Sabina Loriga (O Pequeno X) - Trecho

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O PEQUENO

Quais são as fronteiras entre a biografia e a história, a ficção literária e


a verdade dos fatos?
A historiadora Sabina Loriga decidiu examinar a obra de pensadores que,
ao longo do século XIX, buscaram restituir a dimensão individual da história:
três historiadores (Thomas Carlyle, Wilhelm von Humboldt, Friedrich Meinecke),
um historiador da arte (Jacob Burckhardt), um filósofo (Wilhelm Dilthey) e um
romancista (Leon Tolstoi).

X: da b io gra fia à história


Mas que história é essa de ‘pequeno x"? A fórmula é do grande historiador
alemão Johann Gustav Droysen, que, em 1863, escreveu que, se chamamos
de A o génio individual (aquilo que alguém é, possui ou faz), então podemos
dizer que A é a soma de a + x, em que a designa o que vem das circunstâncias
exteriores (país, época, etc.) e xresulta do talento pessoal, obra da livre vontade.
Muitos foram aqueles que, desde então, exploraram esse “pequeno x”.
Como ele se forma? Ele é inato? Que papel a pessoa singular desempenha
na história? Como se deve apreender a relação entre o indivíduo, seu gênio e
o movimento geral da história?
Esta obra de Sabina Loriga assinala o retorno da biografia, abandonada
por muito tempo, ao campo das pesquisas históricas.

SabmaLoriga

autêntica
fc«Ut»cL«*í>s*cov *
autêntica
Coleçõo
HISTÓRIA & HISTORIOGRAFIA
Coordenação
Eliana de Freitas Dutra

Sabina Loriga

O pequeno x
Da biografia à história

Tradução
Fernando Scheibe

autêntica
C opyright © Editions du Seuil, 2010.
Collection La Librairie du X X Ie siècle, so u s la direction de M a urice Olender.
Copyright © 2011 Autêntica Editora

TITULO ORIGINAL
Le petit x - D e l a biographie à 1'histoire
COORDENADORA DA COLEÇAO HISTORIA E HISTORIOGRAFIA
Eliana de Freitas Dutra
PROJETO GRÁFICO DE CAPA
Teco de Souza
(Sobre im agem A cor d o invisivel, W assily K andinsky)
EDITORAÇÃO ELETRONICA
C onrado Esteves
Christiane M orais de Oliveira
REVISÃO TÉCNICA
Vera Chacham
REVISÃO
Vera Lúcia D e Sim oni Castro
Lira Córdova
EDITORA RESPONSÁVEL
Rejane Dias

Revisado conforme o Novo Acordo Ortográfico.

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora Nenhum a parte desta publicação
poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrômcos, seja via cópia xerográfica,
sem a autorização prévia da Editora

AUTÊNTICA EDITORA LTDA.


Belo Horizonte Sã o Paulo
Rua Aimorés, 981, 8o andar Funcionários Av. Paulista, 2 0 7 3 . C onjun to Nacional
3014 0-0 71 . Belo Horizonte . M G Horsal . 11° andar Conj. 1101 Cerqueira César
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w w w autenticaeditora com.br

D a d o s In te rnacio nais de C a ta lo g a ç ã o n a P u b lica ção (CIP)


(C âm ara Brasileira d o Livro, SP, Brasil)

loriga. Sabina
0 pequeno x : da biografia à história / Sabina Loriga; tradução
Fernando Scheibe. - Belo Horizonte Autêntica Editora, 2011 - (Coleçào
História e Historiografia / coordenação Eliana de Freitas Dutra, 6)

Titulo original: Le petit x de la biographie à 1'histoire.


ISBN 978-85-7526-565-9

1 Biografia (Género literário) 2 História - Filosofia 3. Historiografia


- História - Século 19 I. Dutra, Eliana de Freitas. II Titulo III Série.

11-08584 C D D -90 7 2

índices para catálogo sistemático:


1 Biografia e história 907.2
AGRADECIMENTOS

Jacques Revel discutiu comigo o conjunto deste livro em seus


mínimos detalhes. Pude contar, além disso, com as observações e as
críticas de Giovanni Levi, Jean-Frédéric Schaub, François Hartog e
Fernando Devoto. Dominique Berbigier me ajudou, com grande
paciência, a preparar a versão francesa do livro.
Esta viagem pelo passado historiográfico foi também a ocasião
de intensas trocas de pontos de vista com Olivier Abel, Michèle
Leclerc-Olive, Isabelle U llem -W eité, David Schreiber, Françoise
Davoíne, Maurizio Gnbauldi e Stefano Bary.
Partilhei com Andrea Jacchia as interrogações, as paixões e as
hesitações que, dia após dia, acompanharam a redação deste livro.
Enfim, desejo agradecer a todos aqueles que participaram de
meu seminário “ Histoire et biographie" na Ecole des Hautes Etudes
en Sciences Sociales de Paris.
SUMÁRIO

Prefácio.......................................................................................... 11
Capítulo I - O limiar biográfico................................................ 17
Capítulo II - A vertigem da história.......................................... 49
Capítulo III - O drama da liberdade........................................ 81
Capítulo IV - A pluralidade do passado................................. 121
Capítulo V - O homem patológico.......................................... 157
Capítulo VI - A história infinita................................................. 181
Capítulo VII - Sobre os ombros dos gigantes........................ 21 1
Prefácio

Entretanto acontece com isso o mesmo que com a caça às


borboletas; o pobre anim al treme na rede, perde suas mais
belas cores; e quando se o apanha de supetão, está finalm ente
duro e sem vida; o cadáver não f a z todo o anim al, há algu­
m a coisa a mais, uma parte essencial e nesse caso, com o em
todo outro, uma parte essencialmente essencial: a vida.
Johann Wolfgang Goethe1

Desde o fim do século XVIII, os historiadores se desviaram


das ações e dos sofrimentos dos indivíduos para se dedicarem a
descobrir o processo invisível da história universal. Múltiplas razões
os conduziram a abandonar os seres humanos para passar de uma
história plural (die Geschicten) a uma história única (die Geschichte).2

1 C a rta de G o e th e a H etz le r de 14 de ju lh o de 1 7 7 0 , in G oeth es Briefe u nd Briefe an G o e lh e . K om -


m entare unil R egister, Ed. p o r Karl R o b e r t M a n d elk o w , M u n ic h , C .H . B e c k , 1 9 7 6 cita d o p o r Je a n
L a co ste, G o e lh c . S a e tu e et p h ilosop h ie, Paris, P U F , 1 9 9 7 , p. 9 0 .
1 E m seu te x to so b re o c o n c e ito de história, R e in h a r t K o se lleck co lo c a em ev id ên cia q u e o te r­
m o G eschichte nasce após dois a c o n te cim e n to s con vergentes', p o r um lado. a co n stitu içã o de um
c o le tiv o singu lar q u e religa o c o n ju n to das histórias especiais ( E inzelgeschichten); p o r o u tro , um a
co n ta m in a ç ã o m útu a d o c o n c e ito de G eschichte en q u a n to co m p le x o de ev e n to s e a q u ele de H istorie
e n q u a n to c o n h e c im e n to , relato e ciê n cia h istórica. R e in h a r t K o se llec k . “ Le c o n c e p t d 'h is to ir e ” ,
in V E x p é rien c e d e 1'histoire ( 1 9 7 5 ) , traduzido d o alem ão p o r A lexan d re E scu d ier, P an s. E d itio n s de
1’E H E S S , 1 9 9 7 , p. 1 5 -1 9 . C f. tam b ém R e in h a rt K o se lleck , L c fiitu r passé. C ontrihulion d la sém antique
des tem ps historiques ( 1 9 7 9 ), traduzido do alem ão p o r Jo c h e n H o o c k , Paris, C.allim ard-Edicions du
S eu il, 1 9 9 0 , cap ítu lo IV . |Tradução brasileira de W ilm a Patrícia Mass e C arlo s A lm eida Pereira. O
futuro passad o: contribuirão tí semilntica dos tempos históricos. R i o de ja n e iro : C o n tra p o n to / P U C , 1 9 9 6 .]

1 1
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA à HISTÓRIA P r e íá c io

É provável que duas revelações dolorosas da modernidade tenham de povos, de alianças, de grupos de interesses, mas bem raramente
contribuído para isso: por um lado, a descoberta de que mesmo a de seres humanos.5 C om o pressentiu um escritor particularmente
natureza é mortal e, por outro, a perda progressiva de confiança atento ao passado, Hans Magnus Enzensberger, a língua da históna
com eçou, então, a ocultar os indivíduos atrás de categonas impes­
na capacidade de nossos sentidos de apreender a verdade (desde a
soais: “A história é exibida sem sujeito, as pessoas de que ela é a
época de Copém ico, a ciência, no fundo, não para de nos revelar
história aparecem somente como tela de fundo, enquanto figuras
os limites da observação direta).’ Mas, para além dessas profundas
acessórias, massa obscura relegada ao segundo plano do quadro: ‘os
transformações, que ultrapassam nossos comportamentos conscientes
desempregados’, ‘os empresários’, diz-se Mesmo os pretensos
e, sob certos aspectos, nos escapam, diversas vicissitudes intelectuais
ittakers o f history parecem desprovidos de vida: “A sorte dos outros
menos trágicas, e mesmo mais banais, tiveram, sem dúvida, um
- aqueles cujo destino é calado - se vinga sobre a deles: ficam con­
papel nada negligenciável. Em primeiro lugar, a vontade de trazer
gelados com o manequins e se parecem com as figuras de madeira
às ciências humanas bases científicas estáveis e objetivas. Tratou-se
que substituem os homens nos quadros de De Chirico” .6
de um imenso esforço de conhecim ento que conduziu as discipli­
O preço ético e político dessa desertificação do passado é muito
nas mais heterogéneas - da demografia à psicologia, passando pela
alto. A partir do momento em que deixamos de lado as motivações
história e pela sociologia - a uniformizar os fenómenos, eliminando
pessoais, “podemos admirar ou temer, abençoar ou maldizer Ale­
muitas vezes as diferenças, os desvios, as idiossincrasias.
xandre, César, Átila, Maomé, Cromwell, Hitler, com o admiramos,
O vício de encarar tudo sob o signo da similaridade e da equi­ tememos, abençoamos ou maldizemos as inundações, os tremores
valência teve graves repercussões. Hannah Arendt as evoca numa de terra, os pores do sol, os oceanos e as montanhas. Mas denunciar
carta a Karljaspers de 4 de março de 1951. Voltando, uma vez ainda, seus atos ou exaltá-los é tão despropositado quanto fazer sermões
às tragédias políticas e sociais que afligiram o século X X , observa-se a uma árvore” .7 Essas palavras de Isaiah Berlin, escritas em 1953,
que o pensamento moderno perdeu o gosto pela diversidade: ‘‘Não permanecem atuais. Ao longo dos últimos anos, reprovou-se muitas
sei o que é o mal absoluto, mas parece-m e que tem a ver com o vezes à historiografia dita pós-modema, de inspiração nietzschiana,
seguinte fenómeno: declarar os seres humanos supérfluos enquanto ter minado a ideia de verdade histórica e afastado, assim, toda pos­
seres humanos”. E, mais adiante, acrescenta: “Suspeito que a filosofia sibilidade de avaliar o passado.8 Parece-me importante sublinhar o
não seja tão inocente quanto ao que nos é dado aí. Naturalmente, quanto o perigo do relativismo, que corrói o princípio de respon­
não no sentido de que Hitler podena ser aproximado de Platão. [...] sabilidade individual, é igualmente inerente a uma leitura impessoal
Mas, sem dúvida, no sentido de que essa filosofia ocidental jamais da históna que pretende descrever a realidade pelo viés de anónimas
teve uma concepção do político e não podia ter porque [...] tratava relações de poder. Isaiah Berlin nos lembra que a esperança de fa z e r
acessoriamente a pluralidade efetiva” .4 falar as próprias coisas nos leva a produzir uma imagem abusivamente
Além da filosofia, essa perda da pluralidade afetou igualmente necessária dessa realidade. Por vezes, mesmo a celebrar um pouco
a história. Os dois últimos séculos viram nossos livros de história
abundar em relatos sem sujeito: eles tratam de potências, de nações,
5 C f. P h ilip P o n ip er, "H isto n a n s and Individual A g e n c y ", History iind Tlieory, 1 9 9 6 . 3 5 , 3 , p. 2 8 1 - 3 0 8 .

4 H ans M ag n u s E n z e n sb erg e r, “ L etteratu ra c o m e s to n o g ra h a ", II M en ab ò, 1 9 6 6 , I X . p. 8 .


Isaiah Berlin. " D e la n écesité histonque" (1953), in É o g e de la liberte, Pans, Calm ann-Lévy, 1988, p. 118.
S o b re a tom ad a de c o n sc iê n cia da v uln erabilid ad e da n a tu reza, cf. H a n n a h A ren d t. L t C on cept
" C f. C a rio G in z b u rg , “Ju s t o n e W itn ess” , ín Saul F n ed la n d e r (d ir.), Probing lh e U m its o f R epresenta-
d histoire (1 9 5 b ) ín U cnse de k aillun-, Paris, G allim ard, 1 9 7 2 . C f. ig u a lm en te H a n s jo n a s , Philosophieal
lion . N a z is m an d lh e " F in al S olu tion " . C a m b n d g e (M A S S .), H arvard U m v e n ity Press, 1 9 9 2 , p.
Essays From A tu m u C reed lo Technological M an , C h ic a g o , T h e U m v e ra ty C h ic a g o Press, 1 9 7 4 .
8 2 - 9 6 ; R i c h a r d J . Evans, In D e/rtu e o f H istory, Lon dres, G ran ta B o o k s , 1 9 9 7 , cap. V III.
' H annah A ren d t. C orrespon dan ce, 1 9 2 6 - 1 9 6 9 (1 9 8 5 ) , trad u zid o d o a lem ã o p o r E lia n e K a u fh o l-
M essm er, Paris, Pay o t, 1 9 9 6 , p. 2 4 3 - 2 4 4 .

12
O PEQUENO x - Da b io g r a f i a à h is t ó r ia
Prefácio

demais os feitos realizados: “Tudo o que se encontra no campo da com o “herói” ou “grande homem”. Em parte porque, entre os
razão vitoriosa é justo e sábio; por outro lado, tudo o que está do historiadores, reina ainda a estranha e arrogante convicção de que
lado do mundo fadado à destruição pelo trabalho das forças da razão o presente historiográfico é preferível e superior —em suma, mais
é efetivamente estúpido, ignorante, subjetivo, arbitrário, cego”.9 científico - ao passado.
Sob vários aspectos, este livro se propõe a fazer uma incursão
II pela tradição. Aí está uma expressão que merece alguns esclareci­
mentos. Em pnmeiro lugar, não se trata de uma chamada à ordem ."
Por essa razão, penso que é essencial voltar àqueles autores que,
Não atribuo a nossos predecessores uma autoridade indiscutível e
através do século X I X , se esforçaram por salvaguardar a dimensão
não pretendo negligenciar a importância das inovações ou das expe­
individual da história. Foi uma época que deu lugar a uma reflexão
riências histonográficas realizadas nos últimos decénios. Parece-me,
extremamente interessante e com plexa sobre o “pequeno x ”. Do
entretanto, que uma relação mais profunda com a tradição só pode
que se trata? A expressão é de Johann Gustav Droysen, que, em ennquecer nossas possibilidades de experimentar. Com demasiada
1863, escreve que, se chamamos A o gênio individual, a saber, tudo frequência, sobretudo no debate em torno ao pós-moderno, o
o que um homem é, possui e faz, então este A é formado por a + x, passado historiográfico é descrito com o uma experiência m ono­
em que a contém tudo o que lhe vem das circunstâncias externas, lítica, imbuída de certezas sobre a verdade e a objetividade. Meu
de seu país, de seu povo, de sua época, etc., e em que x representa desígnio aqui é colocar em evidência pensamentos que desmentem
sua contribuição pessoal, a obra de sua livre vontade.1" Antes de essa imagem tão convencional da tradição.
Droysen e depois dele, outros pensadores exploraram o “pequeno
Além do mais, o salto na tradição não concerne à biografia
x . C om o se forma? E inato? Todos os seres humanos o têm? Deve enquanto tal: nem seu método, nem sua evolução narrativa. E nada
ser integrado à história? Neste caso, com o apreender a relação entre tem de filológico: não proponho uma leitura exaustiva de cada autor
o caso individual singular e o m ovim ento geral da história? Inicial­ e, muitas vezes, limitei-me a evocar as motivações políticas e sociais
mente, a abordagem está estreitamente ligada a uma reflexão sobre de suas reflexões —com o o impacto do bonapartismo ou a afirma­
a nação: com o veremos, a propósito de Johann Gottfried Herder, ção política das massas. E uma verdadeira lacuna que será, espero,
as particularidades dos povos envolvem as características pessoais. preenchida em breve por outras pesquisas. Mas, aqui, debruço-me
Depois ela se anima, na segunda metade do século X I X , no curso principalmente sobre a história biográfica: se tivesse que resumir
de uma discussão complexa sobre o estatuto epistemológico das em algumas palavras o que fiz nesses últimos anos, talvez dissesse
ciências humanas. Não se trata de um debate estruturado, bem que recolhi pensamentos para povoar o passado. Com essa finali­
definido, com uma data inicial e uma final, mas antes de um diá­ dade, privilegiei uma perspectiva ampla, indo alem das fronteiras
logo difícil, indireto, incessantemente interrompido, que atravessa geográficas, linguísticas e de género.
as fronteiras nacionais e que injustamente caiu no esquecimento. Os autores que frequentei longamente são historiadores (fora
Em parte por ser pontuado por certos termos obsoletos e perigosos Thomas Carlyle, principalmente autores alemães, de Wilhelm Von

Isaiah B e rlin . D e la necessite h is to n q u e " , op. rir., p .l 1 6. C f. ig u a lm e n te H u g h T r e v o r - R o p e r . " N o cu rso dos ú ltim o s an os, esp e cia lm en te n os m eio s a n g lo -sa x ô e s, n u m e ro so s h istoriad ores
H istory and Im ag m atio n ' , in H istory an d Im a^ inalion. E ssay s in H o n o u r o f H R T revor R oprr, p ropu seram um a o p o siçã o discu tív el en tre a antiga e a n ova história: cf. T h e o d o r e S . H a m e ro w ,
L o n d res. G erald D u c k w o rth , 1 9 8 1 , p. 3 5 6 - 3 6 9 .
R eflections on H istory an d Htstorians, M ad ison , U m v e m ty o f W isco sin Press. 1 9 8 7 , cap V ; E liz a -
jo h a n n G ustav D ro y se n , D ie E rh eb u n g d er G e s c h ic h te zun i R a n g e in e r W isse n sch a ft” , H istorisehe beth F o x -G e n o v e s e , E lisabeth L a s c h -Q u in n (d ir.), R econstm cting H istory: TTic E m ergente o / a N ew
Z n tschrifi. Ed . V o n S y b e l, M u m c h , L ite ra n s ch -a rtis tic h e A nstalt, 1 8 6 3 , v o l. I X , p. 1 3 - 1 4 . D ro y sen H istorieal S o n ely , N e w Y o rk -L o n d re s . R o u tle d g e , 1 9 9 9 , p. X I 1 I - X X I I .
se apoia n u m ex e m p lo d o filó so fo R u d o l f H e n n a n n L o tz e.

14
O PEQUENO x - Da b io g r a f i a à h is tô h ia

Humboldt a Fnedrich M einecke), um historiador da arte (Jacob CAPÍTULO I

Burckhardt), um filósofo (Wilhelm Dilthey) e um escritor (Leon


Tolstoi). De fato, a definição disciplinar se mostra bem pobre, pois
se trata na maioria dos casos de peças únicas que não provêm nem de
uma escola nem de uma corrente. N ão há entre eles continuidade ou O limiar biográfico
coerência, mas partilham ao menos duas convicções. Creem , antes
de tudo, que o mundo histórico é criativo, produtivo, e que essa
qualidade não repousa sobre um princípio absoluto, mas procede
da ação recíproca dos indivíduos. Por conseguinte, não apresentam
a sociedade com o uma totalidade social independente (um “siste­
ma ou uma “estrutura” impessoal superior aos indivíduos e que
os domina), mas com o uma obra com um . T êm , além disso, um
I
sentido agudo do que poderíamos chamar “a vitalidade periférica da
históna : visam antes a desvelar a natureza multiforme do passado Tácito, Suetônio e Plutarco. Antes deles, Critias, Isócrates,
do que a unificar os fenómenos. E claro, não são os únicos a abraçar X en ofon te, Teofrasto, Aristóxenes, Varrão, Cornélio Nepos.
tal abordagem. A diversidade da experiência histórica foi defendida Mais tarde, Eginhard, o abade Suger, Jean de Joinville, Philippe
nesses mesmos decénios por William Jam es e M ax W eber e, mais de Commynes, Femán Pérez de Guzmán, Filippo Villani, Giorgio
tarde, por W alter Benjamin, Siegfried Kracauer e outros autores Vasan, Thomas More. A Antiguidade grega e romana contou com
que cruzaremos nos meandros das páginas deste livro. importantes biógrafos, assim com o a Idade Média e a Renascença.
Mas antes de seguir essas grandes figuras no fio de seus pen­ Mas ainda não se chamavam assim. O termo “biografia só aparece
samentos, é importante explorar a fronteira, fluida e instável, que ao longo do século XV II, para designar uma obra verídica, fundada
separa a biografia da literatura e da história. numa descrição realista, por oposição a outras formas antigas de
escntura de si que idealizavam o personagem e as circunstancias
de sua vida (tais com o o panegírico, o elogio, a oração fúnebre e
a hagiografia).1 Os primeiros verdadeiros biógrafos foram ingleses.
Izaak Walton, autor de uma vida do poeta John Donne em 1640,
e o eclético John Aubrey, que, entre 1670 e 1690, escreveu uma
séne de notícias biográficas sobre diversas personalidades de Oxford
(o texto só seria publicado no século X I X ), seguidos por Samuel

' S o b re a ev o lu çã o da bio g rafia, cf. W ilb u r L. C ro ss, A n O u llin e o f B io g n p h y fio m Piutairlt lo Slrachey,
N e w Y o r k , H . H o lt & C o ., 1 9 2 4 ; H arold N ico ls o n , T h e D evclopm ent o fE n g lis h B iography. N e w
Y o r k , H a rc o u rt, B r a c e , 1 9 2 8 ; E d m o n d G o sse, “ B io g m p h y ” in Encyclopedia B rila n n k a , 11* ed .;
D o n a ld A . S tau ffer, E tiçlish Bioçrn phy hefore 1 7 0 0 , O x fo rd , O x fo rd U n .v ersity Press. 1 9 3 0 ; J o h n
A . G arraty, T h e N a ln re o f B iography. O x fo rd , K n o p f, 1 9 5 7 ; D a n iel M ad elén at, L a B iographie. Pan s,
P U F , 1 9 8 4 ; S c o tt C a sp e r. C onstructing A m erican L iv es: B iography an d C u llu re in N in eleen th -C en lu ry
A m erica, C h a p e i H .ll, U m v e m ty o f N o rth C a ro lin a Press, 1 9 9 9 ; M a rg a re tta jo lly (d .r.) L ife IVriting.
A u U io g r a p h ie a l an d Biographical Form s, L o n d re s -C h ic a g o , F itz ro y D e a r b o m Pu blish ers, 2 0 0 1 .

16
O PEQUENO * - Da b io g r a f ia A h is tô m a O UMIAD BIOGRÁFICO

Johnson com suas Lives o f the Poets (1 7 7 9 -1 7 8 1 ) e porjam es Boswell, intelectual. Sainte-Beuve, Hippolyte Taine e O tto W eininger
autor de uma Life of Samuel Johnson (1791). visam a instaurar uma biografia abstrata, suscetível de transformar
Atestada desde a Antiguidade, a biografia é, desde a origem, o individual em tipo,6 enquanto outros, mais sensíveis à dimensão
um género híbrido e com pósito.2 Equilibrando-se sempre entre ética da existência, sublinham seu caráter singular: com o escreve
verdade histórica e verdade literária, sofreu profundas transformações Giovanni Amendola, “a biografia, que não pode se engir em ciência
ao longo do tempo - quanto à escolha e à elaboração dos fatos e filosófica, [...] pode nos fomecer um conhecimento mais rico e mais
do estilo narrativo. E portanto difícil estabelecer regras gerais.1 Sem preciso da vida moral do que a própna Etica”.7
dúvida, numerosos biógrafos privilegiaram lima narração cronoló­ Por isso, em vez de formular regras gerais sobre um género de
gica seguindo as escansões biológicas da existência: o nascimento, escritura particularmente volúvel, parece-me mais fecundo meditar
a formação, a carreira, a maturidade, o declínio e a m orte. Mas isso sobre essa fronteira fluida que separa a biografia da história e da
não implica que a biografia deva necessariamente repousar sobre literatura, e analisar as proibições, os abalos, as incursões recíprocas
uma trama cronológica. Basta pensar em Plutarco, que coloca toda que a transpõem...
ênfase no caráter e nas qualidades morais do personagem, e não
II
em sua vida. Ou em Lytton Strachey, que prefere uma narração
sintomática, apoiando-se essencialmente nos m om entos-chave (as
Ao longo do século XV III, a reflexão biográfica se desenvol­
conversões, os traumatismos, as crises económ icas, as separações veu sobre dois eixos essenciais: além da vida dos santos e dos reis,
afetivas). Não existe nenhuma regra formal nesse domínio, nem interessou-se cada vez mais pela de poetas, soldados ou criminosos, e
mesmo a respeito das características individuais. John Aubrey e adota um tom mais intimista. Em 1750, Johnson invoca abertamente
Mareei Schwob cultivam-nas e mesmo as exaltam em revide ao geral o valor da existência qualquer: “Disse-me muitas vezes que não havia
e ao impessoal: A ciência histórica nos deixa na incerteza sobre os vida que, fielmente relatada, não oferecesse uma narrativa útil”. Após
indivíduos. Ela só nos revela os pontos por onde eles foram atrelados ter refutado a asserção segundo a qual a vida de um pesquisador,
as açoes gerais. [...] A arte é o contrário das ideias gerais, só descreve de um negociante ou de um padre dedicando-se a seus ofícios seria
o individual, só deseja o único. Não classifica; desclassifica” .4 Mas desprovida de interesse, parte para a guerra contra a noção de gran­
outros biógrafos minoram esses traços individuais em proveito das deza: “Aos olhos da razão, o que é mais difundido tem mais valor” .
semelhanças, na esperança de representar um tipo médio, ordinário Preocupado com o homem ordinário, Johnson ataca a prerrogativa
(no domínio da biografia literária, tal é o caso de Giuseppe Pontiggia, que é muitas vezes atribuída às questões públicas, sustentando que
que corrige as individualidades e as coloca mesmo em séries5). Sob um bom biógrafo deve guiar o leitor na intimidade doméstica para
certos aspectos, essa oposição está igualmente presente na biografia mostrar os pequenos detalhes da vida cotidiana. A concepção do

C l , D an iel A aron (d ir.), Studi,< m B iography. C a m b n d g e (M a ss.). H arv ard U n iv e rs ity Press, 1 9 7 8 ; ‘ O tt o W e in m g e r . et caracttre ( 1 9 0 3 ) , traduzido d o alem ão p o r D a n iel R e n a u d , L au sanne,
a o e L u cian o N icastri ( d ir ) , B iografia e au tobiografia degli an tichi e d ei m o d em i. N ápoles,
L ’A g e d ’h o m m e , 1 9 8 9 , 2 a parte, cap. 5.
Z10m ^c ' e n a t,c *le Italian e, 1 9 9 5 ; L u cia B o ld n n i, B io g r a fiefittiz ie e personaggi siorici. {A u to bio g ra fia ,
7 G io v a n n i A m en d ola, Etica e biografia (1 9 1 5 ), M ila n -N a p les. R ic c .a rd i, 1 9 5 3 , p. 17. S o b re a dim ensão
soggettimta, leoria n el rom an zo inglese con tem porân eo. Pisa, E T S , 1 9 9 8 .
ética da bio g ra fia , cf. R o b e r t P artin . “ B io g ra p h y as ar. In stru m en t o f M o ra l In s tn ic tio n . A m en can
C f. AUan N ev in s, H o w Shall O n e W n te o f a M an s L ife ” , T h e N e w Y ork T im es B o o k R ev iew , 15 Q uarterly, 1 9 5 6 , 8 . 4 , p. 3 0 3 - 3 1 5 ; F ré d éric R e g a rd , " L -é th .q u e du b io g ra p h iq u e . R e f l e t t o m sur
de ju lh o de 1 9 5 1 , p. 2 0 .
u n e tra d itio n b n ta n n iq u e ” , U ttèrature, 2 0 0 2 , 1 2 8 , p. 8 0 - 9 2 .
M areei S c h w o b , 1/ies im agm a.res ( 1 8 9 6 ), P an s, F la m m a n o n . 2 0 0 4 , p. 5 3 . [T r a d u ç ã o brasileira de * S am u el J o h n s o n , ■‘B io g r a p h y ", R am bler. 13 de o u tu b ro de 1 7 5 0 , n. 6 0 , p. 3 5 7 . C f. ig u a lm en te
M ach ad o Vidas im aginárias. R i o de ja n e ir o , E d ito ra 3 4 , 1 9 9 7 ] S a m u el J o h n s o n , "B io g ra p h y h o w B e st P e rfo rm e d ", Idler. n ° 8 4 . 2 4 de n o v e m b ro d e 1 7 5 9 , m
r.iu sep jx - P o m ig g ia, Vie des hom m es non illustres (1 9 9 3 ) . trad u zid o d o ita lia n o p o r F ra n ço is B o u - T h e Idler an d the A dventurer. E d . P o r W . J . B a te , N e w H a v en , T h e Y a le E d it.o n , 1 9 5 8 .
ch ard, P an s, A lbin M ic h e l, 1 9 9 5 .

19
18
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à HISTÔS1A
O UMIAfi BIOGRÁFICO

biógrafo preocupado em mergulhar na intimidade doméstica a fim


“É muito útil, em primeiro lugar, começar pelo com eço e, quando
de captar o indivíduo privado de sua máscara social é partilhada por
se dispõe dos meios, tomar o escritor superior ou distinguido em seu
James Boswell, que, em 25 de fevereiro de 1788, escreve a William
país natal, em sua raça” .12 O artista deve ser buscado no seio de seu
Temple: “Estou absolutamente certo de que o m étodo biográfico ambiente familiar: com seus pais, com sua mãe sobretudo, com suas
com o o entendo - dar não apenas uma história da trajetóna visível irmãs (é o caso de Chateaubriand, Lamartine, Balzac, Beaumarchais),
de Johnson no mundo, mas uma vista de seu espírito em suas cartas com seus irmãos (como Boileau-Despréaux) e com seus filhos (como
e conversações — é o mais perfeito que se possa conceber, e será Madame Sévigné). “Encontram-se aí lineamentos essenciais que são
mais uma Vida que qualquer obra já publicada” .^ muitas vezes mascarados por estarem demasiado condensados ou
E durante o século X I X que a biografia se impõe com o oficio unidos no grande indivíduo; o fundo se encontra, nos outros de seu
de pleno direito - graças a John Forster, John Morley, James Par- sangue, mais despido e em estado simples . Apos o nascimento, vem
ton, Charles-Augustin Sainte-Beuve. Em 1862, este último, em o tempo da formação: a época dos estudos, dajuventude, do primeiro
geral bastante reticente no que tange às afirmações teóricas, decide círculo artístico (a Muse française, o Globe, ou o Cénacle). “Nenhum
explicar de uma vez por todas os princípios metodológicos de sua dos talentos, então jovens, que viveram em um destes grupos, o fez
crítica literária: “Aqueles que me tratam da maneira mais benévola impunemente” :13 sob certos aspectos, é a verdadeira data original do

admitiram que eu era um juiz bastante bom, mas que não tinha artista. No termo da formação, aborda-se o triste tempo da defor­
mação: “É o momento em que [o artista] se estraga, se corrompe,
Código. Tenho um método no entanto, [...] ele se formou em num
decai, desvia. Escolham as palavras menos chocantes, as mais doces
pela própria prática”.10 A premissa é muito simples: “A literatura [...]
que vocês quiserem, a coisa acontece com quase todos .
nao e para mim distinta ou sequer separável do resto do homem e
da organização; posso saborear uma obra, mas é-m e difícil julgá-la Essa perspectiva analítica, que visa a buscar o homem na obra,
funda-se na esperança de que o caso singular possa assumir um valor
independentemente do conhecimento do próprio homem; diria mes­
tipológico. Assim, o retrato de Guy Patin, célebre médico do século
mo de bom grado: tal árvore, tal fruto. O estudo literário me conduz
XV II, deveria restituir o quadro de uma burguesia incoerente e de
naturalmente ao estudo moral” .11 O resultado também é simples:
uma época indolente: “Embora pareça um grande original, [Patin]
Para julgar o autor de um livro e o próprio livro, se esse livro não é
não é o único de sua espécie; não é mais do que um exemplo mais
um tratado de geometria pura”, é preciso colocar-se certas questões
saliente e mais em relevo de uma inconsequência burguesa e de classe
sobre a personalidade do artista: qual é sua posição religiosa? Sua
média, que é curioso estudar nele”.15 Com o escreve Sainte-Beuve
percepção da natureza? Quais suas relações com as mulheres? Com
em 1865, com certa dose de autoiroma: "Tipo é uma palavra bem
o dinheiro:' E com a comida? Mas também: quais seus vícios? Quem
vil, bem seca e bem dura, mas é uma bela coisa [...]. Tipo, em nossa
são seus amigos? E seus inimigos? O conjunto dessas questões deve
mitologia abstrata, em nosso novo panteão estético, é com o quem
ser levantado a cada etapa de toda vida: no nascimento, quando da
dissesse outrora semideus, Divus. Tendes altares .' Se essa demarche
formação e da deformação. A abordagem só pode ser cronológica: tipológica der resultado, a crítica literária poderá deixar o anedótico

d h ° ^ am e^ ^ ac^c ^ n a t. 1-4 B iographie, o p . c it., p. 5 6 . S o b r e o p ro ce sso de d e m o cra tiz a çã o


12 Ib id ., p. 18.
A J T ^ C^ Can S ta ro b 1n ski,Jf<ín-/íir<jiiei R ou sseau , la transparence el V obstacle, P a n s. P lo n , 1 9 5 7 ;
rea B jt u s n n i. L o s p e a h io d, D eã a lo . A u tobiografia e biografia, B o lo n h a , II M u h n o , 1 9 9 0 . 13 Ib id ., p. 2 2 - 2 3 .

iL UgUS' ln S a lm c ~U e u v e. N o u v ea u x lundis, P an s, C a lm a n n -L é v y , 1 8 9 1 , t. I I I, p. 13, 21 e H Ib id ., p. 2 6 .


2 2 de ju lh o de 1 8 6 2 . 15 S a in te-B eu v e . Caustries du hm di. Pans. G am ier, s.d., t. V III. 2 5 de abn l e 2 de m aio de 1 8 5 3 , p. 8 8 - 1 3 3 .
" Ib id ., p. 15. 16 S a in te -B e u v e , N o u iv a u x lundis, op. d l ., t. I X , p. 2 4 6 , 2 de ja n e ir o de 1 8 6 5 .

20 21
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA À HISTÔdIA O LIMIAR BIOGRÁFICO

para estabelecer uma base científica, digna das ciências naturais: paleontológico desaparecido, da humanidade inferior fóssil,
“Entrevejo ligações, relações, e um espírito mais estendido, mais de todas as sociedades superpostas que serviram de suporte à
luminoso, capaz de permanecer fino nos detalhes, poderá descobrir sociedade moderna, da França de todos os séculos, do século
X I X , de meu grupo, de minha família.20
um dia as grandes divisões naturais que respondem às famílias de
' »». 17
espíritos
E é nessa ótica que uma definição científica da biografia é relançada:
O mesmo se aplica a Hippolyte Taine, para quem a crítica “Teremos ultrapassado, daqui a meio século, o período descritivo
literária deve ser biográfica: com o afirma no início de sua célebre [...] para entrar em breve no período das classificações naturais e
obra sobre Balzac, definitivas” .21

As obras de espínto não têm apenas o espírito por pai. O homem Ao longo da segunda metade do século X I X , multiplicam-se
inteiro contribui para produzi-las; seu caráter, sua educação e sua os dicionários biográficos, tais com o a Biographie universelle ancienne
vida, seu passado e seu presente, suas paixões e suas faculdades, et moderne, a Nouvelle Biographie générale depuis les temps plus anctens
suas virtudes e seus vícios, todas as partes de sua alma e de sua jusqu’à nos jours, o Dictionary o f National Biography, o Dictionary o f
ação deixam seu traço no que ele pensa e no que escreve.18 American Biography e a Allgemeine Deutsche Biographie. Mas a reali­
dade biográfica permanece geralmente bem longe das expectativas
Donde o valor conceituai dos “pequenos fatos, anedotas, citações,
científicas de Taine. Uma vez tornados biógrafos profissionais,
exemplos expressivos e significativos, [...] fragmentos autênticos e
muitos se põem a escrever vidas oficiais, obsequiosas e moralizan-
vivos, intactos, colhidos na realidade concreta” . 19 Em certo sentido,
tes. O resultado é dos mais decepcionantes. Enojado pela carolice
o processo de compreensão biográfica se aparenta à dissecção dos
deferente que impregna muitas biografias, preocupadas em não
corpos. Assim, ao eu sublime e infinito, evocado pelos românticos,
macular a imagem de respeitabilidade social de seus mandantes,
Taine opõe uma partícula, um produto, uma extremidade, uma
Thomas Carlyle declara: “C om o é delicada e respeitável a biografia
emergência do Paleoceno:
inglesa! Agradeçamos à sua hipocrisia"; depois decide confiar toda
Acabo de reler H ugo, Vigny, Lam artine, Musset, Gautier, documentação concernindo a sua vida ajames Anthony Froude, em
Sainte-Beuve, co m o tipos da plêiade poética de 1830. C om o troca da promessa de dizer toda a verdade.” A despeito dessas desa­
todos esses senhores se enganaram! Q ue ideia falsa têm do ho­ provações, a comemoração recatada predomina. C om o estigmatiza
mem e da vida! [...] Q uanto a educação científica e histórica o doutor Havelock Ellis, numa carta aberta de tom bastante picante,
muda o ponto de vista! M aterialmente e m oralm ente sou um os biógrafos continuam a apresentar uma silhueta elegante, digna,
atom o num infinito de extensão e de tem po, um botão num convencional, bem penteada e sobretudo “estritamente depurada de
baobá, uma pontinha florida num polipeiro prodigioso que
tudo o que está abaixo da cintura, uma figura tal qual aquela que
ocupa o oceano inteiro e, de geração em geração, emerge,
deixando seus inumeráveis suportes e ramificações sob a água;
o que sou chegou e chega a mim pelo tron co, pelo galho ■' H ip p o ly te T a in e , Panes choisies, c o m um a in tro d u çã o , n o tícia s e n otas de V ic to r G irau d , I ans,
grosso, o ram o, o talo de que sou a extrem idade; sou por H a ch e tte , 1 9 0 9 , p. 3 4 - 3 6 .

um m om ento a culm inação, o afloram ento de um mundo 21 C ita d o p o r W o l f Lap en ies. S d iriff-B iw c. A u scuil d e la m o d em itè ( 1 9 9 7 ) , traduzido d o a lem ã o p o r
B e m a rd L o rth o la ry , Paris, G allim ard , 2 0 0 2 , p. 2 1 6 .
22 O C arly le, q u e c o n ta , sem m ed ir suas palavras, o eg o ísm o co n ju g a l d o e s e n to r. suscita um a im ­
17 I b i J ; t. III, p. 17. p o rta n te discussão so b re a é tica b io g rá fica , n o cu rso da qual G e o rg e T y r re l, um je su íta irlandês
(e x c o m u n g a d o p o u c o te m p o d ep ois p o r m o d ern ism o ), c o n d en a a ex cessiv a cu n so sid a d e dos
H ip p o ly te T a in e , N o u v eau x essais de critique et d'histoire. P a n s, H a c h e tte , 1 8 6 6 , p. 6 7 .
bió g rafos e sustenta o dever d e calar certos fatos, e n q u a n to E d m u n d S P u rcell e Paul L e ice ste r F ord
H T a m e : sa m e et sa con espondance, P an s, H a c h e tte , 1 9 0 2 - 1 9 0 7 , t. IV . carta d e 1 3 d e m a rç o de
d efen d em o direito de d iz e r a verdade.
1891 a Franz B rcn ta n o .

23
22
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA À HISTÚRIA O LIMIAR BIOGRÁFICO

podemos observar sem corar na vitrine dos cabelereiros” .23 Mas é que importa verdadeiramente não é mais o momento da ação, mas
ao grande biógrafo iconoclasta Lytton Strachey que se devem as aquele que o precede. C om o precisa Lewis Mumford, a biografia se
críticas mais virulentas: povoa assim de personagens menos sagazes e menos densos, talvez
mesmo menos fiéis a um único objetivo existencial: “O indivíduo
Esses dois grossos volumes, co m os quais temos o costume tal com o se o concebia outrora, ser razoável, rigoroso e refletido,
de honrar os m ortos, quem não os viu co m sua massa de do­ era com o o universo newtoniano, mas é difícil conceber e explicar
cumentos mal digeridos, seu estilo descom posto, seu tom de
o novo indivíduo sob a ótica da física moderna. Por comodidade,
panegírico entediante, sua lamentável falta de seletividade, de
o biógrafo tende incessantemente a limitar sua investigação ao
distanciamento, de orientação? São-nos tão familiares quanto
movimento euclidiano newtoniano; mas, para tanto, é obrigado a
o cortejo das pompas tunebres e têm o m esm o ar de lenta e
ignorar que o sujeito se comporta, em certas relações, com o um
lúgubre barbárie.24
corpúsculo em movimento e, em outras, com o uma onda .2ft Essas
Bem entendido, Strachey não ataca a biografia enquanto tal. convicções, que traçam a via para a new biography e para a debunking
Bem pelo contrário: convencido de que “os seres humanos são im­ life, são partilhadas pelos maiores biógrafos da primeira metade do
portantes demais para serem encarados com o sintomas do passado”, século X X : Harold Nicolson, Philp Guedalla, Gamaliel Bradford,
quer utilizá-la com o uma ferramenta para desmascarar a história.25 Giovanni Papini, Emil Ludwig, André Maurois, Friedrich Gundolf,
Stefan Zweig. C om o este último precisa, a biografia se reveste de
O que trata de fazer na coletânea Vitorianos eminentes, em que es­
acentos anti-heroicos: “Não tomo nunca o partido dos pretensos
colhe quatro pessoas passavelmente antipáticas (o cardeal Manning,
‘heróis’, mas vejo sempre o trágico no vencido. Em minhas novelas,
Florence Nightingale, o doutor Amold e o general Gordon) para
é sempre aquele que sucumbe ao destino que me atrai, em minhas
fustigar as principais instituições vitorianas: o evangelismo, o hu-
biografias, o personagem que sobressai não no espaço real do sucesso,
manitarismo, o sistema educacional e a política colonial britânica.
mas unicamente no sentido moral. Erasmo e não Lutero, Maria Stuart
Com esse desígnio, abala duas regras usuais da tradição biográfica.
e não Elizabete, Castelion e não Calvino. É assim que não tomei por
Em primeiro lugar, a ideia de uma homenagem necessária: em suas figura heróica central Aquiles, mas o mais obscuro de seus adversários,
poucas obras (só escreveu quatro), nenhuma alusão à virtude, à Tersita: o homem que sofre ao invés daquele que, por sua força e
grandeza, à virilidade. Em segundo, a primazia do público: Strachey a segurança com que persegue seus fins, faz os outros sofrerem .
atribui mais importância à personalidade do que às ações e às obras
É precisamente nesse período que certos biógrafos renunciam
(em seu texto, Vitória é mais mulher do que rainha). Esta é uma
ao imperativo da verdade fatual, tão caro a Samuel Johnson, e
ruptura notável que concerne igualmente ao domínio psicológico: o reivindicam o direito, e até a obrigação, de imaginar o passado:
“A ignorância - lê-se no prefácio de Eminent Victorians - é a
H av elo ck EUh, "A n O p e n L e tte r to B io g r a p h c r s " ( 1 8 9 6 ) . in V ia » a n d R ev iew s. A Selection o f primeira necessidade do historiador, ela simplifica e clarifica,
I ncoikcted Arttcles, 1 8 8 4 - 1 9 3 2 . L o n d res, D e s m o n d H a rm s w o rth . 1 9 3 2 , p. 9 8 .

L y tto n S tr.ich c\ , V uíoricns em inents ( 1 9 1 8 ), trad u zid o d o in glês p o r ja c q u e s D o m b a s le , P a n s, G a l-


k n u rd . 1 9 3 3 . p. 18-1 i E d m un d G osse form ula as m esm as críticas em " T h e C u s to m o fB io g ra p h y , “ L ew is M u m fo rd , “ T h e T a sk o f M o d e m B io g r a p h y ", English Jo u r n a l, 1 9 3 4 , X X I I I , p. 4 - 5 .
A nglo S axon R eview , 1 9 0 1 .
17 Stefan Z w e ig , Le M o n d e d'hier. Souvenirs à'u n E u ropérn ( 1 9 4 4 ) , traduzido d o a lem ã o p o r S erg e
L » tto n S trach ey , i h j , p 18. Essa ideia d e jo g a r a b io g ra fia c o n tra a h istória fora já form u lad a por N iê m e tz , Paris, B e lfo n d , 1 9 9 3 , p. 2 1 3 - 2 1 4 . O te rm o n ew biography p ro ce d e d e u m artig o de V ir­
Fru-diw h N ietzsch e. E m C on sideratw n s inacluelles ( 1 8 7 3 - 1 8 7 6 ) , trad u zid o d o a lem ã o p o r PierTe gínia W o o l f sob re S o m e P eop le (1 9 2 7 ) d ’H aro ld N ico ls o n , e n q u a n to o te rm o d ebu n ker foi forçado
ust+i m O fíw rcs philosopltiqu es com pletes. P an s. G a llim a rd , 1 9 9 0 , p. 1 3 5 , esc rev e : “ E se vocês p o r W illia m E. W o o d w a rd , na n ov ela Bunlr ( 1 9 2 3 ) , em q u e um dos p erson ag en s, M ic h e l W e b b .
P « n i!c biografias, q u e n ão sejam aquelas q u e tê m p o r refrão : ‘S e n h o r fu lan o e seu te m p o , estuda um a fam ília de m agnatas d o a u to m ó v e l d esem b a ra ça n d o -se da im ag em o fic ia l (lo take the
; “ I ^ UC d e v en a m ter p o r titu lo : U m lu tad or c o n tra seu te m p o ’. " [T r a d u ç ã o brasileira b u n k out o f t h a t fa m ily by show ing ir up on its true relations). S o b re a n ov a bio g rafia, cf. L io n el M .
u . cns . . o ó n g ru e s T o rr e s C o n sid e ra ç õ e s e x te m p o râ n e a s ". In : O bras incom pletas. S e le ç ã o de G e lb e r, “ H isto ry and th e N e w B io g r a p h y ", Q u een 's Q uarterly. 1 9 3 0 , X X X V I I . p. 1 2 7 - 1 4 4 .
te x to s G era rd L ebru n . S ã o P au lo: A b n l, 1 9 8 3 . (C o le ç ã o O s P en sad ores))

25
24
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA A HISTORIA O UMIAII BIOGRÁFICO

escolhe e o m ite".2M A biografia rom anceada não afasta apenas lembra, muitos anos mais tarde, o crítico inglês Terry Eagleton,
os historiadores,M mas também os romancistas: paradoxalmente, as biografias excitam em seus leitores o desejo de espiar os hábitos
quanto mais a biografia busca uma legitimidade literária, mais a sexuais do artista33). Um a perplexidade semelhante é expressa pela
literatura parece recusar-lhe tal legitimidade. psicanálise. Mesmo Sigmund Freud, que funda, no entanto, o essen­
É inegável que, apesar da fluidez de seu estatuto e de sua am­ cial de sua reflexão sobre o estudo de casos individuais (Leonardo
bivalência em relação a outros géneros de escrita (ou talvez mesmo da Vinci, Michelangelo, Dostoievski, Thomas W oodrow Wilson,
o presidente Schreber e sobretudo o pequeno Hans, O Hom em
por causa disso), a biografia suscitou múltiplas hostilidades nos meios
dos ratos, Anna O ., Dora, o Homem dos lobos...), proíbe Arnold
literários. Charles Dickens protestava já que as biografias pareciam
Zweig de escrever um livro sobre sua vida, alegando que “ [...]
todas escritas "por alguém que conviveu com as pessoas como vi­
aquele que se torna biógrafo se obriga à mentira, aos segredos, à
zinho e não em seu foro interior". Mesma reprovação da parte de
hipocrisia, à idealização e mesmo à dissimulação de sua incompre­
alt Whitman: "Detestei a maioria das biografias literárias, pois são
ensão, pois é impossível obter a verdade biográfica e, mesmo se a
tão mentirosas ,3' Mas, no início do século X X , as reações se fazem
tivéssemos, ela não seria utilizável. A verdade não e praticavel, os
cada vez mais severas. Assim, Paul Valéry se queixa do tratamento
homens não a m erecem ” .34
anedótico reservado aos artistas:
Desse coro compósito de vozes agastadas, duas questões se
Espreita-os o biógrafo, que se consagra a tirar a grandeza, que elevam. Concernem , por um lado, à ligação entre a biografia e a
os assinalou a seu olhar, dessa quantidade de pequenezas co­
obra artística e, por outro, à capacidade da biografia de dar conta das
muns e de misérias inevitáveis e universais. Ele conta as meias,
relações humanas próprias à modernidade. Em 1908, Mareei Proust
as amantes, as tolices de seu sujeito.31 Faz, em suma, precisa­
se exprime sobre o primeiro ponto quando reprova a Sainte-Beuve
mente o inverso do que quis fazer toda a vitalidade deste, que
se gastou contra aquilo que a vida im põe de vis ou monótonas
não ter compreendido a grandeza artística de Balzac, de Stendhal
semelhanças a todos os organismos, e de diversões ou acidentes e de Baudelaire. Sob certos aspectos, nada há aí de muito novo: é
improdutivos a todos os espíritos. Sua ilusão consiste em crer por essa mesma razão que os irmãos Goncourt, Zola, Nietzsche e
que o que busca pode engendrar ou pode explicar o que o Henry James acusavam a crítica de ter uma alma “feminina” (sic).
outro encontrou ou produziu.32 Entretanto, desta vez, não é apenas a sensibilidade de Sainte Beuve
que é posta em questão. O que está no banco dos réus é seu método,
As acusações são esmagadoras e recorrentes: superficialidade,
que faz do autor (digamos antes: daquilo que se sabe de sua vida)
excesso de coerência, aborrecimento, falsidade, voyeurismo, (como
um princípio de inteligibilidade da obra: É absurdo julgar o poeta
pelo homem ou pelo que dizem seus amigos. Quanto ao próprio
L y tto n S trach ey , V iaorim s ém in en is, op rir., p . 17 A o p ç ã o l.te rá n a é p artilhad a p o r A n d ré M a u ­
homem, não é mais do que um homem e pode perfeitamente
* la h’W * p f" ’ , P an s, A u sens parei], 1 9 3 0 . e será co n firm a d a p o r L e o n E d el. U terary
B iography, Lon dres, H a rt-D a v is. 1 9 5 7 . Ela será e n ricad a p o r Paul M u rra y K e n d a ll, U e A n o f ignorar o que quer o poeta que vive nele . Proust recusa a ideia
B iography, N e w Y o r k , N o r to n , 1 9 6 5 .
de “pedir à biografia do homem, à história de sua família, a todas
C f G o d trcy D av ies, B io g rap h y and H is to r y " , M o d em L an g u ag e Q u arterly, 1 9 4 0 , I, p. 7 9 - 9 4 ;
u D nC' and H isto ry , m jo s e p h R S tra y e r ( d i r ) , l h e In terpretation o f H istory,
n ce to n . P m c e io n U m v e rsity Press. 1 9 4 3 , p. 1 2 1 - 1 4 8 ; je a n R o m e i n , D ie B iog rap h ie. E m fi.h n m g
15 T e rr y E a g le to n , " T h e T a le o f a T u b T h u m p e r " , T h e G u ard ian IV eekly, 13 de s ete m b ro d e 1 9 9 8 .
^ m ,hre C «cln ch ie u „ d ihre P rob lem a,ik. B e rn a , A . F ra n ck e . 1 9 4 8 . p. 8 7 - 9 3 . '
“ S ig m u n d F reu d e A rn old Z w e .g . C o r r e s p o n d a * ' . 1 9 2 7 - W 9 ( 1 9 6 8 ) , traduzido d o alem ão p o r
Jo h n A G arraty, T h e N alu re o f B iography, op . d l ., p. 91 e 9 4 .
Lu c W e ib e l, P an s, G allim ard , 1 9 7 3 , p. 1 6 7 . S o b re a atitu d e de F reu d em relaçao a bio g ra fia , cf.
' In ,ralKCS' Pock slBn ‘f‘ca r. além de s u je ito , te m a , assu n to , o b je t o (c o in o o inglês M a n o L a v a g etto , F reu d, la letteralura e altro, T u r in , E in a u d i, 1 9 8 5 , p. 2 7 2 - 2 7 5 ; e a in tro d u çã o de
subject), o u , ainda, súdito ( N .T .) .
Use B a ra n d e à R e v u e F ,a n (aise d e P sychan alyse. 1 9 8 8 , 1. n ú m e ro especial " D e s b io g ra p h ie s ".
1’aul V aléry . M au vau es p e m ées et autres. m O eu vres, P an s, G a ll.m a rd . 1 9 4 2 . p. 9 3 - 9 4 .

27
26
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA A HISTÓRIA
O LIMIAR BIOGRÁFICO

suas particularidades, o entendimento de suas obras e a natureza


ao crítico nem ao autor (destacou-se do autor ao ser escrito e vai
de seu gênio”.35 Não basta catalogar os hábitos e as frequentações pelo mundo independentemente de sua faculdade de decidir sobre
de um artista para captar o sentido de sua obra, pois “nossa pessoa ele ou controlá-lo). O poema pertence ao público. Manifesta-se na
moral se compõe de várias pessoas superpostas. Isso é talvez mais linguagem [e] é um objeto de conhecimento público”.40 Nos anos
sensível ainda no caso dos poetas que têm um céu a mais, um céu 1960, é a vez de Roland Barthes que, em diversas ocasiões, declara
intermediário entre o céu de seu gênio e aquele de sua inteligência, que a história literária deve renunciar à noção de indivíduo. Em seu
de sua bondade, de sua finesse diárias: sua prosa” .36 Isso significa que ensaio sobre a morte do autor, enuncia que não existe nenhuma
o eu íntimo do artista escapa ao eu cotidiano: “ Só se o encontra matriz de sentido: a escritura é uma atividade contrateleológica que
fazendo abstração dos outros e do eu que conhece os outros, o eu dissolve toda identidade, inclusive aquela do corpo que escreve. A
que esperou enquanto se estava com os outros, que a gente sente figura do autor é abolida; em seu lugar, há o escritor que nasce no
bem ser o único real, e para o qual apenas os artistas acabam viven­ livro. Quanto ao leitor, ele também é concebido com o instância
do, como um deus que eles deixam cada vez m enos” .3^ Destacada impessoal, “um homem sem história, sem biografia, sem psico­
da personalidade do autor, a obra artística exige ser avaliada em si logia” (e, por essa razão, livre para gerir à vontade os sentidos do
mesma, para além de toda referência biográfica imediata: “U m livro texto).41 Embora exaltando nos anos subsequentes as características
e o produto de um outro eu que não aquele que manifestamos em individuais (os célebres biografemas), Barthes não cessa de reiterar
nossos hábitos, na sociedade, em nossos vícios” .38 suas convicções antibiográficas até em sua autobiografia: a infância
não é contável, e o “tempo do relato (da imagética) acaba com a
Infelizmente, ao longo do século X X , o eu mais profundo
juventude do sujeito: só há biografia da vida improdutiva. A partir
de que fala Proust tom a-se frequentemente um eu impessoal,
do momento em que produzo, em que escrevo, é o próprio texto
abstrato, incorporai - com o se uma obra de arte pudesse nascer
que me despossui (felizmente) de minha duração narrativa .
espontaneamente do nada. A sedução da impessoalidade convence
uma parte da crítica literária a banir toda leitura biográfica: para O segundo ponto, concernente à capacidade da biografia de
o assim chamado New Criticism, a personalidade e as emoções do restituir as relações humanas próprias à modernidade, é formulado
em termos particularmente claros por Virginia W oolf. Filha de
artista contam tanto quanto a cor de seus cabelos; o que importa é
Leslie Stephen, o editor do Dictionary o f National Biography, amiga
a obra. William K. Wimsat e M onroe C . Beardsley afirmam-no
de Strachey e de Harold Nicolson, ela sublinha, em diversas ocasiões,
sem desvios em 1946: as questões concernentes ao desígnio do autor
são falaciosas. Donde a acusação de intentionalfallacy: “ Avaliar um que a psicologia humana mudou:
poema é a mesma coisa que julgar um pudim ou um aparelho”. A N ão quero dizer aqui que saímos uni belo dia, com o se sai num
obra de arte só funciona e só é compreensível quando despojada jardim para ver que uma rosa floriu ou que uma galinha pôs
de todo traço de subjetividade — do autor e do crítico. C om o se
faz com os grumos de um pudim: “O poema não pertence nem
" M o n ro e C . Beardsley, “ T h e Intentional Fallacy” , in W illiam Kurtz W inisat and M .C . Beardsley, T h e
Verbal leon. Studies in lhe M eaning ofP oetry (1 9 4 6 ). Lexington. U m v eroty o f K entucky Press, 1 954, p. 4 -5 .
41 R o la n d B a rth es, “ La m o rt de l'a u te u r " ( 1 9 6 8 ) , in L e Bruissem ent d e la langue, P a n s, É d m o n s du
M areei Proust. C on tre S am te-B eu v e (190H ), p a m . G allm iard , 1 9 5 4 p 1 2 2
S eu il, 1 9 8 4 A id eia de a m p u ta r a litera tu ra d o in d iv íd u o é ig u a lm e n te ela b o ra d a p o r R o la n d
Ibid., p. 1 6 8 -1 6 9 .
B a rth es in " H is to ir e o u litté r a tu r e ? ". Swr R acin e. Paris. É d itio n s D u S e u il, 1 9 6 5 . C f . na m esm a
Ib id ., p. 131
o rd e m de ideias, Pau l d e M a n , “ A u to b io g ra p h y as D c - f a c c m e n t ( 1 9 7 9 ) , T h e R h eío ric o f R i
I h d ., p. 127.
m a n tiasm , N e w Y o r k , C o lu m b ia U m v e m t y P ress. 1 9 8 4 , q u e d e fin e a e sc ritu ra b io g rá fica c o m o

um a o p e ra rã o d c tra v e stism o .
C“ re' 0m a ° tÍ,U )0 de “ m llvr° * J o h n R a n s o m , 7 7 ., N e w C n ticism (1 9 3 9 ).
M 11 ° n n )> re en w o o d Press, 1 9 7 9 . Cf Ja cq u e s B a rz u n . "B io g r a p h y and C n tic is m - a R olan d Barthes par R olan d B ,m hes, Pans, Éd m on s du S eu il, 1 9 7 5 , p. 6 . C f. Fran çoise G aillard, “ R o la n d
M isallian ce D isp u te d ". C n nccl Inqu.ry. 1 9 7 5 . 1. 3 . p. 4 7 9 - 4 9 6 . Barthes: le b io g rap h iqu e sans la bio g ra p h ie” , R ev u e des sciences hum aines, 1 9 9 1 , 2 2 4 , p. 8 5 - 1 0 3 .

28 o o
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia a h is t ó r ia O LIMIAR BIOGRÁFICO

um ovo. N ão, a mudança não foi tão súbita, tão nítida. Não National Biography, a duração da vida humana não é talvez tão
obstante, houve uma mudança e, já que não podemos precisar evidente quanto parece e nem sempre coincide com a escansão
melhor, datem o-la do ano de 1 910. [...] Todas as relações hu­ nascimento e m orte biológica... Sem dúvida, as possibilidades
manas se alteraram: entre mestres e servidores, entre marido mentais (inclusive aquelas que concernem ao tempo e ao espaço)
e mulher, entre pais e filhos. E quando as relações humanas
são bem mais vastas e profundas do que os fatos venerados pelos
mudam, há ao mesmo tem po uma mudança na religião, na
biógrafos: “U m a biografia é vista com o completa quando dá conta
conduta, na política e na literatura.43
simplesmente de cinco ou seis eus, quando um ser humano pode
Ora, a biografia está em condições de encarar tal mudança? Pode ter milhares deles” ...45 C om mais forte razão, quando a pessoa em
dar lugar a uma nova forma de narração capaz de exprimir as con­ questão passa seu tempo a pensar em lugar de agir.
tradições da vida? A questão está longe de ser simples e é abordada Mas que pode fazer o biógrafo quando seu herói o colocou
inicialmente em termos literários. na situação em que nos coloca agora Orlando? A vida —todos
Flush escora o projeto irreverente da new biography: o herói aqueles cuja opinião tem algum peso estão de acordo quanto

não é nem um homem célebre nem um hom em qualquer, mas a isto - a vida é o único tema que convém ao romancista ou
ao biógrafo; viver, decidiram as mesmas autoridades, não tem
um Cocker ruivo, o cão da “mais célebre poetisa da Inglaterra,
nada em com um com se sentar numa poltrona e pensar. [...]
Elizabeth Barret, a adorada em pessoa”; e suas peregrinações são um
Se portanto o herói de uma biografia não consente nem em
pretexto para denunciar o profundo fosso (higiénico, arquitetural, amar nem em matar, e se obstina em querer apenas pensar e
económico e cultural) que separa o mundo respeitável de Wimpole imaginar, devemos concluir que ele, ou antes que ela não vale
Street do bairro miserável de W hitechapel, formado “de espécies mais do que um cadáver, e abandoná-la.46
de estrebarias em ruína onde rebanhos de seres humanos viviam
sobre rebanhos de vacas à razão de dois metros quadrados para As considerações sobre os limites da verdade biográfica são
cada duas pessoas” .44 Orlando, escrito dois anos antes, é um livro ainda o objeto de vários ensaios: The Lives o f the Obscure, The Neu>

bem mais ambicioso. Ele toma a figura do biógrafo, dedicado a Biography, The Art o f Biography. Este último coloca a questão em
reconstruir a vida de um indivíduo de seu nascimento até a morte. termos precisos: a biografia é uma arte? Por que produziu tão poucas
C om o se faz para contar a vida de uma pessoa que muda de sexo e obras primas imperecíveis? C om o pode ser que mesmo o doutor
de condição social, que um dia traja um costume cor de tabaco, à Johnson de Boswel tenha uma duração de vida menor que a do
maneira dos juizes, e no dia seguinte um peignoir chinês equívoco Falstaff de William Shakespeare? Por certo, a biografia é uma arte
ou ainda um vestido florido de seda? E que vive, com o se nada ainda jovem : “O eu que escreve um livro de prosa se manifestou
de especial houvesse nisso, durante quatro bons séculos, da época numerosos séculos após o eu que escreve um poema” . Mas não se
elisabetana a 11 de outubro de 1928, passando pela Restauração trata unicamente de inexperiência. De fato, “a arte da biografia é
r pelo úmido século X IX ? O que quer que diga o Diciotiary o f a mais restrita de todas as artes”. Os livros de Strachey são prova
disso. Enquanto sua obra sobre a rainha Vitória é particularmente

" V irgini.i W o o ll. M r B r,m el an d M n Broum ( 1 9 2 4 ) , in V A r l du rom an, trad u zid o d o inglês por
R o s e C e lli. Pans, E d itio n s du S e u il. 1 9 9 1 , p. 4 4 - 4 5 .
*■ V irgínia W o o lf, O rlando ( 1 9 2 8 ), traduzido d o inglês p o r C h arles M a u ro n . Pans. S to c k . 1 9 9 2 . p. 2 8 4 .
“ V irg in ia W o o lf. Flush, b u g rap h ie ( 1 9 3 0 ), traduzido d o m glês p o r C h a rle s M a u ro n , C íerm am e
' H»d., p. 2 6 3 . C f. F lo n a n e R e v ir o n , " O rla n d o " d e V irginia W o o lf ( 1 9 2 8 ) : u ne ríp on se i E m in en l
M a m a m e C o le tte -M a n e H u e t in L ’O eu vre rom anesqu e, Paris, S to c k , 1 9 7 9 , p. 2 9 - 6 2 . D e z anos
Yictorians?, in F ré d é rie R e g a r d (d ir.), lui B iogrtiphie littèraire cn Artgletcrrr ( X V I T - X X ). C on fig u ra-
A tp o.s, R o b e n M usil con sid era a possibilidade de esc rev e r a b .o g ra fia d e u m c o r v o : cf. T a Vebuchrr,
tions, rcconfiqurations du soi artistiqu e, S a in t- E tic iin e , P u b lica tto n s d e ! u n iv crsité d e S a in t E tie n n e ,
A p h on sm tn , E ssays und R e d e» , ed itado p o r A d o lf F n sé , H a m b u rg o , R o w o h l t V erla g , 1 9 5 5 . H eft
3 5 , p. 5 2 3 - 5 4 1 . 6 1 9 9 9 , p. 1 1 7 - 1 4 0 .
O PEQUENO x - D a b i o g r a f i a à h i s t ó r ia O LIMIAR BIOGRÁFICO

brilhante, aquela que consagra a rainha Elizabete é um verdadeiro inelutável: “É uma sujeição falaciosa a que nos dobramos” . Enfim,
fracasso, mas “parece que o fiasco é imputável não a Lytton Strachey, ela reduz a vida a uma séne de ações:
mas à arte da biografia. Em Victoria ele tratara a biografia com o uma O utro lugar comum absurdo quer que o indivíduo seja aquilo
técnica: submetera-se a seus limites. Em Elizabeth, tratou a biografia que fàz. Tudo aquilo de que temos medo, todos nossos desejos
como uma arte: desdenhou seus limites” . Virginia W o o lf atrai assim mais loucos, todas nossas angústias: é esse conjunto de coisas, que

a atenção para um ponto extremamente delicado: a impossibilidade nossa biografia não reflete, que faz a pessoa. Provavelmente um
indivíduo jamais fez isto ou aquilo porjamais ter ousado se amscar.
estética de conciliar os fatos e a ficção.
Mas mesmo se jamais teve a coragem, o que não fez é talvez tão
A biografia impõe certas condições, e estas implicam que ela importante quanto aquilo que fez. Quero dizer que a diferença
deve se fundar nos fatos. E, por fatos, entendem os fatos que entre as coisas feitas e as coisas não feitas não significa que aquelas

podem ser controlados por outras pessoas além do artista. Se o são verdadeiras e estas não. [...] U m sonha em ser Nero e reduzir a
cinzas toda a cidade de Zurique, o outro quena apenas ser campeão
biógrafo inventa fatos co m o os inventa um artista — fatos que
de boxe e isso também faz parte dele, mas nem um é Nero pondo
nenhuma outra pessoa pode controlar — e tenta combiná-los
fogo em Zurique nem o outro jamais ganhará uma luta de boxe.4*
com fatos de outro tipo, eles se destroem reciprocam ente.

Existe um limite necessário que deve ser respeitado:


III
U m a vez que o personagem inventado vive num mundo
livre onde os fatos são controlados por uma única pessoa — o
A fronteira que separa a história da biografia também se mos­
próprio artista —, sua autenticidade reside na verdade de sua trou incerta e conflituosa. As razões são diferentes daquelas alegadas
visão. O mundo criado por essa visão é mais raro, mais intenso, pelos romancistas. Concernem essencialmente à qualidade científica
inteinço em relação ao m undo que é em grande parte feito de da verdade. Tucídides manifestava um desprezo absoluto pela bio­
informações autênticas fornecidas por outros. P or causa dessa grafia: em seu programa de uma historiografia exata, impessoal e
diferença, os dois tipos de fatos não se misturam; se eles se universal, deixava bem pouco lugar para um género narrativo que
tocam, se destroem. N inguém , parece ser a conclusão, pode buscava agradar um público popular. Dois séculos mais tarde, Políbio
obter o melhor dos dois mundos. escreve que a história biográfica, fundada sobre os meios do teatro
trágico, confunde poesia e história. Suas considerações provem de
A vida da biografia é, por conseguinte, diferente da vida da poesia
uma discussão mais ampla, aberta no seio da historiografia grega, que
e do romance, é uma vida vivida num grau de tensão inferior”.47
via o ideal do verdadeiro com o oposto àquele do verossímil procurado
Ao longo do século X X , essas reflexões vão angariar o sufrágio pelo sofista Gorgias: à diferença do que haviam sustentado certos
de numerosos romancistas. Max Frisch recordou a inevitável pobreza historiadores dos séculos IV e III a.C (tais com o Filarco ou Duris
estrutural do género biográfico. Fiel aos fatos, a biografia achata a de Samos), preocupados em dramatizar o relato, Políbio pretende
vida. compreendemos bem melhor um indivíduo “contando enor­ estabelecer e transmitir uma verdade objetiva.49 A distinção entre
midades de toda espécie . Em segundo lugar, ela dá uma imagem a história e a biografia é por vezes também reivindicada pelos pró­
demasiado necessária da realidade, com o se o fato o com d o fosse prios biógrafos. Na época imperial, Plutarco demonstra bem pouco

V irg ín ia W o o lf, T h e A rt o f B io g r a p h y ". A tlan tic M o n th ly , 1 9 3 9 . C L X I I I , p 5 0 6 - 5 1 0 . C f. M ax F n x c h , " L ’io n f iu ta to " , U n e a d 'om bra" t 1 9 9 6 , 1 1 9 , p. 2 0 - 2 9 .
ig ualm en te V irg ín ia W o o lf, “ T h e L.ves o f th e O b s c u r e ” . m . D ia l, 1 9 2 5 . L X X V 1 I I . p. 3 8 1 - 3 9 0 ;
A rnaldo M o n u g lu n o , L a N aissance d e la biographie en G rèce anciennt’ ( 1 9 7 1 ) , traduzido d o inglês por
rgm .a W o o lf, T h e N e w B .o g ra p h y ", N r w H e r M T rib„ n e . 3 0 d e o u tu b ro de 1 9 2 7 , reto m a d o
Estelle O u d o t, S trasb ou rg , C ir c é , 1 9 9 1 .
em C ran.tr an d R ain bow , Lon dres. H og arth Press, 1 9 5 8 . p. 1 4 9 - 1 5 5 .
O PEQUENO x - D a b i o g r a f i a à h i s t ó r ia
O LIMIAR BIOGRÁFICO

interesse pelos fatores estruturais e reivindica o primado dos signos legítima de escritura histórica. N o século XV II, Thomas Stanley,
da alma sobre a etiologia política: filólogo inglês conhecido por sua edição crítica das tragédias de
Esquilo, chega ao ponto de definir a biografia dos legisladores, dos
Não escrevemos Histórias, mas Vidas, e não é sempre pelas ações
mais ilustres que se pode trazer à luz uma virtude ou um vício;
condottieri e dos eruditos com o a forma mais elevada de história.53
muitas vezes, um pequeno fato, uma palavra, uma bagatela, Que o destino individual dos homens ilustres permite compreender
revelam melhor um caráter do que os combates mortíferos, os as escolhas de uma nação é um ponto de vista a que adere também
confrontos mais importantes e os cercos das cidades. Os pintores, a maior parte dos pensadores do século seguinte. David Hume
para captar as semelhanças, fundam-se no rosto e nos traços da sustenta, assim, que a espiritualidade pessoal de Carlos I arruinou a
fisionomia e quase não se preocupam com as outras partes do corpo; causa absolutista na Inglaterra. Alguns decénios mais tarde, é a vez
que nos permitam também, da mesma maneira, agarrarmo-nos
de Voltaire. Ainda que não celebre nenhum culto dos heróis, estima,
sobretudo aos signos que provêm da alma e nos apoiarmos neles
todavia, que as grandes almas permitem reconhecer as surpresas da
para retraçar a vida de cada um destes homens, abandonando a
outros os acontecimentos grandiosos e os com bates.50
história, esses acontecimentos imprevisíveis, tão determinantes num
domínio em que o que é verossímil nem sempre advém.54
As proposições dos pensadores da Antiguidade conheceram fortu­
Assim, durante séculos, sucedem-se os mesmos conflitos de
nas diversas junto aos historiadores modernos. A desconfiança em rela­
confins. Depois, quando o pensamento histórico atinge seu apogeu,
ção à biografia é assim reiterada em 1599 por John Hayward, apelidado
a fronteira entre biografia e história se incendeia sob o impulso de
de o "tácito inglês”, que, em seu livro Life and Reigne o/K ing Hetirie III,
três forças dessemelhantes que fazem da totalidade a categoria ex­
exorta a não confundir “o governo das grandes nações” com “a vida e
plicativa do devir histórico.55
os feitos de homens célebres”.31 U m século mais tarde, Thomas Bur-
net, capelão de Guilherme III, atribui um lugar importante à história, A primeira dessas forças é de caráter político. Após a afirmação
mas reconhece apenas um valor secundário, ornamental, à biografia: do povo com o sujeito social, a história biográfica se reveste de uma
tonalidade elitista que se choca contra o desejo de fraternidade e
As vidas dos filósofos, os nascimentos, as mortes, os elogios, igualdade. Na “Introduction à La Philosophie de Vhistoire de Vhumanitè
as viagens, as ações boas ou más e outras coisas do mesmo de Herder”, Edgar Quinet o exprime claramente: “O despotismo
género completam e embelezam a matéria, mas são de pouco
reduzira a história a uma forma degradada de biografia”.56 Contra
peso, pois trata-se aqui de buscar os germes e os progressos do
a versão monárquica da história, Jules Michelet prega o heroísmo
conhecim ento humano e o governo da Providência.52
coletivo: as massas são o verdadeiro sujeito da históna, enquanto
No entanto, a separação proclamada por Políbio entre biografia “que os grandes nomes fazem poucas coisas, que os pretensos deu­
e história nem sempre é aceita. N o século VIII, Beda, o Venerável, ses, os gigantes, os titãs (quase sempre anões) só enganam quanto a
escreve que a biografia nada mais é do que a história observada de
mais perto; e na época moderna, os principais trabalhos de paleo­
u S o b re a h istoriog rafia da Idade M é d ia e da R e n a s c e n ç a , cf. D o n a l R . K e lle y , F ou n d ation s o fM o d e m
grafia, de diplomática e de historiagrafia (de Jean Bodin a Agostino H istorical Scholarship. L atigu age, Ltiw an d H istory in th e Frettíh R enaissattce, N e w Y o rk -L o n d re s , C o -
Mascardi e a Mably) tomam a biografia por uma forma perfeitamente lum bia U n iv ersity Press, 1 9 7 0 , X 1 L - 3 7 0 ; D em s H ay , A nnalists an d H istorians. W estern H istoriography
Jrom the E ight to the E ig h teen th C en tu ries, L o n d res, M e th u e n & C o ., 1 9 7 7 .
* S o b re a h istoriog rafia das Lu zes, cf. F n e d n c h M e in e c k e , D ie E ntstehung des H istonsm u s (1 9 3 6 ),

Plu tarq ue, Vies parallèles, Pans, GaLlimard, 2 0 0 1 , p. 1 2 2 7 . M u n iq u e , R . O ld e n b o u r g , 1 9 6 5 , cap. II, IV e V .

C f. J o h n G arraty, T h e N alu re o f Biography, op. r ir , p. 7 0 . ‘5 C f. Ju d ith S ch la n g er, L es M étap h ores de forg a n ism e, Pan s, V rin , 1 9 7 1 .
Edgar Q u in e t, “ In tro d u c tio n à L a P h ilosop h ie d e r h is t o in de r h tím a n itê de H e r d e r ". in O euvrrs
C f. M a n o L o n g o , H isloria p h ilosop h ia e ph ilosop h ira: teorie e m elo d i d elia sloria delia filosofia Ira Seiceiito
. t S ellecen lo, M ilan , IP L , 19H6, p. 3 9 . com plètes. Paris, P a g n e rre É d ite u r, 1 8 5 7 , p. 3 4 8 .
O PEQUENO x - Da b o g r a f i a à h is t ó r ia O UMJAR BIOGRÁFICO

seu tamanho içando-se por fraude sobre os ombros dóceis do bom entre os indivíduos constitui uma sequência unitária e homogénea
gigante, o Povo” .57 Ainda que em seu Diário se mostre bem mais de acontecimentos na totalidade da espécie: “Os homens, tomados
nuançado, a ponto de escrever, em 30 de março de 1842: “Errei individualmente, e mesmo povos inteiros, nem imaginam que per­
ao ligar demais este princípio (a humanidade é sua própria obra) ao seguindo seus fins particulares em conformidade com seus desejos
aniquilamento das grandes individualidades históricas”,5Mele persiste, pessoais, e muitas vezes em prejuízo de outrem , conspiram, à sua
nas suas obras históricas maiores, reivindicando a natureza coletiva, revelia, com o desígnio da natureza” .61
frequentemente impessoal, do povo: A preponderância de uma visão teleológica da história con ­
tribui ainda mais para reduzir o alcance do aspecto biográfico.
Está aí a primeira missão da história: encontrar, através de
pesquisas conscienciosas, os grandes fatos da tradição nacional. Após ter confirmado a unidade a priori da história, Fichte nega
Esta, nos fatos dominantes, é muito grave, muito segura, de uma o valor autónom o do singular em face do universal: somente o
autoridade superior a todas as outras. [...] Q uem poderia dar o progresso da espécie conta, não a vida dos indivíduos. A contece
mesmo peso a essas vozes individuais, parciais, interessadas, que o mesmo com Hegel para quem a materialidade da existência
à voz da França? [...] Sem negar a influência possante do gênio
deve ser sacrificada em beneficio do W eltplan: os indivíduos for­
individual, não há dúvida de que, na ação destes homens, a parte
mam uma massa supérflua e não devem eclipsar os objetos dignos
pnncipal se deve entretanto à ação geral do povo, do tempo,
do país. [...] T od o estudo individual é acessório e secundário
de história. Quando os acontecim entos do mundo, até os mais
diante desse profundo olhar da França sobre a França, dessa distantes ou aberrantes, são dialeticamente integrados numa pers­
consciência interior que ela tem do que fez.59 pectiva teleológica (o desenvolvimento infinito e necessário do
género humano), os indivíduos (mesmo os grandes personagens
Michelet não está isolado. Durante a Restauração, a intimação de
históricos, que coincidem com o universal superior, com o Cesar
Anacharsis Cloots, “França, tu serás feliz quando estiveres curada
ou Napoleão imortalizado no campo de batalha de Iena) podem
dos indivíduos” , colocada em epígrafe ao Tyran, é retomada por
ser compreendidos com o instrumentos da razão que cumprem
outros historiadores como Auguste Mignet ou Augustin Thierry.*'"
seus desígnios mesmo sem com preendê-los:
A segunda força procede da filosofia. Em seu curto ensaio
sobre a finalidade da história, escrito em 1784, Kant descreve o Aquilo a que os indivíduos que marcam a história tendem
inconscientem ente não é o que querem conscientem ente, mas
homem como um meio pelo qual a natureza realiza seus fins, e
alguma coisa que é-lhes necessário querer sob o efeito de uma
afirma que a história deve se elevar acima do indivíduo e pensar pressão que parece ser cega e que, no entanto, vê mais longe
em grandes proporções, pois o que se revela confuso e irregular que os interesses pessoais conscientes. E a razão pela qual tais
homens realizam aquilo que é almejado através deles, dando
provas de uma com preensão instintiva. Agem de maneira
Ju le s M ic h e le t. H istoire rom aine (1 8 3 3 ). in O eiw res C om p lètes, so b a d ire çã o de Pau l V iallan eix e
histórica, empurrados pela potência e pela “astúcia da razão"
R o b e r t C asanova, Paris, F lam m an o n , 1 9 7 2 . t. II, p. 3 3 5 .
(List der Vemun/t), que é o conceito racional da providência.'’2
Ju le s M ic h e le t, Jou rn a l, sob a d ireção de Paul V ialla n e ix e C la u d e D ig e o n , Paris, G a llim a rd , 1 9 5 9 ,
p ->411 N o p refácio a sua tradução das obras escolh idas d e V ic o , M ic h e le t escrev ia : " A palavra da
S a e " ' a m40v‘>c; * h um anidade é sua próp n a o b ra ... A ciê n cia social data d o dia e m q u e essa grande
deia foi expressa pela prim eira vez. A té en tão a h u m an id ad e acred itava d e v e r seus progressos aos Im m anu e) K a n t, Id ée d ’une histoire u niverselle au poittt de vue cosm opolitiqu e ( 1 7 8 4 ) , in L a P h ilosop h ie

ca os do g én io individual . C f. G iam battista V ic o , Príncipes d e la p h ilo so p h ie d e 1’histoire, Paris, J de I histoire, traduzido d o a lem ã o p o r S te p h a n P io b e tta , Paris, D e n o é l- G o n th ie r , 1 9 4 7 , p. 2 6 - 2 7 .
R e n o u a rd , 1 8 2 7 . Sob re a particularidade d o tin alism o k a n tia n o , ct. Lu d w ig L an d g rebe, P lian om en ologie und G eschichte,

Ju le s M ic h e le t, H ,stoire de la R h o lu tio n Fran(aise (1 8 4 7 ) , P an s. G a llim a rd , 1 9 5 2 , p. 2 8 6 - 2 8 8 . G iiterslo h , G iite rs lo h e r V erlag sh aus G e rd M o h n , 1 9 6 8 , cap. III.
Karl L ò w ith , H istoire et salut. L es présupposés théologiques de la ph ilosop h ie de 1'histoirv ( 1 9 4 9 ) , traduzido
U J y ra"- P « fa c e de 1 8 6 9 , ,n H istoire d e la R èv olu tion F rançaise, op . rir., p 1<><>4.
do alem ão p o r M a n e - C h n s t in e C h a llio l-G iU e t. S y lv ie H orctel e Je a n -F r a n ç o is K e rv ég a n , Pan s,
ce («erard, Le grand h o m m e et la c o n c e p tio n d e 1'h istoire au X I X ' s iè c le ” , R om an tism e.
evue du d ix .n eu v iim e siicle, n u m é ro special " L e grand h o m m e ” , 1 9 9 8 , n. 1 0 0 , p. 3 1 - 4 8 . G allim ard, 2 0 0 2 , p. 8 3 - 8 4 .
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia O UM1AR BIOGRÁFICO

Com o observou Karl Lõwith, o marxismo não constitui uma A última força é aquela da ciência. C om o pressente Johann
ruptura em relação à filosofia clássica alemã quanto a esse ponto: “O Gustav Droysen, “nossa disciplina mal se liberou do enlace fi-
princípio mais geral de Marx é o mesmo de Hegel: a unidade da ra­ losófico-teológico e eis que as ciências da natureza já querem se
zão e da realidade, da essência universal e da existência particular”.63 apropriar dela” .65 Na realidade, mais do que da ciência, o perigo
Nessa concepção teleológica do devir com o trabalho gradual provém, sobretudo, de certas disciplinas sociais nascentes, com o
através do qual a humanidade realiza seus fins superiores, o indivíduo a demografia ou a sociologia, desejosas de adquirir um estatuto
é inteiramente submetido à lei. Uma lei dramática e implacável, pois científico incontestável.
que isenta de elementos acidentais. A omissão da pessoa coincide quase Nos anos 1830, Adolphe Quételet foija a noção de homem
sempre com a negação do acaso ou, pelo menos, com sua marginali- médio, na esperança de elaborar uma mecânica social que estivesse em
zação tendencial: o resultado da batalha de W aterloo foi certamente condições de definir as leis que regem a física, intelectual e moral: “O
condicionado pelas chuvas torrenciais que caíram na noite de 17 para homem que considero aqui é, na sociedade, o análogo do centro de
18 dejunho de 1815, mas essas gotas de água foram enviadas pelo deus gravidade no corpo; é a média ao redor da qual oscilam os elemen­
da História... Victor Hugo exprimiu de maneira poética esse tipo de tos sociais: será, se assim quiserem, um ser fictício para quem todas
expectativa fundada no papel da Providência. Após ter contado que as coisas se passarão em conformidade com os resultados médios
Oliver Cromwell queria ter partido para a Jamaica, e Mirabeau, para obtidos pela sociedade.66 Essa noção de homem médio acarreta o
a Holanda, mas que um veto régio os obrigara a renunciar, comenta: sacrifício oficial de tudo o que é demasiado particular ou anómalo:
Ora, drai Cromwell da revolução da Inglaterra, tirai Mirabeau Devem os, antes de tudo, perder de vista o hom em tomado
da revolução da França, tirais talvez, das duas revoluções, dois isoladamente, e considerá-lo unicamente com o uma fração da
cadafalsos. Quem sabe se a Jamaica não tena salvo Charles I, e a espécie. D espojando-o de sua individualidade, eliminaremos
Batávia Luís XVI? Mas não, é o rei da Inglaterra que quer guardar
tudo o que é apenas acidental; e as particularidades individuais
Cromwell; é o rei da França que quer guardar Mirabeau. Quando
que têm pouca ou nenhuma ação sobre a massa se apagarão por
um rei está condenado à morte, a providência venda seus olhos.
si mesmas e permitirão apreender os resultados gerais.57

Em suma, por trás do acaso, há sempre a mão de Deus:


Ao longo dos decénios seguintes, a ideia de homem médio angana
E! Quem não sente que nesse tumulto e nessa tempestade, no numerosos sufrágios. Convencidos de que os seres humanos não se
meio desse combate de todos os sistemas e de todas as ambições esquivam à lei universal de causalidade, Henry Thomas Buckle, Grant
que faz tanta fumaça e tanta poeira, sob esse véu que esconde Allen, Paul Mougeolle, Louis Bourdeau, Paul Lacombe se debruçam
ainda dos olhos a estátua social e providencial apenas esboçada, sobre a força das pressões exteriores, especialmente de ordem geográfica,
atrás dessa nuvem de teorias, de paixões, de quimeras que se
e apresentam os seres humanos como formigas que tecem anonima­
cruzam, se chocam e se entredevoram na espécie de luz brumosa
mente a trama da vida social (a exemplo das células que reconstituem
que rasgam com seus clarões, através desse barulho da palavra
humana que fala ao mesmo tempo todas as línguas por todas
as bocas, sob esse violento turbilhão de coisas, de homens e
Jo h a n n G ustav D ro y se n , H isto h k . D ie Vorlesungcn von 1 8 5 7, cd . P o r P . L e y h , S tu ttg a rt-B a d C o n sta tt,
de ideias que chamamos o século dezenove, alguma coisa de 1 9 7 7 ; T ex te sur C eschichtstheorie. M it untfedm cktcn X íalen alen zu r " H isío n k , cd . P o r G . U irtsch e J .
grande se cumpre! Deus permanece calmo e executa sua obra.M R iis e n , G õ ttin g e n , 1 9 7 2 , p. 16.
A dolphe Q u é te le t, S u r 1‘h om m e et le d tv elop p em en t d e ses facultés ou E ssai d e p h y siq u e s oaate, P an s,
B a ch e lier. 1 8 3 5 , p. 2 1 .
Ibid., p. 7 7 .
Ibid., p 4. S o b re a n o ç à o d e h o m e m m é d io , cf. M a u ric e H a lb w a ch s, L a T h éorie d e I h om m e m oyen .
E ssai sur Q u ételet et la statistiqu e m orale. Paris, F. A lca n , 1 9 1 3 ; G u illa u m e L e B la n c , L Esprit des
e u b h e p a r 'A n Í ó n ^ R W j" ^ ' 7 ° ' ^ ‘,é ,a ,u ,e e l p h i ^ o p h i e m flées, cd m o n c n t.q u e
r Jam es, t. II, 1 ans, K lin ck sie ck , 1 9 7 6 , p. 2 8 5 , 3 3 1 . Sciences h u m aines, P a n s, V rin , 2 0 0 5 , p. 1 6 4 - 1 7 4 .
O LIMIAR BIO GRÁFICO
O PEQUBMO X - D a BIOGRAFIA à HISTÓRIA

os tecidos orgânicos).68 Segundo Herbert Spencer, o mesmo se dá em capítulo de The Study o f Sociology, Spencer constata que Newton não
relação aos grandes homens: “N o mesmo grau que toda a geração de podena ter nascido numa família de Hotentotes, Milton entre os in­
sulares de Andaman, um Howard ou um Clarclcson nas ilhas Fiji. Até
que forma uma pequena parte —no mesmo grau que as instituições, a
aí, o raciocínio nada tem de surpreendente: como acabo de assinalar, as
língua, a ciência e os costumes - no mesmo grau que a multidão das artes
considerações relativas ao meio estão longe de ser novas. Mas, algumas
e que suas aplicações, [o gênio] não é mais do que uma resultante de
linhas adiante, o meio se reveste das marcas da raça física: “E impossível
um enorme agregado de forças que já agiram juntas durante séculos”.69
que um Anstóteles provenha de um pai e de uma mãe cujo ângulo
Em tal perspectiva, a ciência deve explicar o homem médio de cada
facial meça cinquenta graus, e não há a menor chance de ver surgir um
raça, renunciando às variações morfológicas e às diferenças individuais:
Beethoven numa tnbo de canibais cujos coros, em fàce de um festim
por mais importante que seja uma pessoa, seus pensamentos e suas ações
de carne humana, se assemelham a um grunhido rítmico”.71 E não é
não apresentam nenhum interesse histórico. Por um deslizamento lin­
tudo. A cunosidade biográfica é descrita como um fenómeno tribal,
guístico significativo, os “signos que provêm da alma” de Plutarco, já
típico das pnmeiras raças históricas: os afrescos dos egípcios, a pintura
rebaixados à categona de anedotas por Hegel, tomam-se idiossincrasias
mural dos assírios ou a epopeia grega nos ensinam “incidentalmente
pessoais a nivelar, e mesmo a eliminar. Com o escreve John Fiske, autor
que havia cidades, barcos de guerra, carruagens de guerra, marinheiros,
de numerosos livros de história dos Estados Unidos, será possível assim soldados a comandar e a massacrar; entretanto, a finalidade direta é pôr
realizar uma grande revolução histonográfica: em evidência os triunfos de Aquiles, as proezas de Ajax, a sabedoria
A partir da metade do século X I X , a revolução desencadeada no de Ulisses e outras coisas análogas”.72 Pouco a pouco, a ideia de que
estudo do passado foi tão grande e tão total que se assemelha à o pensamento abstrato, impessoal seria um dos caracteres salientes das
revolução realizada na biologia, sob o com ando do Sr. Darwin. civilizações supenores, toma-se uma convicção coletiva.7'
O intervalo no conhecimento que separa o trabalho de Edward O segundo elemento digno de interesse remete à dupla leitura
Freeman [o historiador dos Normandos] em 1880 daquele de de Darwin. Fiske a mobiliza com fins antibiográficos: tudo o que
Thomas Babington Macaulay em 1850 é tão profundo quanto é individual se reveste, para ele, de um aspecto superficial e apres­
o intervalo que separa John Dalton e H um phry Davy dos ini­ sado. Outros autores, entretanto, remetem-se à teoria da evolução
ciadores do flogístico. Nos trabalhos mais importantes oriundos
para reduzir o alcance do determinismo geográfico. E o caso de
dessa imensa mudança —com o aqueles de Sir Henry Maine e de
William James em dois breves ensaios escritos nos anos 1880 em
William Stubbs, de Fustel de Coulanges e de Maurer —a biografia
que sublinha que, a exemplo justamente da variação espontânea,
ocupa um lugar subordinado ou não desempenha papel algum ."
o gênio é a única e verdadeira causa da mudança social. Sustenta,
No seio desse debate, dois elementos merecem ser evocados. Em por outro lado, que, longe de desempenhar papel determinante
primeiro lugar, o peso da reflexão sobre a raça. O caso mais interes­ na produção das qualidades humanas, as condições ambientes têm
sante l sem dúvida alguma aquele de Spencer que, durante a guerra apenas uma função de seleção: “Afirmo que, de maneira geral, o
anglo-boer, acusa o governo inglês de re-barbarization. N o segundo meio ambiente é exatamente, em relação ao homem de gênio, o
que ele é em relação às ‘variações’ da filosofia darwinista. O meio

" I n " ? rT h ° m “ u UCklC H 'S'0ry ° f B x g lon d . L o n d res, J o h n W . P a rk er & S o n . 1 858,


w ,l i N an o n M a k ln g . G em lem an j M a g azin e, 1 8 7 8 (re to m a d o em P o p u l a r Science H erbert S p e n c e r, íntroduction íJ la science s o a a le , op . rif., p. 3 6 .
■ P 1 2 , ' 1 2 6 ); G ra m A1,en' “ T h e G e n « ls ° f G e n iu s " . A .lan ttc M on .h ly , 12 Ibid ., p. 3 2 .
L o .m r w , 4 c P .'■ '.L '*1 Paul M o U g e o lk U s ‘ ^ l è m e s d e rh is lo ire , P a n s, C . R c in w a ld , 1 886;
E ncontram os esta ideia ig u alm en te em Ed w ard H . C a rr in Q u'est-ce que Chisioire? C otifhertces pw noncés
Paru F AL- " i uut>" t f " ^ *,lslonens
E ssai critique sur 1'hisioire considérée c o m m f science positivt*
á IV n iv ersitê de C am brid g e ( 1 9 6 1 ) trad u zid o d o inglês p o r M a u d Sissun g, Paris, La D é c o u v e rte ,
„ . ............. JU‘ L jc o m b e ' D f 1’h is lo in considérée com m e Science, P a n s, H a c h e tte , 1 8 9 4 .
1 988. S o b re a p retensa su p erio rid a d e d o p e n sa m e n to a bstrato, cf. G e o rg e L. M o sse, T o u w d the
» 1 1 " Sp” “ " ^«roduction d la science s o a a le (1 8 5 3 ) . P an s. b a illie re , 1 8 7 7 , p. 3 6 .
F in al S olution. A H istory o j E u rop ean Rticism , L o n d res, D e n t, 1 9 7 8 .
« ■ e, ‘S o c io lo g y and H e r o -w o rs h ip ", A tlan tic M onthly, ja n e ir o 1 8 8 1 , p. 8 1 .
O LIMIAR BIOGRÁFICO

tem por principal resultado o de adotar ou rejeitar, de preservar ou O político, o individual e o cronológico (denunciados com o os três
destruir, em uma palavra, de escolher o grande hom em ” .74 “ídolos da tnbo dos historiadores”) devem ser substituídos pelos fatos
Embora não apreciando muito o determinismo extremo de de repetição, as regulandades, os fatos típicos: “A regra é aqui, como
Buclde, de Spencer ou de Bourdeau, certos sociólogos se alinham nas outras ciências positivas, seguir as abstrações felizes, isto é, aquelas
com a ideia de afirmar, de uma vez por todas, a impessoalidade como que levam a estabelecer, aquelas que servem para colocar em evidência,
cntério fundamental de cientificidade. Na França, Émile Durkheim regularidades”.™ Para ele também, a causalidade histórica não provém
reconhece aos grandes homens uma função política importante: mais da motivação, e sim da lei: “O estabelecimento de uma ligação
"Um a sociedade em que o gêmo fosse sacrificado à massa e a não causal se faz não entre um agente e um ato, não entre um poder
sei que amor cego por uma igualdade estéril, condenaria a si mes­ e um resultado, mas entre dois fenómenos exatamente de mesma
ma a uma imobilidade que não difere muito da m orte”.73 Mas os ordem; ele implica uma relação estável, uma regularidade, uma
considera como elementos perturbadores para as ciências sociais, lei”.7'1Só existe então relação causal se há regularidade de ligação:
que devem estudar as maneiras de pensar, de sentir e de agir inde­ “O caso único não tem causa, não é cientificamente explicável” .81’
pendentemente dos indivíduos. Dessa convicção procede a famosa A ideia de edificar uma história impessoal seduz igualmente
confrontação entre fato social e estatístico: “C om o cada uma dessas certos historiadores alemães. Em 1896, Karl Lamprecht, fundador do
cifras compreende todos os casos particulares indistintamente, as Instituí fur die Kulturund Univcrsalgcschichtc da Universidade de Leipzig,
circunstâncias individuais que podem ter alguma parte na produção abstrai das ciências naturais um conceito normativo e absoluto de
do fenómeno se neutralizam mutuamente e, por conseguinte, não ciência e o estende a todas as disciplinas sociais. A fim de assegurar à
contribuem a determiná-lo". ' Esse ponto de vista é retomado, al­ história um estatuto científico irrefutável, almeja introduzir nela de
guns anos mais tarde, por François Simiand, portador de um projeto maneira sistemática o princípio de causalidade. Uma vez que a ciência
de unificação das ciências sociais. Embora reconheça a componente tem por tarefa conhecer o encadeamento necessário das causas e dos
interpretativa da história, Simiand sustenta que o historiador deve efeitos, presente uniformemente em todos os processos particulares,
estudar o que é objetivo, destacado da espontaneidade individual:
a história também deve se debruçar principalmente sobre aquilo
Uma regra de direito, um dogma religioso, uma superstição, que é comparável e típico. Essa é uma perspectiva que implica, para
um costume, a fornia da propriedade, a organização social, certa Lamprecht também, o sacrifício das diferenças: podemos, ou antes
visao do trabalho, certo procedim ento de troca, certa maneira devemos, renunciar a apreender no seio das coisas o que as separa,
de morar ou de se vestir, um preceito moral, etc. tudo isso me é para identificar o que as une. Por conseguinte, os indivíduos não de­
■lado, me é fornecido inteiramente constituído, tudo isso existe vem ser considerados com o seres particulares, dotados de um caráter
na minha vida independentemente de minhas espontaneidades
preciso, único, insubstituível, e menos ainda com o seres capazes de
próprias e algumas vezes a despeito delas.77
agir sobre o curso da história, mas antes com o amostras genéricas
equivalentes entre si, exclusivamente dominadas pelas ideias, pelos
w 'n 'I m " íam " ’ ■ ■ ri,"' M e " Jn d th eir E n v lro n m e n t"- A ilantic M o n lh ly . 1 8 8 0 , p. 2 9 5 . C f. tam bém impulsos, pelos sentimentos comuns ao grupo de pertencimento.
u d . in Z " * ! ’ J ' / ln ,p ortan ce individuais", O pfn C ou rt, 189(1. O s d o is te x to s foram reed i-
A diferença dos historiadores marxistas que privilegiam a noção de
T w ( ,8 9 7 ) * tradu" do do « * • p o r Loys M o u lin , P an s, F U m m a n o n . 191 8 .
trands h o n m ie s"'/ ^ , 11/ 0 / . P ° r H en n Ucrr. "L a m éth o d e staostiq ue et la qu estion des
t lasse, a unidade social determinante, capaz de explicar todo o resto,
É m ilr r t v r V h ^ n 1 Z J ’ Í ’ P’ 5 ^ 5 2 7 - ' ’ 5 ^ P ^
e Para Lamprecht a nação, não em seu sentido jurídico e estatal, mas
soeiale P am ÉHin a 5 ()mn,rí I histoire ( 1 8 8 3 ) , in T ex íes 1. É lem en ts d*une théorie
s o a a u , Ham, Edidons de M in u it, 1 9 7 5 , p. 4 (1 9-417.

p U s k ‘ * >n i r U so em ifiq u t ( 1 8 9 5 ) , 1’an s, 1>UF, 1 9 6 3 , p. 10. 11 ftid., p. 9]


rra n ç o u S im u iw l **M#rh.w 4, k. . F
«t . KO f r t r . nu* t . A^ ' ° ' M •P 95.
“ lbi à ; p. 105.
O PEQUENO x - D a b i o g r a f i a a h is t ó r ia O LIMIAR BIOGRÁFICO

na acepção romântica de organismo que evolui de acordo com as neutralizada da política se manifestam no curso dos anos seguintes,
próprias leis. Trata-se de um ponto de divergência interessante: o durante e após a Primeira Guerra Mundial, quando numerosos his-
conceito de nação não constitui mais uma individualidade, como tonadores da política se mostrarão incapazes de interpretar as graves
para muitos historiadores dos primeiros decénios do século X IX ; tensões sociais que abalam a Alemanha e, mais geralmente, a Europa.
ele representa aqui uma dimensão regular da vida histórica.81 É disso que se apercebe Eduard Spranger, um dos inspiradores da
Por certo, ao longo desse período, tampouco faltam diferendos morfologia histórica: após o fracasso da conspiração contra Hitler de
e alguns sentem repugnância em sacrificar o caráter concreto da exis­ 20 de julho de 1944, ele confia a Meinecke que “as ideias de Goethe
tência em nome da ciência. Mas muitos daqueles que defendem a não bastam para compreender o infemo que é o nosso hoje em dia”.85
natureza singular da história continuam a cultivar a retórica da grandeza Ao longo do século X X , o antagonismo, todavia nada evidente,
pessoal. Definitivamente, às forças sociais anónimas, tão exaltadas - em entre a históna social e a história política se endurece e se banaliza:
sentidos diferentes — por Simiand e por Lamprecht, revida-se com a pnmeira continua a cultivar sua vocação impessoal, a segunda a
os grandes homens políticos capazes de modelar os acontecimentos. propor personagens convencionais e monolíticos.86
Mesmo aqueles que não cedem à ideologia heróica sonham com in­
E provavelmente na França que a biografia foi mais vitupe­
divíduos improváveis, plenamente intencionais e livres. O primado do
rada.87 A batalha contra a história historicizante, travada nas páginas
grande homem é tanto mais alarmante na medida em que vai de par
da Reuue de synthèse historique, foi vencida pelos historiadores dos
com a predominância do político: só o Estado e, portanto, um pouco
Atmales, que se dedicam a apreender, para além dos acontecimentos
de história da civilização parecem dignos de consideração histórica.82
particulares, o substrato profundo da história: as estruturas sociais,
Como escreve ironicamente o historiador alemão Eberhard Gothein,
as representações mentais, os fenómenos de longa duração. Assim,
o leitmotw dominante incita a reservar aos historiadores políticos as
em pouco tempo a biografia se torna um dos símbolos da história
ações de envergadura, os feitos do Estado, e aos historiadores da cul­
tura a lixeira e o descarte (das Kchrichtfass tttid die Rumpelkammer).83 tradicional, da crónica de acontecimentos, mais preocupada com a
Numa época marcada por forte crescimento do poder do Estado e cronologia do que com as estruturas, com os grandes homens do
pela ascensão das massas à condição de sujeito político, os artigos do que com as massas. Para Marc Bloch e Lucien Febvre, o objeto da
Historische Zeitschrijt ignoram os problemas sociais (nenhuma alusão história é o homem, ou antes, “digamos melhor: os homens. Mais
à ralé, às fábricas, às famílias, aos subúrbios...) e rebaixam o político, do que o singular, favorável à abstração, o plural, que é o modo
identificando-o à ideologia manifesta e formal das instituições do gramatical da relatividade, convém a uma ciência do diverso”.88
Estado. Os perigos inerentes a uma definição tão idealizada e tão Mas os historiadores da segunda e da terceira geração dos Amtales
absorvem as tensões individuais no seio das estruturas coletivas de

Karl Lam precht. W as ist K u ltu rg esch ich te? b e itra g zu e in e r h is io n s ch e n E m p in k ” , in D eutsche
Z e,tschnf , } ur GeschuhtsuHssermhaft. 1 8 9 6 - 1 8 9 7 , I, p. 7 5 - 1 5 0 . S o b re a relação e n tr e a h istó n a social
Klaus E p stein , " F r i e d n c h M e i n e c k e , A u s g e w à h lte r b r i e f w e c h s e l ” , H isto ry a n d T h e o r y , 1 9 6 5 ,
e o nacionalism o é tn ic o ao lo n g o dos d e cé n io s seg u in tes, cf. Jiirg e n K o c k a , “ Id eo lo g ica l R e p re s - p. 85.
u o n and M eth od olo gicaJ In n o v atio n : H isto n o g rap h y and th e S o c ia l S c ie n c e s in th e 1 9 3 0 s and
Esquecendo a advertência de b ism a rck de 16 d e a b n l de 1 8 6 9 ao R eichstag da A lem an h a d o N o rte:
194Us , H istory an d M em ory, 1 9 9 0 , 2 , p. 1 3 0 -1 3 8 .
Em geral, exageram m u ito n unha in flu ên cia [...], m as, apesar de tu d o, n in gu ém te m na ca b eça exig ir
- u e m , c i l.iro. algumas e x c e ç ò e s im portan tes qu e escapam a essa c o n c e p ç ã o b e m polid a da b io ­
que eu faça a h istóna . Essa d eclaração é relatada p o r G h e o rg h i V . P lek h a n o v , L f de / individu
grafia política, basta m en cio n ar, ao lo n g o dos d e cé n io s seguin tes, o liv ro d e E m s t H K a n to ro w icz ,
ãtu ^ traduzido d o russo p o r L u cia e Je a n C a th ala, Pan s, N o u v ea u b u re a u d éd id o n , 1 9 7 6 .
l- Em pcreur F rédfnc II (1 9 2 7 ), Pans, G allim ard. 1 9 8 7 .
* Josef K onv itz, “ B io g ra p h y : T h e M issin g F o m i in F re n c h H is to n c a l S tu d ies , E u rop ean S tudies
^ Eberhard G o th e in , D ie A ufgaben der Kuhurgesrhichle, Leipzig, D u n k e r & H u m b lo t, 1 8 8 9 .
K ™ ™ , 1 976. 6 , p. 9 - 2 0 .
ntram os esta m esm a o rien tação em H istory an d B iography. Essays in H o n o u r o f D e r e k b e a les,
^ rC ^ o c h ' A p o log ie p o u r T h isto ire o u m é tie r d 'h is to n e n ( 1 9 4 9 ) , P an s, A n n a n d C o lin , 1 9 7 4 , p.
P 1 QQ^° ^ ^ C W B lan n in g e O avid C a n a d in e, C a m b n d g e . C a m b n d g e U n iv ersity
F íh .r e , esp e cia lm en te , foi sem p re m u ito sen sív el à d im e n sã o in d iv id u al, c o m o te stem u n h a m
biografias consagradas a M a r tin h o L u te ro e a R a b e la is .
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA À HISTÓRIA O LIMIAR BIOGRÁFICO

longa duração. Femand Braudel toma os acontecimentos por uma sociais numa miríade de existências particulares que possam ser em
simples “poeira, uma agitação de superfície” , e trata os indivíduos seguida combinadas no seio de conjuntos mais vastos: o objetivo “é
à maneira de um verniz, bnlhante, por certo, mas superficial, da conhecer bem a vida de milhares de indivíduos, um formigueiro em
realidade: fora algumas exceções (o papa Pio V ou Don João da sua totalidade, ver as colunas de formigas se estirarem em diferentes di-
Austna), os seres humanos parecem totalmente impotentes (Carlos reções, compreender suas articulações e suas correlações, observar cada
V se estabelece com o resultado da vontade “nacional”). Donde o formiga e, entretanto, jamais esquecer o formigueiro”.92 Porém, essa
acento posto sobre o que separa a históna biográfica daquela das concepção pontilhista - retomada principalmente pelos historiadores
estruturas e da história dos espaços, fundadas ambas sobre aquilo da Antiguidade romana93 e pelos especialistas na aristocracia inglesa94
que há de mais anonimamente humano.99 - se reveste muitas vezes de um caráter antibiográfico, na medida em
A desconfiança diante da dimensão individual não fica aliás con­ que a variedade do passado é sacrificada em nome das regularidades e
finada unicamente à históna social. Ao longo dos anos 1960 e 1970, em que os indivíduos parecem completamente submetidos às pressões
idade de ouro das grandes investigações da históna serial, historiado­ sociais. Em seu ensaio sobre a revolução americana, Namier declara
res empreendem medir, com a ajuda de indicadores quantitativos, os abruptamente: “Quaisquer teorias que possam elaborar os teólogos e
fenómenos culturais (o que Pierre Chaunu qualifica de terceiro nível). os filósofos concernindo ao indivíduo, não há nenhum livre arbítrio
Emmanuel Le Roy Ladurie aspira a escrever uma “história sem os no pensamento e nas ações das massas, assim com o não há na trans­
homens , e Jaques le Goff (autor, na sequência, de duas importantes lação dos planetas, nas migrações de pássaros e na queda no mar de
biografias históricas) pode afirmar que a história das mentalidades es­ colónias de lemingues” .95 Vários anos mais tarde, Louis Bergeron e
tuda aquilo que escapa aos sujeitos individuais da história por revelar Guy Chaussinand-Nogaret constatam que o objetivo da prosopogra­
o conteúdo impessoal de seu pensamento, aquilo que Cesar e o últi­ fia consiste em uniformizar as singularidades: trata-se de “encontrar
mo soldado de suas legiões, São Luís e o camponês de seus domínios, os homens e, através deles, preparar a definição dos tipos. Para além
Cristovão Colombo e o marinheiro de suas caravelas têm em comum". "' da máscara erudita, encontrar o rosto cotidiano e as singularidades
Por vários decénios, o gosto pelo singular só consegue sobre­ regionais, e das fisionomias múltiplas fazer brotar os traços comuns . *
viver em alguns recônditos da historiografia. Em primeiro lugar,
graças ao sucesso da prosopografia —por vezes designada igualmente
políticas endossam o p rojeto p rosop og ráfico . C f., em particular, M atthias G elzer, D ie der
com a expressão de biografia coletiva” . Cético quanto à filosofia romischen R qju h lik und die N obilitat der K aiserzeit, B e rlin -L e ip z ig , B .G . T e u b n e r, 1 9 1 2 ; C harles Beard,
da história, assim como quanto à h istória das ideias, Lewis N a m ie r An Etonomic Intrrprciation o f the Constitution o f the United States (1 9 1 3 ), N e w Y o rk , M acm illan , 1 9 4 4 ,
Fnednch M iinzer, Rom ische A dchparteieti und A d ebfam ilieti (1 9 2 0 ), Stuttgart, B . G . T e u b n e r, 1 9 8 3 ;
estima que os fatos sociais só podem ser explicados explorando-se
Konald Syme, Lti Réivlution romainv (19 3 9 ), traduzido do inglês por R o g e r Stuveras, Pans, Galhiuard, 1967.
cientificamente as raízes do comportamento individual. Os nobres Sobre as transformações do projeto prosopográfico, cf. Jo h n B ro o k e, "N a m ie r and N am iensm , History and
e os mercadores, os advogados e os funcionários, que compõem T7iei>ry, 1 963-1964, 3, p. 3 3 1 -3 4 7 ; Law rence Sto n c, “ Prosopography’’, Diiedalus, 1971, 10(1, p. 4 6 -7 1 .

a t asse dirigente inglesa da época de Jorge III, revivem um a um Lewis B N am ier, " T h e B io g ra p h y o f O rd in a ry M c n ", in L ew is B . N a m ie r, S/eyííT<Jptrs an d other
(1 9 3 1 ), N e w Y o r k , M a c m illa n , 1 9 6 8 , p. 4 6 - 4 7 . C f . Isaiah B e r lin , P ersonal Imprvssions,
so sua pluma. Seu método m ic r o s c ó p ic o almeja a cisão dos fatos Londres, T h e H og arth Press, 1 9 8 0 , cap . 3.
Cf. C.laude N ic o le t, "P ro s o p o g ra p h ie et h isto ire so c ia le : K o m e e t 1’Ita lie à 1 é p o q u e ré p u b lica i-
n c* •Annates E S C , 1 9 7 0 , 2 5 , p. 1 2 0 9 - 1 2 2 8 ; A n d ré C h a s ta g n o l, " L a p ro so p o g ra p h ie , m é th o d e de
W * * " !h M c d u m m t t rt le 'nonde m id ilm a n ée n a l'époqu e d e P lu h p p e I I ( 1 9 4 9 ) , Pans, rechcrche sur 1’h istoire du B o s -E m p ir e ” , A n n ales E S C , 1 9 7 0 , 2 5 , p. 1 2 2 9 - 1 2 3 5 .
* m u .i d C o lin , 19 9 0 , v ol II n 7 1 S n c m r~c f .
I- ,. . , ... . ' £ J . D li!-b2U . c r os c o m e n ta n o s c n tic o s d e la cq u es R a n c ie re , C f-je a n -P h ih p p e G e n e t e G iin th e r L o tte s (d ir.), L ’É tat m o d en te et les elites. A pports et lim ites de la
' u dt d“ « « » > . Pans, É d m on s du S e m i. I 9 9 2 , p. 2 6 - 2 7 . tnéihode prosopographiqut\ A ctes du c o llo q u e in te m a tio n a l C N R S - P a r i s 1, 1 6 - 1 9 de o u tu b ro de
m m anuel Le R o y L ad u n e, L r T r m to n e de fh u io r ie n , l>ans, C .allim ard, 1 9 7 3 , 4 ‘ p arte; Ja c q u e s Le
1^91, Pans, P u b lica tio n s de la S o r b o n n e , 1 9 9 6 .
1974 t 111 ™ ‘ h<Í J l n -,a cq u " Le G o f f e l>1,!rrc N o ra ( d i r ) , F aire d e 1‘h isloire, P an s, G allim ard , Lewis U. N am ier, E n g lan d in the A g e o f A m erican R ev olu tio n , L o n d re s, M a c m illa n , 1 9 6 3 , p. 4 1 .
Louis B erg eron e G u y C h a u s s in a n d -N o g a re t (d ir.), G ra n d s n otables du p rem ier E m p ire, Paris, É d i-
r l N */ a 77,f S 'n,CIUre ° f Poli,ics « lh e Accession o f C torg t III. Londres, M acm illan & h0ns C N R S , 1 9 7 8 , p. V I. A d ife re n ç a e n tr e a b io g ra fia e a p rosop og rafia é su b lin h ad a p o r
. - o longo dos p n m e.ro , d ecên.os do século X X . outros im portantes h iston ad orw da. elites
Kathanne S. B . K e a ts -R o h a n , " B io g r a p h y and P ro so p o g ra p h y . T e lh n g th e D iffe r e n c e , d u ran te
O PEQUENO x - D a b i o g r a f i a à h is t ó r ia

C A P ÍT U L O II
Do lado da sociologia, destaca-se outra experiência interessan­
te. No fim dos anos 1910, Wilham Thom as e Florian Znaniecki
escrevem uma obra monumental, Le Paysan polonais em Europe et
ett Amérique, realizada com base em testemunhos pessoais de imi­
grantes poloneses nos Estados Unidos (a correspondência privada A vertigem da história
e também o relato autobiográfico de um certo W ladek, consi­
derado como um representante típico “da massa culturalmente
passiva”).'1 Num prefacio m etodológico, os autores explicam a
importância de levar em conta a atividade psíquica do indivíduo,
sua atitude pessoal, no sentido psicossocial, sua maneira de “definir
a situação” e de alterá-la pelo próprio com portam ento. O livro,
que visa a conciliar a pesquisa de regulandades ou de leis de tipo
S im bad, o m arujo, ou não sei que outro personagem das Mil
causal com a pesquisa das significações psíquicas atribuídas pelos
e um a noites, encontrou um dia, à margem de uma cascata,
atores sociais aos acontecimentos, não tem destino fácil. Em parte um velhinho ex ten u ad o que não conseguia passar. Sitnbad
por conta de vicissitudes políticas: militante pacifista, Thomas é em prestou-lhe o socorro de seus om bros, e o h om en zin h o,
condenado por adultério em 1918 e só é reabilitado dez anos mais açarrando-se neles com um vigor diabolico, tom ou -se de
tarde (a propósito do peso dos fatos biográficos...). Em parte por repente o m ais im perioso dos mestres e o mais opinioso dos
razões científicas, pois, logo em seguida, a sociologia americana cavaleiros. E is aí, cm m in ha opinião, o caso de todo hom em
decreta que os testemunhos pessoais não são fiáveis. O golpe de aventuroso que resolve tom ar o tem po p assado sobre suas cos­
misericórdia é dado em 1939, quando Herbert Blum er declara tas para f a z ê - l o atravessar o L etes. Isto é, escrever a história.
que o material biográfico, fundado em procedimentos irremedia­ O im pertinente velhinho traça-lhe, com um a caprichosa m i­
velmente subjetivos, não permite chegar a generalizações válidas núcia, um a rota tortuosa e difícil; se o escravo obedece a todos
e dignas de crédito.98 os seus desvios e n ão tem a fo rça de se abrir um cam inho
m ais reto e m ais curto, afoga-se m aliciosam ente no rio.
V icto r H u g o 1”
. loq u io E x p lo rin g N ew M eth o d s fo r P ro so p o g ra p h y in th e H u m a n itie s and th e Social
Scien ces Uppsala U n iv e n ity , 9 - 1 2 de m aio de 2 0 0 7

p I. Thcin -i c H o m n Z n an ieck i, L e Paysan polon ais eti E u rop e et en A tnerique. R ecit de vit
un migrant (191 S - j o i n , traduzido do u i r !^ por Y v es C au d illat. Pan s, N a th a n , 1 9 9 8 . A lguns anos

'í™ WU r ' ,' au so*5re 3 “ C rn sio d o m o v im e n to nazista - IM i; H itler C arn e in lo P o u ir


I
,an^ ndgC ÍM “ s ) ' H arvard U m v e n ity Press, 1 9 8 6 o s o c io lo g o T h e o d o r e A bel força
rm o e ío c r a m , „ „fcc j n U I n a u tobio g ráfica co n cisa , de form a estandardizada,
esenta a pedido d r p o q u A , 0 l „ , n , |ln ) |ld jl)c * d„ v fU l J > ( j r f c , c m lK . . as te ndéncias. as
Após vinte e três anos de guerra contra a França revolucionária,
atitu es f t n o m i iu i .t o d* uni grupo C t T V n d o r e A M I h r N aivirr and U s e o l . unia longa onda de radicalismo popular se espalha pela Inglaterra.
slmenciitt Jou rn al o f Soriology. 1 9 47, L11I. p 1 1 -1 1 8
Por toda parte, o antigo princípio de deferência parece vergar: “Sc
j, ■ an d Z n an iecki's " T h e P olish P easan l in E u rope and
um Aristocrata cruza um Tecelão na rua e este resolve não tirar o
pessoal na 1 h C o u n cl1’ 1 9 3 9 S o b re o d e scred ito da do cu m en tação

i r t ” ”ã !“ r s ■ ?** « “ "v - *
M orfc \ (t: a A ç í. R M irt || #V l| . ( h i u ^ o . !<«>/., r r r d i U t k i n u
"F reu d P sv ch o an í T r * l W * K ,‘ |N J T ra n sa ctio n B o o k s , 1 9 7 0 ; R o b e r t G old in g. V ic to r H u g o, L in ératu re et p h ilo s o p h ie m flíe s , ed i^ á o t r i t u a e s t a b e le c id a por A n th o n y K W

Individual" British f” ' ” 1 ( S ” nl< O bservacions o n th e S o c io lo g ic a l Analysis o f the J a m e s , Pans, K l i n c k s i e c k , 1 9 7 6 , t. I, J o u r n a l des id ées, des o p im o n s et des lectures d'un iru n t ja c o b it e
individual , Bntish Jou rn a l o f S oàology, 19 8 2 . 4 , p . 5 4 S .5 6 2 d t 181 9 , p. 9 5 .
A VERTIGEM D A HISTÓRIA
O PEQUENO x - D a b i o g r a f i a à h is t ó r ia

de Somerset que iniciam as hostilidades, protestando, em nome do


chapéu, o homem de importância nada pode lhe fazer” .10" O jaco­
capitão Swing, contra o emprego de mão de obra irlandesa barata e
binismo da gentinha de Londres não é novo, mas, no pós-guerra, a
contra a introdução de novas máquinas. Cerca de dois nul ínsurgen-
agitação contamina também as províncias: de Carlisle a Colchester,
tes são levados a julgamento: nove deles serão condenados a morte
de Newcastle a Bristol, o mob se toma uma realidade tangível e
por enforcamento, seiscentos e quarenta à prisão e quatrocentos ao
pressionadora. Suas reivindicações são essencialmente políticas: o
desterro nas colónias australianas. Foi a deportação mais importante
sufrágio universal, o direito de associação e de organização política,
jamais decretada pela Inglaterra.101 Em 1835, é a vez dos fiandeiros
a liberdade de imprensa. Aqui e ali, o tom se faz ameaçador. Se as
de Glasgow que, não satisfeitos com incendiar a manufatura de Ja­
tentativas de levante são ainda raras, o slogan cartista “pacificamente
se possível, pela força se necessário” exprime bem, entretanto, o mes e Francis W ood, surram uma dezena de knobsticks (fura-greves
estado de espírito reinante. contratados pelos patrões). Durante o outono do ano seguinte, os
trabalhadores se espremem nas assembleias notumas que se fazem à
Em 2 de dezembro de 1816, após uma manifestação pacífica
luz de tochas, organizadas pelos cartistas: “Ao longo de toda a fileira
a favor da reforma parlamentar em Spa Fields, alguns marinheiros
brilhava uma torrente de luz que iluminava a abóbada do céu, com o
tentam, sem sucesso, tomar de assalto a Torre de Londres. Seis meses
o reflexo de uma grande cidade numa conflagração geral . Tres
mais tarde, os tecelões, os talhadores de pedra, os metalúrgicos e os
anos mais tarde, são ainda os cartistas que convocam uma conven­
trabalhadores agrícolas das cidadezinhas dos arredores de Pentridge,
ção nacional das classes trabalhadoras de que participam centenas
no Derbyshire, propõem-se a invadir Londres e a derrubar o go­
de milhares de pessoas, até que seja proclamada, quando do ajun­
verno. Em agosto de 1819, em Saint Peter’s Field, Manchester, um
tamento de Birmingham, em 6 de agosto de 1838, a adoção oficial
grande ajuntamento em favor da reforma parlamentar é brutalmente
pelos trabalhadores da carta do povo. A petição, assinada por mais
reprimido pela Manchester Yeomanry, um corpo de cavalaria formado
de um milhão e duzentas mil pessoas, é deixada diante do domicílio
principalmente por filhos de industriais, comerciantes e negociantes,
londrino do deputado John Fielden. Entrementes, a convenção se
deixando onze mortos e cerca de sessenta feridos. Longe de conter o
interroga sobre as medidas a adotar em caso de fracasso no Parla
movimento, o massacre de Peterloo (assim nomeado fazendo eco à ba­
mento e organiza uma séne de ajuntamentos simultâneos através de
talha de Waterloo) levanta a indignação do país. Alertados, os espiões
todo o país, de maneira a desorientar a polícia. Em julho de 1839,
o governo escrevem ao rrúnistro do Interior, Lorde Sidmouth, que
os trabalhadores começaram a se armar de lanças e porretes, enquanto, quando a Câmara dos Comuns rejeita a petição por esmagadora
o fun o das tavernas, os artesãos projetam levantes armados. Mesmo maioria, violentos embates opõem os trabalhadores e a polícia em
rt ur Thistlewood, um dos cérebros da conspiração de Cato Street, Birminghan (Buli Ring Riots). Q uatro meses mais tarde, são os m i­
qut everia ter provocado a morte de diversos membros do governo, neiros de Newport que protestam: o saldo se eleva a catorze mortos,
esta convencido de que Londres está prestes a agir. cinquenta feridos e mais de cento e vinte e cinco detenções. Mas,
uma vez ainda, a repressão não consegue represar o movimento, e,
H r1 ^ a'1° S decorrem aparentemente em toda tranquili-
■i partir de 1842, perturbações explodem novamente...
. ecenio seguinte, que vê os whigs voltarem ao poder (em
seguimento a recusa de Wellington de estender o direito de voto), Essa mescla de radicalismo político, de luddismo e de cartismo,
e, ao contrario, um dos períodos mais difíceis do século X I X inglês, impregnada de antigos princípios religiosos (postos em evidência
ao os tra alhadores agrícolas dos condados de Kent, de N o rfo lk e

G to rg e R u d é , L a F oi,Ir d a m la R M i t i o n F ra n faise ( 1 9 6 4 ) , trad u zid o d o in glês p o r A lb ert Jo r d a n ,


C itad o por Edward P T h n i P in s, M aspero, 1 9 8 2 .
por G t l l c D auve M ir T in T r i F ° m ú " on d r la d asse ou ,’r' ^ an g laise ( 1 9 6 3 ) . traduzido do
K-obcrt G . G a m m a g e, H istory o f lh e C h artisl M o v em en t, 1 8 1 7 - 1X 54 ( 1 8 9 4 ) , L o n d re s, M e rlm P r e « ,
du Seu il, 1 9 88, p 6 0 6 ’ ° aSZew e ^ i n c N o e lle T h ib a u lt, P an s, G a llim a rd -É d itio n s
W 6 , P 9 4 -9 5 .
O PEQUENO x - D a b i o g r a f i a à h is t ó r ia
A VERTIGEM DA HISTÓRIA

pelos trabalhos de Edward P. Thompson. Enc Hobsbawm e George a Ação e a Paixão?”107 Em suma, todos os seres humanos têm uma
ude), impoe a atenção dos britânicos da pnmeira metade do século história: “O talento da história nasceu conosco, com o nossa principal
X IX a questão inglesa. Em que condições vivem as classes populares? herança. Num certo sentido, todos os homens são historiadores” .108
Qua e seu humor? Uma nova guerra civil vai explodir? Thomas
Desta fornia, Carlyle jamais teria aceitado a noção de povos sem história.
Carlyle também se coloca essa questão.103 Fica mesmo obcecado
por ela. No curso de seus primeiros anos de atividade, enquanto Em toda humanidade, não há uma só tribo tão grosseira que
ainda vive na Escócia, traduz o Wilhelm Meister de Goethe (1824), não tenha tentado escrever a história, ainda que várias delas não
tenham aritmética para contar até cin co”: “ A história foi escrita
escreve diversas obras literárias e históricas (sobre Goethe, justamen­
com quipos, com quadros feitos de plumas, com cintos de con ­
te, mas tambem sobre Schiller, Voltaire, Diderot) e se consagra a
chas; mais frequentemente ainda, com tendas ou monumentais
artor esartus (1831), uma espécie de biografia filosófico-poética,
empilhamentos de pedras, pirâmides ou caims; pois o celta e o
^ em ‘maSens de conflagração, de indigestão, de fermen- copta, o pele-vermelha e o branco, vivem entre duas eternidades
açao. o entanto, após sua partida para Londres, em 1834, bem e, na luta com o Esquecimento, gostariam de se agarrar, por uma
no me,o da epoca mais heroica do radicalismo popular, abandona relação clara e consciente, com o já se agarram por uma relação
c r'^ j 010 mu' tos de seus contemporâneos, experimenta o inconsciente e obscura, a todo o Futuro e a todo o Passado.,IM
entimento de viver num mundo convulsionado, abalado, corrom-

Z t f T V ° Vdh0 Impén° r° mano ‘> ando » medida de II


uas iniquidades foi ao cúmulo; os abismos, os dilúvios superiores e
d a H r f T '05 T ° Urand° P °r todos os >«los. e nesse furioso caos de Em 1837, quando Vitória acede ao trono da Inglaterra, Carlyle
en rn \ ^ “ eStrdaS d° céu aPagadas”.'05 E espera publica sua História da Revolução Francesa. A Revolução é aí descrita
n rar uma resposta, e mesmo uma solução, na história.
como o acontecimento por excelência, uma alquimia selvagem que
convenriH° àLSUa mulher, Jane Baillie W elsh, ele está provocou a exterminação de dois milhões de seres humanos. Mais de
vinte anos de convulsões, de precipitações, de atrações e repulsões
conhecimento6 !d '<* N o ^ 6 ° ^ nd* m e m ° de todo verdadeiro
Doral r a rr a ° S Pensamentos têm uma forma tem- súbitas, consequências inelutáveis de uma doença de velha data, bem
anterior, que fora incubada durante o reinado de Luís X V e explodira
— dh, : , r a rdr e de nossas. c° — ^ é
reoresenrar a w ' Assim, como não fazemos nada além de no de Luís XVI em razão “de sua ausência de faculdades” : " É uma
nesse sentido t0na' ° ^ diZem° S é aPenas seu bancarrota espiritual tolerada por muito tempo encaminhando-se
sobre eu pn amp' ° ’ nos» ^ « P '™ a l inteira se edtfica para uma bancarrota económ ica e tomada intolerável” . N o fim,
C° nSldmda' o que é atnda toda C.ència a doença revestiu as formas de um jorro de lava: “ Há levantes
n ^ en c " - ,a ' Um Pr° dut° * ■ »*- que vem das tempestades de cima e do sopro dos ventos. Mas há
Se" C,a,S Sa° en“ ° ° R -io c í„ ,o e a Crença, não menos do que aqueles que vêm de ventos subterrâneos comprimidos, ou mesmo
de decomposições interiores, da corrupção que se transforma em
20 0 0, 70, p . 8 7 -1 1 4 . C arly le, and th e V ic to n a n P u b lic S p h e r e ’*, R ep resen ta-
Tho
' aS ^ ar^ e > S u r I h is to ir e " , in E ssais choisis d e critique et d e m orale ( 1 8 3 0 ) trad u zid o d o inglês
■ngles por m ^ ' * m m ' ( 1 8 3 3 - 1 8 3 4 ) . prefaciado e traduzido do
P m ond B a rth élé m y , Paris, S o c ié té du M e rc u re de F ra n c e , 1 9 0 7 , p. 3 0 2 .
Ibid.
ftij p iij i p H
^ j. ‘ sla c ° n c e p ç à o da m e m ó ria se liga a u m a lo n g a tra d içã o da R e n a s c e n ç a : cf. D o n a ld
L o n d rcs-N e w Y o rk . Jo h n U n e . , l » '" T « ? '' W t b h - Ed p o r A le x a n d e r C arly le,
■ 7 t. 1, p 8 5 - 9 6 , 1 0 2 - 1 I I , 2 3 8 . ey. F oundations o f X íod em H istorical S ch olarsh ip . L an g u ag e, L a w an d H istory in th e French
sancc, N ew Y o r k , C o lu m b ia U n iv e rs ity P ress, 1 9 7 0 , p. 1 -2 , 2 1 5 .
A VERTIGEM D A HISTÓRIA
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à m istôkia

do homem precipitando-se cegamente para dominar sem freio nem


combustão: como quando, segundo a geologia netuno-plutônica, o
regra; potência selvagem, mas com todos os instrumentos, todas as
mundo decomposto se prostra em seus detritos, para deles emergir
armas da civilização: espetáculo novo na históna” .114 Em face da
com estrondo e se refazer”.110
monarquia, da Igreja, da nobreza e da filosofia, havia o direito das
Diferentemente de Goethe, um de seus heróis, Carlyle não massas. Um direito em toda sua diversidade individual:
lamenta a ordem pré-revolucionána, já que estima que a “velha mo­
São vinte a vinte e cinco milhões que agrupamos junto numa
rada" devia ser abatida.1' 1Em todos os tempos, as insurreições sociais
espécie de unidade com pacta, monstruosa, mas obscura, longín­
foram detonadas pela incapacidade dos governantes. Assim foi com
qua, que chamam os a canalha ou mais humanamente as massas.
a reforma protestante e o mesmo se deu com a Revolução Francesa.
Massas em verdade; e, no entanto, coisa singular a dizer, se por
Quem são os verdadeiros responsáveis pelo massacre? Em primeiro um esforço de imaginação tu os segues, através da vasta França,
lugar, a monarquia. Luís XV se comportou como um fantoche ou um nas suas cabanas de argila, em seus celeiros, em suas choupanas,
marinheiro à deriva, totalmente impotente em controlar as correntes: essas massas se com p õem todas de unidades, e cada uma dessas
unidades tem seu coração e suas dores, se mantém coberta com
O homem assim alimentado e decorado, e nom eado na sequen-
sua própria pele, e se a feres, ela san gra."5
cia régio, é em realidade apenas um ser governado. Por exemplo,
se dizemos, ou mesmo pensamos que ele foi empreender con­ Ao livro sobre a R evolução Francesa seguem diversos ensaios
quistas em Flandres, na verdade ele só foi transportado para lá sobre a questão inglesa, considerada o alfa e o ômega da coisa toda.
com o uma bagagem; bagagem nem um pouco leve, que cobre
"A condição do grande corpo do povo num país representa a
léguas inteiras.112
condição do próprio país” .116 Chartism, publicado em 1839, coloca
A igreja é o segundo culpado: negligenciando seus projetos passados em alerta: 1789 não foi uma turbulência ocasional, um lance de
e suas velhas animosidades, ela praticamente não se opôs à política loucura. E a derrota da França revolucionária não conduziu auto­
rtal. Quanto aos nobres, contentaram-se com um papel ornamental. maticamente a sua cura:
Enfim, os filósofos, um bando de perigosos charlatães, verdadeiros
Um m eio-século se passou desde então; e uma coisa co m o a
trituradores de lógica (logick-chopers), que contaminaram toda a so­ R evolução Francesa não está ainda terminada! Q uem quer que
ciedade com seu hedonismo: “Eis aí um povo sem crenças que vive observe esse enorm e fenóm eno pode nele encontrar numerosas
dc suposições, de hipóteses, de sistemas frívolos sobre a triunfante significações, mas na base de tudo encontrará, em particular,
análise e como única crença isto: o prazer deve aprazer”.113 Voltaire, que se tratou de uma revolta das classes trabalhadoras oprimidas
o patnarca, observava o mundo circundante com um olho antica- contra as classes dominantes tirânicas ou negligentes, não foi
tólico, reduzia a história a um miserável nó de controvérsias entre apenas uma revolta francesa; não, foi uma revolta europeia,
prenhe de severas advertências para todos os países da Europa.
a Enciclopédia e a Sorbonne e exortava seus contemporâneos a um
pífio hedonismo: Os cinco sentidos insaciáveis e um sexto sentido
igualmente insaciável: a vaidade; e sobrará toda a natureza demoníaca ■t I. p. 19 S o b re a figura d e V o lta ir e , cf. ig u a lm e n te “ V o lta ir e ” ( 1 8 2 9 ) , in N o u v e a u x Essais
dt critique et d e m oralc, trad u zid o d o in g lês p o r E d in o n d B a r th é lé m y , P an s, M e rc u re de
l * f l A cegu eira o u a m io p ia das Lu zes fora j á m u itas vezes d e n u n cia d a p o r Jo h a n n G o t -

T h o iftfe C u ly it . i t U K m viu,,.-, Fraiifaise ( 1 8 3 7 ' in d u z id o d o in g lês p o r Elias R<»tniul« tfntd H crder, U ne autre p h ilo so p h ie d e l'ltisloire, in H istoirt’ et ciilturrs, trad u zid o d o a lem ã o p o r M a x

r IM y i lUnw C in v v * r m c t lt« l -r c , 1 8 6 6 - 1 8 6 7 , p. 105 K«uc»ie, 1’ ans, F la m m a n o n , 2 0 0 0 . Esse te m a será e m seguid a re to m a d o p o r F n e d n c h N ie tz s c h e ,


C"nsidêrations inactuelles, op . cit
Sofafr «w uifc d c < « * t h e 1 .L, K rv o lu VJ o h . n i f - , c f G iuliano B a io m , í - v i l * C lassi- 11* 1 » r
y jn u , . « ■ » . . (!■#//, T o m iu . fciu ju d i. i v i h in. ,0mas ^ ar|y 'e ' liu / o ir r de la R év oltition F ra n faise, op . cit, t. I. p. 4 3 - 4 4 .
" J T h o m as C arly le, Histoire de la R évolurion F ranfaise, op. cit., t. 1. p. 7 . Thunias ( jrly le , C hartism ( 1 8 4 0 ) , B o s to n , C h a rle s C . L ittle & Ja m e s U ro w n , 1 8 4 0 . p. 5.
lo iá .. t. I, p 47. ” p. 42.
O PEQUENO X - Da b io g r a f ia a h is t ó r ia A VERTIGEM D A HISTÓRIA

Como se deve reagir? O que é possível fazer para represar o de espírito”.122 Carlyle aí fala da grandeza, de suas diferentes mani­
radicalismo popular? Carlyle descarta as duas proposições políticas festações e da maneira com o é acolhida nesse mundo. Explica que
dominantes. Acusa o laisser-faire económ ico de não oferecer aos po­ a ordem social repousa sobre a identificação dos heróis e que o
bres mais que a liberdade de morrer de fome e rejeita o sufrágio uni­ desígnio de cada época consiste em encontrar o verdadeiro Kònnitig
versal reivindicado pelos cartistas, pois considera a democracia um ou can-nig, o homem capaz, que pode e sabe, e em investi-lo dos
símbolos do poder, elevá-lo à dignidade real, de modo que esteja
tema de discussão académica, desprovido de porvir (“um fenómeno
realmente em condições de governar. N o final das contas, a história
que se autodestrói”). Não tem mais confiança na coerção (“por si
universal se resume à biografia dos grandes homens:
só, não resolverá grande coisa” 118), mas guarda alguma esperança
na instrução universal e na emigração. É sobretudo o problema da Em minha opinião, a História universal, a História do que o
homem realizou nesta Terra, no fundo não é mais que a História
confiança social que ele coloca no coração do debate. O trabalha­
dos grandes homens que obraram aqui embaixo. Foram eles os
dor não está fundamentalmente apegado aos bens materiais: “É
condutores dos homens, seus modelos, suas referências e, numa
pela justiça que luta; por um ‘salário equitativo’, e não apenas em acepção ampla do term o, os iniciadores de tudo o que a grande
dinheiro! .,1‘' O “descontentamento amargo, louco de raiva” tem massa dos humanos se esforçou para realizar ou atingir. Todas as
sua fonte na degeneração das classes dominantes. A situação exige realizações gloriosas que podemos contemplar no mundo são, na
verdade, os resultados materiais e exteriores, a realização prática e
uma verdadeira aristocracia, fundada no mérito: “U m a corporação
a concretização do pensamento e da intelecção geradas no espí­
dos melhores, dos mais corajosos”, com o aquela que existia antes da
rito e no coração dos grandes homens enviados a este m undo.1"'1
instauração do cash-nexus.'2" Pois, exanunando-se bem, os protestos
exprimem sobretudo a necessidade de um guia benévolo e sábio: Eis por que o culto dos heróis é uma

O que são todos os levantes populares e os mugidos mais [...] pedra fundamental eterna a partir da qual poder-se-á co m e­
loucos, de Peterloo à própria place cie G rève? Mugidos, gritos çar a reconstruir tudo. O fato de que o hom em , de uma maneira
inarticulados com o aqueles de uma criatura muda, abalada pela ou de outra, venere os heróis; de que todos nós reverenciemos
e estejamos destinados a sempre reverenciar os grandes homens,
exasperação e pela dor; para o ouvido de um sábio são preces
eis o que é para mini o fundamento vivo que resistirá a todas
inarticuladas: Guie-me, govem e-m e! Estou exasperada e mi­
as destruições, o que nenhum a revolução na história pode
serável, e não sei me guiar sozinha.’ É certo que entre todos
atacar, por mais catastrófica e devastadora que possa ter sido
os direitos do hom em ’ esse direito do ignorante de ser guiado
sob todos os outros aspectos.124
pelo mais sábio, de ser conduzido, com delicadeza ou a força,
pelo caminho certo, é o mais indiscutível.121 O traço mais característico na história de uma época é formado
Nessa convicção inspiram-se as célebres conferências sobre o justamente pela maneira com o honra o herói. A desolação que im­
culto dos heróis, feitas entre 5 e 22 de maio de 1840, diante de um pregna todo o século XVIII remete ao ceticismo que o caracterizou:
auditono de duzentas a trezentas pessoas, “aristocrático de classe e
E nessa única palavra estão contidos tantos infortúnios quanto
na caixa de Pandora. C eticism o não significa apenas dúvida
Ibid., p. 5.
" Ibid.. p. 22.
A nthony F ro u d e , L ife o f C arly le ( 1 8 8 4 ) , C o lu m b u s , O h io S ta te U m v e rsity Press, 1 9 7 8 , sob
retom ada em oT omc^ o ^ ° dln h clro na basc das relações sociais. Scra 1 d‘reí â ° de Jo h n C .lubbe, p. 3 8 9
Enidish CrowH ií J* d 'n exu s- Po r Edw ard I>. T h o m p s o n . " T h e M o ra l E c o n o m y o f the
ui Enghsh C ro w d ,n the X V I .l t h C e n tu ry ", Pasl m J ^ „ 1(, l y 7 ] , 5(). p 7 6 . ] 3 6 TH-mas C arlyle, Les H éros (1H 41), trad u zid o d o in g lês p o r F ra n ço is R o s s o , P an s, M a iso n n e u v e
T h o m as C arlyle, C ham sm , op. cit., p. 52 , fc la ro se. Éd itions des D e u x M o n d e s, 1 9 9 8 . p. 2 3 .
* 'W ., p .
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia a h is t ó r ia A VERTIGEM DA HISTÓRIA

intelectual, mas também dúvida moral; e da dúvida moral pro­ não há mais propriamente nem verdadeiro nem falso. Sao os

cedem todas as formas de infidelidade e de insinceridade, em dias de glória da Impostura, do Falso-semblante tomando-se

suma [...] uma paralisia espiritual. [...] não houve época que fosse por si mesmo e chegando a se fazer tom ar pela Substância.

menos do que o século XVIII uma época de fè, uma época de


Carlyle, no entanto, não se limita a celebrar a grandeza e o
heróis! A própria possibilidade do heroísmo fora formalmente
negada em todos os espíritos. O heroísmo, ao que parece, heroísmo, mas precisa também seus traços salientes. Convencido de
pertencia definitivamente ao passado; o reinado das fórmulas que o mundo pulula de charlatães e de impostores, busca distinguir
feitas, da futilidade e da trivialidade o substituíra finalmente.125 o “falso grande” do “verdadeiro :

A parar de então, a veneração pela grandeza se fez “claudicante, ce­ Toda estrutura social é uma representação, não insuportavel­

gada, paralisada : numa necessidade de tudo apequenar, os partidários mente inexata, de uma veneração hierarquizada dos heróis.
[...] N ão insuportavelmente inexata, eu disse. Pois todas essas
de Jererm Bentham trataram dos ideais e das ideias como de simples
estruturas sociais fundadas na classe são com o cheques: todos,
jogos de interesses. Em vez de saudar e admirar o herói, tentaram
a principio, representam ouro, mas alguns, ai de nós!, são obra
tomar suas medidas até reduzi-lo a uma espécie de homem medíocre.
de falsários.128
Lutero, dizem eles, foi um produto de sua época’; foi sua época que
o chamou, suscitou, foi sua época que, em suma, tudo fez. Ele, nada... Para definir as qualidades e os diferentes graus de grandeza, re­
além do que eu, o cnticozinho, tena podido fàzer também! Acho tal têm Odin, Maomé, Dante, William Shakespeare, Martinho Lutero,
julgamento bem entristecedor e bem pessimista. Sua época o chamou? John Knox, Samueljohnson, Jean-Jacques Rousseau, Robert Burns,
Ai de nós! Sabemos bem demais que todas as épocas chamam seus Oliver Cromwell e Napoleão Bonaparte. Através da reconstrução
grandes homens, mas que muitas vezes não os encontram”.126 Toda a biográfica dessas onze individualidades, identifica seis categorias
Europa parece, aos olhos de Carlyle, presa da maldição do ceticismo
fundamentais da evolução histórica; o herói com o divindade, pro­
Como sublinhará ainda num ensaio de 1850;
feta, poeta, predicador, escritor e soberano. A escolha de figuras tão
Num tempo assim, isso se tom a a crença universal, a única cien- profundamente diferentes umas das outras não é em nada fortuita.
i-i.i -icreditada - enquanto o contrário é visto com o um pueril Procedendo assim, Carlyle estabelece de partida que o heroísmo
entusiasmo, - essa triste crença de que estritamente falando não pode revestir numerosas formas em função das circunstâncias ( he
há nenhuma verdade neste m undo, de que o mundo não foi,
rói, profeta, poeta... São muitos nomes distintos que em tempos e
n.io é e jamais poderá ser conduzido senão pela simulação, a
lugares diferentes damos aos grandes homens ), mas que o caráter
dissimularão e a prática suficientemente hábil dos falsos-sem-
blantes. [...] o sentido do verdadeiro e do falso está perdido,
heroico permanece uno e indivisível e persiste sempre tal com o é,
que os diferentes tipos de herói são todos, intrinsecamente, de uma
, p 226. mesma substância: “ No fundo, o grande homem, tal com o modelado
pela mão da Natureza, é sempre substancialmente o mesmo. Odin,
d ecén io s n u . ** W' a P ° l r m n j so b re o u tilita rism o , c f. ta m b é m C h artism , op. a i Alguns
do ceticism o - " É f ' ° *< m ^ ^ 'd a d e s J f M u sil ex p rim irá a m esm a im ta ç ã o a propósito Lutero, Johnson, Burns... Espero conseguir demonstrar que todos
qu e se acha c o n fr ° Se^un<* ° Pcnsarn e n to , q u a n d o n ã o o p n m e ir o , de to d o homem são originalmente do mesmo estofo e que apenas a acolhida que
beleza é i nmr i r i ° ^" m •*'*um le n ó m e n o im p o n e n te , m esm o q u e seja sim plesm ente p o r su3

reb^ r r r ' : eT ^ ní° ™^ « p ^ - el


sim plesm ente co n h ^ H A UnU ,pcnas Pe n e Ku 'da, m as perseguid ora, n ão pode mais ser
T h o m as C a rly le. Id e ,m iê de la fo rc e el du droil ( 1 8 5 0 ) , in N o u v eau x Essm s. op. d l .. p. 3 2 2 - 3 2 3 .
é bem mais em n " C° m * <l''* " V,á° natural ^ e a vida estab elece en tre o sublim e e o grosseiro,
lhado e m « m o í i l l 0 - ? ' " ' 0 ' ' m ' rK<’ ^ rnaS(Ki ulsm ° . a in ex p rim ív el alegria d e v er o bem humi- ‘ T h o m as C a rly le, L es H éros, op. rii., p. 3 6 .
(1 9 3 0 ) traduzido d I ° - 0 " ’ ^ maravllhosa ^ i l id a d e " C f R o b e n M usi), U H o m m e sans m / M .,p . 115.
^ UZ' d° d° ^ P ° r P h U ip p eJa cco ttet, Pans. É d m on s du S e u * 1 9 8 2 . p. 3 6 ^ 3 6 7 .
O PEQUENO X - D a BIOGRAFIA À HISTÓRIA A VERTIGEM D A HISTÓRIA

encontram no mundo e que determina a expressão de sua grandeza soberano capaz de defender os fracos.133 Não creio, porém, que
os toma tão radicalmente diferentes em aparência”.130 tais ideias possam esclarecer toda a reflexão de Carlyle. Parece-m e
Com as conferências sobre o heroísmo, o “sábio de Chelsea" antes que esse género de leitura corre o risco do anacronismo. “O
ou o “adivinho puritano”, com o é chamado então, está no apogeu que Carlyle entendia por ‘heroísmo’ ou ‘virtude dos chefes’ nada
de seu sucesso. E admirado, sobretudo na Inglaterra e nos Estados tem a ver com o que propõem nossas teorias modernas” , escrevia,
Unidos, por sua integndade. Seu estilo, nutrido de citações bíblicas, pouco antes de sua morte, Emst Cassirer, que sugeria, infelizmente

de neologismos e hipérboles expressionistas, apaixona Matthew Ar­ demasiado brevemente, que Carlyle chegou ao culto dos heróis em

nold, John Ruskin, Ralph Waldo Emerson e mesmo Henry David razão, entre outras, de seu percurso de historiador: “O que Carlyle

Thoreau. Com os anos, a casa de Cheyne R o w , em Chelsea, onde entendeu sob os termos de ‘heroísmo’ e de dirigismo nada tem a
ver com o que encontramos nas teorias modernas do fascismo
Carlyle vive com sua mulher, Jane, toma-se um lugar de peregrina­
ção. Entretanto, com a velhice, a auréola de sabedona com que fora Para um verdadeiro historiador, a história não era, co m o diz
ornado começa a murchar. Alguns de seus amigos o evitam em razão Goethe no Fausto, “eitte Kehrichtfass und eitte R u m pelkam m er".

de suas afirmações, cada vez mais insustentáveis, sobre os negros, os Ele não tinha simplesmente o dom de relatar o passado, mas de
reavivá-lo e tom á-lo presente. O historiador autêntico falava
judeus, a missão do Império britânico, a guerra franco-prussiana.
e agia com o o conjurador de Gulliver. Relatava ‘o passado
Esse é o caso de John Stuart Mill, com quem briga vio len tam en te por glorioso a fim de que o olhar pudesse penetrá-lo e de que se
duas vezes ao menos: quando de suas declarações contra a Abolição o pudesse escrutar à vontade’. M anifestamente, Carlyle não
da Escravatura e quando toma a defesa do governador Edw ardjohn encontrou nenhum suporte para suas próprias ideias em toda a
Eyre que ordena em 1865 a execução de quatrocentos e cinquenta obra de Goethe. C o m o historiador, foi-lhe preciso dotar-se de
um ponto de partida inteiramente novo; foi-lhe preciso abrir e
rebeldes negros jamaicanos. Pouco a pouco, toda sua obra reveste
construir sua própria via — e nesta perspectiva, se não virar de
um valor profético sinistro. Até se tom ar, ao longo dos anos 1920 e cabeça para baixo, ao menos m odificar sua “ Filosofia da vida” .
1930, uma referência para a ideologia fascista e nazista.13' Foi tal modificação que o conduziu à teona do culto do herói
e do heroísmo na história.134
O culto dos heróis antecipa, sem dúvida alguma, certas ideias
fascistas: o temor da desordem, a exaltação das massas (incapazes dc A' está uma sugestão sobre a qual convém refletir: talvez, para além
pensar, mas dotadas de instintos sãos...), a aversão pela dem ocracu
Um Prec°ce delíno carismático, o culto dos heróis provenha,
a confusão entre o direito e a força, a necessidade de um verdadei justamente, do conhecimento histórico? Para melhor testar essa
ese’ e *mportante voltar às primeiras inquietações historio-
graficas de Carlyle.
Ih td . p 72. V icto r H u g o insistirá ta m b é m n o fato d e q u e , in d ep en d en tem en te ^
polinca e moral qu e se lhe p o d e dar, a g ran d eza é s em p re d e n atu reza unitána ( P ° ^ ^ ^ ^ A (
igualitária). Átila, o bárbaro e C e sa r e s tio e m pé de ig u ald ad e, assim c o m o o tun Ju p - '
IM
NuincT-
o arauto im penal da Igreja cn stá, e assim p o r d ia n te . C f . F ra n c k L a u ren t, “ t a i“ , ■ntelectual Z "*'01* 5 c o m ideram o p e n sa m e n to d e C a rly le c o m o p arte in te g ra n te da g en e a lo g ia
h om m c dans lo e u v r e de V ic to r H u g o " , R om an tism e. R e v u e du d ix -n eu m èm e sièik. ' • Htro h ,laclona' ' socla' ,sn l° - C f . e s p e cia lm e n te , B e n ja n u n H . L e h m a n , C a r ly le ‘s T h eo ry o f
spécial “ Le grand h o m m e ", 1 9 9 8 , p. 6 3 - 8 9 . 184(1, Coi tun I d e a ^ l" ' ' H úío ry, a n d In flu en ce on C arly le's W o rk. A S tu d y o f a N in eteen th
' C f., especialm ente, T h o m a s C a rly le , P ast a n d P resen t ( 1 8 4 3 ) , N e w Y o r k , C eorg e P“ ^ ' è|éinv. CimbndKr c )Urham ’ DUke U n iv er5 it>’ Press' , 9 2 8 ; H e r b e rt F .C . G n e r s o n , C a r ly le a n d H itler,
T hom as Carlyle, Pamphlets du d em ierjou r, trad u zid o d o in glês e prefaciad o por Edw Ivtuahté de ( U n lV m ity *>ress’ '9 3 3 ; E m e s t S e illiè re , U n p récu n eu r du n ation al-socialism e:
Pans, M e rcu rc de Fran ce. 1 9 0 6 . Thomas Cari ^ ltlons da la N o u v e lle R e v u e c r itiq u e , 1 9 3 5 ; H u g h T r e v o r - R o p e r ,
■S eg u n d o J. Salw yn S ch ap iro, “ T h o m a s C a rly le . P r o p h e t o f fascism ” , V i e J o u r n a l j t Ern<n C ., V< * ^ l5tonca* 1’ h ilo so p h y ” , T im es L iterary S u p p lem en t, 2 6 de ju n h o d e 1 9 8 1 .
1945. 17. ? P <17 _____ - . - nnvadas com o I_ , - L r M ythe de V État Í1 9 4 M . . j - :__ i i . ___ u ________ i \i_____ i.. u - _ r ~ t
A VERTIGEM DA HISTÓRIA
O peq ueno x - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia

Como numerosos místicos, Carlyle detecta em cada coisa dupla


III
significação, propondo uma dicotomia absoluta entre a aparência
Entre as obras menores de Carlyle, há uma, On History, escrita em exterior e a profundidade intema. Existe uma compreensão banal,
1830, pouco antes de ele se tomar um autor célebre e o queridinho que raciocina por fórmulas e receitas, e uma compreensão subli­
da boa sociedade londrina, que tem todos os traços de um verdadeiro me, dirá alguns anos mais tarde em Sartor Resartus: “Aos olhos da
manifesto pela história biográfica: “A vida social — lê-se nela - é o lógica, o que é um homem? U m bípede onívoro que traja calções.
agregado de todas as Vidas individuais que constituem a sociedade”.115 Aos olhos da razão pura, o que ele é? U m a alma, um espírito, uma
Nenhum grande homem, mas uma história que é o fruto da estrati­ aparição divina”.139 Com o em todos os domínios, a esfera da his­
ficação, geração após geração, de inumeráveis biografias. Carlyle se
tória também conta em seu seio com artistas e artesãos, “videntes” ,
interroga sobre os verdadeiros protagonistas da história: “Quem foi o
capazes de perceber o mistério do passado, e “simples basbaques”,
maior inovador, quem foi o mais importante personagem da história
especuladores da causa e do efeito, que leem “o livro inescrutável
do homem, aquele que pela primeira vez fez exércitos atravessarem
da natureza como se fosse um grande livro de contas”: “ Homens
os Alpes e obteve as vitórias de Cannes e do Trasimeno; ou o rústico
que trabalham maquinalmente num setor, sem olhos para o con ­
anónimo que primeiro forjou para si uma enxada de ferro?” .136 Mais de
junto, não sentindo que há um conjunto; e homens que iluminam
cem anos antes de Bertolt Brecht, ele avança que apenas uma ínfima
e enobrecem o mais humilde domínio com uma ideia de conjunto,
parte da história é escrita por seus presumidos autores, sua essência
e costumam saber que é apenas no conjunto que a parte pode ser
sendo o fruto de um número incalculável de vontades individuais,
verdadeiramente discernida” .140
do trabalho infinito de homens sem nome:
A divisão do trabalho e a especialização trazem o risco de au­
Quando o carvalho é abatido, a floresta inteira retumba; mas mentar as fileiras dos artesãos em detrimento daquelas dos artistas.
uma quantidade de glandes é semeada silenciosamente por um
Basta pensar nos historiadores da Igreja:
vento qualquer de passagem a que ninguém prestou atenção.
[...] todo o mobiliário essencial, as invenções e as tradições, e os [Suas] investigações versam antes sobre o m ecanism o exterior,
hábitos coudianos que regulam e sustentam nossa existência, são os simples envelopes e acidentes superficiais do objeto, do que
a obra, não dos Dracons e dos Hampdens, mas de marinheiros
sobre o próprio objeto: co m o se a Igreja estivesse nas salas dos
fenícios, de pedreiros italianos e de metalúrgicos saxões, de
capítulos episcopais [...], e não no coração dos hom ens crentes
filósofos, de alquimistas, de profetas, e de toda a sequência há
[■■■]• A história da Igreja é a história da Igreja invisível tanto
muito tempo esquecida de artistas e artesãos.137
quanto da Igreja visível, a qual, separada da primeira, não é mais
O texto é acompanhado igualmente de um voto: não está longe o do que um edifício vazio, dourado, talvez, e todo recob erto
tempo em que o historiador que persistir em querer compreender de velhos ex-votos, mas inútil, e m esm o de uma imundície
o passado estudando a corte ou os campos de batalha “passará por pestilencial; e de que é menos im portante escrever a história
um gazeteiro mais ou menos instrutivo”, mas não será mais consi­ do que precipitar a queda.141
derado um historiador.138

Resam,s, op Ol , p 75-76, 83, 259.


T h o m as C arly le, “ Su r 1’h is to ire ", op. rii p 304 Sdidlcr em SUJ ^ lst01re ' °P n l . P 3 0 9 . C a rly le re to m a a d istin çã o p ro p o sta p o r F r ie d n c h
' * Ibid. '
^ niaio dr I 7 f(9 » m au^ura* s° b r e a h istória universal p roferid a na U n iv ersid a d e d e Ie n a em
Ibid., p. 3 0 5 . n J n ii». . . ‘ P T ^ Ik -t-o n h istoire u n iv erselle et p o u rq u o i l ’é tu d ie -t-o n ? ” , in M élanves
, x Ibid . p. 3 0 9 -3 1 0 . 1,1 Tk__ ' ' n^ M1 tradim H n Hr* — c ««<----- n — « « ..i . . . ......
O PEQUENO x - D a b io g r a f ia A h is t ó r ia A «trtctM o * h s K m u

Ao longo dos anos 1830, é justamente pela biografia que Carlyle postula que, se uma sociedade é o fruto de todas as vidas individuais,
espera descobrir uma nova abordagem da história, mais artistica e então o processo histórico é um continuum infinito de pensamentos,
menos artesanal, e que dana conta do sentido profundo do passado: de emoções e de ações mais ou menos significativas, um feixe de
“Essa Inglaterra do ano 1200 não era um vazio quimérico, uma terra milhares de energias vitais em estado de movimento perpétuo:
de sonhos, povoada por simples fantasmas vaporosos, pelos Foedera N ão, nada está m orto no universo; o que chamamos morto está
de Rym er, por doutnnas sobre a constituição, mas uma sólida terra apenas m udado, são forças que trabalham em sentido inverso!
verde onde cresciam o trigo e diversas outras coisas” .142 Os homens A folha que apodrece nos ventos úrrudos, disse alguém, possui
que ali viviam “tinham uma alma” : “Não por ouvir dizer apenas, e ainda força; sem isso com o poderia apodrecer? Nosso universo
inteiro é apenas uma junção de forças; de mil forças diversas;
por figura de estilo - mas como uma verdade que sabiam e de acordo
da gravitação ao pensamento e à vontade; a liberdade do ho­
com a qual agiam”.14’ A biografia pode contnbuir para fazer emergir m em rodeada pelas necessidades da natureza: de tudo isso nada
essas emoções secretas. Hippolyte Taine escreverá sobre Carlyle: adorm ece jamais, tudo está sempre desperto e ativo.146

Está aí seu traço próprio, o traço próprio de todo historiador O que significa que não é possível designar nem um prota­
que tem o sentimento do real, o de com preender que os per­ gonista primordial nem um acontecimento-chave. De fato, não
gaminhos, as muralhas, as vestes, os próprios corpos não são
existem elementos distintos:
mais do que envelopes e docum entos; que o fato verdadeiro é
o sentimento interior dos homens que viveram , que o único A coisa que jaz isolada e inativa, jamais a descobrirás; procura
tato importante é o estado e a estrutura de suas almas [...]. É por toda parte, da montanha de granito, que desde a criação
preciso se dizer e se repetir essa palavra: a história é só a histó­ se reduz lentam ente a pó, até a nuvem de vapor fugitiva, ate
ria de coração; temos que buscar os sentimentos das gerações o hom em que vive; até a ação do hom em , até a fala que pro­
nuncia. [...] O que é então essa infinidade de coisas que cha­
passadas, e não devemos buscar nenhum a outra coisa. Eis o
mamos universo, senão uma ação, uma soma total de ações e
que percebe Carlyle; o hom em está diante dele, ressuscitado,
atividades. [...] a coisa que consideras é uma ação, o produto e
e ele penetra até seu interior, o vê sentir, sofrer e querer, da
a expressão de uma ação exercida. [...] as coisas humanas estão
maneira particular e pessoal, absolutamente perdida e extinta,
continuam ente em m ovim ento; são uma série de ações e de
com o sentiu, sofreu e quis.144
reações, um trabalho progressivo.141

Seu modelo é o centauro Quiron que, longe de julgar o passa­ Como Carlyle já indicara em seu ensaio sobre Voltaire, a história
do, desliza em seus personagens para chorar, nr, amar, desprezar
não vive de causas simples:
com eles, porque um coração amoroso é o com eço de todo
Conhecimento”.145 T am pou co deve acontecer que essa sequência, de que gosta­
mos de falar co m o de uma “cadeia de causas , seja figurada
Graças a sua intuição um pouco obsessiva pela essência bio- propriam ente co m o uma “ cadeia” ou uma linha; devemos
gra íca da história, Carlyle se estima capaz de tomar a exata medida representá-la antes co m o um tecido, ou uma superfície de
a idade periférica do passado. Na História da Revolução Francesa inumeráveis linhas, que se estiram em largura e cumprimento,
e numa complexidade que frustrará e extraviará completamente
os cálculos mais assíduos.14*
T h o m as C arlyle, Pasi an d Presenl, op. a t n 43
'" Ib id . p. 47 " P

T h o in as C a rly le , H isloire d e la R év o lu lio n F rancaise, op . d l . , t. II, p. 1 3 8 .


T H o ^ n a lc Ir r ^ C j,l y lc ' K , n ' G e m ie r B a ilh c r e , 1 8 6 4 , p. 4 8 -4 9 .
arlyle. D o ge ne ro b io izrá firn " l ) (iv>\ , k , c , At morai ’ lb,d • i II. p. 1 3 2 - 1 3 3 .
op ril., p. 16 *'• N ouvraux Essais chouis de cntique et de morai,
T h o m a s C a rly le , " V o l t a i r e " , op . d l ., p. 2 4 .
A VERTIGEM D A HISTÓRIA

Esse sentido agudo da vitalidade histórica desemboca numa fatos históricos, de maneira fortuita, independentemente de seu
crítica cerrada da história factual, geralmente demasiado preocupada peso: “Em primeiro lugar, entre as diversas testemunhas, que são
com a ordem cronológica: também partes interessadas, não há mais que uma vaga estupefação,
misturada com tem or ou esperança, e o barulho de mil línguas do
Nosso pêndulo soa quando uma hora sucede a uma hora;
mas nenhum batente no R elógio do T em p o ressoa através boato; até que, após certo tempo, o conflito dos testemunhos se
do universo quando uma Era sucede a uma Era. Os homens tenha apaziguado e fundido em algum resultado geral: e sobre isso
não sabem o que têm entre suas mãos: assim co m o a calma é a é decidido, pela maioria das vozes, que tal “Passagem do R ubi-
característica da força, as causas que têm mais peso podem ser
cão”, tal “Acusação de Strafford”, tal “Convocação dos Notáveis”
as mais silenciosas.149
são épocas da história do mundo, os pontos cardeais entre os quais
Agastado pelo barulho de superfície da cronologia, Carlyle confes­ rolam as revoluções do m undo” .153
sa diversas vezes sua desconfiança diante daqueles que pretendem Em suma, a história não é uma sequência coerente e contínua
compreender o passado enfileirando os fatos com o as pérolas de um de acontecimentos conectados entre si. “O homem mais dotado
colar. Os acontecimentos representam apenas a camada exterior da não pode observar, com mais forte razão não pode relatar mais do
realidade: nos campos de batalha, no Parlamento ou nas Antecâmaras que a série das própnas impressões: sua observação, por conseguinte,
reais, acontecem somente incidentes superficiais; mesmo as leis não deve ser sucessiva, enquanto as coisas feitas foram frequentemente
chegam a exprimir a vida, "mas apenas a casa onde se escoa nossa simultâneas', as coisas feitas foram não uma série, mas um grupo. Não
vida, elas não são mais do que as paredes nuas da casa” .150 Assim, o acontece na história em ação o que acontece na história escrita: os
elemento-chave da época moderna não foi nem a dieta de Worms, acontecimentos efetivos não estão entre si numa relação tão simples
nem a batalha de Austerlitz ou de Wagran, nem qualquer outra data como a de pai e filhos; cada acontecimento particular é o produto,
particular, foi antes
não de um único acontecim ento, mas de todos os outros aconteci­

[...] a ideia que veio a George Fox de se fazer um hábito todo de


mentos anteriores ou contemporâneos, e se combinará por sua vez
couro. Esse homem, o primeiro dos Quakers e sapateiro de pro­ com todos os outros, para dar nascimento a novos acontecimentos,
fissão, era uma daqueles a quem, sob uma forma mais ou menos é um Caos do ser, sempre vivo, sempre em trabalho, em que as
pura, a divina ideia do universo digna se manifestar, brilhando formas, umas após as outras, destacam-se, feitas de inumeráveis
em suas almas, através de todos os envoltórios da ignorância e da elementos” .154 É daí que tomam forma certas considerações inte­
degradação terrestre, numa inexprimível majestade.151
ressantes sobre o relato histórico. Para Carlyle, o historiador está
O que quer que seja, o acontecimento — político, legislativo ou condenado a se m over no seio de uma geometria plana, que não
nu itar l sempre incerto e artificial demais. “Batalhas e tumultos de faz justiça ao volume do passado: “Da mesma forma, todo relato é,
guerra, que no momento ensurdecem todas as orelhas e embriagam por sua natureza, apenas de uma única dimensão; adianta-se apenas
cada coração de alegna ou de terror, passam com o bngas de bar”.152 em direção a um ponto único, ou em direção a pontos sucessivos.
ertos episódios adquirem uma aura sagrada, são apresentados como ° relato é uma linha, a ação é um cubo. Ai de nós! Nossas cadeias,
nossas pequenas cadeias de “causas e efeitos” , que estendemos
T h o n ia s C arly le, " S u r 1 'h isto ire". op. a i . , p 3 0 6
tão assiduamente através de alguns anos ou de alguns quilómetros
Ib id ., p. 3 0 5 .

T h o m as C arly le. Sartor R esartus, op. eit., p. 3 3 3


p. 3 0 6 .
T h o m a s C arly le, " S u r 1'h isto ire", op. rit., p. 3 0 5 .
'** lh“l . p. 3 0 7 .
O PEQUENO * - D a b io g r a f ia à h is t ó r ia A VERTIGEM DA HISTÓRIA

quadrados, enquanto o Todo é uma vasta, profunda imensidão, e ele percebe, no entanto, a fragilidade da natureza humana, inclinada
cada átomo está encadeado e ligado com todos” .155 ao esquecimento. Sabe bem que, além das amnésias, a memória é
Mas, dando a palavra à vitalidade periférica da história, Carlyle infiel, que ela modifica incessantemente a hierarquia dos fatos: pode
exprime, por esse mesmo gesto, um luto. R ecorda que pedaços mesmo amanhã descobrir o alcance daquilo que é hoje escrito em
inteiros do passado estão perdidos para sempre: minúsculas e apagar o que está escrito em caixa alta. Sabe igualmente
que o trabalho de manipulação não concerne unicamente à memória,
Podemos dizer ajusto titulo que, de nossa História, a parte mais
importante está perdida sem volta; [...] e aferrar respeitosamente
mas provém também de nossa maneira de olhar: a percepção que cada
nossos olhares a esses locais sombrios e perdidos do passado um de nós tem dos acontecimentos não é em nada comparável à dos
onde, num oblívio, informe, nossos principais benfeitores, com outros. E se a história fosse impossível, ou mesmo inexistente? Se só
seus esforços diligentes, mas não co m os frutos destes esforços, existisse uma história-para? Encontramo-nos em pleno Rashomon. A
jazem sepultados.156
ideia procede de uma velha anedota, já contada por Goethe em 1806:
Os documentos que acompanham nossas incursões ao coração dos pouco tempo após ter caído em desgraça, durante a detenção que
séculos passados “não são mais que luzeiros duvidosos, esparsos num devia preceder sua decapitação, Sir Walter Raleigh observa da janela
campo imenso que deixam entrever sem o iluminar” .157 De tempos de sua cela uma escaramuça; quando escuta as três outras testemunhas
em tempos, acontece-lhe reconsiderar um episódio e descobrir assim contarem os fatos, cada uma de maneira diferente, o antigo favorito
que, após a batalha de W orcester, em 1651, Carlos II encontrou da rainha Elizabete percebe que nenhum dos testemunhos oculares
refugio junto a um pobre camponês católico. Mas logo a sombra corresponde ao que ele viu. O acontecimento se desintegrou ime­
toma-se novamente espessa: diatamente numa multidão de imagens. N o final das contas, o que se
passa não contém nenhuma verdade em si e só tem sentido quando
C om o pode que apenas ele, de todos os rústicos da Inglaterra
que trabalhavam e viviam ao mesmo tem po que ele, sobre os pensado e contado. O mesmo se passa com os acontecimentos his­
quais o sol abençoado brilhava nesse m esm o “ quinto dia de tóricos (como a travessia do Rubicão ou o impeachment de Strafford)
setembro , tenha chegado até nós; que esse pobre par de sapatos que são portanto insignificantes, inexistentes enquanto história. O
pregados, entre todos os milhões de peles que foram curtidas,
que resta é a epopeia tal com o foi sonhada, imaginada e elaborada
cortadas e gastas, subsista e permaneça, imobilizado, completo,
a nossa vistar Vemos o hom em mesm o que por um instante; por impressões pessoais...
num instante, o véu da N oite se abre, perm itindo-nos constatar
e ver, e logo se refecha sobre ele — para sem pre.158 IV
Se, para Carlyle, o ser humano é antes de tudo um animal memo­ On History coloca em cena um dilema. Para Carlyle, somente
rial, capaz de se lembrar, mais do que um animal racional e politico,
uma reflexão biográfica permite apreender a vida íntima, secreta,
do passado. Ele sabe, no entanto, que se trata de uma tarefa ines­
P ^ 7 A lgun ' decénios m ais tarde, o h istoria d or a lem ã o E d u ard M e y e r partilhará esta gotável: com o se pode almejar abarcar todas as existências humanas
" 30 ° k * crvar <1u c « em b o ra o passado seja sem p re fe ito de cu rv as, com postas
P* <cz r i urvis cada vez m en o res, o h isto n ad o r p o d e apenas traçar algum as linhas: Eduard
que alimentaram os processos históricos?
M eyer, Tm , T hcon e und M elhodik der G rsrhu hte ( 1 9 0 2 ), in K lem c Schriften c „ r G eschichleslheorie u n i zur
Mas se uma só biografia, m esm o nossa própria biografia,
""d C eschichte des A l,er,u m s. H alle. V erlag M a x N ie m e y e r, 1 9 1 0 . p. 1 -6 7 .
T h o m as C arly le, " S u r r h is to ir e " , op. ã t ., p. 3 0 5 . m esm o que a estudemos e recapitulemos com o quisermos,
H ip p o ly te T a in e , L ’ldéalism e anglais, op . ri/., p. 8 3 - 8 4 . p erm an ece-n os em tantos pontos ininteligível, quanto mais o
' “ T h o m a s C arly le, " D u g en re b io g ra p h iq u e ", op. à l „ p. 13. perm anecerão estas milhões de biografias, de que os próprios
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia A VERTIGEM DA HISTÓRIA

fatos, sem falar de seu sentido, nos são desconhecidos e não princípio dualista que escande toda nossa vida e, com uma espécie
nos podem ser co n h ecid os!159 de talento inconsciente, ora rememora, ora esquece. Uma vez que
a terra não pode guardar a lembrança de tudo o que foi feito, em
As impulsões centrífugas da vida social parecem -lhe incoeren­
certo ponto sobrevêm o esquecimento, isto é, “a página escura sobre
tes, frágeis e fragmentadas, suscitando nele o sentimento crescente
a qual a m em óna escreve e tom a legíveis seus caracteres de luz; se
da natureza infinita da história. É justamente porque essa é a soma
tudo fosse luminoso, nada se poderia ler, não mais do que se tudo
da ação humana, e portanto todo um universo, que seus limites se
fosse trevas” . Por mais retumbantes, os acontecimentos vão e vêm,
esquivam. O caos do passado, “sempre vivo, sempre em trabalho, em
balançam e caem um após o outro, “pois tudo que emergiu deve
que as formas, umas após as outras, se destacam, feitas de inumeráveis
elementos , é “sem limite, com o a morada e a duração do homem, um dia soçobrar: o que não pode ser guardado no espírito quer pre­
insondável com o a alma e o destino do hom em ” . Prisioneiro desse cisamente sair do espírito” .163 Por vezes acontece mesmo a Carlyle
dilema, Carlyle acaba por encarar a história com o uma obscura pensar que a sociedade moderna sofre de um exasperante excesso
algaravia profética: “Desse com plexo manuscrito, todo coberto de de memóna, “pois, a bem da verdade, considerando a atividade da
informes caracteres desconhecidos e inextricavelmente encavalados, Pluma e da Imprensa históricas durante este último meio século, e
algumas letras, algumas palavras podem ser decifradas”. 160 a quantidade de história que ela produziu neste único período, e
como é provável que ela cresça doravante em proporção geométrica
Trata-se de uma conclusão um bocado incómoda para um ini­
migo implacável do ceticismo. Pouco a pouco, graças ao exemplo decimal ou vigesimal —poderíamos sentir que o dia não está longe
de Wilhelm Meister, Carlyle percebe que nenhuma reflexão poderá em que, apercebendo-se de que a Terra inteira não conteria mais
distanciar a negação e o desespero: “Não se pode pôr fim à dúvida, de estas relações do que foi feito sobre a Terra, a memória humana
qualquer natureza que seja, senão pela ação”.161 E que agir significa, deveria se abater confundida, e cessar de se lembrar . Ele não
para o historiador, conter as forças do caos. Em 1833, entrevê todavia tem nenhuma intenção de acabar num mundo sobrecarregado de
uma saída. On history agam recorda por certo, uma vez ainda, todo o lembranças, incapaz de pensar:
desespero que o caráter miserável e defeituoso da história engendra:
Se não houvesse nenhuma abreviação da história, não poderíamos
A história é a Carta de Instruções que as velhas gerações escre­ nos lembrar além de uma semana. Bem mais, abordemo-la sem
vem c de que fazem o legado póstum o às novas gerações. [...] essa precaução, excluamos absolutamente as abreviações, não
Da coisa agora silenciosa que se nomeia passado, que foi outrora poderíamos nos lembrar de uma hora, ou de absolutamente nada.
o presente, com bastante barulho, que sabemos? Nossas Cartas pois o tempo, com o o espaço, é infinitamente divisível; e uma hora,
dc Instruções nos chegam no mais triste estado: falsificadas, com seus acontecimentos, com suas sensações e suas emoções,
apagadas, rasgadas, perdidas, restando apenas um fragmento; e poderia se estender de tal maneira que cobriria o campo inteiro
mesmo este tão difícil de ler ou de soletrar.162 da memória, e lançaria todo o resto para além de seus limites.

ctanto, o valor do esquecimento se afirma pouco a pouco: a Mas não podemos nos remeter apenas ao esquecimento. É preciso
* ona, seja ela individual, autobiográfica ou coletiva, segue o fazer mais: desembaraçar-se das escórias, concentrar o espaço e o
tempo numa dimensão exemplar, postular, sem incerteza, um ponto
n * o i u .. < u ly lr . " W I n i . P 3o«
fl»-' . P .Vr7
T h o m a s C « l y l e , Pasl an d Presen ,, o p . c i t „ p. 199. “'ftiJ , p 322.
* ’ T h o m as C arly le " S u r
" ' I h d . p. 3 2 0 - 3 2 1 .
ritulo “ O n H istory ag am " em 1 8 3 .7 P 317 E “ e tc x to fo1 P ^ l i c a d o e m inplês sob o
'“ / W ..p . 3 2 1 .
A VERTIGEM DA HISTÓRIA
O PEQUENO x - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia

nos lançam em direções contrárias. Carlyle parece novamente presa


luminoso. “A história, pois, antes de poder tom ar-se história uni­
da ilusão de poder apreender a realidade histórica em sua íntegra.
versal, precisa acima de tudo ser condensada” .166 E pouco importa
Depois se recupera, graças a uma estratégia narrativa fundada na
se a condensação não é justa, se celebra Cleópatra e Calígula em
metonímia. E eis que desfilam o patnarca Voltaire, o dragão Drouet,
detrimento “dos nobres homens que agem, ousam e aguentam”.167
a bela princesa de Lamballe, o simpático e discreto Bamave, o es­
Progressivamente, Carlyle se convence de que a compreensão
verdeado Robespierre, o rígido Roland de La Platrière, o gigante
histórica permanece essencialmente metafórica e de que é preciso
solitário Mirabeau, esse indolente Luís, esse bravo Bouillé. E assim
abandonar a linguagem realista pela expressão figurada: “Toda lin­
por diante. Tantos nomes, sempre precedidos de um artigo definido
guagem, à exceção daquela que concerne aos objetos sensíveis, é
ou de um pronome demonstrativo: eles não falam, não se apresen­
ou foi uma linguagem figurada. Prodigiosa influência da metáfora!
tam, nada dizem sobre si mesmos. Mais do que seres humanos em
Jamais o percebera até recentemente. U m a obra verdadeiramente
carne e osso, são personagens ou caracteres morais, constantemente
útil e tilosófica seria um bom Ensaio sobre as metáforas. Um dia es­
creverei um”.168 absorvidos pela ação. Sua existência nada tem de pessoal, é uma
expressão da história universal. O mesmo acontece com os lugares.
A História da Revolução Francesa é o fruto de um profundo
O quarto de Luís X V , o “rei indolente” , toma-se o ponto cardeal
conflito intenor: entre o desejo inicial de dar a palavra a todos os
que resume cada história da França pré-revolucionária. O historiador
protagonistas da história e aquele de condensar a essência do fenómeno
entra nessa peça, vê Luís doente, aterrorizado pela morte, rodeado
revolucionário. Carlyle se interroga: onde está a Revolução? No
pelos quinhentos mil fantasmas vergonhosamente massacrados em
palácio real, nos costumes do rei e da rainha, em seus excessos,
Rossbach e no Q uebec, “para que tua prostituta fosse vingada de
em suas cabalas, em sua imbecilidade? N ão: “Ela está neste ho­
um epigrama” . 171 Fazendo seu o olhar de Luís, toma-se o olho
mem aqui, ela está naquele homem lá, com o uma raiva ou como
da históna” : “ Há aqui outra coisa doente além do pobre Luís, não
um terror, está em todos os homens. Invisível, impalpável; e no
somente o rei da França, mas a realeza da França: eis o que, após
entanto nenhum negro Azrael, com as asas abertas sobre a metade
uma longa luta de puxões e rasgões, se parte em frangalhos .
do continente, varrendo tudo com sua espada de um mar a outro,
podena ser uma realidade mais verdadeira” .169 Mas, se é assim, como
V
podemos captar todas as forças em jogo — ainda mais que elas são
in\ÍM\eis. Para resolver esse problema é preciso que a melhor pe- As obras de Carlyle sobre a história lançam uma nova luz so
^ctração busque a luz em toda fonte possível, dirija o olhar a todo bre seu itinerário. Inspiradas por inquietações de ordem política, as
- gir onde seja possível a visão ou uma luminosidade de visão, e conferências sobre a grandeza procedem sem dúvida também da
na! ela pouerá estimar satisfeita se resolve o problema, ainda fragmentação do conhecim ento.171 O herói faz contrapeso às forças
que aproximativamente*’ r Em toda fonte possível, em todo lugar centrífugas da história, às imagens de indigestão, de fermentação, de
P ssive ... cis aí, ainda uma vez, as forças centrífugas da história que obstrução, de conflagração. Sob certos aspectos, mesmo as conferên
cias de 1840 confirmam que o herói está impregnado de inquietações
* ■> P 3 2 1 .
p- 3 2 3 .

1.1 Ibid-, t. ], p. 2 6 .

por C h l ^ H w t T t T r a , ¥ f ' fr° m 2 3 Í ^ 1822 ’ 6* ^ m 2 ’ ^ 1.1 Ibid ., t. I, p. 9


’ T h o m as C a r M . u ’ G ro lie r C lu b , 1 8 9 8 , p. 1 4 1 - 1 4 2 .
" C f . A nn R .g n c y , " T h e U n te n a n te d P laces o f th e Past: T h o m a s C a rly le and th e V a n e t.e s o f H .s-
•« T “ Í , * " * • * «■ .m . P >25 to n ca l Ig n o ra n ce ” , H istory an d T h rory , 1 9 9 6 , 3 5 , p. 3 5 1 .
O PEQUENO X - D a BtOGftAFIA À HISTÓRIA
A VERTIGEM OA HISTÓRIA

epistemologicas. De que estofo os heróis são feitos? Carlyle jamais


A sincendade, para Carlyle, não é uma maneira de se conduzir e
fomece uma definição exaustiva, menos ainda coerente. Ao contrá­
não implica apenas não dizer mentiras. Designa antes a clarividên­
rio, continua a deslizar de uma imagem para outra, num crescendo
cia, aquela que possui Dante que sabe capturar “a melodia que jaz
visionário, tal um predicador puritano presa do medo e da venera­
escondida [no mais secreto do coração das coisas], a harmonia e a
ção. No entanto, se nos atemos aos exemplos concretos e deixamos
coerência interiores” .
de lado o excesso de ênfase estilística, a força carismática do herói
mostra-se drasticamente diminuída. Entre os grandes homens retidos O olhar que dardeja com o o raio no fundo do coração das coisas

por Carlyle, alguns estão certamente em condições de deslanchar a e vê o que é sua verdade, eis o que, para mim, dá ao livro [o
Corão] todo seu valor e atesta que é um dom da própria Natureza:
energia coletiva, mas é difícil imaginar Dante Alighien ou William
um dom que ela outorga a todos os homens, mas que apenas um
a espeare com os traços de chefes capazes de inflamar as massas
em um milhão, talvez, é capaz de não ignorar. E o que chamo
como lenha seca. Samuel Johnson, Jean-Jacques Rousseau ou Robert
a sinceridade da visão, que só se enraíza num coração sincero.nh
Podenam mesmo passar por perdedores:
Que a sinceridade da visão seja o traço saliente do heroísmo fica
Nenhum dos três obteve vitórias com paráveis [àquelas de Goethe]:
ainda mais evidente se consideramos seu texto sobre Goethe. Neste,
com bateram co m coragem , mas caíram n o cam p o de honra do
sublinha duas qualidades acima de tudo. O intelecto emblemático, a
espírito. Não foram c o m o ele h eroicos portadores de luz, mas
eroicos buscadores de luz. É que suas vidas se desenrolaram em saber, a capacidade de dar forma aos sentimentos: “Tudo tem forma,
mbientes cheios de obstáculos e foram c o m o um a luta diante tudo tem existência visual; a imaginação do poeta dá corpo às coisas
uma montanha de obstáculos: de m aneira que suas almas não invisíveis, sua pluma as converte em forma”.1 E a universalidade:
puderam verdadeiram ente se abrir na luz. 174
Em G oethe descobrimos o exemplo de longe o mais impres­

. . ^e' texto dessas seis conferências se destaca um único sionante, em nosso tem po, de um escritor que é, estritamente
falando, o que a Filosofia pode chamar um homem. Ele não é
sui m m l nCer°. onze heróis se distinguem, com efeito, por
nobre nem plebeu, nem liberal nem subordinado, nem infiel
“ su D en ^ .SOlUta SIncendade- Trata-se de uma qualidade
supenor a graça : nem devoto; mas é o que há de mais excelente em todos esses,
fundidos numa pura mistura; “ um H om em claro e universal .
ai]" ' ^0r^em caPaz de realizar o que q uer que seja de grande
en a a^so^ucam ente fé naquilo que faz ou proclama, e é A poesia de Goethe não é uma faculdade separada, uma mecânica
ver C am° Uni ^omem sincero. Essa qualidade não tem nada a mental; mas é a voz de toda a harmoniosa virilidade: bem mais, é a
P<>uca lnceridade que se exp õ e deliberadam ente: esta é bem própria harmonia, a harmonia viva e vivificante dessa rica virilidade
vezr* ui-. ° Ca C va‘^osa justificação calculada, e o mais das que forma sua poesia” .178 Um a harmonia que não é sinónimo de
do w in d í? 1 nian^estaÇào de a m o r p róp rio. Já a sinceridade
paz, mas de ausência de maneirismo. Goethe é descrito sobretudo
f-*Ur c de omem ® um fato de sua natureza de que não pode
vanidom C^uer ® co r>sciente. f...] O grande h o m e m não se
como um lutador. Numa época minada pela incredulidade e pela
y. 0 • . , SCr Slncer° . longe disso, e talvez n em se pergunte vaidade, incessantemente atormentada pela dúvida, sua vida, en­
qui sua sinceridade, de fato, não depende dele.l7< quanto escritor, pensador e homem, foi marcada pela luta contra

’ T h o m as C arly le, L es H éros, op p 2 12 P


quc ° stlno dos verdadr.ro. ' CU tcxto sobre Voltaire, Carlyle afirmara mesmo '"'M-p. 121, 101.
175 OU., p. 74.75. Brand" ens e o de „ào serem «co n h ecido .. T h o m as C a rly le . G o e th e ( 1 8 3 2 ) , in N o u v e a u x E ssais, op. ri»., p. 2 3 6 .
p. 1 % .
A VERTIGEM DA HISTÓRIA
O PEQUENO X - D a B O G R A H A À HISTÓRIA

o ceticismo. W erther interpreta por certo o desespero de todos onginalmente e de maneira inata de uma capacidade flamejante de
aqueles que não renunciaram a pensar: intçlccção [...] que envolve na sua írradiaçao todas as almas . E
apenas nas situações mais felizes que a capacidade de fecundar se
Todo o mundo o sentia [o desespero], só ele soube lhe dar voz. traduz imediatamente em intencionalidade cansmática. O que diz,
E aí jaz o segredo de sua popularidade; em seu coração profundo,
todos os outros homens estavam quase prontos a dizê-lo, aspiravam
e impressionável, sentia mil vezes mais vivamente que cada um
a poder dizê-lo. Os pensamentos de todos, então, se erguem como
sentia, graças ao dom criador que lhe pertencia com o poeta, deu
a isso uma forma visivel, uma localização própria e um nome; se despertassem de um longo e penoso sono causado por algum sor­
tez-se assim o porta-voz de sua geração.17'1Mas Wilhelm Meister, tilégio, e se reúnem em tom o do pensamento do grande visionáno,
expressão de uma extraordinária firmeza intelectual, testemunha mesmo lhe respondem” .183 Por suas runas e suas nmas, Odin exalta
a liberação da dúvida: “G oethe nessa questão foi mais completo nos outros a faculdade de pensar: “Daquilo de que tivera a visão e
que qualquer outro hom em de seu tem p o”. 180
que ensinou por meio de suas runas e de seus versos, todos os povos
E nessa perspectiva que a históna é descrita com o um conjunto do Norte se impregnaram e o transmitiram de geração em geração.
i 1 >J 184
múltiplo e estratificado: Seu modo de pensamento se tomou o modo de pensamento deles .
Maomé brota com o uma fagulha “no meio de mortas extensões
[Cada livro] é o pensamento do h om em , e concentra virtudes de areia cinza” e dissemina uma areia que se revela pólvora que
quase taumatúrgicas uma vez que pode incitar o homem a to­
logo explodiu em chamas subindo até os Céus, de Deli a Granada .
das as mais belas ações. É ao m esmo tem po a materialização e
Quanto a Lutero, ele sabe discernir as necessidades da coletividade,
o vetor do pensamento. A cidade de Londres, com todas suas
casas, seus palácios, suas máquinas a vapor, suas catedrais, com moldá-las para conduzi-las à realização: em 17 de abril de 1521, seu
'eu tumulto e sua animação desmedidos, é outra coisa que o discurso na dieta de W orms expnme as súplicas e as adjurações de
pensamento, que milhões de pensamentos reunidos num todo, todos nós, aquelas do mundo inteiro, quando a alma jaz aprisionada
que um imenso condensado de pensamento materializado no numa golilha de obscuridade, paralisada num negro pesadelo espectral
tijolo, no terro, na fumaça, na poeira, nos palácios, nos ministé­
dominado por uma terrificante Quimera de tiara que se chamava a si
rios e no Parlamento, nos fiacres para H ackney e para as docas
mesma pai da Cristandade, lugar-tenente de Deus e que sei eu. .
de Santa Catanna e todo o resto?.181
Sob certos aspectos, o herói evoca o historiador artista. Graças
E o herói c aquele que, por sua sinceridade, sabe captar a realidade a um imenso esforço visionário (uma espécie de redução ótica), um
m toda sua verdade e profundeza. Ele pode combater, governar, e outro não se limitam a representar o mundo, a reproduzir o que
evcrc\er, pregar, mas o que faz a sua grandeza e a alimenta consis- é visível. R evelam -no: encarnam um ponto de unidade secreto, o
^ ua capacidade de penetrar, para além da aparência exterior, pnncípio organizador que dá uma forma essencial ao caos da vi a
ncia das coisas. O pensamento penetrante faz do herói um - "eingestaltes Leben” , com o dissera Goethe. O herói to m a a u
csp.nto fecundador: “Semelhante a um raio enviado pelo Céu, e só tempo solidárias e complementares as forças vitais peri enc
-omens o esperam, como lenha seca, para poderem por que, anterionnente, puxavam em todos os sentidos, enquanto o
mar se fogo , embora só, está ligado aos outros homens
por uma relaçào divina: verdadeira fonte de luz, é “um ser dotado
Ibid., p 2 4 , 3 6 .

Iw Ibid., p. 4 6 .
” . p. 2 0 6 .
* Ibid., p. 5 4 .
p. 2 3 5 .
Ibid., p 1 8 2 .
T h o m as C.arlylc, U s H éros, op. a , . , p. 2 2 (). C f. Je a n L a co ste, G o e th e. Scietite et p h ilo so p h ie, op . cit., p. W -
A VERTIGEM D A HISTÓRIA

historiador assinala o ponto cardeal, o ponto que reflete o universo As argumentações heróicas parecem, à primeira vista, bastiões
inteiro. Fascinado pelas ilusões de ótica (em 1852 escreverá um tra­ em defesa da biografia. Na verdade, são bastante ambíguas. Os poucos
tado intitulado Spiritual Optics), Carlyle cede aos fáceis artifícios do personagens do passado que gozam de uma dignidade pessoal têm bem
espelho.1(1 Assim, sem se dar conta, trai profundamente seu grande pouco de humano: mais que homens, são almas, verdadeiras aparições
profeta. E verdade que, também para G oethe, a realidade não pode divinas. Mesmo se a vida humana lhe parece uma mistura do divino
ser conhecida diretamente, e que o conhecim ento é sempre uma e do bestial (beast-godhood), Carlyle se convence sempre mais de que
mediação: o verdadeiro, só o vemos em reflexo, em exemplo, em os aspectos corporais podem, ou melhor, devem, ser afastados para
símbolo. Mas isso não significa que se possa encontrar um ponto exaltar o núcleo arquetípico do herói (Napoleão em Santa Helena é
de refração capaz de revelar o todo: “Nenhum a época oferece um representado com o um Prometeu acorrentado). Através dessa cui­
belvedere de onde se possa abarcar com o olhar toda essa época”.188 dadosa operação de limpeza, de eliminação de todo traço corporal,
Ao contrário, a própria ideia lhe parece desviante e superficial: “É ele espera penetrar nessa “região fundamental do espírito em que os
difícil reproduzir qualquer coisa de maneira realmente imparcial. pensamentos e os sentimentos não podem ser confinados na muralha
da personalidade” . Visa a ultrapassar a lei da individualidade, a fazer da
Poder-se-ia alegar que o espelho é uma exceção. Mas nele tampouco
biografia “uma solução para purificar os olhos de todo egotismo .
vemos jamais nossa imagem realmente exata. Mesmo o espelho in-
verte a imagem e faz de nossa mão esquerda nossa mão direita. Que Estamos bem longe das celebrações da singularidade. O culto dos
heróis está fundado na renúncia ao eu, no esquecimento da pessoa,
esteja ai o emblema de todas nossas reflexões sobre nós mesmos”.189
para tender ao universal, ao ponto do espelho que reflete o infinito.
VI O paradoxo, apenas aparente, é lucidamente expresso por Emerson
quando confessa admirar sobretudo o herói capaz de se anular.
O fluxo caótico e imprevisível da vida, desvelado pelas pri­ Impessoal e incorporai assim, o herói não é um verdadeiro
meiras reflexões historiográficas, leva Carlyle a limitar o princípio
antagonista do Espírito da filosofia clássica alemã. É antes uma nova
de necessidade. Está aí provavelmente o que mais afasta seu herói versão. C om o recordará Taine, Carlyle recolhe no heroísmo os frag
do homem providencial dos filósofos. Enquanto o grande homem mentos esparsos que Hegel submetera à lei: Lá onde Hegel colocava
tónco de Hegel realiza sem o saber um objetivo geral, os heróis uma ideia, Carlyle coloca um sentimento heroico. [...] esse ser, tal
e Carlyle se distinguem por uma intensa faculdade de discernimen­ como ele o concebe, é um resumo do resto. Pois, segundo ele, o
to. não são os mensageiros ignorantes de uma ideia universal, mas herói contém e representa a civilização em que está compreendido,
p ctas da realidade, homens conscientes das relações de força e de o herói descobriu, proclamou ou praticou uma concepção origin ,
u pas (como na tragédia de Esquilo). “Q ue compensação para e seu século o seguiu. O conhecimento de um sentimento heroico
uma populaçao de pigmeus!” comentará Ralph W aldo Emerson dá assim o conhecimento de uma época inteira. Por essa via, Car y e
em 1857, quando de sua segunda viagem à Inglaterra.190 saiu das biografias. Encontrou as grandes vistas de seus mestres. Sennu
como eles que uma civilização, por mais vasta e dispersa que se j ^
à KOIU do CIAciho Ctli í'arl L* I _ esteja através do tempo e do espaço, forma um todo indivisíve .
sur la génese de fo eu v r e de / 79Ç á i * i j » C a b a u - T h o m as C a r ly le ou le P r o m it h ie en ch ain i. Essai
“ jo h a n n W o l f ^ K G o J w J ^ ^ P U F ’ ,9 6 7 ' P « - 1 0 6 . 1 4 2 -1 4 3 . 159.
Paris, G allinurd. 1943 n I d ^ l ' trac*UZIC*° d ° aleniào p o r C .en ev iève Bianquis.
1,1 Ibid., p. 15
" Ibid., n. 7 9 5 , p. 3 4 . - •P - * 1
■ "C f. H ippolyte T a .n e , U ld è a lis m e a n d a is , op . « . . . p. 9 3 - 1 1 0 . 1 4 6 - 4 7 . So b re s u * . U p ç õ e . c o m a
‘ JUfJ. *■*<, tmcfv>n ,.Uses of GrMt

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filosofia alem ã, cf. HU1 S h in e. "C a rly le and the G erm an P h .losop hy P ro b lem d u n n g the Y e a r
M . D cn t, 1 9 0 8 , p k , in R epresen tative M en a n d O th e r E ssay s, Londrc*. J-
1 8 2 6 - 1 8 2 7 " , P M L A , 1 9 3 5 , 5 0 , p. 8 0 7 - 8 2 7 .

.\Và
O PEQUENO * - Da b io g r a f ia à h is t ó r ia

Aí esta, talvez, um destino que se repete na históna. A bio­ CAPÍTULO


grafia hero,ca aspira à totalidade: mesmo quando não está fundada no
pnncipio de necessidade e reconhece o fluxo caótico, inceno, da vida
ela nao pode evitar encarar a civUizaçào com o um todo indivisível'

seresT H ’ " T " ' * ^ P18meUS: “Sem cleS' sem tod“ « * «


res de destino desconhecido, os heróis permanecem prisioneiros de
O drama da liberdade
uma improvável e insuportável unidade de sentido”. 193

T u do o que é fragm en tário restringe m inhas ideias, eis por­


qu e não sou m atem ático e sim historiador. A partir do ele­
m ento residual posso fo rm a r um quadro completo, sei onde
faltam grupos e com o incorporá-los. Imagino que o mesmo se
dá contigo e desejaria que, consagrando como eu tua reflexão
à história, soldasses a figura sobre a tela e que, utilizando
a im aginação, trabalhasses com as cores da história.
Barthold G . Niebuhrw

I
O episódio é célebre: em 2 de outubro de 1808, quando se
encontrava em Erfiirt, em companhia do marechal Louis Alexandre
Berthier, do general Jean-M arie Savary e do príncipe de Talleyrand,
diante de Goethe, o imperador deixara escapar um lacónico “Eis
uni homem” . O que quisera dizer? Tencionava exprimir assim sua
admiração pela extraordinária capacidade de controlar a vida, pró-
pna ao grande homem mais venerado de todos os tempos? E o que
pensava Thomas Carlyle. Mais tarde, Wilhelm Dilthey abunda no

f orn o escreve, alguns


mesmo sentido: para ele, a vida de Goethe é "um crescimento que
cS h í k " P e i r e ' ° h e r o , e r u a Z n “ rvd, n , ! n tUl ^ V ° " W a r t e " b u r g . » p r o p ó s i t o d a tra g é d ia de
obedece a uma lei interior, e com o essa lei é simples, como sua açào è
: U ° S e m p rc P ° r 51 m e s m o . N e g a I o d a ’ C° m ° um P u r° - « n g u e in g lê s até
(« 0 7 H < Urf íW W ilhelm D ,l,h ey u n d d " r w C o P u la - la c e r a n d o ° p n n c íp io
e . V e r la g N ,e m e y e r 1 9 2 3 n g 4 G r< m Púul Y " c k Von W artenhur^, 1877- m O ,e Briefe B arth old G e o y e N ie h u h n , E d . D ie tn c h G erh a rd e W illia n i N o rv in . U ert.m IV 2 ô . I I.
carta de 21 de fe v e re iro d e 1 8 9 0 ).
P 3 1 7 - 3 1 8 (carta de 21 de n o v e m b ro d e 1 8 0 4 ).

n a

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