Dissertação Poliana Reis
Dissertação Poliana Reis
Dissertação Poliana Reis
QUILOMBO E TERRITORIALIDADES:
a construção do território étnico São Joaquim de Paulo, no município de
Vitória da Conquista - BA
SALVADOR-Ba
2015
POLIANA NASCIMENTO DOS REIS
QUILOMBO E TERRITORIALIDADES:
a construção do território étnico São Joaquim de Paulo, no município de
Vitória da Conquista - BA
SALVADOR-Ba
2015
Biblioteca CEAO – UFBA
164 f. : il.
CDD – 305.8098142
POLIANA NASCIMENTO DOS REIS
QUILOMBO E TERRITORIALIDADES:
a construção do território étnico São Joaquim de Paulo, no município de
Vitória da Conquista - BA
Banca examinadora
Guiomar Germani__________________________________________________
Doutora pela Universitat de Barcelona, Barcelona (Espanha).
Universidade Federal da Bahia
AGRADECIMENTOS
E agora? Como expressar toda a gratidão que sinto por essas pessoas que
de alguma forma me fazem realizar o impossível? Amigas e amigos que nunca
saíram do meu lado. E como não poderia ser diferente, suportaram todas as
lamentações e desesperos que surgem nos dois anos de elaboração de uma
dissertação.
Ao lembrar-me de todas as pessoas que auxiliaram na produção desse
trabalho, não há como não agradecer em primeiro lugar a Júlia Garcia, minha amiga,
parceira de idas a campo, companheira de luta, exemplo que sigo. Ju, sinceramente
eu não sei como te agradecer. Obrigada por dar mais sentido aos meus dias e por
nunca ter me abandonado. Somos para sempre! A você só posso ofertar amor!
Agradeço ao Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos
Étnicos e Africanos, seus coordenadores e professores. Em especial, meu
orientador professor Jocélio Teles dos Santos, pela compreensão aos meus
posicionamentos políticos e ideológicos, por ouvir minha opinião, pela leitura
cuidadosa, orientação e paciência que teve durante o período do mestrado.
Às professoras Cíntia Beatriz Muller e Maria do Rosário pelas importantes
contribuições ao desenvolvimento dessa pesquisa a partir do exame de qualificação,
ambas fizeram críticas bastante construtivas e deram sugestões para as etapas
posteriores ao exame. À Guiomar Germane, pelas aulas e pela atenção.
Aos meus colegas do pós- Afro, principalmente à Glécia Carneiro e a Itamar
Rangel Vieira Júnior, deles tive apoio durante as aulas e amizade para vida inteira.
Às Flores, “benditas flores, sem vocês não sou ninguém”. Obrigada a Daiane
Santos, Rowenna Brito, Raquel Nogueira, Lícia Gabriela, Júlia Garcia, Sarah Martins
e Eliza Maia. Amo vocês.
Às amigas e amigos de Ribeira do Pombal: Thaisa Mirella, Nayara Costa,
Mércia Samyra, Carla Jamille, Flávia Cézar, José Márcio e Cleidson Oliveira. Vocês
são para a eternidade.
A Consulta Popular, as Negras Zeferinas e ao Levante Popular da Juventude
por revolucionarem minha vida. Ter vocês ao meu lado, me dá forças e alegria para
prosseguir na luta.
À Tatai, Taíse Macêdo, que desde os três anos de idade, acompanha e
protege tudo o que faço. Assim como a toda a sua família. Nossa família! Obrigada
pelo carinho, te amo.
À Anamaria Garcia, agradeço a amizade e o acolhimento de sempre. À Àdria,
por me fazer feliz. Ao seu lado não existe tristeza. Às amigas, Nathalee Cordeiro e
Juliana Maciel, que acompanharam meu desespero, durante as noites de estudos,
em nossa residência. Obrigada pelas madrugadas acordadas.
À Eveline Vieira, por ter me apresentado ao Pós-Afro, lido e auxiliado a
produção do meu projeto. Obrigada pela amizade. Á Tereza Cristina, por toda
dedicação, carinho e cuidado que sempre teve comigo. À Mariana Balen Fernandes,
pela amizade e pela experiência de ir a campo.
A Marco Aurélio Costa Oliveira, companheiro de luta e da vida. Obrigada
pelas dicas de leitura, ida a campo e por trazer poesia aos meus dias. Te amo!
Por falar em poesia, chegou o momento de agradecer a outra metade de
mim, porque assim são as irmãs, uma é parte da outra. À Renata Poeta, os meus
sinceros agradecimentos. Estarei sempre ao seu lado. A toda minha família, meu
avô que sempre teve orgulho das minhas conquistas, minhas tias e tios, em especial
a: Arivaldo Almeida por ser meu segundo pai, Valdelice Almeida (titia), tia Marlene,
Lidiana, tia Marilda, tio Zé, tia Rita, Raimundo Santos e tio Edvan. A todos os primos
e primas e a Matheus Vinícius e Antônia Gabrielle, que são meus filhos
emprestados. A minha bela, Carolina Bela e In memorian de tia Lita.
E por fim, quero agradecer as duas pessoas a quem devo a vida, as
conquistas, as coisas boas que trago em meu ser. À minha mãe, exemplo de mulher
forte e lutadora, que trabalhou a vida inteira (seja em casa ou na rua) para não
deixar faltar nada para as filhas. Por ela ver em suas “meninas” a riqueza que
possui. Obrigada por toda roupa lavada, pela comida gostosa, pela casa limpa e por
todo trabalho doméstico que sempre fez com tanta dedicação e sem pedir nada em
troca. E ao grande amor da minha vida, meu querido pai, Carivaldo Santos dos Reis,
que sempre dedicou o fruto do seu trabalho à felicidade da família. Obrigada pelos
repentes, pelas histórias, principalmente aquela em que gostaria de ter estudado
mais. Por vocês dois, me tornei professora.
Como visto, nunca estive sozinha. A todas e todos, os meus sinceros
agradecimentos!
RESUMO
The present research aims to analyze the following elements: quilombola self-
identification process, the construction of the ethnic territory in the afro community in
São Joaquim de Paulo and a reflection about the political signification which
embraces that assumed collective identity. To do so the following questions were
arose: from which hypotheses the social identity is rebuild as quilombola and what
are the identity markers used in the self-identification. In doing so, we have seek
through the ethnographic method an understanding about the identities mediation
process, the external facilitators and the arrangement used in the reproduction/
maintenance of that ethnic group as such as the political empowerment of its
members considering the refreshment of the collective memory and ethnicity
territoriality process.
key words: afro agrarian community; ethnic territory; monoculture; sexual division of
labor.
LISTA DE SIGLAS
CF - Constituição Federal
EC – Emenda Constitucional
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO
1
http://www.mst.org.br/2015/03/03/relatorio-mostra-aumento-na-concentracao-de-terras-do-brasil.html
2
Cartilha Monocultivo de Eucalipto. É uma publicação do Fórum de Entidades e Movimentos Sociais
do Sudoeste da Bahia. O Fórum é uma articulação que conta com diversos membros e apoiadores,
dentre eles: MPA, CPT, MTD.
3
Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850.
12
4
Três comunidades localizadas no recôncavo baiano (São Brás, Kaonge e Santiago do Iguape) e
uma no município de Entre Rios (Fazenda Porteiras).
15
5
Júlia Garcia é responsável pelas fotos nas quais apareço. Também contriubuiu com traduções de
textos em inglês e indicações de leituras para o presente trabalho.
17
10
As três pessoas citadas nesse parágrafo são lideranças comunitárias. As duas mulheres lideram a
Associação Quilombola, sendo Luciene (48 anos) a coordenadora geral e Lourinha (44 anos) a
tesoureira. Robério (59 anos) é ex- coordenador geral da Associação. Mesmo não possuindo um
cargo, exerce grande influência sobre os demais moradores.
21
Filho de “Fifia” – É como eu lhe disse: tem coisas aqui, que só Robério pra
informar!
11
A palavra “extremo” é utilizada pelo próprio Robério.
22
Ponto X Y Descrição
1 304329 8344679 Divisa do Assentamento Amaralina com o São Joaquim
2 304171 8343654 Entrada de Barroca
3 304140 8343634 Atual casa de Lourinha, na Barroca
4 304006 8342448 Casa de Alício
5 304869 8340214 Estrada de Jararaca
6 305102 8339371 Estrada para o cemitério, fechada pelos fazendeiros
7 305691 8339022 Fazenda que divide o São Joaquim 1 e 2
8 305951 8339265 Jararaca – área loteada
9 308710 8338671 Divisa do São Joaquim com o Periquito (Toco Preto) Extremo
10 305651 8335431 Divisa do São Joaquim com Periquito (próximo à Fazenda Duas Vendas)
11 304894 8335713 Local das reuniões da Associação
12 304742 8335742 Entrada da Fazenda Beija-Flor
13 304603 8336272 Barracão
14 299202 8340129 Quatis da Fumaça
15 299269 8340326 Fazenda Austrália – eucalipto
Figura 1 – Mapa
Fonte: elaboração própria
24
Aurino Ferreira (AF) – O Capinal... Olha... Até 70, ninguém lembra, não
tinha Capinal. Tinha Periquito e Graciosa.
Robério Santos (RS) – Muito bem, é isso mesmo!
AF – Periquito, de João Dondon Gusmão, e Graciosa, de Zizinho e Deraldo.
RS – Isso mesmo!
AF – E uns garimpeiros ‘chegou’ e ‘abotou’ uma lona ali, onde tem uma
churrascaria muito bonita e...
RS – Div... Desculpe, Aurino, pra te ajudar... ‘Dividiu’ a Graciosa ali com São
Joaquim e montaram acampamento do garimpo, né, com Periquito e...
AF – ‘Fez’ aquela lona e ‘fez’ o acampamento dos garimpeiros. E aí
começou, mais tarde, o Capinal. O acampamento e Capinal.
RS – Década de 70? O acampamento?
AF – Eu vi 60.
RS – Sessenta. Foi!
12
Onde ficavam os lotes individuais.
13
Será relatado detalhadamente no Capítulo 3.
25
Aí no começo, eu te falo, aqui não tinha terra. Não! Digo: não tinha dono. Aí
‘tinha’ os escravos e eles fugiam. Aqui chama São Joaquim de Paulo por
isso. E um desses escravos fugiu. E aí veio andando, andando, andando...,
vários dias, vários meses e chegou aqui. Quando chegou aqui, ele viu que
tinha a água, a terra que produzia muito bem, aí ele ficou. Só que aí, ele
pensou de ficar. E os parentes dele? Ele ficava vários dias escondido no
mato e ia trazendo os parentes e jogava aqui, só que esses parentes... Ele
trazia parentes, trazia amigos e ia botando aqui, aí quando eles voltavam lá,
tinha mais escravos que ‘queria’ vir. Aí foi formando São Joaquim de Paulo.
Outro exemplo, também dramático de lutas entre famílias pelo poder local
foi a que teve como protagonista a família do Coronel José Fernandes de
Oliveira Gugé e a do coronel Emiliano Moreira de Andrade, a conhecida
guerra entre Meletes e Peduros, que iniciada em 1910, apenas chega a
termo em 1919, com a assinatura de um acordo de paz14.
Robério Santos (RS) – Quando ele [Paulo Salgado] chega nessa terra, que
hoje é chamada de Vitória da Conquista, na época era chamada de?
Maria Santos – Vila!
RS – Vila da Vitória, Vila da Conquista, tá? Então, numa época daquela lá,
de vila, acho que Vila da Conquista, parece, já no Século XIX, Paulo
Salgado chega com seus companheiros, em busca de trabalho e tal, pra
sobrevivência... Ali, dá de cara com um conflito de duas famílias rivais,
naquela vila, era pequena a cidade da qual já dei o nome há pouco instante.
Aí o que é que acontece?! Uma das famílias era apelidada de ‘Melete’, a
outra era apelidada de...
Aurino Ferreira – ‘Peduro’.
RS – ‘Peduro’. Só que, naquelas confusões de duas famílias... Claro! Só
‘morria’ negros. Por quê? Porque os negros eram comandados por
senhores e ‘tinha’ que fazer o que os senhores mandavam, o que
determinassem. Paulo Salgado, conhecido como Paulo Preto, que não
nasceu com a sina de ser bobo... Aquele catingueiro, quando viu que o
negócio ‘tava’ pegando, dando errado para os pretos, conversou com seus
companheiros e disse assim:
‘– Vamos fugir mais uma vez?’
‘– Mas Paulo, pra onde?’
Isso a história nos afirma, não é? Porque eu tenho cinquenta e poucos
anos. Eu não presenciei, mas a história ficou escrita em algum lugar aí. E
eu tive bisavô, eu tive avô, tive pai, como é que eu não sei de alguma
coisa? Pelo amor de Deus, né?
14
Jornal O Município. Novembro de 1997.
27
Esta comunidade começou ‘com nós’ aqui. Porque nós ‘nasceu’ e ‘se criou’
aqui. Nós não ‘sabia’ se a Diná [proprietária da terra]... Não ‘sabia’ pra onde
nós ‘ia’, era só trabalho. Eu ‘mesmo’, fui criada aqui... Mamãe teve 14 ’fio’ e
foi tudo assim, trabalhando na roça. Até hoje eu gosto de trabalhar...
15
Segundo Luciene, a comunidade teria começado no início do século XIX, anteriormente à abolição
da escravatura. Foi possível perceber a preocupação em demonstrar que, para ela, São Joaquim já
existia desde o período da escravidão oficial.
16
O território da comunidade diminuiu de 200 para 2 alqueires, de acordo com a entrevista de um
morador retratada no documentário São Joaquim: o Quilombo de Paulo Preto. Produzido por Luciano
Sapucaia e Thiago Alves, como projeto experimental de conclusão de curso de Comunicação Social
da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), sob a orientação da professora Rita de
Cássia Pereira. Nesse vídeo, Robério, data a origem da comunidade de 1824.
29
17
Nomes como Nilo Coelho.
30
(INCRA), segundo o Sr. José Moreira (o Seu Zé), se deu bem antes dessa data.
Começou a partir da exigência, por parte do Sr. Laudionor Santos, auxiliado pelo
advogado Rui Medeiros, do título das terras onde havia trabalhado e que eram
ocupadas por ele, naquele tempo. Dona Diná, antiga proprietária da terra, teria
doado parte do terreno para Laudionor. Todavia, assim como Seu Zé, os atuais
moradores questionam o caráter dessa doação. Como pode ser visto, também nos
depoimentos anteriores, relataremos como muitos fazendeiros adquiriram as terras
ancestrais de forma ilícita.
31
[...]
18
Seu Zé se refere ao início da comunidade a partir do momento decisivo em que eles resolvem
reivindicar o território e não ao início de quando vieram as primeiras pessoas.
19
Representante da CAR.
32
Em 07 de janeiro de 2010, foi aberto um inquérito civil público 20, por parte de
Robério Santos, com o objetivo de acompanhar o processo de regularização
fundiária, bem como para apurar denúncias de que os vizinhos da Comunidade
estariam desrespeitando os direitos individuais e coletivos dos moradores. Tanto
avançando sobre as terras ou proferindo ameaças ao grupo quanto pressionando
para que as abandonem. Como foi o caso da família de Seu Laudilino Pereira e
Dona Arlete Gomes, que foi expulsa de onde morava e sonha em retornar para o
local de sua origem. No inquérito, também foi questionado o avanço do eucalipto
sobre o território.
Como visto, essa pressão sobre as terras tradicionais existe há muito tempo
na comunidade e também pode ser claramente percebida na dúvida admitida por
Dona Guiomar, durante a nossa entrevista:
Poliana Reis (PR) – Sua mãe plantava na roça dela ou trabalhava para
alguém?
Dona Guiomar (DG) – Plantava. Ela não trabalhava não, só trabalhava pra
‘os da roça’. Agora eu queria saber assim... Porque era uma roça, aí depois
dividiu, mas nós ‘trabalhava’ lá. Como foi que dividiu? Se era nossa?! E
depois eles ‘foi’ comprando tudo e vendendo e comprando...
PR – Quem são eles?
DG – Os fazendeiros. E era uma roça assim, ‘cê’ tá entendendo como é que
era? Não tinha porteira, não tinha cerca. Papai vendeu um pedaço de terra,
mas era tanto ‘fio’...
PR – E o fazendeiro que comprou a terra do seu pai, plantava o quê?
DG – Plantava? Plantava nada. Era de gado... Plantava nada!
20
http://6ccr.pgr.mpf.mp.br/atuacaodompf/inqueritosdocs/docs_classificacao_tematica/Portaria_01_20
10_instauracao_ICP_no_1.14.007.000001_2010-23.pdf
33
E, com esse artifício, o poder aquisitivo dos fazendeiros permitia que eles
pudessem pagar a medição da área. Uma das maneiras de expropriação da terra
era o apadrinhamento ou utilização do perfil paternalista para se aproveitarem da
fragilidade econômica e do baixo nível escolar das famílias. Segundo os
depoimentos, os fazendeiros pagavam a medição, mas os “herdeiros” não
presenciavam esse processo. Com isso, não podiam garantir que as medidas tinham
sido corretas. Para agravar a situação, os latifundiários pediam recompensas pelo
feito e, muitas vezes, era retribuído com a oferta da força de trabalho. Foi desse
modo que a família de Dona Arlete e Seu Laudilino foi expropriada das suas terras.
1.2.1 A família de Dona Arlete Gomes de Araújo e Seu Laudilino Pereira da Silva e o
desejo de retorno à terra natal
Seu Bibi – Eu nasci e me criei aqui em São Joaquim, minha família toda
nasceu e se criou aqui, aí chegou essa ‘mulé’ e tomou [voz trêmula]...
Tomou as nossas terras ‘toda’. Nana [Ana Mendes]! Primeiro, chegou com
um engenheiro de nome Antônio Porto, aí mediu a terra, eu lembro ‘cuma’
hoje: quando foi um dia, eu tava sentado lá no fundo, parou o carro e
‘chamou’ nós dois [ele e Dona Arlete]. Ele, a mão, e tirou a medida da terra.
Eu falei: ‘- Essa medida da terra tá certa?’. Ele falou: ‘- tá!’. Eu botei nos
advogados. Aí Naninha, essa que tomou a terra da gente, pegou outro
engenheiro parente dela e botou pra dividir a terra. Aí acabou tudo,
bagunçaram o negócio. Aquilo ali é uma herança, nosso sangue tá lá. Eu
achei... Ali foi herança e os herdeiros ‘tão’ mais do que sofrendo. Meus pais
moraram lá. Eu tenho planta de terra, documento. Tá tudo guardado, não
joguei nada fora. Ele morreu, mas tá tudo guardado aí.
Então, como afirmaram Luciene Santos, Robério Santos, Seu Zé, Dona
Guiomar e demais depoentes, foram os representantes da igreja (CPT) e o
advogado Rui Medeiros que, durante o auge dos conflitos, orientaram os moradores
sobre os direitos quilombolas presentes no art. 68 da CF e em leis complementares.
A partir dos fatos relatados nos itens anteriores, parte da comunidade fortaleceu os
laços e se uniu para exigir tais direitos. Para O’Dwyer (2006, p.43):
35
21
A entrevista foi realizada na casa de Robério. Estavam presentes Luciene Santos, Maria Santos e
Aurino Ferreira. Este participou da entrevista, a pedido de Robério. Pudemos perceber que Robério
exerce forte influência sobre as pessoas da comunidade. Ao tentar falar com Maria, não obtivemos
muitas informações, pois ele a interrompia frequentemente, como poderá ser percebido durante a
leitura deste documento. Os termos utilizados por Robério também nos surpreenderam, já que o
mesmo alegou que não teve escolarização. Aurino Ferreira sofreu um derrame há pouco tempo. Por
isso, há alguns trechos da entrevista que são incompreensíveis.
38
A data 25 de janeiro não de 2014 foi escolhida de forma aleatória para ser o
dia do primeiro contato com a comunidade, mas sim, pelo conhecimento prévio de
que é prática local a realização das reuniões da Associação no último domingo de
cada mês. Além disso, essa foi a primeira reunião do ano de 2014. A minha
participação teve como objetivo pedir a permissão da comunidade para o
prosseguimento do estudo. Então, expliquei que seriam realizadas entrevistas,
oficinas e que, no período de um ano, faríamos visitas a São Joaquim de Paulo.
Ao planejar a apresentação, pensei em realizar uma oficina onde seriam
confeccionados mapas mentais. O mapa mental é a materialização das
representações espaciais que os indivíduos possuem do lugar. Para Archela, Gratão
e Trostdorf (2004, p.127):
alegria, obtive a permissão para continuar a pesquisa e agradeci o modo como fui
recebida. Esse primeiro momento foi, portanto, uma reunião de apresentação e
aprovação, caracterizado pelo diálogo, consentimento do grupo, visita e
reconhecimento da área de estudo. A participação nesse evento social possibilitou o
conhecimento dos moradores, problemáticas, busca de soluções por parte dos
presentes, assim como conjecturar como funciona o cotidiano daquelas pessoas.
Antes do início desse encontro, realizei algumas entrevistas, conversas
informais, agendei compromissos, observei e fotografei o ambiente. Foram gravadas
entrevistas com os seguintes moradores: Sr. Robério Santos, Sr. Aurino Ferreira,
Sr.ª Maria Santos (irmã de Robério Santos), Sr.ª Guiomar Souza, Sr. José Moreira
de Souza (Seu Zé) e Sr.ª Luciene Santos. Houve também conversas informais com
outros indivíduos, como o Sr. Nego e a Sr.ª Loura Silva (Lourinha).
Posteriormente, ao analisar o desenvolvimento do trabalho, percebi a
presença dessas primeiras pessoas desde a gênese da pesquisa até a sua
conclusão. A escolha dos entrevistados (as) se deu da seguinte maneira: primeiro
busquei os mais idosos presentes na reunião e depois entrevistei aqueles cujos
nomes apareciam com maior frequência durante as entrevistas, assim como seus
parentes e pessoas que, vez ou outra, apareciam durante as conversas ou
entrevistas, com o intuito de contribuírem.
No local, estiveram presentes 22 associados, sendo 15 mulheres e sete
homens. A abertura foi feita por Lourinha, que fez alguns repasses sobre a sua
participação em um evento no Conselho Quilombola de Vitória da Conquista. Os
presentes declararam que as reuniões, no passado, eram frequentadas por um
número maior de pessoas. Segundo as duas lideranças (Lourinha e Luciene), os
moradores estão desanimados “porque as melhorias demoram muito”. Após um
agradecimento a Deus pelas vitórias, foram relatadas algumas conquistas obtidas
pela atual gestão, como a aquisição de cisternas, referente ao programa federal
Água para Todos. Os beneficiários informaram como ocorre o processo de
implantação dos reservatórios de água e todos atribuíram as aquisições ao
acionamento da identidade quilombola.
Os assuntos debatidos no encontro foram em torno da importância da
participação nesse evento, pagamento da mensalidade à Associação, informações
sobre benefícios que haviam chegado, assim como aqueles que ainda precisavam
ser reivindicados, e “retorno cultural”. Foi explicado que a atual gestão da
40
configurações iniciais daquele espaço, como pode ser identificado nos trechos de
depoimentos utilizados nesta dissertação.
Seu Laudilino – O Salangó, eu mexi demais naquilo ali tudo. Cacei, pegava
lenha e usei a lagoa. Ali era de Dede Mendes. Lá, criava gado e cavalo de
raça. Dede Mendes vendeu pra Alfredo Brandão e, mais adiante, esse
vendeu pra Nilo Coelho. Hoje, nós não pode mais entrar.
Valdelice Salgado (VS) – Por meu gosto, aqui ficava tudo ‘igual’ era.
Poliana Reis – E como era?
VS – Aqui? Essa ‘terrona’ aqui era tudo nosso. Isso aí era tudo aberto, aí
oh... Aqui tinha muito pé de jaca e subia em cima, tirava jaca, sentava,
chupava, ficava à vontade. Agora, hoje, aqui nós ‘sofre’ com as cercas.
22
Regime em que parte do que é produzido fica para o proprietário das terras e uma pequena parcela
para os camponeses. Às vezes, esse regime é complementado com o pagamento de uma pequena
quantia em dinheiro.
43
Robério Santos, então, nos disse que, de acordo com a situação, atua como
líder quilombola e, a depender do contexto, identifica-se como assentado. Além
disso, elogia o Movimento, ao explicar os locais que compõem o território:
23
Imagem retirada do site do INCRA.
45
24
Membros que se afirmam quilombola e assentado. É a relação existente entre a comunidade negra
estudada, que reivindica um status quilombola, e os indivíduos de alguns assentamentos rurais.
46
Por isso, nesse processo, ganhou força a imagem do Sr. Bibiu como um elo
do grupo com o período da escravidão; a da Sr.ª Ercília Salgado Vieira, a quem
coube o título de matriarca da comunidade, para exaltar questões ligadas ao
parentesco; e a de Laudionor Santos para representar questões ligadas ao trabalho
com a terra.
25
https://www.youtube.com/watch?v=muDoainv-Zs
48
1.5.1 Identidade – “Nós ‘tudo’ aqui ‘é’ quilombola” X “Eu não sou ‘tirombola’”
Esmeraldo (E) – Isso aí, pra explicar, só os ‘véios’ de outro tempo, que eu
já sei o que é que vocês estão querendo.
Lourinha (L) – E o que é que nós estamos querendo?
E – Vocês estão querendo ‘descavar’ os ‘véio’, do tempo passado. Eu não
sei disso! Eu ‘tô’ com minha cabeça aqui... Vocês ‘tão’ querendo saber
quem foi dono disso aqui, quem ‘num’ foi... dos ‘tirombolas’...
L – E você não é quilombola não?
E – Eu? Eu não!
L – Você não mora dentro do quilombo?
E – Eu ‘num’ moro dentro... Eu moro aqui... Que negócio de quilombo! Não
tenho explicação.
L – Sim, mas você não mora dentro do quilombo não?
E – Quilombo?
L – Sim.
E – Eu não!
Poliana Reis (PR) – Você não quer me dizer por que não é quilombola?
E – Eu não! Quilombo... Eu sei lá que diacho é quilombo!
Marido de Lourinha (ML) – Quilombo ‘é’ os quilombolas!
E – Eu não... Quilombola é causa de índio, é isso, é aquilo...
PR – De índio?
E – É o que vocês estão querendo saber...
L – Meu marido que não é nascido aqui, ele se considera um quilombola.
E – Olhe, eu vou dizer a vocês: eu não sei explicar a vocês nada.
PR – Não, né?! Então, obrigada, Sr. Esmeraldo.
E – Eu não
Além de negar ser “tirombola”, ele desqualifica a imagem de Bibiu, tido pela
comunidade como o caso mais emblemático de morador escravizado de São
Joaquim de Paulo.
50
1.5.1.1 “Eu não sou do time não: entre nós, eles!” Minha identidade quilombola
Maria Alves Almeida (MAA) – Já ouvi falar! Só que eu não faço parte.
Poliana Reis (PR) – Não faz parte por quê?
MAA – Porque eles nunca me avisaram pra participar de nada. Vejo falar,
mas não sou do time não [risadas]. Moro na comunidade, mas nunca me
‘convidou’ pra nenhuma reunião, nem nada.
PR – Mas a senhora acha que aqui é uma comunidade quilombola?
MAA – Acho, porque eu vejo o movimento deles. Só pode ser, né?
52
A constatação: “Quem tem a corzinha mais clara, aqui, não quer ser
quilombola não. Ninguém quer ser quilombola se é clarinho, aqui, não. Quilombola,
aqui, é só os negros.”, demonstra que a cor continua a ser um dos elementos
diferenciadores para determinar quem é ou não do grupo. No sentido de que
algumas pessoas que não se consideram negras, automaticamente, também não se
identificam enquanto quilombolas. E as que se consideram quilombolas, positivaram
o “ser negro”. As lideranças do lugar apoiam essa última atitude e a incentivam.
Segundo Reis (2003, p.18), existem algumas interpretações que explicam a negação
identitária para com a descendência escravista:
E ela cantou alguns versos: 1. “Quem for daqui do São Joaquim, dá um repico
no sino, dá um beijo em Estela, nem que ela esteja dormindo”; 2. “Meu limão, meu
limoeiro, meu pé de jacarandá! Uma vez, esquindô lelê, outra vez, esquindô lalá.”. E
continuou: “Aí outra mulher vinha e repetia. Aí eu entrava de novo e jogava outro
verso. Como é? A gente esquece! Não lembro mais não! Hoje as festas ‘é’ tudo de
Arrocha. Não presta mais não!”. Robério concordou: “Hoje não presta mais não.”.
Alguns demonstram receio em participar de novas festividades e afirmam que
muitas comemorações não ocorrem mais, devido ao avanço da violência. “As festas
aqui, já ‘teve’, mas como é que faz festa com tanta coisa? Com tanta ‘matação’ de
gente”, disse Dona Maria Alves. Segundo Fernanda de Jesus Salgado, “não tem
mais, porque tem muita violência. Tinha festa junina, São Pedro. Não tem mais e faz
falta”. Maria Alves deu sinais de incômodo ao falar sobre datas festivas. Talvez, por
ser evangélica e os dias comemorativos estarem extremamente relacionados ao
calendário católico. Como a Festa do Padroeiro da comunidade, “São Joaquim
Santana”, que ocorre no dia 27 de julho. As entrevistas forma feitas pouco depois do
dia santo e Lourinha elogiou a solenidade que aconteceu em São Joaquim de Paulo.
1.7.1 As cantigas
[...]
26
Tipo de mutirão para a realização da lavoura. Será explicado adiante.
58
Oh lelé, oh lalá!
Chega de sofrer, eu quero é libertar!
Oh lelé, oh lalá!
Chega de sofrer, eu quero é libertar!
Oh lelé, oh lalá!
Chega de sofrer, eu quero é libertar!
Oh lelé, oh lalá!
Chega de sofrer, eu quero é libertar!
O projeto majestoso
Que chegou pra libertar
Faz a ponte formiguinha
Faz a gente se ajudar
No sentido coletivo
Para juntos resgatar
Os direitos...
Não tenha medo, pois a lei vai amparar!
Oh lelé, oh lalá!
Chega de sofrer, eu quero é libertar!
Oh lelé, oh lalá!
Chega de sofrer, eu quero é libertar!
Robério Santos (RS) – Por que eu falo isso? Porque a gente vai precisar
‘de’ falar da crença, religiosidade e tal... Nós tínhamos aqui candomblés e
sessões espíritas... disse que tem uma separação, eu ‘num’ estudei, ‘num’
sei fazer essas separações, aí tinha uma forma de candomblé, uma forma
de crença e veio também a Umbanda. Tudo tinha aqui...
Poliana Reis (PR) – Quando você diz tinha, é por que hoje não tem mais?
RS – Eu te agradeço até... Alguém tinha que fazer essa correção! Nós ainda
temos Umbanda aqui! O candomblé ainda reina por aqui! Mas é de uma
forma até restrita, porque as perseguições sempre foram constantes. A
diferença, hoje, no sentido perseguição, é porque tem uma camada de
nossos irmãos evangélicos, tem uma parte deles e isso eu não vou falar
com ódio nem rancor! São nossos irmãos! Não estou falando por uma
questão de ressentimento não. Estou falando de uma realidade do hoje.
Então, quem achou de seguir aquele homem lá, o Martinho Lutero, aí acha
que perdeu tempo ou acha que não valeu a pena viver da forma que
viveram, mas eu, como não acho que devo ser seguidor de Lutero, acho
que ainda tenho que estar com minha trilha de fé, que aprendi no passado,
sem querer ‘tá’ fazendo mal a ninguém, mas que na verdade, para mim, o
final de tudo é o Senhor Deus! [...] Cada um serve o seu Deus da sua
maneira, que acredita, mas voltando, só pra concluir... tinha aqueles
remédios caseiros, que permanecem no quintal aí... Até dos nossos irmãos
evangélicos, se você chega no quintal deles, você acha plantio de...
Luciene Santos – É! É sim! Acha mesmo.
RS – Das ervas medicinais, tá? O remédio, as ervas medicinais naturais,
aqui elas sempre ‘continua’, eternamente, valorizadas e acreditadas, porque
a gente costuma fazer chás e dar certo, não é? Porque abandonar nossas
ervas? Ah! A faculdade tá aí... O meu filho, o meu neto, vai fazer faculdade,
medicina e tal... Continue, parabéns! Abrir mão dos nossos princípios, de
nossas raízes? Jamais! Não tem doutor, com todo respeito que eu tenho
que dar, não vai haver doutor nenhum pra chegar no quilombo.
27
Subtítulo baseado na citação de Porto-Gonçalves (2006).
66
[...] a monocultura revela, desde o início, que é uma prática que não visa
satisfazer as necessidades das regiões e dos povos que produzem. A
monocultura é uma técnica que, em si mesma, traz uma dimensão política,
na medida em que só tem sentido se é uma produção que não é feita para
satisfazer quem produz. Só um raciocínio logicamente absurdo, de um
ponto de vista ambiental, mas que se tornou natural, admite fazer a cultura
de uma só coisa.
28
Mesmo com a existência de lotes, o território é reconhecido como de uso comum.
67
das cercas dos fazendeiros. Todavia, a maneira de produzir era coletiva, a exemplo
dos adjuntos ou roubos. Só que a atual configuração do espaço agrário, com a
atuação de outros sujeitos, ocasiona alterações nesse modo de vida e os adjuntos e
roubos não são mais práticas comumente utilizadas pelos membros da comunidade.
Robério Santos (RS) – Pensando no social, eu agora vou pedir a vocês pra
colaborar, porque eu ‘tô’ falando demais. Vamos lembrar dos ‘adjuntos’!
Como é que as pessoas ‘tocava’ as roças? Porque não se tinha dinheiro,
não é? Dinheiro era uma coisa muito restrita nos bolsos dos quilombolas.
Vamos lembrar aqui, como é que a gente tocava as roças, que, inclusive,
até os fazendeiros, os latifundiários, senhores de engenho, eles ‘usava’ das
nossas práticas, usando nós próprios. Era uma prática nossa, mas eles
‘achava’ bom, eles viam que era bom, aí puxava pra lá, pra fazer plantio,
mas já estou falando... Fale! Fale por favor! Fale um pouco disso!
Aurino Ferreira (AF) – O ‘adjunto’... Foi nós que...
RS – Iniciativa nossa!
AF – Nós ‘fazia’ com 20 pessoas, 30, mais...
RS – Agora... Muito interessante...
AF – Tinha uma roça, limpava tudo em um dia. A gente foi crescendo e foi
crescendo e foi o tempo... Então, eles chegavam aqui e ‘pegava’ um
moreno desses...
RS – Moreno não! Me respeite, eu sou preto! Eu sou preto!
AF – ‘Cê’ vai procurar aí o pessoal todo, que eu vou fazer adjunto. Vou
matar um boi, vou comprar 50 litros de cachaça...
RS – Aí a negrada ia, ué!
AF – Pra nós ‘roçar’ uma manga lá.
RS – A negrada gostava da farra!
Poliana Reis – Uma manga! Qual tamanho tem uma manga?
AF – Um alqueire, dois...
RS – Uma manga! Mas o que é isso? Uma manga? Uma fruta?
[Risos]
Luciene Santos (LS) – O ‘roubo’ da roça era assim: Robério ‘tá’ ali, a
gente viu que a roça dele ‘tá’ suja, ele não tem condição de pagar pra gente
trabalhar na roça dele. Ou podia ‘tá’ doente, alguma coisa... ‘Ajuntava’ todo
mundo, a vizinhança e o que fazia? A gente vai ‘roubar’ a roça de Robério,
aí as ‘mulher’...
Robério Santos (RS) – No bom sentido. Pra o povo de hoje, no bom
sentido.
LS – É... Ele não sabia! Lá, ele tava dormindo, quatro horas da manhã, só
que os homens, enxada, foice...
RS – Todas as ferramentas.
LS – Todas as ferramentas ‘entrava’ na roça dele e a ‘muierada’ ficava
pronta pra fazer o almoço, fazer tudo. Mas aí, cada uma ajudava, entendeu?
E na hora que eles ‘entrava’, já ‘entrava’ cantando, gritando e o dono
daquela roça acordava assustado...
RS – Com os instrumentos e, às vezes, fogos.
LS – Fogos! E aí...
RS – Era uma festa! Aquele dia era um clima de festa durante o dia.
LS – Só que na hora que ele ia abrir a porta, já tava todo mundo limpando a
roça dele ali. Ali era um ‘roubo’.
RS – O ‘roubo’ nosso. Pra quilombola, ‘roubo’ era isso.
LS – Nós, esses tempos, o ano ‘trasado’, nós ‘tava’ marcando pra poder
fazer... nós, as mulheres, ‘ia’ fazer...
70
Robério Santos (RS) – Você para com essa conversa, que nós vamos
chegar logo aí [risos do entrevistado, para amenizar o tom da colocação].
Poliana Reis – Eram as mulheres que iam fazer, Maria?
Luciene Santos – Era! A comunidade e as mulheres tinham um...
RS – Ia ter uma contribuição muito forte das mulheres. As mulheres eram as
principais responsáveis por esse roubo nosso, que nós ‘ia’ fazer agora.
Dona Arlete nos contou empolgada que, naquela época, existiu o que o grupo
denominou de “camisão”, “tacão”. Esse termo era usado para identificar as pessoas
que não assumiam tarefas no “adjunto” ou “roubo” da terra e depois tentavam
participar da festa, geralmente um forró, no final do dia de trabalho. O “penetra” era
o “camisão” e o “tacão” era um pedaço de madeira pequeno utilizado pelos
participantes da festa para inibir a participação do invasor. Dona Arlete: “Aí a gente
dizia: ‘se ele entrar aqui hoje, ele apanha’ [risos]”.
Em vários momentos, pudemos perceber como práticas coletivas do
passado, a exemplo dos “roubos”/ “adjuntos”, trabalhos com cantigas, deixaram de
existir por conta da espacialização dos monocultivos, que reduz a disponibilidade de
terras para a comunidade e altera as relações de trabalho no âmbito de como lidar
com o outro, na geração do emprego e renda, e na organização do espaço.
Do ponto de vista social, podemos inferir que esse tipo de plantio tem como
consequências a homogeneização da paisagem, diminuição da biodiversidade,
alteração no campo como um todo (substituição de pastagens e da agricultura local),
desterritorialização, além de inviabilizar a segurança alimentar e nutricional de
comunidades onde essa cultura está disseminada. Para Andrade (2005, p.50)
entende-se por segurança alimentar, a garantia de “alimentos produzidos de acordo
com seus padrões de relação com a natureza, de organização social, de definição
social do que, quando e como ingerir”. E para a expressão insegurança alimentar, a
autora atibui “a dificuldade dos grupos produzirem a alimentação todos os dias e,
assim, para se produzirem materialmente”.
Essa última consequência, a insegurança alimentar, se apresenta de forma
mais severa para as mulheres, já que, historicamente, as atividades do lar, inclusive
o bem-estar da família, foram construídas socialmente como papel feminino. O
agronegócio determina o que vai ser produzido, mesmo no caso das famílias de
pequenos (as) agricultores possuírem a propriedade da terra. Sendo assim, tem
como resultado a influência na dieta alimentar, já que muitos alimentos consumidos
são ou eram produzidos pelos membros da comunidade.
Além disso, a administração dos recursos escassos também passa a ser uma
problemática a ser solucionada, principalmente pela mulher, quem, geralmente,
prepara os alimentos para toda a família e tem que lidar com a ausência ou
insuficiência de recursos. O risco posto à soberania alimentar e nutricional também
se dá pelo fato da monocultura do eucalipto se estender em áreas que antes eram
cultivadas pela comunidade, serviam para caça ou onde era desenvolvida a
pecuária.
Para a reprodução da monocultura, também são necessárias extensas áreas
e utilização intensa dos recursos hídricos, ocasionando desmatamento e
desequilíbrio ambiental.
75
João Rodrigues – Eles ‘tão’ desmatando isso aqui pra fazer, plantar
eucalipto. Eles não falam pra gente, mas ouvimos os comentários. As matas
‘tão’ tudo acabando, indo pra o chão. Na mata, passam o trator por cima e
‘muquirando’, pra dizer que foi o fogo que queimou. Se a gente precisar de
uma lenha pra queimar, tem que ser escondido do dono, com medo de nem
voltar pra casa.
29
http://www.seagri.ba.gov.br/noticias/2015/05/11/bahia-pode-produzir-o-melhor-caf%C3%A9-do-
brasil
30
Outra parcela considerável trabalha nas fábricas em Vitória da Conquista.
77
31
Seu João pediu que eu desse o visto para ter certeza de que tinha feito o desenho correto.
78
Ao mesmo tempo em que a entrevistada dizia que o Salangó não era utilizado
no passado pelos membros de São Joaquim, vieram as suas lembranças sobre a
antiga criação de gado que existia por lá, confirmando a informação dada por Aurino
Ferreira, na primeira atividade de campo. Afirmou, ainda, que os moradores das
proximidades haviam migrado, de modo a confirmar o processo de
desterritorialização ou espoliação da terra. Com isso, recordei a entrevista com
Robério Santos, quando declarou que os membros da comunidade de São Joaquim
não podem ir ao local, devido às fortes ameaças sofridas. Provavelmente, seja essa
a explicação do “esquecimento” ou falta de conhecimento, por parte de alguns, de
como aquele espaço foi importante no passado.
territorial. Tal fato afetaria a relação de certas práticas religiosas, relativas aos rituais
fúnebres e, por isso, decidi realizar uma ida ao cemitério.
2.3.3 O cemitério
Pensei que ali seria um lugar repleto de simbolismos, assim como pelas
informações da primeira incursão a campo, segundo as quais, os fazendeiros
haviam fechado o Corredor da Jiboia. Marquei com Lourinha e José Ildo para irmos
até lá. Por ser um local de difícil locomoção, pela distância e condição ruim da
estrada de barro que dá acesso ao lado não bloqueado do cemitério, foi preciso ir de
carro. Como o Salangó, alguns não reconhecem mais o Corredor como um local de
passagem, como Dona Maria Alves Almeida, que afirmou: “Ah! Conheço! É muito
longe daqui. É lá nessa Jiboia que meu esposo tá enterrado”. Perguntada se o
mesmo pertence à comunidade, a resposta foi: “Não!”.
Ao tentar desvendar a “história”, surgiram evidências de que o cemitério
estava localizado em um local mais afastado de onde está o atual e foi para esse
“antigo cemitério” que o acesso foi dificultado.
José Ildo: O cemitério era lá mais pra cima, moça. Pra lá daquela árvore,
está vendo?
Poliana Reis: Sim, estou. Vamos lá, então?
JI: Tem como não, moça! Tá fechado. Os ‘homi’ fechou. Nem dá pra o carro
ir. Por isso enterra mais pra cá, agora.
Lorinha: tem como não mesmo. Se desse, nós ia.
2.3.4 Brejo
Robério Santos (RS) – Quando foi hoje, entrei no brejo... Rapaz, ‘tô’ vendo
‘limpão’. Cadê a lama? Cadê a água? Não é que secou de novo? Nunca
tinha havido. É o terceiro ano que vem acontecer essa falta d’água aqui...
Luciene Santos – Por causa das barragens. Dos fazendeiros, grandão!
RS – Os homens de dinheiro vêm, ‘entra’, ‘acha’ um fulano, um quilombola
que vende um ‘taquinho’ do seu quintal, vão descendo o porrete, ‘bate’ em
alguns, ‘assusta’ outros, ‘compra’ na pressão, ‘oferece’ qualquer cifra de
dinheiro, qualquer moeda, ‘vai’ invadindo. Eles invadiram nosso quilombo,
entraram e foram tomando as terras. Chegaram agora na cabeceira da
nascente aqui de São Joaquim, furaram, nós sabemos muito bem porque...
Como dito na Introdução deste texto, o estímulo para ter essa comunidade
como objeto de estudo veio de uma denúncia de representantes da CDA. Na época,
esse episódio do avião descrito pelo entrevistado nos foi relatado. Nesse
depoimento a questão da cor reaparece. Na discussão onde Aurino opina “por isso
que eu não gosto do branco” e Robério responde: “Não! Depende do branco. Se o
branco pertencer, for respeitador, é meu irmão! Mas se for invasor, perseguidor...
Não conheço”, observei que a cor infuencia, mas não é o único elemento definidor.
Reafirmo que a maioria dos entrevistados que se identificam quilombolas, também
se reconhecem como negros, porém o fato de uma pessoa ser branca, não a torna
inimiga.
Dona Arlete – Eu não ia na Casa de Telha, porque não mexia com esse
tipo de gente não. Tinha era gente trabalhando, passando fome, comendo
feijão sem nenhum pedacinho de carne.
32
De acordo com os moradores, Netinho é empregado de Nilo Coelho e age como o “mandachuva”
da área. Também foi dito que ele é dono do posto de gasolina PetroBahia, na cidade de Vitória da
Conquista.
86
33
Medida legal tomada para concretizar a posse efetiva da terra
34
http://www.prba.mpf.mp.br/mpf-noticias/direitos-do-cidadao/incra-devera-demarcar-terras-de-seis-
comunidades-quilombolas-em-vitoria-da-conquista-ba
87
35
Uma metáfora acionada por diferentes grupos, em variados contextos, que conecta as gerações do
passado e do presente (BAPTISTA, 1992; BARRETO FILHO, 1993; GRÜNEWALD, 1993; ARRUTI,
1996). Os antepassados seriam “os troncos velhos” e as gerações atuais, “as pontas de rama”.
(OLIVEIRA, 1998).
88
condições de vida, nas sedes próximas ou mesmo na capital baiana. Dona Guiomar,
ao ser questionada se os seus 14 filhos moravam em São Joaquim de Paulo,
respondeu: “Não, minha ‘fia’. ‘Tão tudo’ empregado, só tem neto [...] Saíram pra
procurar emprego, pra trabalhar. Depois, lá mesmo ficaram”. Em resumo, muitos são
obrigados a partir, e os que ficam sofrem com as péssimas condições de serviços e
infraestrutura da comunidade. Não obstante, há ainda uma precarização em
praticamente todas as relações de trabalho, expressas na exploração da mão de
obra nas fazendas ou nas atividades sazonais no município de Vitória da Conquista.
Foi desse panorama histórico e geográfico que avaliamos os papéis
desempenhados pelas mulheres na construção do então território étnico. Buscamos
demonstrar os pontos de vista desses sujeitos, invisibilizados durante as tomadas de
decisões. Algo que não foi fácil de realizar e, ao final, suas vozes não estão
presentes neste texto o quanto gostaríamos, pois, apesar da consciência de que a
pesquisadora interfere nas relações cotidianas, é preciso saber que existem limites
que não devem ser ultrapassados. E que questões impostas por gerações e
gerações não são modificadas no tempo ínfimo da produção de uma dissertação.
mas para outro”. Os fazeres domésticos são realizados “sempre em nome de uma
natureza ou dever femininos”; muitas vezes, invisíveis e “não reconhecido como
deveria ser: como um trabalho”.
A divisão sexual do trabalho também está presente no contexto da agricultura
camponesa e em todas as outras instâncias existentes em São Joaquim de Paulo.
São essas as discussões que formam a primeira parte deste capítulo e têm como
pretensão esboçar como as mulheres de São Joaquim estão inseridas no espaço
agrário. Na segunda parte, evidenciaremos as atividades produtivas realizadas pelos
indivíduos.
A divisão sexual do trabalho é anterior ao capitalismo, porém, atingiu o seu
auge com o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas. Para Hirata e
Kergoat (2007, p.599):
Poliana Reis (PR) – E na época do café, tem emprego pra todo mundo?
Valdelice Salgado (VS) – Tem. Agora, quando o café acaba, fica todo
mundo desempregado.
PR – E o que se faz quando não é a época do café?
VS – Eu ‘mesmo’, me viro com o meu ‘Bolsinha Família’.
PR – Muita gente aqui recebe o ‘Bolsa Família’?
VS – Todo mundo que eu conheço aqui, recebe.
PR – E além do ‘Bolsa Família’, faz mais o quê?
VS – Eu mesma, quando acho, vou fazer faxina nas casas de família.
Quando a época do café chega, eu saio da faxina e vou ‘panhar’ café.
PR – Tem muita gente que sai da comunidade em busca de emprego,
durante esse período?
VS – É... As ‘mulher’ vão trabalhar em Conquista. Na época do café, elas
param.
PR – E essas mulheres vão para Conquista trabalhar com o quê?
VS – Empregada doméstica, diarista.
PR – E elas vão e voltam ou vão para morar?
VS – As meninas? Vão e voltam, todos os dias.
PR – E os homens? Fazem o quê, quando não é época do café?
VS – Aqui, moça, a maioria dos homens ‘estão’ indo trabalhar nas fábricas,
em Conquista.
Ferreira (2007, p.5) faz uma reflexão sobre a destruição de ecossistemas pela
ação de projetos agroindustriais, em comunidades tidas como tradicionais, e analisa
a situação feminina nesse contexto:
36
Documento resultante da Conferência Mundial de Mulheres, realizada em Pequim, em 1995.
93
Poliana Reis (PR) – Tem muita gente saindo da comunidade pra trabalhar?
Zumira Maria de Jesus (ZMJ) – A maioria ‘tão’ trabalhando tudo fora.
Mulher é doméstica, faxineira, e os ‘homi’ ‘é’ dessas ‘firma’ aí. E os que não
trabalham lá, tão trabalhando aqui, no café. Na fazenda de Nilo Coelho.
PR – Na fazenda de Nilo Coelho? Fica pra que lado, essa fazenda?
ZMJ – Pro lado do Capinal.
37
Essa expressão representa o “Nó” de Saffioti (1969). Para a autora, os três fatores (sexo, raça,
classe) não podem ser analisados de maneira isolada.
97
Poliana Reis – Como as pessoas viviam nesse tempo inicial? Com o que
trabalhavam?
Robério Santos – Muito bem! Quando você pergunta como vivia esse
povo, eu quero entender que você quer saber de uma forma geral, não é? O
modo de vida próprio, dito vida sustentável, não é? Ah... E também no modo
social, a forma social de viver, né? Aqui tinha benzendeira, rezadeira,
rezador, benzendor, raizeiros. Aqui tinha... Até porque, também tinha...
Acho que o que aqui bem tinha era pistoleiro também, tinha sim... E nós
sempre ‘tocava’ as roças e os fazendeiros se aproveitavam das nossas
práticas. Sempre se aproveitaram, mas com o tempo, piorou.
98
38
Expressão utilizada pelos movimentos sociais para designar monoculturas de eucalipto.
100
39
A elaboração da Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político é uma das principais
bandeiras defendidas pela Consulta Popular, partido revolucionário do qual, orgulhosamente, faço
parte. Esse partido tem como objetivo o Poder Popular.
101
Sei que não foi possível demonstrar, com a riqueza de detalhes merecida, o
cotidiano das pessoas desse lugar, pois as relações são muito complexas e
qualquer forma de descrição da realidade tende a simplificá-las. Entretanto, gostaria
de compartilhar alguns momentos divididos por nós, durante a execução das
atividades de campo. As fotos deste subitem demonstram, na medida do possível,
as primeiras descobertas, as inquietações iniciais, os medos, a coragem e o fruto do
trabalho dos personagens que vivenciaram a produção desta pesquisa.
103
A Foto 1, abaixo, foi tirada no dia em que cheguei a São Joaquim de Paulo.
Chegamos pela manhã, na casa de Lourinha, e no turno da tarde, seria a reunião
mensal dos associados. Estava apreensiva e com receio de não ser aceita pela
comunidade, pois seria apresentada no encontro vespertino e poderia ter a minha
proposta aprovada ou não.
predominam (Foto 2). Pelo menos, nas poucas terras que restam para os
moradores. Consistem na junção do arame com as plantas que preenchem os
espaços. De acordo com os proprietários rurais, as cercas vivas atuam como
barreira para os ventos e diminuem o processo de desgaste do solo (erosão),
servem de alimentação para alguns animais, além do valor estético, que também
pode ser percebido nos jardins que decoram o lugar (Foto 3; p.96). Contudo, às
cercas de pés de eucalipto não são atribuídas nenhuma dessas vantagens, apesar
desse tipo existir no território reivindicado.
Uma das maiores reclamações por parte dos moradores é o fato de não
existir uma sede para a realização das reuniões da Associação. Pelo fato dos
encontros ocorrerem ao lado de um bar (Foto 7), muitos deixam de frequentar as
assembleias, devido a questões religiosas, por exemplo. As lideranças buscam a
construção de uma igreja, para que ocorram as missas e também sirva como sede
da Associação. Robério Santos chegou a pedir ao padre que a paróquia fosse
construída onde era a casa de sua mãe, Ercília Salgado Vieira. Mas o padre
ponderou que isso poderia afastar os fiéis pertencentes ao “São Joaquim 2”, ou seja,
aqueles que não veem a comunidade como quilombola. Como Robério Santos é um
dos principais defensores da causa, esse fato poderia criar um conflito interno.
Houve conversas informais no local (Foto 9), antes do início da reunião, que
já foram bastante produtivas para a pesquisa. A técnica Ione, da CAR, estava
presente e quis saber as potencialidades existentes na comunidade. Também
indicou como as lideranças poderiam dar prosseguimento a alguns projetos
pensados em reuniões anteriores, principalmente para o empoderamento feminino.
Foto 12 – Reunião
O casal José Moreira de Souza (Seu Zé), 67 anos, e Dona Guiomar Carmen
Souza, 68 anos (Foto 14), ficou muito feliz em nos conceder uma entrevista, por
indicação de Luciene Santos. De acordo com ela, seu Zé e Dona Guiomar, que é tia
de Robério Santos, conhecem bastante as histórias antigas da comunidade. Foram
escolhidos, também, por estarem entre os mais velhos, já que a comunidade tem
poucas pessoas idosas. Recebemos convites para visitas posteriores e prometemos
levar a foto revelada, como recordação daquele dia.
Nascido nas proximidades de Itambé, Seu Zé, filho de criação do Sr. Edgar
Santos, chegou a São Joaquim por volta de 1970 para trabalhar e lá passou a
morar. Começou a namorar Dona Guiomar Souza e, após o casamento, passou a
fazer parte da família dela e da comunidade. O senhor contou, com orgulho, como
se deu o início do namoro. E, com satisfação, revelou que sabia muitas histórias
112
sobre o lugar, mas que sua esposa sabe mais do que ele, por ser filha de São
Joaquim de Paulo.
Poliana Reis (PR) – Obrigada, Seu Zé. Hoje, a gente está aqui na reunião,
mas ainda vou procurar o senhor para nós conversarmos. Obrigada!
Seu Zé: Tá bom! Eu tenho muita história de quando eu comecei a namorar
com ela [Dona Guiomar]. Através da comunidade aqui, eu comecei a
namorar com ela. Entrei na família!
Poliana Reis – Pronto! Eu vou querer saber de tudo!
Nascida e criada em São Joaquim de Paulo, Dona Guiomar teve oito filhos
(cinco mulheres e três homens), sendo que um morreu. Atualmente, é avó de nove
netos e, assim como a jovem Fernanda Salgado, lamentou não existir uma creche
no local. Sente saudade dos filhos que migraram da comunidade para trabalhar e
espera ansiosa a visita deles. A senhora comemora a chegada das cisternas:
Foto 16 – Alício, Aurino, Poliana Reis, Seu Nego, Lourinha e seu Zé.
(Coleta dos pontos para a produção do mapa)
Robério Santos nasceu no dia 9 de janeiro de 1956. Aos 59 anos, o seu maior
desejo é conseguir a titulação do território São Joaquim de Paulo como quilombola.
O “Negro Robério” já foi vereador no município de Vitória da Conquista, pelo PT.
Atualmente, é assentado pelo MST, liderança quilombola de São Joaquim e sente
muito orgulho da filha, Rilza Santos. A jovem é formada em psicologia,pela UFBA.
Muita gente diz que viu e era um bicho de orelha bem pequena e que tinha
uma cor ‘ofusca’. Parecia com um urso, a traseira bem larga. Não saiu,
outro dia, na novela, o ‘cadeirudo’? Era mais ou menos aquilo ali. Então, ele
andava de quatro e tinha a cabeça e a orelha pequena. Não tinha rabo e
meu pai contava casos de pessoas que se assombravam. Tio Lídio foi
pescar e quando chegou com uma fileira de traíra, daqui a pouco tá
‘ureinha’ na sombra da moita, sentado, olhando pra ele, com as mãos no
queixo. E tinha muito mato, hoje em dia, não tem quase mais nada. Tio
Lídio pensou: ‘pra onde eu vou, que só tem mato?’. Eu vou passar por cima
desse bicho. Disse que ele trancou os ‘zoio’ e passou por cima do bicho.
Na atualidade, a mulher, cada vez mais, atua no público (no caso da mulher
negra, sempre houve a atuação nos dois espaços), porém, as responsabilidades
com atividades domésticas, como cuidar da casa, dos filhos e dos idosos, são
atribuídas, no imaginário social, ao sexo feminino. O que obriga a mulher a ter uma
dupla jornada de trabalho (trabalho doméstico e trabalho mercantil).
40
Apresentação realizada no Seminário do Fórum Social Mundial (FSM), Porto Alegre, 2002,
baseada no artigo publicado na revista Mientras Tanto (n. 82, out.-inv. 2001, Barcelona, Icaria)
116
Dona Arlete (DA) – Sabe por que as cobras frequentavam as casa? Pra
mamar! A mulher tava parida e a cobra botava o rabo na boca do neném e
mamava no peito da ‘muié’. A ‘muié’ adormecia e a cobra mamava,
mamava, enchia a barriga. E o menino passando fome, chupando o rabo da
cobra. O homem disse que chegou, a ‘muié’ tava criando o neném, aí foi no
quarto e viu o cabo na boca do menino e mamando no peito da mulher.
‘Meu Deus! O que é que faço agora? Se eu atirar na cobra, mato a mulher.
Vou esperar!’ A cobra mamou, mamou, mamou. Aí que ela desceu, subiu
em cima do fogão, ‘num’ tinha aquele fogão de giral? Que ela subiu, fez a
‘arrudia’ e ficou lá. Quando ele atirou, disse que só tinha leite na cobra. Não
contou à mulher, porque tava de resguardo. Naquela época, a mulher tinha
resguardo, comia pirão de farinha, ‘carninha’ de carneiro, comida leve, com
cominho, cebola branca e alho. E a temperada! Você sabe o que é a
temperada?
Poliana Reis – A cachacinha [risos].
DA – Olha! Isso! Tinha mulher que ficava até um ano sem lavar a cabeça. A
‘muié’ hoje, no dia que ela ganha o neném, ela lava o cabelo.
Foto 23 – Dona Arlete: “Já morei até em casa de sapé, debruçada de capim. Dava um trovão,
clareava tudo lá em casa. E hoje, fomos ‘expulso’.”.
Dona Maria (a Tia) mora em São Joaquim de Paulo desde que nasceu. E no
auge dos seus 74 anos, não gosta de conversar com as pessoas “de fora”, porque
não escuta direito e tem receio de que os demais interlocutores não tenham
paciência para repetir os enunciados. Mesmo assim, fomos recebidas com carisma
pela Tia, que, de início, disse que na comunidade todos são irmãos e que a sua vida
é guiada pelo trabalho com a terra: “Eu não ‘guento’ lavar uma roupa...
120
Desacostumei fazer comida e tudo. Agora, pro lado de uma enxada... Eu gosto de
lidar com o negócio! Essa mandioquinha que vocês estão vendo é minha, esses
aqui... Tudo é meu ganho, tudo é de meu braço”.
Foto 27 – As ervas
A Tia41 teve 13 filhos, mas “Deus levou oito”. A senhora se orgulha de sempre
ter trabalhado para ela mesma e nunca ter “dado um dia de trabalho” para terceiros.
Sente falta do marido, que morreu há pouco tempo e diz que seu consolo e apego é
a neta Fernanda de Jesus Salgado, que mora com ela e nos deu entrevista, mas
não quis tirar foto. Conhecedora de plantas medicinais, Dona Maria nos ensinou
alguns “remédios do mato” bons para a saúde da mulher. A Foto 28 mostra a salsa
que recebemos como um presente.
41
Dona Maria é tia de Robério.
123
Foto 28 – Salsa
Dona América fica responsável pelo cuidado com as netas, para que a filha
possa trabalhar, e disse que se tivesse uma creche, no futuro, a vida seria mais fácil
para ambas (mãe e filha).
Na Foto 33, a senhora Maria José faz lanche para os convidados, enquanto a
reunião sobre o perímetro territorial ocorre na sala da sua residência. Faz
reclamações pelo fato do Posto de Saúde só funcionar, efetivamente, uma vez por
mês e nesse dia só serem disponibilizadas 10 fichas para o atendimento. “Trabalho
na roça e aqui em casa. Às vezes, prefiro a roça, porque o trabalho aqui de casa
‘num’ acaba. O da roça tem mais limite, mais hora certa pra acabar.”
Ruan Salgado (Foto 34) acompanhou as entrevistas realizadas com sua mãe,
Fernanda de Jesus Salgado, e, de vez em quando, opinava na conversa. Em um
dado momento, o menino disse que não gostava de morar em São Joaquim. Isso
porque nasceu na cidade de Vitória da Conquista e só há pouco tempo foi morar na
comunidade, pois Fernanda precisou morar com a avó (a Tia), depois que a mesma
ficou viúva.
127
Foto 35 – Fernanada
Seu Bibi tem 76 anos e sonha em voltar a morar em São Joaquim de Paulo. O
senhor foi o caso mais marcante das entrevistas realizadas, no que se refere a um
sujeito desterritorializado e que não se adaptou à opção de reterritorialização pela
qual foi obrigado a passar.
Foto 39 – “Eu, hoje, tô aqui, mas quero voltar pra lá. Eu nasci lá, meu umbigo tá enterrado lá! Eu volto
com a maior satisfação da minha vida.” (Seu Bibi)
Foto 56 - Cemitério
Foto 57 - Cemitério
140
Foto 60 – Eucalipto
Foto 61 – Eucalipto
142
Foto 62 – Eucalipto
Foto 63 – Café
143
Foto 64 – Cafezal
Foto 65 – Cafezal
144
Foto 66 – Cafezal
4.2.3 Loteamento
Foto 69 – Loteamento
Foto 70 – Loteamento
147
Foto 71 – Loteamento
Foto 72 – Loteamento
148
Foto 73 – Carroça
Foto 74 – Engenhoca
149
Foto 84 – Lenha
154
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“parentes”; o trabalho com a terra: praticado desde sempre por esses homens e
mulheres.
A religião e as festas também foram elementos utilizados como forma de
“provar” a identidade quilombola e assim, por tabela, há a tentativa de manifestá-las
ou descrevê-las como ocorriam no passado, na busca de alcançar a tão sonhada
titulação do território. No caso da religião, algumas lideranças eram evangélicas e
passaram a seguir manifestações de matrizes africanas. Os marcos territoriais
identificados durante a realização das atividades é a materialização da ligação dos
indivíduos com aquele espaço.
Durante o trabalho de campo, foi possível identificar várias formas de
expropriação da terra e processo de desterritorialização sofrido pela comunidade.
Desde grilagem a avanço das cercas dos fazendeiros, ameaças de morte e ações
impetradas pelos “senhores da terra” para impossibilitar a reprodução da
comunidade, como: fechamento de estradas, loteamento da área e bloqueio de
nascentes. As monoculturas do café e do eucalipto espacializadas no local são os
resultados da perda territorial. No entanto, contraditoriamente, um grande número de
moradores é dependente dos trabalhos provenientes desses plantios 42. Um trabalho
degradante e de grande exploração de mão de obra.
A divisão sexual do trabalho faz com que as mulheres tenham mais
dificuldade de inserção em determinadas atividades tidas enquanto masculinas. A
mulher tem que dar conta do trabalho doméstico, que muitas afirmaram “não ter fim”
e as atividades que exigem cuidados, como zelar os filhos, idosos e demais
familiares. Essas atividades, apesar de exigirem tempo, esforço, dedicação e
garantir a participação mais ativa dos homens no espaço público, não são
reconhecidas como trabalho e, na maioria das vezes, são invisibilizadas. Quando
aceitas nas atividades tidas como masculinas, as mulheres esforçam-se para
produzir bastante e não serem dispensadas por seu sexo, a exemplo do que ocorre
no exercício penoso nas lavouras dos grandes fazendeiros, onde trabalham o
máximo de horas possível.
Ao analisar como se concretiza a divisão sexual do trabalho na comunidade,
descobrimos um grupo que tem um projeto embrionário com o intuito de promover
uma maior e melhor inserção feminina no mundo do trabalho, através de
42
São mais dependentes do trabalho com o café.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Mônica de M., FONTES, Ednice de O, GÓES, Liliane M. Reorganização
socioeconômica no extremo sul da Bahia decorrente da introdução da cultura
do eucalipto. Sociedade & Natureza, Uberlândia, 20 (2): 5-18, DEZ. 2008.
Disponível em <http://www.sociedadenatureza.ig.ufu.br/viewarticle.php?id=465>
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lutas. Salvador: EDUFBA, 1995.
OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação
Colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana, vol.4, n.1. Rio de Janeiro, 1998.
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São Paulo, dez-fev 1996. p. 14-39.
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SILVA, Valdélio Santos. Rio das Rãs à luz da noção de quilombo. In: Afro-Ásia nº
23. Salvador, 2000.