não! Me respeite, eu sou preto! Eu sou preto!
AF – ‘Cê’ vai procurar aí o pessoal todo, que eu vou fazer adjunto. Vou
matar um boi, vou comprar 50 litros de cachaça...
RS – Aí a negrada ia, ué!
AF – Pra nós ‘roçar’ uma manga lá.
RS – A negrada gostava da farra!
Poliana Reis – Uma manga! Qual tamanho tem uma manga?
AF – Um alqueire, dois...
RS – Uma manga! Mas o que é isso? Uma manga? Uma fruta?

Nesse momento, Robério fez um teste para verificar se reconhecería os


termos utilizados pelos sujeitos desde época remota, como “manga”. Ao passo que
respondi:

Poliana Reis – Um pedaço de terra!


Robério Santos (RS) – Ah! Uma pastagem.
Aurino Ferreira (AF) – Então! Que chama de manga. Porque tem a
fazenda, mas tem a manga dentro da fazenda. A fruta...
RS – E o pasto! Sou eu que ‘tô’ complicando, tá? Vai que mais adiante a
pessoa não sabe o que é e pensa que é uma fruta? Eu gosto de deixar essa
coisa bem detalhada. Sim... É um mangueiro, um pasto fechado!
AF – Dentro da fazenda...
Luciene Santos (LS) – Agora, assim. É... ‘Igual’ ele falou aí, quando um
fazendeiro já tava de olho nesse trabalho da gente, que ele matava boi e
tudo... Já quando a gente mesmo...
RS – Bem lembrado!
LS – Companheiro, aqui entre nós...
RS – Entre nós...
LS – Já era feito o ‘roubo’ da roça.
RS – Bem lembrado!
LS – Bem lembrado! Aí já tem uma diferença, o fazendeiro ficava de olho na
nossa união de trabalho, matava um boi, comprava cachaça...
RS – Ele podia!
LS – Pedia pra ir porque é de graça, né?

Elementos importantes da história são relembrados por Luciene Santos, como


o esclarecimento sobre o “roubo” da terra, descrito nos trechos abaixo. Robério
Santos faz questão de que a história seja contada pelo colega Aurino Ferreira e a
69

mulher que é interrompida em vários momentos. Todavia, foi possível perceber a


diferença entre “roubo” e “adjunto”. O “roubo” era a ajuda prestada às famílias
impossibilitadas de realizar as tarefas. Já o “adjunto” era quando o fazendeiro se
apropriava da prática e convocava os grupos para realizar as atividades de forma
mais rápida e com menos custos financeiros, pois, muitas vezes, só era ofertado
como pagamento uma espécie de churrasco, descrito como a “matança” de um boi,
música e cachaça. Resumindo: o “roubo” era realizado por iniciativa da comunidade.
Há um valor positivo, visto com um sentido distinto do que seja roubo para a
sociedade envolvente. Já o “adjunto” começou por iniciativa dos fazendeiros. Em
alguns momentos, os entrevistados dão o mesmo significado aos termos.

Robério Santos (RS) – Desculpe, oh companheira! Por que ele matava um


animal, um boi? Porque ele tinha, ele podia. Agora no nosso caso, Aurino
vai dizer como é que era.
Luciene Santos (LS) – Isso! No nosso caso, já era o ‘roubo’!
Poliana Reis (PR) – Eles consideravam ‘roubo’, é isso, Luciene?
RS – Nanão! Você não sabe o que é isso! Isso é um linguajar dos
quilombolas. ‘Roubo’ pra nós é coisa boa!
LS – É coisa boa!
RS – Agora lá fora, na mídia, sei lá o quê, passou a ser assalto, crime. Nós
‘tamo’ fora disso!

[Risos]

Luciene segue explicando e relaciona trabalho coletivo, comemoração,


solidariedade e festa.

Luciene Santos (LS) – O ‘roubo’ da roça era assim: Robério ‘tá’ ali, a
gente viu que a roça dele ‘tá’ suja, ele não tem condição de pagar pra gente
trabalhar na roça dele. Ou podia ‘tá’ doente, alguma coisa... ‘Ajuntava’ todo
mundo, a vizinhança e o que fazia? A gente vai ‘roubar’ a roça de Robério,
aí as ‘mulher’...
Robério Santos (RS) – No bom sentido. Pra o povo de hoje, no bom
sentido.
LS – É... Ele não sabia! Lá, ele tava dormindo, quatro horas da manhã, só
que os homens, enxada, foice...
RS – Todas as ferramentas.
LS – Todas as ferramentas ‘entrava’ na roça dele e a ‘muierada’ ficava
pronta pra fazer o almoço, fazer tudo. Mas aí, cada uma ajudava, entendeu?
E na hora que eles ‘entrava’, já ‘entrava’ cantando, gritando e o dono
daquela roça acordava assustado...
RS – Com os instrumentos e, às vezes, fogos.
LS – Fogos! E aí...
RS – Era uma festa! Aquele dia era um clima de festa durante o dia.
LS – Só que na hora que ele ia abrir a porta, já tava todo mundo limpando a
roça dele ali. Ali era um ‘roubo’.
RS – O ‘roubo’ nosso. Pra quilombola, ‘roubo’ era isso.
LS – Nós, esses tempos, o ano ‘trasado’, nós ‘tava’ marcando pra poder
fazer... nós, as mulheres, ‘ia’ fazer...
70

A entrevista segue em tom de saudosismo e, em dado momento, Maria


Santos tentou fazer uma intervenção, mas Robério interrompeu a irmã. Voltamos a
questioná-la para saber o que as suas lembranças queriam revelar, entretanto,
encabulada, ela não quis mais relatar. Quando procurada para uma nova entrevista
ou conversa informal, sem o irmão, Maria continuava com receio em se colocar,
como se fosse vigiada e precisasse da aprovação fraterna para prosseguir, e assim
não intervir de forma negativa no processo de reconstrução do território étnico.

Robério Santos (RS) – Você para com essa conversa, que nós vamos
chegar logo aí [risos do entrevistado, para amenizar o tom da colocação].
Poliana Reis – Eram as mulheres que iam fazer, Maria?
Luciene Santos – Era! A comunidade e as mulheres tinham um...
RS – Ia ter uma contribuição muito forte das mulheres. As mulheres eram as
principais responsáveis por esse roubo nosso, que nós ‘ia’ fazer agora.

As interrupções nas falas femininas servem de exemplo de como o “não falar”


pode dizer muito além do que algo que poderia ser dito. Revelam como os
posicionamentos femininos não são considerados como deveriam na reivindicação
do território. Talvez, e é quase certo que, se essas vozes fossem ouvidas, teríamos
exigências diferenciadas das atuais e novas necessidades, como será mostrado no
Capítulo 3. Algumas demandas somente são colocadas pelas mulheres como
essenciais, como as creches e questões ligadas ao serviço de saúde.
Também foi possível perceber como a divisão sexual do trabalho promove a
atuação das mulheres tanto no âmbito privado quanto no público. Na comunidade
estudada, bem como na sociedade em geral, às mulheres são atribuídos os
trabalhos reprodutivos e produtivos, cabendo aos homens apenas o último tipo.
Nessa perspectiva, Luciene Santos responde com orgulho o quanto as mulheres
eram importantes na feitura do “roubo”.
71

Luciene Santos (LS) – Era! A gente...


Robério Santos (RS) – É o chamado ‘adjunto’. Em um período aí, alguém
chamou de mutirão. Dá na mesma, mas era ‘adjunto’ na nossa linguagem.
LS – Mas já tava perfeito, eu ‘mesmo’, eu queria uma que...
Maria Santos (MS) – Eu queria também...
RS – Luciene, eu vou pedir a sua compreensão, sua permissão pra deixar
Aurino falar de onde vinha o alimento, os animais que a gente e nossos pais
‘matava’ pra fazer a limpeza da roça do ‘adjunto’, naquela época. Já que
nós éramos pobres, de onde vinha a comida?
AF – Nós ‘reunia’ a comunidade. Hoje ‘tá’ pouco, mas era muita gente, aí
reunia. E aquele negócio de reunião é velho.
RS – É velho! Reunião nos quilombos é coisa velha.
AF – ‘Eu dou duas galinhas’; o outro: ‘Eu dou um bode’; ‘Dou um porco’...
Sei que, assim, sobrava muita comida.
Poliana Reis (PR) – E quem é que fazia? Quem cozia os alimentos?
LS – As mulheres!
AF – As ‘mulher’ ‘ia’ cozinhar, ‘lavava prato’, pra todo mundo.
RS – Distribuía tarefa, um a um. Ficava ninguém parado!
AF – E quando chegava na roça...
RS – Que o propósito principal era limpar a lavoura do camarada.
AF – O cidadão acordava e tava cheio de mulher com bacia, gamela, saco
de coisa pra cozinhar, que a esposa do homem da roça às vezes chorava...
RS – Muitas vezes chorava. Preocupada como ia dar comida a esse povo.
No entanto, a comida já veio. O próprio povo trazia.
AF – Ele só dava uma coisa se ele quisesse dar, mas não precisava.
RS – Desculpa, Aurino! Sei que ‘tô’ te atrapalhando, mas eu tenho uma
grande honra de informar vocês que eu participei agora... Eu diria o quê...
10 anos... Eu chamo de agora, viu? ...de um ‘roubo’ na roça do Sr. Nelson
José da Silva e ‘os’ couro comeu, foi gostoso, lindo, maravilhoso, só faltou
uma coisinha: o forró da noite. Geralmente, no passado, se fazia, né?
LS – Mas Nelson, conhecido como...
RS – Não! ‘Nelson da Goiabeira’!
LS – Ah! Tá certo.
RS – Mas retomando a palavra de Aurino... ele falava que as mulheres até
choravam de alegria... Ou ficavam preocupadas em dar comida ao povo...
PR: Mas aí as mulheres vinham para cozinhar? Ou já estava feito?
LS – Já!
AF – Já ‘tava’ tudo certo, quando o dono da casa...
LS – Não se preocupava com nada.
AF – Quando era o dia amanhecido, já tava quase tudo pronto. Mulher com
farinha, feijão... Ehh!! Ali tinha pão, as galinhas já tava tudo cortado pra
cozinhar... Quando falava, que ia convencer ela, que aquele ‘roubo’ roubou
a roça do homem pra limpar, aí agora que [ela] tava alegre... Aí ia panela...
RS – Naquele tempo, não tinha câmera fotográfica não. Não tinha não. Não
tinha TV Cabrália, não tinha nada disso. Não tinha rede de televisão
também não. Mas nós ainda vamos realizar, viu?
MS – Naquele tempo era uma beleza! As mulheres iam na porta e ‘tudo’
cantando.

Nesse ponto da entrevista, são lembradas as cantigas entoadas pelas


mulheres quando faziam o “roubo” ou quando lavavam roupas na beira de algum
córrego d´água e todos pedem a Maria Santos para cantar. Ela demonstrou
empolgação em nos presentear com uma cantiga, assim como a mulher fazia no
passado, ao realizar as suas tarefas. Todavia, preferiu silenciar, mesmo com o olhar
demonstrando vontade de prosseguir e como que a reviver o tempo passado.
72

Dona Arlete nos contou empolgada que, naquela época, existiu o que o grupo
denominou de “camisão”, “tacão”. Esse termo era usado para identificar as pessoas
que não assumiam tarefas no “adjunto” ou “roubo” da terra e depois tentavam
participar da festa, geralmente um forró, no final do dia de trabalho. O “penetra” era
o “camisão” e o “tacão” era um pedaço de madeira pequeno utilizado pelos
participantes da festa para inibir a participação do invasor. Dona Arlete: “Aí a gente
dizia: ‘se ele entrar aqui hoje, ele apanha’ [risos]”.
Em vários momentos, pudemos perceber como práticas coletivas do
passado, a exemplo dos “roubos”/ “adjuntos”, trabalhos com cantigas, deixaram de
existir por conta da espacialização dos monocultivos, que reduz a disponibilidade de
terras para a comunidade e altera as relações de trabalho no âmbito de como lidar
com o outro, na geração do emprego e renda, e na organização do espaço.

2.2.1 Chega, então, o eucalipto nas terras ancestrais

A monocultura do eucalipto, nos últimos períodos, invadiu o território baiano.


De início, por volta da década de 1980, no extremo sul do Estado, onde, segundo
Cerqueira Neto (2012), as grandes empresas que têm no eucalipto a sua principal
matéria-prima encontraram condições naturais favoráveis para o desenvolvimento
de suas atividades. E, posteriormente, se expandiram para o sudoeste da Bahia.
O Planalto da Conquista também foi atingido pelas plantações promovidas por
empresas produtoras de carvão para as siderúrgicas de Minas Gerais e por
indústrias de papel e celulose do extremo sul da Bahia. Segundo o Fórum de
Entidades e Movimentos Sociais do Sudoeste da Bahia, as plantações de eucalipto
e pinus ocupavam, no ano de 2014, cerca de 6,5 milhões de hectares no Brasil.
Desse valor, no estado baiano, a área plantada chega a 100 mil hectares. Costa e
Oliveira (2009) esclarecem como ocorreu o despertamento de agricultores para a
prática desse monocultivo:
73

Com a “febre” do eucalipto no sul do Estado da Bahia e a descoberta do seu


potencial econômico, houve um despertamento de agricultores e
investidores para o cultivo em larga escala. A ampliação da base industrial,
o desenvolvimento do Polo Moveleiro, a demanda por carvão vegetal para
as siderúrgicas em Minas Gerais, as noticias de lucro em médio prazo,
aliados a seminários e projetos de expansão, a disponibilidade de crédito e
a política de incentivo tecnológico pelas instituições de pesquisa, levaram
agricultores a investirem e destinar áreas para o plantio.

Em São Joaquim de Paulo é perceptível a existência de interesses


incompatíveis entre parte de alguns entrevistados (que falam em nome da
comunidade) e os agentes externos responsáveis pela expansão dessa
monocultura. Segundo Robério Santos, faz dez anos que o eucalipto começou a ser
plantado na área, pela família do fazendeiro Vivaldo Mendes. Posteriormente, foi
seguido por outros latifundiários, incluindo Nilo Coelho (ex-governador da Bahia, no
período de 1989 a 1991), que possui fazendas na área, tanto de eucalipto quanto de
café, reduzindo bastante as terras da comunidade e ocasionando efeitos sociais
negativos para os indivíduos, como podemos visualizar em muitos depoimentos.
Com relação as plantações de eucalipto, é possível afirmar algumas
consequências negativas do ponto de vista social. Pois, há inúmeros casos de
conflitos envolvendo o uso desigual do ambiente e de seus recursos. De acordo com
Zhouri (2008, p. 105), em projetos como monoculturas de eucalipto, as vítimas das
injustiças ambientais, são excluídas do processo de desenvolvimento e arcam com o
ônus dele resultante.

É imperativo reconhecer que projetos industriais homogeneizadores do


espaço, tais como hidrelétricas, mineração, monoculturas de soja, eucalipto,
cana-de-açúcar, entre outros, bem como políticas globais a partir de
formulações abstratas e distantes, são geradores de injustiças ambientais,
na medida em que, ao serem implementados, imputam riscos e danos às
camadas mais vulneráveis da sociedade. Os conflitos decorrentes
denunciam contradições em que as vítimas das injustiças ambientais não só
são verdadeiramente excluídas do chamado desenvolvimento, mas
assumem todo o ônus dele resultante. Por outro lado, é importante salientar
que os excluídos não se constituem como vítimas passivas do processo e
vêm se organizando em variados movimentos, associações e redes.

Para Costa e Oliveira (2009), a discussão sobre a expansão da


eucaliptocultura segue duas vertentes, a saber:
74

No caso da eucaliptocultura, as alterações despertam uma gama de


questões cuja discussão toma duas vertentes: do ponto de vista econômico,
os que defendem a implantação do eucalipto como forma de (re)
florestamento para recuperar áreas degradadas e/ ou recuperação da
economia rural e de outro lado os que observam a realidade do ponto de
vista social, com as alterações na estrutura agrária e possíveis danos à
questão de fixação do homem na terra.

Do ponto de vista social, podemos inferir que esse tipo de plantio tem como
consequências a homogeneização da paisagem, diminuição da biodiversidade,
alteração no campo como um todo (substituição de pastagens e da agricultura local),
desterritorialização, além de inviabilizar a segurança alimentar e nutricional de
comunidades onde essa cultura está disseminada. Para Andrade (2005, p.50)
entende-se por segurança alimentar, a garantia de “alimentos produzidos de acordo
com seus padrões de relação com a natureza, de organização social, de definição
social do que, quando e como ingerir”. E para a expressão insegurança alimentar, a
autora atibui “a dificuldade dos grupos produzirem a alimentação todos os dias e,
assim, para se produzirem materialmente”.
Essa última consequência, a insegurança alimentar, se apresenta de forma
mais severa para as mulheres, já que, historicamente, as atividades do lar, inclusive
o bem-estar da família, foram construídas socialmente como papel feminino. O
agronegócio determina o que vai ser produzido, mesmo no caso das famílias de
pequenos (as) agricultores possuírem a propriedade da terra. Sendo assim, tem
como resultado a influência na dieta alimentar, já que muitos alimentos consumidos
são ou eram produzidos pelos membros da comunidade.
Além disso, a administração dos recursos escassos também passa a ser uma
problemática a ser solucionada, principalmente pela mulher, quem, geralmente,
prepara os alimentos para toda a família e tem que lidar com a ausência ou
insuficiência de recursos. O risco posto à soberania alimentar e nutricional também
se dá pelo fato da monocultura do eucalipto se estender em áreas que antes eram
cultivadas pela comunidade, serviam para caça ou onde era desenvolvida a
pecuária.
Para a reprodução da monocultura, também são necessárias extensas áreas
e utilização intensa dos recursos hídricos, ocasionando desmatamento e
desequilíbrio ambiental.
75

A despeito das questões envolvendo aspectos da sustentabilidade


ambiental, preocupam a mudança no padrão fundiário, a compra antecipada
da produção pelo especulador e a viabilidade econômica para o pequeno
produtor, uma vez que o cultivo varia entre cinco e sete anos, para corte e
comercialização. Outra variável é a aquisição de grandes áreas para o
cultivo do eucalipto, o que pode resultar em êxodo do pequeno produtor, da
substituição da cultura predominante pela monocultura. (COSTA;
OLIVEIRA, 2007).

Por isso, o plantio intensivo do eucalipto, ordenado pelo modelo hegemônico


de desenvolvimento agrário, o agronegócio, impossibilita a produção de outras
culturas. Essa atividade pode gerar divisas e, com isso, ocorrer o engrandecimento
da economia local, no entanto, a geração de emprego e renda para a população é
reduzida, já que se trata de uma cultura majoritariamente mecanizada e voltada para
a exportação.
Sobre o início das plantações de eucalipto na comunidade, os moradores
declararam no vídeo São Joaquim: O Quilombo de Paulo Preto, gravado no ano de
2008, nomes como o do político Nilo Coelho.

Robério Santos – Isso aí é da família Mendes, herdeiros do antigo Vivaldo


Mendes. Isso aí ‘tá’ plantado em torno de três anos. Não passa de uma
investida contra o Projeto Brasil Quilombola. O Sr. Nilo Coelho, ex-governo
da Bahia, está fazendo uma investida muito grande aqui nessa área de
quilombo de São Joaquim de Paulo, no intuito também de plantar eucalipto,
como ‘tamo’ vendo dessa família aí. Nilo Coelho comprou quatro alqueires e
‘tá’ no intuito de plantar eucalipto também.

João Rodrigues – Eles ‘tão’ desmatando isso aqui pra fazer, plantar
eucalipto. Eles não falam pra gente, mas ouvimos os comentários. As matas
‘tão’ tudo acabando, indo pra o chão. Na mata, passam o trator por cima e
‘muquirando’, pra dizer que foi o fogo que queimou. Se a gente precisar de
uma lenha pra queimar, tem que ser escondido do dono, com medo de nem
voltar pra casa.

Perante os discursos, ficou evidente que o eucalipto, desde a sua


implantação, ocasiona problemas para a comunidade. Durante os campos, também
pudemos perceber que esse plantio está em expansão, prova disso são as mudas
de eucalipto plantadas em partes do território.
76

2.2.2 Cafezais: de camponês a proletário - Perda da terra e mão de obra


explorada

Na Bahia, a produção cafeeira ocorre de maneira expressiva e, segundo o


atual governador do Estado, Rui Costa, do Partido dos Trabalhadores (PT), há a
disposição em investimentos em pesquisas para obtenção de melhorias em
atividades produtivas relevantes para o desenvolvimento econômico baiano, com
destaque para o café29.
No trabalho Caracterização de Sistemas de Produção Agrários: uma análise
da produção de café no Planalto da Conquista - BA (JÚNIOR, 2013), a autora tenta
identificar práticas de menor impacto ambiental e socialmente justas nas análises
sobre a cafeicultura do Planalto de Conquista. O estudo tem como foco essa
regionalização, que abrange 12 municípios: Cordeiros, Piripá, Tremedal, Belo
Campo, Cândido Sales, Ribeirão do Largo, Anagé, Encruzilhada, Vitória da
Conquista, Barra do Choça, Planalto e Poções. Ao longo da pesquisa, foram
identificados os municípios onde predomina a cultura do café, dentre eles, Vitória da
Conquista.

Na região do Planalto de Conquista, predominantemente, a cultura do café


concentra-se na região da mata dos municípios de Ribeirão do Largo,
Encruzilhada, Vitória da Conquista, Barra do Choça, Planalto e Poções,
mais significativamente nestes cinco últimos [...] (SILVA, 2013).

Em São Joaquim de Paulo, especificamente, ao falar sobre os cafezais, nas


entrevistas, percebemos o duplo posicionamento por parte dos trabalhadores (as): o
sentimento de tristeza pela perda das terras para a implantação dessa cultura pelos
grandes fazendeiros; e, por outro lado, a necessidade da existência desses cafezais,
pois na atual configuração do espaço agrário local, é decorrente dessa atividade a
maior parte da geração do emprego e renda30. A prática desse cultivo também
afetou os marcos territoriais eleitos ao longo das gerações pelos membros da
comunidade.

29
http://www.seagri.ba.gov.br/noticias/2015/05/11/bahia-pode-produzir-o-melhor-caf%C3%A9-do-
brasil
30
Outra parcela considerável trabalha nas fábricas em Vitória da Conquista.
77

2.3 AS DUAS MONOCULTURAS INFLUENCIAM E AMEAÇAM OS MARCOS


TERRITORIAIS

As duas monoculturas, café e eucalipto, provocaram alterações nos usos dos


marcos territoriais apontados pela comunidade. Como veremos na análise desses
locais, o eucalipto ocasionou alterações na paisagem do Salangó e do Brejo. Já
devido ao café, tanto o brejo, o Corredor da Jiboia, quanto o cemitério, tiveram seus
usos alterados. Também conheci fazendas de café que vêm sendo loteadas pelos
fazendeiros, após a descoberta do início do processo de titulação das terras
ancestrais, no INCRA. Representantes do Instituto passaram a ir à comunidade para
início da produção dos RTIDs.
Na terceira ida a campo, durante as entrevistas, usamos como metodologia
citar os nomes dos marcos territoriais identificados nas idas anteriores e perguntar o
que o local significava para o entrevistado. Antes, pedíamos ao depoente para
indicar o lugar mais representativo de São Joaquim. Dona América de Jesus elegeu
o seu local de trabalho como o mais representativo da comunidade: a roça. Robério
Santos elegeu o Salangó; Aurino Ferreira o brejo e Arlete Gomes citou o local onde
as mulheres lavavam roupa no passado. Todos a quem perguntamos o que esses
locais significavam já haviam citado os espaços em outros momentos. Por isso,
tivemos a liberdade para falar diretamente sobre os locais. No mapa mental a seguir
(Figura 3), feito por Seu João, aparecem alguns desses lugares.

Figura 3 – Mapa mental: posto de saúde e local da reunião dos associados31

31
Seu João pediu que eu desse o visto para ter certeza de que tinha feito o desenho correto.
78

Figura 4 – Salangó e casa de Lora.

Figura 5 – (1) Casa de Telha. (2) Posto de saúde, (3) Escola


79

Nos mapas mentais produzidos pelos moradores, há menções aos principais


marcos territoriais identificados durante as fases da pesquisa. A partir do próximo
item, tento explicar a relação existente entre os membros das comunidades e estes
lugares: Salangó, Corredor da Jiboia, cemitério, brejo, Fazenda Casa de Telha e
área de loteamento.

2.3.1 Onde fica o marco territorial Salangó? Campo de eucalipto!

O Salangó é um antigo marco territorial reivindicado pelos moradores de São


Joaquim. Atualmente, se configura como propriedade do político Nilo Coelho.
Localizado próximo à fazenda de nome Salobro, também faz limite com a Fazenda
Fumaça, e é onde estão concentrados os campos de eucalipto. Não pudemos
conhecer a área, pois os moradores tem o acesso proibido.
Robério Santos relatou algumas ameaças de morte sofridas por ele ao
reivindicar a utilização do espaço onde eram realizadas atividades produtivas, como
caça, extrativismo (vegetal e animal), pecuária, além de rituais religiosos. E afirmou
que, principalmente nessa faixa conhecida como Salangó, que “era onde a gente
caçava, pescava, e hoje... se for lá, morre. Nem apanhar não é! Morre!”. Robério
Santos ressaltou as consequências negativas provenientes da expansão do pinus
nas áreas cultiváveis da comunidade. Declarou que o ser humano não come
eucalipto e que o agrotóxico utilizado prejudica a população, principalmente as
mulheres, que lidam com os alimentos e água contaminados.

Poliana Reis (PR) – E plantam o quê nessas fazendas?


Aurino Ferreira (AF) – Eucalipto!
Robério Santos (RS) – O tão famoso e tão prejudicial para os pretos. Nós,
pretos, não comemos eucalipto. Isso aí é monocultura!
PR – Ninguém tinha falado ainda.
RS – Pois é uma realidade do lugar!
PR – Onde é que tem plantados esses eucaliptos?
RS – Quem vai deixar de ouvir, se é a realidade do lugar? É monocultura
isso daí. Pra quilombola, não serve não.
AF – É muito dinheiro.
RS – Ah! Mas é muito dinheiro pra quem planta. Nós não plantamos isso
não.
80

Neste trecho da entrevista, é importante perceber a quem serviria a


monocultura: “Mas é muito dinheiro pra quem planta. Nós não plantamos isso não”.

Robério Santos (RS) – Como surgiu o eucalipto aqui no quilombo, não é?


Aurino Ferreira (AF) – Era de boi...
RS – Tinha uma boa pecuária neste lugar!
AF – Tinha emprego pra todo mundo!
RS – Principalmente num lugar... Desculpe, Aurino! Só pra te ajudar...
Principalmente nessa faixa conhecida como Salangó. Era onde a gente
caçava, pescava, e hoje... Se for lá morre. Nem apanhar não é! Morre!
Poliana Reis (PR) – Salangó?
RS – Salangó! Onde está o maior foco do eucalipto hoje. ‘Tô’ tomando aqui
o raciocínio de Aurino, mas eu devolvo.
PR – E se eu quiser lá no Salangó, eles não vão deixar?
Maria Santos – Quem vai!?
RS – Por conta própria, não vai entrar não! Se fingir... Fingimento, lá, não
adianta não. Lá funciona é a carta branca.

Os presentes riram da última pergunta e a fala de Maria Santos (“Quem


vai!?”) revelou, com tom, simultaneamente, interrogativo e exclamativo, o receio das
pessoas em se dirigirem até o local.
Durante a entrevista coletiva, na casa de Robério, assim como em outros
momentos do campo, observei que as consequências provenientes da monocultura
recaem de forma mais incisiva sobre as mulheres, que têm que lidar com a água
contaminada por agrotóxico ao lavar roupas nas fontes (prática ainda realizada por
algumas delas), ao utilizá-la para o cozimento dos alimentos, ou mesmo no contato
com o solo, quando usado para a produção de pequenas hortas. Ao longo desta
pesquisa, percebi que a grande parte dos que não se recordam ou não reconhecem
o espaço como pertencente ao território reivindicado são da faixa etária mais jovem.
Fernanda de Jesus Salgado não reconhece a palavra Salangó, apesar de
saber da existência do eucalipto dentro dos limites territoriais. Para Candau (2012),
“um grupo não recorda, de acordo com uma modalidade culturalmente determinada
e socialmente organizada; apenas uma proporção maior ou menor de membros
desse grupo é capaz disso”. Portanto, apenas uma paercela irá lembrar dos
acontecimentos, daí o fato de nem todos recordarem do espaço utilizado no
passado, onde atualmente está o foco de eucalipto. Outras pessoas demonstram
receio em falar do lugar, como parece ser o caso de Maria Alves Almeida.
81

Poliana Reis (PR) – A senhora já ouviu falar no Salangó?


Maria Alves Almeida (MAA) – Já!
PR – E como é lá?
MAA – Eu não sei. Não conheço lá, só ouço falar.
PR – E o que a senhora ouve falar?
MAA – Eu não sei falar de lá não.
PR – Vocês usavam lá pra alguma coisa?
MAA – Não! Usava não. Só conheço de nome.
PR – Tem o quê plantado nessas fazendas?
MAA – Eu não sei! Não posso te explicar. Eu sabia que criava gado lá. Era
fazenda que criava boi, gado essas coisas, mas agora, eu não sei. Eu
morava por lá, a fazenda que eu morava era perto. Mas o pessoal que eu
conhecia, já mudou ‘tudo’, mudou ‘tudo’ de lá.

Ao mesmo tempo em que a entrevistada dizia que o Salangó não era utilizado
no passado pelos membros de São Joaquim, vieram as suas lembranças sobre a
antiga criação de gado que existia por lá, confirmando a informação dada por Aurino
Ferreira, na primeira atividade de campo. Afirmou, ainda, que os moradores das
proximidades haviam migrado, de modo a confirmar o processo de
desterritorialização ou espoliação da terra. Com isso, recordei a entrevista com
Robério Santos, quando declarou que os membros da comunidade de São Joaquim
não podem ir ao local, devido às fortes ameaças sofridas. Provavelmente, seja essa
a explicação do “esquecimento” ou falta de conhecimento, por parte de alguns, de
como aquele espaço foi importante no passado.

2.3.2 O Corredor da Jiboia

Outro conflito existente entre os moradores de São Joaquim e os fazendeiros,


além da reivindicação da área onde estão os eucaliptos, é o que ocorre no marco
territorial conhecido como Corredor da Jiboia. O local era uma importante passagem
de acesso para o cemitério local. Entretanto, há relatos de que fazendeiros do café o
fecharam, proibindo a entrada dos moradores.
Robério Santos relatou que, desde tempos remotos, “a Jiboia” era utilizada
como caminho para a realização dos “enterros quilombolas”, sendo um “costume de
mais de 200 anos”. Segundo os entrevistados, foi fechado por fazendeiros, com a
intenção de dificultar o acesso ao cemitério, que fica nas proximidades desse marco
82

territorial. Tal fato afetaria a relação de certas práticas religiosas, relativas aos rituais
fúnebres e, por isso, decidi realizar uma ida ao cemitério.

2.3.3 O cemitério

Pensei que ali seria um lugar repleto de simbolismos, assim como pelas
informações da primeira incursão a campo, segundo as quais, os fazendeiros
haviam fechado o Corredor da Jiboia. Marquei com Lourinha e José Ildo para irmos
até lá. Por ser um local de difícil locomoção, pela distância e condição ruim da
estrada de barro que dá acesso ao lado não bloqueado do cemitério, foi preciso ir de
carro. Como o Salangó, alguns não reconhecem mais o Corredor como um local de
passagem, como Dona Maria Alves Almeida, que afirmou: “Ah! Conheço! É muito
longe daqui. É lá nessa Jiboia que meu esposo tá enterrado”. Perguntada se o
mesmo pertence à comunidade, a resposta foi: “Não!”.
Ao tentar desvendar a “história”, surgiram evidências de que o cemitério
estava localizado em um local mais afastado de onde está o atual e foi para esse
“antigo cemitério” que o acesso foi dificultado.

José Ildo: O cemitério era lá mais pra cima, moça. Pra lá daquela árvore,
está vendo?
Poliana Reis: Sim, estou. Vamos lá, então?
JI: Tem como não, moça! Tá fechado. Os ‘homi’ fechou. Nem dá pra o carro
ir. Por isso enterra mais pra cá, agora.
Lorinha: tem como não mesmo. Se desse, nós ia.

Outra grande contribuição dessa incursão foi a de confirmarmos e


conseguirmos nomes de personagens importantes que formam a história local, bem
como pudemos observar datas, religiosidades e redes de parentesco. É um espaço
onde histórias podem ser relembradas, nos casos de algumas famílias, só que é
importante não generalizar as lembranças, desse e de outros espaços, como se
fossem a memória de toda a comunidade. Como observa Candau (2012):

Entendo por ‘retóricas holísticas’ o emprego de termos, expressões, figuras,


que visam designar conjuntos supostamente estáveis, duráveis e
homogêneos, conjuntos que são conceituados como agregadores de
elementos considerados, por natureza ou convenção, como isomorfos.
83

Sem querer recorrer a essas generalizações e retomando o pensamento, o


cemitério é um espaço onde podem ser reveladas histórias do passado, pois os
visitantes leem as inscrições nos túmulos, recordam a vida dos antepassados,
relembram datas e diversas situações.

2.3.4 Brejo

Os recursos hídricos também são afetados pelas monoculturas, como é o


caso do brejo da localidade, que apresenta indícios de esgotamento e vem secando
ao longo dos anos, como afirma Robério Santos. Além disso, os fazendeiros são
acusados de terem degradado ou cercado algumas nascentes, impactando, assim,
os cursos d’água e a área de brejo, essenciais para a sobrevivência da comunidade.

Robério Santos (RS) – Quando foi hoje, entrei no brejo... Rapaz, ‘tô’ vendo
‘limpão’. Cadê a lama? Cadê a água? Não é que secou de novo? Nunca
tinha havido. É o terceiro ano que vem acontecer essa falta d’água aqui...
Luciene Santos – Por causa das barragens. Dos fazendeiros, grandão!
RS – Os homens de dinheiro vêm, ‘entra’, ‘acha’ um fulano, um quilombola
que vende um ‘taquinho’ do seu quintal, vão descendo o porrete, ‘bate’ em
alguns, ‘assusta’ outros, ‘compra’ na pressão, ‘oferece’ qualquer cifra de
dinheiro, qualquer moeda, ‘vai’ invadindo. Eles invadiram nosso quilombo,
entraram e foram tomando as terras. Chegaram agora na cabeceira da
nascente aqui de São Joaquim, furaram, nós sabemos muito bem porque...

De acordo com Robério, o impacto direcionado às nascentes faz parte do


processo de pressão para que os camponeses abandonem suas terras.
84

Robério Santos (RS) – Inclusive esse indivíduo que tá na cabeceira,


segundo informações, porque tá aqui dentro da comunidade, mas eu não
conheço. Eu não me misturo com esse povo. Eles são meus inimigos
declarados! Eu vou caçar o quê no quintal desse povo?
Poliana Reis (PR) – Sabe o nome de alguns deles?
RS – Como é que chama? É... Netinho, não é?
Aurino Ferreira (AF) – Por isso que eu não gosto do branco.
RS – Não! Depende do branco. Se o branco pertencer, for respeitador, é
meu irmão! Mas se for invasor, perseguido... Não conheço!
AF – Esses que ‘tá’ hoje, já pegaram na mão de terceiros que ‘invadiu’.
RS – Dá sequência! Alimenta! É o mesmo propósito! São invasores! Até que
alguém me explique, me ‘convence’, eu vou continuar chamando de invasor!
PR – E Netinho veio de onde? E ele é dono de quê?
RS – Sabe Deus! Ele comprou um pedaço de terra na beirada do asfalto ali,
como chamamos de Capinal, foi comprando e veio tomando dos posseiros.
‘Se eu comprei e paguei?’ Moço, não me interessa esse negócio seu, pra
mim foi tomado. Entrou, invadiu a cabeceira, a nascente, hoje é tudo dele.
Tem gente que diz que ele é piloto de avião do Nilo Coelho. Tem um avião
de pequeno porte que roda aqui todo final de semana, às vezes, até no
meio da semana. A CDA teve a sorte de filmar. Quando viram o distintivo do
Governo do Estado no carro aqui no terreiro, baixaram o avião, querendo
descobrir o que tava acontecendo. A gente viu, com os ‘vidro’ fechados lá
dele, o rosto de alguém direcionado pra cá pra onde ‘távamos’ reunidos. Aí
que tiramos a foto. Até pedimos pra ‘tá’ documentando isso aqui. Cortaram
o chão ali, fizeram um tal de pouso, uma pista de pouso na comunidade...
PR – Ainda tem essa pista de pouso?
RS – Não. Fizeram, fizeram... Depois, acho que desistiram.

Como dito na Introdução deste texto, o estímulo para ter essa comunidade
como objeto de estudo veio de uma denúncia de representantes da CDA. Na época,
esse episódio do avião descrito pelo entrevistado nos foi relatado. Nesse
depoimento a questão da cor reaparece. Na discussão onde Aurino opina “por isso
que eu não gosto do branco” e Robério responde: “Não! Depende do branco. Se o
branco pertencer, for respeitador, é meu irmão! Mas se for invasor, perseguidor...
Não conheço”, observei que a cor infuencia, mas não é o único elemento definidor.
Reafirmo que a maioria dos entrevistados que se identificam quilombolas, também
se reconhecem como negros, porém o fato de uma pessoa ser branca, não a torna
inimiga.

2.3.5 A Fazenda Casa de Telha: antiga senzala

A Casa de Telha é um importante marco territorial, onde os interlocutores


apontam ter sido a senzala em que viviam os escravizados. A propriedade pertencia
85

a Naninha (Ana Mendes) e Marcelo Mendes. A figura emblemática frequentemente


utilizada nos depoimentos, como forma de comprovar a existência de escravidão no
passado, é um senhor já falecido, de nome Bibiu. Segundo Valdelice Salgado, Bibiu
sempre morou na Casa de Telha, sofria agressões físicas e, como observado,
trabalhou em condições análogas à escravidão. Seu Esmeraldo acredita que o Sr.
Bibiu nunca foi escravizado e afirma que ele “não passava de um louco”. Os
moradores confirmam que o homem tinha problemas mentais, mas associam a
deficiência, justamente, à forma como foi tratado durante toda a vida.
Também realizamos uma ida a campo até a Casa de Telha e tiramos fotos do
local, que tem como atuais proprietários os herdeiros da Sr.ª Ana Mendes. Seguem
relatos sobre as relações de trabalho no local:

Laudilino (seu Bibi) – Naquele tempo, o horário de trabalho era de sol a


sol. Não tinha horário de meio-dia, 12 horas. Almoçava e não tinha
descanso não. Clareava, tava na hora do serviço. Lá ‘saía’ meu avô e seus
colegas e iam pra lá trabalhar. Quando eles achavam que era meio-dia,
comiam, porque o capataz ia com a sua barriguinha cheia, os outros ‘comia’
escondido, na carreira. Nem relógio tinha e nem um pedaço de carne se
comia. Eu mesmo já trabalhei lá.

Robério Santos – Sabe qual era a alimentação daquele povo? ‘Chotão’!


Todo mundo comia na gamela de madeira, tudo misturado, cortava a
mandioca de qualquer jeito. Sabe Deus o trato e nós também ‘sabe’. Tudo a
mando de Dona Ana Mendes, a dona da fazenda. Outra coisa: não tinha
colher. Ou fazia com casca de madeira ou comia com a mão. Era esse o
tratamento dado à nossa gente. Hoje, os filhos dessa gente ‘continua’ dando
uma de coronel, tudo de universidade, cheios de diplomas, a essas custas!

Dona Arlete – Eu não ia na Casa de Telha, porque não mexia com esse
tipo de gente não. Tinha era gente trabalhando, passando fome, comendo
feijão sem nenhum pedacinho de carne.

Todas essas declarações foram acompanhadas de expressões que


demonstravam indignação, tristeza e desejos de reparação.

2.3.6 Reações dos “outros” ao processo de titulação das terras

Algumas das fazendas de café que tem como proprietário um senhor


conhecido como Netinho32 foram loteadas às pressas. Segundo o Sr. Nego, os
fazendeiros começaram a vender os lotes com urgência, a ponto de perderem

32
De acordo com os moradores, Netinho é empregado de Nilo Coelho e age como o “mandachuva”
da área. Também foi dito que ele é dono do posto de gasolina PetroBahia, na cidade de Vitória da
Conquista.
86

plantações de café quase na etapa de colheita. Isso porque souberam do avanço no


processo de titulação do território como quilombola e da proximidade do início de
produção dos RTIDs. Robério também comentou a pressa dos fazendeiros em se
desfazerem da terra para não passarem pelo processo de desintrusão33, instrumento
jurídico para garantir a efetivação plena dos direitos territoriais às comunidades
tradicionais, por meio da retirada de eventuais ocupantes externos ao grupo.

Robério Santos – Muda muito de dono. Esse pessoal vizinho! Os


colonizadores, os fazendeiros... Não! Fazendeiros, usando nossa linguagem
atual. Os fazendeiros daqui da região, depois que descobriram que nossa
comunidade São Joaquim de Paulo foi oficializada com a certidão de
autorreconhecimento do Governo Federal, pela Fundação Cultural
Palmares, depois que isso veio acontecer, os homens endoidaram. Estão
vendendo, estão batendo a cabeça um no outro aí, oh! Corre ali, vende pra
você, você passa pro outro. Tão desfrutando parecendo um bebê, uma
boneca, uma brincadeirinha, uma bola de gude.

A pedido do Ministério Público Federal (MPF), o INCRA deverá titular as


terras de São Joaquim de Paulo com urgência. Em janeiro de 2014, o prazo para o
início dos trabalhos dos antropólogos era de, no máximo, um ano 34. Durante a
realização desta pesquisa, houve algumas visitas de representantes do Instituto ao
local. Os antropólogos e demais pesquisadores responsáveis já se encontravam em
fase de contratação.
Como vimos, no processo de reconfiguração territorial, devido à expansão
das monoculturas, os marcos foram modificados: (re) funcionalizados,
desconfigurados ou postos no esquecimento. De maneira que a paisagem local e o
modo de vida da população também foram alterados. Os habitantes apostam suas
esperanças na produção e aprovação dos laudos, para recuperarem parte do que foi
perdido e, assim, poderem reterritorializar-se nos locais de onde nunca deveriam ter
saído.

33
Medida legal tomada para concretizar a posse efetiva da terra
34
http://www.prba.mpf.mp.br/mpf-noticias/direitos-do-cidadao/incra-devera-demarcar-terras-de-seis-
comunidades-quilombolas-em-vitoria-da-conquista-ba
87

3 RELAÇÕES DE PRODUÇÃO E INTERAÇÕES SIMBÓLICAS COM O


TERRITÓRIO DE SÃO JOAQUIM DE PAULO: “AQUI, TODO TRABALHO É DA
TERRA.”

A comunidade rural estudada apresenta seu processo formativo caracterizado


pela exclusão do direito à terra e relacionado às lembranças do passado escravista.
Seus membros perderam expressiva parcela do território ocupado tradicionalmente
para a monocultura do eucalipto, as fazendas de café e cana-de-açúcar e,
atualmente, para a especulação imobiliária, traduzida na tentativa dos proprietários
dos cafezais lotearem a terra, ao descobrirem o avanço do processo de titulação do
território pelo instituto responsável.
Em dados momentos, os sujeitos viveram situações de semiescravidão ou
análogas às do regime escravista, para continuarem morando onde, até os dias
atuais, consideram como suas terras, lugar com o qual possuem forte ligação
afetiva. Em todo o processo, esses indivíduos se reterritorializam continuamente.
Uma parcela é obrigada a migrar de forma temporária ou permanente para trabalhar,
principalmente na cidade de Vitória da Conquista.
É por meio do trabalho que o ser humano transforma a natureza e é nesse
mesmo processo que ocorre, também, a sua transformação. Na área de estudo, as
relações de trabalho são marcadas, principalmente, pelas atividades produtivas
ligadas à terra, tanto no passado quanto no presente. Desde os “troncos velhos 35”,
trabalhava-se na lavoura. Na atualidade, existe o conflito entre os adultos que
tentam manter a tradição no interior da comunidade e a juventude que vivencia o
conflito entre continuar morando ou migrar do lugar, mesmo que de forma
temporária e sem quebra de relações. Pois muitos dos que foram, voltam depois de
“refazer” a vida e uma parcela dos que não retornam, mantém financeiramente os
parentes que permaneceram no lugar em que nasceram.
Entendemos que a opção de migrar não significa, necessariamente, uma
ruptura, mas falta de serviços adequados (educação, trabalho, saúde) e a ausência
de infraestrutura, em geral, faz com que os jovens saiam em busca de melhores

35
Uma metáfora acionada por diferentes grupos, em variados contextos, que conecta as gerações do
passado e do presente (BAPTISTA, 1992; BARRETO FILHO, 1993; GRÜNEWALD, 1993; ARRUTI,
1996). Os antepassados seriam “os troncos velhos” e as gerações atuais, “as pontas de rama”.
(OLIVEIRA, 1998).
88

condições de vida, nas sedes próximas ou mesmo na capital baiana. Dona Guiomar,
ao ser questionada se os seus 14 filhos moravam em São Joaquim de Paulo,
respondeu: “Não, minha ‘fia’. ‘Tão tudo’ empregado, só tem neto [...] Saíram pra
procurar emprego, pra trabalhar. Depois, lá mesmo ficaram”. Em resumo, muitos são
obrigados a partir, e os que ficam sofrem com as péssimas condições de serviços e
infraestrutura da comunidade. Não obstante, há ainda uma precarização em
praticamente todas as relações de trabalho, expressas na exploração da mão de
obra nas fazendas ou nas atividades sazonais no município de Vitória da Conquista.
Foi desse panorama histórico e geográfico que avaliamos os papéis
desempenhados pelas mulheres na construção do então território étnico. Buscamos
demonstrar os pontos de vista desses sujeitos, invisibilizados durante as tomadas de
decisões. Algo que não foi fácil de realizar e, ao final, suas vozes não estão
presentes neste texto o quanto gostaríamos, pois, apesar da consciência de que a
pesquisadora interfere nas relações cotidianas, é preciso saber que existem limites
que não devem ser ultrapassados. E que questões impostas por gerações e
gerações não são modificadas no tempo ínfimo da produção de uma dissertação.

3.1 DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO EM SÃO JOAQUIM DE PAULO

O patriarcado, aqui considerado como um sistema de opressão dos homens


sobre as mulheres, tem como base material a divisão sexual do trabalho, a qual
determina a posição feminina nas relações sociais. Na hierarquia da reprodução
social camponesa, esse sistema é manifestado, de início, na autoridade paterna,
que já define a divisão de tarefas no interior da família: “coisas de menina” e “coisas
de menino”. Ou seja, há uma relação hierárquica entre os membros da família,
baseada em critérios como sexo e idade.
Desde esse momento, o trabalho feminino adquire designações e significados
diferenciados e, regra geral, é inferiorizado em relação ao trabalho masculino. Bem
verdade, na maior parte do tempo, as atividades domésticas não são consideradas
trabalho e, dessa forma, eximem-se o Estado e o homem, enquanto grupo social,
dessa responsabilidade. Hirata e Kergoat (2008, p.264) explicam que há uma
opressão específica sobre as mulheres, posto que “a massa de trabalho gratuito
efetuado pelas mulheres no âmbito doméstico, não é realizado para elas mesmas,
89

mas para outro”. Os fazeres domésticos são realizados “sempre em nome de uma
natureza ou dever femininos”; muitas vezes, invisíveis e “não reconhecido como
deveria ser: como um trabalho”.
A divisão sexual do trabalho também está presente no contexto da agricultura
camponesa e em todas as outras instâncias existentes em São Joaquim de Paulo.
São essas as discussões que formam a primeira parte deste capítulo e têm como
pretensão esboçar como as mulheres de São Joaquim estão inseridas no espaço
agrário. Na segunda parte, evidenciaremos as atividades produtivas realizadas pelos
indivíduos.
A divisão sexual do trabalho é anterior ao capitalismo, porém, atingiu o seu
auge com o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas. Para Hirata e
Kergoat (2007, p.599):

A divisão sexual do trabalho é a forma da divisão do trabalho social


decorrente das relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator
prioritário para a sobrevivência da relação social entre os sexos. Essa forma
é modulada histórica e societalmente. Tem como características a
designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à
esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das
funções com maior valor social adicionado (políticos, religiosos, militares
etc.).

A divisão sexual do trabalho, para essas duas autoras, está organizada


segundo dois princípios, a saber:

Essa forma particular da divisão social do trabalho tem dois princípios


organizadores: o princípio de separação (existem trabalhos de homens e
trabalhos de mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho de homem
“vale” mais que um trabalho de mulher). Esses princípios são válidos para
todas as sociedades conhecidas, no tempo e no espaço. Podem ser
aplicados mediante um processo específico de legitimação, a ideologia
naturalista. Esta rebaixa o gênero ao sexo biológico, reduz as práticas
sociais a “papéis sociais” sexuados que remetem ao destino natural da
espécie. (HIRATA; KERGOAT, 2007, p.599).

Como afirmam, esses princípios são válidos “para todas as sociedades


conhecidas, no tempo e no espaço”, critérios utilizados para a análise da realidade
local de São Joaquim de Paulo. Os trechos da entrevista abaixo trazem uma noção
sobre como se dá a divisão sexual do trabalho no espaço estudado:
90

Poliana Reis (PR) – E na época do café, tem emprego pra todo mundo?
Valdelice Salgado (VS) – Tem. Agora, quando o café acaba, fica todo
mundo desempregado.
PR – E o que se faz quando não é a época do café?
VS – Eu ‘mesmo’, me viro com o meu ‘Bolsinha Família’.
PR – Muita gente aqui recebe o ‘Bolsa Família’?
VS – Todo mundo que eu conheço aqui, recebe.
PR – E além do ‘Bolsa Família’, faz mais o quê?
VS – Eu mesma, quando acho, vou fazer faxina nas casas de família.
Quando a época do café chega, eu saio da faxina e vou ‘panhar’ café.
PR – Tem muita gente que sai da comunidade em busca de emprego,
durante esse período?
VS – É... As ‘mulher’ vão trabalhar em Conquista. Na época do café, elas
param.
PR – E essas mulheres vão para Conquista trabalhar com o quê?
VS – Empregada doméstica, diarista.
PR – E elas vão e voltam ou vão para morar?
VS – As meninas? Vão e voltam, todos os dias.
PR – E os homens? Fazem o quê, quando não é época do café?
VS – Aqui, moça, a maioria dos homens ‘estão’ indo trabalhar nas fábricas,
em Conquista.

Dona Arlete – Morei em São Joaquim e fui expulsa. ‘Panhava’ água no


buqueirão pra criar tanto ‘fio’. Andava com a cabeça pelada, de tanto subir a
ladeira. Eu, não dava nem tempo de trabalhar na roça, porque ficava dentro
de casa, tinha que olhar os ‘fio’.

Saffioti, em obra de 1969, analisa a inserção da mulher na sociedade


capitalista e ressalta a subvalorização das capacidades femininas e sua inserção
marginal no sistema de produção. Ressalta que, na formação econômica e social do
Brasil, a mulher negra nunca esteve fora do sistema produtivo, indo na contramão
dos que afirmavam e generalizavam sobre a reclusão da mulher ao lar (espaço
privado). Sempre atuou nos tabuleiros e em diversas negociações. Para a autora,
no capitalismo, elementos como sexo e raça fazem com que algumas características
sofram desvantagens no processo competitivo.

A mulher das camadas sociais diretamente ocupadas na produção de bens


e serviços nunca foi alheia ao trabalho. Em todas as épocas e lugares, tem
ela contribuído para a subsistência de sua família e para criar a riqueza
social. Nas economias pré-capitalistas, especificamente no estágio
imediatamente anterior à revolução agrícola e industrial, a mulher das
camadas trabalhadoras era ativa: trabalhava nos campos e nas
manufaturas, nas minas e nas lojas; nos mercados e nas oficinas, tecia e
fiava, fermentava a cerveja e realizava outras tarefas domésticas. Enquanto
a família existiu como uma unidade de produção, as mulheres e as crianças
desempenharam um papel econômico fundamental. (SAFFIOTI, 2013, p.
61-62).

Segundo a autora, o modo de produção capitalista alija, em especial, a força


de trabalho feminina. A divisão sexual do trabalho foi utilizada pelo capital, tanto
91

para justificar o pagamento de salários mais baixos às mulheres quanto para


submetê-las a exaustivas jornadas. Em São Joaquim, como a afirmar a permanência
dessa lógica, as representantes da Associação relataram que a falta de emprego
afeta de forma mais incisiva o sexo feminino, já que os fazendeiros preferem
contratar homens para lidar com a terra ou demais trabalhos que exigem força física.
Por isso, houve a escolha de que a Associação fosse liderada apenas por mulheres.
Um projeto embrionário, revelado por Luciene Santos e Lourinha, é a
organização de cooperativas para que as mulheres não sejam obrigadas pelas
circunstâncias a sair da comunidade, em busca de emprego e condições dignas de
vida. Foi relatado o desejo de que, nessa cooperativa, haja a produção de
artesanato com uma planta típica de brejos ou manguezais, denominada taboa ou
pau de lagoa (Typha domingensis), que é bastante comum no lugar. Contudo, as
duas lideranças afirmaram que não foi possível viabilizar esses planos, pois não
possuem incentivos financeiros e/ ou cursos de formação. Por ser resistente, a fibra
da taboa é utilizada para a produção de utensílios, como bolsas, cestos e caixas.
Segundo elas, o artesanato poderá mudar a vida das mulheres do entorno e, mesmo
com todas as dificuldades relatadas, o projeto não será abandonado.

3.1.1 A mulher e o eucalipto

Ferreira (2007, p.5) faz uma reflexão sobre a destruição de ecossistemas pela
ação de projetos agroindustriais, em comunidades tidas como tradicionais, e analisa
a situação feminina nesse contexto:

No caso da América Latina, a destruição de ecossistemas pela ação de


grandes projetos agroindustriais, em especial, tem levado populações
indígenas, quilombolas e camponesas, as mais afetadas, a conviverem com
mudanças drásticas no/do seu ambiente e a experimentarem perdas
materiais e simbólicas das mais diversas. No caso específico das mulheres,
elas têm vivenciado profundas mudanças na divisão sexual do trabalho, nos
papéis que desempenham na família e na comunidade, intensificando,
ainda mais, a sua condição subordinada.

Sabemos que a divisão sexual do trabalho existe em qualquer espaço/ tempo,


no entanto, a autora chama atenção para a intensificação desse processo em
92

comunidades tradicionais. E tece argumentos sobre a relação entre a questão


ambiental e a organização política das mulheres, afirmando que o atual modelo
hegemônico de desenvolvimento escolheu as mulheres como uma das suas
principais vítimas.

O agravamento da questão ambiental no cotidiano das mulheres e sua


relação político-organizativa têm se desenvolvido numa escala global e
sinalizam a voracidade da globalização hegemônica também sobre elas, em
diversas partes do planeta (FERREIRA, 2007, p.4).

Ferreira reforça a sua afirmação ao citar um trecho do documento


Plataforma de Ação Beijing36 e apresentar a seguinte reflexão: [...] “as mulheres
rurais e as indígenas são as mais afetadas pela contaminação e deterioração
ambiental, cujas condições de vida e subsistência diária dependem diretamente de
ecossistemas sustentáveis”. É importante ressaltar que as comunidades negras
rurais apresentam essa característica de ligação com os ecossistemas.
A autora também denuncia que as privatizações promovidas pelo Fundo
Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial, em especial nos países do sul,
levaram a reduções de investimentos em serviços essenciais para a população,
como: saúde, educação e bem-estar social. E demonstra que essas questões
incidem diretamente sobre as condições de vida dos pobres e das mulheres. Põe em
evidência que a situação torna-se mais grave quando se trata de populações locais,
que dependem dos ecossistemas para a sobrevivência, como é o caso do objeto de
estudo desta pesquisa.
As questões relacionadas à saúde e educação foram preocupações
primordiais para as mulheres, quando falaram sobre o sentimento com relação à
comunidade. Fernanda de Jesus Salgado lamentou por não ter uma creche em São
Joaquim, não permitindo que mulheres se dediquem ao trabalho e aos estudos,
assim como a falta de atendimento médico no único posto de saúde. Algumas mães
relataram não poder realizar o trabalho sazonal em Vitória da Conquista, por não
terem com quem deixar os filhos e que se existisse a creche local, teriam a liberdade
de procurar emprego fora da comunidade, que oferece poucas opções de trabalho.
A senhora Maria José, de 41 anos, disse que gosta “mais ou menos” de residir no
local, pois falta saúde e creche.

36
Documento resultante da Conferência Mundial de Mulheres, realizada em Pequim, em 1995.
93

3.2 COM O QUÊ ELAS E ELES TRABALHAM?

Em mais de 90% das entrevistas, as informantes afirmaram os mesmos tipos


de trabalho exercidos pelos membros da comunidade, desde a sua constituição.
Assim como os mesmos perfis dos trabalhadores (as) e que as relações de trabalho
permanecem praticamente as mesmas, ou seja, a exploração do camponês.
Segundo Gerab (2009, p. 9-10):

A força de trabalho é um tipo de mercadoria especial nesse processo de


geração do lucro. Ela é composta pelas mulheres e pelos homens que,
desprovidos de qualquer posse, contam apenas com a força dos seus
corpos e suas capacidades intelectuais para conseguirem sobreviver. O seu
caráter especial é devido ao fato de que, às determinações de mercado,
somam-se as necessidades e interesses imediatos e históricos desses
despossuídos para definir o seu preço, que é chamado de salário.

Geralmente, atuam na colheita do café, todavia, necessitam procurar


empregos em áreas externas ao local onde moram. Concomitantemente, algumas
mulheres saem da comunidade durante a semana para trabalhar como empregadas
domésticas ou diaristas, no entanto, em época de colheita preferem a ocupação nos
cafezais. Outras dizem viver da renda do Programa Bolsa Família, junto com as
pequenas produções realizadas nos quintais. Os homens, quando não trabalham
com atividades da terra, são empregados nas fábricas de Vitória da Conquista, na
construção civil, como pedreiros e ajudantes de pedreiro, ou estão desempregados.
Esse último caso é agravado quando o homem encontra no álcool a “saída” para os
problemas, fazendo com que aumente o índice de violência doméstica.
Alguns dos moradores já trabalharam nas fazendas de eucalipto, no entanto,
passada a fase inicial, foram dispensados dos seus postos. Alguns poucos
continuam a atuar em áreas onde se iniciou recentemente o processo de expansão
dos eucaliptais, mas sem esperanças de continuidade, pois é sabido que existe um
tempo determinado para empregar as pessoas nesse tipo de cultivo. Segundo
Lourinha, “alguns têm que trabalhar lá, não tem jeito, pois não ‘vai’ passar fome”.
Para melhor entendermos as questões colocadas, analisaremos relatos sobre
as relações trabalhistas em São Joaquim de Paulo. Os filhos da Sr.ª Maria Alves, por
exemplo, trabalham “pros outros”, em fazendas de café, “hoje, só o que se fala é
94

isso”. As fazendas absorvem a mão de obra no interior da comunidade. Na ausência


de emprego nos cafezais, resta o êxodo e a procura de emprego fora, como contam
Valdelice Salgado, Zumira Maria de Jesus e Fernanda de Jesus Salgado:

Poliana Reis (PR) – Você trabalha aqui?


Valdelice Salgado (VS) – Na época de café, em março, abril, maio e junho.
PR – Regime de ‘meia’?
VS – Recebe por lata.
Júlia Garcia – Quanto você recebe por lata e quantas latas tira por dia?
VS – Dois reais, uma lata. Eu tiro 12, 14, 18 latas por dia. A gente trabalha o
dia todo, até quando dá.

Poliana Reis (PR) – Tem muita gente saindo da comunidade pra trabalhar?
Zumira Maria de Jesus (ZMJ) – A maioria ‘tão’ trabalhando tudo fora.
Mulher é doméstica, faxineira, e os ‘homi’ ‘é’ dessas ‘firma’ aí. E os que não
trabalham lá, tão trabalhando aqui, no café. Na fazenda de Nilo Coelho.
PR – Na fazenda de Nilo Coelho? Fica pra que lado, essa fazenda?
ZMJ – Pro lado do Capinal.

Poliana Reis (PR) – O povo aqui trabalha com o quê?


Fernanda de Jesus Salgado (FJS) – Trabalhava com café, na fazenda de
Netinho, mas ele vendeu. Tanto homem quanto mulher. Agora, estão mais
em Conquista, como doméstica, pedreiro... Porque ‘acabou’ as roças. Vão
trabalhar em outras fazendas: na fazenda de Nilo Coelho, no café.
PR – E onde fica essa fazenda?
FJS – Perto da Mariana.

Fernanda confirmou a presença de eucalipto na comunidade e que, no


entanto, não são muitos os que trabalham nessas fazendas. Em geral, o sustento
fora da época da colheita do café se dá por meio do Programa Bolsa Família, faxina,
no caso feminino, e trabalho nas fábricas para ambos os sexos, em sua maioria para
os homens, que também atuam como pedreiros ou ajudantes de pedreiro.
Seu Alcides e a Sr.ª Zumira Maria de Jesus (Dona Alzira) trouxeram
elementos novos sobre a época da cana-de-açúcar e a diminuição do plantio de
mandioca, com praticamente a extinção das casas de farinha, que funcionavam da
seguinte maneira:

Poliana Reis (PR) – Como funcionavam as casas de farinha?


Aurino Ferreira (AF) – Motor.
Robério Santos (RS) – Exatamente!
PR – Tinha muitas aqui?
RS – Muitas!
Maria Santos – Todas as casas de roda ‘era’ de roda de mão!
PR – Roda de mão? Como funcionava, Dona Maria?
95

Maria começa a explicar o processo e Robério a interrompe:


Robério Santos (RS) – [risos] Esse já é o segundo processo, o terceiro
processo, aí tinha roda de mão, era a engenhoca movimentada pelos
braços, pela mão dos homens, ‘jogava’ a roda, e tinha também... Me lembre
aí, por favor, como chamava aquela roda dos burros, dos ‘cavalo’?
Aurino Ferreira (AF) – Aí depois, aqueles homens mais ‘forte’...
RS – Os homens de dinheiro, os fazendeiros faziam uma tal de...
Maria Santos (MS) – Moenda!
AF – Quando eu era pequeno, eles faziam uma roda de mão... Eu dou
risada. Mas o fazendeiro, ele tinha um alqueire, dois de...
RS – Mandioca.
AF – Mandioca, com esses matos...
RS – Criava muito porco!
AF – Essas rodas de mandioca, eles então tinham uma moenda. Era um
cavalo e um burro que puxava, aí era igual um motor.
RS – Tinha mais força! Muita força! Hoje estamos num tempo moderno,
tudo motorizado... E o pessoal cantava as músicas, cantiga de trabalho.

A diminuição do cultivo de mandioca é atribuída à redução das áreas de


lavoura e à dedicação dos moradores à colheita realizada nos cafezais.

Poliana Reis (PR) – Aqui, as pessoas trabalham com o quê?


Seu Alcides (SA) – Toda vida, meu pai criou ‘nós’ com a lavoura de cana,
mandioca. Fazia tijolo, rapadura. Criou a gente assim, desde o mais ‘véio’,
Diogo, fazendo uma farinha, um beiju... A cana fazia a rapadura, o tijolo...
PR – E a roça era de vocês?
SA – A roça era nossa, graças a Deus.
PR – E deixou de ser de vocês quando?
Zumira Maria de Jesus (ZMJ) – É da gente ainda. Despois que pai morreu,
deixou a gente tocando.
SA – É. Foi quando meu pai morreu, o que ele deixou foi acabando. Porque
você sabe... Mas eu tô vivendo a vida... Já me aposentei, ele [Diogo]
também é aposentado. Os mais ‘véio’ ‘é tudo aposentado’ e vivendo aí...
Júlia Garcia (JG) – Aposentado como trabalhador rural?
ZMJ – Sim!
PR – Aqui tem casa de farinha?
SA – Tinha. Tinha uma, eu e ele aqui [Diogo], mas acabou.
PR – E era de quem? Era de algum proprietário ou era coletiva?
SA – Não! Era meu mais dele aqui. Era nossa.
ZMJ – Não tinha mandioca. Não tinha mandioca em canto nenhum, né?
JG – A senhora também é aposentada?
ZMJ – Eu sou.
PR – Como trabalhadora rural também?
ZMJ – Sim!
PR – Você atribui a quê essa diminuição da mandioca? Por que acabou?
ZMJ – É porque a gente não tinha mais lavoura, não tinha roça, nada.
SA – Aí quando tem os ‘fio’, eles que ‘tomasse’ conta. Chegou essa coisa
de café agora por aqui e foi desleixando as roças, acabando... Acabou
mesmo. Ninguém aqui tem um pé de mandioca.
JG - Deixou de trabalhar na sua roça pra trabalhar na colheita do café?
SA – Pois é... Os ‘fio’ de hoje ‘é’ o estudo. Se mandar um menino desse aí,
de 18 anos, pra pegar uma enxada, ele nem sabe.
PR – Mas estão estudando?
SA – ‘Tão’ estudando. Estudando pouquinho, mas ‘tá’.
PR – Eles falam com o que querem trabalhar?
SA – Não falam não. Por enquanto, pra mim, não fala não. Eu não tenho
‘fio’. Tem uma menina...
96

No final do depoimento, atentamos para como as relações de trabalho


passam por mudanças significativas com relação à juventude, quando Seu Alcides
revela que o jovem não quer mais “pegar uma enxada”.

Poliana Reis (PR) – Aqui na comunidade tem rio?


Seu Alcides (SA) – Tem não. Tem esses pontos aí... Açudes.
Júlia Garcia – Mas já teve?
SA – Rio, não.
PR – Onde é o brejo aqui?
SA – O brejo é ali embaixo.
PR – Vocês usam o brejo?
SA – Não, senhora.
PR – Não? Mas já usaram?
SA – Já usaram muito.
PR – E por que não usa mais?
SA – Porque o pessoal é como eu vou dizendo, vai desleixando....
Zumira Maria de Jesus: Abandonou tudo.
SA – Abrir uma cisterna... Ah, é difícil... Eu vou dizer a verdade: a mulher,
hoje, não quer pegar uma galinha no terreiro pra matar.

Nesse ponto, mais uma referência a como os trabalhos domésticos


(reprodutivos) são vistos como uma responsabilidade e obrigação feminina. Em
todas as casas em que realizamos as entrevistas, algum homem pediu, insinuou ou
ordenou que “a mulher da casa” fosse preparar algo para comermos, mesmo ao
dizer que não era necessário e que era importante a participação delas nas
conversas.
Diante dos depoimentos, pudemos verificar o modo como a terra era e ainda
é utilizada, assim como a interferência de outros sujeitos; o extrativismo dos
recursos naturais; os meios produtivos; e a divisão sexual do trabalho, em meio ao
conflito. Pois, na conjuntura patriarcal-racista-capitalista37, essa divisão é um
obstáculo para a inserção da mulher em determinados espaços e atividades
atribuídas ao domínio masculino. Tanto no espaço rural quanto no espaço urbano.
Também observamos o uso do espaço relacionado às noções de território e
territorialidade e o desenvolvimento das práticas produtivas que transformam e
remodelam a paisagem.

37
Essa expressão representa o “Nó” de Saffioti (1969). Para a autora, os três fatores (sexo, raça,
classe) não podem ser analisados de maneira isolada.
97

3.3 ATIVIDADES PRODUTIVAS EM SÃO JOAQUIM DE PAULO

A sobrevivência econômica da comunidade, segundo a Sr.ª Guiomar e alguns


outros moradores, sempre foi retirada da terra. A diferença verificada diante dos
discursos é que antes os camponeses eram os donos das roças e trabalhavam de
forma coletiva. Atualmente, a terra é propriedade privada, cercada e concentrada na
posse de grandes fazendeiros e políticos importantes. Além disso, o sustento era
obtido com a criação de animais, atividades extrativas, produção de farinha e de
carvão.
Como vimos, a maioria dos moradores trabalha nos cafezais dos fazendeiros,
recebendo pouco dinheiro e em um regime chamado “terra de meia”: parte do que é
produzido fica para o “dono das terras” e uma pequena parcela para a classe
trabalhadora. Dona Maria Alves Almeida explica como funcionava esse regime, na
fazenda onde ela, uma senhora de 76 anos, trabalhou durante pouco mais de 40
anos: “O trabalho era de meia, mas quando dava bem, dividia e quando dava
pouquinho, ele fica só pra ele”. Nessa frase, fica explícito que era o patrão quem
determinava quanto e o que seria o pagamento dos seus subordinados (as).
Também constatamos que os antepassados trabalhavam nas roças por meio
do mesmo regime, só que, ao invés do café, tinha-se a cana-de-açúcar.
Concomitantemente ao “dia dado de trabalho” ao fazendeiro, também plantavam em
suas roças. Contudo, a atividade produtiva da agricultura de subsistência e criação
de animais, na atualidade, está praticamente extinta, devido à falta de acesso e
autonomia sobre a terra, por parte do camponês. Robério Santos também nos
esclareceu como se dava essa relação:

Poliana Reis – Como as pessoas viviam nesse tempo inicial? Com o que
trabalhavam?
Robério Santos – Muito bem! Quando você pergunta como vivia esse
povo, eu quero entender que você quer saber de uma forma geral, não é? O
modo de vida próprio, dito vida sustentável, não é? Ah... E também no modo
social, a forma social de viver, né? Aqui tinha benzendeira, rezadeira,
rezador, benzendor, raizeiros. Aqui tinha... Até porque, também tinha...
Acho que o que aqui bem tinha era pistoleiro também, tinha sim... E nós
sempre ‘tocava’ as roças e os fazendeiros se aproveitavam das nossas
práticas. Sempre se aproveitaram, mas com o tempo, piorou.
98

Na contemporaneidade, as famílias de São Joaquim criam alternativas que


lhes possibilitam continuar reproduzindo-se enquanto grupo social, principalmente
no que diz respeito ao mundo do trabalho. Agora, entenderemos o desenvolvimento
das atividades produtivas ao longo das gerações. O que essas atividades possuem
em comum é que, regra geral, são contratações temporárias, informais, exaustivas e
mal remuneradas.

3.3.1 Agricultura de subsistência

A diminuição dos cultivos agrícolas traz consequências negativas para a


comunidade. Dentre elas, há o risco posto à segurança alimentar, devido à carência
nutricional proveniente da diminuição do consumo dos alimentos antes cultivados na
área de roça. A falta de mandioca ocasionou, por exemplo, o fechamento de
algumas casas de farinha, que perderam a funcionalidade. Como mostram diálogos
anteriores, com Dona Alzira, principalmente. No trecho da entrevista com Dona
Guiomar, ela fala sobre o pouco espaço para plantar:

Poliana Reis (PR) – E vocês plantam onde?


Dona Guiomar (DG) – No quintal, só no quintal, né? É um quintalzinho.
PR – E planta o quê?
DG – Eu planto mandioca. Agora foi que nós ‘perdeu’ a mandioca, perdeu
batata, perdeu tudo...

Como revelado nos depoimentos, poucas pessoas possuem lotes de terra na


comunidade e os quintais, que nem sempre são encontrados nas residências, são
considerados pequenos para a prática agrícola. Antes, eram cultivados em São
Joaquim: mandioca, feijão, milho, batata, dentre outros. No entanto, não existe mais
espaço para esses cultivos.
99

3.3.2 Atividades extrativas

De acordo com Fernanda Salgado e sua avó Maria (conhecida na


comunidade como Tia), existe uma pequena quantidade de mata no entorno de São
Joaquim de Paulo. Anteriormente, era bastante vasta, onde, na contemporaneidade,
realizam-se atividades como: retirada de frutas e madeira (extrativismo vegetal),
caça (extrativismo animal), principalmente do tatu. A Tia diz que, “de primeiro, tinha
muito tatu. Nego perdia noite no mato, pra pegar tatu”. E a neta informou que os
meninos caçaram tatu, há pouco tempo, no local conhecido como Quatis da
Fumaça.
A Tia fez uma expressão que se assemelhou a um misto de surpresa e
preocupação e propôs que a mulher não pode comer tatu em um momento
específico (período menstrual) e que as mais velhas sempre usaram salsa quando
estavam “paridas”. Mesmo sem estarmos no estado de “paridas”, ela nos presenteou
com salsa retirada da sua horta.

3.3.3 O Trabalho dos membros de São Joaquim, no “deserto verde” 38

Durante o levantamento bibliográfico, ao analisar estudos com foco na


monocultura do eucalipto, pudemos constatar que, geralmente, os empregos surgem
em quantidade expressiva apenas no momento inicial e de forma voltada para o
público masculino. Na comunidade em questão, isso pode ser comprovado. Dentre
algumas evidências, existe o fato de que poucos alegaram ter trabalhado nos
campos de eucalipto. No depoimento de Robério Santos, ele diz que “quilombolas
foram convocados para trabalhar na aplicação de agrotóxico nos campos de
eucalipto, mas só no período inicial”.
Além do mais, a instalação de tais projetos, em linhas gerais, não leva em
consideração as questões ambientais, e, sobretudo, a forma como as populações

38
Expressão utilizada pelos movimentos sociais para designar monoculturas de eucalipto.
100

lidam tradicionalmente com os territórios e a relação de identidade com os seus


elementos. Dito isso, faz-se necessário destacar o pensamento de Almeida (2006,
p.122) sobre as deficiências nas políticas ambientais e agrárias brasileiras:

As políticas ambientais e agrárias ressentem, neste sentido, da


incorporação dos fatores étnicos e identitários nos seus instrumentos de
intervenção direta e daqueles outros recursos técnicos que lhes possam
permitir uma compreensão mais precisa das modalidades de uso comum
vigentes.

Diante do exposto, precisamos ressaltar a necessidade de que se realizem


políticas sociais de reparação aos danos historicamente causados às minorias
oprimidas por questões étnico-raciais, de gênero e territoriais, como as comunidades
quilombolas, e desse modo, sejam restituídas a justiça e a dignidade. Para isso, o
primeiro passo, é que, ao invés do que foi feito em 1988, quando uma Emenda
Constitucional (EC) transformou os então deputados e senadores em um Congresso
Constituinte, defendemos a necessidade de uma Constituinte Exclusiva e Soberana
do Sistema Político Brasileiro39. Para que os erros do passado não sejam repetidos,
a assembleia constituinte deverá ser composta por representantes eleitos,
exclusivamente, para pensar e criar o novo sistema político.
Entre os dias 1 e 7 de setembro de 2014, cerca de 400 organizações, dentre
elas a Consulta Popular, realizaram uma campanha para saber se os brasileiros e
brasileiras desejavam a convocação da assembleia. O plebiscito popular, sem valor
legal, mas serve como instrumento que pressiona o poder público a se posicionar a
favor do povo, teve a seguinte pergunta: “Você é a favor de uma constituinte
exclusiva e soberana sobre o sistema político?” O “sim” teve quase oito milhões de
votos, mas a grande mídia deu pouco valor a esse evento. (RIBAS, Org. 2014).

39
A elaboração da Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político é uma das principais
bandeiras defendidas pela Consulta Popular, partido revolucionário do qual, orgulhosamente, faço
parte. Esse partido tem como objetivo o Poder Popular.
101

4 AS IMAGENS QUE DÃO ROSTO À RESISTÊNCIA DE SÃO JOAQUIM DE


PAULO

[...] o poder, em si, é uma faca de dois


gumes, operando de cima para baixo como
dominação, e de baixo para cima como
resistência.
Sherry Otner

Do mesmo modo como na escrita de um texto, o uso de imagens em um


trabalho também possui uma intencionalidade por parte do pesquisador. E não está
isenta da interpretação do leitor.

A questão que move o pesquisador que se utiliza da imagem como dado de


pesquisa abrange dois aspectos: como produtor e como intérprete. Em
relação ao primeiro aspecto, os dados visuais são o resultado de uma
escolha (qual cena?, qual recorte?, qual foco?); em relação ao segundo
aspecto, a produção de significados está diretamente relacionada ao olhar
de quem interpreta a imagem (qual referente?, qual contexto?). Embora à
primeira vista pareçam questões simples, elas dizem respeito a momentos
diferenciados da produção e da interpretação do produto visual e, portanto,
precisam ser compreendidas em sua complexidade, o que envolve tempo/
espaço de produção. (GILBERTO, 2014, p.53).

Sendo assim, o recurso imagético utilizado em pesquisas qualitativas deve


desempenhar um papel além do que um mero instrumento ilustrativo. Tem que
proporcionar sensações e informações novas.

Em se tratando de pesquisa qualitativa, a contextualização das imagens


possibilita adentrar na subjetividade do pesquisador enquanto produtor da
imagem e na objetividade do produto final, que é reveladora da
intencionalidade de quem produziu o objeto visual. A existência de
descrições ou de relatos sobre as imagens produzidas, principalmente em
se tratando de documentos históricos, poderá constituir-se em suporte
significativo para melhor compreensão das cenas fotografadas ou gravadas
em vídeo. (GILBERTO, 2014, p.54-55).

Portanto, este capítulo foi formulado com o objetivo de contextualizar as


imagens da comunidade negra rural São Joaquim de Paulo e uma parte da
subjetividade vivida por nós, pesquisadoras, com o auxílio de descrições sobre as
pessoas, lugares ou dos momentos construídos ao longo dos campos. Contudo, não
102

objetivamos demonstrar técnicas fotográficas. As imagens foram utilizadas com o


singelo intuito de apresentar um pouco do que foi vivido durante o período de um
ano, aproximadamente.

No que tange a outros aspectos em relação à metodologia da imagem,


apontados por Bogdan (1994), há que se destacar a importância da imagem
como uma ferramenta que poderá trazer revelações novas à investigação,
proporcionando ao pesquisador a possibilidade de avaliar informações
sobre o que as pessoas retratadas valorizam e definem em seu mundo.
Essa análise poderá ser feita a partir do cenário, das roupas dos figurantes,
dos objetos e de outros elementos presentes na imagem. (GILBERTO,
2014, p.53).

Diante disso, esperamos que as fotografias produzidas e apresentadas


possam oferecer novas questões ao texto. Foram tiradas por Poliana Reis e Júlia
Garcia, durante todas as fases da pesquisa de campo. Alguns personagens não
aparecem, pois preferiram não ter a imagem divulgada e, como não poderia ser
diferente, as suas escolhas foram devidamente respeitadas.

4.1 OUTRAS QUESTÕES SOBRE SÃO JOAQUIM DE PAULO

Sei que não foi possível demonstrar, com a riqueza de detalhes merecida, o
cotidiano das pessoas desse lugar, pois as relações são muito complexas e
qualquer forma de descrição da realidade tende a simplificá-las. Entretanto, gostaria
de compartilhar alguns momentos divididos por nós, durante a execução das
atividades de campo. As fotos deste subitem demonstram, na medida do possível,
as primeiras descobertas, as inquietações iniciais, os medos, a coragem e o fruto do
trabalho dos personagens que vivenciaram a produção desta pesquisa.
103

4.1.1 Caracterização do espaço agrário: primeiro momento

A Foto 1, abaixo, foi tirada no dia em que cheguei a São Joaquim de Paulo.
Chegamos pela manhã, na casa de Lourinha, e no turno da tarde, seria a reunião
mensal dos associados. Estava apreensiva e com receio de não ser aceita pela
comunidade, pois seria apresentada no encontro vespertino e poderia ter a minha
proposta aprovada ou não.

Foto 1 – Entrada de São Joaquim de Paulo

Lembro, exatamente, o meu pensamento, no momento de enquadrar essa


paisagem, que representa uma das entradas do lugar. Como foi Luciene Santos e o
Sr. Nego que nos conduziram até o local, quis guardar a foto acima para que,
quando no meu retorno sem guias, reconhecesse o local de acesso ao objeto de
estudo. A preocupação de iniciante resultou na primeira fotografia deste capítulo. As
próximas representam a tentativa de caracterizar o espaço agrário.
O tempo das valetas, em São Joaquim de Paulo, faz parte do passado. O
arame farpado é um elemento presente na paisagem, porém, as cercas vivas
104

predominam (Foto 2). Pelo menos, nas poucas terras que restam para os
moradores. Consistem na junção do arame com as plantas que preenchem os
espaços. De acordo com os proprietários rurais, as cercas vivas atuam como
barreira para os ventos e diminuem o processo de desgaste do solo (erosão),
servem de alimentação para alguns animais, além do valor estético, que também
pode ser percebido nos jardins que decoram o lugar (Foto 3; p.96). Contudo, às
cercas de pés de eucalipto não são atribuídas nenhuma dessas vantagens, apesar
desse tipo existir no território reivindicado.

Foto 2 – Cerca de uma das fazendas


105

Foto 3 – Jardim do sítio São Joaquim

Da entrada da comunidade até o seu final, é possível ver diversas plantações


de café (Foto 4). O mesmo não ocorre com os pés de eucalipto (Foto 5; p.101). Até
então, havíamos presenciado poucos, só os que serviam de cerca para as fazendas,
e não sabíamos a história completa do Salangó. O espaço não pôde ser fotografado,
pois foi visto a distância, já que o acesso é proibido pelos atuais “proprietários”.

Foto 4 – Os primeiros pés de café


106

Foto 5 – Os primeiros pés de eucalipto

Foto 6 – Cancela do Sítio São Joaquim


107

4.1.2 A primeira reunião

Uma das maiores reclamações por parte dos moradores é o fato de não
existir uma sede para a realização das reuniões da Associação. Pelo fato dos
encontros ocorrerem ao lado de um bar (Foto 7), muitos deixam de frequentar as
assembleias, devido a questões religiosas, por exemplo. As lideranças buscam a
construção de uma igreja, para que ocorram as missas e também sirva como sede
da Associação. Robério Santos chegou a pedir ao padre que a paróquia fosse
construída onde era a casa de sua mãe, Ercília Salgado Vieira. Mas o padre
ponderou que isso poderia afastar os fiéis pertencentes ao “São Joaquim 2”, ou seja,
aqueles que não veem a comunidade como quilombola. Como Robério Santos é um
dos principais defensores da causa, esse fato poderia criar um conflito interno.

Foto 7 – Casa de Lourinha: local da reunião e, ao lado, o bar


108

Foto 8 – Congregação Cristã do Brasil

Houve conversas informais no local (Foto 9), antes do início da reunião, que
já foram bastante produtivas para a pesquisa. A técnica Ione, da CAR, estava
presente e quis saber as potencialidades existentes na comunidade. Também
indicou como as lideranças poderiam dar prosseguimento a alguns projetos
pensados em reuniões anteriores, principalmente para o empoderamento feminino.

Foto 9 – Poliana Reis, Luciene Santos e Ione (CAR)


109

Foto 10 – Maria, Elídio, Zé Moreira, Guiomar e Poliana Reis (reunião)

Foto 11 – Manuela, Sandra e Antônia Santos


110

Foto 12 – Reunião

O processo de aquisição de cisternas (Foto 13) foi apresentado pelas


lideranças como resultado da assunção da identidade quilombola. Percebemos que
algumas famílias que não participam das reuniões deixaram de fazer o cadastro
para acesso ao benefício. No entanto, Luciene Santos garantiu que houve inúmeros
avisos e convocações para que todos participassem do programa Água para Todos.

Foto 13 – Cisterna do Programa Água para Todos


111

4.1.3 Os personagens dessa história

O casal José Moreira de Souza (Seu Zé), 67 anos, e Dona Guiomar Carmen
Souza, 68 anos (Foto 14), ficou muito feliz em nos conceder uma entrevista, por
indicação de Luciene Santos. De acordo com ela, seu Zé e Dona Guiomar, que é tia
de Robério Santos, conhecem bastante as histórias antigas da comunidade. Foram
escolhidos, também, por estarem entre os mais velhos, já que a comunidade tem
poucas pessoas idosas. Recebemos convites para visitas posteriores e prometemos
levar a foto revelada, como recordação daquele dia.

Foto 14 – Seu Zé e Dona Guiomar

Nascido nas proximidades de Itambé, Seu Zé, filho de criação do Sr. Edgar
Santos, chegou a São Joaquim por volta de 1970 para trabalhar e lá passou a
morar. Começou a namorar Dona Guiomar Souza e, após o casamento, passou a
fazer parte da família dela e da comunidade. O senhor contou, com orgulho, como
se deu o início do namoro. E, com satisfação, revelou que sabia muitas histórias
112

sobre o lugar, mas que sua esposa sabe mais do que ele, por ser filha de São
Joaquim de Paulo.

Poliana Reis (PR) – Obrigada, Seu Zé. Hoje, a gente está aqui na reunião,
mas ainda vou procurar o senhor para nós conversarmos. Obrigada!
Seu Zé: Tá bom! Eu tenho muita história de quando eu comecei a namorar
com ela [Dona Guiomar]. Através da comunidade aqui, eu comecei a
namorar com ela. Entrei na família!
Poliana Reis – Pronto! Eu vou querer saber de tudo!

Nascida e criada em São Joaquim de Paulo, Dona Guiomar teve oito filhos
(cinco mulheres e três homens), sendo que um morreu. Atualmente, é avó de nove
netos e, assim como a jovem Fernanda Salgado, lamentou não existir uma creche
no local. Sente saudade dos filhos que migraram da comunidade para trabalhar e
espera ansiosa a visita deles. A senhora comemora a chegada das cisternas:

Júlia Garcia: Vai colocar a cisterna lá?


Dona Guiomar: Vai colocar. Tá colocando já. Eu ‘tô’ tão alegre com essa
cisterna! Porque nós ‘vai’ ter uma horta que nós vamos fazer. Porque nós
‘tem’ uma cisterna dessa pequena, mas não dá, porque são três casas.

A Foto 15 é do casal Arlete e Laudilino. Os dois são trabalhadores da roça e


foram expulsos da terra que, desde a época dos avós, pertencia à família do Sr.
Laudilino. Na atualidade, vão a São Joaquim para participar das reuniões da
Associação e estão felizes com a possibilidade de reaverem a terra perdida.

Foto 15 – Seu Laudilino e Dona Arlete


113

Foto 16 – Alício, Aurino, Poliana Reis, Seu Nego, Lourinha e seu Zé.
(Coleta dos pontos para a produção do mapa)

4.1.3.1 Robério Santos, Robério Quilombola: o negro Robério!

Robério Santos nasceu no dia 9 de janeiro de 1956. Aos 59 anos, o seu maior
desejo é conseguir a titulação do território São Joaquim de Paulo como quilombola.
O “Negro Robério” já foi vereador no município de Vitória da Conquista, pelo PT.
Atualmente, é assentado pelo MST, liderança quilombola de São Joaquim e sente
muito orgulho da filha, Rilza Santos. A jovem é formada em psicologia,pela UFBA.

Foto 17 – Robério, em uma das entrevistas


114

Robério gosta de contar os mitos da comunidade, dentre os quais


destacamos o de “Ureinha” (orelhinha).

Muita gente diz que viu e era um bicho de orelha bem pequena e que tinha
uma cor ‘ofusca’. Parecia com um urso, a traseira bem larga. Não saiu,
outro dia, na novela, o ‘cadeirudo’? Era mais ou menos aquilo ali. Então, ele
andava de quatro e tinha a cabeça e a orelha pequena. Não tinha rabo e
meu pai contava casos de pessoas que se assombravam. Tio Lídio foi
pescar e quando chegou com uma fileira de traíra, daqui a pouco tá
‘ureinha’ na sombra da moita, sentado, olhando pra ele, com as mãos no
queixo. E tinha muito mato, hoje em dia, não tem quase mais nada. Tio
Lídio pensou: ‘pra onde eu vou, que só tem mato?’. Eu vou passar por cima
desse bicho. Disse que ele trancou os ‘zoio’ e passou por cima do bicho.

Foto 18 – Carteirinha de quando era Coordenador Geral da Associação

Foto 19 – Verso da carteirinha de Coordenador Geral da Associação


115

4.1.3.2 Quem são as mulheres de São Joaquim.

Reafirmamos que o âmbito privado, tratado aqui como espaço doméstico, é


regra geral, ocupado por mulheres, em especial as camponesas. O homem, por sua
vez, desempenha as suas tarefas no espaço público (externo ao ambiente da casa).

A partir de tal tradição tem se pretendido estabelecer a visão de uma


sociedade dividida em duas esferas separadas com pouca inter-relação e
baseadas em princípios antagônicos. Por um lado, a esfera pública
(masculina), que estaria focada no que se considera social, político e
econômico-mercantil e regida pelos critérios de êxito, poder, direitos de
liberdade e propriedade universais etc., e relacionada fundamentalmente
com a satisfação do componente mais objetivo (o único reconhecido) das
necessidades humanas. Por outro, a esfera privada ou doméstica
(feminina), que estaria focada no lar, baseada em laços afetivos e
sentimentos, desprovida de qualquer idéia de participação social, política ou
produtiva e relacionada diretamente com as necessidades subjetivas
(sempre esquecidas) das pessoas. Nessa rígida dualidade, somente o
mundo público desfruta de reconhecimento social. A atividade ou
participação na denominada esfera privada, destinada socialmente às
mulheres, fica relegada ao limbo do invisível, o que lhe nega toda
possibilidade de valorização social40 (CARRASCO, 2002).

Na atualidade, a mulher, cada vez mais, atua no público (no caso da mulher
negra, sempre houve a atuação nos dois espaços), porém, as responsabilidades
com atividades domésticas, como cuidar da casa, dos filhos e dos idosos, são
atribuídas, no imaginário social, ao sexo feminino. O que obriga a mulher a ter uma
dupla jornada de trabalho (trabalho doméstico e trabalho mercantil).

40
Apresentação realizada no Seminário do Fórum Social Mundial (FSM), Porto Alegre, 2002,
baseada no artigo publicado na revista Mientras Tanto (n. 82, out.-inv. 2001, Barcelona, Icaria)
116

Foto 20 – Dona Maria

Na lógica das trabalhadoras rurais, essa sequência de ideias é intensificada e


a divisão sexual do trabalho permeia as relações, relegando a mulher à reclusão da
casa ou a trabalhar fora e, mesmo assim, ter que assumir sozinha as tarefas
domésticas. O próprio ato de trabalhar externamente é, na grande maioria, uma
continuação dos serviços da casa (limpar, passar, cuidar). Portanto, em São
Joaquim de Paulo, para superar essa hierarquia social, as mulheres que participam
das tomadas de decisões, enfrentaram e enfrentam as barreiras patriarcais
traduzidas na autoridade e resistência masculina.
117

Foto 21 – Júlia Garcia e Lourinha

As mulheres estudadas nesta pesquisa atuam nos dois espaços


mencionados, indo da casa ao roçado (mesmo que aqui a preferência de atuação
seja dada aos homens), além de trabalharem nas fábricas de Vitória da Conquista.
Esse fato que, de início, pode parecer algo isolado, afeta os rumos que poderiam ser
dados à titulação do território. Homens e mulheres vivem o espaço de forma
diferenciada e as barreiras mencionadas para as mulheres fazem com que elas,
muitas vezes, não se expressem ou o façam de maneira tímida e não participem das
tomadas de decisão. Se o fizessem, decerto, o território teria outra conformação,
tanto em seus limites quanto em prioridades de inclusão dos lugares considerados
necessários para a reprodução da vida comunitária.
118

Foto 22 – Luciene e os trabalhadores

Felizmente, essa relação passa por um processo de mudanças, no que se


refere a algumas mulheres pertencentes a São Joaquim de Paulo que ocupam
cargos de poder e de tomada de decisão. A Associação é dirigida, principalmente,
por duas lideranças femininas (Luciene e Lourinha), que lutam para a realização de
uma cooperativa e, assim, poderem ajudar as companheiras a ter uma profissão e
para que não precisem migrar da comunidade.
Dona Arlete (Foto 23) tem 77 anos e teve nove filhos, dos quais apenas um
(Gilmar) continua a morar na comunidade. A senhora sente saudade das festas
antigas e não aprova o modo como as festividades ocorrem na atualidade em São
Joaquim de Paulo. A mulher alegou que nunca pôde dedicar-se muito ao trabalho,
pois tinha que cuidar dos filhos. Mesmo assim, sempre participou dos mutirões de
trabalho (adjunto e roubo). Dona Arlete gosta de falar sobre os mitos da
comunidade. Como no caso da cobra que mamava no seio das mulheres de
“resguardo”
119

Dona Arlete (DA) – Sabe por que as cobras frequentavam as casa? Pra
mamar! A mulher tava parida e a cobra botava o rabo na boca do neném e
mamava no peito da ‘muié’. A ‘muié’ adormecia e a cobra mamava,
mamava, enchia a barriga. E o menino passando fome, chupando o rabo da
cobra. O homem disse que chegou, a ‘muié’ tava criando o neném, aí foi no
quarto e viu o cabo na boca do menino e mamando no peito da mulher.
‘Meu Deus! O que é que faço agora? Se eu atirar na cobra, mato a mulher.
Vou esperar!’ A cobra mamou, mamou, mamou. Aí que ela desceu, subiu
em cima do fogão, ‘num’ tinha aquele fogão de giral? Que ela subiu, fez a
‘arrudia’ e ficou lá. Quando ele atirou, disse que só tinha leite na cobra. Não
contou à mulher, porque tava de resguardo. Naquela época, a mulher tinha
resguardo, comia pirão de farinha, ‘carninha’ de carneiro, comida leve, com
cominho, cebola branca e alho. E a temperada! Você sabe o que é a
temperada?
Poliana Reis – A cachacinha [risos].
DA – Olha! Isso! Tinha mulher que ficava até um ano sem lavar a cabeça. A
‘muié’ hoje, no dia que ela ganha o neném, ela lava o cabelo.

Foto 23 – Dona Arlete: “Já morei até em casa de sapé, debruçada de capim. Dava um trovão,
clareava tudo lá em casa. E hoje, fomos ‘expulso’.”.

4.1.3.3 A labuta da “Tia”

Dona Maria (a Tia) mora em São Joaquim de Paulo desde que nasceu. E no
auge dos seus 74 anos, não gosta de conversar com as pessoas “de fora”, porque
não escuta direito e tem receio de que os demais interlocutores não tenham
paciência para repetir os enunciados. Mesmo assim, fomos recebidas com carisma
pela Tia, que, de início, disse que na comunidade todos são irmãos e que a sua vida
é guiada pelo trabalho com a terra: “Eu não ‘guento’ lavar uma roupa...
120

Desacostumei fazer comida e tudo. Agora, pro lado de uma enxada... Eu gosto de
lidar com o negócio! Essa mandioquinha que vocês estão vendo é minha, esses
aqui... Tudo é meu ganho, tudo é de meu braço”.

Foto 24 – Dona Maria (a Tia)


121

Foto 25 – Horta no quintal da Tia

Foto 26 – Colheita de mandioca


122

Foto 27 – As ervas

A Tia41 teve 13 filhos, mas “Deus levou oito”. A senhora se orgulha de sempre
ter trabalhado para ela mesma e nunca ter “dado um dia de trabalho” para terceiros.
Sente falta do marido, que morreu há pouco tempo e diz que seu consolo e apego é
a neta Fernanda de Jesus Salgado, que mora com ela e nos deu entrevista, mas
não quis tirar foto. Conhecedora de plantas medicinais, Dona Maria nos ensinou
alguns “remédios do mato” bons para a saúde da mulher. A Foto 28 mostra a salsa
que recebemos como um presente.

41
Dona Maria é tia de Robério.
123

Foto 28 – Salsa

4.1.3.4 Dona América de Jesus (Fifia)

Dona América tem 64 anos e nasceu em São Joaquim de Paulo. Teve 10


filhos, dos quais cinco morreram. Os demais continuam a morar na comunidade.
Todos trabalham na roça, são lavradores nas fazendas de café de outras pessoas.
Fifia, como é conhecida, sempre teve que dividir o tempo para trabalhar na roça e
exercer as tarefas domésticas. Segundo ela, “os afazeres de casa nunca acabam,
pois os filhos crescem e a gente tem que cuidar dos netos”.
124

Foto 29 – Fifia e a neta

Dona América fica responsável pelo cuidado com as netas, para que a filha
possa trabalhar, e disse que se tivesse uma creche, no futuro, a vida seria mais fácil
para ambas (mãe e filha).

Foto 30 – Casa de Dona América


125

Foto 31 – Lembranças do passado

Foto 32 – Fifia e as netas


126

Na Foto 33, a senhora Maria José faz lanche para os convidados, enquanto a
reunião sobre o perímetro territorial ocorre na sala da sua residência. Faz
reclamações pelo fato do Posto de Saúde só funcionar, efetivamente, uma vez por
mês e nesse dia só serem disponibilizadas 10 fichas para o atendimento. “Trabalho
na roça e aqui em casa. Às vezes, prefiro a roça, porque o trabalho aqui de casa
‘num’ acaba. O da roça tem mais limite, mais hora certa pra acabar.”

Foto 33 – Trabalho doméstico

4.1.4 As crianças: as “pontas de rama” de São Joaquim

Ruan Salgado (Foto 34) acompanhou as entrevistas realizadas com sua mãe,
Fernanda de Jesus Salgado, e, de vez em quando, opinava na conversa. Em um
dado momento, o menino disse que não gostava de morar em São Joaquim. Isso
porque nasceu na cidade de Vitória da Conquista e só há pouco tempo foi morar na
comunidade, pois Fernanda precisou morar com a avó (a Tia), depois que a mesma
ficou viúva.
127

Foto 34 – Ruan Salgado


128

Foto 35 – Fernanada

Foto 36 – As netas de Fifia


129

Foto 37 – Crianças brincando no assentamento União

4.1.5 Algumas entrevistas

Seu Bibi tem 76 anos e sonha em voltar a morar em São Joaquim de Paulo. O
senhor foi o caso mais marcante das entrevistas realizadas, no que se refere a um
sujeito desterritorializado e que não se adaptou à opção de reterritorialização pela
qual foi obrigado a passar.

Foto 38 – Entrevista com Seu Bibi


130

Foto 39 – “Eu, hoje, tô aqui, mas quero voltar pra lá. Eu nasci lá, meu umbigo tá enterrado lá! Eu volto
com a maior satisfação da minha vida.” (Seu Bibi)

Foto 40 – Conversa informal com Luciene Santos


131

Foto 41 – Poliana Reis e Dona Alzira

Foto 42 – Rilza e o esposo, Janderson Oliveira.


132

Nelson Rodrigues (Foto 43) é representante do Conselho Quilombola de


Vitória da Conquista. Gosta de ser chamado de Nelson Quilombola e nos ajudou
bastante durante o período da pesquisa: conseguiu contatos, nos concedeu
entrevistas e nos possibilitou a participação em eventos, como a Festa Quilombola,
que reúne representantes de todas as comunidades quilombolas do município.

Foto 43 – Nelson Quilombola e Poliana Reis

Foto 44 – Uma das entrevistas com Robério Santos


133

Foto 45 – Padre, ex-representante da CPT

Foto 46 – Entrevista com Oscar e sua mãe, Dona Arlete


134

Foto 47 – Indo conhecer o lote de terra de Robério

Foto 48 – José Ildo, Robério, Djanira, o neto e o advogado Orlando Palles.


135

Foto 49 – Atual casa da família expulsa de São Joaquim

4.1.6 Os antepassados: os “troncos velhos”

Foto 50 – Foto de Laudionor e Ercilia, na casa de Maria Santos


136

Foto 51 - Casa de Fifia

Foto 52 – Foto da foto de Bibiu doada por Luciene Santos


137

4.2 ALGUNS MARCOS TERRITORIAIS E ESPAÇOS DE PRODUÇÃO

Na visita técnica ao cemitério, identificamos os túmulos de alguns


personagens que surgiram na história de São Joaquim de Paulo, como o de
Laudionor Santos (Foto 54) e o de Ercília Santos (Foto 55). Também ouvimos
histórias de pessoas que, apesar de terem residido externamente à comunidade,
haviam pedido para que fossem enterrados no local de nascimento. Desse modo,
alguns parentes realizaram o enterro de muitos dos entes que tinham migrado do
local.

Foto 53 – Cemitério de São Joaquim de Paulo


138

Foto 54 – Túmulo de Laudionor

Foto 55 – Local onde Ercília está enterrada


139

Foto 56 - Cemitério

Foto 57 - Cemitério
140

4.2.1 Fazenda Casa de Telha

Foto 58 – Sede da Fazenda

Foto 59 – Sede da Fazenda


141

4.2.2 Eucalipto e café

Foto 60 – Eucalipto

Foto 61 – Eucalipto
142

Foto 62 – Eucalipto

Foto 63 – Café
143

Foto 64 – Cafezal

Foto 65 – Cafezal
144

Foto 66 – Cafezal

4.2.3 Loteamento

Devido a um pedido de Luciene Santos e do Sr. Nego, fotografamos a área


loteada sem sair do carro. Os dois tiveram receio de sermos abordados pelos atuais
proprietários. Essas fotos são referentes à fazenda cujo proprietário é conhecido
como Netinho, que ao saber do processo de titulação das terras, começou a vendê-
las. O Sr. Nego afirmou a necessidade desse fato ser denunciado.
145

Foto 67 – Casas construídas na antiga fazenda

Foto 68 – Pés de café no loteamento


146

Foto 69 – Loteamento

Foto 70 – Loteamento
147

Foto 71 – Loteamento

Foto 72 – Loteamento
148

4.2.4 Espaços de produção

Foto 73 – Carroça

Foto 74 – Engenhoca
149

Foto 75 – Casa de farinha

Foto 76 – Casa de farinha


150

Foto 77 – Proximidades da casa de farinha

Na casa de Lourinha, fotografamos um dos quintais encontrados nas


residências. Percebemos que, do local onde a Foto 78 foi tirada até a cerca que
demarca o final da área, o tamanho não é expressivo. Desconsiderando a parte
cimentada, o que resta é um espaço pequeno para as plantações ou para a criação
de animais. Algumas mães relataram que, com a ausência ou diminuição dos
quintais, as crianças também deixam de ter um local seguro para brincar.

Foto 78 – Quintal da casa de Lourinha


151

O senhor da Foto 79 informou que neste forno rudimentar, movido a lenha,


são produzidos biscoitos deliciosos. Também falou sobre a dificuldade de se
conseguir lenha na atualidade, já que os moradores são proibidos de entrar no
Salangó e houve a redução da área de vegetação. Como vemos nas Fotos 76-79, as
moradoras utilizam muito este e outros tipos de fornos movidos a lenha. Muitas
delas fizeram a substituição para o fogão a gás devido à falta de lenha.

Foto 79 – Forno a lenha para fazer biscoitos


152

Foto 80 – Júlia Garcia fotografando o ambiente

Foto 81 – Fogão movido a lenha de Dona Maria Alves

Foto 82 – Forno na casa de Dona Arlete Gomes


153

Foto 83 – Forno na casa de Dona Arlete Gomes e criação de galinhas

Foto 84 – Lenha
154

4.2.5 As conquistas diárias de São Joaquim

Foto 85 – Feijão “batido”

Foto 86 – Bagaço para a alimentação dos animais


155

Foto 87 – Bagaço de cana

Os jovens do lugarejo são estimulados a participar do Pré-Vestibular


Quilombola. Rilza Santos, filha de Robério, é tida como exemplo a ser seguido pelos
demais. Maicon, filho de Fernando, terminou o ensino médio e está em busca de
trabalho. O líder da comunidade incentivou o rapaz a realizar a inscrição para
participar do “cursinho quilombola”.
156

Foto 88 – Folheto para inscrição no Pré-Vestibular Quilombola


157

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na construção do território étnico de São Joaquim de Paulo, foi identificada a


territorialização como um processo de reorganização social e, nesse ínterim, a
emergência/ recuperação da identidade quilombola. O processo de autoidentificação
teve início na comunidade negra rural após os seus membros tomarem
conhecimento sobre as leis que garantem os direitos territoriais ao grupo que seja
reconhecido como quilombo. E a partir de fortes indícios de que mais uma das ações
de agentes externos ocasionaria novas formas de expropriação da terra (expansão
dos campos de eucalipto). Até então, todos eram unidos principalmente pelos laços
de parentesco e pelo trabalho com a terra.
O agenciamento de identidade foi iniciado e norteado por representantes da
igreja católica (CPT) e por políticos atuantes em Vitória da Conquista, com o
argumento de que o grupo tem direito a ser ressarcido pela dívida histórica que a
sociedade e o Estado têm para com as comunidades quilombolas. A assunção da
identidade coletiva também promoveu o surgimento de lideranças internas, como
Robério Santos e as atuais e principais representantes da Associação, Luciene
Santos e Djanira Silva.
Para reforçar a identidade quilombola, imagens de antepassados foram
exaltadas, como as de Ercília Salgado (a matriarca), Laudionor Santos (o homem da
terra) e Bibiu (o escravizado). Junto a isso, também surgiram novos conflitos entre
os moradores da comunidade sobre o dilema entre “ser ou não ser quilombola”,
traduzida espacialmente em “São Joaquim 1” e “São Joaquim 2”. Além de disputas
políticas entre as lideranças que emergiram, em que as mulheres buscam o
empoderamento por terem entendido que os resultados dos conflitos atingem de
forma mais incisiva esse grupo social. Na atualidade, a gestão recebe muitas críticas
da anterior, reconhecida na pessoa de Robério Santos.
Os marcadores identitários identificados foram a cor: ser negro é positivado
pelos que se consideram quilombola e negativado pelos que negam qualquer
relação de parentesco com os escravizados do passado; a família: todo mundo seria
uma grande família, descendente do mesmo antepassado, o senhor Paulo Salgado.
As pessoas que não possuem parentesco são consideradas como “os outros”. Já os
que vêm de fora, mas casam com alguém da comunidade são tidos como
158

“parentes”; o trabalho com a terra: praticado desde sempre por esses homens e
mulheres.
A religião e as festas também foram elementos utilizados como forma de
“provar” a identidade quilombola e assim, por tabela, há a tentativa de manifestá-las
ou descrevê-las como ocorriam no passado, na busca de alcançar a tão sonhada
titulação do território. No caso da religião, algumas lideranças eram evangélicas e
passaram a seguir manifestações de matrizes africanas. Os marcos territoriais
identificados durante a realização das atividades é a materialização da ligação dos
indivíduos com aquele espaço.
Durante o trabalho de campo, foi possível identificar várias formas de
expropriação da terra e processo de desterritorialização sofrido pela comunidade.
Desde grilagem a avanço das cercas dos fazendeiros, ameaças de morte e ações
impetradas pelos “senhores da terra” para impossibilitar a reprodução da
comunidade, como: fechamento de estradas, loteamento da área e bloqueio de
nascentes. As monoculturas do café e do eucalipto espacializadas no local são os
resultados da perda territorial. No entanto, contraditoriamente, um grande número de
moradores é dependente dos trabalhos provenientes desses plantios 42. Um trabalho
degradante e de grande exploração de mão de obra.
A divisão sexual do trabalho faz com que as mulheres tenham mais
dificuldade de inserção em determinadas atividades tidas enquanto masculinas. A
mulher tem que dar conta do trabalho doméstico, que muitas afirmaram “não ter fim”
e as atividades que exigem cuidados, como zelar os filhos, idosos e demais
familiares. Essas atividades, apesar de exigirem tempo, esforço, dedicação e
garantir a participação mais ativa dos homens no espaço público, não são
reconhecidas como trabalho e, na maioria das vezes, são invisibilizadas. Quando
aceitas nas atividades tidas como masculinas, as mulheres esforçam-se para
produzir bastante e não serem dispensadas por seu sexo, a exemplo do que ocorre
no exercício penoso nas lavouras dos grandes fazendeiros, onde trabalham o
máximo de horas possível.
Ao analisar como se concretiza a divisão sexual do trabalho na comunidade,
descobrimos um grupo que tem um projeto embrionário com o intuito de promover
uma maior e melhor inserção feminina no mundo do trabalho, através de

42
São mais dependentes do trabalho com o café.
159

cooperativas e artesanato. Já que as mulheres são preteridas, com relação aos


homens, em determinadas tarefas que exigem uso intenso da força física ou nas que
demandam tempo, pois “elas” têm que se dedicar também às atividades domésticas
e aos cuidados familiares.
Dito isso, conclui-se que a pesquisa teve como intenção dar conta da vida
cotidiana: manifestação da memória, territorialidades, símbolos, sinais diacríticos,
categorias identitárias e organização social no território de São Joaquim de Paulo.
Portanto, a temática discutida necessitou de um debate teórico interdisciplinar,
envolvendo áreas como antropologia, história e geografia.
160

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AB’SABER, Aziz Nacib. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades


paisagísticas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

ANDRADE, Maristela de Paula. Expropriação de grupos étnicos, crise ecológica


e (in) segurança alimentar: problematizando as noções de fome e pobreza.
Caderno Pós Ciências Sociais. São Luíz, v. 2, n.4, jul./dez. 2005, p. 32/55.

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de quilombos, terras indígenas,


“babaçuais livres”, “castanhais do povo”, faxinais e fundos de Pasto: Terras
tradicionalmente ocupadas. Manaus: PPGSCA-UFAM, 2006.

______. Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara:


laudo antropológico. Brasília: MMA, Vol 1, 2006a.

ALMEIDA, Thiara M., MOREAU. Ana Maria S. S., MOREAU, Maurício S., PIRES,
Mônica de M., FONTES, Ednice de O, GÓES, Liliane M. Reorganização
socioeconômica no extremo sul da Bahia decorrente da introdução da cultura
do eucalipto. Sociedade & Natureza, Uberlândia, 20 (2): 5-18, DEZ. 2008.
Disponível em <http://www.sociedadenatureza.ig.ufu.br/viewarticle.php?id=465>
Acesso em: 4 out. 2013.

ARCANJO, Juscélio Alves. “Terras de preto” em Pernambuco: Negros do osso –


Etnogênese Quilombola. Dissertação. Centro de Estudos Afro-Orientais.
Universidade Federal da Bahia, 2008.

ARCHELA, Rosely Sampaio, GRATÃO Lucia Helena B., TROSTDORF, Maria A. S.


O lugar dos mapas mentais na representação do lugar. Geografia – Londrina,
Vol. 13, número 1, jan/jun 2004.

ARRUTI, José Maurício Andion. A emergência dos "remanescentes": notas para o


diálogo entre indígenas e quilombolas. Mana, vol.3, n.2. Rio de janeiro, 1997.

BARCELLOS, Helena Gilsa; FERREIRA, Simone Batista. Impactos da


monocultura de eucalipto sobre mulheres indígenas e quilombolas no Espírito
Santo: Mulheres e Eucalipto: Historias de vida e resistência, 2007.

BARTH, Fredrick. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: Teorias da etnicidade.


POUTIGNAT, P., STREIFF-FENART, J. Tradução: Elcio Fernandes. 2 ed. São
Paulo: Unesp, 2011.

BARTH, Fredrick. Introduction. In: Barth, F. (Ed.).Ethnic groups and boundaries:


the social organization of culture difference. Bergen / London: Universitets Forlaget /
George Allen & Unwin. 1969.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.


Brasília, DF: Senado; 1988.
161

CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2012.

CARNEIRO, Leonardo. Requilombarse São Pedro dos Crioulos: magia e religião


em São Pedro de Cima. Mimeo, 2008.

CARRASCO, Cristina. A sustentabilidade da vida humana: um assunto de


mulheres? Porto Alegre. 2002, p. 40-78.

CARVALHO, José Jorge de (Org.) O quilombo Rio das Rãs: história, tradições e
lutas. Salvador: EDUFBA, 1995.

CERQUEIRA NETO. Sebastião P. G. Três décadas de eucalipto no extremo sul


da Bahia. São Paulo, GEOUSP - Espaço e Tempo, Nº31, 2012. p. 55-68.

COSTA, José Eloízio da. OLIVEIRA, Edvaldo. Espacialização da eucaliptocultura


no sudoeste da Bahia e a implantação dos pólos florestais. UFS, 2007.

FERNANDES, Bernardo M. Movimentos socioterritoriais e movimentos


socioespaciais: contribuição teórica para uma leitura geográfica dos movimentos
sociais. Revista Nera – ano 8, n. 6 – janeiro/junho 2005.

FERREIRA, Simone R. B. Da fartura à escassez: a agroindústria de celulose e o


fim dos territórios comunais no extremo norte do Espírito Santo. Dissertação
(Mestrado em Geografia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, 2002.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática


educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

GERAB, William Jorge; ROSSI, Waldemar. Para entender os sindicatos no Brasil:


uma visão classista. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

GERMANI, Guiomar Inez. Questão agrária e movimentos sociais: a


territorialização da luta pela terra na Bahia. In: NETO. Agripino Souza Coelho;
SANTOS. Edinusia Moreira Carneiro; SILVA Onildo Araujo (Org.). (GEO)grafias dos
movimentos sociais. Feira de Santana: UEFS Editora, 2010. p. 269-304.

GILBERTO, Irene Jeanete Lemos. A pesquisa qualitativa com a utilização de


imagens. International Studies on Law and Education 21 set-dez 2015, p.51-58.

GOMES, Liliane Maria Fernandes Cordeiro. Helvécia – homens, mulheres e


eucaliptos (1980-2005). Dissertação (mestrado em história regional e local). UNEB,
2009.

GONÇALVES. Carlos Walter P. A reinvenção dos territórios: a experiência latino-


america e caribenha. In: CECEÑA, A. E. (comp.). Los desafíos de las
emancipaciones en un contexto militarizado. Buenos Aires: CLACSO, 2006. p. 151-
197.
162

HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à


multiterritorialidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

______. Desterritorialização e identidade: a rede “gaúcha” no Nordeste. Niterói:


EDUFF, 1997.

HIRATA. Helena, KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do


trabalho. Cad. Pesq. vol.37, no.132. São Paulo, set-dez 2007, p. 595-609.

HEIDEGGER. Martin. Ser e tempo. Rio de Janeiro: Vozes, 1988.

IBGE. Cidades. Disponível em <http://www.ibge.gov.br/cidadesat> Acesso em: 23


ago 2014.

JÚNIOR, Valdemiro C.; SILVA, Maíra F. de O. Caracterização de sistemas de


produção agrários: uma análise da produção de café no Planalto da Conquista.
UESB, 2013.

LIMA, Walter de Paula. O impacto ambiental do eucalipto. São Paulo: EDUSP,


1996.

MAGALDI, Sérgio. Ação do Estado e do grande capital na reestruturação da


atividade econômica: o cultivo florestal e a cadeia madeira-celulose/ papel.
Dissertação de Mestrado em Geografia. USP, 1991.

MOREIRA, Ruy. Pensar e ser em geografia: ensaios de história, epistemologia e


ontologia do espaço geográfico. São Paulo: Contexto, 2008.

MULLER, Cíntia Beatriz. Comunidade remanescente de quilombos de Morro


Alto: uma análise etnográfica dos campos de disputa em torno da construção do
significado da identidade jurídico-política de remanescentes de quilombos. Tese de
doutorado. UFRGS,Porto Alegre, 2006.
______.Ser camponês, ser “remanescente de quilombos”. ILHA: Revista de
antropologia. Vol. 7, n. 1, 2, 2005.

O`DWYER, Eliane Cantarino. Os quilombos e a prática profissional dos


antropólogos. In. Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro:
FGV, 2002.

OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação
Colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana, vol.4, n.1. Rio de Janeiro, 1998.

ORTHER, Sherry. Poder e projeto: reflexões sobre a agência. In: conferências e


diálogos: saberes e práticas antropológicas. Goiânia. 2006.

RAFFESTIN. Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993.

REIS. João José. Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Revista USP, n 28.
São Paulo, dez-fev 1996. p. 14-39.
163

REIS. Maria Clareth Gonçalves. Escola e contexto social: Um Estudo de


Processos de Construção de Identidade Racial numa Comunidade Remanescente
de Quilombo. Dissertação. UFJF,Juíz de Fora, 2003.

RIBAS, Luiz Otávio. Constituinte exclusiva: um outro sistema político é possível.


São Paulo: Expressão Popular, 2014.

SAFFIOTI. Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. (1969).


São Paulo: Expressão Popular, 2013.

SANTOS, Jucélia Bispo dos. Etnicidade e memória entre quilombolas em Irará-


Bahia. Dissertação. Cento de Estudos Afro-Orientais. Universidade Federal da
Bahia, 2008.

SILVA, Simone Rezende. Quilombos no Brasil: A memória como forma de


reinvenção da identidade territorialidade negra. XII Colóquio Internacional de
Geocrítica, 2012.

SILVA, Valdélio Santos. Rio das Rãs à luz da noção de quilombo. In: Afro-Ásia nº
23. Salvador, 2000.

ZHOURI, Andréa. Justiça ambiental, diversidade cultural e accountability:


desafios para a governança ambiental. RBCS, v. 23, nº 68, outubro de 2008, p.
97/194.

Você também pode gostar