Anderson Ribeiro Oliva. Lições Sobre África

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Lies sobre a frica: abordagens da histria africana nos Livros didticos brasiLeiros1

Professor adjunto de Histria da frica do Departamento de Histria/UnB

Anderson Ribeiro Oliva

resumo

O tratamento concedido trajetria histrica das sociedades africanas nos manuais escolares utilizados entre a 5 e a 8 sries do ensino fundamental o tema principal do presente artigo. O recorte temporal eleito para observao corresponde abordagem da histria africana que se estende do sculo VII ao XVIII. Apesar dos avanos identificados em algumas colees, o quadro geral da anlise sinaliza para a existncia de algumas imprecises no enfoque da temtica.

Palavras-chave
ensino da histria da frica livros didticos histria africana.

abstract

The treatment accorded to the historical trajectory of African societies in school textbooks used between 5th and 8th grades of elementary school is the main theme of this article. The cut-off time for observation is elected to the approach of the period which extends from the seventh century to the eighteenth. Despite the advances identified in some collections, the general framework for the analysis indicates that there are some inaccuracies in the focus of the issue.

Keywords
teaching the history of Africa textbooks African history.

Este texto parte do sexto captulo de minha tese de doutorado intitulada Lies sobre a frica: dilogos entre as representaes dos africanos no imaginrio ocidental e o ensino da histria da frica no mundo atlntico (1990-2005), defendida em setembro de 2007 no Programa de PsGraduao em Histria da Universidade de Braslia. O trabalho recebeu apoio financeiro da Capes.
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Como observador atento e interessado nas experincias e projetos de abordagem da histria africana em nossas escolas, estou me convencendo que vivemos tempos promissores acerca da questo. As atividades interdisciplinares, os encontros e colquios, as publicaes e os cursos de formao/ qualificao se multiplicam. Sendo menos otimista, digamos que esta seja uma onda em perspectiva, talvez uma tendncia. Caso ela se consolide e encontre nas universidades a confirmao de outra tendncia o aumento da produo e da formao de pessoal especializado nas temticas africanas os prximos anos encontraro um cenrio positivo para tratamento do tema. No entanto, apesar dos avanos percebidos, alguns ingredientes desse cativante objeto necessitam ainda de ateno imediata, no podendo aguardar os ventos benfazejos do futuro. Entre estes, pode-se incluir o tratamento concedido histria africana nos manuais escolares, tema que merecer aqui destaque especial. Ainda mais quando constatamos que, sobre a frica e os africanos, foram depositadas, no imaginrio social brasileiro, com excees evidentes (mas no majoritrias), uma srie de imagens negativas e esteretipos ao longo das ltimas dcadas. Seria justo, portanto, perguntarmos se o atual quadro do ensino da histria da frica possui algum poder de desconstruo ou reafirmao sobre os mitos, notcias e ideias que circulam diariamente sobre o continente. O enfoque aqui proposto partir de uma premissa hipottica, ou seja, a produo dos livros didticos e seu emprego nas salas de aula se revelam instrumentos de significativa participao na construo das referncias mentais e dos conhecimentos que estudantes e docentes carregam sobre os temas ali trabalhados, ou ali suprimidos. Dessa forma, por tudo que tem sido dito sobre a funo dos manuais escolares, inclusive acerca do processo de apropriao ou rejeio de suas lies,2 procuraremos visualizar as histrias que os mesmos contam sobre o continente africano. A inteno perceber suas possveis pro-

Acerca do tema ver, entre outras obras, as seguintes referncias: CASSIANO, Clia Cristina de Figueiredo. Aspectos polticos e econmicos da circulao do livro didtico de Histria e suas implicaes curriculares. In Histria, 23, 1-2. So Paulo, 2004, p. 33-48; MACEDO, Jos Rivair. Histria e livro didtico: o ponto de vista do autor. In: GUAZZELLO, Cezar Augusto Barcellos, et al (orgs). Questes de teoria e metodologia da Histria. Porto Alegre: EDUFRG, 2000, p. 289-301; MUNAKATA, Kazumi. Histria que os livros didticos contam, depois que acabou a ditadura no Brasil. In: FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. So Paulo: Contexto, 2001, p. 271-298; VILLALTA, Luiz Carlos. O livro didtico de Histria no Brasil: perspectivas de abordagem. In: Ps-Histria, Revista de Ps-Graduao em Histria (Unesp), (9). Assis, 2001, p. 39-59.

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ximidades ou afastamentos para com o conjunto de representaes elaboradas sobre os africanos.3 Assim, o objetivo principal a ser desenvolvido pelo presente texto revela-se na tentativa de identificar e analisar a forma como os livros didticos de Histria, utilizados nas escolas brasileiras, abordam a histria da frica. Temos a clara noo da abrangncia da tarefa proposta. Por isso, procuramos destacar os textos produzidos entre 1999 e 2005 e voltados, exclusivamente, para o segmento que no Brasil correspondia, at 2006, aos quatro ltimos anos do ensino fundamental (5 a 8 srie).4 Inicialmente, concedemos aos livros selecionados pela investigao um tratamento quantitativo que nos conduzisse construo de modelos explicativos mais consistentes. Padres de abordagem, temticas recorrentes, assuntos ou sociedades com concentrao de enfoques, equvocos ou lacunas no uso de categorias e conceitos histricos foram alguns dos tpicos abordados. Nosso esforo justifica-se pela tentativa de trazer clareza metodolgica anlise realizada. A partir desse quadro iremos tecer alguns comentrios acerca de suas possveis relaes de continuidade, reforo ou desconstruo com as representaes construdas sobre a frica e que so recorrentemente encontradas no imaginrio daqueles que integram o pblico escolar. A segunda tarefa aqui proposta resultado de uma preocupao terica que foi empregada como pano de fundo conceitual para o tratamento dos contedos apresentados pelos manuais escolares. Neste caso, acreditamos que tal perspectiva merea um destaque a parte. Assim, a partir de alguns dos temas ou assuntos em destaque procuraremos estabelecer um dilogo com a historiografia especializada nos estudos africanos. O uso de categorias, conceitos e nomenclaturas histricas como tribal, grupo tnico, reino, imprio e hegemonia poltica e a escolha dos temas abordados recortes civilizacionais e formaes polticas sero enfocados por meio de um dilogo arquitetado entre os autores dos manuais escolares e os historiadores especialistas.

Sobre a questo do imaginrio e das representaes formuladas sobre os africanos, consultar os seguintes trabalhos: MUNANGA, Kabengele. frica: trinta anos de processo de independncia. In: Revista da USP n 18, fev-ago 1993, p. 102-111; OLIVA, Anderson Ribeiro. Os africanos entre representaes: viagens reveladoras, olhares imprecisos e a inveno da frica no imaginrio ocidental. In: Em tempo de histrias, n 9, ano 9. Braslia, 2005, p. 90-114; e, SERRANO, Carlos e WALDMAN, Maurcio. Memria dfrica: a temtica africana em sala de aula. So Paulo: Cortez, 2007. 4 A partir de 2007 o ensino fundamental passou a ter nove anos de durao. Ver Lei n 11.274, de 2006.
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Em sntese, tendo como princpio a crescente importncia do ensino da histria africana em nosso pas e percebendo a relevncia da histria na construo de entendimentos e representaes dos alunos acerca das diversas realidades que os cercam, acreditamos ser extremamente valioso realizar a tarefa aqui proposta: avaliar as possveis impregnaes e participaes dos manuais didticos nas construes mentais dos estudantes sobre a frica.

indcios de mudanas em meio s continuidades


O relevante papel desempenhado pelos livros didticos como instrumento auxiliar da atividade docente e como uma das fontes de leitura para os alunos apesar de sua condio passvel de crticas e geradora de muitas reflexes parece-nos inquestionvel. Sendo assim, as abordagens acerca dos estudos africanos, presentes ou ausentes nas colees de Histria utilizadas para os ltimos quatro anos do ensino fundamental, aparecem como ingredientes chaves na composio, transformao e manuteno das referncias e imagens que o pblico escolar constri sobre o continente. Reforada essa perspectiva iniciemos nossas trilhas analticas. Para a seleo dos livros didticos, havamos escolhido, em um primeiro momento, o intervalo de anos que se estende de 1995 a 2005. No entanto, ao longo da pesquisa, percebemos que, para a anlise de contedos, teramos que adotar outro recorte, 1999-2005. O novo marco de origem est atrelado entrada em vigor dos PCNs para rea de Histria (5 a 8 srie) e publicao dos primeiros Guias de livros didticos organizados para as sries finais do ensino fundamental. J o marco de trmino associa-se divulgao do Programa Nacional do Livro Didtico (PNLD), referente ao ano de 2005, e corresponde a um perodo mnimo de dois anos para que as editoras e autores pudessem se ajustar Lei n 10.639/2003. Isso no significa que tenhamos ignorado os livros produzidos anteriormente. Para um olhar comparativo mais pontual estendemos o mapeamento (mas no a anlise) acerca da presena da histria africana nos manuais de histria at 1994. Coincidentemente, ou no, j que acreditamos que tal fato esteja relacionado aos primeiros reflexos das mudanas ocorridas na legislao educacional e ao aumento do interesse da academia, autores e editores sobre a questo, iremos encontrar as primeiras colees que introduziam captulos especficos para a histria africana sendo editadas a partir de 1999. Ao todo foram localizadas, no recorte temporal mais amplo estabelecido para a investigao (1994-2005),

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39 colees de livros didticos de Histria utilizados no ensino fundamental brasileiro. Dessas colees que incluam livros da 5 a 8 srie observamos um total de 53 livros.5 Das 39 colees mapeadas, apenas oito possuam livros com captulos tratando exclusivamente a histria africana (21% do total). Como havamos adiantado anteriormente, todos foram publicados a partir de 1999. J em outras duas, foram localizados livros com tpicos especficos reservados frica (tambm um por coleo), ou seja, 5% do total.
grfico 1. colees de livros didticos de histria utilizados no ensino fundamental com exemplares possundo captulos ou tpicos especficos sobre a histria da frica (1999/2005)

colees com tpicos sobre histria da frica - 5% colees com captulos sobre histria da frica - 21% colees sem captulos ou tpicos especficos - 74%

total de colees

Preocupados em estabelecer um dilogo maior com a historiografia africana e africanista e seguindo uma tendncia encontrada nos prprios manuais, optamos por analisar apenas os manuais que abordaram a histria africana correspondente ao perodo histrico que se estende dos sculos VII ao XVIII, com captulos ou tpicos especficos. Por acumular uma maior quantidade de assuntos ou possibilidades de trabalho em sala de aula, devido a uma maior disponibilidade de fontes e de investigaes publicadas,6 esse enfoque temporal pde ou pode

Para verificar a listagem completa e as tabelas com as anlises dos livros didticos, ver: OLIVA, Anderson Ribeiro. Lies sobre a frica: dilogos entre as representaes dos africanos no imaginrio ocidental e o ensino da histria da frica no mundo atlntico (1990-2005). Braslia: UnB, tese de doutorado, 2007, p. 361-364 e p. 378-389 (http://bdtd.bce.unb.br/tedesimplificado/ tde_busca/arquivo.php?codArquivo=2611). 6 Ver, entre outros textos, os seguintes: CURTIN, Phillip D. Tendncias recentes das pesquisas histricas africanas e contribuio histria em geral. In: KI-ZERBO, Joseph (org.). Histria geral da frica: metodologia e pr-histria da frica, vol. I. So Paulo: tica; Unesco, 1982, p. 73-90;

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desempenhar um papel chave na interlocuo com os imaginrios circulantes sobre a frica entre estudantes e professores. Ao mesmo tempo, deixaremos para uma futura publicao a anlise da histria africana referente aos perodos anteriores ou posteriores a esse recorte, to importantes quanto os a encontrados. Para sistematizao de nossas anlises, classificamos os assuntos enfocados em quatro tpicos temticos, nos quais associamos as vises dos autores acerca de determinados contedos aos referenciais formulados por parte da historiografia africanista: a) espao reservado ao tratamento da histria africana; b) temtica central dos captulos ou dos tpicos; c) uso de categorias ou conceitos histricos contextualizados; d) abordagens acerca da escravido africana e do trfico de escravos. Poderamos ter escolhido outros ngulos de observao como a eleio de enfoques tericos acerca da histria social, da histria cultural, ou por temas e assuntos apenas, como o estudo das questes de gnero, trabalho, mentalidades, poltica, cotidiano, sem restries temporais. Mas, devido prpria estrutura de grande parte dos manuais escolares, a que escolhemos nos pareceu ser a opo mais adequada. Enfatizamos que, justamente, os dez manuais escolares identificados por tratarem os estudos africanos com alguma especificidade classificam-se dentro do recorte cronolgico-temtico denominado histria da frica entre os sculos VII-XVIII, com algumas pequenas variaes em relao ao espao geogrfico e temporal enfocado. A grande maioria desses livros, oito para ser mais preciso (80%), era destinada 6 srie e os outros 10%, respectivamente, 5 e 7 sries.
grfico 2. distribuio dos livros por srie (total de manuais = 10)

5 srie - 10%

6 srie - 80%

7 srie - 10%

8 srie

MBOKOLO, Elikia. frica negra histria e civilizaes. At ao sculo XVIII. Lisboa: Vulgata, 2003, p. 45-53; OBENGA, T. Fontes e tcnicas especficas da histria da frica. In: KI-ZERBO. Histria geral da frica, op. cit., p. 91-104.

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No que se refere configurao metodolgica desses dez livros encontramos a seguinte situao: metade dos textos (cinco) estava organizada pelo formato de histria integrada; outras duas referncias (20%) seguiam a opo pela histria do Brasil e histria geral; e, por fim, trs manuais (30%) se estruturavam pela histria temtica.7
grfico 3. classificao dos livros a partir da configurao metodolgica das colees
(total de manuais = 10)

Histria do Brasil e histria geral - 20%

Histria temtica - 30%

Histria integrada - 50%

Em quase todos os livros em enfoque, independente do tratamento concedido, as imprecises e equvocos acabam por predominar, por razes que talvez espelhem a pequena intimidade com a bibliografia especializada e as circunstncias especficas da elaborao de um livro didtico. Isso no exclui algumas boas reflexes realizadas pelos autores ou ainda abordagens adequadas dos contedos apresentados. Faamos um balano panormico do tratamento desses livros, lembrando que entre eles encontramos grandes diferenas. Por

Sobre tal diviso adotamos a seguinte definio: (...) em termos de organizao ou estruturao dos contedos tratados pelas colees brasileiras na rea de histria, encontramos a existncia de trs modelos cronolgico-temticos nos quais podem ser agrupados os livros analisados: 1. Histria do Brasil e histria geral - livros que tratam separadamente da histria do Brasil e da histria geral. Quase sempre so reservados dois anos ou duas sries escolares para cada uma dessas histrias: [quase sempre] 5 e 6 sries ficam com o estudo da histria do Brasil (...) e as 7 e 8 sries enfocam [a histria geral], para seguirmos as nomenclaturas adotadas nos prprios livros. Da mesma forma, os recortes possuem (...) um perfil marcadamente cronolgico, mesmo que no factual; 2. Histria integrada [os textos] abordam as histrias do Brasil e geral de forma articulada temporalmente, numa sequncia cronolgica que relaciona as histrias de vrias civilizaes, sociedades ou contextos histricos entre si; 3. Histria temtica livros com os assuntos organizados por temas especficos, seguindo um vis temporal ou temtico, cf. OLIVA. Lies sobre a frica, op. cit., p. 236-237.

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isso, os comentrios partiro de um olhar quantitativo para possibilitar o recorte mais especfico e terico acerca dos textos.

a) o espao dedicado histria africana: poucas palavras para muitas histrias


Como havamos sinalizado, sob o recorte temporal, que se estende do sculo VII ao XVIII, que se concentram os livros didticos que reservaram captulos inteiros ou tpicos extensos para o tratamento da histria africana. Dessa forma, mesmo que representem apenas 21% do total das colees observadas pela pesquisa, no podemos deixar de registrar os avanos detectados. De um espao marcado pela invisibilidade, o continente africano comea, assim, a ser lanado, a partir do trabalho em sala de aula, para o universo das dinmicas e das contribuies para a construo do patrimnio histrico e cultural da humanidade. Apesar desse aspecto positivo, podemos identificar tambm algumas limitaes nos textos analisados.8 Um primeiro aspecto a destacar pode ser identificado por uma simples anlise quantitativa nos ndices dos manuais. Conquanto elogiemos a disposio dos autores em conceder ao estudo da frica captulos ou tpicos especficos em suas obras, inversamente sintomtico o espao reservado a tal tarefa. Entre os volumes analisados existe uma clara tendncia em dedicar um nmero significativamente pequeno de pginas histria africana.9

Os livros abordados pela investigao foram os seguintes: APOLINRIO, Maria Raquel (org.). Histria: ensino fundamental, 6. Projeto Ararib. So Paulo: Moderna, 2003; BOULOS JNIOR, Alfredo. Histria: sociedade e cidadania, 6. So Paulo: FTD, 2003; CAMPOS, Flavio de; AGUILAR, Lidia; CLARO, Regina e MIRANDA, Renan Garcia. O jogo da Histria: de corpo na Amrica e de alma na frica, 6 srie. So Paulo: Moderna, 2002; DREGUER, Ricardo e TOLEDO, Eliete. Histria: cotidiano e mentalidades, contato entre civilizaes do sculo V ao XVI, 6. So Paulo: Atual, 2000; MACEDO, Jos Rivair e OLIVEIRA, Mariley W. Uma histria em construo, vol. 3. So Paulo: Editora do Brasil, 1999; MARANHO, Ricardo e ANTUNES, Maria Fernanda. Trabalho e civilizao: uma histria global, 2. So Paulo: Moderna, 1999; MONTELLATO, Andrea, CABRINI, Conceio e CATELLI, Roberto. Histria temtica: diversidade cultural, 6 srie. So Paulo: Scipione, 2000; MOZER, Snia e TELLES, Vera. Descobrindo a Histria: Brasil colnia, 5 srie. So Paulo: tica, 2002; RODRIGUE, Joelza ster. Histria em documento: imagem e texto, 6. So Paulo: FTD, 2001; SCHMIDT, Mario. Nova histria crtica, 6 srie. So Paulo: Nova Gerao, 2002. 9 Parece-nos bvio que os programas escolares e livros didticos dediquem maior ateno trajetria da histria do Brasil, e, s vezes, histria regional (continental). Nossa argumentao, portanto, leva em considerao uma leitura comparativa acerca do espao dedicado s outras histrias, que no a do Brasil especificamente, como da Amrica e da Europa.
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Enquanto os captulos que tratam de assuntos ligados histria europeia, como a Idade Mdia, o Renascimento cultural, o Absolutismo monrquico e a Reforma religiosa ocupam, em mdia, de dez a trinta pginas, cada um, e possuem vasta bibliografia, seria de se esperar que a abordagem da histria africana recebesse uma ateno, pelo menos, proporcional.10 Porm, no o que ocorre na maioria dos casos, j que sua abordagem ocorre em captulos nicos ou em tpicos de mdia extenso que, quase sempre, no chegam a quinze pginas e apresentam uma literatura de apoio restrita. Em quatro livros analisados, o espao dedicado ao tema era menor do que dez pginas (40%). J trs deles reservaram entre dez e quinze pginas (30%), enquanto um possua entre quinze e vinte pginas. Por fim, apenas dois dedicavam mais de vinte pginas ao assunto. O mais interessante que um desses ltimos manuais abordava a frica como uma das temticas principais de seus contedos.11 Evidentemente, no estamos tomando como critrio exclusivo o valor quantitativo da questo, mas tambm o qualitativo. Parece-nos bvio que o tratamento de um perodo histrico compreendido em um intervalo equivalente a pelo menos mil anos e englobando um complexo quadro de sociedades e civilizaes em dez ou quinze pginas s possvel com extremas simplificaes e generalizaes.
grfico 4. nmero de pginas dedicadas temtica (escala por nmero de livros)

entre 16 e 20 pginas - 10%

mais de 20 pginas - 20%

entre 10 e 15 pginas - 30%

menos de 10 pginas - 40%

Por exemplo, o livro de Mario Schmidt reservava para os tpicos acima descritos as seguintes quantidades de pginas (Idade Mdia, Renascimento cultural, Absolutismo monrquico e Reforma religiosa): 46; 20; 16; 14. O manual de Alfredo Boulos Jnior dedicava aos assuntos a seguinte ateno por pginas: 74; 19; 19; 19. Por fim, o livro didtico de Ricardo Maranho e Maria Fernanda Antunes realizava a seguinte diviso: 54; 8; 8; 8. 11 Cf. CAMPOS, et al. O jogo da histria, 6 srie, op. cit.
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Frisamos que a expectativa em relao ao estudo escolar da histria da frica no se encerra na ilusria suposio de que todas as sociedades africanas precisem ser abordadas. Parece patente tambm que todo assunto discutido em sala de aula e em um livro didtico escolhido conforme critrios eleitos por autores, editoras, professores e pelo Estado que estabelece currculos e programas. A maneira de abordar um tema nunca deixar de ser uma leitura parcial, um recorte um tanto quanto arbitrrio das experincias enfocadas. Todavia, isso no justifica o pequeno espao concedido histria africana nos manuais escolares.

b) os recortes temticos: entre reinos, imprios e tribos


O estudo da histria africana concentra-se, em grande parte dos livros observados, nas excurses panormicas acerca do estudo das grandes formaes polticas que conheceram seus apogeus no continente at o sculo XVIII - como os reinos de Gana, Etipia, Kongo, Benin, Daom, Lundas e Luba, dos imprios do Mali, Songhai e Zimbabwe, ou ainda, dos estados Iorubs, Akan, Hassas, entre vrios outros. Oito dos dez manuais reservavam a perspectiva central de seus captulos a essa temtica, mesmo que no concedendo ateno a todas essas sociedades. Em alguns casos, compartilhando um espao menor com o estudo dos reinos e imprios, os autores tambm realizaram comentrios sobre as chamadas sociedades tribais africanas. Por fim, mesmo os dois textos que elegeram assuntos de maior amplitude para conduzir suas abordagens como as relaes frica-Brasil ou o recorte metodolgico temtico ,12 no deixaram de tecer comentrios acerca dessas formaes polticas. No discordamos do estudo desses objetos histricos. Pelo contrrio, eles podem e devem ser trabalhados. Seu tratamento em sala de aula possibilita a construo de novos referenciais tericos e imagticos acerca do continente e de suas populaes por parte dos alunos, alm, claro, de configurarem retratos concretos de vrias realidades histricas ali encontradas. Soma-se a esses dados o fato de que, em termos de orientao legal para a formulao dos manuais escolares e das prprias aulas, o Conselho Nacional de Educao no parecer

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Ver MARANHO e ANTUNES. Trabalho e civilizao, 2, op. cit.; e CAMPOS, et al. O jogo da histria, 6 srie, op. cit.

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003, aprovado em 2004, para regulamentar a aplicao da Lei n 10.639/2003 , orienta, entre outros pontos, a abordagem desses temas.13 A partir desse prisma, as sociedades africanas que no receberam a classificao de grande expresso poltica ou que possuem ressonncia civilizacional de menor visibilidade acabam por no ser estudadas. como se, diante da impossibilidade de atentar para as milhares de sociedades que se espalhavam pelo continente, deveramos ter como base alguns dos conceitos ou postulados historiogrficos celebrizados pelo referencial eurocntrico. Como se pode perceber com facilidade, se em relao histria europeia os livros escolares, quase sempre, dedicam significativa ateno aos grandes reinos, imprios e civilizaes, para o caso da abordagem da histria africana tal tendncia parece se repetir. A recorrncia com a qual a temtica envolvendo o estudo dos reinos e imprios africanos foi tratada nos manuais levou-nos a buscar na historiografia africanista uma reflexo de ordem conceitual acerca do assunto. Ou seja, quais seriam os encaminhamentos concedidos sobre o emprego de conceitos ou nomenclaturas como reino e imprio na definio de algumas das experincias polticas africanas. Inicialmente, fica claro que grande parte dos autores dos livros didticos, de forma consciente ou inconsciente, utiliza uma difundida ideia apresentada pelos historiadores pertencentes chamada corrente do afrocentrismo.14 Lembramos que uma das teses defendidas por parte de seus historiadores era a de que seria fundamental estudar as grandes civilizaes africanas, tanto para redefinir o lugar do continente na trajetria histrica da humanidade, quanto para combater as teses racistas e depreciativas que circulavam sobre suas sociedades. No entanto, seus esforos foram conduzidos ou fizeram uso, muitas vezes, de uma srie de padres, categorias ou modelos historiogrficos eurocntricos para afirmar ao mundo e aos prprios africanos

13 Ver CONSELHO NACIONAL DE EDUCAO, Conselho Pleno. Diretrizes curriculares nacionais para a educao das relaes tnico-raciais e para o ensino de histria e cultura afrobrasileira e africana. Parecer n 003, de 10 de maro de 2004. 14 Acerca da definio do conceito de afrocntrico ou afrocentrismo adotamos a explicao do pesquisador Paulo Fernando de Moraes Farias: Primeiro, embora tenha havido tentativas de defini-lo de maneira rgida, o afrocentrismo no uma doutrina monoltica, mas um rtulo que cobre um leque de posturas e propostas (...) Nos Estados Unidos (e tambm em outros pases), o rtulo agora se aplica tanto a aspectos da cultura popular quanto a posies assumidas individualmente por professores e outros intelectuais, ou coletivamente (no caso norte-americano) por alguns departamentos universitrios, cf. FARIAS, Paulo Fernando de Moraes. Afrocentrismo: entre uma contranarrativa histrica universalista e o relativismo cultural. In: Revista Afro-sia, n 29-30, 2003, p. 317-318.

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que a histria da frica possua elementos sofisticados e formas de organizao avanadas e que deveriam ser estudadas. Acerca desse aspecto, h algumas dcadas, vrios estudiosos vm alertando para o fato de que, para os estudos sobre a frica, espao histrico de grande autonomia, de imensa capacidade criativa, de fecunda participao na histria da humanidade e de ritmos e caractersticas prprias, seria preciso formular alguns conceitos e categorias tambm prprios. Pelo menos, no seria preciso eleger sempre referncias europeias para sua afirmao e, para alguns casos, seria preciso realizar adequaes ou adaptaes em determinadas metodologias e conceitos para serem aplicados sobre os contextos histricos africanos.15 Parecenos que os autores dos manuais desconhecem essa crtica, pois o critrio adotado por eles para selecionar o que ser estudado nos captulos justamente esse. Por isso, a presena quase certa dos reinos e imprios africanos em seus livros. Como havamos afirmado, no existem interdies maiores em relao ao tratamento escolar dessas experincias histricas e, de fato, elas se tornam, pelo conjunto de fontes e estudos disponveis, temas exequveis de serem tratados e que despertam o interesse de docentes e estudantes para a histria africana. O que percebemos como um desequilbrio o enfoque exclusivo do tema, e no a sua presena. Tal quadro contribui para um tipo de abordagem que tem como tendncia maior ignorar a existncia de contextos e caractersticas histricas especficas ao continente africano, excluindo, dessa forma, a existncia de estruturas polticas, sociais e econmicas diferenciadas das europeias, o que causa uma leitura distorcida de suas sociedades. Neste caso, necessrio que os autores dos manuais escolares dediquem algumas linhas de contextualizao e reflexo histrica para informar aos seus leitores que esto tratando de configuraes e estruturas diversas. No ignoramos a existncia de organizaes polticas ou sociais com semelhanas s de outras partes do globo em frica, mas preciso que se demonstre e enfatize as singularidades e especificidades africanas. Se haviam algumas sintonias, as diferenas tambm eram evidentes.

Ver, entre outras obras, as seguintes: HENRIQUES, Isabel Castro. A escravatura: concepes, prticas, funes. In: HENRIQUES, Isabel Castro e MEDINA, Joo (org.). A rota dos escravos: Angola e a rede do comrcio negreiro (scs. XV-XIX). Lisboa: Vulgata, 2002, p. 84-86; MBOKOLO. frica negra histria e civilizaes. At ao sculo XVIII, op. cit., p. 154-162; e, THORNTON, John. A frica e os africanos na formao do mundo atlntico, 1400-1800. Rio de Janeiro: Campus, 2003, p. 254-262.
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De acordo com a historiadora Leila Hernandez preciso que o emprego dessas categorias para o estudo de algumas das formaes polticas africanas passe por um processo de ajuste e adequao.16 J para o historiador congols Elikia MBokolo, podemos fazer uso de outras categorias para definir essas estruturas e configuraes polticas, como, por exemplo, hegemonias polticas. O conceito empregado nessa definio encontra alguma relao com a categoria elaborada pelo antroplogo francs Jean-Loup Amselle, chamado de sociedades englobantes.17 Ele envolve a perspectiva de que as relaes de poder estabelecidas no se prendiam questo das fronteiras fixas e da imposio de controle essencialmente centralizado. Os mecanismos das trocas comerciais, o pagamento de tributos, os movimentos de reciprocidade, os graus variados de autonomia e os laos de parentesco compunham variantes chaves dessas formaes.18 Dessa maneira, a Frana de Lus XIV no era o Mali de Sundiata Keita, assim como o Reino dos Francos no guarda relao de identidade alguma com o Reino de Oyo. Porm, parece no ser essa a percepo transmitida pelos livros analisados. Vejamos como eles tratam o tema. Como um aspecto positivo a destacar, identificamos, no comeo de alguns dos captulos ou tpicos, a tentativa dos autores em alertar para a significativa diversidade cultural que teria caracterizado os povos africanos ao longo do recorte temporal observado. Esse argumento, associado ao tratamento adequado dos contedos, torna-se um instrumento importante para a desconstruo das ideias equivocadas de uma frica homognea e geral, transmitidas pelo ensino da histria e preservadas no imaginrio comum. No manual de Joelza ster Rodrigue, Histria documento 6, a autora afirma que a frica um continente de populao muito diversificada (...) com diferentes histrias.19 Esta a mesma ideia apresentada pelo livro de Ricardo Dreguer e Eliete Toledo, Histria: cotidiano e mentalidades, 6 srie20:

Cf. HERNANDEZ, Leila Leite. A frica na sala de aula: uma visita histria contempornea. So Paulo: Selo Negro, 2005, p. 35. 17 Cf. AMSELLE, Jean-Loup e MBOKOLO, Elikia. Au coeur de lethnie: ethnie, tribalisme et tat en Afrique. Paris: La Dcouverte, 1999, p. 29. 18 Cf. MBOKOLO. frica negra histria e civilizaes. At ao sculo XVIII, op. cit., p. 154-162. 19 RODRIGUE, Joelza ster. Histria em documento, op. cit., p. 218. 20 Ver tambm MONTELLATO, CABRINI e CATELLI. Histria temtica, 6, op. cit., p. 167.
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A frica um imenso continente, ocupado por muitos povos que apresentam uma grande diversidade cultural. Tal diversidade resulta dos diferentes processos histricos vividos pelos habitantes de cada regio na frica.21

No entanto, na maior parte dos casos, os autores reservam espao apenas para a abordagem de algumas das caractersticas dos grandes reinos e imprios africanos e, em menor escala, a algumas das sociedades que se organizavam em tribos (o que ocorre apenas em dois manuais). No nico livro de estrutura temtica voltada parcialmente ao estudo da histria da frica, com o ttulo, O jogo da histria: de corpo na Amrica e de alma na frica, os autores lembram que as sociedades africanas compunham centenas de reinos e dezenas de povos que distribuam-se ao sul do Saara sendo classificadas em aldeias tribais, cidadesestado e reinos e imprios.22 J no texto de Alfredo Boulos Jnior, Histria: sociedade e cidadania, 6 srie, localizamos a mesma perspectiva anteriormente indicada: o estudo dos reinos e imprios. Para o autor, entre os sculos VII e XVII, existiam vrios povos negro-africanos, sendo que alguns deles construram imprios e reinos prsperos e organizados, conforme relatos da poca.23 Dessa forma, e apesar dos destaques acima apontados, os livros analisados acabam por concentrar suas abordagens em apenas algumas das vrias sociedades africanas, quase sempre aquelas que so destacadas por terem constitudo grandes formaes polticas, descartando, portanto, uma das maiores caractersticas do continente: a sua diversidade. Tal percepo pde ser constatada no livro de mltipla autoria, que teve em Raquel Apolinrio sua editora principal. Os autores afirmam que, na frica, ao sul do deserto do Saara, havia grandes reinos.24 J no manual de Ricardo Dreguer e Eliete Toledo, o captulo referente ao assunto intitula-se Imprios africanos e a argumentao dos autores, justificando a escolha dos objetos a serem estudados, refora a hiptese de que os reinos e imprios seriam mais importantes do que outras formaes estatais ou no estatais em frica.25

DREGUER e TOLEDO. Histria, 6, op. cit., p. 56. CAMPOS, et al. O jogo da histria, 6 srie, op. cit., p. 63. 23 Cf. BOULOS JNIOR. Histria: sociedade e cidadania, 6, op. cit., p. 190. 24 APOLINRIO. Histria: ensino fundamental, 6, op. cit., p. 32. 25 Ver tambm: MARANHO e ANTUNES. Trabalho e civilizao, 2, op. cit., p. 213; RODRIGUE. Histria em documento, 6, op. cit., p. 216; e MONTELLATO, CABRINI e CATELLI. Histria temtica, 6 srie, op. cit., p. 167.
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Os grandes imprios de Gana, Mali e Songhai, por sua vez, construram as mais importantes civilizaes africanas entre os sculos IX e XV. Por isso, eles sero estudados com mais detalhes nas prximas sees deste captulo.26 A nfase na abordagem da frica Ocidental ou do chamado corredor civilizatrio sudans outra caracterstica encontrada em alguns dos manuais. Por exemplo, no livro de Jos Rivair Macedo e Mariley Oliveira, a ideia trabalhada defende que de modo geral os principais grupos africanos se localizavam na regio norte do continente, divididos grosso modo em cinco zonas geogrficas: o Magreb; (...) o deserto do Saara; o deserto de Sahel; a faixa sudanesa e a faixa do Golfo da Guin.27 Com relao frica Central, o reino do Kongo a nica formao poltica histrica a merecer uma ateno parte. As referncias acerca de outras sociedades so mnimas.28 Dessa forma, os reinos do Ndongo, Luba, Lundas, Kubas ou Luango ficam praticamente esquecidos.29 Para Alfredo Boulos Jnior, ao sul do Equador os africanos tambm formaram reinos poderosos e organizados. Entre eles, o Reino do Kongo (...).30 J para Mrio Schmidt, Nova histria crtica, 6 srie, o reino do Kongo ocupava uma grande rea onde esto o Congo (ex-Zaire) e Angola e sua capital, no sculo XVII, tinha mais de 30 mil habitantes.31 Um outro reino africano citado em alguns livros o da Etipia. A nfase das informaes concentra-se na ideia de que ele foi um grande reino cristo cravado em meio s sociedades islamizadas. Sua sobrevivncia teria sido possvel, segundo alguns autores, devido aliana entre os governantes locais e os poderosos lderes religiosos. Sendo assim, em troca da construo de enormes igrejas de pedra e da doao de terras, os lderes religiosos apoiavam as guerras contra os islamitas.32 No manual organizado por Raquel Apolinrio, a ideia apresentada a de que o fato da Etipia ser o nico reino cristo em meio a

DREGUER e TOLEDO. Histria, 6, op. cit., p. 58. MACEDO e OLIVEIRA. Uma histria em construo, vol. 3, op. cit., p. 196. 28 Acerca da temtica ver, entre outros trabalhos, os seguintes: PANTOJA, Selma. Nzinga Mbandi: mulher, guerra e escravido. Braslia: Thesaurus, 2000; BIRMINGHAM, David. A frica Central at 1870. Luanda: Endipu/UEE, 1992; e CALEY, Cornlio. Angola nos sculos XV-XVIII: populaes, espaos polticos e relaes de complementaridade. In: HENRIQUES e MEDINA. A rota dos escravos: Angola e a rede do comrcio negreiro, op. cit., p. 207-216. 29 A nica exceo dos livros citados o de Mario Schmidt. 30 BOULOS JNIOR. Histria: sociedade e cidadania, 6, op. cit., p. 190. 31 SCHMIDT. Nova histria crtica, 6 srie, op. cit., p. 181. 32 DREGUER e TOLEDO. Histria, 6, op. cit., p. 58.
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inmeros territrios islmicos foi fundamental para que ele ficasse isolado, mas a religio tambm foi o que colocou a Etipia em contato com outras regies.33 Parece um tanto limitante ou impreciso encerrar toda a importncia ou a trajetria histrica da Etipia ao fato dela ter sido crist, ignorando suas outras faces e caractersticas.34 Apesar de concordar plenamente com a liberdade da seleo dos contedos, preciso que os textos instrumentalizem os estudantes no manejo de certas categorias e concepes tericas, o que permitir uma abordagem equilibrada das temticas africanas. preciso que, em seus contatos com as fontes primrias ou com a literatura africanista, eles estejam em condies de filtrar e contextualizar as influncias de cada poca e de aplicar e diferenciar os conceitos e modelos comumente empregados pelos pesquisadores. Abordar a construo/ reviso das teorias racistas, evolucionistas e eurocntricas elaboradas sobre os africanos e contextualizar o uso de certas nomenclaturas deveriam ser pontos comuns no tratamento da histria da frica. Enfim, que os autores faam referncias s experincias histricas denominadas reinos e imprios como assuntos centrais de seus captulos, desde que contextualizem seus sentidos e singularidades. Ou seja, para os leitores deve ficar claro que os textos no esto falando das mesmas configuraes, estruturas e dinmicas que caracterizaram os conhecidos reinos e imprios europeus. Dessa maneira, espera-se que autores de manuais, docentes e estudantes no repitam mais as inaceitveis ideias de que as sociedades africanas eram incapazes de organizar formaes polticas complexas ou de que eram a-histricas. Mas, ao mesmo tempo, no fiquem refns das teses que defendiam a importncia de sua histria pelo fato de algumas caractersticas serem parecidas ou superiores s europeias.

c) a questo do tratamento das sociedades africanas sem estado


Em relao s sociedades africanas que no se organizavam em estados, identificamos o uso de alguns termos ou conceitos que demonstram, por um lado, a presena das influncias e estigmas eurocntricos, e, por outro, o reco-

APOLINRIO. Histria: ensino fundamental, 6, op. cit., p. 33. Sobre o tema ver, entre outros textos, os seguintes: cf. MBOKOLO. frica negra histria e civilizaes. At ao sculo XVIII, op. cit., p. 102-121; e TAMARAT, Tadesse. O chifre da frica: os salomnidas na Etipia e os estados do chifre da frica. In: NIANE, Djbril T. (org). Histria geral da frica, vol. IV: frica entre os sculos XII e XVI. So Paulo: tica; Unesco, 1988, p. 437-466.
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nhecimento dos mais recentes debates ocorridos no campo das cincias sociais acerca da questo das identidades. Por exemplo, em seis dos dez manuais localizamos o livre uso do termo tribo ou tribal, para designar os grupos africanos que no se organizavam em reinos, imprios ou que no possuam estruturas estatais. J em cinco textos identificamos o emprego de categorias como grupo tnico, etnia e povos.
grfico 5. classificao das sociedades africanas no estatais: tribais e tribos x gupos tnicos, etnias e povos

grupos tnicos, etnias e povos - 50%

sociedades tribais ou tribos - 60%

O emprego recorrente da categoria tribal, encontrada nos meios de comunicao e no imaginrio social brasileiro, desconsidera um intenso debate acerca da sua utilizao pelas cincias sociais e humanas.35 Diante do grande suporte que as pesquisas antropolgicas e histricas j deram sobre o assunto, insistir nessa forma de se referir s sociedades da frica, sem a devida contextualizao dos sentidos da categoria tribal/tribo, no encontra mais uma aceitvel justificativa. Sua recorrncia sinaliza, a princpio, uma continuidade das ideias divulgadas pelas teorias que defendiam a suposta inferioridade dos povos africanos perante os europeus, j que tribo aparece na literatura colonialista, construda a partir do sculo XIX, com o significado oposto ao de civilizao. Ou seja, o termo designaria os grupos selvagens e primitivos, portanto, inferiores s sociedades ou s civilizaes ocidentais.36 Esta uma das representaes mais recorrentes

Consultar os seguintes textos: DAVIDSON, Basil. The search for Africa: a history in the making. London: James Curvey, 1994, p. 141-145; SOUTHALL, Aidan W. The illusion of the tribe. In: GRINKER, Roy Richard e STEINER, Christopher B. Perspectives on Africa: a reader in culture, history e representation. Oxford: Blackwell Publishing, 1997, p. 35-51; e TRAJANO FILHO, Wilson. Uma experincia singular de crioulizao. In: Srie Antropologia, n 343, 2003, p. 6-8. 36 Acerca da temtica, ver as seguintes referncias: APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a frica na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 155-192; HERNANDEZ. A frica na sala de aula: uma visita histria contempornea, op. cit., p. 32; HENRIQUES, Isabel Castro. Os pi35

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encontradas no imaginrio brasileiro sobre os africanos. Mesmo que, muitas vezes, essa no seja a inteno dos autores, a repetio desse conceito pode levar parte dos leitores a um entendimento equivocado sobre as sociedades africanas. No livro intitulado O jogo da histria, 6 srie, os autores destacam que membros de tribos diferentes reuniam-se em feiras ou mercados temporrios, onde se realizavam trocas de mercadorias.37 J no texto de Ricardo Dreguer e Eliete Toledo, Histria cotidiano e mentalidades, 6 srie, a aluso aos grupos tribais serve para ilustrar as sociedades dominadas pelos imprios africanos.
A maioria [dos escravos] pertencia a tribos subjugadas no incio da expanso imperial, que, por tradio, continuavam presas a essa condio. Para manter essa situao, os membros dessas tribos eram proibidos de casar com estrangeiros.38

Em contrapartida, inclusive com alguns casos encontrados entre os manuais acima citados, percebemos que determinados autores procuram utilizar outras nomenclaturas ou categorias histricas para se referir s sociedades africanas no estatais. Tal preocupao espelha que os estigmas e preconceitos que recobrem a utilizao das nomenclaturas tribo e tribal no so desconhecidos dos autores. Cinco dos dez livros empregavam termos como etnias, grupos tnicos, nao ou pas para designar os grupos africanos. Neste caso, o uso de conceitos como etnia e grupo tnico associa-se ao debate existente h algumas dcadas acerca da questo das identidades grupais, formulado a partir das investigaes tuteladas pelas cincias sociais.39 No livro de Joelza ster Rodrigue, Histria em documento, 6, a populao africana apresentada como sendo formada pela reunio de centenas de grupos tnicos.40 J no texto de Snia Mozer e Vera Telles, Descobrindo a histria, 5 srie, quando as autoras enfocam a temtica do trfico de escravos, elas afirmam que as guerras entre as inmeras etnias africanas teriam estimulado o comrcio

lares da diferena: relaes Portugal-frica, sculos XV-XIX. Lisboa: Caleidoscpio, 2004, p. 51-60. 37 CAMPOS et. al. O jogo da histria: de corpo na Amrica e de alma na frica, 6 srie, op. cit., p. 63. 38 DREGUER e TOLEDO. Histria cotidiano e mentalidades, 6, op. cit., p. 59. 39 Para uma esclarecedora reflexo sobre o tema, ver os seguintes trabalhos: POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. So Paulo: Editora da Unesp, 1998, p. 55-84; TRAJANO FILHO. Uma experincia singular de crioulizao, op. cit., p. 6-8; e BARTH, Fredrik (org.). Ethnic groups and boundaries: The social organization of culture difference. Bergen-Oslo: University Forlaget; London: George Allen & Unwin, 1969. 40 RODRIGUE. Histria em documento: imagem e texto, 6, op. cit., p. 218.

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atlntico de pessoas.41 Na obra de Andra Montellato, Conceio Cabrini e Roberto Catelli, Histria temtica, 6 srie, os autores afirmam que o atual territrio da frica do Sul era habitado por diferentes grupos tnicos negros e que os colonizadores europeus se recusaram a integrar-se s etnias locais (...).42 E, por fim, como ltimo exemplo, no manual temtico O jogo da histria, a ideia divulgada a de que, nas Amricas, os africanos escravizados procuravam se organizar unindo-se a outros escravos do mesmo grupo tnico.43 Alguns dos autores, temendo incorrer nos equvocos conceituais anteriormente comentados, passaram a chamar os grupos que no possuam formaes estatais, ou que no eram incorporados pelos grandes reinos e imprios, de naes e pases. Existe a um pequeno problema. No que esses termos no possam ser aplicados no entendimento da histria da frica como tem feito boa parte da historiografia (quase sempre de forma contextualizada) ou como podemos localizar nos textos escritos por viajantes a partir do sculo XV. o que ocorre, por exemplo, no livro de Mario Schmidt, Nova histria crtica, 6 srie, quando o autor procura explicar quem eram os hassas, ou ento, quando menciona um dos mecanismos utilizados pelos europeus para obter escravos:
A civilizao dos hauas comeou a ser construda por volta do sculo XI (...). Os hauas eram, na verdade, diversos povos que falavam uma lngua semelhante. Habituados ao comrcio internacional, os hauas aceitavam conviver com pessoas de outras naes (...). Algumas naes africanas chegaram a enriquecer atacando outras naes e vendendo os habitantes aos traficantes de escravos rabes ou europeus.44

No entanto, parece-nos certo tambm que o emprego dessas nomenclaturas deve passar por um exerccio de contextualizao obrigatrio pelos autores. A aplicao arbitrria de categorias e conceitos histricos pode confundir os seus leitores por serem definies mais ajustadas a outros contextos histricos que no o africano, pelo menos at o incio do sculo XX. Por exemplo, ao afirmar que determinado grupo em frica, como os iorubs, compunha uma nao ou um pas, os professores no devem esquecer que, se nos relatos histricos ou estudos historiogrficos encontramos esses termos revestidos de sentidos especficos e claramente diferenciados, para os alunos, embebidos dos significados atuais

MOZER e TELLES. Descobrindo a histria: Brasil colnia, 5, op. cit., p. 196. MONTELLATO, CABRINI e CATELLI. Histria temtica: diversidade cultural, 6, op. cit., p. 171. 43 CAMPOS, et. al. O jogo da histria: de corpo na Amrica e de alma na frica, 6 srie, op. cit., p. 122. 44 SCHMIDT. Nova histria crtica, 6 srie, op. cit., p. 179-180.
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dessas categorias, seria como se falssemos das configuraes ou organizaes contemporneas. A Nigria de hoje um pas, mas os iorubs do sculo XIX no formavam nada parecido com um pas, pelo menos na acepo atual do termo. Ou seja, no criticamos o uso contextualizado desses conceitos, como boa parte dos historiadores faz. Tambm no ignoramos o fato de que os cronistas ou viajantes dos sculos XV ao XIX os utilizavam livremente em sua tentativa de dar sentido, a partir de suas grelhas e referncias europeias ou rabes, quilo que viam em frica. Mas justamente essa historicidade, marcada por diversos significados ou sentidos, que nos obriga a fazer um uso comedido e justificado de algumas expresses.45 Parece-nos que uma forma de minimizar o problema sobre a utilizao dessas categorias levar para debate em sala a questo da inveno das identidades tnicas, religiosas, nacionais etc. Acreditamos que a reflexo acerca do tema se torne vital a essa tarefa, mesmo sabendo que os novos conceitos no esto imunes s crticas e aos problemas.46 Neste caso, compete lembrar que, h algumas dcadas, os cientistas sociais e historiadores trabalham com alguns instrumentos tericos mais flexveis para estudar os mecanismos e estratgias utilizados pelas sociedades para a definio de suas identidades. Uma das teses centrais seria a de que os grupos elaboram ou se apropriam constantemente de novos elementos culturais, ideolgicos, metafsicos e polticos para reinventar, reforar ou reconstruir suas identidades.47 Um adequado debate e uma razovel apresentao aos estudos africanos devem passar, mesmo que superficialmente, por essas questes. Reorganizar definies, aplicar as perspectivas do relativismo cultural, atentar para os anacronismos e imprecises histricas so bons exerccios para nossos estudantes.

Cf. THORNTON. A frica e os africanos na formao do mundo atlntico, 1400-1800, op. cit., p. 255-263. 46 De acordo com o antroplogo Wilson Trajano Filho, tal como tem sido usado nos estudos africanistas, o novo termo [grupo tnico] carrega consigo os mesmos problemas do conceito que quer substituir: tem aproximadamente o mesmo sentido e sofre das mesmas imprecises, com o agravante de trazer para a cena terica um dos conceitos mais escorregadios da disciplina: etnicidade, cf. TRAJANO FILHO. Uma experincia singular de crioulizao, op. cit., p. 6-8. 47 Para uma melhor contextualizao sobre o assunto consultar: ANDERSON, Benedict. Nao e conscincia nacional. So Paulo: tica, 1989; APPIAH. Na casa de meu pai: a frica na filosofia da cultura, op. cit., p. 243-246; e HALL, Stuart. Old and new identities, old and new ethnicities. In: BACK, Les e SOLOMOS, John (orgs.). Theories of race and racism. London: Routledge, 2000, p. 144-153.
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d) a questo do trfico de escravos e da escravido africana


grfico 6. abordagens sobre a escravido na frica e o trfico de escravos

livros que abordam a escravido rabe - 60%

livros que abordam a escravido tradicional africana - 70%

livros que abordam a escravido atlntica - 90%

Ao analisar a presena da escravido tradicional africana48 e os efeitos do trfico de escravos para o Atlntico e para o mundo rabe-muulmano, grande parte dos livros revela certo descompasso com as pesquisas elaboradas sobre as temticas. Mesmo que 70% dos manuais faam meno escravido tradicional africana, so poucos os que, de fato, abordam suas especificidades e caractersticas gerais. Apesar de algumas corretas incurses encontradas, os textos, quase sempre, mostram-se pontuados pelas imprecises e generalizaes. Alguns livros deixam a entender que a escravido teria sido inventada pela presena rabe ou europeia no continente. Sobre o trfico de escravos para o oceano ndico ou para o mundo rabe, 60% dos livros tecem comentrios novamente bastante limitados. J sobre o trfico atlntico de escravos, como era de se esperar, 90% dos manuais destacam sua importncia e influncia sobre as sociedades africanas. Percebemos tambm que so poucos os textos que parecem dialogar com a nova historiografia acerca da questo. Trabalhos de historiadores como John Thornton, Paul Lovejoy, Joseph Miller, Patrick Manning, Jos Curto e Isabel Castro Henriques, apesar de opinies discordantes acerca de certos tpicos,

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Fazemos referncias aos mecanismos de agregao ou ampliao dos grupos familiares encontrados entre vrias sociedades africanas e que possuam diversificadas facetas. Os historiadores que se debruaram acerca do tema a intitularam de escravido domstica, de parentesco ou tradicional. Cf. HENRIQUES. A escravatura: concepes, prticas, funes, op. cit., p. 90-99; e LOVEJOY, Paul E. A escravido na frica: uma histria de suas transformaes. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002.

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revelaram, h um bom tempo, que complexas dinmicas internas e externas envolveram o uso da escravido na frica e nos circuitos do trfico. Da mesma forma, eles procuraram elaborar definies acerca das funes e particularidades de seu uso entre as sociedades africanas. Alguns pontos apresentados pelos manuais evidenciam com clareza esse distanciamento que marca a relao dos autores de livros didticos com a historiografia africanista: a ausncia de explicaes que diferenciem a escravido africana daquela praticada nas Amricas;49 as poucas referncias aos africanos como agentes na histria do trfico atlntico;50 e o desconhecimento da querela dos nmeros e das estatsticas que envolveram o trfico atlntico e rabe.51 Sendo assim, pelas explicaes encontradas, com poucas excees, os alunos so levados a pensar que o trfico de escravos aconteceu sob influncia exclusiva dos comerciantes rabes, europeus e americanos, ignorando a participao de africanos no processo. Apesar de determinados textos realizarem breves explicaes acerca de algumas das prticas e funes da escravido tradicional, ela se confunde, muitas vezes, escravido nas Amricas. Por fim, ao trabalhar com dados numricos imprecisos ou que no atentem para os debates historiogrficos sobre o assunto, os autores esto negligenciando um importante assunto. Sobre as diferenas entre a escravido na frica e nas Amricas e as motivaes econmicas que alimentaram o trfico negreiro, algumas leituras parecem um pouco inadequadas, seja pela simplificao de certos contextos, seja pela ausncia de informaes mais atualizadas ou elucidativas. Mesmo quando alguns manuais, como o de Ricardo Dreguer e Eliete Toledo, aludem escravido tradicional africana, ela recebe um destaque muito pequeno e que no possibilita aos professores e alunos um entendimento das suas estruturas de funcionamento, nem permite a elaborao de uma perspectiva comparativa entre a escravido nas Amricas e na frica.52 As referncias s formas de escravizao e s relaes

Cf. HENRIQUES, Isabel Castro. Reflexes sobre o escravo africano. In: O pssaro do mel: estudos de histria africana. Lisboa: Colibri, 2003, p. 59-62. 50 Cf. CURTO, Jos C. Demografia histrica e os efeitos do trfico de escravos em frica: uma anlise dos principais estudos quantitativos. In: Revista Internacional de Estudos Africanos, IICT, n 14-15, 1991, p. 243-277. 51 Cf. MBOKOLO. frica negra histria e civilizaes. At ao sculo XVIII, op. cit., p. 207382; MILLER, Joseph. Mortality in the Atlantic slave trade: Statistical evidence on causality. In: Journal of Interdisciplinary History, vol. 11, n 3, 1981, p. 385-423. 52 Cf. HENRIQUES. A escravatura: concepes, prticas, funes, op. cit., p. 90-94; Cf. MANNING, Patrick. Escravido e mudana social na frica. In: Novos Estudos, Cebrap, n 21, julho, 1988, p. 17-21.
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estabelecidas entre os grupos envolvidos na sua prtica esto marcadas por generalizaes e simplificaes, como podemos perceber no seguinte trecho:
Outra forma de escravizao consistia em uma prtica antiga entre os africanos: os vencedores de uma guerra tinham o direito de levar parte dos derrotados para trabalhar em sua terra. Contudo, o escravo levava uma vida parecida com a dos trabalhadores livres: trabalhava lado a lado com eles, mantinha suas tradies e muitas vezes alcanava a liberdade ao lutar junto com os guerreiros da tribo.53

O manual de Alfredo Boulos Jnior reserva um box, de uma pgina inteira, para tentar esclarecer o tema aos seus leitores. No entanto, seja por algumas informaes apresentadas, seja pelo reduzido espao para tratar temtica to complexa, o autor incorre em algumas imprecises e generalizaes,54 tratando, assim como nos outros livros, a escravido de uma forma nica para todas as sociedades africanas.55 Segundo o historiador Mrio Maestri, o que havia entre os negros africanos era uma espcie de servido familiar. (...) Quando havia guerra entre os prprios africanos e os vencedores faziam prisioneiros, estes eram mortos ou ento tinham de trabalhar gratuitamente para os vencedores por um certo tempo, geralmente dois anos. O casamento do cativo com pessoas do grupo vencedor era permitido. (...) Seus deveres eram definidos segundo o costume, e seus filhos no podiam ser vendidos. J os seus netos passavam a ter todos os direitos das pessoas livres.56 No manual intitulado Uma histria em construo, a escravido tradicional apresentada como uma forma de dominao social de pequena relevncia nas estruturas de suas sociedades. Segundo os autores antes do domnio europeu, j havia escravido na frica, embora jamais em grande proporo. Sua principal origem relacionava-se aos conflitos entre os povos que lutavam entre si,

DREGUER e TOLEDO. Histria: cotidiano e mentalidades, contato entre civilizaes do sculo V ao XVI, 6, op. cit., p. 59. 54 Trabalhos de historiadores reconhecidos na temtica como John Thornton e Paul Lovejoy revelaram a existncia de castigos, castraes, comercializao e sacrifcios envolvendo os usos da escravido em algumas partes da frica. 55 Cf. LOVEJOY, Paul E. A escravido na frica: uma histria de suas transformaes, op. cit., p. 35-37; COSTA E SILVA, Alberto. A manilha e o Libambo. A frica e a escravido, 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 79-132. 56 BOULOS JNIOR. Histria: sociedade e cidadania, 6, op. cit., p. 199.
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vencedores e vencidos, senhores negros e escravos negros, nem melhores nem piores do que outros povos e outras civilizaes.57 J no livro temtico de Flvio Campos, Ldia Aguilar, Regina Claro e Renan Miranda, O jogo da histria, 6 srie, os autores afirmam que existia na frica a chamada escravido domstica, ou seja, os prisioneiros de guerra eram obrigados a executar trabalhos para a comunidade. No eram livres. Eram tambm propriedade (...).58 Por fim, no livro de Ricardo Maranho e Maria Fernanda Antunes, encontramos tambm a utilizao de um box para tentar descrever, aos estudantes e docentes, os sentidos da escravido tradicional africana.
Entre os africanos da costa ocidental havia escravos obtidos por meio de dvidas, de guerra ou de compra. Em geral, eles eram destinados aos trabalhos na agricultura ou nas minas. (...) Com isso, esse proprietrio aumentava seu prestgio e obtinha mais homens para guerrear e conquistar novos territrios.59

Apesar das informaes prestadas estarem, muitas vezes, corretas, evidente que existiram outros estatutos, funes e sentidos para a escravido em frica. Mais do que isso, em nenhum momento os autores apontam para a discusso conceitual acerca do termo escravido como denominador dessas prticas realizadas na frica60 e para as singularidades que marcam os seus usos em diversas regies do continente. Como j havamos citado, trabalhos de historiadores vm revelando, h algumas dcadas, as complexas dinmicas internas e externas que envolviam suas diversas faces e o prprio sentido de escravido para as diferentes sociedades africanas. J a influncia e participao dos africanos no trfico de escravos s so lembradas nos casos em que muitos escravos foram obtidos atravs dos conflitos entre sociedades rivais do continente. , pelo menos, a ideia que transparece do livro de Mario Schmidt. De acordo com alguns historiadores, os europeus retiraram cerca de 10 milhes da frica para lev-los a Amrica! Havia duas maneiras de os comerciantes europeus obterem escravos africanos. O primeiro era direto: desembarcavam soldados que invadiam uma aldeia e capturavam seus moradores. O segundo

MACEDO e OLIVEIRA, Uma histria em construo, vol. 3, op. cit., p. 200. CAMPOS, et. al. O jogo da histria: de corpo na Amrica e de alma na frica, 6 srie, op. cit., p. 63. 59 MARANHO e ANTUNES. Trabalho e civilizao: uma histria global, 2, op. cit., p. 216. 60 Cf. HENRIQUES. A escravatura: concepes, prticas, funes, op. cit., p. 90-99.
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modo era indireto. Os povos africanos faziam guerras uns com os outros e vendiam os prisioneiros para os comerciantes europeus.61 Uma perspectiva ainda mais direta, a da participao exclusiva dos europeus no trfico, pode ser encontrada no manual intitulado Histria temtica, quando os autores afirmam que, para as companhias portuguesas, espanholas, inglesas, holandesas, o trfico negreiro consistia no aprisionamento de homens negros nas costas africanas que dali seriam transportados e vendidos como escravos no Brasil e em outras partes da Amrica.62 J em relao ao trfico rabe ou ndico, encontramos, na maioria dos casos, uma abordagem pouco esclarecedora. Sabendo das profundas diferenas entre a escravido praticada pelos africanos e aquela utilizada sob influncia dos rabes, seria fundamental tecer alguns comentrios mais especficos e explicativos sobre o tema. Porm, as leituras sobre o uso da escravido de africanos entre as sociedades islmicas so marcadas por poucos dados informativos. No livro de Mario Schmidt, o tema apresentado da seguinte forma:
A escravido no era novidade na frica. Desde o sculo XI os rabes adquiriam escravos africanos. Mas os rabes tinham poucos escravos e geralmente os filhos dos escravos j eram quase livres.63

No texto de Jos Rivair Macedo e Mariley Oliveira, os autores relacionam o comrcio de escravos africanos com o mundo rabe ou ndico, destacando a instalao ou relaes dos rabes com a costa oriental da frica. Nesta parte do continente, eles trocavam tecidos, objetos de metal e outros produtos por marfim, ouro e, sobretudo, escravos.64 No manual de Snia Mozer e Vera Telles, o tema citado apenas pela ideia de que as relaes de comrcio muitas vezes envolviam o trfico de escravos, que eram levados principalmente ao Egito e Arbia Saudita.65 E, por fim, no livro Histria temtica: diversidade cultural e conflitos, 6 srie, os autores afirmam que havia um secular comrcio de africanos para os pases islmicos em torno dos mares Mediterrneo e Vermelho.66 As informaes apresentadas esto corretas.

SCHMIDT. Nova histria crtica, 6 srie, op. cit., p. 180. MONTELLATO, CABRINI e CATELLI. Histria temtica: diversidade cultural, 6, op. cit., p. 157. 63 SCHMIDT. Nova histria crtica, 6 srie, op. cit., p. 180. 64 MACEDO e OLIVEIRA. Uma histria em construo, vol. 3, op. cit., p. 198. 65 MOZER e TELLES. Descobrindo a histria: Brasil colnia, 5 srie, op. cit., p. 183. 66 MONTELLATO, CABRINI e CATELLI. Histria temtica: diversidade cultural, 6, op. cit., p. 167.
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Em outras passagens, as imprecises cedem lugar aos equvocos propriamente ditos. Por exemplo, no livro de Mario Schmidt, alguns trechos revestem-se de um incmodo anacronismo. Isso ocorre quando o autor tenta apresentar aos alunos as mentalidades e posturas vigentes em determinados perodos da histria do trfico de escravos. Ele afirma que a escravido constitua uma prtica injustificvel, mesmo nos contextos histricos vivenciados entre os sculos XVI e XIX, defendendo a postura de que as lgicas ou comportamentos mentais de determinado perodo deveriam ser desconsiderados perante a leitura atual dos eventos histricos e de sua classificao a partir de uma srie de juzos de valor. Com tal postura, Schmidt desconsidera a lgica que preside os perodos histricos e faz com que os estudantes visualizem uma histria na qual os valores de vida correntes em outros espaos e temporalidades terminem se confundindo com os padres ocidentais atuais. Alm das necessidades econmicas, existia a mentalidade da poca. A escravido no era escandalosa como hoje. At mesmo os padres tiveram escravos. J pensou se algum disser que temos de aceitar as injustias sociais de hoje porque no futuro algum vai falar que no nosso tempo as injustias eram normais?67 No livro de Snia Mozer e Vera Telles, as autoras acabam, tambm, por realizar uma leitura distorcida, generalizante e imprecisa acerca da participao dos africanos no trfico de escravos. Elas afirmam que diversos lderes africanos seduzidos pelas cortesias, (...) no s guiavam os traficantes europeus ao interior para surpreender aldeias como negociavam a troca de mercadorias por indivduos de seu prprio povo. Elas vo alm e afirmam que no eram raros os casos de jovens que aprisionavam os prprios pais e os vendiam como escravos aos traficantes.68 Outro argumento desconcertante encontrado em um dos manuais refere-se ao nmero total de africanos alvos da dispora ocorrida entre os sculos XV e XIX.69 o caso do livro intitulado O jogo da histria, 6 srie, no qual os autores afirmam que cerca de 90 milhes de negros [foram] arrancados, sistematicamente do continente africano (...).70 Os dados apresentados no livro vo contra o que grande parte da literatura sobre o tema tem formulado em

SCHMIDT. Nova histria crtica, 6 srie, op. cit., p. 213. MOZER e TELLES. Descobrindo a histria: Brasil colnia, 5 srie, op. cit., p. 196. 69 O debate historiogrfico acerca do tema to intenso que a prpria utilizao da nomenclatura dispora para descrever o trfico de escravos foi tema de polmica entre alguns historiadores. 70 CAMPOS, et. al. O jogo da histria: de corpo na Amrica e de alma na frica, 6 srie, op. cit., p. 96.
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termos das estimativas do trfico. Autores como John Fage, John Thornton, Paul Lovejoy, Philip Curtin e Jos Curto tm realizado investigaes e trabalhos de sntese acerca do debate que se estabeleceu sobre o que Elikia MBokolo chamou de a querela dos nmeros.71 Nenhum deles chegou a um nmero to elevado acerca do trfico. O dado mais prximo do apresentado pelos autores do manual citado em uma crtica que Jos Curto realizou sobre a estatstica defendida pelo historiador nigeriano Joseph Inikori, e que se aproximava de 45 milhes de indivduos.72 Os outros historiadores, quase sempre, defendem uma cifra que gira em torno de 10 a 12 milhes de africanos traficados.73 Alguns dos livros didticos observados trabalham com dados mais prximos aos apresentados por estes historiadores. So os casos, por exemplo, dos textos de Jos Rivair Macedo e Mariley Oliveira, Snia Mozer e Vera Telles e Mario Schmidt.74 Outro dado questionvel trabalhado por determinados manuais relaciona-se s consequncias do trfico de escravos nas sociedades africanas. O assunto causou um intenso debate em meio historiografia africanista, gerando escolas que defendem o grande impacto e as profundas transformaes causadas pelo trfico nos universos africanos e grupos que acreditam em uma influncia menor do trfico nas trajetrias seguidas pelas sociedades na frica, mesmo que ressaltem a importncia do fenmeno.75 No entanto, o tema tratado, muitas vezes, de forma parcial pelos autores dos livros escolares analisados. Por exemplo, dois deles optam por no apresentar o debate sobre o assunto, informando apenas, como se fosse verdade absoluta, que a misria atual vivenciada em grande parte do continente seria causada pelo xodo forado de milhes de africanos, ou ainda que o aumento das guerras no passado e dos conflitos intertnicos no presente tambm seriam reflexos das aes associadas ao trfico de escravos. o caso do manual de Alfredo Boulos Jnior que afirma que uma

Cf. MBOKOLO. frica negra histria e civilizaes. At ao sculo XVIII, op. cit., p. 321-341. CURTO. Demografia histrica e os efeitos do trfico de escravos em frica, op. cit., p. 260. 73 Cf. LOVEJOY, Paul E. The volume of Atlantic slave trade: a synthesis. In: The Journal of African History, vol. 23, n 4, 1982, p. 501 e A escravido na frica: uma histria de suas transformaes. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002, p. 51; THORNTON. A frica e os africanos na formao do mundo atlntico, 1400-1800, op. cit., p. 153-185. 74 Cf. MACEDO e OLIVEIRA. Uma histria em construo, vol. 3, op. cit., p. 200; MOZER e TELLES. Descobrindo a histria: Brasil colnia, 5 srie, op. cit., p. 201; e SCHMIDT. Nova histria crtica, 6 srie, op. cit., p. 180. 75 Cf. MANNING. Escravido e mudana social na frica, op. cit., p. 8-29.
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das consequncias mais trgicas (...) foi o aumento das guerras entre os africanos. A guerra, por sua vez, trouxe fome, doenas e despovoamento.76 J as autoras do manual Descobrindo a histria, 5 srie, apresentam a seguinte informao:
As causas de muitas mazelas da frica atual como a misria, as doenas e os conflitos tnicos tambm podem ser encontradas no longo perodo em que o comrcio de seres humanos foi o melhor negcio do mundo para muitas naes.77

De uma forma geral, o tratamento do assunto nos manuais concede pouco espao para o rico debate historiogrfico construdo em torno dos temas enfocados, por mais que alguns apresentem algumas inovaes, como a abordagem da escravido tradicional africana. Mais do que simplesmente apresentar dados novos, o que por si s j consiste em uma tarefa positiva, conceder lugar aos argumentos apresentados pelos estudos de especialistas na temtica possibilitaria, a professores e estudantes, uma aproximao mais coerente e acertada sobre to polmico e importante assunto. Como isso no ocorre, percebemos que a tendncia a de preservar uma das imagens mais recorrentes elaboradas sobre a frica e os africanos e que associa o continente e suas populaes apenas escravido e ao trfico de escravos. Alguns dos prprios autores desses manuais alertam acertadamente para tal constatao, como no caso do livro de Jos Rivair Macedo e Mariley Oliveira. Em geral, quando no Brasil e na Amrica falamos em frica, todos lembramse logo da escravido e explorao impostas aos africanos pelos europeus. como se a histria da frica estivesse sempre presa histria dos povos dominadores.78

consideraes finais
Percorridas algumas das trilhas seguidas pela abordagem da histria africana em manuais escolares brasileiros percebemos dois movimentos ou ritmos distintos que, de forma completar, sinalizam, ao mesmo tempo, uma tendncia de mudanas dos enfoques concedidos temtica e a existncia de um quadro ainda marcado pelos esquecimentos e imprecises em relao ao assunto. As mudanas dizem respeito constatao de que certas editoras e autores, mais atentos aos sinais lanados pela produo acadmica brasileira e por alguns

BOULOS JNIOR. Histria: sociedade e cidadania, 6, op. cit., p. 199. MOZER e TELLES. Descobrindo a histria: Brasil colnia, 5 srie, op. cit., p. 201. 78 MACEDO e OLIVEIRA. Uma histria em construo, vol. 3, op. cit., p. 195.
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movimentos sociais, passaram a dedicar histria africana partes especficas e destacadas de seus textos didticos. Nesses casos, como vimos nas pginas anteriores, acertos, deslizes e certa falta de intimidade com a literatura especializada nos apontam para um elogio pela iniciativa intentada e para um alerta acerca dos ajustes e releituras necessrias para que seus enfoques sejam de fato distintos. A continuidade dos esquecimentos revelou-se com naturalidade ao longo da investigao. Basta observar o nmero de colees que no dedicam frica destaque ou especificidade alguma em meio as suas pginas, ou seja, a esmagadora maioria dos textos utilizados no perodo analisado. Os tempos vividos indicam para uma mudana de posturas em relao ao tratamento escolar da histria africana. Porm, para que a tendncia se converta em aes mais efetivas e compartilhadas por um nmero cada vez maior de pesquisadores, professores e alunos, os esforos devem ser ampliados. A produo acadmica deve aumentar, em quantidade e em qualidade; os cursos de formao de professores devem estar atentos questo; cursos de capacitao e qualificao devem instrumentalizar aqueles que j jornadeiam pelas salas de aulas; e editoras e autores, conscientes do papel desempenhado pelos livros didticos no sistema educacional brasileiro, precisam investir em novas publicaes ou reformulaes das edies j em circulao para que a histria africana receba o devido e acertado tratamento.

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Recebido: outubro/2008 - Aprovado: junho/2009

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