Tese Claudio de Paula Honorato PPGH Unirio

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CLAUDIO DE PAULA HONORATO

“ENTRE RIO DE JANEIRO E ÁFRICA: AS


DIFERENTES VIVÊNCIAS DA MORTE E DO
MORRER ENTRE OS AFRICANOS E SEUS
DESCENDENTES NA CIDADE DO RIO DE
JANEIRO (C. 1750 – C. 1850)”

2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS – CCH
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH

Entre Rio de Janeiro e África: as diferentes vivências da morte e do morrer entre


os africanos e seus descendentes na cidade do Rio de Janeiro (c.1700 – c.1850)

Claudio de Paula Honorato

Tese de doutorado submetida ao corpo do


docente do programa de Pós-graduação em
História da Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro – UNIRIO, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do grau de
doutor em História Social, sob orientação da
Profª. Drª. Claudia Rodrigues.

Rio de janeiro
Dezembro/2021
Catalogação informatizada pelo(a) autor(a)

Honorato, Claudio de Paula


d769 ENTRE RIO DE JANEIRO E ÁFRICA: as diferentes
vivências da morte e do morrer entre os africanos e
seus descendentes na cidade do Rio de Janeiro (c.
1700 - c. 1850) / Claudio de Paula Honorato. -- Rio
de Janeiro, 2021.
438

Orientadora: Claudia Rodrigues.


Tese (Doutorado) - Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação
em História, 2021.

1. Historia da Morte. 2. Escravidão. 3.


Catolicismo. 4. Rio de Janeiro. 5. África e
africanos. I. Rodrigues, Claudia, orient. II.
Título.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS – CCH
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH

Entre Rio de Janeiro e África: as diferentes vivências da morte e do morrer entre


os africanos e seus descendentes na cidade do Rio de Janeiro (c.1700 – c.1850)

Claudio de Paula Honorato

Aprovado por:

_____________________________________
Profª. Drª Claudia Rodrigues – Orientadora
(UNIRIO)

______________________________________
Profº Drº Anderson José Machado de Oliveira
(UNIRIO)

______________________________________
Profª Drª Keila Grinberg
(UNIRIO)

_______________________________________
Profº Drª Mariza de Carvalho Soares
(UFF)

________________________________________
Profº Drº Roberto Guedes
(UFRRJ)

Rio de Janeiro
2021
A minha mãe Izabel (1942-2009) in memoriam
Ao meu pai Sebastião (1931-2021) in memoriam
A minha esposa Ivanise e a nossa filha Bruna
AGRADECIMENTOS

Ao longo do processo de construção desse trabalho recebi valiosas


contribuições que foram fundamentais para a sua elaboração, que sem dúvida merecem
os meus sinceros agradecimentos.
A minha prezada e estimada orientadora Claudia Rodrigues pelas diretrizes
fundamentais, pelas leituras, conversas de incentivo, encorajamento, pelos caminhos
apontados. Tenho um grande carinho, respeito e admiração pela excelente profissional
que você é, mas, sobretudo como pessoa extraordinária sempre pronta a ajudar com
muita dedicação e generosidade.
A minha querida esposa Ivanise e nossa filha Bruna, que ao longo desse
trabalho, além do apoio, me deram uma ajuda valiosa nos lançamentos dos registros de
óbitos no banco de dados, juntamente com Evelyn Vasconcelos, ex-aluna do curso de
Pós-graduação em História do IPN e Bruno Santana da Silva, aluno do curso de História
da UNISUAM. A ajuda de vocês foi valiosa e muito contribuiu para a conclusão dessa
pesquisa.
Ao professor Roberto Guedes pelas brilhantes explicações e ótimos debates
que me proporcionou participar quando cursei a disciplina Escravidão e Escravização na
África, ministrada por ele na UFRRJ no segundo semestre de 5015. Agradeço também
por sua participação na banca de qualificação. Estendo os agradecimentos ao professor
Anderson Oliveira, também membro da banca de qualificação ambos deram valiosas
sugestões para este trabalho.
Aos docentes e funcionários do Programa de Pós-graduação em História da
UNIRIO, os meus sinceros agradecimentos.
Aos colegas de curso da disciplina Cultura, poder e representações,
ministrada pela professora Claudia Rodrigues pelos momentos de troca e excelente
convivência. Estendo meus agradecimentos também ao grupo de Estudos Imagem da
Morte pelos encontros de estudos e pelos momentos de confraternização nos finais de
ano. Agradeço em especial a amiga Michele pela ajuda preciosa nas dicas para correção
do banco de dados e a Milra pelo manual fornecido que muito ajudou nos primeiros
passos no trabalho com o banco de dados.
RESUMO

A presente tese analisa como os africanos de diferentes procedências


africanas e seus descendentes vivenciaram a morte e o morrer no Rio de Janeiro, entre o
Século XVIII e primeira metade do século XIX. Busca-se encontrar elementos dos
diferentes costumes africanos e sua convivência com as práticas fúnebres católicas em
solo carioca. A partir das fontes paroquias de óbitos, testamentos, compromissos das
irmandades e literatura dos viajantes, cronistas, funcionários coloniais e missionários.
Com base nos costumes fúnebres identificados, foram analisadas as diferentes formas
pelas quais se constituíram e reconstruíram as identidades africanas diante da morte no
Novo Mundo, especialmente com relação ao catolicismo e africanidade. Como a adesão
dos africanos ao catolicismo foi fundamental para a manutenção do culto aos ancestrais.

Palavras-chave: História da Morte, Escravidão, Catolicismo, Rio de Janeiro, África,


Africanos.
ABSTRACT

This thesis analyzes how Africans of different African origins and their
descendants experienced death and dying in Rio de Janeiro, between the 18th century
and the first half of the 19th century. It seeks to find elements of different African
customs and their coexistence with Catholic funeral practices in Rio de Janeiro. From
the parish sources of deaths, wills, commitments of brotherhoods and literature of
travelers, chroniclers, colonial officials and missionaries. Based on the funeral customs
identified, the different ways in which African identities were constituted and
reconstructed in the face of death in the New World were analyzed, especially in
relation to Catholicism and Africanity. As the adhesion of Africans to Catholicism was
fundamental for the maintenance of the cult of the ancestors.

Keywords: History of Death, Slavery, Catholicism, Rio de Janeiro, Africa, Africans.


LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Número de escravos retirados da África pela nacionalidade do navio que os


transportou, 1501-1867, p. 48

Tabela 2 – Número estimado de africanos escravizados que desembarcaram nos


principais portos do mundo atlântico, 1501-1867, p. 52

Tabela 3 – Número estimado de africanos escravizados que desembarcaram nos vinte


maiores portos nas Américas, 1501–1867, p. 53

Tabela 4 – Vinte maiores portos onde as viagens de comércio atlântico de africanos


escravizados foram organizadas, 1501-1867, p.56

Tabela 5 – Variação (%) da posse de escravos de acordo com as grandes faixas de


tamanho da escravaria dos meios rural e urbano do Rio de Janeiro, 1789-1832, p. 62

Tabela 6 – Procedência dos navios negreiros que atracaram no porto do Rio de Janeiro
por região de embarque, 1790-1830, p. 63

Tabela 7 – Procedência dos navios negreiros que atracaram no porto do Rio de Janeiro,
provenientes da África Central Atlântica, 1790-1830, p. 65

Tabela 8 – Dados populacionais das freguesias urbanas da cidade do Rio de Janeiro,


segundo diferentes fontes, p.71

Tabela 9 – Óbitos segundo condição jurídica por década, p. 90

Tabela 10 – Óbitos segundo a condição jurídica conforme intervalo dos livros de óbito,
p. 91

Tabela 11 – Projeção de entrada de africanos escravizados no porto do Rio de Janeiro


1700-1799, p. 95

Tabela 12 – Presença de africanos e crioulos por década, p. 98

Tabela 12.1 – Presença de africanos e crioulos, por livro, p.98


Tabela 13 – Presença de africanos e crioulos na freguesia da Sé, por sexo, por década,
p. 101

Tabela 13.1 – Presença de africanos e crioulos na freguesia da Sé, por sexo, por livro,
p. 101

Tabela 14 – Óbitos por condição jurídica/sexo, conforme livros de óbito, p.104

Tabela 14.1 – Óbitos por condição jurídica/sexo, conforme a década, p.105

Tabela 15 – Presença africana na população negra feminina e masculina, por


DÉCADA, p. 135

Tabela 15.1 – Presença africana na população negra feminina e masculina, por livro, p.
135

Tabela 16 – Sacramentos segundo a origem, p. 271

Tabela 17 – Sacramentos de acordo grupos procedência p. 274

Tabela 18 – Sacramentos X Condição Social p. 277

Tabela 19 – Sacramentos de acordo com o número de testadores, p. 279

Tabela 20 – Mortalhas de acordo com a origem, p. 285

Tabela 21 - Mortalhas X Condição Social, p. 296

Tabela 22 – Mortalhas X Sexo de acordo com a origem, p. 303

Tabela 23 – Mortalhas X Condição Social Por Sexo p. 306

Tabela 24 – Mortalhas Pelos Inocentes Segundo Origem e Sexo, p. 309

Tabela 25 – Mortalhas Pelos Inocentes de Acordo Com a Condição Social por Sexo, p.
311

Tabela 26 – Índice de Locais de Encomendação dos Corpos por Origem, p. 330

Tabela 27 – Índice do Número de Padres nas Encomendações dos Corpos por Origem,
p. 331
Tabela 28 – Índice de Locais de Encomendação dos Corpos por Condição Social, p.
336

Tabela 29 – Índice do Número de Padres nas Encomendações dos Corpos Condição


Social, p. 340

Tabela 30 – Locais de sepultamentos de acordo com os livros de óbitos da freguesia da


Sé 1700 a 1850, p. 366

Tabela 31a – Locais de sepultamentos de acordo com a condição social (POR


IGREJAS) p. 369

Tabela 31b – Locais de sepultamentos de acordo com a condição social (ESCRAVOS),


p.371

Tabela 31c – Locais de sepultamentos de acordo com a condição social (FORROS),


p.374

Tabela 31d – Locais de sepultamentos de acordo com a condição social (LIVRES, p.


377

Tabelas 32 – Locais de sepultamentos de acordo com a ORIGEM, p. 379


LISTA DE MAPAS

Mapa 1 – Volume e direção do tráfico de escravos transatlântico, de todas as regiões


africanas a todas as regiões americanas, p. 50

Mapa 2 – Principais regiões de desembarque dos cativos africanos, 1501-1867, p. 54

Mapa 3 – Países e regiões do mundo atlântico que organizaram viagens negreiras, por
volume de cativos transportados da África 1501-1867, p. 55

Mapa 4 – África Central – geografia e esquema de redes de escravização , p. 58

Mapa 5 – Evolução da área urbana da cidade do Rio de Janeiro de 1565 a 1650, p. 68

Mapa 6 – Evolução da área urbana da cidade do Rio de Janeiro de 1651 a 1750, p. 70

Mapa 7 – A cidade do Rio de Janeiro em meados do século XVII – Eduardo Canabrava


Barreiros com base na planta de André Vaz Figueira Rio de Janeiro (1750), p. 76

Mapa 8 – Detalhe do Plano da cidade do Rio de Janeiro (1791), p. 77

Mapa 9 – detalhe do Mangue de São Diogo, p. 78

Mapa 10 – Baía de Benin século XVIII, p. 126

Mapa 11 – Costa do Ouro, séculos XVII e XVIII, p. 127

Mapa 12 – Costa dos Escravos, séculos XVII e XVIII, p. 127

Mapa 13 – Visão geral do comércio transatlântico de escravos, apresentando principais


regiões fornecedoras de cativos 1501-1867, p. 129

Mapa 14 – Planta da cidade do Rio de Janeiro, 1767, p. 174


LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Presença de africanos e crioulos, por década, p. 116

Quadro 1.1 – Presença de africanos e crioulos, POR LIVRO, p. 117

Quadro 2 – Presença de africanos e crioulos, conforme SEXO, POR DÉCADA, p. 131

Quadro 2.1 – Presença de africanos e crioulos, conforme SEXO, POR LIVRO, p. 132

Quadro 3 – Escolha de mortalhas de acordo com os grupos de procedência. p. 294


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Imagem 1 – Igreja de São Domingos, p. 162


Imagem 2 – Coleta de esmolas na irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Porto
Alegre 1828, p. 211
Imagem 3 – Viático sendo levado a um doente, p. 265
Imagem 4 – Enterro de uma negra prancha, 16 p. 387
Imagem 5 – Enterro do filho de um rei negro prancha, 16 p. 388
ABREVIATURAS

AHU – Arquivo Histórico Ultramarino


ACMRJ – Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro
ANRJ – Arquivo Nacional do Rio de Janeiro
BNRJ – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO, p. 17

CAPÍTULO 1 – Rio de Janeiro: uma cidade que se africaniza c.1700 – c.1850, p. 29


1.1 – O Rio de Janeiro e a demanda por mão de obra africana escravizada, p. 29
1.2 – A cidade e a freguesia da Sé entre 1700 e 1850, p. 38

CAPÍTULO 2 – Uma cidade africanizada c.1700 – c.1850, p. 82


2.1 – A população africana e seus descentes na freguesia da Sé, p. 82
2.2 – Regiões de procedência africana, p. 106

CAPÍTULO 3 – Irmandade de pretos africanos e seus descendentes: espaços de


construção das sociabilidades, p. 138
3.1 – Irmandades de pretos africanos e seus descendentes: espaços de sociabilidades e
solidariedades, p. 140
3.2 – Irmandades de pretos africanos e seus descendentes no Rio de Janeiro e suas
devoções, p. 144
3.3 – Irmandades religiosas e resgate dos confrades africanos e seus descendentes, p.
180
3.4 – Irmandades, festas e construção de sociabilidades e solidariedade, p. 190

CAPÍTULO 4 – Preparando-se para a morte, p. 215


4.1 A preparação para a morte entre os africanos e seus descendentes no Rio de Janeiro,
p. 215
4.2 – A morte e seus rituais, p. 248
4.2.1 – A administração dos “últimos sacramentos” como ritos católicos na eminencia
da morte, p. 256

CAPÍTULO 5 – A morte e seus rituais, p. 281


5.1 – Os panos para envelopar o morto, p. 281
5.2 – Cosmologia centro-africana e cosmologia católica da morte, p. 314
5.3 – Velório, encomendação da alma, acompanhamento e missas fúnebres, p. 323

CAPÍTULO 6 – Os lugares dos mortos entre o Rio de Janeiro ou África, p. 357


6.1 – O sepultamento de africanos e seus descendentes na cidade, p. 357
6.2 Lugares dos mortos em algumas sociedades centro-africanas, p. 379
6.3 Almas ancestrais entre os dois lados da Kalunga, p. 399

CONCLUSÃO, p. 406

FONTES, p. 408

BIBLIOGRAFIA, p. 414
17

INTRODUÇÃO

Entre o início século XVIII e a primeira metade século XIX, um historiador


que direcione seu olhar as atitudes dos negros africanos e seus descendentes diante da
morte, dos mortos e do morrer, na cidade do Rio de Janeiro, poderá identificar
diferentes tipos de práticas funerárias e concepções sobre a passagem entre a vida e a
morte. Num primeiro olhar, poderá ver que, em 1786, um grupo de africanos de
procedência da Costa da Mina, que eram originários do reino Maki e pertencentes à
irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, decidiu criar uma confraria específica
dentro da mesma irmandade voltada especialmente para sufragar as almas do
purgatório. O objetivo era doutrinar as atitudes diante da morte dos seus “nacionais” e
evitar que os makis fossem vistos “pelos brancos” como praticantes dos mesmos ritos
fúnebres dos angolas, os quais, segundo eles, seriam permeados do que consideravam
serem “cantigas gentílicas e supersticiosas”. Ao longo das justificativas para tal criação,
procuravam demonstrar serem verdadeiros católicos.
Este é um caso muito rico que nos mostra, por um lado, tanto uma
preocupação de africanos e seus descendentes com uma vivência do morrer segundo as
orientações eclesiásticas católicas, como, por outro, a existência de práticas fúnebres
permeadas por elementos de matriz africana por parte de outros grupos de negros
traficados da África. A adoção de rituais católicos por escravizados e libertos africanos
também pode ser identificado nos inúmeros registros paroquiais de óbito das freguesias
centrais da cidade do Rio de Janeiro ao longo do século XVIII e em parte do XIX e nos
sinaliza para costumes próximos dos realizados pelos segmentos sociais não africanos;
sendo alguns dos que os adotavam, inclusive, permeados de elementos de pompa
fúnebre, principalmente entre os libertos.
No caso dos vestígios da adoção de rituais africanos, a análise de trabalhos
ligados à história da morte no Brasil 1 e de relatos de viajantes estrangeiros que aqui

1
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil no século XIX. São
Paulo, Cia. das Letras, 1991, RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos:
tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de
Cultura; Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 1995, SWEET, James H. Recriar África: cultura,
parentesco e religião no mundo afro- português (1441-1770). Lisboa: Edições 70, 2007.
18

estiveram ao longo do XIX 2 (DEBRET, 1989; KIDDER, 2001; LUCCOCK, 1975)


evidencia a presença de cerimônias fúnebres permeadas de elementos africanos – tais
como: batuques, danças, escabriolas, música, palmas, fogos, tambores –, ainda que o
destino do cadáver fosse uma igreja católica. A partir desses indícios, é possível
perceber como os africanos e seus descendentes vivenciavam de modos diferentes a
morte e o morrer, na cidade do Rio de Janeiro, entre o século XVIII e a primeira metade
do século XIX. O objetivo da presente pesquisa é justamente investigar as diferenças e
semelhanças das atitudes diante da morte e do morrer dos variados grupos de africanos
– escravizados e libertos – que se fizeram presentes na cidade.
O recorte cronológico inicial justifica-se por que, na virada do século XVII
para o século XVIII o Rio de Janeiro passou a ter um papel central no quadro político
econômico e cultural no âmbito do império colonial português, sobretudo após a
descoberta do ouro em Minas Gerais. Ao longo do século XVIII, o seu porto se tornaria
o maior importador e distribuidor da mão de obra africana vinda de diferentes regiões
da África, com destaque para a África Ocidental e Centro Ocidental. Na década de
1750, tornou-se o principal fornecedor de cativos em todo o centro Sul/Sudeste – Minas
Gerais, Rio grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Espírito Santo e Norte
Fluminense –, sendo a região de Minas Gerais desde o início do século XVIII, com o
incremento da mineração, um grande pólo de demanda por de mão de obra africana
escravizada desembarcada no porto carioca. Mesmo diante da crise da mineração em
meados do século XVIII, a economia mineira reorientou-se para a produção de gêneros
alimentícios para o abastecimento do mercado interno, absorvendo em torno de 40% a
60% dos cativos vendidos a partir do Rio de Janeiro. Nas três primeiras décadas do
século XVIII, mais de 250 mil africanos foram enviados do porto de Luanda para as
Américas, sendo a maioria enviada para o Rio de Janeiro, que emerge a partir de então
como o principal destino de africanos escravizados no Brasil, devido a sua proximidade
com as regiões mineradoras. Situavam-se na capitania do Rio de Janeiro outros núcleos
de demanda por mão de obra africana escravizada, sobretudo a região de Campos dos
Goitacazes, com produção de açúcar, alimentos e pecuária 3. A praça mercantil do Rio

2
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro S.A. s/d.
volume I e II; KIDDER, Daniel P. Reminiscências de viagens e permanências no Brasil: Rio de Janeiro
e Província São Paulo. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2001; LUCCOCK, John. Notas
sobre o Rio de Janeiro e parte meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/ São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1975;
3
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio
de Janeiro. São Paulo, Cia das Letras, 1997, 39-40.
19

de Janeiro, formada pela capital e periferia imediata, constituía-se no segundo pólo de


demanda por mão-de-obra africana. A instalação do Tribunal da Relação, em 1751, e a
transferência da capital da colônia para o Rio de Janeiro, em 1763, transformou a cidade
no novo pólo jurídico do Brasil, tendo que acomodar um grande número de funcionários
públicos, importantes e bem remunerados, os quais passam a demandar de inúmeros
serviços e moradias, demandando de mão de obra escravizada 4.
Na segunda metade do século XVIII, o porto Rio de Janeiro já estava
consolidado como o maior centro importador e distribuidor de mão de obra africana
escravizada na América portuguesa e se manteria no século XIX, até 1850, já no
Império. O período entre 1790 e 1830, se inicia com uma relativa estabilidade, que vai
até 1810, com desembarques médios em torno de 9.967 escravizados/ano. Se intensifica
a partir de 1811, sob a influência da abertura dos portos ao comércio internacional,
duplicando as entradas de africanos escravizados elevando o volume de entradas para
20.908 anuais. A partir de 1826, em função do tratado com a Inglaterra para
reconhecimento da independência (do Brasil) – que estipulava o fim do tráfico em 3
anos –, há um aumento vertiginoso na compra de mão de obra africana escravizada por
parte dos traficantes cariocas, que praticamente dobrou a entrada deste grupo social no
porto do Rio de Janeiro para 38.434 anuais. Portanto, para a primeira metade do século
XIX o impacto do tráfico atlântico para o Rio de Janeiro seria ainda maior 5.
De acordo com o Slave Trade Database, entre 1808 e 1856, o Rio de Janeiro
recebeu 1.047.000 africanos, sendo a região de Angola a maior fornecedora. A partir
desse período, dos portos da África Oriental também viria uma quantia significativa de
africanos escravizados para o Rio de Janeiro, especialmente de Moçambique. Entre
1831 e 1850 intensificou a chegada de africanos no porto do Rio de Janeiro. Do total de
africanos trazidos para o Brasil em trezentos anos, aproximadamente 20% chegou entre
1831 e 1855, demonstrando a importância do tráfico ilegal de escravizados com uma
participação significativa do porto de Cabinda. Esses dados confirmam o papel central
alcançado pelo Rio de Janeiro na reprodução do escravismo no Sudeste e mesmo para
Sul, a partir da segunda metade do século XVIII, que se manteria até 1850, com o fim
4
CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos novos no Rio setecentista. In. FLORENTINO (org).
Tráfico, cativeiro e liberdade. Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005; HONORATO. Claudio de Paula. Valongo: o Mercado de almas da praça carioca.
Curitiba: Appris, 2019, p. 53.
5
FLORENTINO, Manolo. Tráfico atlântico, mercado colonial e famílias escravas no Rio de Janeiro, c.
1790-c. 1830. História: Questões & Debates, Curitiba, Editora UFPR, n. 51, jul./dez. 2009, p. 76;
FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Dos sertões ao Atlântico: tráfico ilegal de escravos e comércio lícito
em Angola, 1830-1860. Dissertação de Mestrado em História, UFRJ, Rio de Janeiro, 1996, pp. 2-6.
20

do tráfico 6.
Ao longo deste período de cerca de um século e meio, houve diferentes
ondas de chegada e predomínio dos vários grupos de procedência africana na cidade do
Rio. Os estudos apontam para diferentes caminhos. Entre as décadas de 1710 e 1750, os
dados de Mariza Soares, com base em registros de batismo, sugerem a predominância
dos de procedência mina 7. Flávio Gomes, ao analisar os registros de óbitos relativos às
áreas urbanas e suburbanas da cidade, no século XVIII, encontrou a predominância de
cinco grupos de procedência: angolas, africanos oriundos da Guine, mina, benguelas, e
congos 8. James Sweet ao analisar os testamentos de proprietários de africanos
escravizados em duas paroquias do Rio de Janeiro no período de 1736-1740, identificou
que dois terços dos africanos eram provenientes da África Centro Ocidental, com
destaque para angolas, benguelas e ganguelas congos e monjolos 9. Esses dados
confirmam a predominância dos africanos centro-ocidentais entre os grupos de
procedência no Rio de Janeiro, principalmente a partir da segunda metade do século
XVIII. Para o século XIX, o estudo abrangente e pioneiro de Mary Karasch identificou
as origens dos seguintes grupos de africanos importados pelo Rio de Janeiro vindos da
África-Ocidental, Centro Ocidental e Oriental, além de “origem africana desconhecida”:
congo, angola, benguela, mina, cabinda, cassanje, moçambique 10. Flavio Gomes, ao
pesquisar os registros de óbitos da paróquia da Candelária relativos ao período entre
1810 e 1830, constatou a predominância dos seguintes grupos de procedência:
benguelas, congo, angolas, cabindas e moçambiques 11.
Acredito que os índices dos registros óbitos são importantes marcadores das
mudanças nos fluxos de escravizados que viveram e morreram na cidade, pois indicam
com mais segurança os escravos que viveram na cidade, diferentemente dos registros de
6
Cf. ELTIS, David. Economic growth and the endind of the transatlantic slave trade. New York: Oxford
University Press, 1987, pp. 243-4; FERREIRA, op. cit., pp. 15,16; PIRES,
Ana Flávia Cicchelli. Tráfico Ilegal de Escravos: os caminhos que levam a Cabinda. Dissertação
Mestrado. Niterói: Universidade Federal Fluminense. PPGH/UFF, 2006, pp. 23-25.
7
SOARES, Mariza de Carvalho. Os devotos da Cor. Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio
de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, 73-85; ______. Indícios para o
traçado das rotas terrestres de escravos na Baia do Benim, século XVIII. In SOARES, Mariza de
Carvalho (org.) Rotas atlânticas da diáspora africana: da Baía do Benim ao Rio de Janeiro. Niterói:
EDUFF, 2007
8
GOMES, Flávio. A demografia atlântica dos Africanos no Rio de Janeiro, séculos XVII, XVIII e XIX:
algumas configurações a partir dos registros eclesiásticos. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, Rio
de Janeiro, v. 19, supl, dez. 2012, p.93.
9
SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770).
Lisboa, PT: Edições 70, 2007, pp. 43-4.
10
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1800-1850). São Paulo Cia das Letras,
2000, p. 35.
11
GOMES, op. cit., 97.
21

batismo, que podem incluir escravizados deslocados para outras regiões da América
Portuguesa, como Minas Gerais. Nesta pesquisa utilizamos os registros de óbitos da
Freguesia do Santíssimo Sacramento da Sé, a fim de mapear o contingente de africanos
livres e escravizados que deram entrada e permaneceram na cidade, assim como o
contingente de crioulos no período estudado. Seguindo os argumentos de Mariza
Soares, estas nações são pensadas em termos de grupos de procedência devido a seu
universo semântico, pois poderiam designar desde portos de embarque, ilhas, vilas,
reinos a pequenos grupos étnicos. A autora faz opção de usar grupo de procedência em
lugar de nação, pois este último era atribuído pelo colonizador e só depois apropriado
pelo grupo. Com base no pressuposto que os grupos étnicos chegados às Américas em
situação de cativeiro tinham infinitas possibilidades de reorganização e não aquelas
previamente definidas em suas sociedades de origem, a autora escolhe o termo “grupo
de procedência”; embora esclareça que essa noção não eliminava a importância da
organização social e das culturas das populações escravizadas no ponto inicial do
deslocamento, privilegiando, ao contrário, sua organização no ponto de chegada. Deste
modo, as formas de organização dos negros africanos no Rio de Janeiro teriam tanto ou
mais a ver com as condições do cativeiro do que com o passado africano. Para ela, os
critérios de participação nesse ou naquele grupo foram definidos aqui e não na África 12.
Ao olhar para este amplo espectro de grupos de procedência de africanos
que se fizeram presentes na cidade do Rio de Janeiro, nossa análise será no sentido de
compreender as diferentes formas pelas quais estes vivenciaram seus costumes
fúnebres. Ao fazer isso, nossa intenção é identificar semelhanças e diferenças entre seus
funerais, com vistas a perceber a existência de elementos da morte africana na freguesia
da Sé da cidade do Rio de Janeiro. As evidências citadas no início deste texto indicam
que não podemos olhar para a morte dos africanos como se fosse algo unívoco.
O campo da história da morte no Brasil já completou três décadas, após os
estudos pioneiros do início dos anos 1990, tendo a obra de João José Reis como
importante publicação. Ao traçar um perfil da morte africana na Bahia, João José Reis
buscou suas origens nos Calundus, nos quais havia semelhanças com os ritos dos jejes
na África. Mas o autor lamenta não ter relatos tão ricos em detalhes sobre a morte
africana na Bahia como os do Rio de Janeiro, feitos por Kidder e Debret e os campara
com os relatos dos historiadores para os Estados Unidos, onde os funerais eram também

12
SOARES, op. cit., p. 109.
22

noturnos e festivos. O aponta que mesmo não tendo relatos tão ricos, havia indícios de
que, na Bahia, os africanos que ali residiam festejavam os seus mortos com cerimonias
semelhantes 13.
Ao estudar os registros paroquias de óbitos da freguesia da Sé, no Rio de
Janeiro do século XIX, Claudia Rodrigues analisou as concepções dos africanos acerca
da morte, bem como alguns rituais funerários. Fazendo uso de uma bibliografia
antropológica de africanistas e relatos de viajantes, percebeu que muitos escravos e
libertos, sendo estes africanos ou crioulos, recorreram ao funeral cristão, por ser este
oficialmente aceito e adotado pela maioria da população da Corte e o permitido pela
religião oficial do Estado. A autora afirma que isso não impedia que, paralelamente
aqueles indivíduos fizessem uso das suas práticas ancestrais, tanto antes como depois do
funeral cristão, o que apontava para a possibilidade de alguns daqueles indivíduos terem
adotado as duas práticas conscientemente. Os elementos africanos dos rituais
ressaltavam-se no clima festivo das cerimonias fúnebres africanas, onde eles cantavam,
dançavam, comiam e bebiam ao som de tambores, pandeiros e outros instrumentos 14.
Em estudo sobre a vida dos escravos na cidade do Rio de Janeiro na
primeira metade de século XIX, Mary Karasch, com base nas causas mortis em registros
de óbitos da Santa Casa da Misericórdia, analisou a morte escrava, como resultado de
uma complexa combinação de fatores: má alimentação, dieta inadequada, fome, descaso
dos senhores, maus tratos, que tornavam os cativos presas fáceis dos vírus, bacilos,
bactérias e parasitas que ceifavam a vida escrava em solo urbano. Os dados obtidos
através da análise das fontes permitiram a autora estabelecer padrões de mortalidade
diferenciados para homens, mulheres e crianças, africanos e crioulos, o que influenciava
diretamente no comércio de negros novos na cidade 15.
Ao estudar o Cemitério dos Pretos Novos localizado no Valongo, entre o
final do século XVIII e a primeira metade do século XIX, Júlio Cesar Pereira analisou o
que interpretou como sendo o descaso das autoridades eclesiásticas e dos agentes do
Estado associada à ganancia dos traficantes no sepultamento dos negros novos, bem
como à violência cultural e os infortúnios que tal campo santo causava na vida dos

13
REIS, op. cit., p. 160.
14
RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres
no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura; Arquivo Geral da Cidade do Rio de
Janeiro, 1995.
15
KARASCH, Mary C. op. cit., p.p, 143-158.
23

moradores do Valongo 16.


Iamara Viana analisou a morte de escravos, seu lugar social e simbolismo na
sociedade de Vassouras e as relações de poder presentes no período de 1840 a 1880 na
Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Vassouras. Ao tratar dos ritos fúnebres,
percebeu uma socialização na forma como escravos e livres tentaram assegurar para si,
às formas do bem morrer. Entre os descendentes de escravos, mesmo entre os mais
pobres, havia uma tentativa de aproximação dos costumes fúnebres dos brancos e
grandes proprietários na forma de inumação. A autora afirma que a complexidade
religiosa que se formou na região, sob o prisma da legislação eclesiástica e as tentativas
de controle por parte dos senhores, podem ter garantido a manutenção dos cultos
africanos, uma vez que os senhores permitiam a seus cativos a realização de seus credos
aos domingos. Neste caso, presumia-se a permanência dos rituais de origem africana na
vida e na morte dos escravos e seus descendentes. As negociações em torno da
religiosidade tornaram possível aos negros manterem sua cultura dentro das
possibilidades existentes numa sociedade escravista. A autora observa que as
reconstruções da morte e do Além-túmulo a partir do encontro de culturas diversas
possibilitou uma adaptação, principalmente entre os negros batizados, a seguirem, em
certa medida, os padrões da religião dominante. No entanto, não se podia afirmar que os
negros houvessem abandonado sua cultura anterior, pois alguns senhores permitiam a
prática de batuques em suas fazendas, ainda que fosse após os seus rituais 17.
Milra Bravo Nascimento analisou os rituais fúnebres católicos de uma
forma geral, no sentido de compreender as relações entre os ritos fúnebres e as
hierarquias sociais. A autora observa que esta era uma sociedade com traços do antigo
regime, composta de uma complexa rede hierárquica que refletia suas estruturas em
diferentes esferas. Bravo reconstrói alguns aspectos concernentes à vida, para a partir
dai, tentar compreender como se davam algumas práticas relacionadas à morte. A autora
parte da ideia de que a sepultura seria o momento culminante dos ritos fúnebres
católicos e um dos aspectos de maior visibilidade das hierarquias sociais na sociedade
escravista carioca. Segundo a proposição de Van Gennep, era o momento de maior
dramatização e que, para identificá-lo faz-se necessário ter uma visão global acerca dos
ritos como um todo. Para tanto, a mesma se utiliza dos textos normatizadores católicos

16
PEREIRA, Júlio Cesar Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond: IPHAN, 2007.
17
VIANA, Iamara da Silva. Morte escrava e relações de poder em Vassouras (1840-1880): hierarquias
raciais, sociais e simbolismos. Dissertação de mestrado – PPGH/UERJ, 2008, pp. 58-72.
24

comparando-os com os registros de óbito, com o objetivo de verificar as normas vividas


na prática. A autora finaliza o seu estudo com a análise dos locais de sepultura no Rio
de Janeiro comparando os dados obtidos com os de outras regiões, para perceber se
seriam ou não especificidades da região. Justamente por considerá-los o momento
culminante dos ritos católicos, Bravo observou que muitos escravizados e libertos, além
de adotarem um funeral católico, fizeram uso em muitos deles da pompa fúnebre 18.
Vitor Cabral Braga analisou as práticas associadas ao “bem morrer” católico
nas freguesias rurais do Recôncavo da Guanabara, no século XVIII. O objetivo da
pesquisa foi comparar os ritos fúnebres das freguesias rurais com as freguesias urbanas
do Rio de Janeiro, no sentido de compreender a “geografia da morte”. Com base nos
registros paroquiais de óbitos, testamentos, compromissos das irmandades, visitas
pastorais e legislação eclesiástica, o autor analisou os diferentes espaços sagrados
escolhidos pelos católicos dessas regiões para o sepultamento de seus mortos. O autor
considerou “que o cotidiano paroquial confraternal no agenciamento do morrer era um
território sujeito a conflitos, tensões em especial nas paróquias rurais nas quais as
irmandades religiosas não possuíam templos próprios e estavam instaladas em altares
laterais da matriz, concorrendo com a fábrica pela posse de covas”. Ao analisar os ritos
fúnebres, Braga percebe que havia entres os forros uma tentativa de aproximação do
mundo dos livres e consequentemente uma tentativa de afastamento do mundo do
cativeiro na hora da morte. Assim os forros que em vida conseguiram se afastar do
passado da escravidão procuravam manter isso refletido na hora da morte. Essa era uma
característica inerente à sociedade escravista também em áreas urbanas 19.
Michele Helena Peixoto da Silva estudou os ritos fúnebres e os seus locais
de sepultamentos de escravos na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá,
entre 1730 e 1808. A partir da análise dos registros paroquiais de óbito, inventários
post-mortem, documentação eclesiástica, visitas pastorais, relatórios de vice-reis e uma
vasta bibliografia voltada para os estudos sobre escravidão e morte escrava, a autora
buscou perceber as hierarquias entre os cativos por ocasião da morte naquela freguesia

18
BRAVO, Milra Nascimento. Hierarquias na Morte: uma análise dos ritos fúnebres católicos no Rio de
Janeiro (1720-1808). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro – UNIRIO, 2014, pp.136-173.
19
BRAGA, Vitor Cabral. Lugares para “bem morrer” no Recôncavo da Guanabara/RJ: Irmandades, Ritos
e tensões na geografia da morte (c.1720 a c. 1800). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro:
Universidade Federal do Estado do Rio de janeiro/UNIRIO, 2015.
25

rural 20.
A partir da análise desses trabalhos e considerando ainda a existência de
outros direcionados às questões acerca da mortalidade escrava de modo geral,
considerando que há ainda uma lacuna na historiografia da morte sobre a cidade do Rio
de Janeiro em relação às atitudes diante da morte e morrer entre africanos e seus
descendentes no que diz respeito às formas africanas diante da morte na cidade do Rio
de Janeiro escravista. Minha proposta é justamente analisar os costumes dos diferentes
grupos de africanos que se fizeram presentes no Rio de Janeiro, entre o século XVIII e
meados do século XIX, partindo de suas atitudes diante da morte e do morrer em busca
de elementos desses rituais entre os diferentes grupos. Proponho também fazer a viagem
“de volta” pelo Atlântico em busca de perceber como esses diferentes grupos de
procedência vivenciavam a morte e morrer em solo africano – levando em consideração
as três regiões geográficas que mais exportaram africanos para o Rio de Janeiro: África
Ocidental, Centro Ocidental e Oriental –, para efeitos de comparação com algumas das
práticas identificadas no Rio de Janeiro, na busca analisar as diferentes formas pelas
quais se construíram e reconstituíram as identidades africanas no Novo Mundo,
especialmente com relação ao catolicismo e africanidade na vivência da morte e do
morrer no período estudado.
Para a elaboração da pesquisa que originou esta tese, fiz uso de uma
documentação variada que teve como fontes principais os registros paroquias de óbitos
e testamentos relativos à freguesia da Antiga Sé do Rio de Janeiro. Utilizei metodologia
da história serial quantitativa: os conteúdos transcritos foram inseridos em banco de
dados de óbitos da freguesia da Sé – utilizando o programa ACCESS (Microsoft) –
elaborado e cedido pela professora Claudia Rodrigues e sua equipe de orientandos de
Iniciação Científica. Aos registros já existentes até 1812, agreguei os relativos aos anos
até 1845. Utilizei também os testamentos de africanos e crioulos libertos, os
compromissos das irmandades, literatura dos viajantes e memorialista, funcionários
colônias e missionários.
Levando-se em consideração todas essas questões, essa tese está dividida
em seis capítulos. O capítulo 1 tem por objetivo analisar a demanda por mão de obra
africana escravizada na cidade do Rio de Janeiro, assim como sua relação com o tráfico
Atlântico. Mapear como ocorreu a chegada das levas dos diferentes grupos de

20
SILVA, Michele Helena Peixoto da. Morte, escravidão e hierarquias na freguesia de Irajá. Dissertação
de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. UNIRIO, 2017.
26

procedência africana na cidade, durante o século XVIII e a primeira metade do século


XIX, as regiões para onde eram enviados e os grupos que permaneciam na cidade e
como a mão de obra africana se consolidou como principal forma de trabalho na cidade
do Rio de Janeiro a partir do século XVII. Analisei os fluxos do tráfico para a cidade,
identificando as áreas africanas de fornecimento de cativos, bem como os grupos de
procedência que aqui foram desembarcados ao longo do período de análise.
No capítulo 2, a partir dos registros de óbitos e do diálogo com a
historiografia do tráfico atlântico, dos censos produzidos em 1834, 1838 e 1849 e as
informações do banco de dados The Slave Trade Data Base, passo a identificar a
população africana e seus descendentes na freguesia da Sé, sua composição
demográfica, perfil sexual, condição jurídica e social, cor e suas regiões de procedência
no continente africano. Procuro identificar a composição demográfica da população da
cidade em especial a da freguesia da Sé com base nos livros de registros óbitos,
relacionando-os com os crescentes desembarques de africanos escravizados no porto
carioca procedentes das três grandes regiões de procedência africana: África Ocidental,
África Centro Ocidental e África Oriental, entre o século XVIII e a primeira metade do
século XIX, de acordo com as diferentes conjunturas do tráfico atlântico. Observo quais
grupos procedência são majoritários na cidade com base nessas conjunturas.
No capítulo 3, após situar os grupos de procedência africana que
permaneceram na cidade, especialmente na freguesia da Sé, busco identificar de que
modo construíram laços de solidariedade por meio das irmandades religiosas, que lhes
prestariam auxílio na doença e na morte. Analiso como a instituição de irmandades e
confrarias na cidade, juntamente com a construção de suas capelas/igrejas, fizeram parte
de um processo de inserção social e cultural de africanos e seus descendentes na cidade,
fundamental para instituição de espaço de devoção e construção de uma rede de
sociabilidades e solidariedade. Para isso, faço uso de compromissos/estatutos de
algumas das irmandades localizadas na freguesia da Sé, registros de óbitos, literatura de
viajantes, Coleção da Legislação Portuguesa e Legislação Eclesiástica. Identifico as
origens de algumas das irmandades de pretos e seu desenvolvimento, identificando seu
papel na reorganização da cultura africana na América Portuguesa e como elas refletiam
a forma de organização social, política e as hierarquias sociais da sociedade colonial,
por meio de sua composição étnica, dos conflitos entre as irmandades e no interior de
cada uma delas, a distribuição dos cargos, festas, sepultamentos etc. Analisei também as
tensões entre os grupos de procedência no interior das irmandades e como as dinâmicas
27

de (re)construção de identidades através das devoções criavam barreiras que


demarcavam os espaços devocionais como exclusivos de alguns grupos. A posse de um
terreno por parte dos africanos e seus descendentes podia significar um espaço de
convivência, sociabilidade, solidariedade, de pertença e auxilio mutuo de vivência de
sua religiosidade. Mas, para além destes elementos, representariam espaços de
construção de sepulturas. Analiso como a festa foi para as irmandades de africanos e
seus descendentes espaços de construção de sociabilidades e solidariedades que lhes
permitiram recriar sua cultura e identidade no Novo Mundo. Como, através das festas
em homenagem aos santos padroeiros, nas quais se elegiam reis, rainhas, imperadores e
imperatrizes, os escravizados e libertos encontraram uma maneira de reelaborar suas
raízes africanas no Novo Mundo. A celebração dos santos padroeiros nas irmandades
cariocas pelos diversos grupos de pretos africanos revelou-se extremamente eficaz na
estratégia de reconstrução de suas identidades sociais ao mesmo tempo em que a
memória africana reforçava a identidade particular de grupo.
No capítulo 4, com base nos registros de óbitos, testamentos deixados por
alguns africanos e seus descendentes, compromissos de algumas irmandades de pretos,
o estatuto da Congregação dos Pretos Minas Makis e do diálogo com a historiografia da
morte e legislação eclesiástica, analiso como os africanos e seus descendentes se
preparavam para a “boa morte”. Assim como os diferentes grupos de africanos o
fizeram em suas regiões de procedência. A realização dos rituais fúnebres, a redação do
testamento estabelecendo as suas últimas vontades, o recebimento dos últimos
sacramentos, escolha do tipo de mortalha, cortejos fúnebres, escolha do local de
enterramento, etapas fundamentais na preparação do moribundo para a “boa morte”.
Embora indicativos da religião oficial, nos permitem perceber eventual presença de
elementos das atitudes africanas diante da morte nos rituais funerários dos mortos na
freguesia da Sé.
No capítulo 5, analiso as etapas finais dos ritos fúnebres, a preparação do
morto para o velório e o sepultamento. Assim, o toalete do morto e o uso da mortalha
tinham como objetivo de preparar o morto para ir ao encontro dos ancestrais e para tal o
morto deveria estar apresentado condignamente envolto em mortalhas específicas. Essa
prática se relacionava à importância dos laços entre vivos e os mortos, bem como
garantia a proteção dos antepassados.
Busca-se identificar nessa e em outras práticas do ritual fúnebre presente
nos registros de óbitos, nos relatos dos viajantes, cronistas e missionários eventuais
28

diferenças nas práticas funerárias de africanos e seus descendentes entre os variados


grupos de africanos presentes na cidade, assim como tais práticas eram realizadas nas
regiões de procedência africana para analisar até que ponto haveria especificidades dos
costumes fúnebres entre diferentes grupos de procedência e/ou se os ritos funerários
católicos se sobrepunham às práticas dos africanos dificultando a visibilidade de
elementos da cultura de origem.
No capítulo 6, busco identificar os lugares dos mortos no Rio de Janeiro e
na África. Para tal, utilizo os registros de óbitos, os relatos dos viajantes, cronistas,
funcionários coloniais e missionários, que nos permitem conhecer os locais preferidos
por estes indivíduos, tanto no Rio de Janeiro, como na África. Nesse ponto, será
possível identificar se há diferenças entre os africanos sepultados nas covas da paróquia
e nas das igrejas de irmandades. Acredito que isso me permitirá identificar as
hierarquias existentes entre os lugares de sepultura para africanos e os seus
descendentes.
Desejamos que esta pesquisa possa contribuir para aprofundar o profícuo
debate já estabelecido a três décadas no campo da história da morte no Brasil. Mas isso
quem poderá dizer é o leitor, que hora convidamos para iniciar a leitura.
29

CAPÍTULO – 1 –

Rio de Janeiro: uma cidade que se africaniza c.1700 – c.1850.

1.1 O Rio de Janeiro e a demanda por mão de obra africana escravizada

A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro foi fundada sob o signo da


disputa colonial entre Portugal e França 21. Situada em uma posição estratégica para o
domínio do Império Português sobre esta região do Atlântico Sul e sob o medo
constante de um ataque estrangeiro 22, havia uma constante presença de embarcações
estrangeiras na Baía de Guanabara, sobretudo francesas, que navegavam por toda a
costa, realizando escambo com as populações indígenas, embarcando grande quantidade
de pau-brasil 23. Entre 1501 e 1555, mais de 330 barcos estrangeiros passaram pela Baía
de Guanabara 24. Desde a sua fundação até o século XIX, a cidade do Rio de Janeiro
viveu a experiência de um constante estado de sitio.
Tão logo se deu o estabelecimento da urbe carioca, imediatamente seu
recôncavo foi povoado por fazendas e engenhos, muitos em locais em que outrora
habitava a população indígena combatida pela guerra justa. Estabelecia-se, assim, a
expansão e o domínio lusitano para o interior do território da capitania do Rio de
Janeiro, bem como garantia-se o acesso continuo à mão de obra de baixíssimo custo

21
BICALHO, Maria Fernanda. A Cidade e o Império: o Rio de Janeiro no Século XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira. 2003, p. 176; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá. Na Encruzilhada do Império:
Hierarquias Sociais e Conjunturas Econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650-c.1750). Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional. 2003, p. 57.
22
PESAVENTO, Fabio. Um Pouco Antes da Corte: A Economia do Rio de Janeiro a Segunda metade do
Setecentos. Jundiaí: Paco Editorial, 2013, p. 18
23
BICALHO, Maria Fernanda. A França Antártica, o corso, a conquista e a “peçonha luterana”. Revista
História, São Paulo, 27 (1): 2008.
24
DEAN, Warren. Indigenous populations of the São Paulo-Rio de Janeiro coast: trade, aldeamento,
slavery and extinction. Revista de História. Universidade de São Paulo n. 117, 12/07/1984.
“Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/61343. Acessado em: 22/032018.
30

devido a sua produção via guerras 25. Ao analisar as formas de acumulação da elite
carioca nos seiscentos, João Fragoso apontou que a distribuição de mercês viabilizou a
acumulação de riquezas que mais adiante se transformaria em engenhos de açúcar, ou
melhor, na própria economia de plantation. Em nome do bem comum da república, a
câmara municipal intervinha no mercado controlando os preços e serviços ligados ao
abastecimento da cidade. No Rio de Janeiro, nos séculos XVI e XVII, ela discutia o
valor dos fretes para o reino e o preço do açúcar. Da mesma forma, podia conceder o
exclusivo de bens e serviços essenciais à vida comum da cidade, a exemplo do açougue
público. Uma prática herdada da sociedade portuguesa foi a ideia de conquista, ou seja,
através da guerra se apropriar de terras e homens. No caso da América colonial tal
prática possibilitou aos ‘conquistadores’ a distribuição de territórios e do gentio da terra,
através das chamadas ‘guerras justas’. Assim, no Rio de Janeiro na passagem do
quinhentos para o seiscentos, a combinação da conquista, com o sistema de mercês e as
prerrogativas da Câmara contribuíram decisivamente para a montagem da economia de
plantation e para a afirmação de sua primeira elite senhorial 26. Portanto, a guerra contra
o gentio se expressou como um dos mecanismos fundamentais para o processo de
acumulação colonial 27.
No século XVII, o Rio de Janeiro já estava profundamente envolvido com o
tráfico atlântico e com o mercado de africanos na cidade em franco desenvolvimento. O
trabalho do africano escravizado já estava bastante enraizado na sociedade carioca 28,
embora, até meados do século XVII, os índios ainda se constituíssem em força de
trabalho essencial para a capitania carioca 29. Mesmo que os negros africanos fossem a
mercadoria principal no contrabando no Rio da prata, sua presença na capitania do Rio
de Janeiro foi crescente durante o seiscentos, fazendo com que, ao final do século, a
cidade e a capitania pouco ou nada mais dependesse das fontes indígenas de mão de

25
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: Identidade e cultura nas aldeias
coloniais do Rio de Janeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV-FAPERJ, 2013p. 87; SAMPAIO, op.
cit., p. 59; SCHARTZ, Stuart B. Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial. São
Paulo Cia das Letras, 2005, pp. 45-56-58.
26
FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fatima Silva e BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Uma
Leitura do Brasil Colonial: Bases da materialidade e da governabilidade no império. Penélope, Nº 23,
2000, p. 70; FRAGOSO, João. Algumas notas sobre a noção de colonial tardio no Rio de Janeiro: um
ensaio sobre a economia colonial. Locus: Revista de História. v. 6, n. 1 (2000), P. 14 e 15. Disponível
em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/20500, Acesso em 04/06/2019.
27
FRAGOSO, João. A espera das Frotas: hierarquia social e formas de acumulação no Rio de Janeiro,
século XVII. Cadernos do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa em História Social. Rio de
Janeiro: IFCS/UFRJ, n. 1, 1995, pp. 53-62; FRAGOSO, op. cit., 2000, p. 15.
28
SAMPAIO, op. cit., p. 66.
29
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Escravidão indígena e trabalho compulsório no Rio de Janeiro
Colonial. Revista Mundos do Trabalho, Vol. 6, nº 12, julho-dezembro de 2014, p. 11.
31

obra 30. De acordo com Alencastro na primeira metade do século XVII emerge uma nova
geografia sul-atlântica que evidencia as diferenças entre os peruleiros fluminenses e os
preadores de indígenas paulistas. Desviadas para o lado do Trópico de Capricórnio, as
rotas subequatoriais levam o Rio de Janeiro mais para dentro das trocas marítimas e
mais para fora da economia continental. Essa mudança no Centro-Sul leva os negócios
marítimos, negreiros, intercoloniais dos fluminenses a afastarem-se das empreitadas
continentais, indígenas, autonomistas e antijesuíticas dos paulistas 31. Neste sentido, foi
fundamental a reconquista de Angola e coube ao Rio de Janeiro tal empreitada. A
expedição organizada, comandada e financiada pelo Governador Salvador de Sá e sua
família contou com uma participação de recursos financeiros, homens e embarcações
fornecidos pelos negociantes da praça carioca 32.
Após a expulsão dos holandeses, os negociantes brasileiros de Pernambuco
e da praça carioca estabeleceram suas casas comerciais em Angola, se apoderando de
uma parcela do lucrativo tráfico negreiro que estava em mãos de negociantes reinóis.
No início do século XVIII os negociantes brasileiros assumiram o controle desse tráfico,
superando os negociantes reinóis. Na segunda metade deste século, o controle passa
para as mãos dos negociantes estabelecidos na praça comercial do Rio de Janeiro. Para
tal, investem em produtos essenciais para trocar por escravizados na costa africana, tais
como tabaco e cachaça 33.
Neste sentido, desde o século XVII seu porto desempenhava um
significativo papel no quadro da economia colonial brasileira, culminando com a
hegemonia de uma comunidade de comerciantes de grosso trato como uma elite
econômica da praça carioca e na transformação do Rio na principal praça mercantil do
Atlântico Sul, tendo ao seu redor circuitos mercantis, que abrigavam o comércio de
importação, exportação, os negócios de redistribuição de produtos estrangeiros
(europeus, africanos e asiáticos) no Brasil e o comércio colonial interno do Sudeste/Sul
coloniais 34.

30
ABREU, Mauricio de Almeida. Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502-1700). Rio de Janeiro:
Andrea Jakobsson Estúdio Editorial Ltda & Prefeitura do Município do Rio de Janeiro, 2010, vol. 2,
pp. 36 e 37.
31
ALENCASTRO, Luiz Felipe. Trato do Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, p. 199.
32
SAMPAIO, op. cit., p. 66; ALENCASTRO, op. cit., pp. 231-238.
33
CURTO, Vinho verso Cachaça: a Luta Luso-Brasileira pelo Comercio de Álcool e de Escravos em
Luanda, c. 1648-1703. In Angola e Brasil nas Rotas do Atlântico Sul. PANTOJA, Selma e SARAIVA,
Flavio Sombra (organizadores). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, pp. 69 e 70. ALENCASTRO,
op. cit. pp. 312-25
34
FRAGOSO, op. cit., 2000, p. 12.
32

Não podemos subestimar as atividades agrárias/produtivas fluminense, pois


mesmo tendo uma participação exígua no quadro da economia colonial, no final do
século XVI e início do século XVII, contando apenas com três engenhos em 1580, estes
serão cento e trinta seis em 1700. Portanto, as atividades produtivas no Rio de Janeiro
no Final do Século XVII não eram nada desprezíveis. Na década de 1640 já era a
terceira região produtora de açúcar do Brasil, ficando atrás somente de Pernambuco e
Bahia e apresentava o maior crescimento anual no número de engenhos 35. Uma
produção bastante significativa para o período. Schwartz, estimou que no Rio de Janeiro
em 1612 teria cerca de 14 engenhos, número bem pequeno comparado àqueles que
existiam em Pernambuco e Bahia, na mesma época: 90 e 50 respectivamente. Em 1629,
o Rio de Janeiro contaria com 60 engenhos de açúcar, enquanto Pernambuco e Bahia
possuíam 150 e 80 engenhos, respectivamente. Importante perceber que mesmo o Rio
de Janeiro tendo permanecido com um número de engenhos menor, a capitania carioca
apresentou uma taxa de crescimento de 7,9% no período. Bem superior à daquelas duas
capitanias, que tiveram taxa de crescimento de 3,1% e 2,8%, respectivamente 36.
De acordo com Fragoso, nesse intervalo de tempo a distância entre o Rio de
Janeiro e as Capitanias nordestinas reduziu drasticamente. Tal posição é ainda mais
reforçada em 1680, quando os oficiais da câmara municipal carioca declaram que a
cidade e suas cercanias possuíam cerca de “130 e tantos engenhos” 37. Ainda segundo o
autor, quase metade dos engenhos da capitania foi montada nos trinta primeiros anos do
seiscentos; e neste período se observaria a maior taxa de crescimento anual da economia
açucareira dos seiscentos fluminense. O que coincide com o período de formação da
elite senhorial. O mesmo, observou que ao longo do século XVII, cerca de 197 famílias
senhoriais 38 chegaram a possuir engenhos ou parte deles. Destas 197 famílias, 120 ou
61% já estariam presentes na Guanabara na década de 1610. Nas primeiras décadas
deste século se formaria aquilo que poderíamos chamar de acumulação primitiva, ou

35
SAMPAIO, op. cit., p. 65; ABREU, Mauricio de Almeida. Um quebra cabeça quase resolvido: os
engenhos da capitania do Rio de Janeiro, séculos XVI e XVII. Scripta Nova. Revista Electrónica de
Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona. Vol. X, núm. 218 (32), 1 de agosto de 2006,
p. 14; ABREU, op. cit., p. 94; PESAVENTO, op. cit., p.p. 21-26.
36
SCHWARTZ, op. cit., p, 148.
37
LISBOA, Balthazar da Silva. Annaes do Rio de Janeiro. Tomo IV, 1835, p. 295-296
38
O autor observou que 45% de todas as 197 famílias senhoriais seiscentistas têm como ponto de partidas
homens de sua Majestade. Mais da metade dos senhores de engenho do seiscentos eram empregados da
coroa, ou deles descendiam, ou ainda estavam casados com descendentes de ministros do Reino.
Portanto, eram tais famílias que tinham maior capacidade de reproduzir donos de moendas.
FRAGOSO, João. A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio
de Janeiro (séculos XVI e XVII). Topoi, Rio de Janeiro, nº 1, 2000, p. 56
33

algo que corresponda à economia de plantation do Rio 39. Ângelo Carrara, ao analisar os
rendimentos dos dízimos do Rio de Janeiro entre 1680 e 1688, aponta que enquanto a
produção de açúcar decaiu em Pernambuco e Bahia devido a uma epidemia que
desestruturou a produção da lavoura de cana, no Rio de Janeiro – que não conheceu os
efeitos dessa crise –, a produção de açúcar subiu; como sugerem os dados do contrato
dos dízimos entre 1680 e 1689, que atingiu um crescimento considerável: de 30.666
para 43.333 cruzados anuais 40.
Significativa também era a produção de farinha destinada ao tráfico
negreiro. Da região do Rio de Janeiro até São Paulo a produção de mandioca era
bastante abundante 41. Denise Demétrio aponta que na virada do século XVII para o
século XVIII as atividades voltadas para a produção de farinha nos engenhos do
Recôncavo da Guanabara ganharam algum destaque em relação aos engenhos de açúcar.
Se por um lado essa atividade demandava custos menores e se encaixavam na realidade
econômica dos senhores da região; por outro, havia uma profunda relação entre a
produção de farinha do recôncavo e o tráfico negreiro 42.
As exportações de mandioca contribuíam para o desenvolvimento
econômico do porto do Rio de Janeiro na virada do século XVI. Alencastro observou
que, exportando a produção fluminense e vicentina, a Baía da Guanabara enviava cerca
de 680 toneladas anuais de farinha de mandioca para angola na primeira metade do

39
FRAGOSO, João. Algumas notas sobre a noção de colonial tardio no Rio de Janeiro, p. 6
40
CARRARA, Ângelo Alves. Fiscalidade e conjunturas financeiras do Estado do Brasil, 1607-1808 -
Universidade Federal de Juiz de Fora, p. 15. - http://www.principo.org/fiscalidade-e-conjunturas-
financeiras- do-estado-do-brasil-1607.html; Sobre a história dos engenhos Fluminenses no seiscentos.
Cf. ABREU, Mauricio. Geografia Histórica do Rio de Janeiro. op. cit., pp. 77-177.
41
Observação feita por Dierick Ruiters. Navegador e cartografo Batavo que esteve no Rio de Janeiro
entre 1617-19. In FRANÇA. Jean Marcel Carvalho. Outras visões do Rio de Janeiro Colonial:
antologia de textos (1582- 1808). Rio de Janeiro: José Olympio, 2000, p. 40.
42
DEMETRIO, Denise Vieira. Famílias Escravas no Recôncavo Guanabara: séculos XVII e XVIII.
Dissertação de Mestrado. Niterói UFF, 2008, p.69-75; SOARES, Mariza de Carvalho. O vinho e a
farinha, ''zonas de sombra'' na economia atlântica no século XVIII. In SOUSA, Fernando (coord.) A
Companhia e as Relações Econômicas de Portugal com o Brasil, a Inglaterra e a Rússia. CEPESE –
Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade. Porto: Edições Aforamento, 2008, pp. 221-
227; BEZERRA, Nielson Rosa. Escravidão, farinha e tráfico atlântico: um novo olhar sobre as relações
entre o Rio de Janeiro e Benguela (1790-1830). Rio de Janeiro: Programa Nacional de Apoio à
Pesquisa Fundação Biblioteca Nacional – MinC, 2010; BEZERRA, Nielson Rosa. Mosaicos da
escravidão: identidades africanas e conexões atlânticas do Recôncavo da Guanabara (1780-1840).
Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2010, pp. 149-154; RODRIGUES, Jaime. De farinha,
bendito seja Deus, estamos por agora muito bem: uma história da mandioca em perspectiva atlântica.
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 37, nº 75, 2017. http://dx.doi.org/10.1590/1806-
93472017v37n75-03. SOARES. Mariza Carvalho de. Engenho sim, de açúcar não. O engenho de
farinha de Frans Post. VARIA HISTÓRIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 41: p.61-83, jan/jun 2009.
34

século XVII. Trocada do outro lado do atlântico por um número de escravizados cada
vez mais crescente, aumentava o consumo de gêneros alimentícios em Luanda 43.
Para Sampaio, havia um circuito mercantil consolidado em que a produção
de alimentos era responsável pela reprodução do próprio sistema escravista, pois a
cachaça só faria sua aparição na segunda metade do século XVII como moeda de troca
no tráfico atlântico. Em meados do século XVII a capitania fluminense já estava
profundamente envolvida no tráfico atlântico de escravizados. Prova disso é o fato de
ela ter sido a grande responsável pela reconquista de Angola 44.
Ao analisar cerca de 75 escrituras de compra e venda, no cartório do
primeiro ofício de notas da cidade do Rio de Janeiro, nos períodos de 1610-13 e 1630-
36, Fragoso observou que pouco mais de 70% dos valores transacionados,
correspondiam a negócios rurais (engenhos, terras, partidos de cana, entre outros). Tal
número indica que os negócios urbanos, mais precisamente aqueles ligados ao capital
mercantil (navios, lojas, estoques de mercadorias e outros), possuíam uma pequena
participação na economia fluminense do período 45. Tal situação evidencia as
dificuldades de o capital mercantil se reproduzir nesse período inicial de formação da
economia fluminense. Isso se explica pelo simples fato de não existir nesse período um
grupo de homens de negócios e mercadores suficientemente forte que formasse uma
classe mercantil. Portanto, nesse período inicial do seiscentos e até a primeira metade do
setecentos predominou no cenário econômico carioca uma elite agraria, tal como
denominou Fragoso: a primeira elite senhorial, a nobreza da terra, que tem origem nos
conquistadores quinhentistas e seus descendentes 46.
Analisando a economia fluminense entre 1650 e 1750, através dos padrões
de investimento da sociedade, Sampaio aponta que esta sociedade alocava seus recursos
em diversos campos de investimentos. Ao analisar as escrituras de compra e venda dos
cartórios do 1º e 2º Ofícios de Notas do Rio de Janeiro (1650-1750), o autor chama
atenção para o peso esmagador do valor dos negócios rurais (escrituras de compra e
venda de terras, engenhos, partidos de cana, sítios e fazendas) frente aos demais
negócios. Tais dados evidenciavam que a capacidade de acumulação mercantil da
43
ALENCASTRO, op. cit., pp. 251-256. Os navios que vinham ao porto do Rio de Janeiro abastecer de
farinha para trocar por escravos em Angola, em 1620, eram obrigados pela Câmara municipal a deixar
fiança, comprometendo-se em regressarem com os ditos negros para o Rio de Janeiro, numa tentativa
de evitar que fossem desviados para os portos das capitanias norte onde alcançavam melhor preço.
SAMPAIO, op. cit., p. 66; ALENCASTRO, op. cit., p.51.
44
SAMPAIO, op. cit., pp.66-7.
45
FRAGOSO, op. cit., p. 54
46
FRAGOSO, op. cit., pp. 45-122.
35

economia fluminense no seiscentos era bastante reduzida. Portanto, a classe mercantil


no período era ainda pouco desenvolvida e com pouca visibilidade 47. Fragoso observou
que até a segunda metade do século XVII o Rio de Janeiro ainda era essencialmente
rural e que ao menos 80% dos valores das escrituras registradas em cartórios eram de
compra e venda de bens rurais. Neste mundo, o espaço reservado aos prédios e chãos
urbanos era praticamente insignificante 48. O que à primeira vista pareceria contraditória
se levarmos em conta que é justamente nesse período que a vocação atlântica do Rio de
Janeiro se evidencia, inserido nos circuitos mercantis do império colonial português. 49
O autor chega à conclusão de que o setor mercantil passava por uma
fraqueza de acumulação, ou seja, o capital mercantil não chegava a constituir uma
esfera própria de atuação ao menos em escala considerável. Se associarmos a isso a
relativa hipertrofia do setor agrário frente conjunto da economia – pois através das
escrituras é possível perceber que uma parcela considerável do capital acumulado nas
atividades mercantis era diretamente investido na agricultura –, tal situação revela que a
elite fluminense do período possuía uma atuação bastante ampla, envolvendo tanto o
setor agrário quanto o mercantil. Era exatamente essa múltipla atuação que impedia a
formação de uma elite mercantil totalmente distinta da elite agrária, uma vez que os
mais importantes membros dessa elite ao mesmo tempo em que investiam no comércio
atlântico eram os maiores proprietários de engenhos fluminenses do período. Ou seja,
embora os bens agrários não fossem os mais negociados por meio das escrituras de
compra e venda, mas eram os de maior valor individualmente, a exemplo dos engenhos,
eram os senhores de engenho e não os comerciantes, que tinham proeminência na
economia do Rio de Janeiro seiscentista.
Fragoso observou que, apesar de o Rio de Janeiro em princípios dos
seiscentos não poder ser caracterizado como um exemplo de uma típica cidade
mercantil, não é por isso que devemos desprezar as possibilidades do comércio. Afinal,
o exercício da mercancia não era monopólio de um único grupo, no caso os
mercadores 50. Ao lado destes, a nobreza, os militares, os oficiais do rei e o próprio

47
SAMPAIO, op. cit., p. 76
48
FRAGOSO, João. Mudanças e permanências no sistema atlântico luso centrado no Rio de Janeiro:
escravidão, antigo Regime e a economia atlântica na América lusa, 1670-1800. In SCOTT. Ana Silvia
Volpi etal/Organizadores. Mobilidade social e formação de hierarquias: subsídios para a história da
população. – São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2014, pp. 48-9
49
SAMPAIO, op. cit., p. 76.
50
FRAGOSO, João. A nobreza da República, op. cit., p. 54.
36

clero, para não falar dos marinheiros e capitães dos navios, exercem a mercancia 51. Ao
analisar a biografia de indivíduos que se destacaram nas atividades mercantis no Rio de
Janeiro, entre o último quartel do século XVII e o início do século XVIII, Sampaio
demonstra como todos, sem exceção, tornaram-se membros da elite agrária local através
da aquisição de engenhos e/ou casamentos com filhas de senhores de engenho 52. No
século XVII, os negociantes do Rio de Janeiro estiveram longe de alcançar o topo da
pirâmide social 53.
Tal quadro iria mudar a partir do final do século XVII, principalmente em
função da descoberta do ouro nos sertões de Minas Gerais. A capitania fluminense
experimentou uma ligeira crise de desabastecimento, na virada do seiscentos para o
setecentos, como resultado da combinação de vários fatores: o rush em direção as áreas
mineradoras; aumento da demanda urbana, em função da expansão da urbe carioca; a
diminuição da produção de açúcar e alimentos e a elevação dos preços, causadas pelo
êxodo em direção às minas de diversos indivíduos (agricultores, artesãos etc.). Tudo
isso se agravava pela necessidade de abastecer a colônia de Sacramento com farinha de
mandioca. No entanto, a crise de abastecimento da economia fluminense era conjuntural
e seu sistema agrário tinha plenas condições de responder 54.
A necessidade de mão de obra africana escravizada para o trabalho nas
minas foi crescente e provocou uma elevação avassaladora no número de cativos
desembarcados na América Portuguesa e principalmente no porto do Rio de Janeiro.
Devido à localização privilegiada de seu porto, ainda na primeira metade do século
XVIII, a cidade do Rio de Janeiro assume o papel de principal abastecedora e mais
importante porta de entrada de africanos escravizados para as regiões mineradoras 55.
Segundo Antonil, o intenso fluxo migratório do Rio de Janeiro para a região
das minas nos primeiros anos dos setecentos permitiu rapidamente a construção de um
eficiente sistema de abastecimento “atraído pelo brilho do ouro”. Essa atividade era tão
lucrativa que atraiu uma parcela considerável dos homens mais ricos, aumentando-lhes

51
PEDREIRA, Jorge M. V. Os homens de negócio da praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755 –
1822). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa (tese de doutorado), 1995, p. 18. Apud. FRAGOSO, A
nobreza da República ... p.55.
52
FRAGOSO, João. Algumas notas, p. 15; FRAGOSO, João A nobreza da República, p. 47.
53
SAMPAIO, op. cit., pp, 67-80; FRAGOSO, João A nobreza da República ... p. 54.
54
SAMPAIO, op. cit. p. 81; ABREU, Mauricio Geografia Histórica, p. 36.
55
OLIVEIRA, Lucimeire da Silva. Entre redes e negócios: uma análise dos homens de negócio da Praça
do Rio de Janeiro (c. 1750-1808). X Jornada de Estudos Históricos Professor Manoel Salgado. Rio de
Janeiro: PPGHIS, UFRJ. 09 A 13 de novembro DE 2015, 14-16.
37

ainda mais o seu “cabedal” 56. Foi a partir da Guerra dos Emboabas 57, com a vitória dos
emboabas sobre os paulistas, em razão da discrepância numérica e econômica entre os
dois lados, que se consolidou o domínio de cariocas e baianos sobre as áreas
mineradoras e as inseriu definitivamente no sistema atlântico do império colonial
português. Domínio esse que, no caso do Rio de Janeiro, será reforçado pela construção
do Caminho Novo 58.
Assim, a cidade se constituiu em ponto de articulação de toda a região
meridional do império atlântico português (o que a transformou em centro cosmopolita
e aberto à circulação de homens, capitais, embarcações, mercadorias, políticas e
projetos), por outro, ela sofrera um intenso assédio por parte de piratas e
contrabandista 59. A invasão francesa é exemplar no sentido de entendermos a força da
vinculação da praça carioca com o sistema atlântico e o papel desempenhado pelo ouro
que vinha para a cidade; assim como uma espécie de reconhecimento internacional do
papel da cidade, sobretudo em função da forma como a economia local reage às
consequências da invasão e restabelece de forma relativamente rápida seus fluxos
comerciais 60.
No Rio de Janeiro, os povos indígenas constituíram a mão de obra básica,
nos primórdios da colonização, foi utilizada em considerável escala, enquanto foi
possível, para exploração máxima de recursos com o mínimo de investimentos de

56
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil: por suas drogas e minas. Lisboa 1711.
Reimpressão no Rio de Janeiro em casa de Souza e companhia, 1837. p. 167-173
57
O Levante dos Emboabas foi um conflito entre paulistas e forasteiros pelo poder nas Minas no início do
século
XVIII. Os paulistas estavam ali desde o final do XVII e possuíam grande controle político e militar da
região. Já os recém-chegados eram mineradores e comerciantes vindos de outras regiões do Império
Português no início dos Setecentos. A rivalidade entre os novos e os antigos pelo controle do poder nas
minas logo se estabeleceu. Em 1708, a tensão se transformou em um conflito aberto. O Levante durou
três anos e culminou com a ascensão dos forasteiros ao poder e a migração dos paulistas para novas
áreas de mineração. Cf. ROMEIRO, Adriana. A Guerra dos emboabas: novas abordagens e
interpretações. In RESENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Coord.). História das
Minas Gerais. As minas setecentistas. Belo Horizonte, MG: Autêntica, Companhia do Tempo, vol. 1,
2007; BARCELOS, Mariana Lima. Entre conflitos e mediações: a formação da Câmara de Vila Rica
(1711-1736). Dissertação de mestrado. Brasília: Instituto de Ciências Humanas da Universidade de
Brasília. Dez. 2014; ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no coração das Minas - Ideias,
Práticas e imaginário político - Séc. XVIII. Minas Gerais: Ed. UFMG. Coleção: Humanistas, 2008
58
SAMPAIO, op. cit., p, 82; BOXER, Charles. A Idade do ouro do Brasil: dores de crescimento de uma
sociedade colonial. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, pp. 83-105.
59
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. O Rio de Janeiro no século XVIII: A transferência da capital e a
construção do território centro-sul da América portuguesa. A Urbana: Revista Eletrônica do Centro
Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade, v.1 nº1, jan./dez., 2006, p. 8. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/urbana/article/view/8635108. Acesso em 18/03/2018
60
ARAUJO, José de Souza Azevedo Pizzarro e. Memórias Históricas do Rio de Janeiro e das províncias
anexas A’Jurisdição do Vice-Rei do Estado do Brasil, dedicadas a’ El-Rei o Senhor D. João VI. Tomo
VII. Rio de Janeiro: Typografia de Silva Porto, 1822, v. 1 pp. 75-99.
38

capitais, tão raros na capitania nos séculos XVI e XVII. Por sua vez, não podemos
esquecer que o mercado de mão de obra africana escravizada, já existia desde finais do
século XVI, na medida em que a mão de obra indígena já não era suficiente para suprir
a demanda das atividades produtivas em expansão 61.
A escravidão africana foi introduzida na América portuguesa para atender as
exigências de uma produção colonial em ascensão, tendo em vista o esgotamento das
possibilidades de exploração da força de trabalho indígena em declínio. Tal declínio
está ligado às guerras e epidemias 62 frequentes, que dizimaram os povos indígenas em
larga escala. De acordo com Alencastro, 63 a vulnerabilidade dos povos indígenas ao
choque epidemiológico era muito maior que a do africano. Isso constitui-se em “fator
restritivo ao cativeiro indígena, ao passo que inversamente, facilitou o incremento da
escravidão” dos negros africanos, mais resistentes às doenças, especialmente aquelas
com as quais eles já tinham tido contato em sua região de origem, no continente
africano, e que assolavam a América portuguesa no momento de sua chegada. Por essa
razão, a escravidão africana tinha preferência à indígena, pois estes, apesar de
economicamente mais baratos, morriam em grande quantidade, tornando sua escravidão
mais cara que a dos africanos.

1.2– A cidade e a freguesia da Sé entre 1700 e 1850

As transformações pelas quais a cidade do Rio de Janeiro passava na virada


do século XVII para o XVIII também se refletiram na demografia: entre 1687 e 1808,
em aproximadamente 120 anos, a população das freguesias centrais aumentou quase 10
vezes 64 o seu número. Tal crescimento não foi um fenômeno exclusivo da cidade. De

61
ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Metamorfoses indígenas... pp. 217, 218 e 225; . Maria Regina
Celestino de. Escravidão indígena e trabalho compulsório p. 12 – 17; . A atuação dos indígenas
na História do Brasil: revisões historiográficas. Revista Brasileira de História, vol. 37, núm. 75, maio-
agosto, 2017, p.27; COARACY, Vivaldo. O Rio de Janeiro no século 17. Coleção Rio 4 séculos, vol.
6. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1965, p. 98.
62
ALMEIDA, op. cit., pp. 225-6; SAMPAIO,op. cit., p. 59-60; SCHWARTZ, op. cit, 1988, cap. 3;
MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil: Resistência, tráfico negreiro e
alforrias, séculos XVII a XIX. Novos Estudos Cebrap, 74, março 2006, pp. 111.
63
ALENCASTRO, op. cit., pp. 127-133; ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Escravidão indígena e
Trabalho... pp. 18-19; SAMPAIO, op. cit., 59.
64
TOSTES, Ana Paula C. Para “viver livre como se de nascimento fosse”: um estudo sobre a geração da
população forra no Rio de Janeiro do século XVIII. Tese de doutorado em História Social. Rio de
Janeiro: UFRJ/IH-2018, p.46.
39

acordo com estatísticas históricas do Brasil 65, a população da colônia em 1660 era de
184.000 e em 1808 aumentou para 2.424.463; ou seja, em aproximadamente 150 anos a
população aumentou em cerca de mais 10 vezes o seu número.
Tal explosão demográfica está para além de um simples processo de
migração espontânea de indivíduos – muitas vezes com suas famílias –, vindos de
diferentes regiões da Europa e das ilhas atlânticas em busca de oportunidades do lado de
cá do Atlântico. Refere-se a um longo processo de migração forçada de um enorme
contingente de pessoas, homens, mulheres e crianças vindas de diferentes sociedades,
culturas e idiomas do continente africano para serem utilizadas como mão de obra
escravizada nas diferentes regiões do centro sul da América lusa. Tais movimentos
populacionais devem ser compreendidos dentro do quadro político econômico, social e
cultural, além do papel central que o Rio de Janeiro passaria a desempenhar no âmbito
do império colonial português a partir do século XVIII.
Sua localização no litoral meridional do Atlântico Sul o colocava em uma
posição estratégica central no seio da América lusa. Tal situação lhe proporcionou
alcançar condições excepcionais de trânsito entre as possessões espanholas no estuário
do Prata e enclaves negreiros na África, a partir do século XVII, conferindo-lhe uma
dimensão atlântica. Os negociantes estabelecidos no Rio de Janeiro tiveram participação
ativa no tráfico negreiro, com acesso privilegiado aos portos da região do Prata. De
acordo com Alencastro, o Rio de Janeiro se apresentava como peça chave na integração
do Atlântico Sul, estabelecendo a ligação entre Angola e Buenos Aires, através do
tráfico negreiro, formando o triangulo negreiro Luanda-Rio de Janeiro-Buenos Aires. 66
O papel desempenhado pelos negociantes sediados na praça comercial do
Rio de Janeiro no tráfico de africanos escravizados vindos do porto de Luanda se
alteraria sensivelmente no início do setecentos, principalmente após a reconquista de
Angola das mãos dos holandeses. Por traz do fluxo constante de cativos desembarcados
nos portos da América portuguesa estavam diversos conflitos por causa dos interesses
divergentes entre os governadores de Angola, os negociantes do Rio de Janeiro e
contratadores de direitos de escravos. De acordo com Roquinaldo Ferreira, os
governadores tiravam vantagens dos poderes concedidos a eles pelo cargo que

65
ESTATÍSTICAS HISTÓRICAS DO BRASIL: Séries Econômicas, Demográficas e Sociais de 1550 a
1988. 2ª edição. Rio de Janeiro, IBGE, 1990. p. 30; FRAGOSO, João Luís Ribeiro. GOUVÊA, Maria
de Fátima. Monarquia pluricontinental e repúblicas: algumas reflexões sobre a América lusa nos
séculos XVI-XVIII. Revista Tempo, n. 14, Vol. 27, 2009, p. 37.
66
ALENCASTRO, op. cit., p. 224.
40

ocupavam. Provenientes de Portugal ou das colônias, estes tratavam de defender seus


interesses tão logo pisavam em solo africano, através das campanhas militares 67, cujo
principal alvo eram as populações das áreas vizinhas das conquistas – origem dos
escravos que os próprios governadores exportavam para a América portuguesa através
do porto de Luanda. 68
Um exemplo do controle que os governadores de Angola exerciam no
comércio de escravizados nesta região é o do ex-governador do Rio de Janeiro, Luiz
César de Meneses, que governou Angola entre 1697 e 1701. Meneses administrava uma
enorme rede com vasta quantidade de pessoas a ele ligadas de modo a lhe informar
todos os desdobramentos de seus negócios. Sua empresa controlava todas as etapas do
tráfico de africanos escravizados de Angola para a América Portuguesa, desde o
transporte, aos gêneros necessários para a troca por escravizados em Angola, como os
panos da Índia, os vinhos do Reino e a cachaça do Brasil que tinham uma grande
aceitação em Angola. Tinha conexões no Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Ilha da
Madeira e Lisboa. Durante o período em que esteve à frente do governo Angolano, o
Rio de Janeiro foi o porto que mais recebeu carregamentos de africanos escravizados. A
perda média de cativos no transporte era cerca de 21% de pessoas. Ele teria chegado a
ganhar quase 100% de lucro sobre cada indivíduo traficado, comprando por uma média
de 33 mil réis cada um e vendendo a pouco mais de 60 mil réis 69.
Segundo Roquinaldo Ferreira, somente com a estabilização política
conquistada em finais do século XVII foi possível uma substituição gradual dos
governadores e oficiais formados na tradição guerreira por funcionários régios

67
De acordo com Leonardo Oliveira, “a guerra era uma via de mão indissociável da conquista do
comércio, onde por meio dela se viabilizava a conquista de postos de abastecimento de escravos.”
OLIVEIRA, Leonardo Alexandre de Siqueira. Redes de poder em governanças do Brasil a Angola:
administração e comércio de escravos no Atlântico Sul (Luís César de Meneses, 1697-1701).
Dissertação. Niterói: UFF, 2013, p. 91.
68
FERREIRA, Roquinaldo. Dinâmica do comércio intercolonial: Geribitas, panos asiáticos e guerra no
tráfico angolano de escravos (século XVIII). In: FRAGOSO, João; BICALJHO, Maria Fernanda, e
GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: A dinâmica imperial portuguesa
(séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 341.
69
DIAS, Ondemar. Escravos, Marfim, Tecidos: um governador do Rio de Janeiro relata seu comércio.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 161 (406): 143-219, jan/mar.
2000. P. 164. Esses preços variavam de acordo a com a região e a época. De acordo com o governador
Sebastião Castro e Caldaz, em 1695 no Rio de Janeiro um escravo podia ser vendido por 80 mil réis ou
mais. O próprio govenador de Angola Luiz Cesar Meneses relata em carta a Pascoal da Silva Siqueira
em 1699 a vantagem de enviar escravos para o Rio de Janeiro devido a alta de preço, porque
alcançavam de 80 a 100 mil réis por cabeça. Cf. AHU – Rio de Janeiro, cx. 6, doc. 35,49.
AHU_ACL_CU_017, Cx. 6, D. 607. Disponível em:
http://resgate.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=017_RJ_AV&PagFis=278, acesso em 16/03/2018;
Carta a Pascoal da Silva Siqueira. Luanda, 10 de outubro de 1699. IHGB, 72, 08 FOLHA 50verso.
Apud. OLIVEIRA, op. cit., 2013. Especialmente o capítulo três.
41

comprometidos com a manutenção da paz e na consolidação da presença portuguesa em


Angola por meio do tráfico de escravizados. Por um lado, o fim das campanhas
militares em Angola não se deveu apenas à possibilidade de substituir a guerra pelo
comércio, pois as constantes campanhas organizadas pelos governadores para captura
de escravizados ameaçavam os interesses de estabilização e controle do limitado espaço
de terra ocupado pelos portugueses. Por outro, a substituição dos governadores no
comércio de africanos escravizados pelos comerciantes, se deu também em função do
surgimento de produtos que foram capazes de satisfazer a demanda africana – os
produtos “da terra” brasileiros. Nesse sentido, o interesse dos negociantes africanos nos
produtos brasileiros, também ajudou na substituição da guerra de captura de cativos
pelo comércio. Assim, o aumento da demanda por mão de obra africana escravizada a
partir de finais dos seiscentos dependia também da capacidade de produzir soluções de
compromissos que fossem capazes de satisfazer interesses de ambos os lados. 70 Além
de ser um importante produtor de açúcar, principalmente na região de Campos dos
Goytacazes, o Rio era também grande produtor farinha e cachaça, mercadorias bastante
cobiçadas em Angola no comércio de escravizados 71.
O fato de o comércio no lado angolano ser controlado pelos governadores,
que não permitiam que os navios dos negociantes brasileiros se abastecessem de
escravos no porto de Luanda, gerou muitas disputas entre governadores e negociantes
da praça comercial do Rio de Janeiro, iniciadas por volta de 1677 e terminando 35 anos
depois. Os governadores impuseram muitas barreiras aos navios brasileiros que
tentavam carregar escravos no porto de Luanda, impondo-lhe “multas pecuniárias
exorbitantes para que pudesse fazer comércio em sua jurisdição, e obrigavam-nos a dar
fianças e pagarem muitas outras penas” 72. Somente aqueles em que os proprietários

70
FERREIRA, op. cit., p. 342
71
DEMETRIO, op. cit., p.69-75; SOARES, Mariza de Carvalho. O vinho e a farinha, ''zonas de sombra''
na economia atlântica no século XVIII. In SOUSA, Fernando (coord.) A Companhia e as Relações
Econômicas de Portugal com o Brasil, a Inglaterra e a Rússia. CEPESE – Centro de Estudos da
População, Economia e Sociedade. Porto: Edições Aforamento, 2008, pp. 221-227; BEZERRA,
Nielson Rosa. Escravidão, farinha e tráfico atlântico, op. cit., (1790-1830), 2010; BEZERRA,
Mosaicos da escravidão, op. cit., 2010, pp. 149-154; RODRIGUES, op. cit., 2017; SOARES. Mariza
Carvalho de. Engenho sim, de açúcar não, op, cit., p.61- 83.
72
Arquivo Histórico Ultramarino – AHU – Consultas de Angola, Códice 554, fls 131-132v. Disponível
em: https://digitarq.ahu.arquivos.pt/viewer?id=1146438, acesso em 10/03/2018. Tomei conhecimento
desse documento através da leitura do texto de Roquinaldo Ferreira Dinâmica do comércio
intercolonial: Geribitas, panos asiáticos e guerra no tráfico angolano de escravos (século XVIII). In:
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda, e GOUVÊA, Maria de Fátima (Organizadores.). O
Antigo Regime nos Trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001. E do texto de CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos no Rio
42

tinham alguma conexão com os governadores e os que pertenciam aos próprios


governadores podiam zarpar de Luanda carregando escravos 73.
Além do monopólio exercido pelos governadores de Angola, muitos cativos
eram vitimados pela varíola, o que aumentava ainda mais a carência de mão de obra
africana escravizada, tanto para ser enviada para as minas como para os engenhos do
Recôncavo e do interior da capitania. Esse aspecto pode ser demonstrado por meio da
consulta feita pelo Conselho Ultramarino ao rei D. Pedro II, em 1695, sobre as cartas do
governador do Rio de Janeiro, Sebastião de Castro e Caldaz (1695-1697) 74, e dos
oficiais da Câmara em que suplicavam ao Rei para aumentar a quantidade de africanos
escravizados provenientes de Angola para suprir a carência de mão de obra devido a
morte de mais de dois mil cativos vítimas de epidemia de bexiga que assolou a cidade e
o seu recôncavo. Nesse mesmo documento, o governador do Rio e os oficiais da
Câmara denunciavam o governador de Angola, Henrique Jacques Magalhães, por criar
vários impedimentos para os navios brasileiros carregarem escravizados no porto de
Luanda. Somente os navios do governador angolano ou os ligados aos seus negócios
tinham liberdade para carregar cativos em Angola para o porto do Rio de Janeiro, a fim
de serem vendidos a preços exorbitantes, segundo os denunciantes da carta. Tal situação
além de causar inflação no preço dos cativos, pode ter contribuído para redução do
número de engenhos de açúcar no agro fluminense 75, além de provocar escassez de
cativos em outras regiões da América portuguesa, como Pernambuco e Bahia. No caso
baiano, a saída foi intensificar o tráfico com a Costa da Mina. 76 Ainda de acordo com os
relatos do governador do Rio, Sebastião Castro e Caldas, a escassez de mão de obra
escravizada era tanta que ele próprio testemunhara a chegada de um navio de angola
com 250 cativos ao preço de oitenta mil reis para cima, afirmando que dentro de duas
horas foram todos vendidos 77.

setecentista. In: FLORENTINO, Manolo (org.). Tráfico cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos
XVII – XIX). Rio de Janeiro Civilização Brasileira, 2005, pp. 22 e 23
73
FERREIRA, op. cit., p. 342-343.
74
AHU – Rio de Janeiro, cx. 6, doc. 35,49. AHU_ACL_CU_017, Cx. 6, D. 607. Disponível em:
http://resgate.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=017_RJ_AV&PagFis=278, acesso em 16/03/2018.
75
SAMPAIO, op., cit. 2000; FERREIRA, op. cit., 2001, p. 342.
76
De acordo com Miller, já em 1680 inicia-se uma reorientação dos negociantes baianos para as fontes de
escravos na Costa da Mina. MILLER, C. Joseph. A Economia Política do Tráfico Angolano de
escravos no século XVIII. In: PANTOJA, Selma e SARAIVA, José Flavio (Organizadores). Angola e
Brasil nas rotas do Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. P. 17
77
AHU – Rio de Janeiro, cx. 6, doc. 35,49. AHU_ACL_CU_017, Cx. 6, D. 607. Disponível em:
http://resgate.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=017_RJ_AV&PagFis=278, acesso em 16/03/2018.
43

Os negociantes do Rio de Janeiro enviaram carta ao rei, em 1697, relatando


a situação dos engenhos e fazendas daquela capitania pela falta de escravos,
mencionando que aqueles que lhes eram enviados custavam preços excessivos, devido o
monopólio dos governadores angolanos que cobravam o preço que queriam pelos
escravos que vendiam. Diante disso, pediam ao rei que ordenasse aos governadores de
Angola que não impedissem os navios dos negociantes do Rio de Janeiro de
embarcarem escravizados no porto de Luanda ou em qualquer outro 78. A Provisão real
de 07 de fevereiro de 1679 concedia licença aos negociantes da capitania do Rio de
Janeiro para enviarem a Angola até quatro navios por ano. Determinava ao governador
de Angola que não criasse nenhum obstáculo para impedir os navios da dita capitania
que estivessem preparados para partir. Determinava, ainda, que desse preferência aos
navios do Rio de Janeiro que estivessem em Angola, na monção de outubro, novembro
e dezembro 79. Segundo o rei, esse comércio não poderia ser praticado sem que se desse
preferência a tais navios sobre quaisquer outros de outras partes; em caso de haver mais
de dois navios do Rio de Janeiro no porto que desse preferência aos mais antigos 80. Pelo
visto, a provisão real não surtiu o efeito desejado, pois em 19 de novembro de 1697 o
rei escreveu novamente ao governador de Angola ordenando que não impedisse os
navios do Rio de Janeiro e lhes desse preferência no embarque de cativos para que não
faltasse mão de obra nos engenhos e no trabalho das roças da capitania fluminense 81
Vivaldo Coracy afirma que os paulistas 82 vinham ao Rio de Janeiro para
comprar escravos pagando por eles um alto preço. Esboçava-se, segundo ele, a ameaça
de uma crise na lavoura fluminense por falta de braços para manter a produção nos
engenhos. Numa tentativa de solucionar tal situação, o governador do Rio de Janeiro,
Artur de Sá Meneses (1699-1702), baixou um bando, em 26 de março de 1700,
proibindo o transporte de escravizados e lavradores de cana e mandioca para as minas.
Ao mesmo tempo em que o governador informava à Coroa sobre a medida que adotara,
a Câmara reivindicava junto às autoridades metropolitanas medidas que facilitassem a

78
AHU – Cartas de Angola, Cód. 545, pp. 108v e 109. Disponível em:
https://digitarq.ahu.arquivos.pt/details?id=1146435, acesso em 17/03/2018.
79
De acordo com Ondemar Dias, em 1674 os navios do Rio de Janeiro já tinham garantida essa
preferência das monções desde que não ultrapassassem o número de quatro. Cf. DIAS, Ondemar.
Escravos, Marfim, Tecidos, p. 149.
80
Provisão Real feita por Manoel Pinheiro da Fonseca e André Lopes Lavra. Lisboa 07 de fevereiro de
1679. Príncipe Regente; AHU – Cartas de Angola, Cód. 545, pp. 108v e 109. Disponível em:
https://digitarq.ahu.arquivos.pt/details?id=1146435, acesso em 19/03/2018.
81
AHU – Cartas de Angola, Cód. 545, pp. 108v e 109. Disponível em:
https://digitarq.ahu.arquivos.pt/details?id=1146435, acesso em 19/03/2018.
82
Forma como os Mineradores eram conhecidos.
44

entrada de africanos novos escravizados na cidade. Com vistas a atender a tais


reivindicações e numa tentativa de controlar a escassez de mão de obra na capitania, foi
instituído um tributo no valor de 4$500 por cada escravo que fosse retirado dos
engenhos e enviado para as minas. Assim, a Fazenda Real não só buscava uma solução
para a crise de produção dos engenhos da capitania como aumentava seus lucros sobre o
tráfico, pois de acordo com a Carta Regia de 10 de junho de 1699 já haviam sido
instituídos direitos de entrada na importância de 3$500 por cada africano escravizado
trazido da África para o Rio de Janeiro 83. Em relação às Minas Gerais, o rei deu ordens
expressas que se garantisse um fornecimento mínimo anual de duzentos escravos. Nas
palavras do rei:

Governador Capitão Geral do Reino de Angola [?] por ley


concede a meu senhor se não falte aos paulistas com os escravos
que lhe são necessários para o trabalho das minas do ouro nem
aos moradores do Estado do Brasil com os que são mister para o
[serviço] de suas lavouras, e o trabalho do engenhos de q
depende a [comeneação] do comercio comum de meus vassalos
me pareceu ordenar faças hir cada anno para o Rio de Janeiro
hum pataxó mais carregado de negros que aly se tirarem 200
negros cada anno para os paulistas q se lhe hão de vender pelo
mesmo preço porq se venderem toda terra sobre o q mandei
passar hua ley passe há [de descreiar] em todo o Estado do
Brasil para evitar o excesso dos preços e a extinção dos escravos
q nella pode haver por este respeito. Escrita em Lisboa 20 de
Janeiro de 1702. Rey: DII 84

Estabeleceu ainda que aqueles que não cumprissem a lei seriam multados
pelo preço do escravo em dobro, ficando metade do valor para o denunciante e a outra
metade seria recolhida à Fazenda Real. Outra medida para organizar o fornecimento de
cativos foi a criação de cotas de escravos para cada porto brasileiro. O Rio de Janeiro
receberia 1.200 escravos, Pernambuco receberia 1.300 e os que restassem seriam

83
COARACY, Vivaldo. O Rio de Janeiro no século XVII. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora,
Coleção Rio 4 séculos, vol. 6, 2ª ed. 1965, p. 246; cf. GOULART, Mauricio. A escravidão africana no
Brasil: das origens à extinção do tráfico. São Paulo: Alafa-Ômega, 1975, p. 153.
84
AHU – Cartas de Angola, Cód. 545, p. 124.
45

enviados para Bahia. 85 Limitou também o comércio de escravizados com a Costa da


Mina, estabelecendo a cota de 1.200 escravos anuais para o Rio de Janeiro 86.
O monopólio dos governadores afetou o contrato de arrecadação de
impostos sobre os escravizados exportados de Luanda. O Conselho Ultramarino
recomendou ao rei que proibisse o comércio dos governadores, pois temiam que os
contratadores abandonassem tal negócio por não ser mais atrativo. Isso traria grandes
prejuízos à Fazenda Real. Aos contratadores, além de arrecadar os direitos sobre os
escravizados, cabia também o fornecimento de moedas para a cidade. Portanto, tratava-
se de uma figura respeitável e de grande peso político. No entanto, devido aos abusos
dos governadores, os contratadores ameaçavam abandonar a gestão do contrato 87. De
acordo com os ministros do Conselho Ultramarino, a situação já estava ficando crítica,
pois já estavam claras as dificuldades para encontrar negociantes dispostos a arrematar o
contrato 88.
Após inúmeras reclamações de negociantes, contratadores e autoridades do
Rio de Janeiro, a Coroa resolveu intervir e, em 1715, proibiu os governadores de
Angola de se envolverem nos negócios do tráfico, sob pena de serem severamente
punidos, e abriu o porto de Luanda para o tráfico direto com todos os portos América
Portuguesa 89. Assim, foi surgindo um forte eixo Rio de Janeiro-Angola. Os negociantes
brasilienses 90 disputavam o comércio de africanos em Angola com os negociantes
reinóis que vinham de Lisboa. Os negociantes do Brasil utilizavam-se do casamento e
de laços de parentesco para criar alianças com os grupos crioulos de Luanda. Assim,

85
AHU – Cartas de Angola, Cód. 545; AHU, Rio de Janeiro av. cx. 8, doc. 19. Cf. FERREIRA, op. cit.,
2001, p. 342; CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos no Rio setecentista. In: FLORENTINO,
Manolo (org.). Tráfico cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII – XIX). Rio de Janeiro
Civilização Brasileira, 2005, pp. 22 e 23.
86
SOARES, Mariza Soares de Carvalho. Os devotos da Cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão
no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 74.
87
AHU_ACL_CU, Consultas Mistas, Cód. 21, fls. 335v. – 337v.
Disponível em: https://digitarq.ahu.arquivos.pt/details?id=1146225, acesso em 17/03/2018.
88
AHU – Consultas de Angola, Cód. 554, fls. 131v. -132.
Disponível em: https://digitarq.ahu.arquivos.pt/viewer?id=1146438, acesso em
05/04/2018.
89
AHU – Consultas de Angola, Cód. 554, fls. 141 – 142.
Disponível em: https://digitarq.ahu.arquivos.pt/viewer?id=1146438, acesso em
05/04/2018.
Cf. também, FERREIRA, op. cit., 2001, p. 343
90
Os negociantes do Brasil eram mencionados como brasileiros, americanos ou brasilienses. Oficio do
governador de Angola Mossamedes, em 28 de outubro de 1785. AHU, Angola, av. cx 70. Apud
FERREIRA, op. cit., 2001, p.344.
46

tinham acesso aos mercados de escravizados nos sertões angolanos e condições


privilegiadas no abastecimento de navios negreiros no porto de Luanda 91.
Os negociantes brasileiros tiveram que desenvolver técnicas alternativas
para poder reduzir os custos dos investimentos para se manter no mercado angolano de
africanos escravizados. A solução encontrada foi utilizar embarcações menores, as
sumacas que, além de reduzirem os custos da armação, tornava as embarcações mais
seguras e velozes. Levando- se em conta os casos cada vez mais frequentes de pirataria
no Atlântico, a agilidade da embarcação era fundamental para garantir o sucesso dos
investimentos 92. Ao contrário dos enormes galeões portugueses, as sumacas exigiam
menos tripulantes, o que diminuía ainda mais os custos, navegando mais rápido,
reduzia-se o tempo de viagem, proporcionando um retorno mais rápido e seguro para os
investimentos 93. Além do uso de embarcações menores, os produtos utilizados pelos
negociantes do Rio de Janeiro no resgate de africanos escravizados em Luanda e
Benguela eram mais baratos devido ao seu baixo custo de produção, a exemplo da
cachaça e farinha, o que os colocavam em vantagem frente aos negociantes europeus
que utilizam produtos mais caros 94.
Ainda no início deste século o tráfico entre a América portuguesa e Angola
teria um significativo crescimento. Devido, principalmente, ao incremento da mineração
na região de Minas Gerais. Roberto Guedes observou que já havia um crescimento
gradativo da entrada de africanos escravizados no porto do Rio de Janeiro desde o
século XVII, que se intensificou de forma extraordinária no século XVIII 95. De acordo
os dados do autor, nos três últimos quarteis do seiscentos teriam entrado no porto da
cidade do Rio de Janeiro um total de 188.688 cativos – respectivamente, 1626-1650
(48.317), 1651-1675 (68.248) e 1676-1700 (72.123) –, sendo que somente no primeiro
quartel do século XVIII, 1701 a 1725, a cidade recebeu 159.253 cativos africanos.
Portanto, somente o primeiro quartel do setecentos o porto carioca teria Recebido em
torno de 87% dos cativos dos três últimos quarteis de século XVII 96. As tabelas 1 e 2
nos permitem acompanhar a evolução das entradas tanto para a América portuguesa e o
Império do Brasil como para o Rio de janeiro durante a vigência do tráfico atlântico.
91
FERREIRA, op. cit., p.344
92
Idem, p. 344.
93
FERREIRA, op. cit., p. 344.
94
MILLER, C. Joseph. A Economia Política do Tráfico Angolano de escravos no século XVIII... p. 27
95
GUEDES, Roberto. Apagando as memórias do passado escravo (Rio de Janeiro, Século XVIII). In:
IVO, Isnara Pereira e GUEDES, Roberto (organizadores). Memórias da escravidão em mundos ibero-
americanos: séculos XVI-XXI. São Paulo: Alameda, 2019, p. 85.
96
GUEDES, op. cit., p 86.
47

Assunto que abordaremos mais à frente. Assim, ao alcançar a segunda metade do século
XVIII, o tráfico Angolano estava totalmente integrado ao sistema mercantil, cujo centro
estava no centro-sul do Brasil 97, sendo os portos da América portuguesa, de Recife,
Salvador e Rio de Janeiro responsáveis por 85% da movimentação dos negócios no
porto de Luanda, enquanto Lisboa era responsável por 15% desse comércio. No entanto,
de acordo com Elias Alexandre da Silva Corrêa, os poucos navios portugueses que
carregavam no porto de Luanda tinham como interesse o contrabando com os portos
brasileiros 98.
Brasil fornecia gêneros para o comércio dos sertões angolanos (álcool,
fazendas asiáticas, pólvora, armamentos, soldados e cavalos) para proteger e expandir o
controle português sobre Angola. As mercadorias 99 que financiavam os investimentos
brasileiros a princípio eram de baixo custo, mas logo as fazendas asiáticas que tinham
um valor mais alto que o principal produto brasileiro – as cachaças (geribitas) –
passaram a ser utilizadas para financiar os negócios negreiros nos sertões angolanos.
Tais produtos são a chave para o sucesso dos negociantes brasileiros nesse comércio
que controlava boa parte das rotas mercantis do Império Ultramarino Português,
provocando conflitos com a administração lisboeta 100.
De acordo com Sampaio, houve um fortalecimento do capital mercantil no
interior da sociedade fluminense no final do século XVII. Era no espaço urbano que o
capital mercantil se reproduzia, através de aquisição ou construção de lojas, armazéns,
sobrados, trapiches etc., que era parte fundamental da reprodução ampliada desse
mesmo capital. Ao fazerem suas aquisições através do mercado, os negociantes estavam
ampliando o grau de mercantilização da sociedade urbana como um todo, aplicando
nela os recursos adquiridos em seus negócios no Império. Portanto, o desenvolvimento
crescente da urbe carioca estava condicionado aos movimentos e tendências do setor
mercantil 101. O desenvolvimento acelerado das atividades mercantis no porto carioca

97
FRAGOSO, João Luís Ribeiro e FLORENTINO, Manolo Garcia. O arcaísmo como projeto: mercado
atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia (Rio de Janeiro, 1790-
1840). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
98
CORREIA, Elias Alexandre da Silva. Um militar brasileiro em Angola.1937, Vol. 1, pp. 48-49. Apud.
FERREIRA, op. cit., p. 345.
99
FARIAS, Sheila de Castro. Sinhás Pretas, Damas Mercadoras: As pretas minas nas cidades do Rio de
Janeiro e de São João Del Rey (1700-1850). Tese de Professor Titular em História do Brasil. Niterói:
UFF, 2004. pp. 12 e 13.
100
FERREIRA, op. cit., 2001. pp. 345-346.
101
SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. A produção política da economia: formas não-mercantis de
acumulação e transmissão de riqueza numa sociedade colonial. Rio de Janeiro, 1650-1750. Topoi. Vol.
4, n. 7, jul.-dez. 2003, p. 289.
48

elevava-o a uma praça mercantil atlântica. Os negócios urbanos e a prática mercantil


roubavam cada vez mais espaço das atividades agrárias e dos investimentos
patrimoniais que pudessem ser transmitidos de geração para geração.
A crescente demanda por mão de obra africana escravizada proporcionou às
principais famílias envolvidas no tráfico a acumulação de grandes fortunas através da
empresa escravista ampliando e diversificando suas atividades. Além da posse de
cativos e terras, essas famílias atuavam em outros segmentos da economia colonial
como atividades rentistas de aluguel prédio, casa e pontos comerciais. O que demonstra
que tinham uma forte presença no mercado imobiliário, nas companhias de seguros,
além de possuírem todos os recursos necessários para montagem da empresa escravista.
Ao se realizar em diversas praças comercias do Império português, tais investimentos
garantiam a reprodução da qualidade de sujeitos que atuavam e controlavam várias
redes de dependência e aliança que eram constituídas através das atividades comerciais.
Os negócios negreiros representavam o maior volume da renda dessas
principais famílias, principalmente a partir da ascensão desse comércio no século XVIII.
Através das entradas de africanos escravizados na cidade ao longo desse período
podemos constatar a presença central que o Rio de Janeiro teve nesse comércio como
principal praça comercial do Império português. Com base na tabela 1 e no mapa 1,
podemos afirmar que a América Portuguesa foi durante o período do tráfico
transatlântico o principal destino da maioria dos cativos, vindos de diversas regiões de
procedência africana, mas, sobretudo dos portos da Costa Ocidental e Centro Ocidental:
akan da Costa do Ouro, iorubas da bacia do rio Niger e bantos do Congo e de Angola,
predominando uns ou outros grupos conforme a época do tráfico que se tem em conta.
Sua entrada no Brasil pode se relacionar grosso modo a grandes conjunturas
econômicas entre os séculos XVI e XIX.

Tabela 1- Número de escravos retirados da África pela nacionalidade do navio que


os transportou, 1501-1867
Portugal

Holanda
Bretanha
Espanha/
Uruguai

Bálticos
França
/Brasil

Totais
Países
EUA
Grã-

Periodos

1501-1525 6.400 7.000 - - - - - 13.400


1526-1550 25.000 25.000 - - - - - 50.000
1521-1575 28.000 31.000 1.700 - - - - 60.770
1576-1600 60.000 91.000 200 1.400 - - - 152.600
49

1601-1625 83.000 268.000 - 1.800 - - - 352.800


1626-1650 44.000 202.000 34.000 32.000 800 1.800 1.100 315.700
1651-1675 13.000 245.000 122.000 101.000 - 7.100 700 488.800
1676-1700 5.900 297.000 272.000 86.000 3.300 29.000 25.000 718.200
1701-1725 - 474.000 411.000 74.000 3.300 121.000 5.800 1.089.100
1726-1750 - 537.000 554.000 83.000 34.000 259.000 4.800 1.471.800
1751-1775 4,200 529.000 832.000 132.000 85000 326.000 18.000 1.926.200
1776-1800 6,400 673.000 749.000 41.000 67.000 433.000 39.000 2.008.400
1801-1825 168.000 1.161.000 284.000 2.700 110.000 136.000 16.000 1.877.700
1826-1850 401,000 1.300.000 - 400 1,900 68.000 - 1.771.300
1851-1867 216,000 9.300 - - 500 - - 225.800

TOTAL * 1.060.900 5.849.300 3.259.900 555.300 305.800 1.380.970 110.400 12.522.570

FONTE: ELTIS, David. Atlas do Comércio Transatlântico de Escravos (Série Lewis


Walpole na Cultura e História do século XVIII) (Página 23). Yale University Press.
Edição do Kindle. Disponível em: http://www.slavevoyages.org/tast/assessment/
estimativa.faces? yearFrom = 1501 & yearTo = 1866 – acesso em 14/04/2018.
* Os totais de coluna e linha nesta tabela diferem ligeiramente dos dados no site da
Voyages devido às regras de arredondamento usadas ao longo deste volume e
explicadas em "Sobre este Atlas".
50

Mapa 1. Volume e direção do tráfico de escravos transatlântico, de todas as regiões


africanas a todas as regiões americanas.

FONTE: http://www.slavevoyages.org/assessment/intro-maps. Acesso em 15/04/2018.

Este mapa resume e reúne os muitos caminhos pelos quais os cativos


partiam da África e chegavam às Américas. Embora houvesse fortes conexões entre
determinadas regiões de embarque e desembarque, não era raro que os cativos de
qualquer uma das principais regiões africanas desembarcassem em praticamente
qualquer grande região das Américas. Mesmo os cativos vindos do sudeste da África, a
região mais afastada das Américas, podiam desembarcar na América do Norte
continental, no Caribe ou na América do Sul. Os dados deste mapa são baseados em
estimativas do total do tráfico de escravizados, e não em partidas e chegadas
documentadas. É possível perceber o papel de destaque do Rio de Janeiro nesse
comércio que está representado no mapa como Sudeste do Brasil.
Entre a segunda metade do século XVI e o final do século XVII a demanda
por mão de obra africana escravizada está relacionada à produção de cana de açúcar e
tabaco, predominantemente no nordeste brasileiro, sendo os portos da Bahia e
Pernambuco a porta de entrada do maior volume de mão de obra cativa. No final do
século XVII e início do XVIII 102, com a descoberta de ouro e diamantes nos sertões de

102
De acordo com Thornton, as transformações econômicas ocorridas no Brasil no século XVIII,
especialmente a descoberta do ouro em Minas Gerais, contribuíram para o amento da demanda e
consequentemente dos preços dos escravos nas regiões de procedência africana. THORNTON, John. A
51

Minas Gerais, o Rio de Janeiro passau a ter um papel central na distribuição de cativos e
mercadorias para as áreas mineradoras, assim como para toda região Sul-Sudeste da
América lusa 103. Ainda no século XVIII, Campos dos Goitacazes com a produção de
açúcar e alimentos, além da pecuária, torna-se grande área de atração de cativos via
porto do Rio de Janeiro. Momento em que cidade passa por transformações que
culminariam em sua elevação à capital da colônia em 1763, tornando-se o principal polo
jurídico e econômico do império colonial português 104. No século XIX, o cultivo do
café no Vale do Paraíba – que superou temporariamente a produção de açúcar no Brasil
e no Caribe – seria o principal motor por mão de obra escravista para as Américas e
mantém o porto do Rio de Janeiro em sua posição 105.
A tabela 2, reproduzida do Atlas do Comércio Transatlântico de Escravos a
partir dos números do banco de dados The Trans-Atlantic Slave Trade Database,
contendo os desembarques nos principais portos de cada região onde o tráfico atlântico
operou, nos permite acompanhar o volume de entradas de africanos escravizados no Rio
de Janeiro. Situação que contribuiu para que o porto desta cidade se tornasse pujante ao
longo desse período, posicionando-a em condições de igualdade com as grandes áreas
de plantations escravistas do mundo atlântico. Ainda na primeira metade do século
XVIII, o volume de entradas no porto da cidade do Rio ultrapassa as entradas para o
porto de Pernambuco, e na segunda metade deste século começa a suplantar as entradas
no porto de Salvador. De acordo com essa tabela, podemos verificar que na segunda
metade do século XVIII o porto carioca só importa menos cativos africanos que as
regiões da Jamaica e São Domingos. Mas no volume total de importações, o porto
carioca é o maior importador de mão de obra africana escravizada, no período de 1801 a

África e os Africanos na Formação do Mundo Atlântico 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p.
395.
103
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio
de Janeiro. São Paulo: Cia das Letras, 2002, pp. 39-40; FLORENTINO, Manolo. Tráfico Atlântico,
Mercado Colonial e Famílias escravas no Rio de Janeiro, Brasil, c. 1790-c. 1830. 2009, p. 74.
104
BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 100; CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos novos no Rio
setecentista. In FLORENTINO, Manolo. Org. Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos
XVII- XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, pp. 21-22.
105
FLORENTINO, op. cit., 2002, pp. 39-40; Manolo. Tráfico Atlântico, Mercado Colonial e Famílias
escravas no Rio de Janeiro, Brasil, c. 1790-c. 1830. 2009, p. 74. CALDEIRA, Arlindo Manuel.
Escravos e Traficantes no Império Português. Lisboa: Distribuidora de Livros Betrand, 2013, p. 36;
ELTIS, David e RICHARDSON, David. Atlas of the transatlantic slave trade. New Haven & London:
Yale University Press. 2010 p.198.
52

1866, o Rio de Janeiro 106 recebeu 1.281.600 africanos escravizados, ou seja, 56,6% do
total de cativos desembarcados em todo o período do tráfico. Isso pode ser constatado
na tabela 3, que em números absolutos apresenta um total de 1.839.000 cativos
desembarcados no porto carioca, representando 22% do total de africanos
desembarcados nos vinte maiores portos de desembarque de cativos nas Américas. O
porto do Rio de Janeiro supera todos os locais de desembarque no Novo Mundo.
Observa-se que a capitania baiana estava bem próxima com um total de desembarques
de 1.550.000, representando um percentual de 18% do total dos africanos escravizados
desembarcados; seguida de Jamaica com 886.000, correspondendo a 10,6% e Recife
com 854.00, correspondendo a 10,2%. Tais números, além de comprovarem a liderança
do porto carioca no tráfico transatlântico, demonstram a supremacia da América
portuguesa no tráfico transatlântico durante o século XVIII e permaneceria no século
XIX durante o império do Brasil e só terminaria com o fim do tráfico negreiro em 1850.

Tabela 2. Número estimado de africanos escravizados que desembarcaram nos


principais portos do mundo atlântico, 1501-1867

Sudeste Pernambu São Carolinas/ Guianas


PERIODO Bahia Jamaica Cuba
Brasil* co Domingos Georgia Holandesas
1501-1525 - - - - - - - -
1526-1550 - - - - - - - -
1521-1575 - - 2.500 - - - - -
1576-1600 4.800 5,600 16.000 - - - - -
1601-1625 32.000 46.000 77.000 10 - - - -
1626-1650 48.000 69.000 45.000 - - - - -
1651-1675 68.000 94.600 41.000 18.000 - 300 - 14.000
1676-1700 72.000 103.000 83.000 73.000 4.900 - - 26.000
1701-1725 122.000 185.000 111.000 135.000 43.000 2.400 5.500 24.000
1726-1750 160.000 231.000 73.000 188.000 141.000 1.000 36.000 60.000
1751-1775 205.000 176.000 71.000 232.000 244.000 8.400 76.000 102.000
1776-1800 270.000 224.000 75.000 300.000 340.000 56.000 27.000 43.000
1801-1825 500.000 156.000 170.000 69.000 800 229.000 67.000 25.000
1826-1850 776.000 158.000 89.000 24.000 - 318.000 - -
1851-1866 5.600 1.000 400 - - 164.000 300 -

TOTAL 2.263.400 1.549.500 853.900 1.017.500 773.700 779.100 211.800 294.000

* Fazem parte da região Sudeste do Brasil os seguintes portos: Baía de Botafogo,


Baía de Sepetiba, Cabo de Buzios, Cananeia, Copacabana, Campos, Dois Rios, Ilha de
Paquetá, Ilha das Palmas, Ilha Gradne, Ilha da Loba, Ilha de Marambaia, Macaé,

106
Na tabela 2, o Rio de Janeiro está representado como região sudeste, englobando todos os portos
menores do Recôncavo da cidade e da capitania/província onde desembarcou cativos. Por isso a
divergência com o total da tabela 3
53

Paranaguá, Parati, Ponta Negra, Rio de Janeiro Província, Rio de Janeiro, São Paulo e
Santa Catarina.
FONTE: Eltis, David. Atlas do Comércio Transatlântico de Escravos, p. 23. Disponível
em: http://www.slavevoyages.org/tast/assessment/ estimativa.faces? yearFrom = 1501
& yearTo = 1866. Acesso em 14/04/2018.

Tabela 3. Número estimado de africanos escravizados que desembarcaram nos


vinte maiores portos nas Américas, 1501–1867

Porto Número de
escravos
Rio de Janeiro 1.839.000
Salvador (Bahia) 1.550.000
Kingston (Jamaica) 886.000
Recife 854.000
Barbados (Bridgetown) 493.000
Havana 464.000
Cap-Français (now Cap. Haitien) 406.000
Suriname (Paramaribo) 256.000
Martinique (St. –Pierre) 217.000
Charleston (South Carolina) 186.000
Cartagena 150.000
Antigua (St. John’s) 138,000
St. Kitts (basseterre) 134.000
Port – au – Prince 130.000
Grenada (St. George’s) 129.000
Curaçao (Willemstad) 122.000
Dominica (Roseau) 110.000
Maranhão 98.000
Lógane (St.-Doming/Haiti) 98.000
Guadeloupe (Basse-Terre) 73.000

TOTAL 8.325.000

FONTE: ELTIS, David e RICHARDSON, David. Atlas of the transatlantic slave trade.
New Haven & London: Yale University Press. 2010, p. 204.

O mapa 2 reforça as informações das tabelas 2 e 3, demonstrando que a


região sudeste do Brasil, tendo o Rio de Janeiro como porto principal, recebeu o maior
número de cativos no período em que a América do Sul e Caribe juntos absorveram em
torno de 94,7% dos africanos escravizados que aportaram nas Américas. Cerca de 1,5%
dos cativos desembarcaram na África e não nas Américas por que as viagens foram
desviadas em decorrência de rebeliões a bordo ou por terem sido capturados por
54

cruzadores 107 na época de repressão ao tráfico. Pouco menos de 4% desembarcou na


América do Norte e em torno de 0,1% desembarcou na Europa 108.

Mapa 2. Principais regiões de desembarque dos cativos africanos, 1501-1867.

FONTE: ELTIS, David e RICHARDSON, David. Atlas of the transatlantic slave trade.
New Haven & London: Yale University Press. 2010 p. 17 ELTIS, David. Atlas do
Comércio Transatlântico de Escravos, p. 17.

107
Navio de guerra de grande porte, com artilharia de calibre médio
108
ELTIS, David e RICHARDSON, David. Atlas of the transatlantic slave trade. New Haven & London:
Yale University Press. 2010 p. 17
55

Mapa 3. Países e regiões do mundo atlântico que organizaram viagens negreiras,


por volume de cativos transportados da África 1501-1867

FONTE: ELTIS, David. Atlas do Comércio Transatlântico de


Escravos. Disponível em:
http://www.slavevoyages.org/assessment/intro-maps. Acesso em 15/04/2018.

É possível perceber através do mapa 3 a relação e a organização das viagens


negreiras ao longo do período vigente do tráfico atlântico. Embora Portugal apareça
com uma participação de 4,2% – muito limitada frente ao poder dos negociantes
estabelecidos na América lusa (com 29,6%) e o poderio das outras nações europeias
(como França, com 14,8%, e notadamente a superioridade inglesa, com 34,2%) –, lhe
coube o papel pioneiro de iniciar o tráfico atlântico de africanos escravizados. Durante
os primeiros 180 anos do tráfico atlântico, entre a chegada do primeiro contingente de
africanos ao reino, em 1444, e 1621, data da criação da Companhia Holandesa das
Índias Ocidentais, Portugal teve praticamente o exclusivismo desse comércio. Com a
56

união das Coroas ibéricas (entre 1580 e 1640), os portugueses vão aumentar ainda mais
seu protagonismo, pois passam a deter a primazia no abastecimento da mão de obra
africana para a América espanhola. Mas o predomínio ibérico estava com os dias
contados 109, a partir de 1660, quando perdeu a primazia para outras nações - ingleses e
holandeses, principalmente. O século XVIII foi o período de maior competição pelo
controle do tráfico, principalmente com os ingleses, os maiores e mais bem- sucedidos
transportadores de cativos da África, no Atlântico Norte, em direção aos complexos
açucareiros do Caribe 110, enquanto os portugueses tentam manter sua hegemonia no
Atlântico Sul, a partir de sua colônia angolana e dos portos no Golfo do Benin. O que
não seria tão fácil, uma vez que os lusitanos viam esse controle hegemônico do tráfico
negreiro passar para as mãos dos negociantes da América portuguesa, notadamente os
sediados na praça carioca, que conquistam sua primazia. Reforça-se, portanto, a
importância da cidade do Rio de Janeiro nesse contexto. Conforme a base de dados The
Transn-Atlantic Slave Trade Database, dos 188 portos que organizaram viagens para a
África, 93% foram organizadas pelos vinte maiores portos de embarque de cativos (ver
tabela 4), sendo o Rio de Janeiro o principal porto, seguido do de Salvador e, depois, do
de Liverpool 111.

Tabela 4. Vinte maiores portos onde as viagens de comércio atlântico de africanos


escravizados foram organizadas, 1501-1867

PORTO QUANTIDADE
DE CATIVOS
Rio de Janeiro 1.507.000
Salvador da Bahia 1.362.000
Liverpool 1.338.000
Londres 829.000
Bristol 565.000
Nantes 542.000
Recife 437.000
Lisboa 333.000
Havana 250.000
La Rochelle 166.000
Texel 165.000
Le Havre 142.000
Bordeaux 134.000
Vlissingen 123.000

109
CALDEIRA, Arlindo Manoel. Escravos e Traficantes no Império português, pp. 29 e 30.
110
ELTIS, David. Atlas do Comércio Transatlântico de Escravos, pp. 21-23
111
ELTIS, David. Atlas do Comércio Transatlântico de Escravos, p. 37.
57

Rhode Island * 111.000


Middelburg 94.000
Sevilha e Sanlúcar de Barrameda 74.000
St.-Malo 73.000
Bridgetown, Barbados 58.000
Cádiz 53.000
Total 8.356.000

FONTE: ELTIS, David e RICHARDSON, David. Atlas of The transatlantic Slave


Trade. P. 39.

De acordo com Miller, os negociantes estabelecidos no Rio de Janeiro, em


franco desenvolvimento, multiplicaram muitas vezes suas atividades em Benguela, no
século XVIII, fornecendo africanos escravizados para o trabalho nas minas de ouro e
diamantes de Minas Gerais. Desenvolveram uma frota considerável para o transporte
que iam buscar cativos cada vez mais para o interior das terras montanhosas do sul da
África Central e substituíram os negociantes de Pernambuco que, até então eram os
maiores compradores no porto de Luanda. Assim, de acordo com Joseph Miller, ainda
na primeira metade do século XVIII se consolida o domínio dos negociantes do Rio de
Janeiro em Luanda e Benguela, eles transportaram entre 15 a 20 mil cativos para as
regiões do centro-sul do Brasil e em pouco tempo consolidaram os centro-africanos
como grupo dominante entre os escravizados na cidade do Rio de Janeiro e seus
arredores. A estes juntaram-se os africanos ocidentais que eram enviados para a região
do rio São Francisco, na Bahia e região mineradora, contribuíram para um total
significativo de africanos escravizados que seriam reunidos nas áreas de extração de
ouro e diamantes em Minas Gerais 112. De acordo com os dados apresentados pelo autor,
à importação de africanos escravizados de Luanda e Benguela para o porto carioca
começa a crescer a partir de 1740 e tem seu apogeu partir de 1790, permanecendo até
1830 113. Os dados apresentados por Manolo Florentino vão demostrar a predominância
dos Africanos Centro Ocidentais no tráfico entre Angola e o Rio de Janeiro entre 1790 e
1830 114. Tal predominância também é apontada por Mary Karasch, para o século XIX,
entre 1800 e1850 115.

112
MILLER, Joseph C. África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850. In:
HEYWOOD. Linda M. (org.). Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 42.
113
Idem, p. 43.
114
FLORENTINO, op. cit., 2002 pp. 78-100
115
KARASCH, Mary C. A vida de escravos no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia da Letras, 2000, pp.
35- 66
58

Esses primeiros centro-africanos desembarcados no Rio de Janeiro, a partir


da segunda metade do século XVII, eram originários de populações que viviam nos
declives a oeste das terras altas, ao sul do rio Cuanza e se consideravam distintos dos
luandas ou angolas – apenas inicialmente como umbumdus – que eram em sua maioria
enviados para as regiões produtoras de açúcar do nordeste brasileiro, conforme podemos
observar no mapa 4 116.

Mapa 4 – África Central – geografia e esquema de redes de escravização

Fonte: MILLER, Joseph C. África Central durante a era do comércio de escravizados,


de 1490 a 1850. In HEYHOOD, Linda L. (org.). Diáspora negra no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2008, p. 68

116
MILLER, Joseph C. África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850. In:
HEYWOOD. Linda M. (org.). Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 62.
59

O autor observa que nesta segunda metade do século XVII os senhores da


região Sul do Brasil que não participavam da agricultura de exportação não dispunham
de capitais suficientes para competir com os negociantes do Nordeste brasileiro,
Pernambuco e Bahia no comércio de cativos através de Luanda. Estes dependiam cada
vez menos dos ataques abertos e cada vez mais das mercadorias e do crédito por meio
dos agentes das caravanas, os famosos pumbeiros, em redes de comércio africanas do
interior. Não possuindo situação econômica semelhante, os negociantes do Rio de
Janeiro recorriam a grupos de caças reunidos para capturar pessoas em suas regiões de
origem em Benguela e Caconda. Somente após as descobertas de ouro e diamantes em
Minas Gerais a partir dos anos de 1690, que a demanda por africanos escravizados a
partir do Rio de Janeiro multiplicou-se, permitindo que esses interesses ampliassem as
estratégias violentas para adquirir cativos em toda a região de fala “umbumdo” do alto
planalto. Tal violência provocou a divisão das terras altas em várias comunidades
militares, os Estados “ovibumdos” do século XVIII, tais como: “Wambu”,
“Mbailumdo”, “Humbe”, entre outros. Os cativos adquiridos nesses conflitos formaram
o primeiro contingente substancial de africanos ocidentais de Benguela que
desembarcou no Rio de Janeiro 117.
Ainda de acordo com Miller, foram os umbundo de Luanda a geração
fundadora da escravidão urbana na cidade do Rio de Janeiro. Tal tendência, já
estabelecida em todas as Américas, também foi convencionada no Rio de Janeiro pelos
negociantes portugueses por trás do rápido crescimento da cidade, durante os anos dessa
explosão imediatamente após os anos de 1700. Assim, o Rio de Janeiro, fortemente
associado aos negociantes metropolitanos, assegurava Luanda como principal fonte de
africanos escravizados que a cidade viria a depender nas duas primeiras décadas do
século XVIII, selecionados entre os povos de origem umbundo, por estarem mais
familiarizados com as normas coloniais portuguesas. Sendo assim, estariam mais bem
preparados para realização de tarefas com o maior grau de confiabilidade e segurança
necessários no interior das residências senhoriais ou no comércio local. Segundo o
autor, esses escravizados eram valiosos demais para serem usados no trabalho das nas

117
Idem, 62.
60

minas ou no cultivo de cana de açúcar, sendo mais utilizados em tarefas nas áreas
urbanas e comerciais da América lusa 118.
Ao longo do século XVIII seria inegável a predominância da região Congo-
Angola como a principal fonte de escravizados africanos para o Rio de Janeiro
exportados, sobretudo, através dos portos de Luanda e Benguela. Ao longo deste século,
88% de africanos escravizados que entraram no Rio de Janeiro eram originários da
África Central Atlântica 119, contra 11% da África Ocidental e apenas 1% da África
Oriental.
Avançando no tempo, veremos que na passagem do século XVIII para o
XIX, após a proibição do tráfico ao norte do Equador, a participação da África
Ocidental no abastecimento do porto do Rio de Janeiro entra em declínio, mas não
desapareceu por completo, muito embora boa parte dos africanos ocidentais que entram
no Rio de Janeiro nesse período tenha vindo de outras regiões brasileiras, sobretudo
Bahia. Boa parte do tráfico dessa região da África tendeu-se a se deslocar para a zona
setentrional da África e outra parte deslocou-se em direção à região do Rio dos
Camarões 120.
Na América portuguesa, os desembarques constantes de africanos
correspondiam a uma diferenciação social entre os homens livres, pois o simples acesso
de diversos segmentos sociais à propriedade escrava não encobria a enorme
concentração da posse de escravizados nas mãos de alguns senhores. Manolo Florentino
observou que, entre 1789 e 1808, cerca de 60% dos senhores de escravos no Rio de
Janeiro possuíam pelo menos dez cativos, assim como os estabelecimentos urbanos e
rurais com mais de vinte cativos estavam nas mãos de cerca de 15% dos proprietários.
Estes constituíam-se numa elite que concentrava 45% dos cativos, ao passo que as

118
MILLER, Joseph C. África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850. In:
HEYWOOD. Linda M. (org.). Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 63
119
De acordo com Paul Lovejoy: “De 1600 a 1800, mais de 3,1 milhões de escravos foram embarcados
somente a partir desta região [África Centro-Ocidental], o que representava cerca de um terço de todos
os escravos exportados da África nesses dois séculos, incluindo o comércio transatlântico e o comércio
islâmico estabelecido. A porção do comércio do Atlântico que pode ser atribuída à África Centro-
Ocidental é correspondentemente maior do que um terço. No apogeu do comércio no século XVIII,
essa região era a maior exportadora isolada, exceto nas três primeiras décadas, quando era a segunda
maior fonte. Nas últimas décadas do século, os anos de apogeu do comércio transatlântico, a África
Centro-Ocidental contribuiu com mais de um terço, subindo para mais de 40 por cento do comércio
desde a década de 1770 até a de 1790”. LOVEJOY, Paul. A escravidão na África: uma história de suas
transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p.98.
120
PIRES, Ana Flávia Cicchelli. Tráfico Ilegal de Escravos: os caminhos que levam a Cabinda.
Dissertação Mestrado. PPGH/UFF, 2006, pp. 47,48; MILLER, 2008, op. cit. pp. 42-4; FLORENTINO,
Manolo. Tráfico atlântico, mercado colonial e famílias escravas no Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1830.
História: 2009, pp. 77-78.
61

pequenas unidades produtoras, possuíam apenas um entre cada quatro escravos, veja
tabela 5 121.
Ao analisar o tráfico e a escravidão no Rio de Janeiro entre 1789 e 1832,
Manolo Florentino constata que entre todos aqueles que morriam e abriam seus
inventários post- mortem, nunca menos de 84% eram possuidores de pelo menos um
escravo. Tal situação era indicativa de um alto grau de disseminação social da
propriedade escrava no Rio de Janeiro 122. Segundo o autor, o fato de tantos indivíduos
terem acesso à propriedade de escravos poderia nos induzir a pensar que tal elemento
por si só não seria capaz de produzir a diferenciação social dos homens livres entre si.
Levando-nos a negar a afirmação de Finley 123, de que a posse de escravos não torna
uma sociedade escravista, mas sim aquela em que a elite é capaz de se reproduzir
mediante a exploração do trabalho dos cativos 124.
Com a abertura dos portos, em 1808, segundo Florentino, intensificam-se os
desembarques de cativos no porto do Rio de Janeiro, correspondendo ao aumento da
fatia da escravaria concentrada nas mãos da elite colonial, que passou a deter 60% dos
cativos. Ao mesmo tempo em que ocorre uma diminuição no acesso à propriedade
escrava por parte daqueles que possuíam menos de vinte cativos, os que possuíam um
pouco mais da metade passam a possuir cerca de 40% do total de escravos. Entre 1789 e
1808, aumentou o número de proprietários sem escravos, o que representava 11,2% dos
inventariados, índice que passou para 16,4%, entre 1808 e 1830. Tais dados
demonstram o papel estrutural do tráfico transatlântico na cidade, demonstrando a
capacidade de os homens livres detentores das maiores fortunas gerarem renda a partir
da apropriação do trabalho escravo. Portanto, o tráfico transatlântico de escravizados
revela-se como o mecanismo central de acumulação e distanciamento (diferenciação
socioeconômica) da elite escravista em relação aos demais setores da população livre na
hierarquia socioeconômica 125.

121
FLORENTINO, Manolo. Tráfico atlântico, mercado colonial e famílias escravas no Rio de Janeiro, c.
1790. c. 1830. História: Questões & Debates, Curitiba: Editora UFPR. n. 51, p. 69-119, jul./dez. 2009,
pp. 72-74.
122
Ibid., pp. 72-74.
123
FINLEY, Moses I. Escravidão Antiga e ideologia moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1991, pp. 82-9
124
FLORENTINO, op. cit., p. 72- 3.
125
Ibid., pp. 72-74.
62

Tabela 5 - Variação (%) da posse de escravos de acordo com as grandes faixas de


tamanho da escravaria dos meios rural e urbano do Rio de Janeiro, 1789-1832

Tamanho da 1789-1808 1810-1832


escravaria % de % de # de # de % de % de # de # de
propr. escr. propr. escr. propr. escr. propr. escr.
1 a 9 escravos 59,7 24,1 161 743 62,4 20,4 402 1823
10 a 19 escravos 25,9 30,5 70 938 19,3 18,4 124 1648
+ de 20 escravos 14,4 45,4 39 1399 18,3 61,2 118 5468
Total
100,0 100,0 270 3080 100,0 100,0 644 8939

Obs: Segundo Florentino, 34 inventariados não possuíam escravos entre 1789 e 1808, o
mesmo ocorrendo com 126 inventariados entre 1810 e 1832.
FONTE: FLORENTINO, Manolo. Tráfico atlântico, mercado colonial e famílias
escravas no Rio de Janeiro, pp. 73, Tabela 1.

Para Manolo Florentino, grosso modo, o período de 1790-1830 pode ser


dividido em três intervalos. O primeiro, 1790-1810, de relativa estabilidade dos
desembarques de africanos, com média de 9.967 escravos/ano. O segundo, de 1811-
1825, sob a influência da abertura dos portos ao comércio internacional, em que mais
que duplicou as entradas de escravos para 20.908 anuais. Por fim, o período de 1826-
1830, no qual, em função do tratado com a Inglaterra para reconhecimento da
independência (do Brasil) estipulando o fim do tráfico em 3 anos, há uma compra
desenfreada de africanos por parte dos traficantes cariocas que quase dobrou o número
de africanos que entraram no Rio de Janeiro para 38.434 africanos por ano 126.
Considerando toda a primeira metade do século XIX, o impacto do tráfico atlântico para
o Rio de Janeiro seria ainda maior. De acordo com o banco de dados The Transatlantic
Slave Trade Database, entre 1808-1856, o Rio de Janeiro recebeu 1.047.000 africanos,
sendo a maioria esmagadora da região de Angola. Número significativo veio também da
África Oriental, especialmente Moçambique. Nesse período desembarcou no porto
carioca 269.000 africanos orientais. Em 1808, a transferência da Corte portuguesa para
o Rio de Janeiro implicou em uma série de mudanças político-administrativas 127 e

126
FLORENTINO, op. cit., pp. 75; FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Dos sertões ao Atlântico: tráfico
ilegal de escravos e comércio lícito em Angola, 1830- 1860. Dissertação de Mestrado em História,
UFRJ, Rio de Janeiro, 1996, 2-6.
127
CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e construção da cidade da invasão
francesa até a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2004. pp. 95-101; HONORATO,
Cláudio de Paula. Valongo: o mercado de escravos do Rio de Janeiro de 1758 a 1831. Dissertação de
Mestrado. Niterói, PPGH/UFF 2008, 37-49; SANTOS, Ynaê Lopes dos. Irmãs do Atlântico:
escravidão e espaço urbano no Rio de Janeiro e Havana (1763-1844). Tese de doutorado. PPGH/USP,
2012. pp. 118-146; SANTOS, Ynaê Lopes dos. Tornar-se Corte: Trabalho escravo e espaço urbano no
Rio de Janeiro, (1808-1815). Revista de História Comparada. Rio de Janeiro, 7, 1, 2013, 262-292.
63

sociais que acabaram gerando uma demanda maior por escravizados que foi suprida
rapidamente pelo tráfico transatlântico.

Tabela 6 - Procedência dos navios negreiros que atracaram no porto do Rio de


Janeiro por região de embarque, 1790-1830
Entre 25/7/1795 Entre 26/6/1811 Total do
Região e 18/3/1811 e 31/12/1830 período
# % # % # %
África Ocidental 12 3,2% 18 1,5% 30 1,9%
África Central Atlântica 344 92,7% 931 78,6% 1.275 82,0%
África Oriental 15 4,1% 235 19,9% 250 16,1%
Fonte: FLORENTINO, Manolo G. Em costas negras, Apêndice 13, p.234.

A Tabela 6 nos permite perceber que a passagem do século XVIII para o


XIX marcou de forma expressiva o crescimento das exportações de cativos da costa do
Índico para o Rio de Janeiro, marcando a África Oriental como grande fonte
abastecedora de cativos para o Rio de Janeiro. O que se dá, especialmente, após 1811,
com uma quantidade expressiva e diversificada de exportações, antes concentradas na
ilha de Moçambique, e que passam a incluir também os portos meridionais de
Quelimane, Inhambane, Lourenço Marques e, também a rota que se iniciava na ilha de
Madagascar 128.
O marco dessa tabela no ano de 1830 está relacionado à tentativa de
abolição do tráfico legal de africanos para o Brasil, com a lei de 7 de novembro de
1831 129. Entre 1831-1850, se intensificou a chegada de africanos no porto do Rio de

BARBOSA, Keith de Oliveira e GOMES, Flavio. Doenças, morte e escravidão africana: perspectivas
historiográficas. Ciências letras, Porto Alegre, n. 44, p. 237-259, jul./dez. 2008, p. 250.
128
FLORENTINO, op. cit., pp. 78,79.
129
“Em 1826, os representantes das coroas do Brasil e Inglaterra assinaram um acordo de abolição do
tráfico em três anos. Ratificava todos os acordos assinados previamente com Portugal e proibia toda a
importação de escravizados para o Brasil, efetiva três anos após a ratificação, que ocorreu em 13 de
março de 1827. O tratado considerava piratas os navios das duas nações que se encontrassem
engajados no tráfico. Seriam submetidos a julgamento por comissões mistas instaladas nos dois lados
do Atlântico, em Freetown, Serra Leoa e no Rio de Janeiro. Determinava a emancipação de todos os
africanos encontrados nos navios condenados. O governo imperial propôs um projeto de lei nacional
de proibição do tráfico, que foi debatido e aprovado no Senado e depois na Câmara, sendo promulgada
em 7 de novembro de 1831. Regulamentada pelo decreto de 12 de abril de 1832. Em seu art. 1º
declarava livres “todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil”. Apesar da
proibição intensificou-se o tráfico de africanos escravizados para o Brasil. Entre 1831 e 1850 mais de
750 mil africanos entraram no país ilegalmente”. MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. A proibição do
tráfico atlântico e a manutenção da escravidão. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (org.). O
Brasil Imperial, Volume 1: 1808-1831. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. Capítulo VI.
64

Janeiro. Do total de africanos trazidos para o Brasil em trezentos anos,


aproximadamente 20% chegou entre 1831 e 1855, demonstrando a importância do
tráfico ilegal de escravizados, com destaque para o porto de Cabinda que passa a ter
uma participação expressiva já em 1810 130.
Em 1808, quando a família Real portuguesa com a sua Corte vem para o Rio
de Janeiro, os negociantes portugueses percebem a oportunidade de retomar o vigoroso
fluxo de comércio de escravos entre a África e o Brasil, especialmente a rota de Luanda
para o Rio de Janeiro que havia sido ocupada pelos “brasileiros” em função do vácuo
deixado por aqueles. O que daria início a uma forte política protecionista em prol dos
interesses portugueses, além dos altos impostos que serão cobrados. Essa situação
provocou a dispersão dos negociantes brasileiros e luso-africanos (crioulos africanos) de
Luanda, que passam a buscar portos africanos independentes e remotos ao norte, fora da
jurisdição portuguesa, onde reorganizaram o sistema de comércio escravista e o
dominaram até o fim, a partir dos centros de Cabinda e Ambriz, canalizando as
atividades negreiras para os portos de Cabinda, Molembi, Loango, Ambriz, Abrizete e
Rio Zaire (ver tabela7), em função das vantagens obtidas nesses portos. O que passou a
causar preocupação à administração portuguesa que se concentrava em Luanda e
Benguela 131.
A partir de 1830 em virtude da proibição do tráfico legal para o Brasil
ocorre uma segunda dispersão provocando uma verdadeira reestruturação dos
embarques na Costa Centro-Ocidental africana, especialmente em Angola, região

p. 207-233; Cf. Lei de 7 de novembro de 1831. Coleção de Leis do Império do Brasil, 1831, p. 182,
vol. 1 pt 1; GURGEL, Argemiro Eloy. A Lei de 7 de novembro de 1831e as ações cíveis de liberdade
na Cidade de Valença (1870 a 1888). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, UFRJ / IFCS, 2004, pp.
49-55; GRINBERG, Keila. Escravidão, alforria e direito no Brasil oitocentista: reflexões sobre a lei de
1831 e o "princípio da liberdade" na fronteira sul do Império brasileiro. In: CARVALHO, José Murilo
de. Nação e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
2007. p. 267-285; COTA, Luiz Gustavo Santos. Sagrado Direito da Liberdade: escravidão, liberdade e
abolicionismo em Ouro Preto e Mariana (1871 a 1888). Dissertação de Mestrado. Juiz de Fora:
Universidade Federal de Juiz de Fora, 2007, pp. 136 a 144; CHALHOUB, Sidney. A força da
escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012;
CARVALHO, Marcus J. M. de. O desembarque nas praias: o funcionamento do tráfico de escravos
depois de 1831. Revista de História, São Paulo, n. 167, p. 223-260, julho/dezembro 2012. Disponível
em <http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/49091>. Acesso em 30 de março. de 2020.
130
ELTIS, David. Economic growth and the endind of the transatlantic slave trade. New York: Oxford
University Press, 1987, p. 243-4; FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Dos sertões ao Atlântico p. 15-16;
CICCHELLI PIRES, Ana Flávia. Tráfico Ilegal de Escravos: os caminhos que levam a Cabinda.
Dissertação Mestrado. PPGH/UFF, 2006, 23-25.
131
FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras, pp. 37,38; FLORENTINO, Manolo; RIBEIRO,
Alexandre; SILVA. Daniel Domingues da Silva. Aspectos comparativos do tráfico de africanos para o
Brasil (séculos XVIII e XIX). Afro-Ásia, 31, 2004, pp. 87-89; FERREIRA, Roquinaldo Amaral.
Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil during the era of Slave Trade.
Cambridge University Press, 2012;
65

responsável pela maior quantidade de africanos escravizados enviados para o Rio de


Janeiro. Com a proibição e consequente repressão, há um esvaziamento dos portos de
Luanda e Benguela, que vão perdendo terreno. Os portos situados ao norte de Luanda
passam a ser imprescindíveis para os traficantes que passam a atuar nesta região até
1860. Assim, ocorre a dispersão dos embarques ao longo da costa Congo-angolana nos
portos de Ambriz, Cabinda e aqueles localizados no Rio Zaire, Banana, Boma, e Porta
de Lenha, que passam a figurar como importantes centros exportadores de africanos
durante o período do tráfico ilegal 132.

Tabela 7 - Procedência dos navios negreiros que atracaram no porto do Rio de


Janeiro, provenientes da África Central Atlântica, 1790-1830

Porto Entre 25/7/1795 e Entre 26/6/1811 e Total do período


18/3/1811 31/12/1830
# % # % # %
Loango - - 1 0,1% 1 0,1%
Molembo 1 0,3% 26 2,8% 27 2,1%
Cacongo - - 2 0,2% 2 0,2%
Cabinda 11 3,2% 330 35,5% 341 26,8%
Rio Zaire 1 0,3% 34 3,7% 35 2,7%
Ambriz - - 81 8,7% 81 6,4%
Luanda 163 47,4% 300 32,3% 463 36,3%
Benguela 168 48,8% 156 16,8% 324 25,4%
Fonte: FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras, op. cit., Apêndice 13, p.234.

Esses números mostram o papel central alcançado pelo Rio de Janeiro na


reprodução do escravismo no Sudeste e mesmo para o Sul, a partir da segunda metade
do século XVIII. Situação que se manteria até 1850, com o fim efetivo do tráfico
africano. Período este que corresponde ao recorte cronológico final da pesquisa proposta
tendo em vista o fim, do tráfico ilegal, com a promulgação da Lei Euzébio de
Queiroz 133.

132
FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras, pp. 37,38 – FLORENTINO, Manolo; RIBEIRO,
Alexandre; SILVA. Aspectos comparativos do tráfico de africanos para o Brasil (séculos XVIII e
XIX). Afro-Ásia, 31, 2004, pp. 87-89; FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Cross-Cultural Exchange in
the Atlantic World: Angola and Brazil during the era of Slave Trade. Cambridge University Press,
2012.
133
FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras, pp. 37,38; FLORENTINO, Manolo; RIBEIRO,
Alexandre; SILVA, Daniel Domingues. Aspectos comparativos do tráfico de africanos para o Brasil
(séculos XVIII e XIX). Afro-Ásia, 31, 2004, pp. 87-89; FLORENTINO, Manolo. Tráfico Atlântico,
Mercado Colonial e Famílias Escravas No Rio De Janeiro, Basil, C. 1790-C.1830. História: Questões
& Debates, Curitiba, n. 51,
p. 69-119, jul./dez. 2009. Editora UFPR, pp. 75-6; FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Cross-Cultural
Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil during the era of Slave Trade. Cambridge
University Press, 2012.
66

Mary Karasch, com base nos registros alfandegários, documentação de


navios negreiros apresados, registros de impostos, de prisões e de sepultamentos na
Santa Casa da misericórdia, identificou as origens dos africanos importados pelo Rio de
Janeiro, tais como: África Ocidental, Centro Ocidental e Oriental, além de ‘origem
africana desconhecida’. A autora revela a concentração de alguns grandes grupos no Rio
de Janeiro com destaque para: congo, angola, benguela, mina, cabinda, cassanje,
moçambique, entre outros. Os africanos ocidentais representaram de 1,5% a 7%,
enquanto os centro-ocidentais representavam 79% e os orientais 17% 134. Flavio Gomes,
ao pesquisar os registros de óbitos da paróquia da Candelária, relativos ao período entre
1810 e 1830, num total de 829 registros, constatou que os benguelas representavam
14,5% do total de óbitos; seguidos dos congos, com 13.9%; dos angolas, com 6,3%; dos
cabindas, com 4,6% e dos moçambiques, com 3,2% 135.
Muitos destes africanos permaneceram na cidade e nela viveram e
morreram. A proposta deste capítulo é justamente mapear os diferentes grupos de
procedência africana que se fizeram presentes na cidade do Rio de Janeiro, entre o
século XVIII e a primeira metade do século XIX, a fim de verificar, no capítulo 2, como
a chegada de diversos grupos de africanos, em diferentes conjunturas alimentou a
cidade de novos hábitos de herança africana.

* * *

Antes, porém, é preciso identificar que o recorte espacial escolhido para a


nossa análise compreende a freguesia da Sé, a mais antiga da cidade e localizada na área
central da mesma, incluindo área do porto principal até 1634, quando foi desmembrada
a área para criação da freguesia da Candelária. Local de intensa circulação e
permanência de forma crescente da população africana, a Sé é o lócus privilegiado para
observação das interações sociais entre os africanos e seus descendentes, libertos,
escravizados e livres. Acompanhar sua evolução histórica é conhecer a construção da
própria cidade do Rio de Janeiro que se expandiu para seus arrabaldes e cresceu em
direção ao interior. Seu porto foi o principal ponto de atração e circulação de pessoas e
mercadorias, representando a principal porta de entrada e saída da cidade, tanto para o

134
KARASCH, op. cit., p. 35.
135
GOMES, Flavio. Demografia Atlântica, 2012, p. 97.
67

exterior como para o interior, por meio dos mares, rios e, deste modo, fazendo ligação
com os diversos portos do Recôncavo da Guanabara 136.
Outro aspecto que faz da freguesia da Sé uma importante área privilegiada
para estudos e compreensão de como a cidade do Rio de Janeiro se africanizou é pelo
fato de que quase todas as irmandades negras estavam nela localizadas, algumas sendo
proprietárias de seus próprios templos. O que reflete a capacidade de articulação e
reorganização política e religiosa dos diversos grupos de procedência africana
construída ao longo do tempo em solo da urbe carioca, reconhecendo-se enquanto
grupo, estabelecendo laços de solidariedade. Ao estudarmos as vivências da morte e do
morrer entre africanos e seus descendentes na freguesia da Sé, entendemos que a
concentração das confrarias de negros neste espaço da cidade, assim como a circulação
e convívio dos indivíduos entre os diversos grupos de africanos livres, libertos e
escravizados dialoga com os outros espaços que formam a urbe carioca, contribuindo
para compreendermos os efeitos da mobilidade espacial/social, a relativa autonomia e o
controle senhorial em uma sociedade escravista.
A história da freguesia da Sé está diretamente relacionada à história dos
primórdios da fundação da cidade e sua transferência para o alto do morro do Castelo,
quando em 1569 a freguesia de São Sebastião foi criada. Tendo originalmente sua igreja
matriz dedicada a São Sebastião, foi à única freguesia da cidade até 1634, quando foi
desmembrada para criação da freguesia de Nossa Senhora da Candelária devido ao
crescimento populacional e a expansão da cidade em direção as terras da planície
litorânea. Mais tarde, em 1751, foram criadas as freguesias de Santa Rita e São José.
Apesar das perdas territoriais, em decorrência dos desmembramentos, a freguesia da Sé
se manteve com a maior extensão territorial do perímetro urbano da urbe carioca 137
(como podemos ver através dos mapas 5, 6 e 7). Em 1676, a freguesia de São Sebastião
foi elevada à condição de Sé com a criação do bispado do Rio de Janeiro e instalação do
Cabido na igreja de São Sebastião, localizada no alto do morro do Castelo, tornando-se
Sé Catedral.

136
A partir da descoberta do ouro em Minas Gerais no final do século XVII, o Rio passa a ter a gigantesca
função de porta do sertão interior, e seu porto será frequentado incessante, progressiva e intensamente
pelas frotas de um comércio de proporções ponderáveis para o abastecimento da nova área econômica,
que se incorpora e sobre a qual também vai exercer jurisdição. FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em
nome do rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.:
Garamond, 1999, p.31.
137
CAVALCANTI, op. cit., p.p. 260-1.
68

Mapa 5 - Evolução da área urbana da cidade do Rio de Janeiro de 1565 a 1650

FONTE: FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do rei: uma história fundiária da
cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Garamond, 1999, p. 19.
Obs.: A marcação das freguesias foi feita segundo o site imagineRio. Um atlas digital
pesquisável que ilustra a evolução social e urbana do Rio de Janeiro, tal como existia e
como era imaginado. Vistas, mapas históricos e plantas baixas de arquivos
iconográficos, cartográficos e arquitetônicos são localizados no tempo e no espaço,
enquanto seus dados visuais e espaciais são integrados em vários bancos de dados e
servidores, incluindo um repositório público de imagens, um sistema de informações
geográficas, um banco de dados relacional de código aberto e um sistema online de
disponibilização de conteúdo. Disponível em: https://imaginerio.org/#pr. Acesso em 12
de julho de 2019.
69

Em 1634, quando da criação da freguesia da Candelária o perímetro urbano tinha


como limite a rua dos Ourives 138 (atual Miguel Couto e Rodrigo Silva), antigo Caminho
do Parto para Conceição, quase um prolongamento da rua da Ajuda e, até as primeiras
décadas do setecentos, não ultrapassava a rua da Vala, (atual Uruguaiana). Este era o
velho núcleo urbano da cidade, situado entre os morros Castelo, São Bento, Conceição e
Santo Antonio. A partir do início do século XVIII, a cidade começaria a passar por
grandes transformações, expandindo-se em diversas direções, sobretudo para a região
que chamamos zona sul, através de caminhos que contornavam os morros, alcançando a
Lapa, a Gloria e o Largo das Pitangueiras (Hoje largo do Machado), que começaram a
adquirir uma fisionomia urbana. Núcleos de povoamento também iam se formando em
direção à Mata Porcos (atual Riachuelo) e, para além da Prainha (atual Praça Mauá),
região do Valongo, área que a partir de 1769 concentrou o maior mercado de africanos
novos das Américas, onde mais tarde seria ocupada pelos bairros da Saúde e
Gamboa 139. Com relação ao núcleo urbano propriamente dito, que no início do século
XVIII mal chegava à rua da Vala (atual Uruguaiana), no final deste século estendia-se
até o Campo de Santana, devido à realização de grandes obras de aterros e drenagens 140.
Ao lado do crescimento da área urbana, igualmente aumentará a população, que
a partir de 1751 se concentrava em quatro freguesias no perímetro urbano. De acordo
com as Memórias Públicas e Econômicas da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro
para uso do vice-rei Luiz de Vasconcellos, para os anos de 1779 até 1789, a população
das quatro freguesias urbanas era: Sé, 9.997 habitantes; Candelária, 9.867; São José,
13.448; Santa Rita, 5.355 141.

138
A partir da abertura da Av. Central (atual Rio Branco), essa rua foi dividida em dois pedaços que
ficaram distanciados um do outro. Ao pedaço menor, entre a Rua São José e Sete de Setembro, foi
dado o nome de Rodrigo Silva, permanecendo o trecho maior, entre a Rua do Ouvidor e o Largo de
Santa Rita, com a designação de Rua dos Ourives até que em 1936, teve seu nome alterado para
Miguel Couto por nela ter tido o consultório do conceituado médico.
139
HONORATO, op. cit., p. 32.
140
ALMEIDA, Elisa M. J. Mendes de e PINTO, Dulce Maria A. O desenvolvimento da área central. In:
Divisão de Geografia (organização) A Área Central da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
IBGE, Conselho Nacional de Geografia 1976, p. 49 e 50.
141
Memórias Públicas e Econômicas da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro para uso do vice-rei
Luiz de Vasconcellos por observação curiosa dos anos de 1779 até o de 1789. Rio de Janeiro: Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 47, v. 48, pp. 25-51. 1884.
70

Mapa 6 - Evolução da área urbana da cidade do Rio de Janeiro de 1651 a 1750

FONTE: FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do rei: uma história fundiária da
cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Garamond, 1999, p. 32.

Obs.: A marcação das freguesias foi feita segundo o site imagineRio. Um atlas digital
pesquisável que ilustra a evolução social e urbana do Rio de Janeiro, tal como existia e
como era imaginado. Vistas, mapas históricos e plantas baixas de arquivos
iconográficos, cartográficos e arquitetônicos- são localizados no tempo e no espaço,
enquanto seus dados visuais e espaciais são integrados em vários bancos de dados e
servidores, incluindo um repositório público de imagens, um sistema de informações
71

geográficas, um banco de dados relacional de código aberto e um sistema online de


disponibilização de conteúdo. Disponível em: https://imaginerio.org/#pr. Acesso em 12
de julho de 2019.

Sobre o cálculo da população Rio de Janeiro no período colonial, infelizmente,


existe uma carência de fontes disponíveis. São escassos os dados demográficos, mapas e
estatísticas populacionais. O que impõe algumas dificuldades para se compor o quadro
demográfico cidade do Rio de Janeiro no período por nós estudado. Os dados existentes
sobre a composição da população da cidade e especificamente sobre a freguesia da Sé
nos séculos XVII e XVIII são incompletos.
Segundo a visita pastoral às freguesias do bispado do Rio de Janeiro no ano de
1687, havia na cidade apenas duas freguesias urbanas: a da Sé, com 650 fogos e 3.500
pessoas de comunhão, e a de Nossa Senhora da Candelária, com 600 fogos, 3500 almas
e, destas, 2.800 pessoas de comunhão 142. Embora os dados eclesiásticos sejam de
extrema importância, pois são eles em muitos períodos as únicas fontes disponíveis que
nos permitem conhecer a população da cidade, devem ser analisados com bastante
cautela, pois em geral esses mapas levam em conta apenas a população que comunga e
confessa, sendo excluídas as crianças menores de cinco anos e outros casos
excepcionais são excluídos. Nireu Cavalcanti analisa parte desses levantamentos
populacionais para algumas freguesias urbanas da cidade, como apresento na tabela 8.

Tabela 8 - Dados populacionais das freguesias urbanas da cidade do Rio de


Janeiro, segundo diferentes fontes
LaCaill Baltazar Doc. Baltaza Luís Doc. Pizzarr Pizzarro Décima
e 1751 da Silva Ecle r da Vascon- Ecle- o 1800/5 Urban
FREGUESI Lisboa - siática Silva celos Siátic citando a 18082
A 1760 17751 Lisboa 1779/89 a Rezend
1780 17881 e
1797/99
População/Fogos

- 8.267 8.867 11.022 9.997 10.640 -
População
- 1.789 - 2,385 2.072 - 3.641
Fogos

São José
- 9.325 7.060 12.400 13.488 10.350 -
População
- 1.522 - 1.879 1.244 1.722 1.950
Fogos
Candelária
População - 10.037 8.283 13.382 9.867 9.720 -

142
Notícias do Bispado do Rio de Janeiro. Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, Série de
Visita Pastoral, VP38, 1687. Agradeço a Claudia Rodrigues por ter me cedido este documento.
72

Fogos - 1.522 - 1.929 1.329 1.507 1.978

Santa Rita
População - 5.117 4.927 6.587 5.355 5.224 -
Fogos - 963 - 1.280 1.167 1.061 1.057

Eng. Velho
População - - 1.647 - 1.775 2.388 -
Fogos - - - 250 - - 84

TOTAL
População 24.397 32.746 30.784 43.391 38.707 28.615 43.730 50144 60.163
Fogos 3.723 5.796 - 7.473 5.812 - 6.760 - 8.708

FONTE: CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista: a vida e a construção da


cidade da invasão francesa até a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2004, p. 255.

1 Mapa geral abreviado de todo o Bispado do Rio de Janeiro...


2 Imposto cobrado pela propriedade urbana a base de 10% do valor do Imóvel.

Cavalcanti observa que há limitações nesses levantamentos 143, pois não levam
em conta a população extramuros e que a cidade já havia ultrapassado largamente os
limites da muralha construída em 1713 após as invasões francesas. Alguns desses dados
não levam em conta o perfil populacional de cada freguesia. Apenas apresentam o total
da população da cidade de forma geral e todos esses levantamentos produzidos a partir
da segunda metade do século XVIII 144 indicam a quantidade da população e o número
de fogos. O matemático e astrônomo francês Nicolas-Louis de La Caille, comumente
chamado de La Caille, esteve no Rio de Janeiro em 1751 e em sua descrição da cidade
declarou que a mesma possuía 50 mil habitantes, incluindo nesse número os negros. Os
dados produzidos por este autor não fazem menção da abrangência da base territorial da
cidade, não sabemos se está se referindo à área central da cidade como um todo. Vieira
Fazenda, com base em Baltazar da Silva Lisboa, contesta esse número, dizendo que é
um exagero do autor, diz que nessa época havia na cidade 3.723 fogos e 24.397 pessoas.
Vieira Fazenda afirma que os menores de cinco anos de idade não foram incluídos nesse
número. O mesmo citando o Barão do Rio Branco, diz que dez anos mais tarde a cidade

143
CAVALCANTI, op. cit., p.p. 253-258.
144
SOUZA, Ingrid Ferreira de. Vivendo Além do Cativeiro. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro:
universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO, 2014. p. 30.
73

tinha 30.000 habitantes e somente muitos anos depois alcançaria a cifra de 50.000
almas 145.
Em Memórias públicas e econômicas da cidade do Rio de Janeiro, para uso do
vice- rei, Luís de Vasconcelos afirma que entre os anos de 1779 e 1789 o número da
população intramuros era de 38.707 habitantes, distribuídos em 5.827 fogos, sendo
divididos pelas freguesias da seguinte forma: Sé, 2.072 fogos; Candelária, 1.329 fogos,
São José, 1.244 fogos; Santa Rita, 1.167 fogos. Para a freguesia do Engenho velho, o
número de almas era de 1.775, não aparecendo o número de fogos 146. O Mapa geral
abreviado do Bispado do Rio de Janeiro restringiu-se às freguesias urbanas: Sé,
Candelária, São José e Santa Rita e excluem as crianças com menos de cinco anos.
Neste mapa a população da Freguesia da Sé somava 8.867 almas e a da cidade um total
de 30.784 habitantes 147. Nos Anais da cidade do Rio de Janeiro, escrito por Baltazar da
Silva Lisboa, os dados referentes à população da freguesia da Sé somavam 8.267
habitantes, distribuídos em 1.789 fogos para o ano de 1760 e 11.022 habitantes
distribuídos em 2.385 fogos para o ano de 1780 148.
Em suas Memórias históricas do Rio de Janeiro para o período de 1800-8,
Monsenhor Pizarro declarou que na cidade havia 46.944 indivíduos “de ambos os sexos,
entre brancos, pardos, e pretos, que libertos, que cativos”. No entanto, o próprio
Pizzarro cita que os mapas paroquiais contavam um total de 43.730, mais 2.500 homens
de tropa regular, que somados chegam a um total de 49.444 habitantes, embora Pizzarro
afirme que seja 49.344, excluídos “os vagabundos, os subtraídos, ou negados” aos róis
paroquiais, e as famílias encerradas nos claustros de São Bento, do Carmo, de Santo
Antonio, de N. Senhora da Ajuda, e de N. Senhora do Desterro, nos seminários de São
José, de São Joaquim, e Lapa, e nos Recolhimentos da Misericórdia, e do Parto, cujos
indivíduos montavam, quando menos a 800, alcançando a totalidade de 50.144
habitantes 149.
Embora exista uma aproximação de cálculo nesses dados, indicando a
possibilidade de estarem tratando períodos similares, havia divergências na forma como

145
FAZENDA, Vieira. Antiqualhas e memorias do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Tomo 86 – vol. 140, p. 166
146
Memórias públicas e econômicas da cidade do Rio de Janeiro, para uso do vice-rei, Luís de
Vasconcelos, por observação curiosa dos anos de 1779 até 1789. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, tomo XLVII, 1ª parte, 1884, p.
147
131 Mapa geral abreviado de todo o Bispado do Rio de Janeiro. IHGB, doc. 1,3,13
148
LISBOA, Baltazar da Silva. Anais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: na Typ. Imp. E Const. De
Seignot- Plancher tomo 1. 1834, p.439
149
ARAUJO, Joze de Souza Azevedo Pizzarro. Memórias Históricas do Rio de Janeiro, p. 146.
74

esses dados eram coletados e processados, demonstrando assim a fragilidade dos


métodos utilizados que se encontravam ainda em fase embrionária de desenvolvimento.
É a partir de meados do século XIX que esses procedimentos começam se consolidar
pautando-se em critérios preestabelecidos, tais como: respaldo legal; simultaneidade do
levantamento; tempo e referência prefixados; universalidade da enumeração dentro do
território; e enumeração individual de todas as pessoas 150. De todo modo, esses dados
associados a outras fontes nos permitem redesenhar, mesmo que de forma limitada, a
freguesia da Sé e suas especificidades dentro do cenário urbano da cidade do Rio de
Janeiro entre os séculos XVIII e XIX.
Originalmente, a freguesia da Sé estava localizada no morro do Castelo. A partir
de seus sucessivos desmembramentos para criação das freguesias da Candelária (1634),
Santa Rita e São José (1751), expandiu-se pela planície por uma área
predominantemente plana, pantanosa alagadiça 151, que foi sendo ocupada
paulatinamente ao longo do setecentos e mais intensamente no século seguinte. No
início do século XVIII, o núcleo urbano mal chegava à Rua vala (atual Uruguaiana) e no
final dessa centúria estendia-se até o Campo de Santana. Para tanto foi necessário
realizar uma série de obras de infraestrutura: drenagem dos pântanos, aterramentos,
canalizações iam sendo realizadas pela Câmara (pelos representantes da Coroa) e por
particulares (em geral grandes proprietários de terras, prédios urbanos e escravos),
novos logradouros iam sendo abertos e a população expandia-se pelos arrabaldes 152.
Ao final do século dezessete, a cidade assistiu a um enorme crescimento de
desembarques de cativos africanos em seu porto, o que aumentou extraordinariamente
ao longo do século XVIII. Entre 1626 e 1650 desembarcaram no porto Rio de Janeiro
48.317 africanos escravizados; entre 1651 e 1675 esse número sobe para 68.248 e entre
1675 e 1700 atinge a cifra de 72.123. Entre 1701 e 1725 esse número subiu para
159.253 cativos africanos 153. Lembremo-nos que em 1687, ocasião da visita pastoral

150
BOTELHO, Tarciso Rodrigues. Censos nacionais brasileiros: da estatística à demografia, séculos XIX -
XX. Trabalho apresentado no Congress of the Latin American Studies Association, Rio de Janeiro,
Brasil, 11-14, junho de 2009, p. 2; Estatísticas Históricas do Brasil: Séries Econômicas Demográficas e
Sociais de 1550 a 1988. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2ª ed. revista e
atualizada, vol. 3 Séries Estatísticas Retrospectivas, Rio de Janeiro: IBGE, 1990, p. 23.
151
CAVALCANTI, op. cit., p. 261
152
ALMAIDA, Elisa Maria José Mendes de e PINTO, Dulce Maria Alcides. O Desenvolvimento da Área
Central. In A Área Central da Cidade do Rio de Janeiro. Organizado pela Divisão de Geografia,
Conselho Nacional de Geografia. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. IBGE. Rio de Janeiro,
1967, p. 50.
153
GUEDES, Roberto. Porque sempre é bom que os forros tenham quem olhe para ele. Benignidade
senhorial e libertos submissos na cidade do Rio de Janeiro (primeira metade do século XVIII. In:
75

mencionada anteriormente, a cidade do Rio de Janeiro tinha apenas duas freguesias e


contava com total de 7.000 almas 154. Nesse sentido, é possível constatar como o
impacto demográfico causado pelo tráfico atlântico foi extraordinário.
No final deste século, em 1799, já era grande a quantidade de pretos e seus
descendentes, escravizados e libertos que circulavam pela cidade. A quantidade de
escravos era de 14.986, representando 34% do total da população de 43.576 pessoas. Os
libertos somavam 9.012 pessoas, representando 32% da população livre da cidade, que
era igual a 28.590 155.
Mediante esse impacto demográfico, muitos investimentos foram realizados na
freguesia da Sé, permitindo um avanço progressivo da população em direção ao
Mangue de São Diogo, região que seria conhecida desde o século XIX como Cidade
Nova. Em 1739, com a transferência do Cabido da Sé da Igreja de São Sebastião do alto
do morro do Castelo para a Igreja do Rosário, nas proximidades da Rua da Vala, houve
uma intensificação ainda maior da circulação de pessoas nos limites da zona urbanizada
da cidade.
A cidade expandiu progressivamente em direção ao seu interior continental, ao
longo do século por São Cristóvão, Tijuca, Andaraí, Pedregulho, São Francisco Xavier
e Engenho Novo 156, contribuindo para o aumento do território da freguesia da Sé para
além Rua da Vala. A antiga delimitação da cidade já estava quase que completamente
abandonada na época do governador Gomes Freire de Andrada (1733-1763), conforme
o desenho da carta topográfica de André Vaz Figueira em 1750 (ver mapa 7). Através
dela é possível constatar que a antiga muralha já estava aberta em vários pontos e o
traçado das ruas da urbe carioca já ocupara áreas bem além da muralha projetada para
delimitar a cidade na primeira metade do século XVIII 157. Tanto que na carta
topográfica de autoria do sargento-mor Manuel Vieira Leão, de 1767, a muralha já não é
identificada.

FREIRE, Jonis e SECRETO, Maria Verónica. (organizadores). Formas de liberdade: gratidão,


condicionalidade e incertezas no mundo escravista nas Américas. Rio de Janeiro: Maud X: Faperj,
2018, p. 183.
154
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro/Série de Visita Pastoral.1687.
155
Resumo total da população que existia no ano de 1799, compreendidas as quatro freguesias desta
cidade do Rio de Janeiro, até o último de dezembro do dito ano, também dos que nasceram e faleceram
no mesmo ano de 1799. In: População do Rio de Janeiro 1799-1900. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/GEBIS%20-%20RJ/RJ1799_1900.pdf
156
CAVALCANTI,op. cit., p. 72; LARA, Silvia Hunold. Fragmentos Setecentistas: Escravidão, culturas e
poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
157
Idem, p. 42.
76

Mapa 7. A cidade do Rio de Janeiro em meados do século XVIII - Eduardo


Canabrava com base na planta de André Vaz Figueira Rio de Janeiro (1750)

Fonte: Atlas da Evolução Urbana da Cidade do Rio de janeiro. Ensaio, 1565-1965. Rio
de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 1965, prancha 12.

A abertura de várias ruas na cidade foi promovida na maioria das vezes por
particulares e pelas ordens religiosas, através de acordos com os representantes do poder
régio no sentido de urbanizar suas propriedades. Na gestão do vice-rei Conde da Cunha
77

(1763-1767), várias obras foram realizadas na cidade no sentido de melhorá-la, sendo


auxiliado pelo Brigadeiro Jacques Funk e o Tenente-General João Henrique de Bohn,
edificando quartéis, criando um exército regular, levantando o Arsenal de Marinha e
abrindo várias ruas. A seu pedido foi feito o arruamento da chácara da Ordem do
Carmo, localizada no largo do Rossio (atual Praça Tiradentes) e o Campo de Santana,
fechou oficinas de ourives para combater o contrabando do ouro, mandou cobrir com
laje de pedra a vala que acreditavam ser prejudicial à saúde dos moradores. Na década
seguinte, na gestão do Conde de Azambuja (1767-1769), iniciou-se o arruamento da
chácara dos herdeiros do guarda-mor Pedro Dias Paes Leme, localizada atrás do morro
de Santo Antônio, próximo a um morro que mais tarde viria a se chamar do senado 158.
Os mapas (8 e 9) permitem acompanharmos a evolução da região entre o
final do século XVIII até a terceira década do século XIX. No mapa de 1791 (ver mapas
8 e 9) já aparece demarcado um caminho cortando o Manguezal de São Diogo, o que
viria ser a Rua Nova de São Pedro. Com a chegada da família real no início do século
XIX e a fixação da residência régia na Quinta da Boa Vista, aquele trecho passou a
constituir o principal e mais curto acesso a partir da cidade (embora pudesse ser a
Quinta também acessada pela Rua do Mata Cavalos). Tal fato obrigou o Senado da
Câmara a praticar aterros que constituíram uma estreita via cortando os pantanais. Este
traçado pode ser visualizado no Mapa de 1831 (ver mapa 8 e 9).

Mapa 8 - Detalhe do Plano da cidade do Rio de Janeiro (1791)

158
CAVALCANTI, op. cit., p. 261; SOUZA, op. cit., p. 33.
78

Fonte: Plano da cidade do Rio de Janeiro elevado em 1791 oferecido ao Ilmo. Senhor
Concelheiro Luis Beltrão de Gouveia de Almeida chanceller da rellação desta cidade.
Por Betancurt, Francisco Antonio da Silva. Bndigital. Disponível em:
http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital. Acesso em 28/10/2019

Mapa 9 – detalhe do Mangue de São Diogo

Fonte: Detalhe Planta do Rio de Janeiro de 1831 – BN-Digital – disponível em:


http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart326112/cart326112.jpg -
acesso em 17/08/2019 - às 18:51.

A ampliação do núcleo urbano da cidade para sua periferia foi consequência


do crescimento populacional do Rio de Janeiro, especialmente na segunda metade do
século XVIII. Momento em que a cidade passa por diversas transformações, e sofre
grande impacto demográfico, que tem origem no desenvolvimento mercantil, em grande
medida devido ao tráfico de africanos escravizados que já estava consolidado no Rio de
Janeiro desde o fim do século XVII. Em 1750 o Rio de Janeiro já era o maior
importador de mão de obra africana escravizada da América lusa 159. Tal situação foi
decisiva para a configuração demográfica da cidade. No entanto, nas primeiras décadas
do século XVIII, a capitania do Rio de Janeiro estava marcada pela escassez de mão de
obra africana escravizada, em função de sua transferência para outras regiões da

159
FRAGOSO, João. A noção de economia colonial tardia no Rio de Janeiro e as conexões econômicas do
Império Português: 1790-1820. In FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista;
GOUVEIA, Marias de Fátima Silva. Organizadores. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica
imperial portuguesa séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 337.
79

colônia, principalmente Minas Gerais para trabalhar na mineração 160. Mas na segunda
metade deste século a praça mercantil do Rio de Janeiro formada pela capital e sua
periferia imediata tornou-se um grande polo de concentração de africanos, livres,
libertos e escravizados.
Diante deste quadro, podemos afirmar que no decorrer do setecentos a
população que mais cresceu na cidade foi a de homens de cor 161, mediante as entradas
cada vez maiores de africanos na cidade, comparadas aos baixos índices de imigração
da população europeia. Tal quadro pode ser confirmado através dos registros de óbitos
da freguesia da Sé de acordo com os dados levantados na tabela 9. Seus dados
demonstram uma progressiva diminuição em termos proporcionais, da população livre,
que correspondia a 96,3% na primeira década do século XVIII (1701-1710), para
56,5%, a partir da década de 1751-1760. Podemos verificar um ligeiro aumento para
73,1% na última década deste século (1791-1800), passando para 74,5%, em 1811-1820
e reduzindo para 53,9% na década de 1841-1850, mediante ao continuo crescimento da
população escravizada e liberta 162.
Os novos territórios incorporados à freguesia da Sé passaram a ter uma
significativa concentração, circulação e convivência dos africanos e seus descendentes.
Todas as igrejas de irmandades negras da cidade estavam situadas dentro de seus
limites. Levando-se em conta que essas igrejas abrigavam também as outras irmandades
de homens pretos que não possuíam seus próprios templos e erguiam os altares para
seus santos de devoção nas igrejas então existentes, podemos identificar um número
considerável de irmandades de negros na freguesia da Sé, nas quais se encontravam
irmanados também os africanos e seus descendentes. Importante ressaltar que, além de
contribuir para o aumento populacional e consequentemente o crescimento urbano, a
disseminação de irmandades de negros, libertos ou escravos no centro da urbe carioca
indica o significativo grau de organização desse segmento populacional na freguesia da
Sé, no início de século XVIII.
Assim como sua capacidade de articulação entre si e com os poderes régio,
eclesiásticos e com outros segmentos sociais, na busca de aprovação de seus
160
144 COARACY, Vivaldo. O Rio de Janeiro no século 17. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora. Coleção Rio 4 séculos, vol. 6, p. 246.
161
FLORENTINO, Manolo. Sobre minas, crioulos e a liberdade costumeira no Rio de Janeiro, 1789-1871.
In: (Org.). Trafico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005, p. 337.
162
Essas informações já haviam sido levantadas por Ingrid de Souza, eu só atualizei os dados e ampliei até
o fim da primeira metade do século XIX. SOUZA, Ingrid Ferreira de. Vivendo Além do Cativeiro... p.
34.
80

compromissos e devoções, além de conseguirem os terrenos para construção de seus


templos próprios através de esmolas e doações. As doações de terrenos às irmandades
para construção de seus templos fora dos limites urbanos contribuíram para o
desenvolvimento urbano dessas áreas. Fomentando o surgimento de novas construções,
na medida em que os fies procuravam embelezar os templos dos santos de suas
devoções, e melhoravam os acessos a eles alinhando e aplainando ruas e caminhos que
lhes davam acesso, e construíam residências nas imediações das moradas de seus santos
padroeiros 163. A vida social nesses locais era enriquecida por festas e procissões,
bastante numerosas e organizadas para o ano todo.
De acordo com Fania Fridman, as grandes ordens religiosas já estavam
instaladas nos melhores espaços desde o final do século XVI. Jesuítas no alto do morro
do Castelo, Beneditinos no de São Bento e Carmelitas defronte ao mar, junto ao porto,
franciscanos no morro de Santo Antônio. As ordens terceiras e as irmandades que
representavam a elite, como a do Carmo, do Santíssimo Sacramento, de Santa Cruz dos
Militares, Lapa dos Mercadores, São Pedro Gonçalves (dos comerciantes e navegantes),
estabeleceram-se perto do porto ou no topo dos morros. Aquelas dos indivíduos com
ofícios, como a de São José (dos carpinteiros, marceneiros, pedreiros, ladrilheiros,
canteiros e violeiros), a Nossa senhora do Parto (dos carpinteiros pardos), também
estavam estabelecidas no interior do núcleo urbano. As mais pobres como a do Rosário
e São Benedito dos pretos (cuja igreja funcionou como Sé de 1737/9 até a chegada da
Corte em 1808), de São Domingos, Lampadosa e Santo Elesbão e Santa Efigênia,
instalaram-se no extramuros, depois da Rua da Vala, no rossio, ou nas proximidades do
Campo de São Domingos 164.
De acordo com Silvia Lara, o espaço urbano transforma-se de acordo com
os desígnios do poder. Atendendo a diferentes interesses locais e metropolitanos, as
obras públicas e os novos edifícios estavam diretamente ligados aos movimentos da
política. Nesse sentido, as obras públicas, os registros do território colonial, as
fortificações das cidades litorâneas e o planejamento urbano, tinham como interesse a
ocupação dos sertões. Ligados ao poder e dele dependiam, estavam associados ao
fortalecimento do domínio colonial. Se por um lado, na região mais antiga da cidade, os
terrenos junto ao porto eram identificados como cenário privilegiado, onde ocorriam os
maiores investimentos em infraestrutura e modernização, como a construção do cais de

163
CAVALCANTI, op. cit., p. 206
164
FRIDMAN, op. cit., p. 25.
81

pedra e chafariz do mestre Valentim no largo do Paço, durante a gestão de Luís de


Vasconcelos e Souza 165; por outro lado, para além da Rua da Vala, estavam as áreas
recentemente incorporadas ao núcleo urbano, com arruamento precário e irregular, em
meio a brejos e alagados, com grandes áreas abertas, como o campo de São Domingos e
o Campo de Santana, Campo de Nossa Senhora da Lampadosa, dos Ciganos, do Capim
ou da Forca. Essa região era palco das festividades populares, dos exercícios da tropa e
a partir de meados do século XVIII, dos enforcamentos realizados publicamente 166.
Entretanto, não devemos compreender a distinção entre esses dois
espaços 167 como sendo um sinal de total segregação no espaço urbano, pois a cidade em
meados do século XVIII mistura cotidianamente seus atores e espaços 168: os
enforcamentos no largo do capim assim, como as festas de Nossa Senhora do Rosário e
São Benedito no largo que havia no entorno da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e de
São Benedito atraiam indivíduos de todas as camadas sociais.
Na freguesia da Sé os africanos e seus descendentes compartilhavam suas
experiências religiosas de devoção aos seus santos, onde havia forte presença do
catolicismo oficial. No entanto, suas experiências não se limitavam às fronteiras dessa
freguesia, uma vez que nas freguesias da Candelária e Santa Rita predominavam os
locais de trabalho, moradia e lazer nos quais também atuaram parte dos africanos que
desembarcaram no porto do Rio e foram ali instalados nas propriedades da área central.
No próximo capítulo passarei a identificar essa população.

165
LARA, Silvia Hunold. Fragmentos Setecentistas: Escravidão, culturas e poder na América portuguesa.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 51.
166
Idem, p.p. 51-52; VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem irmandades de pardos na América
Portuguesa. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007, p. 147.
167
LARA, op. cit., p. 51.
168
VIANA, op. cit. p.148.
82

CAPÍTULO – 2
Uma cidade africanizada c.1700 – c.1850

2.1 – A população africana e seus descendentes na freguesia da Sé

Observando as informações disponíveis nos registros de óbitos utilizados


nessa pesquisa – embora bastante fragmentados em alguns períodos –, é possível
acompanhar o processo de transformação socioeconômica e cultural da urbe carioca e
de sua população ao longo do século XVIII e da primeira metade do XIX. A série
documental que vamos analisar inicia-se na primeira década do século XVIII e termina
em 1843 1. Trata-se de um banco de dados de registros paroquiais de óbitos da freguesia
da Sé e do Santíssimo Sacramento da Antiga Sé (a partir de 1826), da cidade do Rio de
Janeiro, elaborado e alimentado inicialmente pela professora Claudia Rodrigues e sua
equipe de alunos de Iniciação Científica da Universidade Salgado de Oliveira, entre
janeiro de 2007 e setembro de 2010, e de alunos da Iniciação Científica da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) entre outubro de 2010 até dezembro de
2015, em pesquisas que contaram com financiamento da FAPERJ e da Diretoria de
Pesquisa da UNIRIO. Nesta primeira etapa, o Banco de Dados de Óbitos da Freguesia
da Sé/ Santíssimo Sacramento reuniu informações de uma série de livros de óbitos da
referida freguesia que se encontram localizados no Arquivo da Cúria Metropolitana do
Rio de Janeiro, relativos ao período entre 1701 e 1819 2. De 2016 a 2020, eu colaborei
com inclusão das informações dos registros referentes ao período de 1819 a 1843 3,

1
O objetivo inicial era ir até 1850, mas não foi possível finalizar a coleta dos registros a tempo. Por este
motivo, as análises terão como recorte final o ano de 1843. Em algumas tabelas e quadros, mesmo que eu
venha a abordar os dados fragmentados por década ou pelo recorte temporal dos livros, no caso da década
de 1840 e do último livro, que abrange o período de 1843 a 1861, as informações se referirão até ou
apenas o ano de 1843.
2
Os livros consultados se encontram no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro (ACMRJ):
“ASSENTOS PAROQUIAIS” - Livros de óbitos e testamentos da Freguesia da Sé (AP0400: 1701– 1710;
AP0406: 1737 – 1740; AP0155: 1746 – 1758; AP0156: 1776 – 1784) e Livros de óbitos e testamentos da
Freguesia do Santíssimo Sacramento da Antiga Sé: (AP0157: 1799 – 1797; AP0158: 1797 – 1811;
AP0159: 1812 – 1819).
3
Os registros de óbitos que compuseram a base para elaboração deste segunda etapa de construção do
Banco de Dados se referem aos Livros de óbitos e testamentos da Freguesia do Santíssimo Sacramento da
Antiga Sé que se encontram fisicamente no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, como
continuação da série mencionada na nota acima (AP0160: 1819 – 1824; AP0161: 1824 – 1828; AP0161:
1824 – 1828; AP0162: 1828 – 1830; AP0163: 1830 – 1833; AP0164: 1833 – 1837; AP0165: 1837 –
1840; AP0166: 1840 – 1843; AP0167: 1843 – 1861). Além deste acervo físico, a maioria destes livros se
encontra replicada em microfilmes digitalizados no site no banco de dados de imagens do site
FamilySearch, intitulado “Registros da Igreja Católica, 1616-1980”, disponível em:
https://familysearch.org. A transcrição foi feita por mim e por um grupo de voluntários que reuni: Evelyin
83

durante a realização desta pesquisa de Doutorado, contribuindo para a extensão do


Banco de Dados.
Parte deste material aqui utilizado já foi estudada por alguns pesquisadores,
como por exemplo, Ingrid Ferreira de Souza, que analisou esta série documental entre
1701 e 1797, dividida conforme o recorte temporal de cada livro de óbitos por ela
estudado: 1701 e 1710; 1737 a 1740; 1746 a 1758; 1776 a 1784; finalizando seu estudo
na última década de 1790 a 1797. Ana Paula Tostes também utilizou esse material entre
o universo da documentação investigada para sua tese de doutorado 4. Como já
mencionado, em minha pesquisa, abrangerei esse período e avançarei na série
documental até 1843, distribuída nos seguintes livros de óbito: 1797 a 1812; 1812 a
1819; 1819 a 1828; 1828 a 1837; 1837 a 1843; e 1843 a 1848. Como utilizo parte da
mesma base documental que Ingrid Souza, apenas estendo o período para a primeira
metade do século XIX, tentarei seguir a estrutura das tabelas que ela utilizou,
acrescentando o período restante que cobre o recorte dos óbitos que agreguei. Informo
também que é possível que haja algumas diferenças quantitativas em relação ao período
coberto pela pesquisa dela, devido aos ajustes e acertos feitos no Banco de Dados após
conferência da documentação original e correções feitas no mesmo.
Os registros paroquiais são fontes valiosas que podem oferecer ao
pesquisador infinitas formas para investigação sobre a história da população de origem
africana e seus descendentes na cidade 5. Analisar os livros de registros paroquiais
impõe ao pesquisador atenção para alguns detalhes na documentação. Saber quais e
quantos são os registros, quem os registrou, a forma como foram organizados em livros
e/ou códices, pode ajudar a entender algumas peculiaridades da sociedade escravista 6.
Os padres destacavam através dos registros a qualidade de cor 7 de seus fregueses como

Vasconcelos, aluna do curso de Pós-graduação em história da África do IPN; Bruno Santana da Silva,
aluno do curso de História da UNISUAM; Maria Ivanise Honorato e Bruna Honorato, minha esposa e
filha. A todos e à professora Claudia Rodrigues, declaro os meus sinceros agradecimentos, pois foram
fundamentais para realização desse trabalho.
4
TOSTES, Ana Paula C. Para “viver livre como se de nascimento fosse”: um estudo sobre a geração da
população forra no Rio de Janeiro do século XVIII. Tese de doutorado em História Social. Rio de Janeiro:
UFRJ/IH-2018, p. 43.
5
SOUZA, op. cit., p. 41.
6
GUEDES, Roberto. Livros paroquiais de batismo, escravidão e qualidades de cor (Santíssimo
Sacramento da Sé, Rio de Janeiro, séculos, XVII e XVIII). In: FRAGOSO, João; GUEDES, Roberto e
SAMPAIO. Antonio Carlos Jucá de. Organizadores. Arquivos paroquiais e história social na América
Lusa, séculos XVII e XVIII: métodos e técnicas na reinvenção de um corpus documental. 1ª. ed. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2014, p,131-32 e 149.; cf. também SOARES, Mariza. Os devotos da cor...
7
O autor entende como qualidade de cor, cor e/ou cor-condição social qualquer alusão à qualidade (preto,
pardo, branco, crioulo, etc.), condição jurídica (forro/liberto, escravo livre) procedência africana (gentio
da Guiné, de nação Angola, Moçambique, etc.) ou indígena (pardo, mulato, mameluco, da terra, etc.), cor-
84

forma de expressão de uma hierarquia em meio ao crescimento gradual da escravidão.


Os registros paroquiais de óbitos, assim como os de batismo e casamentos, são fontes
documentais importantíssimas para se pesquisar o cotidiano dos fiéis no interior das
freguesias, posto que os padres poderiam conviver com seus paroquianos o tempo
suficiente para conhecer melhor suas vidas e as hierarquias sociais, 8 assim como
cor/condição social, condição jurídica. Foram vários padres que realizavam os
assentamentos, embora em alguns momentos predominasse um padre coadjutor mais
que outros, mas em geral era um trabalho coletivo 9. Através dessas fontes é possível
acompanhar a construção de um vocabulário social na qual os padres eram porta-vozes
das hierarquias sociais da escravidão em constante transformação nas freguesias da urbe
carioca em função do fluxo crescente do tráfico atlântico 10.
Como visto, a partir do final do século XVII, o comércio negreiro já estava
consolidado na cidade do Rio de Janeiro e o seu porto alcançava o título de maior
importador de mão de obra africana escravizada no interior da América lusa. Tal
situação contribuiu para configuração da demografia da cidade. A partir de então, o
número de africanos novos que permaneceriam na cidade após o desembarque
começaria a aumentar significativamente, proporcionando um intenso crescimento da
população africana na cidade ao longo do século XVIII e na primeira metade do XIX. A
chegada constante de africanos certamente reconfigurou as relações entre livres,
libertos/forros e escravizados na cidade, a imagem que construíam de si e dos outros,
bem como as alianças que viriam a construir entre eles, o mercado de alforrias 11. A
partir dos dados apresentados na tabela 9, podemos observar que o perfil demográfico

condição social (pardo, preto, cabra, crioulo), combinadas ou não entre si. São as palavras do autor. Cf.
GUEDES, op. cit., p. 127-28.
8
Para o autor, a forma de organização dos livros paroquias foi fundamental para compreensão da
formação do vocabulário social de cor. Na medida em que a escravidão africana e o tráfico atlântico
cresciam, os livros paroquiais deixavam de ser mistos e passavam a ser divididos conforme o estatuto
jurídico-social dos registrados. Guedes afirma que os livros de batismos da freguesia da Sé, a partir da
segunda metade do século XVII, passaram a segregar os registros de livres e de escravos. A categoria
“forros”, por sua vez passou a ser incorporada aos livros de “brancos” e/ou “livres”. GUEDES, Roberto.
Livros paroquiais de batismo, escravidão e qualidades de cor... pp. 136 a 138; GUEDES, Roberto. O
vigário Pereira, as pardas forras, os portugueses e famílias mestiças. Escravidão e vocabulário social de
cor na Freguesia de São Gonçalo (Rio de Janeiro, período colonial tardio). FRAGOSO, João; GOUVEA,
Maria de Fátima. Organizadores. In Brasil Colonial, vol. 3 (ca. 1720 ca. 1821) /– 1ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2014, pp. 346-348; GUEDES, Roberto. Escravidão e legados pombalinos nos
registros de cores (Itu/Porto Feliz, São Paulo, 1766- 1824). In: FALCON, Francisco; RODRIGUES,
Claudia. Organizadores. A Época Pombalina no mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2015, pp. 217-218.
9
Id. Livros paroquiais de batismo, escravidão e qualidades de cor... p. 145.
10
GUEDES, op. cit., p. 149; SOUZA, op. cit., p. 41.
11
SOUZA, op. cit., p. 42
85

da população da freguesia da Sé apresentava divisões acentuadas nas proporções das


categorias jurídicas. Num primeiro olhar observamos que houve ao longo do período
estudado, tanto para o século XVIII quanto para a primeira metade do século XIX, um
crescimento acentuado da população escravizada, assim como da população forra.
Enquanto a população livre só apresentou registro na década de 1741-1750 e na última
década do período estudo, 1841-1850, apresentando um percentual bem próximo ao da
população cativa. Assim, na primeira década do século XVIII, 1701-1710, não houve
registro de óbitos de cativos, enquanto os forros apresentaram um percentual de 1,7%
em relação ao número total de registros para a década. Na década de 1731-1740, os
escravizados apresentaram um percentual 6,6%, ao passo que os forros aumentaram
quase oito vezes mais, atingindo o percentual de 11,6%. Ao chegar na década de 1751-
1760 o percentual de cativos subiu para 23,1%, apresentando um crescimento de três
vezes e meia, sendo superior ao número de forros que, embora tenha se mantido em alta
apresentou um percentual de 14,7%.
Esse aumento no número de cativos pode ser explicado pelo impacto
demográfico que a cidade sofreu devido às transformações políticas e econômicas que
vinham ocorrendo durante toda a primeira metade do século XVIII, principalmente pela
descoberta do ouro na região de Minas Gerais que a elevaram a maior praça comercial
do império colonial português 12. Em 1751 foi criado o Tribunal da Relação 13 do Rio de
Janeiro e em 1763, o Rio passou ser capital e sede do vice-reino do Estado do Brasil 14.
O Rio de Janeiro transformou- se no novo polo jurídico da colônia e houve migração de
um grande número de funcionários públicos, juristas membros da alta nobreza e
burocracia portuguesa que passaram a demandar por vários serviços e moradias,
tornando-os necessitados de mais mão de obra escravizada 15. Na década de 1771-1780,
o percentual de escravizados sobe para 30,5%; caindo novamente para 10,45%, em
1791-1800; voltando a subir em 1821-1830 para 14,7% e em 1841-1850 atingiu o

12
SOUZA, op. cit., p. 42.
13
Na década de 1720, a câmara do Rio pediu ao rei que estabelecesse naquela cidade uma nova Relação,
devido às dificuldades de remessa dos processos e de apelação ao Tribunal da Bahia em razão da
distância, da morosidade dos despachos e do alto custo que daí se seguia. Durante as décadas de 30 e 40
este apelo foi várias vezes reforçado pelas câmaras de diversas vilas e cidades ao sul, sobretudo das
Minas. Uma vez estabelecida à relação do Rio de Janeiro deveria julgar as causas relativas a estas
capitanias, do Espirito Santo, até Santa Catarina, incluindo Minas, São Paulo e Goiás. Cf. BICALHO,
Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003, p. 10
14
BICALHO, op. cit., p. 83-84.
15
CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos novos no Rio setecentista. In FLORENTINO, Manolo.
Org. Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, século XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005, p. 22; PESAVENTO, op. cit., p. 33.
86

percentual de 25,9%. Já o número de livres apresentou um percentual de 25,8% na


década de 1841-1850; enquanto o número de forros em 1771-1780 cai para 2,1% e em
1791- 1800 sobe para 12%, experimentando uma queda progressiva a partir do início de
século XIX, com percentual de 14,7% na década de 1801-1810, passando para 7,6% em
1841-1850, o que representa uma queda de 50%, sugerindo uma redução no número de
alforrias.
Sobre o crescimento da população cativa, Silvia Lara observa como a partir
da segunda metade do século XVIII vários letrados e diversas autoridades coloniais
manifestavam sua preocupação com o número excessivo de escravizados a perambular
pelas ruas das cidades. Condenavam a forma como eram governados por seus senhores
e mostravam-se incomodados com os pecados e vícios que acompanhavam o domínio
escravista 16. Os censos produzidos em 1779, 1789 e 1797 confirmam as informações
sobre a imensa quantidade de escravizados na cidade do Rio de Janeiro, indicando que
cerca de 55% dos habitantes da cidade não eram brancos: os escravos oscilavam entre
34% e 43% da população e os pardos e pretos livres, quando foram contados, figuravam
em torno de 18% e 20% do total populacional 17.
Tais dados nos levam a pensar que o número de livres era bastante reduzido
na sociedade carioca ao longo de todo o século XVIII e primeira metade do século XIX,
equiparando-se a quantidade de cativos somente na década de 1841-1850. Da mesma
forma, havia um equilíbrio entre o número de forros e escravizados ao longo do século
XVIII, mas a partir do início de século XIX a quantidade de cativos ultrapassa o número
de forros. Isso a princípio poderia significar que nesta sociedade havia mais
escravizados do que de livres ou que era mais importante registrar aqueles que eram ou
haviam sido cativos 18. Mas em um segundo olhar, podemos considerar como livres
todos os indivíduos sem referência a condição jurídica e como forros/descendentes de
forros os indivíduos livres com ascendência escrava e os sem referência a condição
jurídica com ascendência escrava. Assim, na década de 1701- 1710 os livres passam

16
LARA, op. cit., p.126.
17
Cf. “Resumo total da população que existia no ano de 1779, compreendidas as quatro freguesias desta
cidade do Rio de Janeiro”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 21 (2ª ed., 1858): 216-
7; “Memorias públicas e econômicas da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro para uso do vice-rei
Luiz de Vasconcellos por observação curiosa até o ano de 1789”, Revista do Instituto Histórico
Geográfico Brasileiro, 47 (1884):27- 9; “Resumo dos fogos e população da cidade do Rio de Janeiro,
feito por ordem do Ilmo. exmo. Senhor, conde, de Rezende [...], 1º de dezembro de 1797”, Instituto de
Estudos Brasileiros, Coleção Lamego, 44.2.A.8 Apud LARA, Op. cit., p.18
18
BRAVO, Milra Nascimento. Hierarquias na Morte: uma análise dos ritos fúnebres católicos no Rio de
Janeiro (1720-1808). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro – UNIRIO, p. 29.
87

para 96,3%, os forros para 3,7% e os escravizados sem nenhum registro. Na década de
1751-1760 os livres passam para 56,5%, os forros para 20,4% e os escravizados 23,1%.
No início do século XIX, na década de 1801-1810 os livres representavam 68,7%, os
forros 20,7% e os cativos 10,5% e ao final da primeira metade do século XIX, década
de 1841- 1850, o número de livres se mantem superior ao número de forros e cativos
com o percentual de 53,9%, os forros 20,2% e os Cativos 25,9%.
Mesmo sendo em número menor que os livres, os cativos tiveram o aumento
crescente ao longo do século XVIII, embora apresente uma queda de 50% na primeira
década do século XIX em relação à última década do século XVIII, voltando a crescer a
partir da década de 1820. Mesmo assim, esses percentuais não refletem os números do
tráfico que teve um aumento significativo, principalmente na primeira metade do século
XIX, que alcançou cifras altíssimas em função do iminente fim do tráfico. Por outro
lado, é possível afirmar que a população de cor foi a que mais cresceu na cidade,
considerando o total de 25.372 registros de óbitos. Com base no quesito cor, somando
os forros aos livres com ascendência escrava e também os sem referência aos sem
referência com ascendência escrava, encontrei 1.450 pardos, 1.978 pretos, 41 cabras, 1
mulatinho, 1 negra, 7 brancos e 21.894 sem referência a cor. Embora tenha tido no
período estudado uma quantidade significativa de escravizados sem referência a cor
(3.191), tudo indica que não era relevante registar a condição de livre, assim como a sua
cor, uma vez que em toda a amostragem apenas 7 indivíduos foram identificados como
branco. Com isso, não queremos dizer que todos os 21.894 sem referência a cor eram
brancos e livres, uma vez que entre os escravizados muitos indivíduos não tiveram a sua
cor registrada, assim como entre os indivíduos considerados livres, havia muitos pretos,
pardos e cabras 19.
Homens nascidos livres eram considerados “brancos” sem necessidade de
qualquer qualificação, ou “pardos”, normalmente duplamente qualificados como “pardo
livre” em oposição a “pardo forro”. Mas também poderia designar tanto escravos como

19
Analisando esses mesmos segmentos entre 1720 a 1808, Milra Bravo constatou que, de um total de
5.352 óbitos na freguesia da Sé, os escravizados representavam 15,8% e os forros 11,8%, os livres 0,8% e
os sem referência 71,7%. O que a princípio podia significar que a cidade tinha mais escravizados do que
livres. Ao considerar os indivíduos sem referência jurídica como “livres”, a autora constatou que esse
segmento social passou para 72.5%. Além disso, percebeu também que 98% dos registros que indicavam
a ocupação de “Dona”, “comendador”, patentes militares, sacerdotes, etc., estavam ligados aos indivíduos
sem referência à condição social; o que reforçou a sua hipótese de que esses indivíduos faziam parte do
segmento social livre. Entre os 3.880 considerados como livres, a autora encontrou 1 branco 1 mulato, 4
cabras, 35 pretos 104 pardos e 3.375 sem referência a cor. Cf. BRAVO, Milra Nascimento. Hierarquias
da morte: uma análise dos Ritos fúnebres católicos no Rio de Janeiro (1720-1808). Dissertação de
Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. UNIRIO, 2014, pp.29 e 30
88

livres. Era uma categoria típica do final do período colonial utilizada para designar a cor
mais clara de alguns escravizados, sem relação com a mestiçagem como o termo
“mulato”. Já a cor “negra” aparecia essencialmente como sinônimo de escravizado ou
de liberto. “Pretos” eram geralmente classificados como escravos e forros e
normalmente era sinônimo de escravizado africano 20. Assim, tudo indica que as
designações de cor/condição na sociedade colonial escravista, tinha muito mais relação
com proximidade de um passado ou antepassado escravizado do que com a pigmentação
da pele 21. De acordo com Hebe Mattos, a noção de “cor” não significava
preferencialmente, matizes diferenciados de tons de pele ou diferentes níveis de
mestiçagem, buscava definir os lugares sociais dos indivíduos na sociedade escravista
colonial. Nesse sentido, a etnia e a condição estavam intrinsicamente ligadas. Com base
nesta perspectiva, a cor inexistente, antes de representar simplesmente branqueamento,
era um símbolo de cidadania, para a qual apenas a liberdade era necessária. A ausência
da cor representava uma crescente absorção dos negros e mestiços ao mundo dos livres,
que não era mais monopólio dos brancos, mesmo que o qualificativo “negro”
continuasse a ser sinônimo de escravo, mas também a desconstrução social de um ideal
de liberdade baseada na cor branca, associada à propriedade escrava 22. O que demonstra
que a mobilidade social baseada na cor era importante para a reprodução da estrutura
social da sociedade escravista 23.

20
MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, pp.
16 a 18; FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Sinhás Prestas, Damas Mercadoras: as pretas minas nas
cidades do Rio de Janeiro e de São João Del Rey (1700-1850. Tese apresentada ao Departamento de
História da Universidade Federal Fluminense. Concurso para Professor Titular em História do Brasil.
Niterói, 2004, pp. 67-69
21
FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Sinhás Prestas, Damas Mercadoras... p. 77.
22
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista –
Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1998, pp. 98-9; EISENBERG. Peter L.
Ficando Livre: as alforrias em Campinas no século XIX Estudos Econômicos, São Paulo, 17 (2): 175-
216, maio/agosto. 1987,
p. 187; FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Sinhás Pretas, Damas e Mercadoras... p. 76
23
GUEDES, Roberto. Mudança e silêncio sobre a cor: São Paulo e São Domingos (séculos XVIII e XIX).
Africana Studia, nº 14, 2010, Edição do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto. AS nº 14
– livro_ 1u Julho. indb p. 93.
89
90

Tabela 9: Óbitos segundo a condição jurídica por década


1841-
1701-1710 1731-1740 1741-1750 1751-1760 1771-1780 1781-1790 1791-1800 1801-1810 1811-1820 1821-1830 1831-1840 TOTAL
CONDIÇÃO 1850***
JURÍDICA
# % # % # % # % # % # % # % # % # % # % # % # % # %
Livre 0 0,0 0 0,0 25 4,8 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 890 25,8 915 3,6
Forra 9 1,7 42 11,6 63 12,2 141 14,3 14 2,1 21 5,5 137 12,0 290 14,7 324 12,3 683 9,7 435 7,6 261 7,6 2420 9,5
Escrava 0 0,0 24 6,6 27 5,2 228 23,1 200 30,5 86 22,6 119 10,4 207 10,5 177 6,7 1037 14,7 1000 17,5 892 25,9 3999 15,8
Livre** 2 0,4 0 0,0 0 0,0 3 0,3 0 0,0 0 0,0 0 0,0 50 2,5 102 3,9 54 0,8 68 1,2 122 3,5 401 1,6
S/Ref.** 8 1,6 22 6,1 11 2,1 57 5,8 31 4,7 12 3,2 50 4,4 69 3,5 71 2,7 1471 20,9 1035 18,1 314 9,1 3151 12,4
S/Ref. 497 96,3 273 75,6 391 75,6 557 56,5 410 62,6 261 68,7 833 73,1 1355 68,7 1967 74,5 3802 54,0 3166 55,5 970 28,1 14486 57,1
TOTAL 516 100,0 361 100,0 517 100,0 986 100,0 655 100,0 380 100,0 1139 100,0 1971 100,0 2641 100,0 7047 100,0 5704 100,0 3449 100,0 25372 100,0
FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
LIVRE** = Livre com NEGRO=S
S/REF** = S/Ref com NEGRO=S
*** Somente até o ano de 1843
91

Tabela 10: Óbitos segundo a condição jurídica conforme intervalo dos livros de óbito

LIVROS LIVRE FORRA ESCRAVA LIVRE** S/REF.** S/REF. TOTAL


DE OBITO # % # % # % # % # % # % # %
1701-1710 0 0,0% 9 0,4% 0 0,0% 2 0,5% 8 0,3% 497 3,4% 516 2,0%
1737-1740 0 0,0% 42 1,7% 24 0,6% 0 0,0% 22 0,7% 273 1,9% 361 1,4%
1746-1758 25 2,7% 204 8,4% 255 6,4% 3 0,7% 68 2,2% 948 6,5% 1503 5,9%
1776-1784 0 0,0% 26 1,1% 267 6,7% 0 0,0% 38 1,2% 602 4,2% 933 3,7%
1790-1797 0 0,0% 124 5,1% 117 2,9% 0 0,0% 36 1,1% 653 4,5% 930 3,7%
1797-1812 0 0,0% 351 14,5% 247 6,2% 62 15,5% 93 3,0% 1808 12,5% 2561 10,1%
1812-1819 0 0,0% 251 10,4% 149 3,7% 82 20,4% 55 1,7% 1553 10,7% 2090 8,2%
1819-1824 0 0,0% 267 11,0% 380 9,5% 22 5,5% 461 14,6% 1527 10,5% 2657 10,5%
1824-1828 0 0,0% 261 10,8% 358 9,0% 24 6,0% 624 19,8% 1458 10,1% 2725 10,7%
1828-1830 0 0,0% 160 6,6% 259 6,5% 13 3,2% 341 10,8% 880 6,1% 1653 6,5%
1830-1833 0 0,0% 169 7,0% 334 8,4% 15 3,7% 443 14,1% 1235 8,5% 2196 8,7%
1833-1837 1 0,1% 157 6,5% 258 6,5% 37 9,2% 366 11,6% 884 6,1% 1703 6,7%
1837-1840 0 0,0% 107 4,4% 328 8,2% 11 2,7% 260 8,3% 949 6,6% 1655 6,5%
1840-1843 1 0,1% 179 7,4% 685 17,1% 34 8,5% 152 4,8% 1118 7,7% 2169 8,5%
1843-1861*** 888 97,0% 113 4,7% 338 8,5% 96 23,9% 184 5,8% 101 0,7% 1720 6,8%
TOTAL 915 100,0% 2420 100,0% 3999 100,0% 401 100,0% 3151 100,0% 14486 100,0% 25372 100,0%
FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
LIVRE** = Livre com NEGRO=S
S/REF** = S/Ref com NEGRO=S
***Somente o ano de 1843
92

A partir da década de 1750, em virtude do incremento do tráfico atlântico,


houve um aumento no número de africanos escravizados que entraram na cidade; como
se pode deduzir dos dados das tabelas 9 e 10: o livro de 1746-1758 apresenta um
crescimento de dez vezes mais em relação ao livro de 1737-1740; os livros de 1701-
1710 e 1737-1740, não refletem o aumento da entrada de cativos na cidade de acordo
com o tráfico atlântico (tabela 2). Tal situação se deve à ausência de livros de registros
no arquivo da Cúria que cobrissem essas duas décadas. O livro para os anos de 1740
está totalmente incompleto, faltando folhas. Na década de 1731-1740, o total de
entradas de africanos escravizados em número absolutos foi de 24, passou para 228 em
1751-1760, cai para 207 na década de 1801-1810, reduzindo ainda mais na década de
1811-1820 para 177; o que em termos percentuais representa uma queda 14,5%. No
entanto, ocorre uma subida espetacular na década de 1821-1830 para 10.37%, refletindo
a dinâmica do tráfico atlântico a partir da conjuntura da década de 1810, com as
mudanças produzidas pela chegada da família Real e sua Corte e os tratados feitos por
D. João para a abertura do comércio e o fim do tráfico com os ingleses. Na década de
1820, o tratado de 1826 feito por D. Pedro I para o reconhecimento da independência do
Brasil decretou o fim do tráfico em três anos. Nesse período, a tendência foi o
crescimento da entrada do número de africanos escravizados no porto do Rio de Janeiro,
pois o medo do fim do tráfico levou os senhores a investir em escravizados 24. Em 1821,
a população escravizada mais que dobrou, se elevando para 36.1821 25. Quase metade da
população da cidade era escravizada (46%). Apesar da imigração branca, a população
de cor era a maioria e alguns viajantes estimavam que dois terços da população do Rio
de Janeiro eram de cor.
A população escravizada manteve um padrão geral de crescimento ao longo
da primeira metade do século XIX. Isso fica visível na tabela 9, por décadas, em termos
percentuais, enquanto na tabela 10, com intervalo de livros de óbitos, essa situação fica
mais visível em termos de números absolutos. Na década de 1830, de acordo com as
estimativas, o número de escravizados no Rio de Janeiro ultrapassava os 50% da
população, embora no censo de 1834 a população escravizada somasse 43.349. O que
representava 44,4% da população total de 97.599. O censo não foi publicado porque a
polícia não contara toda a população da cidade, especialmente os escravos. O censo

24
175 KARASCH, op. cit., p. 106; FLORENTINO, Manolo. Tráfico atlântico, mercado colonial e
famílias escravas no Rio de Janeiro... p. 72-4.
25
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Cod.808, vol. IV, Estatística, 1790-1865, fólio 17. Apud.
KARASCH, op. cit., p.110.
93

produzido em 1838, também apresentou problemas, pois foi organizado de forma


“imperfeita e incompleto e ficou aquém do esperado, pois não apresentou com exatidão
a quantidade da população que ficou a baixo do que deveria ser” 26. Registrou uma
queda na população escrava da cidade para 37.137, ou seja, 38% da população total que
era igual a 97.162. Ao contrário do que dizia o censo, Karasch afirma que é provável
que houvesse na cidade naquele período em torno de 55 mil escravizados 27. Em 1844-
1845, de acordo com os registros de impostos, havia na cidade 53.088 escravizados
maiores de 12 anos179.
O senso de 1849 registrou que havia na cidade um número de 78.855 de
escravizados, representando 38,3% da população total que era de 205.906. O que
significa que houve uma queda em termos percentuais em relação à década de 1830. Tal
situação pode ser explicada devido ao aumento da população europeia na cidade na
década de 1840. No entanto, esses percentuais não revelam o tamanho exato da
população escravizada em vários períodos, uma vez que muitos escravizados ficavam na
cidade um curto período de tempo, antes de serem enviados para o interior das regiões
sul e sudeste. O censo de 1849 28 confirma que houve um rápido aumento da população
europeia e africana provocado pelo boom do café no Vale do Paraíba Fluminense 29.
Mas a segunda metade de década de 1840 também está influenciada pelas medidas
unilaterais britânicas contra o tráfico a partir da vigência do Bill Aberdeen, em agosto
de 1845, que provocaram novo crescimento vertiginoso da entrada de africanos

26
Eusébio de Queiróz explicou por carta ao ministro da Justiça que a polícia não conseguiu realizar
corretamente o censo de 1834 e que o censo de 1838 foi impreciso. Tendo em vista que a polícia não
tratou a execução da tarefa como uma obrigação séria, o censo de 1834 ficou incompleto e por isso não
foi publicado. O censo de 1838 foi também deficiente, pois “nossa população é na realidade maior”.
Eusébio de Queiróz atribuiu o baixo número ao imposto sobre os escravizados, que levava os senhores a
esconder o verdadeiro número dos cativos, e ao recrutamento que, levava os homens livres a se esconder
da polícia. Os estrangeiros também escapavam com frequência dos recenseadores. Cf. Eusébio de
Queiróz Coutinho Matoso da Câmara ao ministro da Justiça, 3 de outubro de 1834, ANRJ, IJ6 169,
policia; e 25 de abril de 1838, ANRJ, IJ6 186, Polícia. Apud. KARASCH, op. cit., p.521-2; Cf. também
LOBO, Roberto Jorge Haddock. Recenseamento da população do Rio de Janeiro, Considerações gerais
sobre as vantagens e utilidade da estatística. Ano de 1849. Correio Mercantil, 7 de Janeiro de 1851.
Biblioteca Nacional Digital. p.
3. Disponível em http://memoria.bn.br/pdf/217280/per217280_1851_00006.pdf acesso em 20 de
maio de 2020
27
LOBO, op. cit., p.4.
28
Neste senso não foi feita a classificação por cor. De acordo com Haddock Lobo “poder-se-há saber
muito aproximadamente qual é a cifra da gente de cor, se se diminuir da totalidade todos os indivíduos
escravos, libertos, mais um terço dos livres”. LOBO, op. cit., p.4.
29
KARASCH, op. cit., p.107.
94

contrabandeados, ultrapassando a média de 30 mil anual que vinha ocorrendo desde o


início da década de 1840 para uma média de 50 mil anuais 30.
No ano de 1845 foram registradas 20.954 entradas, um volume
relativamente baixo em relação aos anos subsequentes. Em 1846 o volume de entradas
foi de 52.395 africanos escravizados ilegalmente, em 1847 foi de 61.731, em 1848 foi
61.757 e 1849 57.504. Possivelmente tal crescimento acelerado fosse motivado pelo
temor que a radicalização inglesa fosse seguida por medidas internas que dificultassem
a vida dos negreiros, mas o que se assistiu foi uma reação nacionalista que considerou a
investida inglesa uma agressão à soberania nacional. O que conferiu aos traficantes mais
alguns anos de cooperação e conivência necessários, tanto das autoridades quanto de
setores população para prosseguirem e até aumentarem seus negócios. Quando
finalmente, em 1850, houve a cessação do tráfico, as fazendas de café estavam
abarrotadas de trabalhadores ilegalmente reduzidos ao cativeiro 31.
Mas tais números (tabelas 9 e 10) devem ser relativizados, devido à
ausência já mencionada de livros e registros que cobrissem as décadas de 1710 a 1740.
Ana Paula Tostes, analisando os registros de batismo de africanos escravizados para a
freguesia da Sé, constatou que no recorte referente à década de 1740 e à década de 1790
há uma queda na média de registros de cativos por ano na freguesia da Sé. Para a autora,
tal fato se deu também devido à ausência de registros disponíveis, livros faltando
páginas correspondentes a meses e anos. Mas mesmo desconsiderando o movimento
brusco verificado na década de 1750, a autora observa que há uma queda real no
número de registros de escravizados. Enquanto para década de 1740 registrou-se uma
média de 219,3 registros por ano, para a década de 1770, registrou-se uma queda para
158,3 assentos por ano. Na década seguinte, essa média cai ainda mais, quando se
registrou 145 assentos de batismo por ano. 32
De acordo com Ana Paula Tostes, tal evolução evidenciada pelos registros
de batismos, parece incompatível com os dados referendados pelo tráfico Atlântico de
cativos ao longo do século, que apontam uma expressiva participação da praça carioca
nessa atividade. 33 Mas mesmo os números do tráfico para cidade ao longo do século
XVIII impõem ao pesquisador algumas dificuldades, pois ainda não foi encontrada a

30
CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012, p. 110.
31
CHALHOUB, op. cit., p. 110.
32
TOSTES, Ana Paula C. Para “viver como se livre fosse”: pp. 70 e 71; cf. também SOUZA, op. cit., p.
43.
33
TOSTES, op. cit., p. 70 e 71
95

documentação completa de registros de entrada de africanos escravizados na Alfandega


da cidade do Rio de Janeiro. Não há dúvidas de que esses registros foram feitos, pois
era de interesse tanto da Coroa quanto dos contratadores de escravizados. Havia toda
uma preocupação da Coroa em controlar esse comércio para fins de arrecadação, através
de leis que exigiam o seu registro nas suas diferentes etapas, desde a sua origem na
África até o seu destino final nos portos da América Portuguesa.
Fragmentos dessa documentação são encontrados nos arquivos do Rio de
Janeiro e de Lisboa, o que comprova a sua existência. Utilizando-se desses fragmentos
documentais Nireu Cavalcanti buscou quantificar a entrada de africanos novos no porto
carioca ao longo do século XVIII. Para o período de 1731 a 1735, o autor quantificou a
entrada de 37.114 africanos escravizados; 281.323 para o período de 1759 a 1792; para
os anos de 1799, 1800 e 1801 foi quantificada a entrada de 28.385 africanos
escravizados. Embora haja uma grande discrepância em relação ao número de anos
entre os três períodos e uma considerável lacuna entre eles é possível afirmar que houve
um crescimento do tráfico Atlântico para a cidade no período, com base na média de
entradas entre os três períodos: o primeiro de cinco anos com uma média anual de
entradas de 7.423 escravizados o segundo período de 34 anos, com uma média anual de
8.274 escravizados; e os três últimos anos com uma média anual de 9.462
escravizados 34.
Tabela 11 - Projeção de entrada de africanos escravizados no porto do Rio de
Janeiro, 1700-1799
Taxa de crescimento anual
Ano/décadas Quantidade Variação % em %

1701-1710 28.000 - -
1711-1720 42.000 50,0 66,7
1721-1730 59.500 41,7 85,0
1731-1740 72.033 21,1 55,0
1741-1750 76.051 5,6 37,8
1751-1760 68.797 -9,5 24,8
1761-1770 85.311 24,0 24,6
1771-1780 77.480 -9,2 17,94
1781-1790 85.932 10,9 16,87
1791-1799 90.177 4,9 15,2
Total 685.281
Fonte: CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos novos no Rio Setecentista, pp.
63-65.

34
CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos novos no Rio setecentista. 53; TOSTES, Ana Paula C.
Para “viver como se livre fosse” ...p. 71-2
96

Com base na tabela 11, produzida a partir das projeções de Nireu Cavalcanti
para o período de 1700 a 1799 35, e considerando também os dados de Ana Paula tostes,
é possível perceber uma queda no volume de entradas de africanos escravizados na
década de 1750, que apresenta um crescimento negativo em termos percentuais de -
9,5%, em relação à década anterior. Exatamente no mesmo momento em que há uma
queda nos registros de batismo da freguesia da Sé. Para Ana Paula Tostes, além das
lacunas presentes em relação aos registros, a menor participação no tráfico pode
também ter influenciado no volume de assentos de batismos.
No entanto, é preciso relativizar esses números, pois de acordo com a tabela
2, que apresenta dados do Atlas do Comércio Transatlântico de Escravos, houve um
aumento na entrada de africanos escravizados no porto carioca nesse período. Portanto,
não percebemos essa influência em relação aos registros de óbitos. Acredito que isso
deveria ocorrer porque os registros dos óbitos desses africanos recém-chegados devem
estar majoritariamente nos livros referentes a outro local de sepultamento que não a
igreja matriz da freguesia, como foi o cemitério voltado para os chamados Pretos
Novos. Até 1722, os assim chamados africanos recém-chegados do tráfico eram
sepultados no cemitério que existia atrás do Hospital da Santa Casa da Misericórdia.
Desse ano até 1774 36, eles passaram a ser destinados ao cemitério criado para esses
Pretos Novos no Largo de Santa Rita. De 1774 até 1831, esse cemitério foi deslocado
para a região do Valongo, junto com a transferência do mercado de escravos 37.
Acreditamos que isso pode explicar o fato de haver menos africanos registrados no livro
paroquial de óbitos das freguesias centrais da cidade.
Diferentemente dos Pretos Novos, os cativos que já estavam na cidade há
mais tempo, apresentaram mais condições de se inserirem na comunidade local a ponto

35
Cf. TOSTES,op. cit., p. 72.
36
HONORATO, op. cit., pp. 73-4.
37
Sobre esses cemitérios voltados para os negros ainda não inseridos na sociedade, ver RODRIGUES,
Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura; Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 1997, p. 68-
70; PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2007; RODRIGUES, Claudia; BRAVO, Milra Nascimento.
Morte, Cemitérios e Hierarquias no Brasil Escravista (séculos XVIII e XIX). Revista Habitus - Revista do
Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia, Goiânia, v. 10, n. 1, p. 3-20, mar. 2013. ISSN 1983-
7798. Disponível em:
<http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/habitus/article/view/2478>. Acesso em: 05 ago. 2020. doi:
http://dx.doi.org/10.18224/hab.v10.1.2012.3-20; BRAVO. Milra Nascimento. HIERARQUIAS NA
MORTE: Uma análise dos ritos fúnebres católicos no Rio de Janeiro (1720-1808). Dissertação de
mestrado – PPGH/UNIRIO, 2014; HONORATO, Claudio de Paula. Valongo: o mercado de almas da
praça carioca. Curitiba: Appris, 2019, pp. 90-8.
97

de conseguirem sepultamento em uma das igrejas matrizes da área central ou nas igrejas
voltadas para irmandades de homens de cor. Acreditamos que são esses os casos dos
africanos e seus descendentes listados nos registros aqui analisados. Acreditamos que,
por isso, o volume do tráfico não parecia ter uma influência imediata no quantitativo de
registros de óbitos dos cativos. O que só ocorreria com o passar do tempo. O volume de
cativos que entrou na cidade na década de 1750 via tráfico negreiro de acordo com a
tabela 11, foi de 68.797, sendo inferior somente às duas décadas anteriores (em 1731-
1740, com 72.033, e em 1741-1750, com 76.051), e bem superior às décadas de 1701-
1710, com 28.000; 1711-1720, com 42.000 e 1721-1730, com 59.500. Tal queda voltou
a ocorrer na década de 1771-1780, na qual houve um crescimento negativo de -9,2%
somente em relação à década anterior, mas em termos de volume é compatível com as
décadas de 1731-1740 (com a entrada de 72.033) e 1741-1750 (com 76.051 cativos). Os
índices voltaram a crescer na década de 1781-1790, alcançando o volume de 85.932 e
mantendo o crescimento na última década do século, e na década de 1791- 1799,
quando subiu para 90.177, com uma média anual de entradas de 9.018. Os dados de
Nireu Cavalcanti são compatíveis com os números apresentados por Manolo Florentino
entre 1790 e 1810 38.
Destrinchando os registros de batismo, Ana Paula Tostes percebe um alto
índice de batismo de escravizados adultos na freguesia da Sé, acompanhado da redução
de registros dos inocentes. Esse perfil estava diretamente ligado à alta demanda de mão
de obra africana para abastecimento das regiões mineradoras, na virada no século XVII
para o XVIII, que ao longo do século vai perdendo força, caindo de 49,3% na década de
1720 para 4,8% dos assentos registrados na década de 1790. Autora conclui que nessa
alta na média de registros de batismo de cativos adultos no início do século XVIII há
um peso considerável daqueles que entraram na cidade via tráfico negreiro. 39
Marisa Soares, ao analisar a entrada de africanos na cidade do Rio de
Janeiro ao longo do século XVIII, observou que o maior número de batismos de cativos
adultos na freguesia da Sé vinha da Costa da Mina, sendo os ritos concentrados entre
1722 e 1724. 40 Diferentemente dos escravizados da África Centro Ocidental que, em
geral, recebiam o sacramento do batismo nos portos de embarque, especialmente em
Angola, os escravizados que vinham da Costa Mina o recebiam no porto de chegada.

38
FLORENTINO, Manolo. Tráfico atlântico, mercado colonial e famílias escravas no Rio de Janeiro, c.
1790-c. 1830. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 51, p. 69-119, jul./dez. 2009. pp. 75
39
191 TOSTES, op. cit., pp. 73 e 74.
40
192 SOARES, op. cit., pp. 78 e 79.
98

Isso ajuda a explicar o maior volume de registro de escravizados Minas adultos nos
livros de batismos da freguesia da Sé, ao mesmo tempo em que dá uma estimativa da
importância deste grupo de cativos no conjunto da escravaria da cidade 41.

Tabela 12. Presença de africanos e crioulos POR DÉCADA


Africanos Crioulos Total
DÉCADA
# % # % # %
1701-1710 2 0,1% 0 0,0% 2 0,1%
1731-1740 23 1,1% 2 0,1% 25 0,6%
1741-1750 17 0,8% 1 0,1% 18 0,5%
1751-1760 107 5,0% 27 1,4% 134 3,4%
1771-1780 15 0,7% 7 0,4% 22 0,6%
1781-1790 12 0,6% 10 0,5% 22 0,6%
1791-1800 58 2,7% 55 3,0% 113 2,8%
1801-1810 168 7,9% 68 3,6% 236 5,9%
1811-1820 132 6,2% 94 5,0% 226 5,7%
1821-1830 797 37,4% 470 25,2% 1267 31,7%
1831-1840 420 19,7% 691 37,1% 1111 27,8%
1841-1850 380 17,8% 439 23,6% 819 20,5%

TOTAL 2131 100,0% 1864 100,0% 3995 100,0%

FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de


Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).

Tabela 12.1. Presença de africanos e crioulos, por livro


AFRICANOS CRIOULOS TOTAL
DÉCADA
# % # % # %
1701-1710 2 0,1% 0 0,0% 2 0,1%
1737-1740 23 1,1% 2 0,1% 25 0,7%
1746-1758 124 5,8% 28 1,5% 152 4,2%
1776-1784 21 1,0% 12 0,6% 33 0,9%
1790-1797 54 2,5% 51 2,7% 105 2,9%
1797-1812 191 9,0% 90 4,8% 281 7,8%
1812-1819 108 5,1% 73 3,9% 181 5,0%
1819-1824 195 9,1% 94 5,0% 289 8,0%
1824-1828 328 15,4% 132 7,1% 460 12,8%
1828-1830 259 12,1% 206 11,1% 65 1,8%
1830-1833 164 7,7% 334 17,9% 498 13,8%
1833-1837 135 6,3% 191 10,2% 326 9,1%

41
SOARES, Mariza de Carvalho. Mina, Angola e Guiné: Nomes d’África no Rio de Janeiro Setecentista.
Tempo, vol. 3, nº 6, dezembro de 1998, p 4.
99

1837-1840 118 5,5% 149 8,0% 267 7,4%


1840-1843 185 8,7% 321 17,2% 506 14,1%
1843-1861 225 10,6% 181 9,7% 406 11,3%
TOTAL 2132 100% 1864 100% 3596 100%

FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de


Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).

Com base nos dados das tabelas 12 e 12.1 é possível perceber que a partir da
segunda metade do século XVIII, a presença africana na cidade dá um salto em relação
ao início do século, aumentando de 0,1% na década 1701-1710, em ambas as tabelas
para 5,0% na década de 1751-1760 (ver tabela 12) e 5,8% no intervalo de 1746-1758,
(ver tabela 12.1), apresentando um crescimento de cinco vezes. Tem uma ligeira queda
entre as décadas de 1770 e 1780, voltando a crescer a partir da década de 1790. Ao
atingir a década de 1820, volta a dar um salto espetacular atingindo um crescimento de
cerca de 374,4% em relação a década de 1800, caindo para 126,2% na década de 1840.
Levando-se em conta que nessa década estamos trabalhando com registros até 1843, ou
seja, com apenas três anos, houve um crescimento considerável. Com base nos dados da
tabela 12.1 observamos que a entrada de africanos escravizados se mantém crescente,
embora com percentuais menores, como por exemplo no intervalo de 1819-1824,
quando apresentou um crescimento de 2,1% em relação ao intervalo 1797-1812. Já o
intervalo de 1843-1861 apresentou um crescimento de 17,8% em relação ao intervalo de
1797-1812. Os dados separados por décadas apresentam de forma mais clara e objetiva
a quantidade de africanos escravizados na cidade, corroborando com os dados do tráfico
atlântico para a mesma. Constatamos também que o aumento e/ou diminuição na
quantidade de crioulos na freguesia da Sé parece estar condicionada às flutuações das
entradas de africanos escravizados no interior da urbe carioca 42.
Em alguns casos a documentação apresenta algumas dificuldades para se
identificar a origem dos indivíduos, pois o padre coadjutor nem sempre colocava o local
de nascimento/procedência. Os motivos podiam ser vários, falta de atenção, descaso ou
dificuldade dos padres em conhecer melhor os detalhes da vida de cada de seus
fregueses, que eram cada vez mais números e de origens diversas, como afirma Ingrid
Souza 43. Além disso, Roberto Guedes observa que o silêncio de cor poderia ser fruto de

42
SOUZA, op. cit., p. 44.
43
Idem, 44-5.
100

anos decorridos de apagamento da memória da escravidão. De algum modo o padre


coadjutor expressou um comportamento social coletivo que tendia a extinguir as
memorias da escravidão pela omissão da cor que ao longo de gerações iam se
distanciado do (ante)passado escravo, “como se fossem brancos” 44. Em não sendo a
identificação declaratória, é exigido do eclesiástico um esforço para o reconhecimento
dos traços e sinais de cada grupo. É exatamente em função das dificuldades de
reconhecimento desses traços e sinais que o aprendizado se faz necessário. Justamente
por essa não ser uma norma obrigatória prevista na legislação eclesiástica para os
assentos de óbitos, conclui-se que tal rigor na identificação da procedência faça parte de
uma exigência social que encontra nos assentos o locus para sua implementação 45.
A divisão sexual entre a população africana e seus descendentes revela-se
como outro elemento fundamental para compreendermos a proporção de mortes de
africanos e seus descendentes na cidade ao longo do período analisado. As fontes aqui
analisadas indicam que na freguesia da Sé há um predomínio do número de mulheres
entre a população africana da década de 1731-1740 a 1811-1820, a partir da década de
1821-1830 a 1840 a população masculina é maior que a feminina, mas na soma total do
período a um equilíbrio entre o número de homens e mulheres, ao passo que entre a
população crioula há um predomínio do número de mulheres. De acordo com a tabela
13, por décadas, o número total de africanos somando homens e mulheres é igual a
2.128, sendo que cada grupo corresponde igualmente a 1.064 (50,0%) respectivamente.
Entre os crioulos, o número de sepultamentos ao longo do período de 1701 a 1840 foi
de 1.119 (60,2%) para as mulheres, enquanto para os homens foi de 739 (39,8%). Ao
analisarmos a presença de africanos e crioulos na cidade por intervalo de livros de
óbitos (ver tabela 13.1), embora os números sejam diferentes, indicam a mesma
tendência desses dois segmentos populacionais. Assim, entre os africanos o total de
óbitos em números absolutos ao longo do período estudado foi de 2.129, sendo 50,0%
de homens para 50,0% de mulheres. Entre os crioulos o número total de óbitos ao longo
do período foi de 181, sendo o percentual de mulheres 60,2% e o de homens igual a

44
O passado africano só era mencionado para fins de herança – com as mudanças na legislação, por conta
das reformas pombalinas, em alguns casos, segundo o autor talvez por influência do tabelião vão fazer a
auto declaração da condição jurídica – mas a herança é o principal marcador da declaração da condição
jurídica e qualidades de cor. Em muitos momentos do silenciamento da qualidade de cor nos testamentos,
tal qualidade era quase sempre atribuída pelo padre no momento da elaboração do registro de óbito.
ROBERTO, Guedes Apagando as memórias do passado escravo (Rio de Janeiro, século XVIII). In:
ISNARA Pereira Ivo, GUEDES Roberto / organização. Memórias da escravidão em mundos ibero-
americanos: séculos XVI- XXI 1. ed. - São Paulo: Alameda, 2019, p. 74.
45
SOARES, op. cit., pp. 97-98.
101

39,8%. Embora no total geral aja um equilíbrio entre a população feminina e masculina,
ao longo do século XVIII e até a segunda década do século XIX, o número de óbitos da
população feminina africana foi maior que o da masculina. O que sugere que na
freguesia da Sé a origem da população africana contraria a lógica do tráfico atlântico da
superioridade numérica dos homens sobre as mulheres.
Tabela 13. Presença de africanos e crioulos na freguesia da Sé, por sexo, POR
DÉCADA
AFRICANOS CRIOULOS TOTAL
DÉCADAS F M F M F M F M F M F M
# # % % # # % % # # % %
1701-1710 0 2 0,0% 0,2% 0 0 0,0% 0,0% 0 2 0,0% 0,1%
1731-1740 13 10 1,2% 0,9% 1 1 0,1% 0,1% 14 11 0,6% 0,6%
1741-1750 10 7 0,9% 0,6% 1 0 0,1% 0,0% 11 7 0,5% 0,4%
1751-1760 61 46 5,7% 4,1% 19 8 1,7% 1,1% 80 54 3,7% 3,0%
1771-1780 10 5 0,9% 4,9% 6 1 0,5% 0,1% 16 6 0,7% 0,3%
1781-1790 6 6 0,6% 0,5% 4 6 0,4% 0,8% 10 12 0,5% 0,7%
1791-1800 31 27 2,9% 2,4% 36 19 3,2% 2,6% 67 46 3,1% 2,6%
1801-1810 97 71 9,1% 6,4% 43 25 3,8% 3,4% 140 96 6,4% 5,3%
1811-1820 78 53 7,3% 4,8% 70 24 6,3% 3,2% 148 77 6,8% 4,3%
1821-1830 380 416 35,7% 37,3% 286 182 25,6% 24,6% 666 598 30,5% 33,2%
1831-1840 198 221 18,6% 19,8% 391 297 34,9% 40,2% 589 518 27,0% 28,7%
1841-1850 180 200 16,9% 18,0% 262 176 23,4% 23,8% 442 376 20,2% 20,9%
TOTAL 1064 1064 100% 100% 1119 739 100,0% 100,0% 2183 1803 100,0% 100,0%
TOTAL
2128 1858 3986
GERAL
FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de
Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).

Tabela 13.1. Presença de africanos e crioulos na freguesia da Sé, por sexo, POR
LIVRO

AFRICANOS CRIOULOS TOTAL


DÉCADAS F M F M F M F M F M F M
# # % % # # % % # # % %
1701-1710 0 2 0,0% 0,2% 0 0 0,0% 0,0% 0 2 0,0% 0,1%
1737-1740 13 10 1,2% 0,9% 1 1 0,1% 0,1% 14 11 0,6% 0,6%
1746-1758 71 53 6,7% 5,0% 20 8 1,8% 1,1% 91 61 4,2% 3,4%
1776-1784 12 9 1,1% 0,8% 10 2 0,9% 0,3% 22 11 1,0% 0,6%
1790-1797 29 25 2,7% 2,3% 29 22 2,6% 3,0% 58 47 2,7% 2,6%
1797-1812 110 81 10,3% 7,6% 62 28 5,5% 3,8% 172 109 7,9% 6,0%
1812-1819 65 43 6,1% 4,0% 51 22 4,6% 3,0% 116 65 5,3% 3,6%
1819-1824 86 108 8,1% 10,1% 59 35 5,3% 4,7% 145 143 6,6% 7,9%
1824-1828 156 172 14,7% 16,2% 88 44 7,9% 6,0% 244 216 11,2% 12,0%
1828-1830 134 124 12,6% 11,6% 117 87 10,5% 11,8% 251 211 11,5% 11,7%
1830-1833 88 76 8,3% 7,1% 195 136 17,4% 18,4% 283 212 13,0% 11,8%
102

1833-1837 56 79 5,3% 7,4% 111 80 9,9% 10,8% 167 159 7,7% 8,8%
1837-1840 51 67 4,8% 6,3% 79 70 7,1% 9,5% 130 137 6,0% 7,6%
1840-1843 87 97 8,2% 9,1% 180 140 16,1% 18,9% 267 237 12,2% 13,1%
1843-1861 106 119 10,0% 11,2% 117 64 10,5% 8,7% 223 183 10,2% 10,1%

TOTAL 1064 1065 100% 100% 1119 739 100% 100% 2183 1804 100% 100%

FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de


Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).

Ao analisarmos os registros de óbitos por condição jurídica/sexo, a


população feminina apresenta-se como superior a população masculina em todos os três
segmentos, de acordo com as tabelas 14 e 14.1.
Entre os escravizados o número de homens é maior que o de mulheres em
vários intervalos dos livros assim como em várias décadas. Mas no total geral, a
população feminina é superior à masculina. Já entre os forros, o número de mulheres é
superior ao número de homens em todos os intervalos dos livros e em todas as décadas.
O mesmo ocorreu com os livres com ascendência escrava. O que demonstra que o
número de mulheres é superior ao número de homens em todo o período estudo. Entre
os sem referência à condição jurídica, mas com ascendência escrava, o número de
homens é superior ao número de mulheres apenas nos intervalos dos livros de 1776-
1784, 1833-1837 e 1840-1843 e entre as décadas de 1771-1780 e 1781-1790. Entre os
sem referência, o número de homens é superior ao número de mulheres em vários
intervalos dos livros de óbitos e por décadas. O número de homens é superior ao de
mulheres ao longo de todo o século XVIII, mas no século XIX há uma superioridade no
número de mulheres. Embora tal situação possa demonstrar um maior equilíbrio entre a
população feminina e masculina, no volume total há uma superioridade das mulheres
em relação aos homens. Assim, na freguesia da Sé, de acordo com a condição
jurídica/sexo tudo parece apontar para uma dinâmica contrária à do tráfico atlântico,
sendo o número de mulheres superiores ao número de homens tanto no século XVIII
quanto na primeira metade do século XIX.
103
104

Tabela 14: Óbitos por condição jurídica/sexo, conforme LIVROS DE ÓBITO


LIVRE FORRO ESCRAVO LIVRE** S/REF** S/REF
# % # % # % # %
DÉCADAS
F M F M F M F M F M F M F M F M F M F M F M F M
1701-1710 0 0 0,0 0,0 7 2 0,4 0,2 0 0 0,0 0,0 0 2 0,0 1,3 3 5 0,2 0,3 189 301 2,6 4,2
1737-1740 0 0 0,0 0,0 26 16 1,6 1,9 16 8 0,8 0,4 0 0 0,0 0,0 11 11 0,7 0,7 114 158 1,6 2,2
1746-1758 12 13 2,6 2,9 140 63 8,9 7,5 138 117 6,9 5,9 0 3 0,0 2,0 39 29 2,4 1,9 417 529 5,7 7,4
1776-1784 0 0 0,0 0,0 24 2 1,5 0,2 132 135 6,6 6,8 0 0 0,0 0,0 13 25 0,8 1,6 276 325 3,8 4,6
1790-1797 0 0 0,0 0,0 74 50 4,7 5,9 60 57 3,0 2,9 0 0 0,0 0,0 18 18 1,1 1,2 354 299 4,8 4,2
1797-1812 0 0 0,0 0,0 227 124 14,4 14,7 122 125 6,1 6,3 38 24 15,3 15,8 55 38 3,4 2,5 957 850 13,1 11,9
1812-1819 0 0 0,0 0,0 175 76 11,1 9,0 76 73 3,8 3,7 56 26 22,5 17,1 36 19 2,2 1,2 816 736 11,2 10,3
1819-1824 0 0 0,0 0,0 168 99 10,7 11,8 162 217 8,1 10,9 14 8 5,6 5,3 230 226 14,3 14,8 746 774 10,2 10,9
1824-1828 0 0 0,0 0,0 158 103 10,0 12,2 173 185 8,6 9,3 13 11 5,2 7,2 319 305 19,9 19,9 767 690 10,5 9,7
1828-1830 0 0 0,0 0,0 110 50 7,0 5,9 137 122 6,8 6,1 11 2 4,4 1,3 170 166 10,6 10,8 434 435 5,9 6,1
1830-1833 0 0 0,0 0,0 127 42 8,1 5,0 190 143 9,5 7,2 11 4 4,4 2,6 233 206 14,5 13,5 670 558 9,2 7,8
1833-1837 0 0 0,0 0,0 95 62 6,0 7,4 133 125 6,6 6,3 23 14 9,2 9,2 177 189 11,0 12,3 431 451 5,9 6,3
1837-1840 0 0 0,0 0,0 64 43 4,1 5,1 157 171 7,8 8,6 4 7 1,6 4,6 133 127 8,3 8,3 486 460 6,6 6,5
1840-1843 1 0 0,2 0,0 108 71 6,8 8,4 348 334 17,4 16,8 26 8 10,4 5,3 70 82 4,4 5,4 612 502 8,4 7,0
1843-1861 445 442 97,2 97,1 74 39 4,7 4,6 160 178 8,0 8,9 53 43 21,3 28,3 99 85 6,2 5,6 46 53 0,6 0,7
TOTAL 458 455 100,0 100,0 1577 842 100,0 100,0 2004 1990 100,0 100,0 249 152 100,0 100,0 1606 1531 100,0 100,0 7315 7121 100,0 100,0

FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
105

Tabela 14.1- Óbitos por condição jurídica/sexo, conforme a década


LIVRE FORRO ESCRAVO LIVRE** S/REF** S/REF
# % # % # % # % # % # %
DÉCADAS
F M F M F M F M F M F M F M F M F M F M F M F M
1701-1710 0 0 0,0 0,0 7 2 0,4 0,2 0 0 0,0 0,0 0 2 0,0 1,3 3 5 0,2 0,3 189 301 2,6 4,2
1731-1740 0 0 0,0 0,0 26 16 1,6 1,9 16 8 0,8 0,4 0 0 0,0 0,0 11 11 0,7 0,7 114 158 1,6 2,2
1741-1750 12 13 2,6 2,9 41 22 2,6 2,6 12 15 0,6 0,8 0 0 0,0 0,0 9 2 0,6 0,1 160 231 2,2 3,2
1751-1760 0 0 0,0 0,0 99 41 6,2 4,9 126 102 6,3 5,1 0 3 0,0 2,0 30 27 1,9 1,8 257 298 3,5 4,2
1771-1780 0 0 0,0 0,0 12 2 0,8 0,2 96 104 4,8 5,2 0 0 0,0 0,0 12 19 0,7 1,2 193 216 2,6 3,0
1781-1790 0 0 0,0 0,0 16 5 1,0 0,6 45 41 2,2 2,1 0 0 0,0 0,0 4 8 0,2 0,5 118 143 1,6 2,0
1791-1800 0 0 0,0 0,0 84 53 5,3 6,3 63 56 3,1 2,8 0 0 0,0 0,0 27 23 1,7 1,5 433 400 5,9 5,6
1801-1810 0 0 0,0 0,0 191 99 12,0 11,8 100 107 5,0 5,4 31 19 12,4 12,5 42 27 2,6 1,8 737 618 10,1 8,7
1811-1820 0 0 0,0 0,0 220 104 13,9 12,4 91 86 4,5 4,3 69 33 27,7 21,7 43 27 2,7 1,8 1025 939 14,0 13,2
1821-1830 0 0 0,0 0,0 435 248 27,4 29,5 491 545 24,5 27,4 34 20 13,7 13,2 743 718 46,3 46,9 1917 1865 26,2 26,2
1831-1840 0 0 0,0 0,0 291 154 18,3 18,3 518 480 25,8 24,1 44 24 17,7 15,8 522 510 32,5 33,3 1642 1513 22,5 21,3
1841-1849 446 443 97,4 97,1 165 96 10,4 11,4 446 444 22,3 22,3 71 51 28,5 33,6 160 154 10,0 10,1 528 438 7,2 6,2
TOTAL 458 456 100,0 100,0 1587 842 100,0 100,0 2004 1988 100,0 100,0 249 152 100,0 100,0 1606 1531 100,0 100,0 7313 7120 100,0 100,0

FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
106

2.2 – Regiões de procedência africana

A partir da análise dos registros de óbitos da freguesia da Sé, é possível


perceber uma grande diversidade de grupos de africanos na cidade, vindos das
diferentes regiões de procedência africana. Como podemos observar nos quadros 1 e
1.1, enquanto na primeira década do século XVIII eram apenas duas regiões africanas, a
Costa da Mina e Loango, que abasteciam o Rio de Janeiro de cativos, na década de 1730
passam para seis: Costa da Mina, Benguela, Congo, Loango, Moçambique,
Guiné/Gentio da Guine 46. Havia ainda os de origem indeterminada. Na década de 1750,
esse número já era o dobro, ou seja, eram doze regiões/grupos de procedência: Cabo
Verde, Costa da Mina, Courana, Angola, Benguela, Camundongo, Ganguela, Rebolo,
Congo, Ambaca, Mocosso e Guiné e os indeterminados. Os africanos centro ocidentais
já representam a maioria dos escravizados importados pelo Rio de Janeiro ultrapassado
os africanos ocidentais.
Nesse período os africanos orientais tinham uma participação muito
pequena entre os escravizados que desembarcavam na cidade, vindo a crescer somente
na década de 1820, conforme já constatamos anteriormente neste trabalho. Ao final de
nosso período de estudo, na década de 1840 são dezessete o número de regiões/grupos
de procedência: Costa da Mina, Calabar, Nago, Angola, Benguela, Camundongo,
Cassange, Quissama, Rebolo, Congo, Cabinda, Monjolo, Mofumbe, Songo, Inhambane
Moçambique, Quilimane, além dos indeterminados que somavam cinco regiões/grupos
de procedência, os Crioulos, nascidos no Brasil e os sem referência. Essa grande
diversificação nas regiões/grupos de procedência era resultado do avanço intenso do
tráfico cada vez mais da costa em direção ao interior do continente africano ampliando

46
Ingrid Ferreira também identificou essa diversidade de grupos e/ou regiões de procedência, sendo que
sua amostragem vai até 1797e após 1730 ela só identificou apenas cinco regiões de procedência, embora
ela faça indicação que à medida que o tráfico se intensifica novos portos de embarques iam surgindo.
SOUZA, op. cit., p. 45. De acordo com Mariza Soares, a palavra gentio está associada às gentes,
indicando povos que, à diferença dos cristãos e judeus, seguem a chamada lei natural. Já a palavra nação
diz respeito à “gente de um país ou região, que tem língua, leis e governo a parte”. O termo é aplicado
ainda à raça, casta e espécie. Nesse sentido, diz respeito a povos que podem ser gentios, ou não, mas cujo
reconhecimento se dá pelo uso partilhado de um território, uma tradição ou uma língua comum. O termo
gentio é usado para designar os povos almejados pela catequese missionária. Já o termo nação se aplica a
qualquer povo, infiel ou cristão, com o qual o Estado português se relaciona. Por fim, uma observação
sobre o período de utilização dos dois termos. Enquanto “nação” tem uma utilização constante ao longo
do tempo desde o século XV até o XIX, “gentio” é aplicado a universos de amplitude variável, caindo em
desuso ainda no século XVIII. idem. Devotos da cor, pp. 96 e 97. Cf. também SOARES, Mariza de
Carvalho. Mina, Angola e Guiné... p. 4.
107

as fronteiras da escravização 47. A partir de 1811 os Guiné/gentios da Guiné


despareceram.
Os quadros 1 e 1.1 mostram que a maioria dos africanos sepultados nas
igrejas da freguesia da Sé vinham da África Centro Ocidental. Conforme a amostra,
percebemos que 53,4% dos cativos vieram dessa região, com destaque para os
benguelas com 29,3%, congos 15,2%, Cabindas 14,3%, Angolas 14% Rebolos 10,2%,
Monjolos 4,7%, Cassanges 4,0%, Ganguelas 2,7%, Quissama 2,0%, Mofumbe 1,8%,
Camundongo 0,8%, Songo 0,5%, Ambaca 0,2% Loango 0,2% e Lunda 0,1%. Luanda
era o centro do comércio angolano, embora existisse uma estrutura comercial baseada
em três regiões, Luanda, Benguela e norte de Angola (Cabinda e Ambriz), desde o final
do século XVII. No século XVI o comércio de escravizados estava concentrado no norte
de Angola, mas nas últimas décadas deste século expandiu-se para o sul em função do
fraco controle português na região e o fortalecimento de grupos crioulos de São Tomé e
do Congo 48. À medida que a expansão para o sul crescia, cresceram também os planos
portugueses, elevando o controle estatal da região culminando com a fundação de
Luanda em 1567. Em Benguela, uma primeira tentativa de desenvolver a escravidão na
primeira metade do século XVII falhou. As exportações de cativos só cresceram no final
deste século e tornaram-se operações independentes nas primeiras décadas do século
XVIII 49.
As três regiões apresentavam características bem distintas no comércio
interno e costeiro. Enquanto, o norte de Angola era de longe a área menos
regulamentada, os negociantes que operavam em Luanda e em menor grau em Benguela
tinham que lidar com as imposições fiscais da administração colonial corruptas que
muitas vezes representavam sérios impedimentos à organização do comércio. O que
tornou a região norte de Angola mais favorável ao suprimento de cativos, ainda mais
que Luanda apresentava uma forte dependência de Cassange e Matamba para o
fornecimento de escravizados vindos do interior. A falta de um controle burocrático
estatal no norte de Angola não significou de forma alguma liberdade para os

47
CANDIDO, Mariana Pinho. Fronteras de esclavización: esclavitud, comercio e identidad en Benguela,
1780- 1850 / Mariana Pinho Candido; traducción del inglés, María Capetillo Lozano. 1a. ed. México, D.
F.: El Colégio de México, Centro de Estudios de Asia y África, 2011. Especialmente capit.ulo 5
48
FERREIRA, Roquinaldo. The suppression of the slave trade and slave epartures from Angola, 1830s-
1860s. História Unisinos. 15(1):3-13, Janeiro/Abril 2011, p. 4; THORNTON. John. A África e os
Africanos na Formação do Mundo Atlântico. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 109. Cf. MILLER, J. Way
of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830. Wisconsin, University of
Wisconsin, 1988.
49
FERREIRA, op.cit., p.5
108

negociantes europeus conduzirem o comércio livremente. As autoridades africanas


exerciam um controle rígido de forma consciente sobre o comércio costeiro.
Combateram firmemente as tentativas dos europeus de invadir o seu território. Isso
ficou patente quando as forças africanas frustraram a tentativa britânica de construir um
forte em Cabinda em 1721. Um outro exemplo que confirma o controle africano sobre o
comércio costeiro foi quando eles derrotaram uma expedição portuguesa que tinha
como missão cortar as ligações comerciais entre os africanos e franceses em Cabinda na
década de 1780 50.
Embora Luanda seja considera pela historiografia como o maior porto de
embarque de escravizados na África, em nossa amostragem o maior contingente de
africanos escravizados em todo o período estudado veio da região de Benguela. Ao
analisar as informações do banco de dados Slave Trade DataBase relativas às viagens de
negreiros para o Rio de Janeiro, entre o final do Seiscentos e a primeira metade do
Setecentos, constato que a imensa maioria dos cativos que deram entrada no porto
carioca nesse período embarcaram no porto de Luanda. Das 17 viagens de negreiros que
aportaram no Rio de Janeiro, entre 1676 e 1700, desembarcando um total 2.831
indivíduos, apenas uma embarcação veio do porto de Benguela, transportando 105
indivíduos. As demais 16 embarcações vieram do porto de Luanda e desembarcaram
2.726 africanos. Tal tendência se manteria ao longo do século XVIII. Ainda de acordo
com os dados do Slave Trade DataBase, entre 1701 e 1725, outras áreas de procedência
surgiriam: 98 embarcações provenientes da costa africana, sendo que 71 vieram do
porto de Luanda e as demais 27 vieram das seguintes áreas de procedência em ordem
decrescente: 9 da Costa da Mina/Benim, 5 de Elmina/Costa do ouro, 3 da Costa da
Mina, 2 da Senegambia, 2 de Ajudá/Golfo do Benim, 1 com especificação África
Ocidental Stª Helena e 4 não especificaram a origem. Esses dados confirmam que a
África Centro Ocidental foi desde o final do século XVII e início do século XVIII a
grande fornecedora de mão de obra escravizada para o Rio de Janeiro. Embora não
disponhamos de informações do Slave Trade DataBase que cubra todo o nosso período,
tais dados confirmam a tendência do tráfico atlântico tendo o porto de Luanda como
principal área de embarque pelo menos no final século XVII e início do século XVIII.
Enquanto em nossa amostragem (quadros 1 e 1,1), aponta para um maior predomínio de
Benguela, tanto no século XVIII, quanto na primeira metade do século XIX. À medida

50
FERREIRA, op. cit., p.5
109

que aumentava a pressão britânica e portuguesa sobre Luanda, os negociantes do Rio de


Janeiro transferiam suas operações para o sul, negociando com Benguela 51.
De acordo com Roquinaldo Ferreira, estimativas recentes indicam que
Benguela só começou a perder para Luanda em termos de embarques de escravos entre
as décadas de 1830 e 1860. Mas existe uma dificuldade em reconstituir os padrões do
comércio de escravos em Benguela devido à falta de documentos. Benguela era quase
totalmente independente de Luanda, tinha fortíssimas ligações com o Brasil recebendo
capital e influência dos negociantes do Rio de Janeiro 52. Com base em nossa
amostragem, é possível ver que Benguela tinha estreitas relações com o Rio de Janeiro,
em nosso período de estudo, principalmente a partir da década de 1750. Roquinaldo
Ferreira afirmou que o Rio de Janeiro sozinho participava com 95% do comércio entre
Brasil e Benguela. Entre 1762 e 1795, foram conduzidos de Benguela aos portos
brasileiros 209.253 africanos escravizados em 599 viagens dos tumbeiros, em resposta a
demanda crescente de uma economia na qual a mão de obra resgatada em África era
fundamental para o seu desenvolvimento 53. A partir de 1808, com a abertura dos portos,
as importações brasileiras vindas de Benguela deram um salto. A participação brasileira
em termos percentuais nunca foi inferior a 83%. Entre 1808 e 1828, o Rio de Janeiro
manteve o controle hegemônico nas relações comerciais entre Brasil e Benguela 54. De
acordo com a historiadora angolana Rosa da Cruz e Silva, após a expulsão dos
holandeses em 1648, estreitam-se as relações entre Benguela e o Brasil. Tal dinâmica
levou ao sertão de Benguela alguns comerciantes brasileiros 55. Flavio Gomes, ao
pesquisar 829 registros de óbitos da paróquia da Candelária, relativos ao período entre
1810 e 1830, constatou o predomínio de africanos centro ocidentais: os Benguelas
representavam 14,5% do total de óbitos, seguidos dos Congo com 13,9%, dos Angolas
com 6,3%, dos Cabindas com 4,6% e dos Moçambiques com 3,2% 56. Karasch afirma
que os Benguelas superavam todos os grupos que eram importados pelo Rio de Janeiro
da região onde é Angola atual. Em 1849, de acordo com os dados da Santa Casa da

51
KARASCH, op. cit., p. 57.
52
FERREIRA, op cit., p.6
53
SILVA, Rosa da Cruz e. Benguela e o Brasil no final do século XVIII: relações comerciais e políticas.
In PANTOJA, Selma e SARIVA, José Flávio Sombra (organizadores). Angola e Brasil nas rotas do
Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1999, pp. 127-135.
54
FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Dos Sertões ao Atlântico: op. cit., p. 4
55
SILVA, op. cit., pp. 131.
56
GOMES, Flávio. A demografia atlântica dos Africanos no Rio de Janeiro, séculos XVII, XVIII e XIX:
algumas configurações a partir dos registros eclesiásticos. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, Rio de
Janeiro, v. 19, supl, dez. 2012, p. 97.
110

Misericórdia, a autora revela que mais da metade tinham vindo dessa região, de modo
que os Benguelas inundaram a cidade na década de 1840, se tornando uma das maiores
nações 57.
De acordo com Miller, no início do século XVIII um grupo de luso-
africanos instalara-se em Benguela e criaram novas fontes de escravizados, promovendo
uma série de ataques que alcançaram às serras do leste de Benguela, em 1720. Os
cativos por eles capturados eram vendidos para os donos das embarcações do Rio de
Janeiro. A partir de 1730, de acordo com o número de escravizados registrados nos
relatórios governamentais, que seriam deslocados de Benguela em direção ao Rio de
Janeiro, indicam uma conexão direta entre Benguela e o porto carioca 58. De acordo com
Mariana Candido, o tráfico movia a economia da cidade. A população que residia no
porto se ocupava do comércio e das caravanas que seguiam para o interior. Muitos
degradados ainda cumprindo pena eram empregados na administração e nas forças
militares e podiam ainda tornarem-se comerciantes de gente atuando na rede do tráfico
atlântico de escravizados 59. Roquinaldo Ferreira observou que desde o início do século
XVIII Benguela serviu como um refúgio seguro para os degredados que procuravam
conduzir escravizados para os funcionários de Luanda. No século XIX, dos vários
negociantes que atuavam em Benguela, muitos haviam nascido ou vivido no Rio de
Janeiro e ainda mantinham laços estreitos com a cidade brasileira. Benguela importava a
cachaça, um dos principais produtos brasileiros utilizado no comércio de escravizados
em Angola. Importava em torno de 1000 pipas por ano. Essa quantidade era metade do
que importava Luanda, o principal porto de escravizados angolano 60.
O domínio dos traficantes de escravizados sobre a política local era
fundamental para a continuação dos embarques de cativos em Benguela. Vários

57
KARASCH, op. cit., p. 57.
58
MILLER, Joseph. C. A economia política do tráfico Angolano de escravos no século XVIII. in
PANTOJA, Selma e SARIVA, José Flávio Sombra (organizadores) Angola Brasil nas rotas do Atlântico
Sul. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 22.
59
“A coroa portuguesa fez uso da pena de degredo para criminoso com o intuito de ocupar os territórios
de Angola e Benguela [...]. Apesar do comercio de escravos, Benguela não era um lugar muito atrativo.
Famosa por seu clima insalubre ficou conhecida também como açougue humano. Degredados e
comerciantes conviviam lado a lado graças à corrupção das autoridades locais e a mortalidade que afetava
todos os estrangeiros. Apesar das leis que proibiam que degredados exercessem posição de autoridade,
em Benguela muitos degredados ocupavam posições administrativas e militares”. Cf. CANDIDO,
Mariana P. Negociantes Baianos no porto de Benguela: redes comerciais unindo o atlântico Setecentista.
In GUEDES, Roberto. Organizador. Brasileiros e portugueses na África (séculos XVI-XIX). Rio de
Janeiro: Mauad , 2013, p.p. 72 a 74; Cf. também ABRAHÃO, Juliana Diogo. Degradado e reinserção
social de degradados, Angola (século XVIII). Anais do XXVIII Simpósio Nacional de História. Lugares
dos Historiadores: velhos e novos desafios. Florianópolis. SC. 27 a 31 de julho de 2015. p. 10.
60
FERREIRA op. cit., p.6; MILLER, op. cit., p. 25.
111

traficantes exerceram o cargo de governador em Benguela, alguns eram nascidos no


Brasil. A partir do acordo assinado entre Brasil e Inglaterra em 1826, para o fim do
tráfico, as pressões britânicas começaram a minar o negócio dos traficantes brasileiros.
Em 1827 o governo de Lisboa ordenou ao governador de Benguela que tentasse
reorientar a economia local promovendo um comércio antiescravista. Um ano depois o
governo de Luanda informou que os navios que partiam do porto de Luanda
enfrentavam dificuldades para entrar no Brasil devido às pressões britânicas. Mas
mesmo com toda a pressão britânica os embarques de escravizados em Benguela ainda
eram significativos em 1830. Naquele mesmo ano, saíram de Benguela dez navios
transportando 3.926 cativos para o Rio de Janeiro 61.
O fim do tráfico legal no Brasil foi um duro golpe no comércio de Benguela.
Enquanto na década de 1820 uma média de doze navios anuais saia de Benguela
transportando escravizados, entre 1831 e 1835 foi registrada apenas uma viagem. Entre
1836 e 1839 o número de viagens voltou a crescer deforma ascendente e o comércio de
Benguela parece ter ultrapassado os níveis da década de 1820. Ao contrário de Luanda,
em que no início da década de 1840 a legislação portuguesa provocou um sério impacto
no comércio, em Benguela a principal ameaça aos traficantes eram os cruzadores
britânicos 62. Observamos que em nossa amostragem o porto Luanda aparece
subestimado, pois em todo o período estudado embarcou apenas um africano
escravizado. Tal amostragem não reflete a importância que Luanda teve durante todo o
período do tráfico negreiro. Nesse sentido, após comparar todos esses dados concluímos
que além da patente comprovação da importância de Luanda, assim como a de
Benguela, tais informações apontam para a possibilidade de que muitos dos africanos
embarcados em Luanda possam ter sido registrados no Rio de Janeiro como Angolas ou
até mesmo Benguelas, e/ou outras regiões, pois Angola era um entreposto de
escravizados de diversas procedências 63.
Observa-se em nossa amostragem o aumento da participação de Cabinda a
partir de 1810 e na década de 1820 já ultrapassavam os Angolas e Congos no número de
sepultamentos. Tal situação está relacionada à chegada da família real ao Rio de Janeiro
em 1808. Os portugueses veem nesse episódio a oportunidade de retomada do controle
do vigoroso fluxo do tráfico de escravizados entre o Brasil e a África Central,

61
FERREIRA, op. cit., p.6.
62
FERREIRA, op. cit., p.p.6 e 7
63
SCARANO, Julita. Devoção e escravidão. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no
Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1975, p. 108.
112

especialmente a rota entre Luanda e o Rio de Janeiro que, desde o século XVIII, era
dominado pelos negociantes brasileiros que tinham estreitas relações com os mercados
africanos. Será implementada uma rigorosa política protecionista em Luanda em prol
dos negociantes portugueses, associado a uma agressiva política fiscal com altíssima
cobrança de impostos. Tal situação provoca a saída dos negociantes brasileiros e dos
luso-africanos (crioulos africanos) de Luanda, que passam a operar a partir dos portos
mais ao norte de Angola, fora da jurisdição portuguesa, a partir do centro de Cabinda e
Ambriz, transferindo suas atividades para os portos de Cabinda, Molembi, Loango,
Ambriz, Abrizete e Rio Zaire em função das vantagens obtidas pelos negociantes nestes
portos, longe da administração portuguesa 64.
A retirada britânica do comércio de escravizados em 1807 já havia alterado
profundamente a dinâmica do tráfico no norte de Angola criando um vácuo que foi
preenchido pelos negociantes brasileiros. O centro de gravidade do comércio entre
Angola e o Brasil mudou para o Brasil. Após a independência o domínio dos
negociantes brasileiros no norte de Angola aumentou ainda mais. Foram 185 navios
brasileiros embarcando escravos em Cabinda, entre 1823 e 1831. Não há dúvidas que o
comércio de escravizados na região de Cabinda era controlado pelos negociantes da
praça carioca 65. No calor da retirada britânica do comércio atlântico de escravizados, a
região de Ambriz parece ter sido imensamente afetada, só voltando a se recuperar a
partir 1823. Entre este ano e o ano de 1832 foram embarcados em Ambriz 91 navios de
escravizados. Os negociantes brasileiros foram os principais responsáveis pela
recuperação do comércio de escravizados em Ambriz. O fato de atuarem em Ambriz
comerciantes espanhóis, franceses e americanos é indicação da internacionalização do
comércio nessa região. Ambas as regiões, Cabinda e Ambriz, apresentavam na década
de 1840 condições propícias para abrigar o comércio de escravizados. A cinco milhas
em direção ao interior da costa de Ambriz existiam vários barracões que segundo as

64
Cf. FERREIRA, Roquinaldo. Brasil e Angola no Tráfico Ilegal de Escravos. 1830-1860.in PANTOJA,
Selma e SARAIVA, Flávio Sombra (organizadores). Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p. 148; PIRES, Flávia Cicchelli. Tráfico Ilegal de Escravos: os caminhos
que levam a Cabinda. Dissertação de Mestrado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2006. pp.
49,50,55-82; . Tráfico ilegal de escravos, 1830-1860: o redirecionamento dos embarques na costa
Centro-Ocidental africana. XXIII Simpósio Nacional de História. ANPUH. Londrina, 2005. P. 5 e 6;
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Entre caravanas de marfim, o comércio da urzela e o tráfico de
escravos: Georg Tams, José Ribeiro dos Santos e os negócios da África centro-ocidental na década de
1840. Programa Nacional de Apoio à Pesquisa Fundação Biblioteca Nacional – MinC. pp. 29-34.
Dinâmicas Históricas de um Porto Centro Africano: Ambriz e o Baixo Congo nos finais do tráfico
atlântico de escravos (1840 – 187). rev. hist. (São Paulo), n. 172, p. 163-195, jan.-jun., 2015, p. 163-168.
65
FERREIRA, op. cit., p.12.
113

autoridades portuguesas e britânicas naquela época com várias centenas de escravizados


prontos para embarque 66.
Continuando a análise dos quadros 1 e 1.1, a África Oriental representa
5,7% da amostra, com destaque para os portos de Moçambique (89,2%), Inhambane
(8,3%) e Quelimane (2,5%). Os indeterminados somam um total 0,4%: guiné (1,6%) e
os sem referência (23,9%). Observamos a presença de crioulos a partir da década de
1730, que passam a ter um crescimento considerável em números absolutos na última
década do século XVIII, crescendo de forma exponencialmente a partir da década de
1820, atingindo o número de 1.864 de um total de 3.996, representando quase metade
do número de africanos presente na amostra, com um percentual de 46,6%.
Até a década de 1810, a África Oriental tinha uma participação ínfima no
tráfico de escravizados para o Rio de Janeiro. Apenas a ilha de Moçambique exportava
cativos para o porto carioca; de acordo com Manolo Florentino, entre 1795 e 1811, com
um percentual de entradas de apenas 4%. Somente a partir da abertura dos portos
brasileiros que as exportações de escravizados dessa região conheceu um ritmo de
expansão muito superior ao das exportações dos portos da costa atlântica. De apenas 15
expedições a Moçambique, entre 1795 e 1811, passou-se para 235, a partir desse último
ano, alcançando um crescimento extraordinário na ordem de 1567%, contra 271%
registrados para as exportações da África Centro Ocidental. Durante esse processo,
observa-se a consolidação da ilha de Moçambique e dos portos do Sul, em especial o
porto de Quelimane. Essas duas regiões juntas exportaram mais de 93% dos
escravizados importados pelo Rio de Janeiro da África Oriental 67. Entre 1830 e 1860, no
período do tráfico ilegal de escravizados os embarques nos portos de Moçambique,
Quelimane e Inhanbane cresceram significativamente, especialmente a partir de 1836
com o aumento da repressão na Costa Atlântica 68. Esse crescimento das exportações da
África Oriental para o Rio de Janeiro expressava a relativa impossibilidade da Região
Congo-Angola de responder positivamente à súbita alta da demanda da região Sudeste
do Brasil, pelo menos na proporção desejada da nova conjuntura que se instalou depois
de 1808. No entanto a região Congo-Angola manteve-se como a grande fornecedora de

66
FERREIRA, op. cit., p.12.
67
FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras... , 1997. pp. 80,81 e 234.
68
PESSOA, Thiago Campos. O comércio negreiro na clandestinidade: as fazendas de recepção de
africanos da família Souza Breves e seus cativos. Afro-Ásia, 47 (2013), 43-78. p. 49, 70,71
114

mão de obra escravizada para o Rio de Janeiro. Oito entre cada dez navios que entraram
no porto carioca entre 1795 e 1830 vieram da região Congo-Angola 69.
Em nossa amostragem tal situação se configura a partir da década de 1820.
Essas duas regiões juntas apresentaram um percentual de 100,0%. No entanto, coube a
Moçambique 70 a participação de 96,6%, enquanto Quelimane ficou com a participação
ínfima de 3,4%. Nas duas décadas finais de nossa amostragem, 1830 e 1840,
Moçambique mantém sua participação, 87,5% e 86%, respectivamente e a região de
Quelimane foi ultrapassada por Inhambane, apresentando essa última 10,0% e 12,0%
contra a primeira que apresentou 2,5% e 2,0% respectivamente. Em nossa amostragem
não aprece a ilha de Moçambique, apenas Moçambique. De acordo com Karasch, os
africanos orientais não eram muito conhecidos no Rio de Janeiro e os senhores tendiam
a chamá-los todos de Moçambique. Esse costume inviabilizava a identificação das
origens dos escravizados que vinham de outras áreas fora do domínio colonial português
através da África Oriental para o Rio de Janeiro, tais como: Quênia, Tanzania, Malaui,
Zambia, Zimbabue, África do Sul e Madagascar.
A forma mais comum com que os negociantes agrupavam os escravizados
era pelo porto de origem, que nessa região eram: Mombassa ou Mombaça, ilha de
Moçambique, Quelimane, Inhambane e Lourenço Marques. Havia outros como Ibo e
Angoche, mas estes raramente apareciam nas fontes para o Rio de Janeiro. De todos
esses, os que mais apareciam na documentação no Rio de Janeiro eram: Moçambique,
Quelimane e Inhambane, como ocorre com nossa amostragem. Essas três regiões eram
as maiores áreas de escravização da África Oriental no século XIX. Em primeiro lugar a
região de Moçambique que abrigava povos da ilha de Moçambique e de regiões mais ao
norte. A ilha de Moçambique era sem dúvida uma das áreas mais importantes de
operações do tráfico de escravizados da região no século XIX. Onde representantes das
casas comerciais brasileiras e autoridades portuguesas envolvidas no tráfico de
escravizados tinham residência.
Além dos brasileiros, faziam comércio também os traficantes africanos,
árabes e indianos que atuavam a partir do que hoje são Quênia, Tanzânia e Zanzibar.
Em segundo lugar estava o porto de Quelimane no Delta do rio Zambezi, com 31 navios

69
221 FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras... p.81.
70
Em nossa amostragem não aprece ilha de Moçambique, apenas Moçambique. Possivelmente seja a
mesma região. De acordo com Karasch, os africanos orientais não eram muito conhecidos no Rio de
Janeiro e os senhores tendiam a chama-los todos de Moçambique. Cf. KARASCH, op. cit., p.59
115

saídos para o Brasil depois da ilha de Moçambique com seus 44 71. Quelimane também
contava com a ilha de Moçambique como fonte de escravizados. Os Quelimanes na
cidade do Rio de Janeiro também eram agrupados com os Moçambiques. Sempre que
havia guerras no interior, bloqueavam as caravanas que iam para a ilha de Moçambique
ou quando os cruzadores britânicos navegavam ao longo da costa, os traficantes do
interior e os brasileiros como alternativa mudavam-se para o porto de Quelimane, mas
não foi só o perigo da presença britânica que explica a proeminência de Quelimane no
tráfico com o Brasil. O preço baixo e fornecimento regular de escravizados jovens com
idade entre 10 e 14 anos agradavam aos traficantes brasileiros. Como resultado na
década de 1840, Quelinane rivalizava com a ilha de Moçambique no fornecimento de
escravizados para o Brasil, em especial o Rio de Janeiro. Em terceiro lugar, o porto de
Inhambane, que era menos importante, principalmente antes de 1830. De acordo com
Klein, organizou apenas 4 viagens escravistas. Os Inhambanes no Rio de Janeiro era um
grupo muito reduzido 72.

71
KLEIN, Herbert S. O tráfico de escravos no Atlântico. Ribeirão Preto. SP. FUNPEC Editora, 2004. p.
71.
72
KARASCH, op. cit., pp. 59-62; KLEIN, Herbert S. O tráfico de escravos no Atlântico... p. 71;
MEDEIROS, Eduardo. Moçambicanização dos Escravos saídos pelos portos de Moçambique. TOC:
Ponta de Lança: Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura, São Cristóvão, v.12, n. 23, jul. - dez.
2018. p. 169.
116

Quadro 1. Presença de africanos e crioulos, por década


1701- 1731- 1741- 1751- 1771- 1781- 1791- 1801- 1811- 1821- 1831- 1841-
TOTAL
NAÇÃO 1710 1740 1750 1760 1780 1790 1800 1810 1820 1830 1840 1850*
Cabo verde - - 1 3 - - - - - - - - 4
Mina 1 5 7 30 7 2 11 41 14 59 64 40 281
São tomé - - - - - - - - - - 1 - 1
Calabar - - - - - - - - - 11 8 11 30
Nago - - - - - - - - - - 1 1 2
Cobu - - - - - - 1 - - - - - 1
Courana - - - 1 - - - - - - - - 1
TOTAL ÁFRICA OCIDENTAL 1 5 8 34 7 2 12 41 14 70 74 52 320
Angola - - - 29 1 3 25 11 4 30 25 32 160
Benguela - 8 2 17 6 4 10 36 20 84 81 66 334
Camundongo - - - 1 - - - 4 - 2 1 1 9
Cassange - - - - - - - 3 2 12 12 16 45
Ganguela - - 2 5 - - 1 9 2 12 - - 31
Luanda - - - - - - - 1 - - - - 1
Quissama - - - - - - - 5 6 5 1 6 23
Rebolo - - - 2 1 - - 10 13 44 22 24 116
Congo - 1 - 3 - - 6 20 10 48 40 45 173
Cabinda - - - - - 1 - 9 8 59 49 37 163
Monjolo - - - - - - - 4 5 14 20 11 54
Ambaca - - - 1 - - - - - - 1 - 2
Loango 1 1 - - - - - - - - - - 2
Mofumbe - - - - - - - 1 6 10 1 2 20
Songo - - - - - - - - 1 2 2 1 6
TOTAL ÁFRICA CENTRO OCIDENTAL 1 10 4 58 8 8 42 113 77 322 255 241 1139
Inhambane - - - - - - - - - - 4 6 10
Moçambique - 1 - - - - - - 1 28 35 43 108
Quilimane - - - - - - - - - 1 1 1 3
Total África Oriental - 1 - - - - - - 1 29 40 50 121
Baca - - - - 1 - - - 1 2
Marimba - - - - - - - - 1 - 1 - 2
117

Moange - - - - - - - - - 1 - 1 2
Mocosso - - - 1 - - - - - - - - 1
Mugungo - - - - - - 1 - - - - 1
TOTAL DE INDETERMINADAS - - - 1 - - - 2 1 1 1 2 8
GUINÉ/ GENTIO DA GUINÉ - 7 5 14 - 2 3 3 - - - - 34
CRIOULO - 2 1 27 7 10 55 68 94 470 691 439 1864
S/REF. - - - - - - 1 9 39 375 50 35 510
TOTAL 2 - 18 134 22 22 113 236 226 1267 1111 819 3996
Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro
(1701-1843).

Quadro 1.1. Presença de africanos e crioulos, POR LIVRO


PERIODIZAÇÃO CONFORME OS LIVROS
NAÇÃO DE ÓBITOS TOTA
1701- 1737- 1746- 1776- 1790- 1797- 1812- 1819- 1824- 1828- 1830- 1833- 1837- 1840- 1843- L
1710 1740 1758 1784 1797 1812 1819 1824 1828 1830 1833 1837 1840 1843 1861*
Cabo verde - - 4 - - - - - - - - - - - - 4
Calabar 4 5 2 5 1 1 6 6 30
Cobu - - - - 1 - - - - - - - - - - 1
Courana - - 1 - - - - - - - - - - - - 1
Mina/mina calabar 1 5 37 7 9 47 8 29 15 12 20 27 17 26 21 281
Nago - - - - - - - - - - 1 - - - 1 2
São tomé - - - - - - - - - - - 1 - - - 1
TOTAL ÁFRICA OCIDENTAL 1 5 42 7 10 47 8 33 20 14 26 29 18 32 28 320
ANGOLA - - 29 3 26 11 4 13 9 5 10 9 8 9 24 160
Benguela - 8 19 8 11 39 17 38 28 15 38 24 13 37 39 334
Camundongo - - 1 - - 4 - 1 1 - 1 - - 1 - 9
Cassange - - - - - 3 2 5 3 4 5 4 3 4 12 45
Ganguela - - 7 - 1 9 2 7 5 - - - - - - 31
Luanda - - - - - 1 - - - - - - - - - 1
Quissama - - - - - 8 2 4 2 - - - 1 4 2 23
118

Rebolo 2 1 - 11 10 26 10 7 15 4 4 15 11 116
CONGO - 1 3 - 4 23 8 22 11 15 11 21 7 19 28 173
Ambaca - - 1 - - - - - - - - 1 - - - 2
Cabinda - - - - 1 10 6 22 17 14 30 14 7 25 17 163
Loango 1 1 - - - - - - - - - - - - - 2
Mofumbe - - - - - 1 6 4 5 1 1 - - 2 - 20
Monjolo - - - - - 4 4 7 1 7 11 6 3 7 4 54
Songo - - - - - 1 - 1 - - 1 - 2 1 - 6
TOTAL ÁFRICA CENTRO 1 10 62 11 43 125 61 150 92 68 123 83 48 124 137 1139
OCIDENTAL
Inhambane - - - - - - - - - - 1 1 2 - 6 10
Moçambique - 1 - - - - 1 11 5 11 13 12 9 23 22 108
Quilimane - - - - - - - - 1 - - - 1 1 - 3
TOTAL ÁFRICA ORIENTAL - 1 - - - - 1 11 6 11 14 13 12 24 28 121
Baca - - - - - 1 - - - - - - - 1 - 2
Marimba - - - - - - - 1 - - - - - - - 1
Moange - - - - - - - - - 1 - - - 1 - 2
Mocosso - - 1 - - - - - - - - - - - - 1
Mugungo - - - - - 1 - - - - - - - - - 1
TOTAL DE INDETERMINADAS - - 1 - - 2 - 1 - 1 - - - 2 - 7
GUINÉ/ GENTIO DA GUINÉ - 7 19 2 1 5 - - - - - - - - - 34
CRIOULO - 2 28 12 51 90 73 94 132 206 334 191 149 321 181 1864
S/REF. - - - - 12 38 - 210 165 - 10 40 3 32 510
TOTAL 2 25 152 33 105 281 181 289 460 465 498 326 267 506 406 3996
Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro
(1701-1843).
119

Os africanos escravizados que vinham da África Ocidental representam 15%


do total de africanos em nossa amostragem. Entre estes, predominam os Minas, com
87,8%; depois vinham os Calabar, com 9,4%; os Nagôs, com 0,6%. Os de São Tomé, os
Cobus e os Couranos representavam cada um 0,3%. O comércio de Africanos
escravizados entre o Brasil e a Baia do Benim, na África Ocidental, remonta o final do
século XVII, mantendo-se ativo até o final do tráfico atlântico, em 1850, prolongando-
se possivelmente de forma clandestina até 1856. Na documentação colonial, tanto no
Brasil quanto em Portugal a costa ocidental africana era denominada de Costa da
Mina 73. Esse nome origina-se do Castelo de São Jorge da Mina, também chamado de
Elmina, na Costa do Ouro (atual Gana) 74. O termo “mina” é uma designação que pode
variar de acordo com a época e local, nas diferentes partes da América, assim como
também na Baía do Benim, o termo adquiriu vários significados 75.
No Rio de Janeiro, por exemplo a denominação mina reunia africanos de
diferentes áreas da Costa da Mina: Mina-Makii, Mina-Sabaru, Mina-Chamba, Mina-
Coura, Mina-nagô, Mina-cobu; reunia ainda os Zano e Angolin, vindos duas regiões do
entorno do Daomé. Nesse sentido, a denominação genérica mina não favorecia a
identificação das procedências. Ao contrário, encobria a diversidade contida nessa
identidade genérica 76. Agregava povos linguisticamente distintos, mas geograficamente
próximos. Assim, “Mina” era, por conseguinte, toda a costa da África Ocidental, da
Costa do Ouro para leste, era um termo de caráter mais geográfico que indicativo de
etnias especificas 77. Depois dos Minas, os que tinham participação mais expressiva
entre os africanos escravizados vindos da África Ocidental em nossa amostragem eram
os Calabar que vinham de dois portos da Baia do Biafra: Velho Calabar e Novo
Calabar. Essa denominação mina também não favorecia ao conhecimento dos grupos de
procedência dessa região. De acordo com Karasch, dessa região eram exportados para o

73
SOARES, Mariza de Carvalho. Indícios para o traçado das rotas terrestres de escravos na Baia do
Benim, século XVIII.in SOARES, Mariza de Carvalho (organizadora). Rotas Atlânticas da Diáspora
Africana: da Baia do Benim ao Rio de Janeiro. Niterói: EDUFF, 2007. p. 67.
74
KARASCH, op. cit., p. 64; SOARES, Mariza de Carvalho. (Org.) Diálogos Makii: de Francisco Alves
de Souza; Manuscrito de uma congregação católica de africanos Mina, 1786. São Paulo: Chão Editora,
2019. p. 111-12; LAW, Robin. Etnias de africanos na diáspora: novas considerações sobre os significados
do termo 'Mina'. Tempo [online]. 2006, vol.10, n.20, pp.98-120. p. 99.
75
SOARES, Mariza de Carvalho. Indícios para o traçado das rotas terrestres de escravos na Baia do
Benim, século XVIII... p. 66; LAW, Robin. Etnias de africanos na diáspora: novas considerações sobre os
significados do termo 'Mina'. pp. 100 a 108.
76
SOARES, Indícios para o traçado das rotas terrestres de escravos na Baia do Benim, século XVIII. p.
69; SOARES, Diálogos Makii, op. cit., p. 131.
77
LAW, op. cit., p. 120
120

porto carioca os Ibos, Efiks ou Ibibios. Eram bem menos representativos entre a
escravaria no Rio em comparação aos minas 78. Contribuíam ainda para essa grande
diversidade de grupos de procedência africana no Rio de Janeiro os escravizados que
vinham de Cabo Verde e São Tomé. Além dos nascidos na Nigéria, no Congo Norte ou
Angola. Cabo Verde, que fica mais ao norte, provavelmente alimentava-se de grande
quantidade escravizados da África Ocidental 79.
Marisa Soares analisou o número de batizados de adultos na freguesia da Sé,
entre 1718 e 1750, e os dividiu em dois períodos: no primeiro de 1718 a 1726 e 1744 a
1750. No primeiro, constatou que o maior número de batizados adultos era de africanos
escravizados vindos da Costa Mina, concentrados entre 1722 e 1724. De um total de
790 batizados de adultos, os minas correspondiam a 681, representado 86,2% do
número total de batizados, seguidos dos guiné, com 8,7%. Os africanos centro
ocidentais representavam 2,0%, Cabo Verde, 0,4%; Cacheu, 0,3%; Contra costa, 2,4%.
No período seguinte, de 1744-1750, de um total de 265 africanos adultos batizados, os
Minas correspondiam a 235, indicando uma queda bastante acentuada (em torno de
61%) em relação ao período de 1718-1726. Entretanto, não comprometia sua
predominância entre os grupos de batizados adultos. Deste modo, nesse segundo
período, os minas representavam 88,68% de um total de 265 batizados de adultos,
enquanto os guiné representavam 1,89%; os da Costa Centro Ocidental, 1,89% e os
Cacheu, 0,38% 80.
Flavio Gomes analisou os óbitos da freguesia da Candelária no período de
1724 a 1736 e no período de 1793 a 1800, e constatou a superioridade numérica dos
africanos centro ocidentais nos dois períodos. No período de 1724 a 1736, de um total
de 360 registros de óbitos 18,8% recebeu a denominação genérica de Guiné. Os
africanos ocidentais representavam 26,7%, sendo 91% de denominação mina e os
demais, de Cabo Verde e São Tomé somam juntos 2,5%. Os africanos orientais nesse
período tinham uma participação mínima de apenas 0,9%. Os africanos centrais
somavam 53,5%, com destaque para os classificados como angolas, com 75%; e os
benguelas com 12%; os congos, com 6,2%; os ambaca com 1,2%; ganguela, com 2,3%;
loango com, 1,7%; monjolo, com 1,6%; qissama, com 0,5% e Rebolo, com 0,5%. No
período de 1793 a 1800, embora seja mais curto e apresente uma amostragem bem

78
KARASCH, op. cit., p. 66.
79
Idem, p. 66.
80
SOARES, Mariza de Carvalho. Os Devotos da cor, pp. 80-4.
121

reduzida, com 87 registros de óbitos, observa-se o processo parcial de desaparecimento


da denominação guiné com apenas 4,6%. Os africanos ocidentais caem para 4,6%. Os
africanos centro ocidentais mantem sua superioridade com um percentual de 88,7%,
com predomínio dos Angolas com 41,5%, seguidos pelos benguelas com 24,2%. Os
africanos orientais nesse período continuam com uma participação mínima de 2,2% 81.
Carlos Eugênio Líbano Soares ao analisar os batismos de africanos
escravizados por nação na freguesia da Candelária nos períodos de 1713 a 1717, 1725 a
1730 e 1734 a 1744, constatou também a predominância dos provenientes da África
Ocidental nos três períodos, com a maioria esmagadora de africanos minas. No primeiro
período de 1713 a 1717, de um total de 304 batizados, os africanos ocidentais
representavam 98,3% contra 1,7% dos africanos centro ocidentais. Entre os africanos
ocidentais, os minas representavam 96,7%, os gentios da Guiné representavam 1,3% e
os Cabo Verdes 0,3%. Entre os africanos centro ocidentais, os negros de Angola
representavam 1,0% e os loangos 0,7%. De acordo com o autor, esta forte presença dos
africanos minas no Rio de Janeiro é indício do vigoroso comércio entre Bahia e Rio no
início daquele século e marcaria os cem anos seguintes 82.
Marisa Soares afirma que tanto o mercado do Rio de Janeiro como o de
Minas Gerais eram “regularmente abastecidos de pretos novos (não batizados) através
da Bahia”. De acordo com a autora, essa parcela do tráfico de escravizados não deve ser
computada como tráfico interno e sim, como acontece nas áreas de apresamento como
uma etapa interna da rota transatlântica 83. Através da correspondência do governador da
Bahia, D. Rodrigo da Costa, enviada ao Rei de Portugal, em 20 de junho de 1703,
ficamos sabendo que havia um comércio direto entre os moradores do Rio de Janeiro
com a Costa da Mina. Além dos produtos regularmente usados nas trocas de
escravizados com a costa da Mina (tabaco e aguardente), o governador denunciava ao
rei que muitos negociantes utilizavam o ouro ainda por “quintar” nessas trocas, o que
motivou o rei D. Pedro II, em 27 de setembro do mesmo ano, a proibir que as
embarcações do Rio de Janeiro fossem a Costa da Mina resgatar cativos 84.

81
GOMES, Flavio. Demografia Atlântica dos africanos no Rio de Janeiro, séculos XVII, XVIII e XIX:
algumas configurações a partir dos registros eclesiásticos. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio
de Janeiro. v. 19, supl., dez. 2012, pp. 90, 91-93.
82
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Uma porta para o mundo atlântico: africanos na freguesia da
Candelária da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, século XVIII. Revista do Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro. n.9, 2015, pp. 52-54.
83
SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor... p. 77.
84
SOARES, op. cit., p. 73.
122

Tudo indica que as reclamações foram intensas, pois ainda no mesmo mês a
Coroa estabeleceu uma cota de importação anual de 1.200 africanos que viriam da Costa
da Mina para o Rio de Janeiro. Conforme observou Charles Boxer, essa lei permaneceu
letra morta e o sistema de cotas foi abolido em 1715 85. Mariza Soares observa que essas
constantes proibições no comércio entre a cidade do Rio de Janeiro e a Costa da Mina
podem, em parte, explicar a ausência de registros e a consequente invisibilidade dessa
atividade. O governador da Bahia, em sua carta de 1703, já denunciava que os
moradores do Rio de Janeiro contrabandeavam o ouro em pó para trocar por escravos na
Costa da Mina. Ou seja, tudo indica que quanto maior a repressão maior a ilegalidade e
a ausência de registros 86.
Tal situação pode explicar a pouca presença dos minas nos registros do
banco de dados The Slave Trade Database referente ao Rio de Janeiro. Mas como
explicar a ausência dos africanos, em especial dos vindos da região de Angola nos
registros de óbitos do início do século XVIII, até a primeira metade da década de 1740?
Por que esses dados não se aproximam dos números do tráfico atlântico? Além da falta
de registros, da falta de página nos livros por problemas de conservação, é bom lembrar
que esses indivíduos estavam chegando e ainda não possuíam inserção social na
paróquia, da mesma forma que não se filiaram imediatamente a uma das irmandades de
pretos para que tivessem o sepultamento em uma das igrejas dessas irmandades, ou em
qualquer outra da cidade desde que tivesse como arcar com a despesa da inumação na
rede paroquial.
Diante desta dificuldade de inserção nas redes de sociabilidade da freguesia
aqui estudada, restariam aos mortos dessa condição os cemitérios fora dos templos,
como o da Santa Casa da Misericórdia e o dos Pretos Novos. Até 1722, os escravos
recém-chegados do tráfico que morriam na cidade eram sepultados no cemitério que

85
BOXER, Charles R. A Idade de Ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 69; SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor... p. 74.
86
Mariza Soares observa que novas dificuldades foram impostas ao comércio com a Costa da Mina no
decorrer do setecentos. A partir de 1730, as viagens para a Costa da Mina só podiam ser feitas com
autorização prévia do vice-rei, limitando assim mais uma vez o comércio entre a Costa da Mina e os
portos do Estado do Brasil. Mas essa medida não conseguiu conter o comércio clandestino. É possível
que diante dessa situação ele tenha aumentado, pois de acordo a autora, nos trinta anos anteriores esse
comercio já havia alcançado cifras alarmantes para a metrópole. Entre 1734-35, o contrabando de ouro do
Brasil para troca de escravos na Costa da Mina atingiu “proporções escandalosas”. Foram descobertas as
operações de uma companhia clandestina com representantes influentes sediados na Bahia, Pernambuco,
Rio de janeiro, Sacramento, São Paulo e Ilha de São Tomé, em que o próprio ouvidor estava envolvido
como principal acusado. Tal situação demonstra o quanto era frágil o controle metropolitano sobre o
comércio de diversos produtos coloniais especialmente aqueles mais valiosos, como ouro e escravos, uma
vez que os próprios funcionários da Coroa que deveriam combater a clandestinidade e o descaminho eram
os principais envolvidos na ilegalidade. Cf. SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor... pp. 74 e 82
123

existia detrás do hospital da Santa Casa da Misericórdia. Com o aumento do tráfico, foi
criado um cemitério específico para esse grupo social no Largo de Santa Rita, em 1722
e ali esteve até 1774 87, quando foi transferido para a área por trás da Praia do Valongo,
por ocasião da transferência do mercado de escravos para lá, durante a gestão do
Marques do Lavradio (1769-1779). 88 A questão é que os registros de óbitos deste
cemitério para os primeiros anos de sua existência no Largo de Santa Rita ainda não
foram encontrados. Existem alguns poucos registros para o ano de 1776 no Arquivo
Geral da Cidade do Rio de Janeiro, mas está impedido de se pesquisar. Para o período
do Valongo, os livros estão interditados no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de
Janeiro. No site dos mórmons é possível encontrar um livro de 1812 a 1818, um outro
livro de 1824 a 1830 e umas dez páginas soltas correspondentes ao ano de 1829.
Infelizmente, não foi possível fazer uso desse material até esse momento por falta de
tempo para a sua coleta. Por este motivo, eles ainda não serão considerados nessa etapa
da pesquisa. Mas acredito que essa pode ser uma explicação para a reduzida quantidade
de africanos nos livros de assentamentos de óbito da freguesia da Sé, uma vez que havia
outros locais de sepultamento de escravos e, principalmente de escravos recém-
chegados do tráfico, na cidade.
A presença dos poucos africanos centro ocidentais nos registros de batismo
do Rio de Janeiro significa que mesmo após a criação do bispado de Angola, a partir do
final do século XVII – quando os africanos embarcados no porto de Luanda deveriam
ser obrigatoriamente batizados antes de entrarem a bordo dos tumbeiros –, alguns
poucos africanos centro ocidentais não eram batizados na África. Diante das dúvidas se
haviam sido ou não batizados antes, eram levados a batismo sub conditione no Rio de

87
Carta de Lei do Marquês do Lavradio. Rio de Janeiro, 12 de abril de 1774. Arquivo Nacional do Rio de
Janeiro, Códice 70, v.7, p. 231. Cf. HONORATO, Cláudio de Paula. Valongo: o mercado de escravos do
Rio de Janeiro de 1758 a 1831. Dissertação de Mestrado. Niterói – PPGH/UFF 2008, p.p. 73-4.
88
RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres
no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de
Documentação. Coleção Biblioteca carioca. 1997, p. 68-70; PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. À
flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond: IPHAN, 2007;
BRAVO. Milra Nascimento. Hierarquias na morte: uma análise dos ritos fúnebres católicos no Rio de
Janeiro (1720-1808). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, 2014. Infelizmente, não foi possível fazer uso desse material por falta de tempo para a sua coleta.
Por este motivo, eles não serão considerados nessa pesquisa, p. 68-70; BRAVO. Milra Nascimento.
HIERARQUIAS NA MORTE: Uma análise dos ritos fúnebres católicos no Rio de Janeiro (1720-1808).
Dissertação de mestrado – PPGH/UNIRIO, 2014; HONORATO, Claudio de Paula. Valongo: o mercado
de almas da praça carioca. Curitiba: Appris, 2019, pp. 90-98
124

Janeiro. O que indicaria que esses indivíduos não foram embarcados no porto de
Luanda, segundo Carlos Eugênio Líbano Soares 89.
O segundo período analisado por Líbano Soares, de 1725 a 1730, apresenta
uma amostragem bastante reduzida com apenas 5 africanos ocidentais que corresponde
a 83,3%, todos do gentio da mina. Da África Centro Ocidental veio um indivíduo
apenas, de origem Benguela correspondendo a 16,7%. Já no terceiro e último período
analisado pelo autor, entre 1734 e 1744, de um total de 129 batizados, os africanos
ocidentais representavam 96,1% contra os centro ocidentais que representavam 3,1%,
todos vindos de Angola. Entre os ocidentais os minas representavam 83,9%, Cabo
Verde 14,5%, dois do gentio da Guiné que o autor soma com os africanos ocidentais
que representavam 1,6%, um coura ou courá, que representava 0,8%. O autor o separou
dos africanos ocidentais, pois segundo ele, esses escravizados quase não apreciam no
registro da escravidão no Rio e na Bahia. Sua hipótese é que esses cativos eram
oriundos do comércio clandestino entre os ingleses e os negociantes mineiros nos
primórdios do século XVIII e que tais indivíduos vinham da região de Coromanty (ver
mapa 11 nesse capitulo), perto da feitoria inglesa de Cape Cost 90.
Em nossa amostragem aparece apenas um courano que consideramos
oriundo da Costa da Mina. Luís Mott, apoiando-se em Pierre Verger, afirmou que os
couras habitavam a lagoa de Curamo, nos arredores da atual cidade de Lagos, localizada
no sudeste da Nigéria, no Golfo da Guiné 91. Mariza Soares observou que os Couras
faziam parte dos pequenos grupos oriundos da Costa da Mina, e que provavelmente
tanto eles quanto os Mahis eram embarcados em Ajudá e Janquem (ver Mapa 12) 92. De
acordo com Moacir Maia, courá ou courano era o aportuguesamento do nome Hula,
nome do grupo principal que habitava o Golfo do Benim, na África Ocidental. Eles
vinham da região da Costa da Mina, muitas vezes eram identificados de forma genérica
como minas ou mais especificamente como mina courano ou mina coura especialmente

89
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Uma porta para o mundo atlântico: africanos na freguesia da
Candelária da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, século XVIII. Revista do Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro. n.9, 2015, p.49-62. pp. 51 e 52.
90
Idem., p. 53
91
MOTT, Luís. Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1993. p. 14.
92
SOARES. Mariza de Carvalho. Mina, Angola e Guiné: Nomes d’África no Rio de Janeiro Setecentista.
Tempo, Vol. 3 - n° 6, dezembro de 1998. p.7; SOARES. Mariza de Carvalho. A “nação” que se tem e a
“terra” de onde se vem: categorias de inserção social de africanos no Império português, século XVIII.
Estudos Afro- Asiáticos, Ano 26, no 2, 2004, pp. 303-330. p. 309; cf. também PINHEIRO, Fernanda
Aparecida Domingos. Confrades do Rosário: sociabilidade e identidade étnica em Mariana. Dissertação
de Mestrado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2006. Especialmente o capítulo quatro
125

em Minas Gerais 93. Esse início do século XVIII foi um período de intensos conflitos na
Costa dos Escravos 94. A crescente presença de holandeses, ingleses e franceses na
região durante a segunda metade do século XVII e a concorrência comercial entre eles,
centrada, sobretudo no tráfico de cativos africanos, provocou uma transformação
político-econômica sem precedentes na Costa da Mina, que resultou no fim do poder
hegemônico de Ardra (Allada) 95 e a ascensão de Ajudá, a partir de 1680. Os negociantes
de Ajudá e Porto Novo não concediam monopólio aos europeus e, por isso, portugueses
e holandeses, acostumados ao exclusivismo, preferiam negociar com o reino do Benim,
em Calabar, e com o Congo. 96 Durante o século XVII, o reino de Alada foi a principal
foça política da costa da África Ocidental e o principal fornecedor de escravizados da
região, perdendo sua posição somente após a ascensão do Daomé (ver Mapa 10), em
1724 97, que consolidou-se como principal fornecedor de escravizados no Golfo do

93
MAIA, Moacir Rodrigo de Castro. Africanos senhores de suas casas: a propriedade escravista entre
libertos couranos em Vila Rica e Vila do Carmo, século XVIII. XVI Seminário sobre a Economia
Mineira: repensando o Brasil. Diamantina, 15 a 20 de setembro de 2014. Centro de Desenvolvimento e
Planejamento Regional da UFMG. Cedeplar. p. 3. Disponível em:
https://diamantina.cedeplar.ufmg.br/portal/publicacoes/diamantina- 2014/ acesso em 05/07/2020
94
“Ao longo do século XVIII Alalda e Uidá tornaram-se rivais nos negócios do tráfico. Uma guerra
comercial entre os dois reinos se estabeleceu nas primeiras décadas do século XVIII. a fase mais crítica
desse conflito foi entre 1705 e 1712. Nesse período o Golfo do Benim assistiu a Ascenção do reino do
Daomé. Reino interiorano que se alimentava do banditismo e das razias sobre os reinos vizinhos. No final
de 1715 já em rebelião aberta contra Alada, o Daomé decidiu assumir o protagonismo das transações
comerciais com os europeus. No alvorecer da década de 1720 avançou contra os seus dois principais
adversários políticos e comerciais no Golfo do Benim. Conquistou Alada em 1724, e três anos depois
avançou sobre Uidá, estabelecendo-o como o seu principal porto de comércio. Jakin e Weme organizaram
tentaram uma coalização contra o Daomé. Buscaram arregimentar outros povos, massa tentativa
malogrou. Jakin foi atacada em 1732 e totalmente destruída em 1734. O Daomé tornou-se o senhor do
tráfico na região. Na segunda metade da década de 1720 foi vez do reino de Oyó lançar uma série de
ataques contra o reino do Daomé. Suas incursões em território domeano duraram até 1747, quando os
dois reinos celebraram um acordo de paz em que o reino do Daomé passou a pagar tributos ao reino de
Oyó. Cf. SILVA JR, Carlos da. Ardras, Minas e Jejes, ou escravos de “primeira reputação”: políticas
africanas, tráfico negreiro e identidade étnica na Bahia do século XVIII.” Revista Almanack. Guarulhos,
n.12, jan./abr. 2016 p.6-33, pp. 16-7; SILVA JR, Carlos da. Interações Atlânticas entre Salvador e Porto
Novo (Costa da Mina) no século XVIII. Ver. Hit. (São Paulo), n. 176, a 02716, 2017
95
De acordo com Luís Nicolau Parés, “Arda” designava o centro comercial onde os escravos tinham sido
vendidos pelos portugueses. Da mesma forma que mina, “arda” ou “arada” foram denominações
metaétnicas elaboradas a partir do nome do lugar de procedência comercial. “Arada” não designava
necessariamente uma população indígena desse reino. PARÉS, Luís Nicolau. A formação do Candomblé:
história e ritual da nação jeje na Bahia. 2ª ed. rev. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007, p. 44;
Segundo Labat, “os aradas são os melhores escravos que podem ser comprados nos reinos de Juda[Uidá]
e Adres [Allada]; mas não devem ser confundidos com os naturais de Adres, eles não vem desse reino.
São trazidos a Juda de um país que fica a umas 150 léguas ao nordeste”. Cf. LABAT, Jean-Baptiste
(1663-1738). Voyage du chevalier Des Marchais en Guinée, isles voisines, et a Cayénne : fait en 1725,
1726 et 1727... ([Reprod.]) par le R.P. Labat, 1730. Tomo II, p. 125; O reino Ardra era também conhecido
por Allada, Alada
96
SOARES, Mariza de Carvalho. Os Devotos da cor, p. 78-85
97
SOUMONNI, Elisée. Daomé e o mundo atlântico. Published by the South-South Exchange Programme
for Research on the History of Development (SEPHIS) and the Centro de Estudos Afro-Asiáticos,
Universidade Candido Mendes, Brazil. Amsterdam/Brazil, 2001, p. 39. Em 1724, o reino do Daomé
conquistou o reino Alada e em 1727 conquistou o reino de Hueda. Além disso, mudou a relação com os
126

Benim. Através do “banditismo” e das razias contra os reinos vizinhos, o Daomé


fornecia uma quantidade significativa dos cativos exportados através de Alada e Ajudá
para as Américas 98.
Mapa 10 - Baía de Benin século XVIII

Fonte: REDIKER, Marcus. O navio negreiro: uma história humana. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011, p. 100.

europeus, já que havia destruído o porto de Jakin, rival de Uidá, Ajudá, em 1732. Alexandre Ribeiro
afirma que esta expansão do reino do Daomé desarticulou as redes que levavam escravos do interior para
a costa, prejudicando os negociantes baianos. Cf. RIBEIRO, Alexandre Vieira. A cidade de Salvador:
estrutura econômica, comércio de escravos e grupo mercantil. Tese de doutorado Rio de Janeiro: UFRJ,
Programa de Pós-graduação em História, 2005. p. 77
98
SILVA JR, Carlos da. Ardras, minas e jejes, ou escravos de “primeira reputação”: políticas africanas,
tráfico negreiro e identidade étnica na Bahia do século XVIII. Almanack. Guarulhos, n.12, pp. 15 e 17.
Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2236-46332016000100006.
Acesso em: 15 de nov. 2019.
127

Mapa 11 – Costa do Ouro, séculos XVII e XVIII

Fonte: http://www.costadamina.ufba.br/index.php?/conteudo/exibir/11.

Mapa 12 – Costa dos Escravos, séculos XVII e XVIII

Fonte: http://www.costadamina.ufba.br/index.php?/conteudo/exibir/11. Acesso em: 15


de nov. 2019
A grande expansão do reino do Daomé sobre o reino Ardra na década de
1720, ocorreu numa guerra que gerou muitos prisioneiros enviados para o tráfico
128

atlântico como escravizados. Foi no curso desse conflito que o Daomé guerreou contra
os makis 99. Joseph Laport, no relato O Viajante Universal, descreve que o comércio
praticado pelo reino Ardra consistia em escravos e provisões. Eram deportados
anualmente deste reino pelos europeus cerca de três mil cativos. Uma parte destes eram
prisioneiros de guerra, outros vinham das províncias vizinhas em forma de tributos. Há
ainda aqueles que eram réus aos quais foi comutada a pena de desterro perpetuo. Outros
nasceram na escravidão, ou seja, eram filhos de escravizados. Por último, os devedores
insolventes, que eram vendidos em benefício dos seus credores 100. Uma parte desses
escravizados traficados através do porto de Ajuda, entre os anos de 1720 e 1727, eram
enviados para a Bahia e para o Rio de Janeiro. Entre estes estão as primeiras levas de
daomeanos que vieram para o Brasil 101. Ao descrever o comércio do reino de Ardra,
Joseph Laport fornece importantes informações sobre o processo de escravização na
África que confirmam aquilo que já está consolidado pela historiografia 102.

99
POLNYI, karl. Dahomey and the slave trade. An Analysis of an archaic economy. Washington.
University Washington Press, 1968. p. 138. Apud SOARES, Mariza de Carvalho. Os Devotos da cor. p.
78
100
LAPORTE, J. O viajante universal, ou Noticia do Mundo antigo e moderno. Lisboa: Typografia
Rollandiana, 1798. Volume 13, p. 147.
101
SOARES, Mariza de Carvalho, op. Cit. 2000, p.79; SILVA JR, Carlos da. Op. Cit. P. 17.
102
Sobre o processo de escravização na África cf. FINLEY, Moses I. Escravidão Antiga e ideologia
moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1991, pp. 88-9; LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história
de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; MEILLASSOUX, Claude.
Antropologia da escravidão. O ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995;
THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico. Rio de Janeiro,
Elsevier/Campos, 2004; SILVA, Alberto da Costa e Silva. A Manilha e o Libambo. A África e a
escravidão 1500 a 1700. Rio de janeiro: Nova fronteira, 2007; MILLER, Joseph C. Way of Death
Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade 1730-1830. The University of Wisconsin Press. 1988;
CANDIDO, Mariana Pinho. Fronteras de esclavización: esclavitud, comercio e identidad en Benguela,
1780-1850. Colegio de México, Centro de Estudios de Asia y África, 2011; . An African slaving port and
the Atlantic world: Benguela and its Hinterland. Cambridge University Press. 2013
129

Mapa 13 – Visão geral do comércio transatlântico de escravos, apresentando


principais regiões fornecedoras de cativos 1501-1867

Fonte: Atlas of the Transatlantic Slave Trade. Por David Eltis and David Richardson,
Yale University Press – New Haven & London. 2015, p. 18 e 19.

A partir do quadro 2, organizado por décadas e do quadro 2.1 organizado


por intervalos dos livros de registro de óbitos é possível acompanhar a evolução das
informações sobre a divisão sexual da população escravizada na cidade do Rio de
Janeiro, por ocasião da morte, ao longo do século XVIII e da primeira metade do século
XIX. Tais dados nos revelam não só o perfil sexual da população escravizada e liberta
como o seu perfil demográfico e geográfico, uma vez que através de tais registros são
reveladas as regiões de procedência africana dos diferentes grupos presentes na cidade
no período estudado, assim como aqueles nascidos na Colônia e no Império. Podemos
perceber que o número de mulheres é superior ao número de homens em quase todos os
períodos, considerando o total de mulheres e o total de homens em relação a soma dois
segmentos observamos que as mulheres representam 54,6% e os homens 45,4%. A
partir dessa amostragem é possível saber também entre as regiões da África em quais
grupos de procedência há maior ou menor predominância do número de mulheres ou
homens. Tanto no quadro 2 quanto no 2.1 observamos que na África Ocidental há uma
predominância das mulheres em relação ao número de homens sendo a maior
130

predominância numérica entre os Minas, sendo 153 mulheres para 127 homens. Já entre
os Calabar, o número de homens é maior que o número de mulheres e, embora seja um
número pequeno comparado aos Minas, observamos 5 homens para cada mulher.
Essa diferença numérica é percebida tanto no quadro 2, organizado por
décadas, quanto no quadro 2.1, por intervalos de livros. Na década de 1820, por
exemplo, são 10 homens para 1 mulher, embora na década de 1840 essa diferença
diminua para uma média de 2 homens para cada mulher. Entre os africanos centro
ocidentais quando olhamos para o total óbitos percebemos que há um equilíbrio entre o
número de homens e de mulheres, mas quando olhamos para os grupos de procedência
percebemos que na maioria deles o número de mulheres é maior que o de homens. Dos
quinze grupos de procedência vindos dessa região, em dez deles o número de mulheres
é maior que os números de homens. Entre os maiores grupos, por exemplo, a
predominância do número de mulheres entre os angolas, benguelas cassange e rebolo. Já
entre os congos, luandas e cabindas prevalecia a superioridade dos homens sobre as
mulheres. Entre os africanos orientais predominava o número de homens em todos os
grupos, com destaque para os moçambiques, onde o número de homens representava
65,7% contra 34,3% das mulheres.
Ao analisar os registros de óbitos da freguesia da Candelária no período de
1724 a 1736, Flavio gomes encontrou 360 óbitos de escravizados, sendo 192 do sexo
masculino e 168 do sexo feminino, apenas entre os minas o número de mulheres era
maior que o número de homens, sendo o percentual de mulheres de 60,9% e o de
homens de 39,1%. Para o período de 1793 a 1800, o autor encontrou 87 registros de
óbitos, sendo 51 do sexo masculino e 36 do sexo feminino. O número de homens é
superior ao número de mulheres nas três regiões de procedência, África Ocidental,
África Centro Ocidental e África Oriental 103. Ao analisar os registros de óbitos, também
da freguesia da Candelária, no período de 1724 a 1736, Mariza Soares encontrou um
total de 323 registros, sendo 176 do sexo masculino e 147 do sexo feminino, o que
demonstra a superioridade de homens sobre as mulheres. Somente entre os minas o
número de mulheres é superior ao número de homens, sendo este de 55,7% e o de
homens de 44,3% 104.

103
GOMES, Flavio. Demografia Atlântica dos africanos no Rio de Janeiro... pp. 90, 91-93.
104
SOARES, Mariza de Carvalho. Os devotos da cor... p. 151
131

Quadro 2. Presença de africanos e crioulos, conforme SEXO, POR DÉCADA


1701- 1731- 1741- 1751- 1771- 1781- 1791- 1801- 1811- 1821- 1831- 1841-
NAÇÃO TOTAL
1710 1740 1750 760 780 1790 1800 1810 1820 1830 1840 1850*
F M F M F M F M F M F M F M F M F M F M F M F M F M
Cabo verde - - - - - 1 2 1 - - - - - - - - - - - - - - - - 2 2
Calabar - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 10 1 7 3 8 5 25
Cobu - - - - - - 1 - - - - - - 1 - - - - - - - - - - - 1
Courana - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1
Mina - 1 3 2 5 2 18 12 4 3 2 - 7 4 31 10 11 3 27 32 31 32 14 26 153 127
Nago - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 1 - 1 1
São Tomé - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 - - - - 1
TOTAL ÁFRICA OCIDENTAL - 1 3 2 5 3 21 13 4 3 2 7 5 31 10 11 3 28 42 33 40 18 34 161 158
Angola - - - - - - 17 12 1 - 2 1 12 13 7 4 3 1 16 14 12 13 18 14 88 72
Benguela - - 5 3 1 1 9 8 4 2 1 3 6 4 17 19 8 12 44 40 53 28 43 23 191 143
Camundongo - - - - - - - 1 - - - - - - 3 1 - - 1 1 1 - - 1 5 4
Cassange - - - - - - - - - - - - - - 1 2 1 1 8 4 6 6 8 8 24 21
Ganguela - - - - 1 1 3 2 - - - - 1 - 6 3 - 2 6 6 - - - - 17 14
Luanda - - - - - - - - - - - - - - - 1 - - - - - - - - - 1
Quissama - - - - - - - - - - - - - - 4 1 3 3 4 1 1 - 2 4 14 9
Rebolo - - - - - - 1 1 1 - - - - - 5 5 9 4 24 20 13 9 16 8 69 47
Congo - - 1 - - - 1 2 - - - - 1 5 9 11 4 6 19 29 13 27 20 25 68 105
Ambaca - - - - - - 1 - - - - - - - - - - - - - 1 - - - 2 -
Cabinda - - - - - - - - - - 1 - - 4 5 4 3 19 40 21 28 15 22 63 99
Loango 2 2 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 2
Mofumbe - - - - - - - - - - - - - - 1 - 5 1 7 3 1 - 1 1 15 5
Monjolo - - - - - - - - - - - - - - - 4 - 5 3 11 4 16 3 8 10 44
Songo - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 1 1 1 1 1 - 3 3
TOT. ÁFR. CENTRO - 2 6 5 2 2 32 26 6 2 3 5 20 22 57 56 37 39 152 170 127 128 127 114 569 569
OCIDENTAL
Inhambane - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 3 3 3 4 6
Moçambique - - - 1 - - - - - - - - - - - - - 1 8 20 15 20 14 29 37 71
Quilimane - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 - 1 - 1 - 3
TOTAL ÁFRICA ORIENTAL - - - 1 - - - - - - - - - - - - - 1 8 21 16 24 17 33 41 80
Baca - - - - - - - - - - - - - - 1 - - - - - - - 1 1 1
132

Marimba - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 - - 1 - - - - 2
Moange - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 - - 1 - - 2
Mocosso - - - - - - - 1 - - - - - - - - - - - - - - - - - 1
Mugungo - - - - - - - - - - - - - - 1 - - - - - - - - - 1
TOTAL DE INDETERMINADAS - - - - - - - 1 - - - - - - 1 1 - 1 8 1 1 - 1 1 1 7

GUINÉ/ GENTIO DA GUINÉ - - 4 3 3 2 8 6 - - 1 1 3 - - 3 - - - - - - - - 19 15


CRIOULO - - 1 1 1 - 19 8 6 1 4 6 36 19 43 25 70 24 286 182 391 297 261 175 1116 742
S/REF. - - - - - - - - - - - 1 - 7 2 30 9 192 182 23 27 18 17 271 238
TOTAL - 3 14 12 11 7 80 54 16 6 10 12 67 46 139 97 148 77 674 598 591 516 442 374 2178 1809

FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).

Quadro 2.1. Presença de africanos e crioulos, conforme SEXO, POR LIVRO


1701- 1737- 1746- 1776- 1790- 1797- 1812- 1819- 1824- 1828- 1830- 1833- 1837- 1840- 1843-
TOTAL
NAÇÃO 1710 1740 1758 1784 1797 1812 1819 1824 1828 1830 1833 1837 1840 1843 1861*
F M F M F M F M F M F M F M F M F M F M F M F M F M F M F M F M
Cabo verde - - - - 2 2 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 2 2
Mina - 1 3 2 23 14 4 3 7 2 35 12 6 2 16 13 6 9 5 7 14 6 10 17 9 8 7 18 8 13 153 127
São Tomé - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 - - - - - - - 1
Calabar - - - - - - - - - - - - - - - 4 1 4 - 2 - 5 1 - - 1 3 3 - 6 5 25
Nago - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 - - - - - - 1 - 1 1
Cobu - - - - - - - - - 1 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1
Courana - - - - 1 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 -
TOTAL ÁFRICA OCIDENTAL 1 3 2 26 16 4 3 7 3 35 12 6 2 16 17 7 13 5 9 14 12 11 18 9 9 10 21 9 19 162 157
Angola - - - - 17 12 2 1 13 13 7 4 3 1 8 5 6 3 2 3 4 6 4 5 3 5 6 3 13 11 88 72
Benguela - - 5 3 10 9 4 4 6 5 19 20 7 10 19 19 11 17 11 4 30 8 16 8 5 8 22 15 26 13 191 143
Camundongo - - - - - 1 - - - - 3 1 - - - 1 1 - - - 1 - - - - - - 1 - - 5 4
Cassange - - - - - - 1 2 1 1 2 3 2 1 4 - 2 3 2 2 2 1 3 1 5 7 24 21
Ganguela - - - - 4 3 - - 1 - 6 3 - 2 3 4 3 2 - - - - - - - - - - - - 17 14
Luanda - - - - 1 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 -
Quissama - - - - - - - - - - 5 3 1 1 4 - 1 1 - - - - - - 1 - 1 3 1 1 14 9
133

Rebolo - - - - 1 1 1 - - - 5 6 8 2 13 13 5 5 5 2 8 7 2 2 3 1 12 3 6 5 69 47
Congo - - - - 1 2 - - 1 3 10 13 2 6 8 14 5 6 6 9 5 6 6 15 2 5 7 12 14 14 68 105
Ambaca - - - - 1 - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 - - - - - - - 2 -
Cabinda - - - - - - - - - 1 5 5 3 3 6 15 6 11 6 8 11 19 6 8 3 4 8 17 9 8 63 99
Loango - 1 - 1 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 2
Mofumbe - - - - - - - - - - 1 - 5 1 2 2 4 1 1 - 1 - - - - - 1 1 - - 15 5
Monjolo - - - - - - - - - - - 4 - 4 1 6 - 1 2 5 4 7 - 6 - 3 2 5 1 3 10 44
Songo - - - - - - - - - - - 1 - - 1 - - - - - - 1 - - 1 1 1 - - - 3 3
TOT. ÁFR. CENTRO - 1 5 4 35 28 7 5 21 22 62 62 30 31 67 82 44 48 37 31 66 57 37 46 20 28 63 61 75 62 570 568
OCIDENTAL
Inhambane - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 - - 1 - 2 - - 3 3 4 6
Moçambique - - - 1 - - - - - -- - - - 1 3 8 1 4 4 7 7 6 2 10 5 4 11 12 4 18 37 71
Quilimane - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 - - - - - - - 1 - 1 - - - 3
TOTAL ÁFRICA ORIENTAL 1 1 3 8 1 5 4 7 8 6 2 11 5 7 11 13 7 21 41 80
Baca - - - - - - - - - - 1 - - - - - - - - - - - - - - - - 1 - - 1 1
Marimba - - - - - - - - - - - - - - - 1 - - - - - 1 - - - - - - - - - 2
Moange - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 - - - - - - - 1 - - - 2
Mocosso - - - - - 1 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1
Mugungo - - - - - - - - - - - 1 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1
TOTAL DE INDETERMINADAS 1 1 1 1 1 3 9 1 5 4 7 8 7 2 11 5 7 11 15 7 21 42 87
GUINÉ/ GENTIO DA GUINÉ - - 4 3 11 8 1 2 1 - 2 3 - - - - - - - - - - - - - - - - - - 19 15
CRIOULO 1 1 20 8 10 2 29 22 62 28 51 22 59 35 88 44 117 87 195 136 111 80 79 70 180 140 117 56 1119 739
S/REF. - - - - - - - - - - 9 3 29 9 - - 104 106 88 76 - - 6 4 17 23 3 - 15 25 271 238
TOTAL 2 13 11 92 61 22 12 58 47 171 109 116 65 145 143 244 216 251 210 283 212 167 159 130 137 267 237 223 183 2183 1804

FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
134

Destacamos nessa amostragem que o número de crioulos cresce


exponencialmente, a partir da década de 1820, mais precisamente o número de crioulas:
de um total de 1858 o número de mulheres é igual a 1116 contra o número de homens
que é igual a 742. Observamos que entre os livres e libertos sem referência à condição
jurídica e cor ligada à escravidão o número de mulheres também é superior ao número
de homens. Mariza soares agregou também as informações dos registros referentes a
outras denominações existentes no Brasil, sendo estas: crioulos, pardos, escravos,
cabras, ladino, preto e forro. Neste caso, há uma mudança no resultado da amostragem
em relação ao número de homens e mulheres. O número de mulheres sepultadas sobe
para 251, enquanto o número de homens passa para 248 105. O que revela um possível
equilíbrio entre os sexos na população escrava e liberta na freguesia da Candelária.
A tabela 15 (organizada por décadas) e 15.1 (organizada por intervalos de
livros) apresentam os dados comparativos da população africana por sexo e
procedência. A partir dessas informações, podemos observar que, enquanto na
população africana feminina e masculina ocorre um equilíbrio demográfico, entre os
nascidos na colônia e império a população feminina supera a população masculina. Ao
analisar os registros de óbitos da freguesia Sé, Ingrid Ferreira de Sousa observou que as
dinâmicas da escravidão tendiam à superioridade feminina em termos do perfil
demográfico da população africana escravizada e liberta. Ao longo do século XVIII, a
presença feminina, embora variável, era predominantemente superior à masculina no
interior da população africana. Tal tendência se dava também entre os nascidos na
colônia. Em todos os períodos analisados o número de mulheres era superior ao de
homens, confirmando que, senão na urbe carioca, ao menos na freguesia da Sé, havia
maior acesso à mão-de-obra escravizada feminina, africana e/ou crioula.

105
256 SOARES, Mariza de Carvalho. Os devotos da cor. Op. Cit. P. 151.
135

Tabela 15 - Presença africana na população negra feminina e masculina, por


DÉCADA
Mulheres negras* Homens negros*
Nascidas na Nascidos na
Décadas Africanas Africanos
colônia colônia
# % # % # % # %
1701-1710 0 0,0% 0 0,0% 2 0,2% 0 0,0%
1731-1740 13 1,2% 1 0,1% 10 0,9% 1 0,1%
1741-1750 10 0,9% 1 0,1% 7 0,7% 0 0,0%
1751-1760 61 5,7% 19 1,7% 46 4,3% 8 1,1%
1771-1780 10 0,9% 6 0,5% 5 0,5% 1 0,1%
1781-1790 6 0,6% 4 0,4% 6 0,6% 6 0,8%
1791-1800 31 2,9% 36 3,2% 27 2,5% 19 2,6%
1801-1810 97 9,1% 43 3,8% 71 6,7% 25 3,4%
1811-1820 78 7,3% 70 6,3% 53 5,0% 24 3,2%
1821-1830 380 35,7% 286 25,6% 416 39,1% 182 24,6%
1831-1840 198 18,6% 391 34,9% 221 20,8% 297 40,2%
1841-1850 180 16,9% 262 23,4% 200 18,8% 176 23,8%
TOTAL 1064 100,0% 1119 100,0% 1064 100,0% 739 100,0%

FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de


Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).

Tabela 15.1- Presença africana na população negra feminina e masculina, por livro

Mulheres negras* Homens negros*


Nascidas na Nascidos na
Décadas Africanas Africanos
colônia colônia
# % # % # % # %
1701-1710 0 0,0% 0 0,0% 2 0,2% 0 0,0%
1737-1740 13 1,2% 1 0,1% 10 0,9% 1 0,1%
1746-1758 71 6,7% 20 1,8% 53 5,0% 8 1,1%
1776-1784 12 1,1% 10 0,9% 9 0,8% 2 0,3%
1790-1797 29 2,7% 29 2,6% 25 2,3% 22 3,0%
1797-1812 110 10,3% 62 5,5% 81 7,6% 28 3,8%
1812-1819 65 6,1% 51 4,6% 43 4,0% 22 3,0%
1819-1824 86 8,1% 59 5,3% 108 10,1% 35 4,7%
1824-1828 156 14,7% 88 7,9% 172 16,2% 44 6,0%
1828-1830 134 12,6% 117 10,5% 124 11,6% 87 11,8%
1830-1833 88 8,3% 195 17,4% 76 7,1% 136 18,4%
1833-1837 56 5,3% 111 9,9% 79 7,4% 80 10,8%
1837-1840 51 4,8% 79 7,1% 67 6,3% 70 9,5%
1840-1843 87 8,2% 180 16,1% 97 9,1% 140 18,9%
1843-1861 106 10,0% 117 10,5% 119 11,2% 64 8,7%
TOTAL 1064 100,0% 1119 100,0% 1065 100,0% 739 100,0%
136

FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de


Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).

Ingrid Souza se questiona até que ponto isso seria resultado das preferências
dos senhores cariocas ou simplesmente resultado da dinâmica do mercado de almas da
praça carioca, uma vez que a mão-de-obra escravizada masculina era mais cobiçada
entre os proprietários escravistas dos engenhos do Recôncavo da Guanabara, além
daqueles que eram encaminhados para Minas Gerais 106. Gostaria de frisar que há uma
significativa diferença entre os nossos dados e os de Ingrid. O que explica essa
diferença é que ela trabalhou apenas com o século XVIII, em um momento em que o
banco de dados estava em fase inicial. Além disso, ela unificou os registros com
condição jurídica como livres, libertos, forros e livres com ascendência negra; da
mesma forma que partiu alguns livros para atender às especificidades de sua análise.
Tais aspectos metodológicos tornaram sua amostragem bem diferente em termos dos
valores totais e percentuais comparativamente aos nossos. Mas apesar dessas diferenças
ao analisarmos os nossos dados apenas para o século XVIII percebemos que entre os
africanos a população feminina era superior à população masculina em quase todos os
períodos, sendo o número de homens superior ao número de mulheres apenas em 1701-
1710. Na década de 1781-1790 o número de homens mortos é igual ao número de
mulheres. No entanto, no total de sepultamentos para o século XVIII, o número de
mulheres é bem superior ao número de homens: são 306 registros de óbitos femininos
contra 106 masculinos. Somente ao atingir a década de 1821-1830 é que o número de
registros de óbitos masculinos supera os femininos. Mas como já vimos, no total geral
para todo período estudado o número de homens é igual ao total de mulheres.
Ao comparamos os dados produzidos por Mariza Soares e Flavio Gomes
para os africanos escravizados na freguesia da Candelária referentes aos registros
paroquias de óbitos os resultados são muito parecidos aos que analiso aqui na minha
amostragem. O que confirma a tendência do tráfico atlântico não só em relação à
superioridade numérica da população masculina em relação à feminina como também às
áreas de procedência dos africanos traficados para cidade ao longo do século XVIII. Ou
seja, mantendo supremacia numérica dos africanos centro ocidentais do tronco
linguístico banto, com destaque para os angolas. Nossa amostragem confirma as três

106
SOUZA, Ingrid Ferreira de. Os libertos da Sé... p. 47.
137

grandes regiões de procedência africana para o século XVIII e XIX, com destaque para
os benguelas, com uma forte presença dos congos e dos angolas e no século XIX
também dos cabindas e, a partir de 1811, destaque para a África Oriental, especialmente
para os moçambiques. Assim arisco a dizer que a composição da população escravizada
e liberta, para além dos efeitos do tráfico atlântico, variava de acordo com a época e
especificidades locais.
138

CAPÍTULO – 3 –

Irmandades de pretos africanos e seus descendentes: espaços de construção das


sociabilidades

Rio de Janeiro é um verdadeiro formigueiro de negros. Essa


concentração funesta traz consigo o constante perigo de uma
rebelião. Contra tal inconveniente, a solução encontrada pelos
portugueses foi adquirir escravos de diferentes proveniências e
utilizar a oposição entre seus caracteres para controla-los 1.

Foi com essa expressão “Rio de Janeiro é um verdadeiro formigueiro de


negros” que o oficial de um navio francês aportado no Rio de Janeiro em 1748
descreveu a população da cidade. Os diversos viajantes europeus que visitaram o Rio de
Janeiro durante o período colonial e imperial deixaram impressão semelhante à deste
oficial que também é compartilhada pelas autoridades portuguesas responsáveis pela
administração colonial e por vários letrados na colônia e no império.
Ao chegar em Pernambuco em 1768, o vice-rei Marquês de Lavradio ficou
impressionado com a grande multidão de negros e mulatos presentes na cidade. Seriam
tantos que, segundo ele, era impossível “descobri algum branco [...] que
verdadeiramente o fosse” 2. Tempos depois, em 1779, ao entregar o governo do Estado
do Brasil a seu sucessor, Luiz de Vasconcelos e Souza, o vice-rei fez questão de
mencionar em seu relatório que a maioria dos habitantes do Rio de Janeiro era composta
de negros, mulatos e mestiços. “maior parte dos mesmos povos de gente de pior
educação, um caráter o mais libertino, como são os negros, mulatos, cabras e
mestiços” 3.
Os levantamentos populacionais produzidos em 1779, 1779-1789 e 1799 4
confirmam as informações fornecidas pelos relatórios dos vice-reis e os relatos dos

1
ANÔNIMO. Relâche du vaisseau L’Arc-em-ciel à Rio de Janeiro, apud. FRANÇA, Jean Marcel Carvalho.
Visões do Rio de Janeiro Colonial. Antologia de textos, 1531-1800, Rio de Janeiro, José Olympio, 1999.
P. 83.
2
“Carta de amizade a meu tio o arcebispo regedor em 21 de julho de 1768[...]”, em marquês de Lavradio,
Cartas da Bahia, 1768-1Ho769, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1972, pp. 33-34. Apud. LARA, Silvia
Hunold. Fragmentos Setecentistas: Escravidão, cultura e poder na América Portuguesa. São Paulo: Cia
das Letras, 2007.
3
Relatório do Marquês do Lavradio. RIHGB, tomo IV:409-486, 1842, p. p. 424,425.
4
Cf. “Resumo total da população que existia no ano de 1779, compreendidas as quatro freguesias desta
cidade do Rio de Janeiro”, RIHGB, 21 (2ª ed., 1858):216-7; “Memorias públicas e econômicas da cidade
de São Sebastião do Rio de Janeiro para uso do vice-rei Luiz de Vasconcellos por observação curiosa até
o ano de 1789”, RIHGB, 47 (1884):27-9; Resumo Total da População que existia no anno de 1799,
139

viajantes estrangeiros sobre a imensa quantidade de negros, mulatos e mestiços na


cidade do Rio de Janeiro. De acordo com o Resumo Total da População que existia no
ano de 1779. Levando-se em conta apenas as quatro freguesias centrais (Sé, Candelária,
São José e Santa Rita), 34,6% da população da cidade do Rio de Janeiro era composta
por escravos. Se a estes somássemos os 20,3% dos pretos e pardos libertos a população
não branca sobe para cerca de 55% dos habitantes da cidade.
O mapeamento geral realizado em 1779-1789 por ordem do vice-rei Luís de
Vasconcelos foi divido nas categorias livres e escravos, separando-se em cada uma os
homens e as mulheres. A categoria cor não aparece e o número de escravos já havia
subido, atingindo o percentual de 43% da população daquelas freguesias. Já no Resumo
Total da População que existia no ano de 1799, compreendendo as quatro freguesias da
cidade do Rio de Janeiro até o último dia do mês de dezembro, o índice de escravos
africanos tem uma ligeira queda, atingindo o percentual de 33,1%. A categoria cor volta
a aparecer. Assim, se somarmos aos escravos os pretos e pardos (que correspondem a
20,8% do total da população), temos o percentual 55,3%. Embora esse número não se
configure em uma imensa multidão, não podemos negar que ele é bastante significativo.
O que comprova a expressiva quantidade de africanos e seus descendentes, escravizados
e libertos a na cidade do Rio de Janeiro, a partir da segunda metade do século XVIII,
tendência que se manteria no século XIX até o fim do tráfico.
Esse formigueiro ao qual se referiu o oficial do navio francês era devido à
intensificação da chegada de vários grupos de africanos na cidade 5. Esses diferentes
grupos de africanos que ficavam na cidade do Rio de Janeiro eram encarregados dos
serviços mais variados, com destaque para o transporte de mercadorias e passageiros,
embarque e desembarque de navios, venda de alimentos, entre outros. Muitos formavam
a categoria de escravos de ganho 6, que passavam o dia inteiro na rua e só voltavam para
casa à noite para entregar o ganho diário para seu senhor pertencendo-lhe o excedente.
Muitas famílias pobres tinham às vezes em um único escravo, já idoso, a sua fonte de

compreendidas as Freguesias da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Biblioteca do IBGE.


Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/GEBIS%20-
%20RJ/RJ1799_1900.pdf. Acesso em 28 de janeiro de 2019
5
Cf. FLORENTINO, Manolo. Em costas negras ... 1992.
6
Cf. SILVA, Marilene Rosa nogueira da. O negro na Rua. A Nova Face da Escravidão. São Paulo, hucitec,
1988.
140

sustento 7. Ocupações que explicam a presença tão numerosa de cativos africanos nos
centros urbanos 8, que impressionava tanto aos europeus recém-chegados.
Para esse contingente populacional, as irmandades religiosas se
constituiriam num importante caminho de construção de sociabilidade na cidade,
agregando africanos e seus descendentes. Por meio dessas associações, se organizavam
em torno da devoção a santos católicos e de cerimônias rotineiras para a concretização
dessa devoção, para a administração da respectiva irmandade religiosa, para a obtenção
da alforria de irmãos e da realização de festas. É com base nessa estrutura de
solidariedade em vida que as irmandades dos homens de cor servirão de importante
suporte aos confrades por ocasião da doença e da morte, como analisarei no próximo
capítulo. Nesse momento, analisarei de que forma essas associações prestavam auxílio
em vida aos confrades africanos e seus descendentes e serviam de importante caminho
de solidariedade em vida.

3.1 – Irmandades de pretos africanos e seus descendentes: espaços de


sociabilidades e solidariedades
Segundo Hebe Mattos, africanos “de diversas procedências converteram-se,
fundaram irmandades, participaram de festas e construíram igrejas em devoção aos
santos católicos negros, como Santo Elesbão, Santa Efigênia, São Benedito e Santo
António do Categeró, São Benedito. Esteve presente em todo território, ao longo do
período colonial e imperial, e alcança os nossos dias. O catolicismo tornou-se também
africano ou afro-americano e no caso do Brasil pode-se falar afro-brasileiro. Para além
do patrimônio arquitetônico, as inúmeras igrejas pertencentes a irmandades de “Homens
Pretos”, como eram oficialmente chamadas, representam hoje marcos visíveis dos
africanos no conjunto da população católica 9.

7
Debret, produz um desenho de uma família pobre em casa em que uma negra velha com um barril na
cabeça, passa o dia todo carregando água nas ruas para levar para suas duas senhoras a cada noite de 6 a 8
vinténs, para garantir o sustento das três. Cf. Debret, Jean-Baptiste (desenhista), 1768-1848. Pauvre
famille dans sa Maison. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Tome deuxième. p. 39.Disponível em:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon326377/icon326377_113.jpg. Acesso em
30/12/2019
8
GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1988, p. 74-77; AMARAL, Rodrigo
de Aguiar. Nos Limites da Escravidão Urbana: A vida dos pequenos senhores de escravos na urbe do Rio
de Janeiro, c. 1800 – c. 1860.
9
MATTOS, Hebe, ABREU, Martha e GURAN Milton (Org.). Inventário dos Lugares de Memória do
Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos Africanos Escravizados no Brasil. Niterói: Programa de
Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, 2014, p, 45.
141

Após identificarmos os grupos de procedência africana que permaneceram


na cidade (especialmente na freguesia da Sé), nela viveram e morreram, propomos o
estudo sobre formas de inserção de africanos e seus descendentes na cidade e de suas
relações com a morte e o morrer pela lente das irmandades religiosas. Essas associações
religiosas foram importantes redes constituídas pelos africanos e seus descendentes e
que lhes auxiliaram por ocasião da morte. Neste terceiro capítulo buscaremos analisar
como a instituição das irmandades na cidade, juntamente com a construção de suas
capelas/igrejas, fez parte de um processo de inserção social e cultural de africanos e
seus descendentes na cidade, fundamental para a elaboração de uma rede de
sociabilidade e solidariedade tanto na vida como na morte. A partir desta análise, é
possível afirmar que a catolicização dos africanos, assim como a africanização do
catolicismo 10 foram duas faces das práticas dos cativos traficados para a cidade do Rio
de Janeiro em relação à morte.
Para isso, iniciaremos pela análise sobre algumas das associações religiosas
dos chamados homens de cor na cidade do Rio de Janeiro nas quais africanos e seus
descendentes buscariam se inserir e construir uma rede de sociabilidade. Nossa analise
será centrada especialmente nos compromissos e outros documentos históricos sobre
três dessas irmandades de pretos africanos na cidade do Rio de Janeiro: a Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, a Irmandade de Nossa
Senhora da Lampadosa e a Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia.
Evidentemente essa escolha não exclui outras irmandades de pretos da cidade que serão
também enfocadas em vários momentos do capítulo.

10
BASTIDE. Roger, As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpenetrações de
civilizações. São Paulo: Pioneira: Universidade de São Paulo, 1971; MACGAFFEY, Wyatt. Religion and
Society in Central Africa. The Bakongo of Lower Zaire. Chicago/ London: University of Chicago Press,
1986; VAINFAS, Ronaldo e SOUZA, Marina de Mello e. Catolização e poder no tempo do tráfico: o
reino do Congo da conversão coroada ao movimento antoniano, séculos XV-XVIII. Niterói: Revista de
Departamento de História da UFF, Tempo, nº 6 vol. 3, dez. 1998; SOUSA, Marina de Mello e. Reis
negros no Brasil escravista, história da festa de coroação de rei congo, Belo Horizonte, Editora UFMG,
2002; . Catolicismo Negro no Brasil: Santos e Minkisi, uma Reflexão Sobre Miscigenação Cultural.
Afro-Ásia, 28 (2002), p. 145; THORNTON, John. A África e os Africanos na formação do Mundo
Atlântico, 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. Especialmente o capítulo 9; HEYWOOD, Linda
M.; THORNTON, John K. Central Africans, Atlantic Creoles, and the Foundation of the Américas, 1585-
1660. Nova York: Cambridge University Press, 2007; SWEET, James H. Recriar África: cultura,
parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770). Lisboa: Edições 70,2007; RODRIGUES,
Cláudia. MORTE, CATOLICISMO E AFRICANIDADE NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
SETECENTISTA. Ciências Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 12, n. 12,
p. 31-52, outubro de 2010; SAPEDE, Thiago Clemêncio. Muana Congo, Muana Nzambi Ampungu:
Poder e Catolicismo no reino do Congo pós-restauração (1769-1795). Dissertação de Mestrado.
Universidade de São Paulo, 2012; SOUZA, Lana Mayer de. Entre coroas, províncias e missionário: o
Reino do Congo no fim do século XVIII. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2016.
142

* * *

A história das irmandades na América portuguesa tem sua origem em


Portugal e remonta à Idade Média, misturando-se à história das corporações de oficio.
Teriam surgido entre os séculos X e XI, associadas ao desenvolvimento das cidades, do
artesanato e do comércio. Em Portugal, as corporações de ofício surgem primeiro. Na
sociedade colonial elas surgem entrelaçadas 11. Para Caio Boschi, elas constituíam-se em
forças auxiliares do Império português e ao mesmo tempo expressão orgânica da vida
dos fiéis em suas comunidades locais. Organizavam-se a partir da estrutura
administrativa da monarquia, mas representavam os interesses diversos de grupos
sociais inscritos em suas localidades 12. De acordo com Anderson de Oliveira, a
constante atuação do Estado português em assuntos religiosos dificultou em vários
momentos, uma atuação mais eficaz da Igreja frente às irmandades. O que resultou no
enfraquecimento da presença do clero em algumas áreas do Brasil, possibilitando que as
irmandades ocupassem os espaços deixados pela instituição eclesiástica 13.
As irmandades e confrarias de africanos e seus descendentes tiveram um
papel crucial na reorganização da cultura africana na América Portuguesa.
Representaram para os negros africanos e seus descendentes a oportunidade de se
reorganizarem política, social e culturalmente, possibilitando para os africanos a
reconstrução de sua identidade étnica. Elas funcionavam como sociedades de mútua
ajuda de caráter religioso em que os leigos se reuniam em torno da devoção de um
orago, cujas regras de funcionamento e gestão eram reguladas por um estatuto ou
compromisso. Através desse regimento se estabeleciam critérios de admissão dos
confrades. Estes contribuíam com taxas de entrada, anuais e esmolas, assim como
estabeleciam as normas para eleição da Mesa Diretora, responsável por administrar os

11
BOSCHI, Caio. Os leigos e o poder. Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São
Paulo: Editora Ática, 1986, pp. 36-70; SOARES, Mariza de Carvalho. Os devotos da cor... 2000, p. 134 e
166.CATÃO, Beatriz Cruz Santos. Irmandades, Ofícios e Cidadania no Rio de Janeiro do século XIII. p.
4. Disponível em: http://www.brasa.org/wordpress/Documents/BRASA_IX/Beatriz-Catao-Cruz-
Santos.pdf aceso em 22 de março 2019; GONÇALVES, Lopes. “As Corporações e as Bandeiras de
Ofícios”. in: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Departamento de
Imprensa Nacional, 1952. v. 206. p.171-191.
12
BOSCHI, op. cit., p. 3.
13
OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção negra... p. 257.
143

assuntos cotidianos da confraria 14. Tinham como principais finalidades promover o


culto público e devocional, a assistência material e espiritual aos irmãos vivos e mortos.
Neste sentido, tinham o dever de prestar assistência aos irmãos quando doentes, quando
passavam fome, quando eram presos e quando mortos. Uma das principais funções das
irmandades era proporcionar a seus associados funerais solenes com acompanhamento
dos irmãos vivos, sepultamentos dentro das capelas e missas fúnebres 15.
A aprovação legal dessas instituições estava sob o encargo das autoridades
civis e eclesiásticas. De acordo com as Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia, os estatutos ou compromissos das irmandades e confrarias deveriam ser enviados
ao bispo local para sua apreciação 16. A partir da provisão de 08 de março de 1765, todos
os compromissos obrigatoriamente tinham de ser enviados à Mesa de Consciência e
Ordens subordinando-as a jurisdição Real 17. Com a vinda da família real e sua corte
para o Rio de Janeiro, em 1808, a Mesa de Consciência e Ordens foi transferida para cá.
Foi mantida até 1828, quando os assuntos eclesiásticos e das irmandades passaram a
integrar o Ministério da Justiça. E em 1861, passaram para a alçada do Ministério dos
Negócios do Império.
A irmandade representava um espaço de relativa autonomia negra, de
resistência à escravidão para muitos africanos e seus descendentes nascidos Brasil e ao
mesmo tempo espaço de devoção religiosa, em torno das festas, assembleias, eleições,
funerais, missas e assistência mútua. Permitiu aos africanos construírem identidades
sociais significativas, diante do sofrimento no interior da sociedade escravista. Era uma
espécie de família ritual, para os africanos que foram arrancados de seu continente
pátrio e perderam suas raízes, junto da qual podiam viver e morrer de forma solidaria.
Embora para os brancos a irmandade pudesse ser um importante mecanismo de
domesticação do espirito africano, a partir da africanização da religião de seus
senhores, 18 ela tornou-se um importante instrumento de reconstituição das identidades e

14
DELFINO, Lenora Lacerda. O Rosário da Almas Ancestrais: fronteiras, identidades e representações: do
“viver e morrer” na diáspora atlântica. Freguesia do Pilar. São João Del-Rei (1787-1841). – Belo
Horizonte: Clio Gestão Cultural e Editora, 2017, p. 17.
15
REIS, João José. Identidade e Diversidade Étnicas nas Irmandades Negras no Tempo da Escravidão.
Tempo, Rio de Janeiro, vol. 2, n°. 3, 1996, p. 4.
16
Cf. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). São Paulo Typografia Dois de Dezembro
1853. Livro 4. Tomo LX, Par. 867, p. 304.
17
Provisão de 08 de março de 1765 expedida pela Mesa de Consciência e Ordens. Apud. BOSCHI, Caio
Cesar. Os Leigos e o poder... p. 57.
18
REIS, op. cit., p. 4. Os africanos introduziram elementos das religiões de matriz africana no catolicismo.
De acordo com Marina Mello e Souza: Considerando que no caso do antigo reino do Congo e de Angola
missionários católicos viviam entre povos da região desde o século XVI, onde se desenvolveram formas
144

solidariedade coletivas 19. Analisando as irmandades mineiras, Julita Scarano observou


que tanto a Monarquia quanto o Bispo procuram estimulá-las, pelo menos em seus
primórdios, fossem elas de brancos, pretos ou pardos. Mas com a passar dos tempos
“passaram a ser vistas com desconfiança, como organizações um tanto perigosas” 20.
Anderson Oliveira observou que tanto o poder civil, quanto o poder eclesiástico
“procuravam controlar suas atividades bem de perto, pois temiam a excessiva liberdade
que algumas alcançavam. Fiscalizando suas atividades, a administração de seus bens, as
cobranças de anuidades, a construção de seus templos e o cumprimento de seus
compromissos” 21.

3.2 – Irmandades de pretos africanos e seus descendentes no Rio de Janeiro e suas


devoções
A primeira irmandade de pretos africanos na cidade do Rio de Janeiro que
se tem notícia foi Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, fundada por pretos
africanos de diferentes nações 22. Não se sabe ao certo o ano de sua criação, mas desde
antes 1639 ela já existia. Em 1653 foi fundada a irmandade de São Benedito que, em
1669, se juntou a irmandade de Nossa Senhora do Rosário, dando origem à irmandade
de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos. A irmandade de
São Domingos não se tem certeza se foi fundada por angolas ou crioulos. A Irmandade
do Glorioso Santo Antônio da Mouraria dos Homens pretos foi fundada no Rio de
Janeiro em 1716, por escravos do Convento de Nossa Senhora do Carmo. Em 1812, se
reuniram para redigir um novo Compromisso. Afirmavam que o antigo Compromisso,
de 1719, além de já ter “caducado pelo tempo”, nunca havia sido aprovado pelo rei de
Portugal, vindo daí a necessidade de uma reforma 23. A irmandade de Nossa Senhora da
Lampadosa, fundada em 1740 por escravos náufragos vindos da Ilha de Lampadosa, no

africanas de catolicismo e houve a incorporação de objetos do culto cristão às religiões tradicionais,


percebemos que as mestiçagens culturais nas quais o catolicismo é o elemento dominante podiam estar
em curso antes da escravização e da travessia do Atlântico. SOUSA, Marina de Mello e. Catolicismo
Negro no Brasil: Santos e Minkisi, uma Reflexão Sobre Miscigenação Cultural. Afro-Ásia, 28 (2002), p.
145; Cf. THORNTON, John. A África e os Africanos na formação do Mundo Atlântico, 1400-1800. Rio
de Janeiro: Elsevier, 2004. Especialmente capítulo 9.
19
Reis, op. cit., p. 4.
20
SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no
Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Brasiliana, 1975, p. 36.
21
OLIVEIRA, Anderson Machado de. Devoção negra: Santos pretos e catequese no Brasil colonial. Rio de
Janeiro: Quartet: FAPERJ, 2008, P. 257.
22
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos do Rio de
Janeiro, capitulo 12.
23
Compromisso da Irmandade do Glorioso Santo Antônio da Mouraria dos homens pretos. ANRJ. Códice
825 p. 1.
145

Mar Mediterrâneo, e ocupava um altar na Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São


Benedito. A irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia foi criada em 1740 por
africanos oriundos da Costa da Mina, Cabo Verde, Ilha de São Tomé e Moçambique. A
irmandade de Nossa Senhora dos Remédios foi fundada em 1788 por negros da Costa
da Mina na capela de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Vejamos algumas destas
irmandades
A irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos homens
pretos tinha seu altar na igreja de São Sebastião no Morro do Castelo. Apesar de já
existir deste antes de 1639, somente em 22 de março de 1669 teve seu estatuto
aprovado, por provisão do prelado Manoel de Souza e Almada. O culto a Nossa
Senhora do Rosário foi difundido pelos dominicanos em Portugal e na África. Já em
terra brasilis foram os jesuítas e depois os franciscanos os incentivadores da criação
desse culto 24, tornando-se a mais tradicional das invocações entre as “irmandades de
pretos”, nas quais a Senhora branca estava (quase sempre) ladeada por São Benedito,
um descendente de escravos africanos que viveu na Sicília no século XVI, onde realizou
milagres que lhe garantiram a popularidade.
É possível que o culto a Nossa Senhora do Rosário já fosse popular entre
muitos africanos escravizados que chegavam ao Rio de Janeiro em nosso período de
estudo, especialmente aqueles que vinham das regiões de Congo e Angola. Conforme
observou Lucilene Reginaldo, “a devoção ao Rosário em Luanda estava reservada aos
africanos inseridos na experiência da escravidão, ou seja, na condição de cativos ou de
libertos” 25. A devoção do Rosário em Angola nasceu vinculada às marcas da
“conversão-cativeiro”. Uma irmandade do Rosário ereta dentro de uma instituição
jesuíta insinuava que a catequese buscava vincular esta devoção aos escravos. Assim, a
participação dos jesuítas parece ter sido fundamental para a propagação da devoção do
Rosário entre os escravizados nos dois lados do Atlântico 26. Conforme observou
Eduardo Hoornaert, “o Rosário chegou ao Brasil, onde se constituiu um elo fácil de
ligação e popularizado contato entre a instituição oficial da Igreja e o mundo dos

24
BEZERRA, Analucia Sulina. As Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos no Brasil:
Identidade e Diferença Cultural. Projeto História, São Paulo, n. 51, pp. 119-138, set./dez. 2014, p. 122.
25
REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: irmandades negras, experiências escravas e
identidades africanas na Bahia setecentista. Tese de Doutorado. Campinas, SP: Universidade Estadual de
Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2005, p. 36.
26
REGINALDO, op. cit., p. 36.
146

escravizados africanos” 27. É possível sugerir que as irmandades negras e a devoção à


virgem do Rosário teriam para os pretos africanos um componente de continuidade da
religiosidade africana, ao menos no que diz respeito àqueles que vivenciaram tais
experiências em Luanda. O que revela a capacidade dos pretos africanos e seus
descendentes de reelaborar sua cultura de forma a manter vivos os seus laços ancestrais
e identitários.
Para muitos pretos africanos – escravizados, livres e/ou forros –, a filiação a
uma irmandade poderia ser o único recurso para um funeral diferente daquele destinado
aos Pretos Novos nos cemitérios voltados para os desprivilegiados. Todos os
acontecimentos, do nascimento à morte, eram comemorados pelas confrarias 28. É
possível supor que muitos africanos e seus descendentes tenham se convertido à religião
cristã, mas continuaram acreditando nas tradições africanas e cultuando seus ancestrais.
Neste sentido, podemos pensar que as irmandades negras serviram de suporte para que
as tradições africanas fossem preservadas ou reorganizadas no contexto da escravidão
na diáspora nas Américas. No interior das irmandades dedicadas a diversos santos
católicos negros, africanos de diferentes nações, além de crioulos e pardos,
desenvolveram práticas de enfrentamento cultural em diversas regiões da América Lusa
relativas à identidade, diversidade étnica e a alianças interétnicas. Na vida dos irmãos
negros foram constantes os enfrentamentos e negociações com os brancos 29. Podemos
citar como exemplo os conflitos ente o cabido e a irmandade do rosário e São Benedito
que durou de 1737 até 1808, quando Sé foi transferida para a Igreja do Carmo por
determinação de D. João, assunto que abordaremos mais à frente neste capítulo.
A sociedade colonial escravista estava estruturada em modelo corporativista
que refletia as diferenças sociais, culturais, raciais e nacionais 30 e as irmandades como

27
HOORNAERT, E. O cristianismo moreno do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1991. Apud. BEZERRA,
Analucia Sulina. As Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos no Brasil, 2014, p.
122.
28
SCARANO, op. cit., p. 36-7.
29
REIS, op. cit., p. 3.
30
Idem., p. 5. O corporativismo, é um termo de origem latina, corpus, ou "corpo humano". Sabe-se que as
ideias corporativistas foram disseminadas na sociedade de Grécia e Roma antigas. Foram implementadas
em várias sociedades com uma ampla variedade de sistemas políticos. Na Idade Média, a Igreja Católica
patrocinou a criação de várias instituições, incluindo irmandades, mosteiros, ordens religiosas e
associações militares, especialmente durante as Cruzadas. Corporativismo, na concepção de Philippe
Schmitter, define-se como um sistema de representação de interesses cujas instituições se organizam num
número limitado de categorias funcionalmente distintas e hierarquizadas, compulsórias e não
concorrenciais, às quais o Estado concede o monopólio da representação em contrapartida de colaboração
no exercício do controle social e político; Still the century of corporatism? The Review of Politics, v, 36,
p. 85-131, 1974. Apud. GARRIDO, Álvaro. O corporativismo na História e nas Ciências Sociais, uma
reflexão crítica partindo do caso português. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 42, n. 2, maio-
147

instituições oriundas dessa sociedade refletiam tal forma de organização. Algumas vão
se organizar em torno de corporações profissionais, como o caso das irmandades de São
José e São Jorge, que abrigava os carpinteiros, marceneiros, funileiros, tanoeiros,
ferreiros, serralheiros, barbeiros 31. Mas um dos principais critérios de identidade dessas
organizações era a cor da pele combinadas com a origem/procedência. Assim, havia
irmandades de brancos, pretos e pardos. Podiam se dividir ainda conforme as etnias de
origem ou grupos de procedência ou, como se dizia na época, “nações” 32. No caso do
Rio de Janeiro, havia a dos angolas, dos benguelas, dos minas. Mariza Soares observou
que no Rio de Janeiro a irmandade de “São José abrigava as famílias mais ilustres da
cidade, que os pretos eram devotos de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário e os
pardos, de Nossa Senhora da Conceição. Era impossível pensar a hierarquia social no
Rio de Janeiro dos séculos XVII e XVIII sem levar em conta a hierarquia dos homens e
santos” 33.
Na cidade do Rio de Janeiro, assim como em todo o império colonial
português, as irmandades de pretos africanos e seus descendentes, forros e escravos,
faziam procissões, realizavam funerais pomposos, escolhiam reis e rainhas organizavam
suas cortes através dos reinados da folia, 34 em homenagem à memória de seus ancestrais
conforme veremos neste capítulo. O capitulo doze, parágrafo 33 do compromisso da
irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito revela que esta confraria foi
fundada por pretos africanos de diferentes procedências. O que fica evidente na hora de
escolherem os membros que atuariam nos diferentes cargos: “E como esta Irmandade
foram seus fundadores homens pretos de todas as nações, não é justo deixem de ocupar
todos os cargos e empregos dela, sem que para isso se admita preferência de melhoria
desta, ou daquela nação, tanto de Guiné, como da Costa da Mina” 35.
De acordo com o capítulo 2, parágrafo dois, embora esta irmandade tenha
sido fundada por homens pretos, nela havia muitos brancos, e por isso haviam

ago. 2016, p. 387-408. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil. Disponível em:
https://www.redalyc.org/pdf/1346/134646844004.pdf acesso em: 14/04/2020. Cf. FILHO, Wilson Ramos
e ALLAN, Nasser Ahmad. A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA E O CORPORATIVISMO: A
Encíclica Rerum Novarum e a Regulação do Trabalho no Brasil. JusLaboris. Biblioteca Digital da Justiça do
trabalho. Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/106889 aceso em: 15/04/2020.
31
Cf. CATÃO, op. cit., p. 5- Este texto é uma versão abreviada de um artigo que deverá ser publicado em
coletânea da Pós- graduação da UFRRJ (2008). Ele foi realizado com o apoio da BN, Fundação
Biblioteca Nacional.
32
REIS, op. cit., p. 5.
33
SOARES, op. cit., p. 136.
34
Idem., p. 27.
35
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos do Rio de
Janeiro, capítulo 12, parágrafo 33.
148

experimentado muitas desordens “no governo de sua administração” 36 no passado,


quando os juízes eram homens pretos. Em 1758, o Juiz de Fora e Capelas, Antonio de
Matos Silva, ordenou que daquele momento em diante só poderia ocupar o cargo de
Juiz de nossa Senhora do Rosário como principal cabeça desta irmandade, um irmão
branco, da mesma sorte o cargo de tesoureiro também seria ocupado por um irmão
branco 37. Para os cargos de procurador, escrivão e Juiz de São Benedito, sempre se
deveria eleger homens pretos. Na época em que essas duas devoções se juntaram
formando uma só irmandade, o governo da mesma ficou a cargo do Juiz de Nossa
Senhora do Rosário; enquanto o Juiz de São Benedito ficou com a obrigação de votar na
Meza e concorrer para a festa do santo padroeiro que era celebrada no primeiro sábado
de outubro 38. Quanto aos homens pardos que fossem membros da irmandade, não
poderiam ocupar nenhum cargo, a não ser o de irmão da Mesa, caso demonstrassem um
grande zelo à irmandade e devoção a Nossa Senhora. O compromisso estabelecia ainda,
que se o Escrivão os elegesse para os referidos cargos seria deposto do cargo e expulso
da irmandade 39.
As normas e regras estabelecidas nesses dois capítulos do compromisso da
irmandade dos irmãos do Rosário e São Benedito deixam transparecer as hierarquias
sociais e a composição étnica no interior da irmandade, a região geográfica de
origem/procedência no continente africano, os diferentes conflitos que existiam entre
seus membros, além da interferência do poder régio em sua administração.
O capítulo 2, parágrafo três do compromisso estabelecia ainda que, embora
o juiz seja a pessoa principal da mesa, ele “não tem poder para aprovar coisa alguma de
forma despótica, a ele compete propor as matérias que devem ser votadas pelos oficiais
e demais irmãos da mesa”. Em caso de empate, compete a ele o voto decisivo. Mas em
caso de suspeita ter ocorrido o favorecimento de uma das partes, por má intenção ou por
ignorância, o Juiz ordenaria que se procedesse à votação, novamente advertindo os
irmãos que por algum motivo deixaram de votar. Deveriam votar “sem ódio ou afeição
aquilo que fosse exposto”. É possível que essa tenha sido a forma que os irmãos
encontraram para controlar o poder dos brancos no interior de sua irmandade e ao
mesmo tempo colocar de volta o poder nas mãos dos irmãos pretos africanos, que com

36
Idem.
37
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos do Rio de
Janeiro, capitulo 12, parágrafo 2.
38
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito... capítulo 13, parágrafo 35.
39
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito... op. Cit. capítulo 12,
parágrafo, 33.
149

toda a certeza eram maioria na irmandade. Os pardos por sua vez, só podiam fazer parte
da mesa se demonstrassem algum zelo à irmandade e devoção a Nossa Senhora,
portanto não participavam da administração da irmandade.
Não fica claro porque os pardos não podiam participar da administração da
irmandade. Podemos supor que talvez fosse porque os pardos na sociedade colonial
buscassem um distanciamento da origem africana para fugirem do estigma do cativeiro.
Podemos supor ainda pela associação do termo pardo ao termo mulato, associado ao
estigma da “mulatice”, que classificava esses sujeitos geralmente como “perturbadores
da ordem”, “arrogantes”, “soberbos” dentre tantas outras expressões agressivas. É bem
provável que estes sujeitos no Rio de Janeiro almejassem uma “identidade parda”
revestida de uma positividade, o que seria na verdade uma identidade reivindicada40.
Gente que queria se diferenciar do universo da escravidão, cobrar privilégio e
tratamento específicos e, mesmo, constituir-se em corpo social separado 41. Podia se
revestir, portanto, de uma positividade, ao contrário do termo “mulato”, geralmente
usado para desqualificar ou inferiorizar.
Na verdade, os pardos procuraram constituir suas próprias irmandades e
devoções. Em meados do século XVIII já existiam diversas associações de pardos no
Rio de Janeiro colonial. Algumas foram instituídas século XVII, como a de São Brás,
Nossa Senhora do Amparo, Nossa Senhora da Boa Morte e Nossa Senhora da
Conceição, originalmente localizadas em altares laterais de igrejas pertencentes a outras
irmandades ou ordens religiosas, como era o caso dos beneditinos e carmelitas, que
hospedavam irmandades de pardos em seus conventos. Apesar de terem sido
construídas em área mais valorizada da cidade, considerada privilegiada, essas
irmandades, por não possuírem templos próprios ocupavam altares laterais nas igrejas
que as hospedavam, o que as colocava em posição de subordinação àqueles que de fato
exerciam o controle desses templos 42. No século XVIII, Algumas irmandades de pardos
se deslocam para novas igrejas próprias, como foi o caso da criação do Hospício dos
Pardos e Igreja da Irmandade de São Gonçalo Garcia, devoção que já se difundia em
diversas cidades coloniais com um culto especialmente direcionado aos devotos pardos.
Ao construírem suas próprias igrejas, essas irmandades de pardos estavam também
ocupando as áreas mais periféricas da cidade, ultrapassando a Rua da Vala em direção

40
LARA, op. cit., p. 142
41
VIANA, Larissa. O Idioma da Mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa. Campinas,
SP: Editora Unicamp, 20007. Especialmente capitulo 4
42
VIANA, op. cit., p. 151.
150

ao campo de São Domingos e Campo de Santana, local para onde as irmandades de


pretos já havia iniciado o processo de migração 43.
Larissa Viana, ao estudar as irmandades de pardos no Rio de Janeiro
colonial, e imperial percebeu que “as histórias em torno do culto a certas imagens da
Virgem Maria e de São Gonçalo Garcia, especialmente identificados aos devotos
pardos, expressavam questões relevantes para setores da população colonial atingidos
pelos estigmas do sangue e da cor que então marcavam as hierarquias sociais e
44
religiosas” . Analisando a crônica de frei Agostinho se Santa Maria, e os sermões do
Padre Vieira em especial, a autora observa que a convivência entre pretos e partos como
filhos da Virgem do Rosário no contexto baiano do século XVII era pouco desejável, o
que poderia ter acontecido também na irmandade do Rosário do Rio de Janeiro. Tal
situação levou os pardos a buscar uma devoção alternativa. O que ocorreu em diferentes
regiões da colônia. De acordo com a narrativa de “Antônio Vieira a separação das
irmandades e a criação de uma devoção especial para os pardos reforçava a noção das
diferenças, elemento que estruturava, alias, a composição social ideal de uma sociedade
45
de Antigo Regime” . Na crônica de Frei Agostinho “o suposto motivo dos pardos
construírem suas irmandades era para se diferenciarem dos pretos que serviam
46
fervorosos a Senhora do Rosário” . Tal afirmativa faria sentido na medida em que “os
pardos teriam dado a sua patrona um titulo diferente que rivalizava com a Senhora do
Rosário ao buscar na denominação análoga de Nossa Senhora do Terço 47 uma ‘singular
protetora dos pardos’” 48.
A autora vai buscar a origem das irmandades de pardos e suas devoções a
partir do século XVII em diferentes regiões da colônia, em especial Salvador, Olinda,
Recife e Rio de Janeiro. Com base nas narrativas da época, nos sermões do padre
Antônio Vieira e crônica de Frei Agostinho de Santa Maria, ela nos revela o surgimento

43
Idem., p. 151.
44
VIANA, op. cit., p. 104.
45
VIEIRA, Padre Antônio. Sermão vigésimo do Rosário. Penguin Companhia. Clássicos. Padre Antônio
Vieira Essencial. Organização e introdução Alfredo Bosi. Disponível em : http://cabana-on.com/Ler/wp-
content/uploads/2017/08/Essencial-Padre-Antonio-Vieira-Padre-Antonio-Vieira.pdf. Acesso em 15 de
janeiro 2022. VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem... 2007, p. 111.
46
VIANA, op. cit., 7, p. 112.
47
Terço representa a terça parte do Rosário. O Rosário é tradicionalmente dividido em três partes iguais,
com cinquenta contas cada e que, por corresponderem à terça parte, foram chamadas de Terço. Cada
Terço compreende um conjunto especial de três Mistérios: os Mistérios Gozosos, os Mistérios Dolorosos
e os Mistérios Gloriosos.
48
Idem., p. 112.
151

das primeiras devoções de pardos: Virgem de Guadalupe 49 (Bahia, Olinda), Nossa


Senhora do Terço, (Bahia, Recife e Rio de Janeiro). Os pardos vão se apropriar de
títulos diferenciados para suas irmandades, abraçando inicialmente a Virgem de
Guadalupe, a qual vão agregando posteriormente novas devoções 50.
O processo de criação e disseminação das irmandades de pardos e suas
devoções, do ponto de vista político, se insere nos debates sobre mestiçagem que ao
longo do século XVII passaram a ter maior intensidade no conjunto da América
escravista. Momento em que as legislações gerais dirigidas aos domínios americanos
demonstraram maior preocupação com o status social dos mulatos, buscando formas de
enquadrar as experiências e os horizontes sociais desejáveis aos filhos das uniões entre
europeus e africanos, ou de seus descendentes 51.
Assim, de acordo com Viana as devoções pardas no século XVII “podem
ser lidas como a criação de uma forma particular de identidade religiosa e colonial, que
reunia elementos ligados à mestiçagem e também a origem colonial dos devotos pardos,
ou seja, possuíam ascendência africana, mas nasceram na América Portuguesa” 52.
Viana observa que essas devoções simbolizavam o desejo de diferenciação
que os pardos tinham diante dos pretos, ou africanos, que de acordo com os sermões do

49
O primeiro culto a Virgem de Guadalupe que se tem noticia data do século XIV, quando a imagem virgem
milagrosa teria sido encontrada por vaqueiro na região de Villercuas, na Espanha, foi imediatamente
convertida em culto sob o reinado de Afonso XI. A segunda aparição da Virgem ocorreu no México, em
1531, quando a virgem teria sido avistada pelo índio Juan Diego, a quem solicitou a construção de um
templo em sua homenagem. Embora inspirada no modelo espanhol à imagem de Nossa Senhora de
Guadalupe criada no México tinha traços indígenas, ou seja, ressignificada no contexto da conquista
ganhou reconhecimento mais efetivo das autoridades coloniais e disseminou-se por toda América
espanhola, sobretudo no século XVII. A imagem da Virgem de Guadalupe que chegou ao Brasil nesse
período teria vindo da Península Ibérica. Em 25 de maio de 1754, o Papa Bento XIV declarou Nossa
Senhora de Guadalupe patrona da chamada Nova Espanha, que correspondia à América Central e
América do Norte. Aprovou também os textos litúrgicos para a missa e breviário em sua homenagem. Em
1891, o Papa Leão XII concedeu novos textos litúrgicos. Em 8 de fevereiro de 1895, ele autorizou a
coroação canônica da imagem. Aos 12 de outubro de 1897, a imagem foi solenemente coroada. Em 1910,
São Pio X proclamou Nossa Senhora de Guadalupe como Padroeira da América Latina. Em 1945, o Papa
Pio XII deu-lhe o título de “Imperatriz da América”. Cf. VIANA, op. cit., p. 111; NIERO, Lidiane. A
construção sócio-histórica de devoção a Nossa senhora de Guadalupe. Sacrilegens, Revista dos Alunos do
Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião – UFJF. Juiz de Fora, v. 9, n.1, p. 97-112, jan-
jun/2012. Disponível em: http://www.ufjf.br/sacrilegens/files/2012/04/9-1-8.pdf. Acesso em 22 de janeiro
de 2022; BISINOTO, Eugênio Antônio. Nossa Senhora de Guadalupe. Pias Discípulas do Divino Mestre.
Comunidades das Irmãs Discípulas do Divino Mestre. Comunidade Madre Escolástica. Disponível:
https://piasdiscipulas.org.br/nossa-senhora-de-guadalupe/. Acesso em 25 de janeiro de 2022.
50
VIANA, op. cit., p. 113.
51
Idem., p. 119; veja também. ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. A redenção dos pardos: a festa de São
Gonçalo Garcia no Recife, em 1745. In JANCSÓ, István; KANTOR, Iris (org.). Festa: Cultura e
Sociabilidades na América Portuguesa. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo: EDUSP:
FAPESP: Imprensa Oficial, 200, v. , p. 423; OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Santos pardos e
pretos na América Portuguesa: catolicismo, escravidão, mestiçagem e hierarquias se cor. Ediciones
Universidad de Salamanca / Stud. his., H.ª mod., 38, n. 1 (2016), p. 74.
52
VIANA, op. cit., p. 119.
152

padre Vieira seriam os filhos prediletos da Senhora do Rosário. Portanto a busca dos
pardos por devoções que os diferenciassem dos filhos da Senhora do Rosário refletia as
tensões especificas de uma sociedade escravista, hierarquizada e miscigenada 53. O fato
de os pardos não se alinharem na irmandade do Rosário dos pretos tampouco na dos
brancos, conforme observou Larissa Viana fez com que no início do século XVII eles
buscassem se apropriar de novos títulos devocionais como Nossa senhora de
Guadalupe, do Amparo e do Terço que lhes garantissem a diferenciação social. Viana
observa ainda que de acordo com os sermões do padre Vieira e a crônica de frei
Agostinho de Santa Maria tal iniciativa dava aos pardos uma relativa liberdade para
instituir suas irmandades 54.
Em meados do século XVIII surgem mudanças no cenário colonial. A Igreja
se mostra mais atenta às demandas dos fieis pardos e setores da Igreja articulavam de
forma sistemática a promoção de uma devoção que fosse especialmente direcionada aos
pardos. Assim, promovem o culto a São Gonçalo Garcia, considerado o primeiro santo
pardo das Américas 55. No início do século XVIII o culto mais difundido entre as
irmandades de pardos era o de Nossa Senhora da Conceição que se tornou patrona das
irmandades dos pardos em várias regiões da colônia. No Rio de Janeiro a irmandade
Nossa Senhora da Conceição dos Pardos foi fundada em 1700, na Igreja da Sé. Embora
o culto a Nossa Senhora da Conceição tenha nesse período se disseminado entre as
irmandades de pardos, não era exclusivo dessas irmandades. As irmandades da elite
ligadas ao ideal de “pureza de sangue” matinha o culto a Nossa Senhora da Conceição,
como por exemplo, a irmandade da Conceição da Praia, na Bahia 56. Em Pernambuco a
Irmandade de Nossa Senhora da Conceição existia desde o século XVI, onde
congregava a elite açucareira. Juntamente com a Irmandade de Misericórdia fundaram o
Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição, para clausura feminina, que serviu a
elite até a invasão holandesa 57.

53
Idem., p. 119.
54
VIANA, op. cit., p. 120.
55
Idem., p. 120.
56
Ibidem., p. 121.
57
BEZERRA, Janaina dos Santos; ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. “Pompa e circunstância” a um
santo pardo: São Gonçalo Garcia e a luta dos pardos por inserção social no XVIII. História Unisinos:
Janeiro/Abril 2012, 119. Disponível em:
http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/htu.2012.161.10/827. Acesso em 8 de janeiro de
2022.
153

Ainda de acordo com Viana é possível sugerir que a busca dos pardos por
novas devoções, em especial a devoção a Nossa Senhora da Conceição, estava
relacionada à legislação portuguesa que tratava da “impureza de sangue” ligada ao
“sangue mulato”, que promovia um estigma de ordem religiosa e “proto-racial”, que
estabelecia restrições às pretensões a cargos e honrarias aos descendentes de africanos.
A mestiçagem era vista como condição indesejável, um estigma que era passado de
geração em geração através do sangue. O estigma do sangue mulato espalhou pelo
tecido social entre os séculos XVII e XVIII, a partir do momento em que os mulatos
passaram a ser frequentemente identificados como “desordeiros”, “perturbadores da
ordem” “soberbos” e “arrogantes”, inadequados a ocuparem determinadas posições
sociais 58. Neste contexto o fato de os pardos buscarem a especial proteção de Nossa
Senhora da Conceição, a “rainha da pureza” de acordo com a narrativa de frei
Agostinho de Santa Maria tinha como possibilidade simbólica eliminar ou distanciar-se
do estigma da “impureza de sangue”, atribuído pela legislação e pelas práticas ligadas
ao discurso jurídico. A pureza de Maria imaculada, concebida sem pecado podia livrar
seus devotos pardos do estigma da “impureza” que simbolicamente os ligava ao
“sangue mulato”, considerado “impuro” e indesejável em alguns setores da sociedade
colonial 59.
Foram os franciscanos os principais promotores da crença na Imaculada
Conceição entre os fiéis leigos desde o período medieval, em suas pregações eles
afirmavam com veemência o poder ilimitado da Rainha do Céu junto ao seu Divino
filho como intercessora em prol dos pecadores 60. Foram também os franciscanos os
responsáveis pela introdução do culto de devoção ao beato Gonçalo Garcia, considerado
o primeiro santo pardo das Américas em meados do século XVIII, colocando em
questão o discurso da “pureza” ou da “impureza” dos mestiços no contexto colonial 61.
A primeira imagem do beato Gonçalo Garcia que chegou a América
portuguesa, entrou no Recife em 1745 por ocasião de um “grandioso festejo” religioso e
profano organizado pelos homens pardos. A questão da origem e cor do beato foram
motivos de inquietações, polêmicas e muitas discussões, o que tornou o evento uma

58
VIANA, op. cit., 7, p. 123.
59
Idem., p. 123.
60
Ibidem., p. 123.
61
Ibidem., p. 124.
154

grande manifestação de aclamação à cor parda 62. A imagem do beato chegou em Recife
por intermédio de um homem pardo chamado Antônio Ferreira, que ao vê-lo logo foi
informado que se tratava de um santo pardo, “um santo de sua cor”. Antônio conservou
a imagem em seu poder por alguns anos tentando convencer as pessoas do Recife de
que se tratava de um santo pardo, lançando a ideia de seu culto. Seu projeto não teve
sucesso, pois as pessoas “religiosas e doutas” não acreditavam que um santo natural da
Índia pudesse ser pardo 63.
Após a morte de Antônio Ferreira a imagem foi guardada no oratório dos
religiosos franciscanos de Santo Antônio daquela cidade, até que no ano de 1745, o
culto foi oficializado na Igreja de Nossa Senhora do Livramento dos Homens Pardos de
Recife. Foi realizado um grande festejo ao qual diversas irmandades foram convidadas a
consagração daquele novo culto, ou seja, a entronização do santo pardo Gonçalo Garcia.
No entanto as dúvidas sobre a sua origem e cor ainda pairavam no ar. Tal questão só
teve um desfecho final quando frei Antônio de Santa Maria Jaboatão 64, religioso
franciscano, natural do Recife ingressou na polêmica determinado a provar a origem e
cor do beato e que se tratava de fato de um santo pardo, dando assim maior peso a causa
dos pardos. Frei Jaboatão expos seus argumentos defendendo que beato Gonçalo Garcia
era pardo em um sermão que durou três horas durante a festa de consagração da imagem
do santo em 1745. Afirmou que “São Gonçalo Garcia nasceu Baçaim, costa do Malabar,
ao Sul de Goa, nasceu em ano posterior ao de 1533”, filho de pai português e mãe hindu
exercia a atividade de comerciante. “Mais tarde pediu o hábito e fez profissão de fé para
frade leigo” e juntou-se aos franciscanos na evangelização das terras do Oriente. Ao fim

62
Gonçalo Garcia foi canonizado em 1862, mas já era venerado como santo desde o século XVIII. VIANA,
Larissa. O idioma da mestiçagem... 2007, p. 124; BEZERRA, Janaina dos Santos; ALMEIDA, Suely
Creusa Cordeiro de. “Pompa e circunstância” a um santo pardo: São Gonçalo Garcia e a luta dos pardos
por inserção social no XVIII. História Unisinos: Janeiro/Abril 2012, 118-129. Disponível em:
http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/htu.2012.161.10/827. Acesso em 8 de janeiro de
2022.
63
VIANA, op. cit., p. 125; OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Santos pardos e pretos na América
Portuguesa: catolicismo, escravidão, mestiçagem e hierarquias se cor. Ediciones Universidad de
Salamanca / Stud. his., H.ª mod., 38, n. 1 (2016), p. 72.
64
De acordo com Viana Frei Jaboatão descendia das principais famílias de Pernambuco e era filho legitimo
do sargento-mor Domingos Coelho Meireles e de dona Francisca Varela. Em 1816, aos 21 anos de idade,
apresentou-se ao provincial franciscano como candidato ao noviciado, somente foi admitido após ter
apresentado atestado de “pureza de sangue” e ter sido aprovado em rigoroso exame de latim. Inicio seus
estudos no Convento de Paraguaçu, no Recôncavo Baiano, onde foi ordenado a sacerdote em 1725.
VIANA, op. cit., p. 125-6.
155

do século XVI foi designado para uma a missão como intérprete no Japão, onde “veio a
ser um dos 26 mártires do Japão, crucificado em Nagasaki no ano de 1597” 65.
A questão do reconhecimento do martírio de Gonçalo Garcia não era um
problema para os “religiosos e doutos” que não aceitavam o seu culto junto aos pardos.
A questão estava na desconfiança de que realmente ele fosse um santo pardo. No
sentido de esclarecer todas as dúvidas em relação à cor do beato, frei Jaboatão buscou
definir o que era pardo com base no Vocabulário portuguez latino de dom Raphael
Bluteau afirmando que pardo era o individuo “nem branco nem preto”, mas que
participava das duas cores. frei Jaboatão buscava afirmar que a mãe de Gonçalo Garcia,
sendo natural de Baçaim, tinha a cor “preta e negra”, pois toda aquela região ao Sul de
Goa, de acordo com os relatos dos viajantes, era chamada de reino de Malabar e “todos
os malabares eram negros e os mais negros de toda a Índia”. “Assim, sendo Gonçalo
Garcia filho de pai português e ‘mãe negra’ natural de Baçaim, estaria em principio
comprovado que ele era pardo” 66.
Mas a questão era que havia quem dissesse que não bastava descender da
cor branca e da cor preta para ser pardo, era necessário ter o “cabelo retorcido e
descender de um negro natural da Etiópia”. Em resposta a tais questionamentos frei
Jaboatão utilizou-se dos relatos de missionários e tratados antigos, argumentando que a

65
LINS, Rachel Caldas; ANDRADE, Gilberto Osório de. Elogio do homem pardo. Ciência & Trópico.
Recife: Fundação Joaquim Nabuco. 12(1): 79-105, jan. /jun, 1984, pp. 80-1, 85. Disponível em:
file:///G:/ladic,+v12n1_5.pdf. Acesso em 15 de janeiro de 2022; VIANA, op. cit., p. 126; BEZERRA,
Janaina dos Santos; ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. “Pompa e circunstância” a um santo pardo:
São Gonçalo Garcia e a luta dos pardos por inserção social no XVIII. História Unisinos: Janeiro/Abril
2012, 119; São Gonçalo Garcia Mártir no Japão, religioso da Primeira Ordem (1557-1597). Canonizado
por Pio IX em 8 de junho de 1862. Fonte: “Santos Franciscanos para cada dia”, Ed. Porziuncola.
Disponível em: https://franciscanos.org.br/carisma/calendario/sao-goncalo-garcia#gsc.tab=0. Acesso em
12 de janeiro de 2022; SANGENIS, Luiz Fernando Conde. Aula magistral: frei Jaboatão e a exaltação da
cor parda na festa do beato Gonçalo Garcia no Recife setecentista. EDUR. Educação em Revista. 2017, p.
1. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/edur/a/PTVhX4hPNwJdRvDRXBLnXFr/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 25 de
janeiro de 2022.
66
Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, “Discurso histórico, genealógico, político e economiástico,
recitado em nova celebridade que dedicaram os pardos de Pernambuco ao santo de sua cor, o Besto
Gonçalo Garcia, na sua Igreja do Livramento do Recife, em 12 de setembro de 1745”. p. 187. Apud.
VIANA, op. cit., p. 127; LINS, Rachel Caldas; ANDRADE, Gilberto Osório de. Elogio do homem pardo.
Ciencia & Trópico. Recife: Fundação Joaquim Nabuco. 12(1): 79-105, jan. /jun, 1984, p. 86-7.
Disponível em: file:///G:/ladic,+v12n1_5.pdf. Acesso em 15 de janeiro de 2022; ARAÚJO, Rita de Cássia
Barbosa de. A redenção dos pardos: a festa de São Gonçalo Garcia no Recife, em 1745. In JANCSÓ,
István; KANTOR, Iris (org.). Festa: Cultura e Sociabilidades na América Portuguesa. São Paulo: Editora
Universidade de São Paulo: EDUSP: FAPESP: Imprensa Oficial, 200, v. , p. 424-7; SANGENIS, Luiz
Fernando Conde. Aula magistral: frei Jaboatão e a exaltação da cor parda na festa do beato Gonçalo
Garcia no Recife setecentista. EDUR. Educação em Revista. 2017 p.6 Disponível em:
https://www.scielo.br/j/edur/a/PTVhX4hPNwJdRvDRXBLnXFr/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 25 de
janeiro de 2022.
156

Índia era a Etiópia dos antigos e que primeiro houve negros na Índia, e que de lá
migraram para a África. Assim, frei Jaboatão reafirmava a todos que Gonçalo Garcia
era “pardo legitimo” por ser filho de pai português e mãe “etíope natural de Baçaim” 67.
Com isso, frei Jaboatão enaltece a cor parda ao argumentar que “[...] os mistos [...] são
mais perfeitos de que as partes de que resultam, porque participam da perfeição destas
partes. E aqui temos já por princípio natural, a cor parda mais perfeita que a cor preta e
branca [...]” 68.
Ainda de acordo com frei Jaboatão, o fato de o “primeiro santo pardo” da
Igreja ter morrido como mártir colocava os pardos em um “grau mais perfeito e
virtuoso”, pois na hierarquia da Igreja os santos mártires tinham um grau superior. Além
de pertencer à ordem franciscana como irmão leigo e evangelizador, o exemplo de
virtude oferecido pelo martírio de Gonçalo Garcia o credenciara a tornar-se um modelo
de santidade definido, não por acaso, por um reconhecido religioso franciscano. O
exemplo de virtude oferecido por Gonçalo Garcia salvaguarda do cristianismo e da
missão evangelizadora deveria ser imitado pelos fiéis pardos. Alguns modelos negros de
santidade já estavam consolidados no Brasil colonial quando o culto e devoção a São
Gonçalo Garcia surgiu. Os franciscanos tiveram um papel destacado desde o século
XVII, na promoção do culto a São Benedito, um santo “preto” que era cultuado ao lado
de Nossa Senhora do Rosário, mas foi no século XVIII que houve uma maior dedicação
na promoção da difusão de modelos de santidade que eram preferenciais, mas não
exclusivos dos africanos e seus descendentes. Os carmelitas não vão medir esforços na
difusão do culto a Santo Elesbão e Santa Efigênia como modelo ideal de santidade que
deveria ser imitados pelos africanos e seus descendentes. Assunto que discutiremos
mais a frente.
Evidentemente, interessava tanto ao poder temporal quanto ao poder
espiritual o controle das irmandades de pretos africanos e seus descendentes. No
entanto, podemos relativizar que as medidas de controle sobre as confrarias de pretos

67
LINS, Rachel Caldas; ANDRADE, Gilberto Osório de. Elogio do homem pardo. Ciencia & Trópico.
Recife: Fundação Joaquim Nabuco. 12(1): 79-105, jan. /jun, 1984, pp. 88. Disponível em:
file:///G:/ladic,+v12n1_5.pdf. Acesso em 15 de janeiro de 2022; SANGENIS, Luiz Fernando Conde. Aula
magistral: frei Jaboatão e a exaltação da cor parda na festa do beato Gonçalo Garcia no Recife
setecentista. EDUR • Educação em Revista. 2017, p. 6. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/edur/a/PTVhX4hPNwJdRvDRXBLnXFr/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 25 de
janeiro de 2022
68
LINS, Rachel Caldas; ANDRADE, Gilberto Osório de. Elogio do homem pardo. Ciencia & Trópico.
Recife: Fundação Joaquim Nabuco. 12(1): 79-105, jan. /jun, 1984, p. 81; Disponível em:
file:///G:/ladic,+v12n1_5.pdf. Acesso em 15 de janeiro de 2022; Frei Jaboatão. Discurso histórico... p. 99.
Apud. VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem... 2007, p. 127.
157

não foram tão eficazes assim, haja vista que muitas dessas organizações eram eretas
primeiro e somente depois é que irmãos pretos se dirigiam ao poder eclesiástico e civil
para autoriza-las. Veja por exemplo o caso da Irmandade do Glorioso Santo Antônio da
Mouraria dos Homens Pretos, fundada no Rio de Janeiro em 1716, por escravos do
Convento de Nossa Senhora do Carmo. Em 1812, se reuniram para redigir um novo
Compromisso. Afirmavam que o antigo Compromisso, de 1719, além de já ter
“caducado pelo tempo”, nunca havia sido aprovado pelo rei de Portugal, vindo daí a
necessidade de uma reforma 69.
Indubitavelmente, as irmandades vão buscar meios para conquistarem
autonomia junto aos poderes civil e eclesiástico, apesar de estarem em meio às disputas
entre Estado e Igreja e em muitos momentos sob a determinação e/ou disposição da
união de ambos os poderes, as irmandades constituíam-se em espaços privilegiados de
sociabilidades e solidariedades que possibilitava a construção da autonomia entre os
pretos africanos e seus descendentes, livres, libertos e escravizados.
Quando a primeira Prelazia de São Sebastião do Rio de Janeiro foi elevada a
condição de Diocese, em 16 de novembro de 1676, pela Bula do Papa Inocêncio XI,
“Romani pastoralis sollicitudo” 70, passando a Sé a funcionar na igreja de São Sebastião
do morro do Castelo, começam os desentendimentos entre o cabido e a Irmandade do
Rosário. Entre os motivos determinantes da questão, diz Monsenhor Pizarro de Araújo,
estava à obrigação de contribuir com determinada quantia para o cabido, por ter como
capelão um dos capitulares, e ter de pagar pelas covas ocupadas pelos cadáveres de seus
confrades. Medida em relação a qual não se conformavam os irmãos de Nossa Senhora
do Rosário e São Benedito, que alegavam estarem isentos de tudo isso pelo alvará de 14
de janeiro de 1700. Tal situação motivou a irmandade a buscar meios para construir sua
própria igreja 71.
Com o crescimento da cidade em direção à várzea ao longo do século XVII,
o núcleo urbano do morro do Castelo entra em decadência. Com a criação da freguesia
da Candelária, em 1634, esta passa a fazer o atendimento religioso da população da
várzea. Os homens bons e suas famílias passam a se reunir nas capelas de suas

69
Compromisso da Irmandade do Glorioso Santo Antônio da Mouraria dos homens pretos. ANRJ. Códice
825 p. 1.
70
CARVALHO, Arlindo José. Templos Católicos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2009, p.
27.
71
PIZARRO e ARRAUJO, José de Souza. Memórias Históricas do Rio de Janeiro e das províncias anexas à
jurisdição do Vice-Rei do Estado do Brasil. Rio de Janeiro, 1822. Typografia de Silva Porto, tomo VI –
capítulo 1 – p.61.
158

irmandades, afastando-se do morro do Castelo, deixando de comparecer às missas e


procissões noturnas na igreja de São Sebastião, sendo que nela permanecem as
confrarias de pretos africanos e seus descendentes. No final deste século XVII, o cabido
está decidido a expulsar da Igreja de São Sebastião a irmandade de Nossa Senhora do
Rosário e São Bendito e a irmandade de São Domingos, como se fossem elas as
responsáveis pelo abandono da Sé 72.
Dia após dia, a situação entre os irmãos pretos e o cabido tornava-se cada
vez mais conflituosa, resolvem então, os pretos, retirar da Igreja de São Sebastião a
Imagem de Nossa Senhora do Rosário até que pudessem construir um novo templo para
venerá-la e festejá-la. Em 1700, os irmãos iniciaram a construção de sua igreja em um
terreno situado próximo à rua da Vala, atual Uruguaiana, que media 7 braças de frente
por 32 de fundos, doado por Francisca Pontes. Nesse mesmo ano obtiveram o Alvará de
Licença do Rei e conseguiram também o privilegio da celebração dos ofícios divinos
com sacerdotes à escolha da irmandade. Para conseguir dar cabo de tal propósito, a
irmandade contou com auxílio do governador do Rio de Janeiro, Luiz Vaia Monteiro, o
que contribuiu para finalizar a construção do templo em 1725 73. Em sinal de gratidão
eterna, a congregação colocou o retrato de seu benfeitor no Consistório da Igreja.
Em 1737, a Igreja de São Sebastião do morro do Castelo, que abrigava a Sé,
encontrava-se em ruínas e o cabido resolveu transferir a Sé para a Igreja de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito, após ter tentado se instalar em outras irmandades –
como a de Santa Cruz dos Militares e a de São José – por espaços mais curtos de tempo.
A confraria do Rosário não desejava abrir mão de sua propriedade, pois era isso que
ocorria com uma igreja comum que era transformada em Sé. Ao invés de significar uma
honra, era antes um grande contratempo, pois ela poderia tornar-se freguesia, tornando-
se também propriedade do padroado real, e os irmãos do rosário ficariam sem a sua
igreja 74. Os irmãos de Nossa senhora do Rosário e São Benedito não aceitaram as

72
Cf. SOARES. Mariza de Carvalho. Os Devotos da Cor... p. 135.
73
Antes da obra terminada e mesmo com autorização real, os pretos de Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito enfrentaram a oposição do governador Antonio Brito de Meneses para construírem a sua igreja,
em 1719. No objetivo de resolver tal impasse, os irmãos enviaram uma representação ao rei. Em resposta,
o rei ordena ao governador que não impedisse a irmandade de construir sua igreja, pois não havia motivo
para tal, pois ele os havia concedido licença através da resolução de 14 de janeiro de 1700, e quando
houvesse alguma razão para impedir a obra, primeiro ele deveria apresentar os motivos a ele. ANRJ,
Códice 952, vol.20 (1717-1718) Cartas Regias, Provisões, Alvarás e avisos.
74
PIZARRO e ARRAUJO, op. cit., p. 53; BARBOSA, Diego Santos. A cor da devoção: entre espaços e
identidades na irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos no Rio de
Janeiro do século XVIII. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro, 2020, pp. 57 a 75.
159

determinações do bispo e das capitulares de forma pacifica e tão logo houve a instalação
da Sé recomeçaram os conflitos. Os irmãos do Rosário não estavam dispostos a abrir
mão do espaço conquistado e se utilizaram de todos os meios que estavam ao seu
alcance para reverter à situação ao longo dos setenta e um anos em que a Sé ficou
instalada em seu templo. Foram frequentes os conflitos entre o pároco e os irmãos do
Rosário, pois estes recusavam-se a prestar obediência ao pároco e à Freguesia da Sé.
Faziam suas celebrações sem o seu consentimento, todas as funções eram realizadas por
seus capelães, tais como: celebrar missas ordinárias da irmandade, confessar os irmãos,
rezar e cantar, realizar suas devoções dentro da igreja nos dias destinados a tais atos pela
religião, assistir aos moribundos, acompanhar a sepultura os falecidos. Determinava,
ainda, como seria o seu oratório, quem celebraria as missas de suas festividades,
independente da obediência e respeito paroquial 75. Após achegada da Família real em
1808, a Sé foi transferida para a igreja do Carmo em 15 de julho do mesmo ano por
determinação de D. João 76.
A tentativa de tomar as igrejas dos pretos africanos e seus descendentes vai
além do objetivo de controlar suas instituições, tem a ver com a sua estrutura física,
comodidade, beleza e imponência de seus templos que despertaram o interesse e cobiça
das autoridades eclesiásticas 77. Segundo o próprio cabido da Sé do Rio de Janeiro, a
igreja do Rosário era a mais apropriada para servir de Sé era a dos irmãos pretos de
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito 78. Frei Agostinho de Santa Maria descreveu a
igreja construída pelos irmãos pretos de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito
como magnifica e suntuosa que viria a ser um dos maiores templos do Rio de Janeiro,
como resultado da devoção dos irmãos pretos ajudados por Nossa Senhora do Rosário.
Quando os eclesiásticos e os cônegos perceberam que os pretos haviam construído a sua
igreja, com tanta grandeza e formosura foram tomados pelo desejo de tomar a igreja dos
pretos 79.

75
AHU. Rio de janeiro, Caixa 36. Doc. 69. s/d.
76
MAURICIO, Augusto... p. 134.
77
REGINALDO, op. cit., p.143.
78
PIZARRO e ARRAUJO, op. cit., p. 52 e 53; QUINTÃO, Antonia Aparecida. Lá Vem o Meu Parente: as
irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em Pernambuco, (Século XVIII) – São Paulo:
Annablume: Fapesp, 2001, p. 145.
79
SANTA MARIA, Frei Agostinho de. Santuário Mariano, e história das imagens milagrosas de Nossa
Senhora e das milagrosamente apparecidas, que se venerão em todo o Bispado do Rio de Janeiro, &
Minas, $ em todas as Ilhas do Oceano. Lisboa Occidental na Officina de Antonio Pedrozo Galram. Tomo
X, Tit VIII. 1723, pp. 24 e 25.
160

Uma das principais obrigações das irmandades de pretos no sentido de


realizar o culto aos santos de sua devoção era justamente se empenhar na construção de
sua capela ou igreja. A edificação de um templo próprio representava também um
caminho para que as confrarias de pretos alcançassem certo grau de autonomia, ao
contrário daquelas que tinham se instalado nos altares laterais das igrejas de outros
irmãos, mas principalmente nas igrejas de irmandades de brancos ou das ordens
religiosas. Assim, os irmãos pretos reunidos em diferentes irmandades no Rio de
Janeiro vão se esforçar ao máximo para amealhar um pecúlio, através das entradas,
anuais, esmolas e doações para conquistar um espaço onde possam erigir um templo
para cultuar o orago de sua devoção. Quando os recursos amealhados não eram
suficientes, o que na maioria das vezes ocorria apelavam para a caridade dos senhores,
do Estado e da Igreja para alcançarem seu intento.
Como vimos este foi o caso dos irmãos de Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito, assim como o dos irmãos de São Domingos, de Santo Elesbão e Santa
Efigênia e dos irmãos de Nossa Senhora da Lampadosa, como de várias outras
irmandades. Mas, muitas não vão conseguir construir um local próprio para cultuar o
orago de sua devoção. Portanto, ao verem sua igreja ocupada pelo cabido, os irmãos
pretos de Nossa senhora do Rosário e São Benedito vão lutar sem trégua para
conquistarem de volta o seu templo, pois ele representava a luta por autonomia e
construção de um espaço de sociabilidade e solidariedade dentro da sociedade escravista
carioca no século XVIII e XIX.
A irmandade de São Domingos foi instituída por pretos do gentio da
80
Guiné que colocaram sua imagem para devoção em um dos altares da Igreja de São
Sebastião no morro do Castelo. Assim como os irmãos do Rosário, eles tiveram muitos
conflitos com os membros cabido. Para evitar tais conflitos, os irmãos retiram a imagem
de São Domingos da igreja da Sé com o objetivo de fundar uma capela própria. Não
dispondo de meios para tal, resolveram pedir à Câmara um terreno. Em 21 de novembro
de 1706 receberam as terras solicitadas por carta de aforamento, localizada no antigo
campo da cidade, o qual passaria a se chamar Campo de São Domingos. Esta doação só
foi confirmada pela coroa em julho de 1791.
De acordo com Vieira Fazenda, o local recebido pelos irmãos pretos
africanos de São Domingos para edificar a sua igreja ficava entre as ruas de São Pedro e

80
FAZENDA, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. RIHGB, Tomo 86 – vol. 140, P.
348.
161

General Câmara, anteriormente rua do sabão. Sua localização era próxima ao Cemitério
do Rocio da cidade ou dos mulatos, criado em 1613 devido às grandes epidemias na
cidade, sobretudo, para enterrar escravos. De acordo com o mesmo autor, nesse ano de
1613, após um longo período de chuvas, houve um período de seca que durou 96 dias,
no qual irrompeu uma violenta epidemia de varíola na cidade, nas proximidades deste
cemitério, localizado no meio do antigo campo da cidade 81.
Era uma igreja pequena (veja figura 1), com duas janelas no coro, um
frontão reto, uma torre do lado direito, três altares: o de São domingos, o de Nossa
Senhora da Conceição o de Nossa Senhora das Dores. Na Sacristia havia o da Senhora
Santa Ana. De acordo com Maria Aparecida Quintão, o capítulo 1 do compromisso
desta irmandade estabelecia que ela aceitava como confrade todos os pretos de Angola
ou de qualquer ponto da Guiné 82. Pouco sabemos sobre essa irmandade que teve sua
igreja arrasada em 1943, por ocasião da construção da Av. Presidente Vargas. A
imagem de São Domingos foi levada para a igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia
pelos irmãos desta confraria, que se dirigiram ao templo em procissão para buscar a
imagem e abrigá-la na rua da Alfandega, onde permaneceu juntamente com as outras
imagens até serem transferidas para a nova igreja daquele Santo, na rua José Higino, na
Tijuca 83.

81
FAZENDA, Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro... p. 349.
82
QUINTÃO, op. cit., p. 156.
83
MAURICIO, Augusto. Igrejas Históricas, p.192. O governo indenizou a ordem, sendo a construção da
nova igreja iniciada em 1967. Além da indenização e o trabalho da irmandade, foi fundamental a
colaboração da comunidade, que ajudou com campanhas para arrecadação de recursos. A igreja ficou
pronta em 19 de maio de 1968, e o Templo foi elevado à categoria de Igreja Matriz com a criação da
paroquia de São Domingos de Gusmão pelo decreto de sua Eminência, o Cardeal D. Jaime de Barros
Câmara, de 19 de maio de 1968. Houve vários conflitos entre a irmandade e o primeiro pároco, padre
Lucas Rebelo Malaquias, por causa da arrecadação da paroquia que ficava sob a administração da
irmandade. Por breve período de tempo o padre conseguiu autorização para nomear os membros da
irmandade, mas mesmo com tal medida os conflitos não sessaram. O pároco seguinte, padre Alfir Barreto
de Araújo, ciente da situação exigiu, que para tomar posse, a irmandade teria que sair, levando seus
respectivos bens. Assim os irmãos de são domingos ficaram mais uma vez sem a sua Igreja.
CARVALHO, Arlindo José de. Templos Católicos do Rio de Janeiro. Op. Cit. p. 309.
162

Imagem 1 – Igreja de São Domingos

FONTE: Augusto Malta, Rio de Janeiro (entre 1903 e 1904) Biblioteca Nacional digital.
Disponível em:
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon404110/icon13293
05.jpg - Acesso em 16/04/2019

O Juiz e demais irmãos de Mesa desta irmandade empreenderam uma longa


batalha jurídica com o cônego Francisco Lopes Xavier, a fim de garantir a propriedade
do terreno onde localizava o seu cemitério, ao fim da qual foram derrotados. Em 1753,
depois de servir de cemitério da igreja de São Domingos por quarenta e sete anos, o
terreno onde os confrades sepultavam os cadáveres de seus irmãos foi disputado com o
cônego Francisco Xavier, que reclamava a propriedade do mesmo por confrontar com
as suas terras. Os irmãos não concordaram com a reclamação do cônego e requereram
vistoria do local ao “reverendo Bispo Geral”. Foram convocadas testemunhas para se
apurar qual parte do local era benta para separar do local profano. Encontram vinte seis
braças de comprimento ao longo da rua e quinze palmos de largura. A irmandade alegou
163

que tinha o direito de posse daquele terreno há quase um século, que compreendia as
vinte seis braças de testada com vinte seis de fundo que tinha sido doada como esmola
pelo Senado da Câmara, juntamente outro terreno que havia sido doado por esmola pelo
benfeitor Francisco Gonçalves Casado, cujos papeis haviam sido consumidos pelo
“lapso de tempo”. Os irmãos alegavam que por conta disso não tinham certeza se a
pequena porção de terra era na frente ou nos fundos da igreja 84. Essa querela vai se
prolongar por todo o século XVIII e terá fim apenas no século XIX. Tal situação sugere
que a irmandade de São Domingos talvez estivesse ocupando terras além daquelas
concedidas em esmola pelo Senado da Câmara. No entanto, em 1791, a irmandade
consegue uma Resolução Régia, para garantir o seu direito de posse tal qual foi
estabelecido na carta de aforamento de 1706 e vai a juízo para anular os aforamentos
feitos pelo Senado da Câmara. Porém, não apresentando documentos suficientes para
garantir sua posse antiguíssima, a irmandade perde a disputa. A sugestão dada foi que o
terreno fosse devassado e ali se construísse uma praça pública e que se encontrasse um
outro lugar para o cemitério fora da cidade 85.
Criada em 1740, a irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa ocupava um
altar da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, antes
de construir a sua igreja. Padroeira dos escravos, a invocação de Nossa Senhora da
Lampadosa tem origem na imagem da Virgem que era venerada na Ilha de Lampadosa,
no Mar Mediterrâneo, entre a Sicília e o Norte da África. Em seus primórdios, era
constituída por um grupo de pretos escravos de procedência da Costa da Mina.
Permaneceram na igreja dos irmãos de Nossa Senhora do Rosário e São Bendito até
1748, quando receberam do casal Pedro Coelho da Silva e Tereza de Jesus Almeida um
terreno que media seis braças de frente e vinte e cinco de fundos, conforme consta na
escritura de 7 de fevereiro de 1748, onde edificaram a sua igreja, com licença concedida
por frei D. Antônio do Desterro 86.
Ao iniciar a obra, os irmãos solicitaram ao Bispo 87 permissão para que o
local fosse benzido, tornando-o digno de receber os alicerces de sua capela. A
construção do templo ocorreu com grade morosidade. A capela-mor só foi benzida pelo
bispo em 1772, quando passaram a ser realizados os cultos religiosos enquanto
terminava o corpo da igreja.

84
AHU, rio de Janeiro, Caixa 200, doc. Nº 81, Ant. a 1802/06/28.
85
Idem.
86
MAURICIO, op. cit., p. 91.
87
Idem., p. 93
164

Através dos capítulos quinto e décimo sexto do compromisso desta


irmandade é possível perceber que ela aceitava por irmão qualquer pessoa, desde que
pudesse pagar o valor da entrada e os anuais, seja “cristão de bom procedimento e
achando-se na tal pessoa as circunstancias necessárias só assim será admitido” 88. No
entanto, nos capítulos quarto e décimo sétimo percebemos atuação dos irmãos pretos
africanos no controle de sua irmandade. O capítulo quarto preserva o ofício de
tesoureiro somente para irmãos pretos, por ser de muita consideração para irmandade,
deve ser pessoa capaz de desempenhar tal ofício, pois dela dependerá a conservação dos
bens da irmandade e toda a fábrica que ficara em seu poder 89.
Embora os capítulos quinto e décimo sexto estabelecessem que a irmandade
aceitava por irmão qualquer pessoa, o capítulo décimo sétimo menciona que os ofícios
estavam reservados aos irmãos pretos. Os irmãos brancos pardos estavam excluídos,
com exceção do cargo de juiz por sua ocupação ser conveniente” 90. Observamos que
assim os irmãos pretos africanos buscaram manter o controle de sua irmandade
excluindo os brancos e os pardos de participarem de qualquer decisão na sua
administração. Em relação ao ofício de juiz da irmandade, não fica claro se os pardos
também poderiam exercê-lo ou se só poderia ser exercido por brancos, conforme ocorria
na Irmandade do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, de acordo com o
estabelecido pelo do Juiz de Fora e das Capelas. Como o juiz não poderia tomar
qualquer decisão sem consultar os demais irmãos, o controle da irmandade estava
totalmente nas mãos dos irmãos pretos africanos.
Já a irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia tem origem em uma casa
particular na Freguesia da Candelária, onde as imagens dos dois santos eram veneradas
por um grupo de fiéis africanos originários da Costa da Mina, Ilha de São Tome, Cabo
Verde e Moçambique 91. No processo de constituição dessa irmandade houve extensa
correspondência eclesiástica mantida entre os irmãos devotos da irmandade, o bispo do
Rio de Janeiro e a Mesa de Consciência e Ordens, em Lisboa, que se destinava à
aprovação régia do compromisso da irmandade de acordo com as normas e costumes da
época 92.

88
Compromisso da irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa. Arquivo da Torre do Tombo, Chancelaria
da Ordem de Cristo. Livro 291. Capítulos 5º e 16º.
89
Compromisso da irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa... capitulo 4º
90
Compromisso da irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa... capitulo 17º.
91
MAURICIO, op. cit., p. 185; SOARES, Mariza de Carvalho. O Império de Santo Elesbão na cidade do
Rio de Janeiro, no século XVIII. Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2002, pp. 59-83. p. 64.
92
Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Museu do Negro, p. 1.
165

Em 1740 93, um grupo de devotos desses dois oragos liderados, por Antônio
Bastos Maia, Francisco das Neves, Antonio Pires Santos e Francisco Vieira, resolve
levar as imagens para um templo “onde adoração seria mais conveniente e adequada” 94.
Para isso, os transportaram para a Igreja de São Domingos. Após instaladas as imagens
dos dois santos, os irmãos resolvem pedir ao bispo do Rio de Janeiro, D. Antônio de
Guadalupe, para instituírem sua irmandade sob a invocação dos ditos santos 95. O bispo
consulta o vigário da Freguesia da Candelária sobre tal assunto, antes de conceder-lhes
tal provisão. Em 23 de abril de 1740, D. Antônio de Guadalupe recebeu a seguinte
resposta do vigário da Freguesia da Candelária 96.

Exmo. Revmo. Sr. – São tantas as irmandades de pretos que a


multiplicidade delas tem feito menos fervorosa a sua devoção; já
os pretos minas têm outra confraria do Menino Jesus sita na
Capela de S. Domingos, na qual não há muito fervor e aumento,
porem agora se apresenta um rol de mais de setenta irmãos e
irmãs que se têm agregado a estes Santos; e me parece que por
serem da sua cor serão mais eficazes e constantes no fervor e
devoção que agora mostram ter. V. Excia. Mandará o que for
servido 97.

Embora se mostrasse preocupado com a grande multiplicidade de


irmandades na cidade – o que em sua opinião acabava contribuindo para um
enfraquecimento da devoção e diminuição do fervor a devoção, argumenta que os pretos
minas já tinham a confraria do Menino Jesus na igreja de São Domingos, na qual não
havia muito fervor. No entanto, o vigário mostrava-se favorável à constituição da
irmandade, reconhecendo que no caso da devoção aos santos negros poderiam ser mais
eficazes e constantes em seu fervor. Tal aspecto demonstrava que a cor dos santos
semelhante à dos irmãos – sendo estes escravos, libertos ou forros – os aproximavam e
os tornavam mais fervorosos em sua devoção 98.

93
FARIA, Sheila de Castro Sinhás Pretas, Damas Mercadoras. As pretas minas nas cidades do Rio de
Janeiro e de São João Del REy, (1700-1850). Niterói: Universidade Federal Fluminense (Tese para
Professor Titular), 2004.
94
MAURICIO, op. cit., p. 185.
95
Idem., p. 185.
96
Idem., p.185.
97
Carta do Vigário da Candelária ao bispo do Rio de Janeiro, D. Antônio de Guadalupe, transcrita por
MAURICIO, op.cit., p. 185; ______ Templos Históricos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Grafica
Laemmert, Limitada. s/d, p. 215.
98
SOARES, Mariza de Carvalho. Os devotos da cor... p. 169.
166

De acordo Caio César Boschi, Nossa Senhora do Rosário, São Benedito,


Santo Elesbão e Santa Efigênia eram invocações dos negros, não apenas pela afinidade
epidérmica ou pela origem geográfica, mas também pela identidade com suas agruras.
Os “santos dos brancos”, supunha-se, não saberiam compreender os dissabores e os
sofrimentos dos negros 99.
Ao analisar a narrativa da vida de santo Elesbão e Santa Efigênia e o projeto
de catequese da ordem do Carmo para os africanos e seus descendentes, Anderson
Oliveira observa que “os carmelitas no setecentos estavam, em processo de busca por
espaços políticos, disputando poder com as demais ordens religiosas”. Portanto, não
poderiam “deixar de enfrentar a questão da escravidão e seus desdobramentos,
principalmente na sociedade colonial brasileira. A catequese dos africanos e seus
descendentes era uma tarefa importante”, a qual exigia a busca de uma solução por parte
da Igreja. “Enfrentar a questão era uma tarefa de vital importância para o bom
funcionamento do sistema de cristandade. Ao mesmo tempo reforçava as hierarquias
sociais”. “A promoção de santos negros neste contexto fazia parte das estratégias da
Igreja para a catequese dos ‘chamados homens de cor’. Carmelitas e franciscanos
lançaram-se deliberadamente na promoção de santos que tivessem aceitação entre os
africanos e seus descendentes”. Neste contexto, a cor dos santos assumia um caráter
fundamental, pois explicitava de forma indubitável o caráter da mensagem que se queria
transmitir aos africanos e seus descendentes. No discurso carmelita produzido por Frei
José Pereira de Santana, Elesbão e Efigênia eram pretos, mas apesar desse “acidente”100
não estavam inferiorizados na corte celeste porque se destacavam pelos seus

99
BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder, São Paulo: Ática, 1986, p. 25-6.
100
No dicionário de Antônio Moraes e Silva, acidente é definido como: não é essencial, de nenhuma
substância. SILVA, Antônio de Moraes e. Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa: na Typografia de M.
P. de Lacerda. 1823, tomo primeiro p. 24. De acordo com Anderson Oliveira, “Tal definição estava
intimamente marcada por uma concepção fundamentada na metafisica aristotélica. O discurso sobre a cor
desenvolvido pelos carmelitas estava presente tanto na Escolástica Medieval quanto na Escolástica
Barroca que estavam fundamentadas numa determinada leitura da obra de Aristóteles. Na metafisica
Aristóteles busca fundamentar a teoria do ser e faz três distinções básicas, a primeira delas é a distinção
entre essência e acidente. A essência seria tudo aquilo “que é” [...]. o acidente corresponde as coisas
mutáveis, ou variáveis [...]. Durante a Idade Média, São Tomas de Aquino se apropria desta
fundamentação [...] para discutir a questão da cor. Segundo Tomas de Aquino, a essência da humanidade
é única e divina, pois o homem foi criado a imagem e semelhança de Deus. O homem comporta além da
essência, a matéria individual e os acidentes que o individualizam. A noção de humanidade não
compreende, portanto, a carne, os ossos, a brancura ou a negritude. Esses atributos são dados como forma
de individuação. Branco e negro são, deste modo, acidente que constituição uma diferença específica[...].
a visão acidental em relação à cor não estava desprovida, mesmo em Tomas de Aquino, de uma
concepção hierárquica entre branco e negro. Tais cores não tinham estatuto equivalentes. O branco estava
na esfera da verdade, traduzindo a santificação. O negro estava na esfera do falso, um contrário imperfeito
para o branco. OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção Negra: santos pretos e a catequese no
Brasil colonial. Rio de Janeiro: Quartet: FAPERJ, 2008, p. 184-5
167

procedimentos e suas virtudes. Nesse sentido, a cor preta como acidente poderia ser
superado pelas virtudes e pelos dogmas religiosos. O mesmo procedimento foi utilizado
no discurso franciscano no processo de difusão da “santidade da cor”. Frei Apolinário
da Conceição escrevendo sobre a vida de São Benedito afirma que apesar de ser preto,
ele foi beatificado e canonizado primeiro que outros franciscanos também virtuosos 101.
Era importante que os africanos e seus descendentes entendessem, sem
qualquer sombra de dúvida, que os santos eram negros. A cor preta representava um
castigo, mas que este poderia ser superado com uma vida virtuosa de acordo com os
preceitos da fé. Santo Elesbão e Santa Efigênia eram pretos e africanos, aqueles que
tinham a mesma origem ou fossem da mesma cor, a exemplo dos santos, poderiam
também ser virtuosos. O Frei carmelita José Pereira de Santana procurou diferenciar os
“pretos” dos maometanos, afirmando que Elesbão não se confundia com eles. Na
verdade tal distinção começou a ser estabelecida a partir dos primeiros contatos dos
portugueses com os demais povos africanos. Orientada por objetivos de catequese, tal
distinção em alguns casos tendia a valorizar mais os “gentios” em relação aos mouros,
pois acreditava-se que a catequese dos “pretos” poderia render mais frutos. Tais
questões aproximavam-se de uma perspectiva sociocultural difundida tanto em Portugal
quanto na sociedade colonial da América portuguesa, em que a cor designava lugar
social, ou seja, a caracterização do individuo como preto ou pardo, mesmo sendo forro
ou livre, significava um passado ou antepassado africano e escravo 102.
Era desejo da igreja que os “pretos” seguissem os exemplos de Elesbão e
Efigênia, serem virtuosos e obedientes a Deus e à Igreja e seus ensinamentos, pois
assim seriam merecedores das glorias divinas. Da mesma forma o discurso franciscano
deixava claro que São Benedito era um exemplo a ser seguido pelos “pretos.” Assim,
propor aos pretos um santo de sua própria condição os tornaria mais fervorosos em sua
devoção, ao mesmo tempo em que afirmava a importância da catequese dos negros

101
OLIVEIRA, op. cit., p. 89, 181 a 191. Sobre a cor como um lugar social, ver FARIA, Sheila de Castro. A
colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp.
135-9; MATTOS, Hebe Maria. A escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo
Regime em perspectiva atlântica. In FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda Baptista e GOUVEA,
Maria de Fátima Silva, organizadores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 143
102
OLIVEIRA, op. cit., p. 89, 181 a 191. Sobre a cor como um lugar social, ver FARIA, Sheila de Castro. A
colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp.
135-9; MATTOS, op. cit., p. 143.
168

refletia o esforço da Ordem do Carmo na estruturação de um projeto que possibilitasse


atender especificamente, parte das demandas dos africanos e seus descendentes 103.
D. Frei Antonio de Guadalupe por Merce de Deus e da Santa Sé
Apostolica Bispo do Rio de Janeiro do Conselho de S.
Magestade que Deus guarde etc. Fazemos saber que attendendo
nos ao que por sua petição recto nos enviarão a dizer os pretos
minas d’esta cidade moradores na freguezia da Candelária que
elles por serviço de Deus queirão erigir de novo a Irmandade de
S. Elesbão e Ephigenia cita na Igreja de S. Domingos do Campo
freguezia da Candelária para o que pedião dessemos nossa
autoridade e consentimento para fazerem o qual sendo por nós
visto houvemos por bem de dar licença e consentimento aos
ditos para erigirem do novo a sobredita Irmandade de S. Elesbão
e Ephigenia e nesse entrepomos nossa autoridade e depois de
erecta farão seo compromisso e com ordem a bom governo
d’ellla que nos apresentarão para o approvarmos sendo justo.
Dado nesta cidade do Rio de Janeiro sob o signal e sello da
nossa chancella aos vinte e sete de abril de 1740. Eu José da
Fonseca Lopes escrivão da Camara a subescrevi Chancella
1.600 sello 20 Desta 640.
Provisao que S. Exa Rev. Há por bem conceder os pretos minas
da freguezia da Candelária para se formarem em Irmandade D.
Frei Antonio de Guadalupe por Merce de Deus e da Santa Sé
Apostólica Bispo do Rio de Janeiro e do Conselho de S.
Magestade a quem Deus guarde etc 104.

Nas palavras do escrivão da câmara os irmãos pretos pediam para erigir de


novo a irmandade, como se ela já estive existido. Sendo que a referência mais antiga é
de 1740. É possível que o escrivão estivesse se referindo ao culto privado que existia
em uma casa particular na freguesia da Candelária onde a imagem dos dois santos era
venerada 105.
O bispo aprovou a constituição da irmandade de Santo Elesbão e Santa
Efigênia em 27 de abril de 1740, com a condição de que os irmãos fizessem o seu
compromisso e o apresentasse a autoridade eclesiástica para aprovação. O mesmo foi
enviado pelos irmãos contendo vinte quatro capítulos, dos quais vinte três foram

103
OLIVEIRA, op. cit., p. 89, 181 a 191. Sobre a cor como um lugar social, ver FARIA, Sheila de Castro. A
colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp.
135-9; MATTOS, op. cit., p. 143.
104
Provisão em que D. Frei Antonio de Guadalupe, Bispo do Rio de Janeiro autoriza a constituição da
Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia em 7 de abril de 1740. Compromisso da Irmandade dos
Santos Elesbão e Efigênia de S. Domingos d´esta Cidade do Rio de Janeiro. Museu do Negro. Documento
1.
105
MAURUCIO, op. cit., p. 185. Sobre este assunto cf. OLIVEIRA, Anderson José machado de. Devoção e
Caridade Irmandades Religiosas no Rio de Janeiro Imperial (1840-1889). Dissertação de Mestrado.
Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1995, pp. 129-171; ______. Devoção Negra: santos pretos e a
catequese no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Quartet: FAPERJ, 2008, p. 258.
169

aprovados por D. Frei Antonio do Desterro, em 7 de maio de 1740106. Entre 1740 e


1764 foram feitos acréscimos de capítulos que obtiveram aprovação final do bispo em 7
de novembro de 1764 107. Em 1767 chega ao conhecimento da Mesa de Consciência e
Ordens que a irmandade estava funcionando desde 1740 somente com a aprovação do
bispo. A mesa contestou a competência do bispo para aprovar sozinho o funcionamento
das irmandades e mandou passar provisão para aprovação real 108.
Oliveira observou que este episódio se insere “na complicada teia
burocrática do Estado português, em que estes documentos circulavam, às vezes,
durante anos à espera de diversos pareceres e chancelas”. Quando o bispo aprovou o
compromisso da irmandade estavam ainda em vigor às determinações de D. João V, que
submetiam a aprovação do compromisso das irmandades à alçada episcopal. Já no
período pombalino o processo se complicou, pois o Marquês de Pombal introduziu
novos mecanismos de apreciação dos compromissos das irmandades retardando ainda
mais a aprovação pelo Estado 109. A administração pombalina (1750-1777) adotou uma
política de controle mais efetiva sobre as irmandades, a partir de 1765, entendida dentro
do processo de fortalecimento da política regalista do Estado 110. De acordo com Boschi,
o aumento das exigências do Estado refletia a importância que representavam às
irmandades para a Coroa, sendo necessário reforçar os mecanismos de controle 111. Tudo
indica que a burocracia não atrapalhou, pois o compromisso foi aprovação pelo Rei, D.
José, em 11 de março de 1767 112. De acordo com o teor dessas correspondências, é
possível perceber as intervenções do Estado português nos assuntos eclesiásticos. Tal

106
Provisão de confirmação de quatro capítulos a favor da Irmandade de Santo Elesbão e Sta. Efigênia.
Compromisso da irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia – Documento nº 3. p. 3. Museu do Negro.
107
Idem, documento nº 9. p. 4.
108
Ibidem, documento nº 10. p. 5. Cf. OLIVEIRA, op. cit., p. 259.
109
OLIVEIRA, op. cit., p. 259. Em meados do século XVIII desenvolveu-se uma nova conjuntura sob o
ponto de vista do poder régio para as irmandades e confrarias com a instauração da administração
pombalina. Por meio desta, a Coroa passou a exercer um maior controle sobre as intuições leigas de seus
domínios ultramarinos. Deste modo, a partir de 1765, todas as irmandades estavam obrigadas a enviar
seus compromissos para a Mesa de Consciência e Ordens para sua apreciação e aprovação. BOSCHI,
Caio César. Os Leigos e Poder... p.116; OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Irmandades Religiosas
na Época Pombalina: algumas considerações. In FALCON, Francisco José Calazans, RODRIGUES,
Claudia (Organizadores). A “Época Pombalina” no mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2015, p. 351.
110
BOSCHI, op. cit., pp.121-2. De acordo com Larissa Viana, a política regalista era marcada pelas estreitas
relações entre Igreja e Estado nos países ibéricos, observável, por exemplo, através dos direitos de
padroado e beneplácito régio. Pelo menos desde o século XV, pertenceu aos soberanos portugueses a
atribuição de indicar candidatos para os cargos eclesiásticos, privilégio ao qual somava o do beneplácito
régio (reforçado durante século XVIII), que impedia a adoção de bulas, breves ou despachos papais em
Portugal sem prévio acordo com a Coroa. VIANA, op. cit., pp. 173.
111
BOSCHI, op. cit., p. 118-19
112
Provisão expedida pelo Rei D. José autorizando o compromisso da irmandade de S. Elesbão e Santa
Efigênia. Compromisso da Irmandade dos Santos Elesbão e Efigênia. Museu do Negro. Documento nº 11
170

situação permite perceber a estratégia da Coroa quanto aos procedimentos de aprovação


dos compromissos das irmandades 113. Nas palavras do rei D. José I.
D. José, por graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves
d’aquem e d’alem mar em Africa e Senhor da Guiné etc.
Como Governador e perpetuo administrador que sou do
Mestrado Cavalleiro e ordem de N. S. Jesus Christo. Faço saber
que attendendo a me representarem os Irmãos da Irmandade de
Santo Elesbão e Ephigenia. cita na Igreja de S. Domingos do
Bispado da cidade do Rio de Janeiro terem por ignorancia
confirmado o seo compromisso pelo ordinario do mesmo
bispado sujeitando-se a ele, cuja incompetencia reconhecendo
agora a jurisdição que a dita ordem compete officiado na minha
real presença, o mesmo compromisso implorando a minha real
piedade e pedem-me fosse servido confirmar-lhe o que visto
resposta que deo o Desembargador Procurador Geral das
Ordens. Hei por bem dos Santos Elesbão e Ephigenia, de lhe
confirmar o compromisso escripto n’este livro, com quatorze
meias folhas de papel, com 24 capitulos, acrescentamento de
quatro capitulos à fls. 23, com uma meia folha a 2ª
acrescentamento de 4 capitulos as fls. 25 em duas meias folhas e
ultimo acrescentando de cinco capítulos as fls. 30 com duas
meias folhas como com elleito confirmo e hei por confirmado
por estar conforme o direito com as definições da dita ordem
[...] 114.

Fica patente nas palavras do Rei neste ano de 1767 a autoridade do Estado
sobre a Igreja, através do padroado personificado na figura do rei, grão-mestre da
Ordem de Cristo. A partir de então, a aprovação dos compromissos das irmandades
estava sob jurisdição da Coroa, conforme diz o texto, que por “ignorância” teriam
confirmado seu compromisso apenas com o bispado, “cuja incompetência reconhecendo
agora” enviaram o compromisso a presença real para aprovação. O rei aproveita para
afirmar sua autoridade sobre o poder eclesiástico afirmando que aprovação dos
compromissos das irmandades compete ao poder real. Como os irmãos estavam
implorando sua real piedade, de acordo com a resposta do Desembargador Procurador
Geral das Ordens, e que para o bem dos Santos Elesbão e Ephigenia, lhes confirmaria o
compromisso com determinadas modificações, tais como: retirar a menção à diferença
de naturalidade dos pretos estabelecida no capitulo 10, voltaremos a este assunto mais a
frente; estabelecimento de novos valores das entradas, esmolas do juiz, que deveria ser
proporcional ao valor dos demais oficiais da mesa; determinação de que as eleições do

113
Cf. OLIVEIRA, Anderson José Machado de. As irmandades religiosas na Época Pombalina algumas
considerações..., 2015, p. 352. Cf. SOARES, op. cit., 2000, p. 195 e 196.
114
Compromisso da Irmandade dos Santos Elesbão e Efigênia... Documento nº11. p. 5.
171

juiz e demais irmãos da mesa se faria na presença e com intervenção do vigário da


paróquia; e que se deveria cumprir todas as determinações estabelecidas pelo Tribunal
da Mesa de Consciência e Ordens 115. No momento da aprovação do seu compromisso
irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia a provisão régia determina que se retirasse
o capitulo 10 referente à “diferença de naturalidade dos pretos”. O texto original
estabelecia, por um lado, que seriam admitidos sem nenhuma objeção os irmãos “preto
ou preta [...] oriundos da Costa da Mina, Cabo Verde, Ilha de São Thomé ou de
Moçambique”. Dentre estes, se escolheriam juiz, juíza, procurador, escrivão e irmãos da
mesa. Por outro, determinava que “de nenhuma sorte se admitirão pretas d’Angola, nem
crioulas, nem cabras ou mestiças”. O juiz e mais oficiais da mesa e irmãos que
desobedecem tais não tornariam a servir em nenhum outro cargo na irmandade ao final
de seu mandato 116.
Num contexto histórico maior, os pretos de Angola eram os maiores
adversários dos minas. Por serem minoria e, possivelmente serem excluídos de outras
irmandades da cidade, os minas buscaram se unir em torno da devoção de Santo
Elesbão e Santa Efigênia. A complexa denominação do tráfico havia sido apropriada
como signos de identidade pelos diferentes grupos de africanos e seus descendentes na
América lusa. Embora os irmãos de Santo Elesbão e Santa Efigênia tenham retirado do
compromisso as diferenças quanto à naturalidade dos pretos. O capitulo 25 que
reformula o capitulo 10, obedecendo à determinação régia 117. Na vida cotidiana da
irmandade essa distinção continuou a ser praticada e o capitulo 10 foi mantido
evidenciando que a redação do novo capítulo era apenas uma emenda que não escondia
as tensões entre os grupos 118. Na eleição da mesa diretora, antes elegia-se os 12
membros entre os irmãos fundadores. De acordo com a nova redação passou-se a eleger
6 membros entre os irmãos fundadores e 6 entre os demais irmãos admitidos 119. Na
prática, os pretos minas permaneceram no controle da irmandade, ocupando os
principais cargos administrativos e honoríficos da associação, ao longo do século XVIII
e primeira metade do século XIX. Nesse sentido, a dinâmica de construção de
identidades através das devoções e irmandades ia além do que estava escrito nos
compromissos das irmandades. Acatavam as determinações da Coroa no plano jurídico
115
Compromisso da irmandade dos Santos Elesbão e Efigênia. op. cit., documento nº 11. p.
116
Compromisso da Irmandade dos Santos Elesbão e Santa Efigênia... Capítulo 10. p. 10.
117
Compromisso da irmandade dos Santos Elesbão e Efigênia. Capítulo 25, que reformula o capítulo 10,
retirando as diferenças quanto a naturalidade dos pretos. p. 13.
118
REIS, op. Cit., p.12.
119
Compromisso da irmandade dos Santos Elesbão e Efigênia. Capítulo 25. p. 13.
172

formal, mas no cotidiano estabeleciam barreiras que demarcavam os espaços


devocionais como exclusivo de determinados grupos 120.
Em 1745, os irmãos conseguem um terreno nas imediações do Campo de
São Domingos para a edificação de sua igreja. Após receberem licença passada por
provisão, logo dão início aos trabalhos, com auxílio pecuniário dos seus senhores, sendo
a pedra fundamental benzida em 1747. A obra da igreja foi concluída em 28 de agosto
de 1754, tendo sido entregue ao culto público com uma grande festa. Junto à igreja foi
construído um cemitério, como era de costume da época, para nele serem inumados os
irmãos. Logo depois, tal concessão foi ampliada, permitindo ali o enterramento de todos
os escravos, mesmo não pertencentes à congregação 121.
É importante destacar, como já foi visto no capítulo anterior, que num
contexto mais amplo estava em curso naquele momento uma reordenação do espaço
urbano da cidade, caracterizado pelo deslocamento das irmandades de africanos e de
seus descendentes para além da rua da vala e do muro, próximo ao campo da cidade.
Tratava-se de uma área recentemente incorporada ao núcleo urbano, onde viviam as
populações mais pobres, os ciganos, representando uma região menos valorizada,
cercada de brejos e alagados, de arruamento irregular, com espaços mais amplos e
abertos, como: o campo de São Domingos, de Nossa Senhora da Lampadosa, dos
Ciganos, do Capim ou da Forca e de Santana, onde ocorriam as festividades populares,
os exercícios das tropas de linha e, a partir da segunda metade do século XVIII os
enforcamentos 122.
A posse de um terreno pelas irmandades de pretos africanos e seus
descendentes na região das imediações do Campo da Cidade, área menos valorizada e
ainda sem nenhuma infraestrutura urbana exigiu dos irmãos um esforço significativo
para manter e controlar o seu espaço conquistado, dotando-o de elementos simbólicos
de sua identidade religiosa. A posse de um terreno significava muito mais do que um
bem material, mas um espaço de convivência e sociabilidade, de pertença e auxilio
mútuo e de vivência de sua religiosidade 123, que permitiu a manutenção de sua herança
cultural e reelaboração de suas identidades coletivas.

120
OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção Negra, op. cit., p. 285-288; OLIVEIRA, Anderson
José Machado de. As irmandades religiosas na Época Pombalina, op. cit., p. 350
121
Cf. MAURICIO, op. cit., p. 187.
122
Cf. LARA, op. cit., P. 51-52; VIANA, op. cit., p. 147.
123
TEIXEIRA, Claudia Barbosa. A Territorialidade das Ordens Leigas e a Configuração Urbana do Centro
da Cidade do Rio de Janeiro no Século XVIII. Espaço e Cultura, Uerj, RJ, N. 37, p.179-156, Jan./Jun. de
173

Ao adquirirem um terreno para construir sua igreja, as irmandades de pretos


influenciaram nas ações da administração pública da cidade em relação ao espaço do
entorno de seus templos, por meio de práticas religiosas exercidas no interior da igreja e
no espaço do entorno como: culto de devoção aos seus oragos, festas e procissões,
assim como, ações de melhoramentos de seu templo executado pelos fieis para manter-
se no território. As práticas religiosas desenvolvidas no espaço religioso envolvendo os
irmãos também afetariam os outros moradores da cidade a exemplo das festas e
posições que atraiam pessoas de diferentes segmentos sociais 124. A construção do
templo próprio possibilitava a organização de novas festas, novas celebrações litúrgicas,
procissões, que podiam atrair a entrada de novos membros.
Toda essa movimentação chamava a atenção das autoridades coloniais, com
desejos de implementar seus mecanismos de controle. Foi com o objetivo de controlar a
população dessa região que o Marquês de Lavradio instituiu as rondas que percorriam a
cidade aos domingos e dias santos para evitar ajuntamentos e “desordens” de pretos e
mulatos. Para a região além da rua da vala, montou uma vigilância mais ostensiva com
rondas realizadas a noite, pois era nos “subúrbios da cidade, onde se costumavam fazer
os mesmos ajuntamentos.” 125 Fica visível a diferenciação no trato do espaço da urbe
carioca. Enquanto na região além da rua da vala a vigilância era mais constante, na
região junto ao mar e ao Largo do Paço foi onde ocorreram investimentos com mais
frequência, ao longo do século XVIII.
Não devemos, entretanto, entender tais posturas como uma tentativa de total
segregação desse espaço em relação à parte mais nobre da cidade, que ficava junto ao
mar, próxima ao largo do Paço, identificada como área “privilegiada” 126. Afinal, a
igreja do Rosário, situada nos limites da Vala, abrigou a Sé, desde 1737, até chegada da
família Real, em 1808. Nesse sentido, as diversas procissões solenes e cerimonias
oficiais eram frequentadas por toda a elite colonial. O que comprova que em meados do
século XVIII, os atores sociais misturavam-se frequentemente no espaço urbano.
Afastadas da área de marinha mais populosa, importante e “privilegiada” da
cidade, as igrejas das irmandades de africanos e seus descendentes, contribuíam para a
organização/especialização espacial da cidade, na medida em que seus templos eram

2015, p.p. 180-1. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/ acesso em:


31/03/2020.
124
TEIXEIRA, op. cit., p. 182
125
Relatório do Marquês do Lavradio, op. Cit. p. 430.
126
VIANA op. cit., p. 148.
174

construídos e embelezados pelos fieis: novas ruas eram abertas, casas comerciais e
residências iam sendo construídas ao redor, pois muitos queriam morar perto de suas
devoções. A vida social naqueles logradouros tornou-se rica e intensa com as muitas
festas e procissões que ocorriam o ano inteiro. Dessa forma, as irmandades contribuíram
para a expansão da cidade, constituindo-se em vetores de expansão da urbe carioca,127
conforme se pode observar na planta da cidade de 1767(ver mapa 14) 128.

Mapa 14. Planta da cidade do Rio de Janeiro, 1767

Fonte: Planta da cidade do Rio de Janeiro, original manuscrito do Arquivo Histórico do


Exército, 1767.

LEGENDA
1– Irmandade São Braz, no Mosteiro de São Bento.
2– Irmandade de Nossa Senhora do Amparo, na igreja de São José.
3– Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte e Assunção, no Convento do
Carmo.
4– Sé Velha.
127
Cf. CAVALCANTI, op. cit., p. 210; VIANA, op. Cit., p. 144-45.
128
MAURICIO, op. cit., p. 205; Dados da planta obtidos de VIANA, op. cit., p. 147.
175

5– Igreja do Hospício dos Pardos,


6– Igreja do Rosário e São Benedito dos Pretos.
7 – Igreja de São Domingos.
8 – Santo Elesbão e Santa Efigênia
9 – Igreja de S. Jorge.
10– Igreja da Lampadosa.
11– Igreja de São Gonçalo Garcia.
12 – N. S. Santana

Essa conjuntura da segunda metade do século XVIII, marcada por formas de


hierarquização e possibilidades de convivência na urbe carioca, sob forte influência da
gestão pombalina, possibilitou à Coroa um rígido controle sobre as instituições leigas
em seus domínios ultramarinos. No que se refere à vida confrarial na cidade, houve uma
intensa convivência religiosa no cotidiano da cidade, resultado da imensa expansão e
institucionalização do catolicismo, ocorrida nas primeiras décadas do setecentos. A
construção de novas capelas, igrejas e confrarias nesse período foi permeada por um
clima de exacerbação religiosa, vivida na cidade, que teria iniciado sob o reinado de D.
João V 129, tendo sido este grande incentivador do culto religioso, intensamente cercado
de pompa barroca que provocava estranheza e espanto nos visitantes estrangeiros na
cidade.
Vários viajantes estrangeiros que passaram pela cidade do Rio de Janeiro
entre o século XVIII e meados do século XIX relatam a existência de um fausto
religioso existente no interior da urbe carioca. Durante sua estadia no Rio de Janeiro em
1768, o capitão do navio inglês Endevour, James Cook, deixou o seguinte relato sobre o
fervor religioso dos habitantes da cidade:

As igrejas são muito bonitas e as solenidades religiosa tem mais


pompa do que aquelas realizadas nos países católicos da Europa.
A cada dia, uma das paróquias da cidade promove uma
procissão na qual diferentes estandartes, todos muitos ricos e
magníficos, são ostentados. Nessas ocasiões, em todas as
esquinas há mendigos recitando suas preces com grande
afetação 130.

129
MOTT, Luiz. Rosa Egipicíaca: Uma Santa Africana no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S/A, 1993,
p. 239-241.
130
Relato do capitão James Cook. In visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos, 1831-1800.
(org.) FRANÇA, Jean Marcel de Carvalho. EDUERJ; Livraria José Olympio Editora S.A, 1999, p. 133
176

Relatou ainda o capitão que uma das igrejas da cidade se encontrava em


obras e tinha permissão para realizar uma procissão e esmolar em toda a cidade, uma
vez por semana, para conseguir dar cabo da obra, pois a partir desses eventos recolhiam
quantias consideráveis. “As crianças de uma certa idade, mesmo aquelas pertencentes a
famílias ricas, eram obrigadas a assistir a essa cerimônia, realizada sempre a noite.
Todas elas vestiam um casaco negro que ia até a cintura”. Sobre as devoções dos
habitantes da cidade diz o autor:
Os habitantes do Rio de Janeiro podem prestar devoção a todos
os santos do calendário sem ter que aguardar a realização de
uma procissão, já que, em frente a quase todas as casas, há um
nicho, guarnecido com um vitral, onde o povo vai implorar a
proteção dos santos. Mesmo durante a noite, esses tabernáculos
não são esquecidos, pois uma lâmpada os ilumina
constantemente. E não se pode acusar os habitantes de frieza
devocional, pois eles recitavam suas preces e cantavam seus
hinos com tanta veemência que, durante a noite, era possível
escuta-los até mesmo do nosso navio, ancorado a quase uma
milha da cidade 131.

Relata ainda o autor que a luz gerada em uma procissão era tanta, devido ao
número excessivo de velas, que os tripulantes do seu navio chegaram a pensar que a
cidade estava em chamas 132. O tenente Juan Francisco de Aguirre chegou ao Rio de
Janeiro em 10 de março de 1782, a bordo da embarcação portuguesa Santíssimo
Sacramento. O espanhol permaneceu na cidade apenas 25 dias, mas seu relato não é
apenas fruto dessa pequena estadia. Aguirre consultou informes portugueses e leu
narrativas de outros viajantes estrangeiros que haviam passado pela cidade e trabalhou
cuidadosamente seus apontamentos, compondo uma das mais belas descrições sobre a
cidade do Rio de Janeiro feita por estrangeiros. No que diz respeito às expressões da
religiosidade no cotidiano da cidade, o espanhol relatou que os habitantes do Rio de
Janeiro pensavam ser o povo mais devoto do mundo católico:

Os habitantes do Rio de Janeiro pensam mesmo que não há povo


mais devoto em todo o mundo católico. E, a julgar pelas
manifestações exteriores de fé, somos obrigados a dar-lhes
razão. Grande é a frequência nas igrejas, tanto para orações,

131
Relato do capitão James Cook. In FRANÇA, Jean Marcel de Carvalho. (org.) visões do Rio de Janeiro
colonial: antologia de textos, 1831-1800. EDUERJ; Livraria José Olympio Editora S.A, 1999, p. 133.
132
Relato do capitão James Cook. In FRANÇA, op. cit., p. 133
177

como para receber os sacramentos. No interior desses templos


sagrados. O uso do hábito e do escapulário de Nossa Senhora do
Carmo e de São Francisco é bastante comum. Como se isso não
bastasse, em quase todas as esquinas, há nichos para santos,
alguns dos quais tão ricamente decorados que podem passar por
altares de uma igreja de bom tamanho. Em frente a tais nichos a
partir do anoitecer, vozes descompassadas e atordoantes cantam
o rosário 133.

John Barrow, intendente inglês da embaixada que conduzia Lord


Macarteney à China, que passou pelo Rio de Janeiro em 1792, também faz uma
detalhada descrição da cidade e seus costumes. Em relação à vida religiosa observa que
embora o objetivo da conquista do Brasil, segundo se pregava ostensivamente, fosse à
conversão dos naturais à fé cristã, mesmo que outrora esse projeto tenha sido executado
com zelo pelo clero, havia dado “lugar a indolência e o gosto pelo luxo. Esses santos
homens, embora conservem uma aparência de devoção [...], deixam muito a deseja no
que se refere à moral e aos bons costumes. A influência de tais religiosos, contudo é
muito forte”, embora a população não os tema. “Os sinos tocam no Rio por tudo e por
nada [...] convocam para as grandes missas e anunciam o réquiem solene que será
cantado em homenagem a uma boa alma que ao deixar esse mundo, legou uma
considerável soma para a igreja”. Assim, os “frequentes rebentar de foguetes e petardos
[...] do perpetuo alarido por meio do qual os padres do Brasil [...] para honrar os mortos,
134
matam os vivos” . O viajante relata que durante sua estadia no Rio de Janeiro, em
1792, foram poucos os dias que não viram alguma pompa fúnebre pelas ruas da cidade:

Durante nossa estada no Rio, poucos foram os dias em que não


vimos alguma pompa fúnebre, acompanhada por padres com
archotes na mão, que estavam, ao longo das ruas, um lúgubre
ofício fúnebre. Igualmente, poucas foram as tardes em que não
presenciamos a estátua de algum santo calendário ou da Virgem
– essa última encerrada em pequenos oratórios instalados nas
esquinas – ser levada pelas ruas da cidade em procissão, com
acompanhamento de padres, soldados em armas e música.
Algumas dessas estátuas eram cobertas por finos diamantes,
topázios e outras pedras preciosas e eram envolvidas por uma
manta redonda com fios de ouro e prata. Todas essas joias eram
fornecidas ou pelas igrejas onde essas estatuas eram
provenientes ou por habitantes ricos, incapazes de cometer uma
heresia e recusar à Virgem os seus diamantes. Apesar de ver

133
Relatos do tenente Juan Francisco Aguirre. In FRANÇA, op. cit., pp. 163-4.
134
Relatos de John Barrow. In FRANÇA, op. cit., p. 223-4.
178

essas festas religiosas quase que diariamente, o povo não parece


cansar-se delas. Quando os sinos tocam, todos os homens que se
encontram na rua tiram seus chapéus, atitude que se repete cada
vez que passam diante dos pequenos oratórios onde estão
colocadas as imagens da Virgem. Além disso, quando os
foguetes e petardos estouram, os olhos voltam-se naturalmente
para as montanhas que abrigam as igrejas e os mosteiros 135.

Em 12 de novembro de 1796, entrou na baia da Guanabara o navio Duff,


trazendo um grupo de trinta missionários da London Missionary Society. Embora a
curta estadia no Rio de Janeiro de apenas 8 dias, fizeram boas descrições sobre a cidade,
pelo menos no assunto que mais lhes interessava, qual seja a questão da religiosidade
carioca.
A cidade, em se tratando de festas religiosas, parece superar
qualquer outra localidade católica. Em quase todas as esquinas,
há uma espécie de nicho, semelhante a um guarda-louças,
abrigando uma imagem do Nosso Salvador e da Virgem Maria.
Esses nichos são adornados com cortinas, fechados por um vidro
e, durante a noite, são iluminados por velas ou candeeiros. No
período matutino, todos os habitantes, ao passar por tais
imagens, param e fazem gestos de devoção. No período da noite
os fiéis entoam cânticos em frente a esses oratórios.
[...] Os rituais católicos, com toda a sua pompa, nada ensinaram
aos habitantes do Rio de Janeiro sobre caridade para com os
seus semelhantes. Durante a nossa estada na cidade, entrou no
porto um navio carregado de crianças negras, todas nuas, as
quais foram despejadas numa pequena ilha próxima da cidade.
Ignorando o seu cruel destino, essas crianças brincavam
alegremente, enquanto os negros mais crescidos eram colocados
à venda. Esses, nus expostos como gado, tinha, de se sujeitar aos
exames mais cruéis por parte dos compradores. Os negros
entreolhavam-se e, com um misto de tristeza, indignação e
desespero, miravam o grupo que se divertia ali ao lado 136.

Percebemos que os relatos dos viajantes que por aqui passaram entre o
século XVIII e a primeira metade do século XIX são excelentes fontes para
entendermos as relações sociais, políticas e religiosas, muito embora tenhamos que
observar os devidos preconceitos, estereótipos e o sentimento de superioridade
presentes em suas narrativas. O que fica bem visível na exposição dos missionários
ingleses da London Missionary Society que, ao descrever as práticas religiosas no
cotidiano da cidade, fizeram uma crítica contundente, tanto no que diz respeito ao

135
Relatos de John Barrow. In FRANÇA, op. cit., p. 224.
136
Relatos dos missionários da London Missionary Society. In FRANÇA, op. cit., pp. 238-242.
179

comportamento de clero quanto ao dos fieis leigos, ao avistarem os símbolos do


catolicismo (cruz, crucifixos, rosários, etc.) colonial nas montanhas, fortificações ou
mesmo carregados no corpo pelos habitantes como prova de sua fé e devoção.
Costumes que ambos vão associar a superstições ou idolatria 137. Tal situação fez com
que eles deixassem de retribuir as cortesias e gentilezas que recebiam de alguns ilustres
habitantes da cidade, a exemplo do vice-rei e de sua esposa 138, o que demonstra como a
barreira de professar outra religião afastava os indivíduos. Apesar da forma
preconceituosa de suas observações, suas informações são valiosas para entendermos o
cotidiano da cidade, seus costumes e expressões religiosas, como percebemos no trecho
do relato onde dizem: “A propósito das cruzes e dos santos, eles estão em as esquinas e
na frente de todas as casas. Os habitantes nunca passam por esses locais sem se
curvarem e fazerem o sinal da cruz. Tal situação beira a idolatria”. Tais cenas os
chocavam profundamente, pois “tanta pompa” na cerimônia não preservava nenhum
traço de pureza imaculada que, segundo eles, caracterizaria a religião de Jesus 139. Além
do olhar de superioridade e preconceituoso do europeu, esses viajantes eram
protestantes, missionários anglicanos pertencentes à London Missionary Society, criada
em 1795, com o objetivo de converter os gentios das ilhas do Pacífico. Isso justifica por
que tiveram reação tão depreciativa em relação às práticas religiosas que eles
presenciaram no Rio de Janeiro, as quais descreveram em tom de desprezo e
repugnância sobre a religião do outro. Na visão desses missionários a religião católica
não havia ensinado aos supersticiosos habitantes do Rio a sinceridade, honestidade,
piedade e caridade, pois suas manifestações religiosas são fingimentos, tratam os negros
escravizados com extrema violência e nas transações comerciais com os estrangeiros
sempre agem de forma desonesta 140.
Outro aspecto do papel das irmandades religiosas no desenvolvimento da
sociabilidade e solidariedade para africanos e seus descendentes é o do auxílio aos
irmãos para a compra da carta de alforria. Tal questão já era prevista pela legislação
portuguesa do final século XVII 141.

137
Relatos dos missionários da London Missionary Socieity. In FRANÇA, op. cit., p. 240
138
Relatos dos missionários da London Missionary Socieity. In FRANÇA, op. cit., p. 239, 3º parág.
139
Relatos dos missionários da London Missionary Socieity. In FRANÇA, op. cit., p. 240.
140
Relatos dos missionários da London Missionary Socieity. In FRANÇA, op. cit., p. 242. Para um estudo
sobre os relatos dos viajantes protestantes sobre a morte. Cf. CORDEIRO, Gabriel Cavalcante. Caixões
Esplêndidos, Costume Abominável: identidade e alteridade estrangeira perante a morte no Brasil (1805 –
1886). Dissertação de Mestrado. UNIRIO, 2015
141
As Cartas Régias autorizavam a alforria em casos de crueldade do senhor para com seus escravos. Um
Decreto Real de 21 de julho de 1702 ordenou julgar breve e sumariamente na Relação da Bahia uma
180

3.3 – Irmandades religiosas e resgate dos confrades africanos e seus descendentes

Ao estudar as confrarias de negros em Portugal, Lucilene Reginaldo


observou a conquista de alguns privilégios por parte das confrarias de negros do Reino,
o que se tornou para os irmãos negros um lugar de proteção e apoio jurídico,
possibilitando aos “escravizados” levar suas causas ao Desembargo do Paço 142. As
irmandades abriam a possibilidade de exercício do poder para grupos sociais menos
privilegiados “aumentando assim seus níveis de protagonismo social”. 143 Desta forma,
algumas confrarias puderam lutar para impedir que alguns irmãos e suas famílias
fossem vendidos por seus senhores para fora do reino. O resgate dos confrades era
possível mesmo contra a vontade de seus senhores, esse foi o privilegio alcançado por
algumas confrarias em Portugal que a princípio havia sido concedido primeiramente à
irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do Convento de São Domingos, no
século XVI 144, foi sendo estendido a algumas e reivindicado por confrarias de Lisboa e
de outras partes do reino, no decorrer dos séculos seguintes. Os irmãos de São Benedito
e nossa Senhora de Guadalupe encaminharam petição ao Desembargo do Paço
reivindicando os mesmos privilégios das irmandades do Rosário do Convento do
Salvador, da Santíssima Trindade, de Santa Joana da Graça “não só para exercitaram as
meritórias obras de libertarem seus irmãos do cativeiro mediante ao pagamento dos
respectivos valores a seus respectivos senhores a justa estimação deles, mas para todas
as mais, de que os privilégios se compunham”. 145 A resposta da Mesa do Desembargo

queixa sobre crueldade de um senhor para com sua escrava. Autorizava os juízes a punirem a réu como
julgassem digno, obrigando-o a vender as escravas que tinha e declarando-o inábil para possuir outros
escravos. QUINTÃO, op. cit., p. 136.
142
REGINALDO, op. cit., pp. 51-54
143
PENTEADO, Pedro. As confrarias portuguesas na época moderna problemas, resultados e tendências da
investigação. LUSITANIA SACRA, 2ª série, 7 (1995), pp. 28, 30.
144
Nos capítulos 22 e 23 do compromisso desta confraria encontrava-se as disposições referentes à atuação
da confraria nos processos de alforria dos irmãos cativos, que podiam depositar seu dinheiro aos cuidados
da mesa diretora, para que fosse guardado até que se alcançasse a soma necessária para a compra da
liberdade; a irmandade podia em certos casos assumir a tarefa de angariar esmolas, até o valor de 500
réis, para completar a alforria de membros com os quais tinha “muita obrigação”. Cf. VIANA. Op. Cit. p.
153
145
Petição da Irmandade de São Benedito e N.S. de Guadalupe sita no Convento de São Francisco de
Lisboa, 1778. Pedem os mesmos privilégios das irmandades do Rosário dos Homens pretos de Lisboa,
Maço 1345, doc. 19. Anexos: Certidões dos privilégios concedidos em cartas e alvarás as Irmandades do
Rosário dos Conventos de São Domingos, do Salvador, da Trindade, de Santa Joana, da Graça e de São
Francisco de Évora. IAN/TT, Desembargo do Paço, Maço 1345, doc. 19. Apud. REGINALDO. Op. Cit.
p. 52
181

do Paço, em 1779, a tais petições é expressiva em seu parecer as irmandades negras em


Portugal na luta pela liberdade de seus irmãos 146.
Os privilégios régios passaram por várias restrições no decorrer dos séculos,
sobretudo o que dizia respeito ao resgate dos irmãos cativos sempre em favor do direito
de propriedade dos senhores. Após o século XVII, o privilégio de resgate dos irmãos
cativos esteve sempre condicionado aos maus tratos ou a venda para fora, na maioria
das vezes para o Brasil 147. Ainda de acordo com Reginaldo, não era fácil a comprovação
de maus tratos, pois era a palavra do senhor branco contra a do escravo, muitos
senhores, para desacreditar a palavra de seus escravos, alegavam em seus depoimentos
que estes nunca haviam participado de irmandades. O que na maioria das vezes era
acatado pela Mesa do Desembargo do Paço em processos julgados. A maioria dos
processos de resgate de cativos não teve um final feliz para as irmandades. Mas o que
chama a atenção, no entanto, é o número de petições e a insistência das irmandades nos
processos de resgate dos cativos. Este fato indica que as irmandades católicas
constituíram o mais importante canal em defesa dos cativos em Portugal 148.
De acordo com Roberto Guedes e Marcio Soares, alforriava-se muito na
cidade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XVIII. Com base nas alforrias
testamentarias e nas estimativas populacionais de 1799, eles afirmam que a freguesia da
Sé estava em terceiro lugar em números absolutos e proporcionais no número de
escravos e forros residentes na urbe carioca. Os autores observam que essa explosão de
alforrias estava relacionada ao aumento crescente do volume de africanos, estrangeiros
desenraizados desembarcados na cidade do Rio de Janeiro, nomeadamente a partir da
década de 1770. Assim, o aumento da entrada de africanos escravizados via tráfico
negreiro possibilitava a recomposição da escravaria. Embora, segundo os mesmos
autores isso não significava que a concessão das alforrias fosse governada por fatores
demográficos. Concluem que a face eminentemente religiosa das alforrias
testamentarias guardavam uma estreita relação de afinidade com a dimensão política do
ato de libertar, não somente pelas relações típicas do Antigo regime nos Trópicos, mas

146
Parecer da Mesa do Desembargo do Paço à respeito da petição da Irmandade de São Benedito e N. S. da
Guadalupe, ereta no Convento de São Francisco da cidade de Lisboa, 03-03-1779. IAN/TT, Maço 2109,
doc. 23. Apud. REGINALDO, op. cit., p. 52.
147
LAHON, Didier. “As irmandades de escravos e forros” in: Os Negros em Portugal, p. 130. Apud.
REGINALDO, op. cit., 53.
148
REGINALDO, op. cit., p. 53-54.
182

também pelo papel seu papel igualmente estruturante em relação àqueles que
permaneciam sob o jugo do cativeiro 149.
As irmandades religiosas foram um dos caminhos utilizados no auxílio à
obtenção da alforria dos seus irmãos africanos e seus descendentes. A invocação do
Rosário sempre teve a maior popularidade entre a população negra no Império Colonial
Português. A irmandade do Rosário sempre esteve associada com a proteção, defesa e
libertação das populações negras espalhadas pelo império. Nem todos os compromissos
das irmandades de homens pretos da cidade do Rio de Janeiro faziam referência ao
resgate dos irmãos cativos. Percebemos que esta discussão estava presente nos
compromissos da irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa, de Nossa Senhora dos
Remédios, no Estatuto da Congregação dos pretos minas Makis e no compromisso ou
regulamento interno da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos
homens pretos. O fato de alguns compromissos não citarem a questão da alforria não
significa que ela não tenha sido relevante para estas associações, pois eram constituídas
por um número significativo de escravos. No caso da Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito dos Homens Pretos do Rio de Janeiro é possível perceber que
ela empreendeu uma luta para garantir o direito de resgatar os irmãos do cativeiro,
conforme revela a correspondência entre a irmandade, o rei e o governador Duarte
Peixeira e Chaves. O que nos fornece importantes elementos para compreendermos os
meandros do cativeiro na cidade.

Por parte dos irmãos da Sra. do Rosário e Resgate dessa


Capitania se me apresentou aqui terem alguns irmãos cativos em
algumas casas com ruim cativeiro, e por alguns deles se acharem
com bastante resgate para se libertarem, o não podia fazer a dita
irmandade sem Licença minha, encomendo-vos que me
informeis com vosso parecer sobre este requerimento ouvindo
aos oficiais da Câmara dessa Praça. Escrita em Lisboa a 12 de
Janeiro de 1685. Rei 150.

149
GUEDES, Roberto e SOARES, Marcio de Souza. As alforrias entre o medo da morte e o caminho da
salvação de portugueses e libertos (Rio de Janeiro, segunda metade do século XVIII). In: GUEDES,
Roberto, RODRIGUES, Claudia e WANDERLEY, Marcelo da Rocha (orgs.). Últimas vontades:
testamento, e cultura na América Ibérica (séculos XVII e XVIII). Rio de Janeiro: Mauad X, 2015, pp.
107-145. Cf. SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, SP: EDUS, 200, pp. 171- 218;
MARQUESE, Rafael de Bivar. A DINÂMICA DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL: Resistência, tráfico
negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. Novos Estudos – CEBRAP - março 2006 – pp. 107-
123. Ver também para a região de Campos de Goitacazes, SOARES, Marcio de Souza. A remissão do
cativeiro: a dadiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacases, c. 1750 c. 1830. Rio
de Janeiro: Apicuri, 2009, pp. 179 e 180.
150
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Códice 952, vol. 3 folha 202. Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário e Resgate do Rio de Janeiro 1685, 01/12.
183

Em resposta, tanto o governador quanto os oficias da Câmara recomendam


ao rei não conceder licença à irmandade para o resgate dos irmãos cativos, sob a
alegação de que tal situação seria muito prejudicial aos moradores da cidade e que os
mesmos não eram os que tinham pior cativeiro e nem as piores queixas de seus
senhores. Ao contrário, seriam os que gozavam de melhor situação e que, com a
conquista da liberdade, se estragariam ainda mais em maiores vícios. Em sua resposta, o
governador afirmou:
Por carta de 12 de Janeiro passado me manda V. M. o informe e
dê meu parecer o que lhe apresentaram os irmãos da Senhora do
Rosário e Resgate desta capitania a respeito de terem alguns
irmãos cativos em algumas casas com ruim cativeiro, por alguns
deles se acharem com bastante resgate para se libertarem e não
podia fazer a dita irmandade sem licença de V. M. mandei dar
vista da carta aos oficiais da Câmara para que dissessem o que
se lhe oferecia sobre este particular e com esta vai sua resposta e
sou de parecer que V. M. se conforme com ela escusando os
pretos deste requerimento, porque é muito prejudicial a estes
moradores, pois os que intentam restar-se não são os que tem
pior cativeiro, nem maior queixa de seus senhores, antes pelo
contrário, que os tais passam e andam melhor que os outros e
talvez que com isso se estragaram mais nos vícios... 151

Em seu parecer, os oficias da câmara recomendavam ao rei “que de


nenhuma maneira deve Vossa Majestade conceder a licença que se pede em razão do
grande prejuízo e total ruina dos moradores desta cidade do Brasil”. Argumentavam
junto ao rei que a maior parte dos cabedais dos moradores da cidade e do Estado do
Brasil estavam investidos em escravos e que se lhes permitisse o resgate resultaria em
três grandes prejuízos. O primeiro seria o aumento dos furtos e o segundo é que os
engenhos fechariam por falta de mão de obra e o terceiro inconveniente é que as negras
e mulatas se amancebam com os homens brancos das cidades e das fazendas, com os
oficiais que nelas servem. Usam esse meio para conquistar alforria 152.
Embora não fique claro no documento os motivos dos furtos, outro
documento, relativo ao parecer do Desembargador Manoel Lopes de Oliveira

151
IEB, Coleção Lamego, Códice 58.16. A8. Parecer de Duarte Teixeira Chaves, Governador do Rio de
Janeiro, sobre o resgate dos cativos pertencentes à irmandade de Nossa Senhora do Rosário. RJ,
1685/05/20. Apud QUINTÃO, Maria. La vem meu parente. Op. Cit p. 139.
152
IEB, Coleção Lamego, códice 58.7.A8 (Translado de uns Autos que vão remetidos a S.M., sobre a
liberdade dos irmãos de Nossa Senhora do Rosário e resposta que deram os oficiais da Câmara desta
cidade. 1685/04/25). Apud QUINTÃO, Maria. La vem meu parente. Op. Cit. IEB, Coleção Lamego,
códice, 46,130,A8. Lisboa, 1º de Abril de 1691. Apud. QUINTÃO, op. cit., p. 143.
184

discordando que fosse promulgada uma lei obrigando os padres da Companhia de Jesus
a resgatar seus escravos, nos fornece informações para entendermos tal situação. Nas
palavras do desembargador, “tais escravos são gente muito viciosa por natureza, e
estando em liberdade dão em atrozes crimes, principalmente ladrões, por não terem
outros meios para ganhar a vida, assim é muito melhor estarem em cativeiro” 153. O
roubo seria também uma forma de os escravizados conseguirem algum pecúlio para a
conquista da alforria ou pagar as entradas e anuais nas irmandades, caso não fossem
pagas pelos senhores. No caso dos forros, poderiam valer-se do roubo para compra da
alforria da companheira/companheiro e ou filhos. Mas possivelmente poderia ser que
quase todo o pecúlio adquirido fosse usado na própria sobrevivência diária. Pois com a
conquista da alforria muitos deles entraram para o rol dos despossuídos e malfeitores
tão temidos, que aparecem nos relatos dos viajantes estrangeiros e relatórios das
autoridades régias. “Teoricamente era possível que conseguisse recursos trabalhando
aos domingos e dias santos com autorização do senhor”. Mas, de uma forma geral
gastavam o lucro na compra de fumo e aguardente 154.
Por outro lado, o documento nos fornecesse uma valiosa informação em
relação à hierarquia na organização da escravaria, quando diz que os “mulatos são os
oficias”. O que nos leva a pensar que tais sujeitos eram libertos e que a aproximação da
cor dos senhores significava também o distanciamento do estigma da escravidão. Isso
nos ajuda a entender a própria organização das irmandades por cor e origem, nas quais
os africanos estavam associados à escravidão e que pardos, mulatos e crioulos estariam
mais próximos no mundo dos libertos. O que explica também a aproximação com o
universo senhorial, assim como, inversamente proporcional os afastaria do mundo da
escravidão 155.

153
IEB, Coleção Lamego, códice, 46,130,A8. Lisboa, 1º de Abril de 1691. Apud. QUINTÃO. Op. Cit. p.
143.
154
SCARANO, op. cit., p. 67.
155
OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção e Caridade: irmandades religiosas no Rio de Janeiro
Imperial (1840-1889). Dissertação de Mestrado. Niterói, RJ: UFF, 1995, p. 157; FARIA, Sheila Siqueira
de Castro. SINHÁS PRETAS, DAMAS MERCADORAS As pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro
e de São João Del Rey (1700-1850). Tese apresentada ao Departamento de História da Universidade
Federal Fluminense Concurso para Professor Titular em História do Brasil. Niterói, 2004, pp. 24;
Aspectos demográficos da alforria no Rio de Janeiro e em São João Del Rey entre 1700 e 1850, p.1;
KARASCH, Op. cit., pp.439-474; FLORENTINO, Manolo. 2002; SAMPIO, Antonio Carlos Jucá. A
produção da liberdade: padrões gerais das manumissões no Rio de Janeiro colonial, 1650-1750. In tráfico,
cativeiro e liberdade. Rio de Janeiro, séculos XVII – XIX. (Org.) FLORENTINO, Manolo. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. MARQUESE, Rafael de Bivar. A DINÂMICA DA ESCRAVIDÃO
NO BRASIL: Resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. NOVOS ESTUDOS 74 -
MARÇO 2006; EISENBERG 1989, PP. 283-4. Apud FARIA. O Cotidiano... p. 117; FLORENTINO.
185

Outra questão que aparece mesmo que de forma latente e que já foi
confirmado pela historiografia 156 é que a alforria estava muito mais presente no
universo feminino, seja no campo ou na cidade de forma individual ou coletiva. O que
nos leva a pensar que também eram elas que mais conquistavam a alforria via
irmandades. Também fica evidente no documento que as irmandades compravam
escravos. Tal questão nos faz refletir como a sociedade do século XVIII via a questão da
escravidão 157. Julita Scarano observou que mesmo as irmandades de cor eram donas de
escravos uma vez que era esse um costume aceito por todos na época. Segundo a autora,
se doavam ou pagavam dividas à irmandade com escravos. Muitas vezes, estes eram
deixados em testamentos para a associação. Tal situação era vista como normal pelas
confrarias de pretos que frequentemente mencionavam os “jornaes de pretos” 158.
Dos 165 compromissos analisados por Patrícia Mulvey, 11 fizeram
referência às alforrias. Eram elas: no Rio de Janeiro quatro irmandades do Rosário, e a
de Nossa Senhora dos Remédios; na Bahia duas irmandades do Rosário, a irmandade de
Nossa Senhora do Amparo e uma de Santo Antônio de Cartagerona; em Minas Gerais
duas irmandades do Rosário, todas anteriores ao século XIX. De acordo com Marisa
Soares, a questão fundamental é saber o que estava em jogo quando a irmandade
adquiria ou herdava um escravo e o que estava em jogo quando ela criava mecanismos
para libertar certos escravos. A combinação dessas duas atitudes pode ser o caminho
para a compreensão da questão em toda a sua complexidade 159.

Alforrias etnicidade... op. cit., p.22; SOARES, Marcio de Sousa. op. cit., p. 71; ENGEMANN, Carlos. De
Laços e de Nós: constituição e dinâmica de comunidades escravas em grandes plantéis do sudeste
brasileiro do Oitocentos. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2006, pp. 67- 6
156
FARIA, Sheila Siqueira de Castro. SINHÁS PRETAS, DAMAS MERCADORAS As pretas minas nas
cidades do Rio de Janeiro e de São João Del Rey (1700-1850). Tese apresentada ao Departamento de
História da Universidade Federal Fluminense Concurso para Professor Titular em História do Brasil.
Niterói, 2004, pp. 24; Aspectos demográficos da alforria no Rio de Janeiro e em São João Del Rey
entre1700 e 1850, p.1; KARASCH, op.cit., pp.439-474; FLORENTINO, Manolo. 2002; SAMPIO,
Antonio Carlos Jucá. A produção da liberdade: padrões gerais das manumissões no Rio de Janeiro
colonial, 1650-1750. In tráfico, cativeiro e liberdade. Rio de Janeiro, séculos XVII – XIX. (Org.)
FLORENTINO, Manolo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. MARQUESE, Rafael de Bivar. A
DINÂMICA DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL: Resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a
XIX. NOVOS ESTUDOS 74 - MARÇO 2006; EISENBERG 1989, PP. 283-4. Apud FARIA. O
Cotidiano... p. 117;
FLORENTINO. Alforrias etnicidade..., op. cit., p.22; SOARES, Marcio de Sousa, op. cit., p. 71;
ENGEMANN, Carlos. De Laços e de Nós: constituição e dinâmica de comunidades escravas em grandes
plantéis do sudeste brasileiro do Oitocentos. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2006, pp.
67- 69
157
Cf. SOARES, op. cit., p. 178.
158
SCARANO. op. cit., p. 71-3
159
Cf. MULVEY, Patrícia Ann. The black lay brotherhoods of colonial Braszil: a history. City University of
New York, Ph. D. 1976, p. 258. Apud. SOARES, op. cit., p. 178-9.
186

Voltando ao parecer dos oficiais da Câmara, eles relatam ao rei ainda mais
dois inconvenientes no caso de conceder licença para a irmandade. Primeiramente, o
conflito entre vizinhos que, por inveja, induziam os cativos “prometendo-lhes que os
libertará por via da irmandade ou os comprará, e lhes dará melhor cativeiro que
resultarão grandes enfados, discórdias e desuniões entre os mesmos moradores”. 160 O
segundo seria a possibilidade de fuga dos escravos, ficando até anos desaparecidos, para
que seus senhores os castigassem e os cativos se aproveitassem disso para se queixar da
violência dos senhores e pedir a liberdade. Aspecto que, segundo a autoridade, poderia
levar à ruina dos senhores. Por todas essas razões, não deveria V. M. lhes conceder a
licença 161.
Constatamos que a luta empreendida pela irmandade do Rosário e São
Benedito dos homens pretos do Rio de Janeiro foi incansável e teve um papel de
destaque na libertação dos irmãos da escravidão. Tal fato se deve à associação da
virgem do Rosário à libertação dos cativos e de São Benedito ter sido um negro
escravizado. O Dicionário da escravidão negra de Clovis Moura cita em um de seus
verbetes que, desde 1779, que está confraria gozava, por provisão régia, do direto de
poder libertar os irmãos cativos:
Desde 27 de Novembro de 1779, a Irmandade gozava, por provisão régia, da
vantagem de poder alforriar, mediante indenização do valor, os escravos que eram
maltratados pelos respectivos senhores ou que quisessem vender por castigo. No seu
compromisso ou regulamento interno, que data de 1831, há uma grande referência à
obrigação de “vir em socorro dos irmãos escravos”. Esse compromisso foi aprovado
pelo poder eclesiástico e pelo poder civil, o primeiro representado pelo então bispo de
Rio de Janeiro, Dr. José Caetano da Silva Coutinho, também conselheiro de Estado e
senador. O poder civil foi representado pela regência trina e por Diogo Feijó. O capítulo
1º sobre os deveres da Irmandade estabelece como objetivo libertar da escravidão os
“irmãos cativos”. Enquanto o capítulo 24 fixa a forma de auxílio para a libertação: era
162
por meio de sorteio, sendo o dinheiro retirado da “caixa da igreja” .

160
IEB, Coleção Lamego, códice 58.7.A8 (Translado de uns autos que vão remetidos a V. M., sobre a
liberdade dos irmãos de Nossa Senhora do Rosário e resposta que deram os oficiais da Câmara desta
Cidade 1685/04/25).
161
IEB, Coleção Lamego, códice 58.7.A8 (Translado de uns autos que vão remetidos a V. M., sobre a
liberdade dos irmãos de Nossa Senhora do Rosário e resposta que deram os oficiais da Câmara desta
Cidade 1685/04/25). Apud. QUINTÃO. Maria. Lá vem meu parente... p. 140.
162
MOURA, Clovis. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Edusp – Editoria da Universidade
de São Paulo 2004, p. 216-217
187

Anderson Oliveira observou que a irmandade Nossa Senhora do Rosário e


São Benedito dos Homens Pretos assumiu uma forma de contestação indireta e criativa,
retomando a expressão de João Reis em relação à criatividade cultural do elemento
negro 163. O compromisso dessa irmandade em seu capitulo 1º deixava claro que um dos
seus deveres era libertar os irmãos cativos, o capítulo 24 estabelecia o seguinte:

Do modo de proceder à liberdade dos cativos § 223. O irmão


escrivão com tempo suficiente escrupulosamente fará as cédulas
de todos os irmãos cativos para serem depositadas em uma urna,
fechada com três chaves; declarando nas mesmas seus nomes e
de seus senhores.
§ 224. Na Véspera de Nossa Senhora concluída a mesa da
eleição, os claviculários em presença da mesa abriram o cofre, e
a caixa da igreja, e conhecendo ser suficiente para libertar um ou
mais irmãos, no dia seguinte pelas quatro horas da tarde reunida
a mesa, iram em alas ao corpo da igreja, levando o irmão
procurador da caridade a urna das cedulas, que depositará em
uma mesa para isto preparada.
§ 225. Isto feito os claviculários abriram a urna, e um dos
meninos à Escolha do irmão procurador da caridade, apresentará
com o braço nú, e levantando o braço, e a mão aberta revolverá
as cédulas primeiro, segunda e terceira vez; depois disto,
levantará outra vez o braço e com a mão e dedos abertos, e logo
o irmão juiz mandará tirar uma cédula, e levantando a mão ao
ar, para mostrar ser uma única, entregará ao irmão escrivão, que
lerá em voz alta 164.

A luta da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito alcançou


a segunda metade do século XIX e só se encerra com a abolição da escravidão em
1888 165. Através de uma carta escrita pelo Bispo D. Pedro Maria de Lacerda, da diocese
de São Sebastião do Rio de Janeiro, endereçada à Irmandade em 24 de agosto de 1871,

163
OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção e Caridade: irmandades religiosas no Rio de Janeiro
Imperial (1840-1889). Dissertação de Mestrado. Niterói, RJ: UFF, 1995, p. 158; REIS, João José e
SILVA Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista, Rio de Janeiro,
Companhia das Letras, 1989, 32-33.
164
BN - Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, Rio
de Janeiro, 1838, in: Diário Oficial/Dezembro de 1901, p. 5922. (O compromisso de 1838 serviu a
irmandade durante toda a segunda metade do século XIX).
165
“Os dias que antecederam à assinatura da Lei Áurea foram intensos. O consistório serviu como centro de
ação. A irmandade guardou todos os estandartes das associações que participaram da luta abolicionista,
dentre os quais, o da Confederação Abolicionista (fundada em 1883). Em 13 de maio 1888, a Irmandade
comemorou a libertação da escravidão e considerou a Lei Áurea como a libertação da Pátria, a
reabilitação da raça oprimida e espoliada da liberdade [...]. Há, senhores, sensações tais, que a linguagem
humana não tem expressões para pintar. A alma sente, experimenta, dulcíssimas alegrias, perde-se nos
delírios da imaginação, mas a voz emudece, porque não é capaz de transmitir pela palavra os sentimentos
que lhe vão n’alma.” Cf. relatório feito pelo escrivão Fortunato José Francisco Lopes. Arquivo do
IPHAN, 1941, pp. 113-14.
188

podemos perceber que sua luta comoveu os fies que contribuíam com esmolas para
alforria dos irmãos. O bispo louva a conduta piedosa da irmandade na luta para libertar
os irmãos e fez também a doação de esmola para contribuir “com tão honrosa missão”
que, segundo ele, era um dos grandes desejos da Santa Igreja Católica 166.
No compromisso da irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, o tema
alforria não aprece. De acordo com Mariza Soares, a tônica do compromisso dessa
confraria era o cuidado com os africanos forros, embora tal questão não significasse que
a irmandade não possuía irmãos escravos. Indicava apenas que ela não era responsável
por comprar-lhes a alforria. Os forros poderiam não ser a maioria dos irmãos da
confraria, mas eram os que ocupavam os cargos, os que decidem e, consequentemente,
seus maiores beneficiários 167. O Estatuto da Congregação dos Pretos Minas Makis168 e
o compromisso da irmandade de Nossa Senhora dos Remédios 169, ambos da década de
1780, também dão destaque ao tema.
O estatuto da congregação dos Makis estabelecia que aqueles irmãos que
não dispõem de todo o dinheiro ou que estiver faltando para a compra de sua alforria, a
instituição providenciaria o montante. O regente reuniria todos os congregados
participando-lhes da necessidade da ajuda mutua para a libertação do irmão e este se
comprometeria a pagar o valor mediante a assinatura de um termo de compromisso
preparado pelo secretário da congregação 170. A irmandade de Nossa Senhora dos
Remédios também propunha formas de assistência para a compra das alforrias dos
irmãos. Essas esmolas, no entanto, tinham limites bem claros: eram concedidos a
membros da congregação em determinadas condições. Não era um direito dos irmãos
nem tampouco uma obrigação ou ato de caridade à irmandade, mas um privilégio

166
“Como sabemos que essa Venerável Irmandade com as esmolas suas e dos fiéis de vez em quando
liberta alguns de seus irmãos que ainda gemem no cativeiro, desempenhando um dos grandes desejos da
Santa Igreja Católica, de ver livres a todos os cativos, assentamos em contribuir para essa obra tão
católica e tanto da Igreja com o óbulo, embora muito pequenino, decerto, de cento e cinquenta mil réis”.
Arquivo do IPHAN, 1941, P. 64.
167
SOARES, op. cit., 2000, p. 179.
168
Estatutos da Congregação dos pretos minas Maki no Rio de Janeiro, o manuscrito reúne um estatuto e
uma ata produzidos por um grupo de mais de duzentos africanos vindos do reino de Maki, situado ao
norte do Daomé. A Congregação estava instalada na Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia, no interior
da Irmandade desses santos, onde criou uma confraria para devoção às almas no ano de 1786. BN/MA–
9,3,11
169
Este documento é uma transcrição do Estatuto da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios, situada na
Capela de Santa Efigênia, no ano de 1788. O Estatuto apresenta, em seus 24 capítulos, os modos de
organização de uma irmandade formada por negros da Costa da Mina na cidade do Rio de Janeiro.
AHU/CU. Códice 1300
170
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios. Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa
– AHU/CU. Códice 1300. Capítulo 22.
189

concedido a determinados indivíduos que pertenciam à parcela do grupo étnico filiada à


congregação dos makis 171. No entanto, a confraria só prestava assistência ao irmão se
sua causa fosse justa, conforme preconizava o capítulo 23 do compromisso da
irmandade de Nossa Senhora dos Remédios 172.
Essas duas confrarias aqui citadas, assim como irmandades de pretos
africanos durante o período colonial e imperial, tiveram um papel forçosamente
ambíguo em relação à escravidão, conforme observa Reis. Não permitiam que os
escravos ocupassem cargos na mesa diretora porque a situação do cativo era
incompatível com a de dirigente. Os juízes e outros membros da mesa tinham que
contribuir com tempo e dinheiro para o progresso da associação; coisas de que o escravo
não dispunha. E os escravos não gozavam de respeito necessário que a posição de
dirigente requeria. Muitos compromissos falavam da indignidade da escravidão e
faziam críticas veladas aos senhores que maltratavam seus escravos. Mas, todavia,
nenhuma delas pôde combater a instituição da escravidão. Apenas cumpriu o papel de
abrir espaços dentro dos limites no sistema escravista 173.
Neste sentido, concluímos que a busca pela alforria entre os irmãos minas
da congregação dos makis da irmandade de nossa senhora dos remédios se fez com base
em critérios ligados ao grupo de procedência. O que nos faz pensar que tal iniciativa
reforçava a identidade étnica, ligada associada à identidade de origem/procedência
negra africana no interior da irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia 174.
Uma das principais atividades promovidas pelas irmandades durante todo
período colonial e imperial era a promoção vida lúdica. Alguns senhores, autoridades
civis e eclesiásticas, viam na festa uma forma de diminuir as tensões entre os diferentes
grupos de africanos.

171
SOARES, op. cit., p. 179 e 180.
172
“Todas as vezes que constar a mesa que algum preto mina é injustamente detido, ou penhorado, e este
mesmo buscar a proteção da Confraria, os oficiais e mesários terão obrigação de se aconselhar pelo
procurador com dois advogados de boa nota, consultando-os na [...] que ocorrer e conformando-se ambos
em que o servo, de que se trata não tem justa no que propõe, a irmandade lhe não concorrerá com
assistência alguma, e sendo vice versa, ou constando que tem justiça, então se fará mesa para
determinação das esmolas, ou quota parte, com que se lhe deve assistir do cofre para ajuda de custo de
mesma causa”. Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios. Arquivo Histórico
Ultramarino de Lisboa - AHU/CU. Códice 1300. Capítulo 23.
173
REIS. Identidade e diversidade Étnicas nas Irmandades Negra... p. 15
174
REIS. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX, são Paulo:
companhia das Letras, 1991, p. 55; Identidade e diversidade Étnicas nas Irmandades Negra... op. cit., pp.
7-33; OLIVEIRA, op. cit., 1995, p.136,157e 158; 2008, pp. 281-308; SOARES, op. cit., 2002, capítulo 6.
190

3.4 – Irmandades, festas e construção de sociabilidades e solidariedades


Uma das principais atividades das irmandades era a promoção da vida
lúdica 175, por meio de festas e do estabelecimento do “estado de folia” de seus membros
e da comunidade negra em geral. Expressão externa da devoção, as festas tinham um
lugar de destaque nas irmandades. Na maioria das ocasiões estavam afinadas com as
práticas do catolicismo tradicional 176, fortemente marcado pelos atos externos de
devoção 177. O padre Antonil, que chegou ao Brasil em 1681, foi um grande observador
das práticas culturais dos africanos e seus descendentes na colônia, fez a seguinte
observação sobre a festa dos cativos:
Negar-lhes totalmente os seus folguedos, que são o único alivio
do seu cativeiro, he querê-los desconsolados, e melancolicos, de
pouca vida, e saude. Portanto não lhes estranhe os senhores o
criarem seus reis; cantar, e bailar por algumas horas
honestamente em alguns dias do anno, é o alegrarem-se
honestamente á tarde depois de terem feito pela manhã suas
festas de N. S. do Rozario, de S. Benedicto, e do orago da
capellã. do engenho, sem gasto dos escravos; acodindo o senhor
com sua liberalidade aos juizes; e dando-lhes algum premio do
seu continuado trabalho 178.

O padre Antonil não só defendia que os senhores liberassem seus escravos


para as festas, mas que estes também deveriam contribuir financeiramente para a
realização das mesmas. Deste modo, “sem gasto dos escravos”, o senhor deveria acudir
os juízes dando-lhe algum prêmio, porque “se os juízes, e juízas das festas houverem de
gastar do seu, será causa de muitos inconvenientes, e ofensa de Deos por serem poucos
os que podem licitamente ajuntar”. O relato do padre Antonil se refere a uma festa
organizada por cativos em um engenho, em área rural, mas que tem todas as
características das festas organizadas pelas irmandades. Segundo Marina Mello e Souza,

175
Uma atividade lúdica é uma atividade de entretenimento, que dá prazer e diverte as pessoas envolvidas.
Marina Mello e Souza, observa que “as festas dos oragos aparecem muito sucintamente nos
compromissos das irmandades, fazendo parte dos aspectos das festas religiosas que não eram vistos com
bons olhos pela igreja [...]. Com seu caráter lúdico, popular, permeado de danças e cantos executados na
rua com ingestão de grande quantidade de comida e bebida.” SOUZA, Marina de Mello. Reis Negros no
Brasil Escravista. História da Festa de Coroação de Rei do Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006,
p.191.
176
De acordo com Anderson Oliveira, era um catolicismo externo, de práticas cotidianas, leigo e pouco
sacramental, vivenciado multiplamente pela globalidade dos segmentos sociais na Colônia e no Império,
onde haveria uma relação muito direta com um conjunto de costumes religiosos consagrados por uma
vivência rotineira. Era visto pelos bispos reformadores como supersticioso, dotado de manifestações de
ignorância, irreverentes e fanáticas. OLIVEIRA, op. cit., 1995, pp. 41-44.
177
OLIVEIRA, Anderson José Machado de. A Festa da Glória. Festa, Irmandades e Resistência cultural no
Rio de Janeiro Imperial. História Social, Campinas – SP – nº 7 – 19-48 – 2000. P. 21.
178
ANTONIL, João André. Cultura e Opulência do Brasil: por suas drogas e minas. Lisboa, na Officina Real
Deslanderina coms as licenças necessárias, no anno de 1711, P. 36.
191

essas instituições tinham caráter eminentemente urbano 179, mas, embora em menor
quantidade, existiam também irmandades em áreas rurais. Os senhores deveriam ainda
evitar que os escravos se embriagassem com garapa azeda ou aguardente, concedendo-
lhes a garapa doce para festa. Assim, fica claro nas palavras do Padre Antonil que ao
contribuiriam para o bom funcionamento da festa os senhores estariam exercendo um
mecanismo de controle sobre os seus cativos, que passariam a lhes servir de boa
vontade. No entanto, observamos que ao “criarem seus reis, e bailar por algumas horas
honestamente em alguns dias do anno” 180, os escravizados na verdade estavam
recriando no Novo Mundo sua cultura e identidade.
Neste sentido, as irmandades foram vetor de criação de sociabilidades e de
construção de identidades. A festa contribuía para trazer à tona a memória das
sociedades africanas de onde foram arrancados. Ao serem enviados para as Américas
pelo tráfico atlântico aos milhares, muitos africanos escravizados perderam o contato
com as tradições familiares de sua região de origem e tiveram que reconstruí-las nos
locais de chegada com os malungus 181 da mesma etnia ou região de procedência 182.
Essa foi à forma encontrada pelos africanos escravizados para reconfigurar
suas tradições, antes fundada nas relações de parentesco. Roger Bastide disse, a respeito
das confrarias, que a reunião em torno de um santo, mais que mística, expressava uma

179
Cf. SOUZA, op. cit., p. 192.
180
ANTONIL, op. cit., p. 36.
181
Segundo Robert Slenes, a difusão do termo, nos séculos XVIII e XIX indica a existência de um processo
de criação de uma identidade comum entre os africanos escravizados, facilitados por traços linguísticos e
culturais que unificavam certas regiões africanas. Além de significar companheiro viagem, o termo tinha
ainda, significados religiosos que não eram compreendidos pelos brancos no Brasil e baseavam-se em
traços cosmológicos que unificavam os povos da África central-atlântica. Sobre a cultura dos africanos
vindos da África Centro Ocidental para o Rio de Janeiro e a construção de uma proto-nação banto. Cf.
SLENES, Robert W. “MALUNGU, NGOMA VEM!”: África coberta e descoberta no brasil. REVISTA
USP, São Paulo, n. 12, (dez. 1991/ fev. 1992): 500 anos de América. p. 48-67. Sobre as formas de
recriação ou dissolução das heranças culturais africanas no novo mundo cf. também. MINTZ, Sidney W.:
PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica. Rio de Janeiro:
Pallas/Ucam, 20003; THORNTON, Jhon K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico,
1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. HALL, Gwendolyn Midlo. Escravidão e etnias africanas nas
Américas, restaurando os elos. Petrópolis, RJ: ed. Vozes, 2017
182
Mariza Soares, propõe a utilização da noção de grupos de procedência: “esta noção, embora não elimine a
importância da organização social e das culturas das populações escravizadas no ponto inicial do
deslocamento, privilegia sua reorganização no ponto de chegada.” Essa proposição está relacionada aos
pressupostos teóricos do antropólogo norueguês Frederick Barth, “que critica a definição de grupo étnico
como uma unidade portadora de cultura. O grupo étnico é o ‘sujeito’ da etnicidade: embora possa haver
grupos que compartilhem uma mesma cultura, as diferenças culturais não conduzem à formação ou ao
reconhecimento de grupos étnicos distintos. Para Barth, o fato de compartilhar uma cultura é uma
consequência, não a causa, a condição ou, menos ainda, a explicação da etnicidade”. SOARES, Mariza.
Os devotos da Cor... p. 114-127; cf. também, BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações
antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000, pp. 25-5
192

espécie de parentesco étnico 183. De acordo com Katia Matoso, os africanos chamavam
de “parente” as pessoas do mesmo grupo étnico, estabelecendo com elas uma
vinculação essencial à redefinição das solidariedades de linhagem e das normas que
comandam as relações sociais 184. João Reis observou que a palavra parente incluía
todos da mesma etnia. Para este mesmo autor, a importância que os escravizados
produziam parentescos simbólicos ou fictícios revela como era grande o impacto do
cativeiro sobre esses homens e mulheres vindos de sociedades baseadas nos parentescos
complexos, das quais o culto aos ancestrais era uma parte importantíssima185.
Observamos que o termo parente era utilizado no aditivo da folia do compromisso da
irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, a qual dizia “se quiser o Imperador fazer
alguma mesa ou convocação de ‘parentes’ assim irmão” 186. A irmandade tornava-se
uma família ritual em que africanos desenraizados de seu continente pátrio poderiam
viver e morrer solidariamente 187. Assim, o “parentesco ritual, poderia oferecer aos
irmãos, além de um espaço de comunhão e identidade, socorro nas horas de
necessidade, apoio para conquista da alforria, meios de protesto contra abusos
senhoriais e, sobretudo rituais fúnebres dignos” 188. Mariza Soares observou que entre os
pretos minas da Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia, a distribuição de recursos
para as alforrias era uma obrigação assumida entre “parentes”, portanto a nível de
grupos étnicos 189. A autora observou ainda que o termo “parente” nas irmandades de
homens pretos era bem mais que serem “irmãos de compromisso”, expressão comum a
todas às irmandades, inclusive as de pardos e brancos. Ser “parente” indicava um
vínculo construído a partir de uma identidade étnica calcada na reconstrução de um
passado comum e de uma organização social e religiosa presente 190.
Se, por um lado, a escravidão impôs aos pretos africanos e a seus
descendentes o estatuto de escravizado, retirando-lhe a condição de pessoa
transformando-o em um estrangeiro desenraizado, um morto social, por outro lado será
nas irmandades de “Homens Pretos”, que terão a oportunidade de reconstrução de sua

183
BASTIDE, Roger. AS Religiões Africanas no Brasil. São Paulo: Livraria Pioneira Editora – Editora da
universidade de São Paulo, 1971.
184
MATOSO. Katia, Bahia do século XIX. Uma província do Império. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1992,
p. 163.
185
REIS, op. cit., 1991, p. 55.
186
Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão E Santa Efigênia. Aditivo da folia capitulo 3.
187
REIS, op. cit., 1996, p. 4.
188
MARIA, Quintão. Lá Vem o Meu Parente: as irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em
Pernambuco, (Século XVIII) – São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001, p. 39
189
SOARES, op. cit., 2000, p. 222.
190
Idem., p. 222.
193

humanidade. Por mais paradoxal que possa parecer à expressão “homens Pretos”, a
irmandade lhes conferia o estatuto de pessoa que não era retirado nem no momento da
morte, pois era para ser enterrado como homens que os irmãos pretos queriam morrer.
Era para alcançar esse objetivo que construíram suas capelas com sepultura, compraram
seus esquifes, mandavam celebrar missas de sufrágio para os falecidos. Foi para existir
socialmente que investiram na religião católica e que através das irmandades
reinventaram seus parentes e uma forma de vida comunitária 191.
Nas festas em homenagem aos santos padroeiros, nas quais se elegiam reis,
rainhas, imperadores e imperatrizes, eram visíveis as raízes africanas 192 que fundavam
no Novo Mundo encantações de reinos africanos, rituais que transformavam a memória
em força cultural viva, embora nunca se esquecessem de anunciar que tudo faziam “para
maior grandeza e aplauso” dos santos de devoção 193. Joaquim Manoel de Macedo relata
como eram famosas as festas de Nossa Senhora do Rosário no Rio de Janeiro.

Não há um só dos nossos velhos que não se lembre com saudade


das famosas festas do Rosário. Assim como na festa do Espirito
Santo há um imperador, nas do Rosário havia rei e rainha com a
sua competente corte, e cuja realeza durava um ano. O negro e a
negra – rei e rainha da festa do Rosário – apresentavam-se
trajando riquíssimos vestidos bordados de ouro e prata,
imitando, o mais possível as vestes reais dos antigos tempos. A
sua corte enfeitava-se às vezes extravagantemente, mas sempre
com grande luxo. O cortejo real era precedido de uma música
especial, e, além da solenidade religiosa, havia danças nas ruas,
em que tomava parte a realeza improvisada, e os pretos do
Rosário batiam palmas, vendo bailar, a seu modo, o rei e rainha
da festa 194.

A festa de Nossa Senhora do Rosário era, como se percebe no relato, uma


cerimônia com elementos de cunho nitidamente africano, como podemos ver na frase “e
os pretos do Rosário batiam palmas, vendo bailar, a ‘seu modo’, o rei e rainha da festa”.
Certamente, modo africano. Joaquim Manoel de Macedo acrescenta que esse costume
não existia só na cidade do Rio de Janeiro, mas também em diversas freguesias do
interior, onde as irmandades do Rosário eram principalmente formadas e sustentadas

191
BEZERRA, Analucia Sulina. As Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos No Brasil:
identidade e diferença cultural. Projeto História, São Paulo, n. 51, pp. 119-138, Set./Dez. 2014.
192
SOUZA, op. cit., p. 181.
193
REIS, op. cit., 1996, p. 15.
194
MACEDO, Joaquim Manoel. Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro. Brasília: Senado Federal,
Conselho Editorial, 2005. (Edições do Senado Federal; v. 42) p. 490.
194

por negros africanos escravizados “cujos senhores prestavam-se a fazer por eles as
maiores despesas da festa, e faziam garbo de gastar avultadas quantias para vestir com
todo o luxo o rei e rainha do Rosário” 195. A irmandade ganhava visibilidade, justamente
na sua aparição em público em seus cortejos pelas ruas presidindo uma série de atos
rituais e danças. Através da coroação dos reis negros, escravizados e libertos
encontraram uma forma de se organizarem comunitariamente ao mesmo tempo em que
celebravam de forma simbólica as práticas que haviam sido deixadas para trás em sua
terra natal, mas não esquecidas 196. Era costume nos quilombos, organizações
comunitárias formadas por cativos fugidos das senzalas dos engenhos, que buscavam
romper com a situação de dominação que estavam submetidos, eleger soberanos, viviam
sob o governo de um rei ou capitão 197.
A coroação de reis e rainhas tornou-se bastante difundida no âmbito das
irmandades de pretos africanos, a partir da qual se atribuía aos soberanos a denominação
genérica de reis e rainhas do Congo. A explicação histórica para essa prática está
relacionada à herança cultural trazida pelos negros africanos escravizados, vindos da
África Centro Ocidental. Essas lembranças recuperam elementos históricos da
conversão do reino do Congo ao catolicismo a partir de século XV 198. De acordo com
Marina Mello e Sousa, a festa de coroação do rei do congo ocorreu com mais
intensidade nas regiões que receberam um maior contingente de africanos do grupo
linguístico banto, oriundos da África Centro Ocidental, em especial os Bacongos,
habitantes do antigo reino do Congo. Entre os séculos XVI e XVII os mais importantes
portos se situavam na região de desembocadura do Rio Zaire; nos séculos XVII e
XVIII, Luanda se tornaria o porto de maior importância desta região; no século XIX as
rotas do tráfico voltariam para esta região do antigo reino do Congo. Independente da
rota que fosse predominante em cada momento, essa vasta região forneceu africanos
escravizados para a América portuguesa e o Império do Brasil em todo o período de
vigência do tráfico atlântico 199. No contexto do tráfico, os diversos grupos que foram
arrancados de sua região e pertencentes a diferentes tradições étnicas e culturais tiveram

195
MACEDO, op. cit., p. 490.
196
SOUZA, op. cit., p. 161; BEZERRA, op. cit., p.129.
197
SOUZA, Idem., p. 251; BEZERRA, Idem., p. 130.
198
BEZERRA, Ibidem., p. 130.
199
SOUZA, op. cit., p. 258.
195

que recriar seus laços sociais e novas formas culturais, sendo a festa de coroação de seus
reis e os seus cortejos uma de suas maiores expressões 200.
A festa de coroação do rei do congo era resultado dos contatos culturais
entre portugueses e africanos centro ocidentais ao longo de séculos de escravidão, por
meio do qual ser organizaram as comunidades negras na sociedade colonial e imperial.
Ao chegarem das terras africanas os escravizados iam deixando de ser estrangeiros, se
habituando com a vida cotidiana na sociedade colonial e imperial, integrando-se as
instituições, como a festa do rei do congo, que no século XIX já estavam consolidadas
ao longo de mais de dois séculos de convívio entre africanos e europeus. As identidades
particulares, vinculadas à etnia e/ou grupos de procedência, foram paulatinamente
cedendo lugar para identidades mais globalizantes, nas quais os elementos africanos
remetiam a sentimentos comuns a todos, entre os quais estava a identificação com o
reino do Congo cristianizado 201.
A preocupação com a festa também aparece no compromisso da Irmandade
de Santo Elesbão e Santa Efigênia. No compromisso da irmandade de Santo Elesbão e
Santa Efigênia, o monarca fictício é tratado de “Glorioso Santo Imperador” que é
acompanhado de sua “Imperatriz” 202.

Porquanto vimos que a experiencia tem mostrado que um estado


de folias nas irmandades pretas serem de muita validade e assim
pa. excitar os animos dos Irmãos queremos que haja um estado
de Imperador, Imperatriz, Principe e Princeza nesta Santa
Irmandade. Eleitos na forma do capitulo quarto 203.

João Reis afirma que os irmãos organizavam rituais de inversão da ordem,


essas eleições eram acompanhadas do bater de atabaques, danças mascaradas e emoções
cantadas em línguas africanas. Eram cerimonias carregadas de emoção, onde os
africanos reviviam de forma simbólica suas antigas tradições culturais e consolidavam
na prática novas identidades étnicas. 204 A festa reproduzia o teatro barroco 205, através de
uma arte cênica que procurava produzir efeitos visuais que envolviam emocionalmente

200
BEZERRA, op. cit., p. 130.
201
SOUZA, op. cit., p. 266.
202
Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Museu do Negro. Cap. 3.
203
Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Museu do Negro. Cap. 1, do aditivo
sobre as folias.
204
REIS, op. cit., 1991, p. 15.
205
Cf. SOUZA, op. cit., p. 181.
196

os espectadores e, ao mesmo tempo, traduzia do imaginário as relações estruturais


existentes entre as diferentes etnias existentes no período colonial 206.
Nas celebrações das confrarias negras, o sagrado e o profano
frequentemente se justapunham e às vezes se entrelaçavam. Procissões, missas e Festas
onde se fazia comilanças, 207 mascaradas e elaboradas cerimonias, não são mencionadas
nos compromissos, em que reis e rainhas negros eram entronizados devidamente
aparamentados com suas vestes e insígnias reais 208. Atenta a todas as atividades da festa
a Igreja buscava banir seu sentido profano, defendendo que vigorasse apenas os
aspectos institucionais sagrados, enquanto os mais aspectos da festa deveriam ser
severamente controlados pelos primeiros. As posições das autoridades civis e
eclesiásticas eram ambíguas diante dessas festas, como podemos ver por ocasião da
aprovação dos cincos últimos capítulos aditivos ao compromisso da Irmandade de Santo
Elesbão e Santa Efigênia, no qual afirmavam que, considerando que o “estado de folias
nas irmandades pretas era de muita validade para excitar os ânimos dos irmãos
queremos que haja um estado de Imperador, Imperatriz, príncipe e Princeza nesta
irmandade” 209. Foi assim que se posicionou o procurador da Mitra, Antonio José de
Gouveia:

Exo. Revo. Snr - nos cinco capitulos com que estes pretendem
querem addir ao seo compromisso não acho cousa que encontre
a Jurisdição Eclesiástica nem que também se opponha aos bons
costumes, e ainda que seja mal soantes aos ouvidos a palavra
“Folias”- como esta consiste em terem hum Imperador,
Imperatriz, Principe, Princeza, Reys Rainhas de estado; para
conciliarem por este meio melhor os animus e as esmolas d’esta
gente preta e há entre elles observado este costume nas cidades e
terras mais bem reguladas talvez para que tenhão esta
consolação; entre tantas trabalhos do captiveiro; a que o sujeitou
a sua infelicidade, parece-me, que se lhes pode conceder o que
pedem, ainda que triano, seja eleição attendendo a que não são

206
TRINDADE, Liana Salvia. Convergência e Conflito de Interpretação do Real: A Festa de Corpus Christi
Como Representação paradigmática da Diversidade Cultural. In Revista do Núcleo de Estudo
Interdisciplinar do Imaginário "Ruy Coelho" da Universidade de São Paulo Dinâmica do Simbólico
número 1, 1993, p. 102-4.
207
De acordo com Soares, as “comilanças” eram um dos pontos altos da festa e também dos mais
controversos. As pessoas perambulam por esses espaços comendo, cantando, tocando instrumento, numa
mistura constante, sendo impossível distinguir entre o sagrado e o profano na medida em que a ocasião
como que sacraliza o espaço e as ações como um todo, mas ao mesmo tempo, sob uma outra ótica, tudo é
“profanado”. SOARES, op. cit., 2000, p. 173.
208
REIS, op. cit., 1991, p. 61
209
Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Museu do Negro. Capitulo 1º dos
aditivos. Museu do Negro.
197

officiaes, que tenhão administração de que devão e hajão de dar


contas sem embargo do que V. Exa. Revma. determinara o que
mais justo parecer Rio 9 de outubro de 1764. Antonio José de
Gouveia Procurador da Mitra despacho DD de confirmação dos
capitulos que apresentão sendo encorporados no compromisso e
rubricado por. Antonio Roiz de Miranda P. Familiar Rio 9 de
outubro de 1764 com a rubrica - se” 210

Os aditivos eram formados por cinco capítulos referentes à festa da


irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia a qual os irmãos chamavam de “estado de
folias” 211 O bispo confirmou por provisão os aditivos aos estatutos da Irmandade após o
parecer do procurador da Mitra que dizia não ver no texto aprovado nenhuma “cousa
que encontre a jurisdição Eclesiástica nem contra os bons costumes”, embora não visse
com bons olhos e lhe soasse mal aos ouvidos a palavra “folias”. O bispo via na festa
uma oportunidade de promover a caridade cristã, além de ser um recurso político que
interessava a paz dos cativos.
De acordo com Reis, celebrar bem os santos de devoção representava um
investimento ritual no destino após a morte, além de tornar a vida mais segura e
interessante. Neste sentido “a festa funcionava como mecanismo de aprofundamento da
identidade e solidariedade” 212 entre os grupos. Sem dúvida, a data mais importante do
calendário das irmandades era a festa do santo de devoção. Nessa ocasião, os irmãos
saiam às ruas para dar prova de sua devoção devidamente aparamentados com suas
roupas de gala, capas, bandeiras, tochas, andadores, cruzes e insígnias em procissões
pomposas, seguidas de danças e banquetes, pois quanto mais espetacular fosse a festa
tanto maior seria a força de intercessão do santo. 213 Neste sentido, as confrarias
assumiam na forma compromissal a celebração de seus oragos com pompa e
brilhantismo 214. Como podemos observar no compromisso da Irmandade de Santo
Elesbão e Santa Efigênia, há a menção de que “Se effetuará a festa dos gloriosos santos
no dia 27 de outubro de cada anno conforme a disposição da mesa e podendo ser se fará
sua novena de nove dias antes do dia da festa para maior gloria de Deus e os santos” 215.

210
Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Museu do Negro. Capitulo 1º dos
aditivos. Museu do Negro. documento 5.
211
Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia capítulos de 1-5
212
REIS, op. Cit., 1996, p, 10
213
REIS, op. cit., 1991, p. 61.
214
OLIVEIRA, op. cit., 2000, p.p. 22-3.
215
Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Museu do Negro. Cap. 2.
198

As Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia recomendavam que as


irmandades fizessem menos gastos com comida, bebida, danças, comedias e coisas
semelhantes. Determinava também que se preocupassem antes com gastos ordinários e
lícitos, além de que os visitadores 216 ordenassem que comprassem ornamentos e peças
para as confrarias 217. Tudo indica que tal recomendação não foi seguida pelas
irmandades, uma vez que, em março de 1747, o bispo d. Frei Antonio de Desterro
promulgou uma pastoral contra as festas que ele considerava ilícitas, sob pretexto de
festejar a Maria Santíssima,
ou outra alguma imagem, ornando para isso altares com músicas
e instrumento e outras pompas, e que depois destas ações se
empregavam as ditas pessoas de um e de outro sexo em bailes,
batuques, e saraus, divertimentos totalmente alheios ao louvor
de Deus e sua Mãe Santíssima, concorrendo muita gente, sendo
isto ocasião de escândalo parecendo estes obséquios com os que
os gentios faziam a seus falsos deuses, misturados de ações
indecentes e escandalosas. Declaram o semelhante exercício por
perigoso, contrário aos bons costumes e aplauso de Nossa
Senhora, ou de qualquer outro santo e como tal ilícito. Pelo que
mandamos com pena de excomunhão que se proíba semelhantes
ajuntamentos, festejos e batuques, e na mesma pena incorrerão
todas as pessoas que assistiram a eles ou concorrerem com
música, casa ou outra cooperação. Mandamos aos vigários, que
mandem ler essa pastoral nas igrejas de suas comarcas e se
registre nos livros das igrejas, 11 de março de 1747 218.

No compromisso da irmandade de Nossa Senhora dos Remédios 219 de 1788,


observamos que os irmãos assumiram a responsabilidade de não executarem danças
com gestos obscenos ou indecentes nas festividades de Nossa Senhora do Rosário. O
que significa que a pastoral contra festas ilícitas promulgada em 1747 pelo bispo do Rio
de Janeiro, d. Frei Antonio do Desterro, tenha sido insuficiente e não tenha surtido o
efeito desejado pelas autoridades eclesiásticas.
Como tem introduzido o costume pela Festa do Rosário,
vestirem-se várias nações de pretos, com o seu chefe particular
para que, unidos todos, contribuam aos louvores da mesma
Senhora com danças, ou folias, à maneira dos etíopes, sem que

216
Constituições Primeiras...Titulo LXII, p.306.
217
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título LXII p. 306 – 874.
218
AHU, Caixa 149, Rio de Janeiro, Doc. Nº 69, 16/06/1781. Apud. QUINTÃO, Antonia Aparecida. Lá vem
meu parente... p. 115.
219
Essa irmandade foi erigida pelos pretos minas no interior da igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia em
1788, pelo mesmo grupo que criou a Congregação dos pretos minas Makis, cujo objetivo era prestar
assistência aos irmãos nacionais. Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa – AHU/CU. Códice 1300.
Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa – AHU/CU. Códice 1300. Cap.
199

com tudo se executem gestos indecentes, ou obscenos, o


regente, na forma do costume determinará a dança, vestindo-se
cada qual à sua custa. E no dia preciso da festa irão, [ilegivel],
incorporar- se com os seus compatriotas, assistindo, assim o
como os mais, aos atos que costumam, sem motim ou
perturbação 220.

Se num primeiro olhar percebemos uma grande preocupação dos irmãos


com sua imagem pública, ao olharmos atentamente veremos que louvar com danças e
folias Nossa Senhora do Rosário assim como os seus demais oragos, significava para os
irmãos celebrar as lembranças da sua região de origem na África. A celebração dos
santos padroeiros nas irmandades cariocas pelos diversos grupos de pretos africanos
revelou-se extremamente eficaz na estratégia de reconstrução de suas identidades
sociais no período colonial e imperial. Isso fica visível na frase “unidos todos,
contribuam aos louvores da mesma Senhora com danças, ou folias, à maneira dos
etíopes”. Com a celebração, os irmãos estavam reafirmando sua identidade católica na
diáspora carioca que, de acordo Francisco Alves de Sousa, teria sua origem ainda na
África, no “grande reino cristão maki ou Mahi”. Ao mesmo tempo celebravam a
memória africana reforçando a identidade particular de grupo. As adversidades sofridas
na travessia atlântica e as imposições da vida em cativeiro, não levou a dispersão 221 do
grupo, mas sua reorganização de acordo com as especificidades locais, tendo os laços de
origem como fio condutor para a manutenção da identidade mina que encobria as
demais (mahis, ianos, angolins e sabarus). Enquanto compatriotas e companheiros de
viagem preservavam as heranças de sua terra natal unidos pelas danças e folias
celebrando seus oragos, Santo Elesbão e Santa Efigênia. Portanto, a partir da celebração
das folias os minas conseguiam explicitar publicamente, os traços culturais que
demarcavam sua identidade coletiva (cultural, social, de grupo/étnico e/ou procedência).
Isso fortalecia o grupo, tanto nas suas relações internas, quanto na sua interação com os
demais grupos na sociedade carioca.
A base de sustentação das confrarias era o culto pomposo que dedicavam a
seu orago, pois para receber as graças e benefícios solicitados aos santos de devoção o
devoto devia homenageá-lo com as festas em seu louvor, festas que representavam

220
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios. Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa
– AHU/CU. Códice 1300.Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa – AHU/CU. Códice 1300. Cap. 20.
221
Cf. THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004
200

exatamente um ritual de intercambio de energias entre homens e divindades 222. De


acordo com Anderson Oliveira, o início dessas festas, na maioria das vezes, estava
relacionado à realização de uma procissão que, na concepção católica, estava associada
a momentos específicos: o rito protetor e a festa. O primeiro momento estava destinado
à busca de proteção dos céus, aos pedidos de chuvas, boas colheitas ou para aplacar a ira
divina em momentos de grandes fomes e epidemias. O segundo momento fazia parte da
própria liturgia festiva de louvor ao santo, contribuindo, muitas vezes, para
proporcionar uma pausa nas inquietações cotidianas dos fiéis e diminuir suas
angústias. 223 Enquanto ideologia, a religião era então coisa dos doutores da Igreja, cabia
aos irmãos o lado “emblemático” e mágico da religião 224.
As festas promovidas pelas irmandades tinham uma grande participação
popular, eram extremamente concorridas e ocupavam um papel de destaque na vida da
colônia e do império do Brasil. Desde os seus preparativos até o dia da festa
propriamente dito, tais eventos proporcionavam momentos de divertimento para a
população. Para Augusto Maurício, as festas do Rosário eram “memoráveis” por serem
o momento em que ocorria a coroação do rei e da rainha. Eram realizadas no largo que
havia no entorno da igreja, em que participavam pessoas de farias esferas sociais.
Faziam leilões de prenda, venda objetos e guloseimas em tabuleiros forrados com
toalhas brancas. A música dava um tom de alegria aos festejos que, além de
proporcionar a diversão dos participantes, tinha o objetivo de honrar a virgem do
Rosário e a São Benedito 225. Reis e rainhas africanos representavam um sistema de
governo, na medida em que possuíam autoridade sobre seus “súditos” e preservavam
aspectos culturais e sociais da África, contribuindo para a integração e solidariedade dos
negros no Brasil.
De acordo com João Reis, a Igreja via com bons olhos a celebração de festas
religiosas por escravos, pois elas pareciam provas vivas de almas conquistadas. O autor
cita uma festa do Rosário da confraria dos pretos situada às portas do Carmo, em
Salvador, na qual o padre Manuel de Cerqueira Torres descreveu deslumbrado a
majestosa pompa com que os negros festejavam o vitorioso Rosário de Maria
Santíssima e que durante a festa houve “discretas e divertidas máscaras, que com vários
gêneros de figura fizeram tão jocundas representações que geralmente agradava a

222
REIS, op. cit., 1991, p. 61.
223
OLIVEIRA, op. cit., 2000, p. 22.
224
REIS, J. J. A morte é uma festa... p. 61
225
MAURICIO, op. cit., p. 134-5.
201

todos” 226. Entretanto, cinquenta anos antes da descrição do padre Manoel as


Constituições primeiras proibiam severamente os clérigos de participarem “em
comedias, festas, e jogos públicos, usar de mascaras, e outros trajes desonestos”,

Pelo que, conformando-nos com a disposição de direito, (2)


estreitamente proibimos (3) aos Clerigos de Ordens Sacras de
qualquer grau ou condição que sejão, entrar em danças, bailes,
entremezes, comedias, ou semelhantes festas públicas de pé ou
de cavalo, ou andarem emascarados 227.

Ao que parece, muitos clérigos não deram muita atenção e desconsideram as


determinações das Constituições Primeiras, tendo em vista que não só apoiavam, mas
até participavam das festas dos negros africanos e seus descendentes, como podemos
notar no processo de devassa promovido pelo ouvidor geral do Rio de Janeiro, de 1782,
na qual o padre frei José Roiz de Santana é acusado de ter participado de um batuque no
dia de Todos os Santos. O batuque teria ocorrido na casa de consistório da Nossa
Senhora da Glória, onde também participaram mais dois padres do convento, a filha de
um sacerdote, uma mulata, duas crioulas, além de três soldados e um pardo auxiliar do
terço 228.
De acordo com João Reis, muitas vezes o vencido imprimia sua marca sobre
a cultura conquistadora, a ponto de fazer os vencedores – ou pelo menos uma parte
deles – reconhecerem-se naquela cultura assim modificada. A tolerância clerical,
mesmo impondo alguns limites, permitiu a africanização da religião dominante.
Segundo o mesmo autor, o extraordinário dessas celebrações que transpassava para o
cotidiano representava, sobretudo uma fuga da vida diária por meio de rituais de
inversão simbólica da ordem social, uma espécie de protocarnaval negro 229. Segundo
este historiador, “o fraco encena a fantasia da superioridade estrutural” 230.

226
REIS, op. cit., 1991, p. 65.
227
VIDE, op. cit., Título VII. p. 184 - 467
228
Existiram vários casos de clérigos que desrespeitaram as determinações das constituições primeiras como
por exemplo a devassa promovida pelo ouvidor geral do crime do Rio de Janeiro onde o frade Bernardo
Magalhães, organista do convento do Rio de Janeiro, com 53 anos de hábito é acusado de estar
frequentemente ébrio, e conviver com uma quadrilha de mulatos "peraltas", dos quais um estaria
constantemente em sua companhia. Junto com estes mulatos teria promovido "indecentíssimos
entremeses e bailes", para divertir outros dois frades do mesmo convento. O acusado não possuiria nem
dinheiro nem escravos, pois segundo o ouvidor "tudo é pouco para gastar com aquelas más companhias".
Cf. ANRJ – Códice 1064 – 1783. Devassa afeita pelo escrivão da Ouvidoria Geral do Crime da Relação
da cidade do Rio de Janeiro, contra os frades do Convento de Nossa Senhora do Carmo da mesma cidade.
229
REIS, op. cit., 1991, p.p. 65-6.
230
TUNER, Victor. O Processo Ritual: Estrutura e Antiestrutura. Petrópolis, vozes, 1974, p.p. 201-207
202

Nesse sentido, os reinados negros podem ter representado as lembranças


diretas da África. Segundo Louis Vincent Thomas, era comum entre vários povos
africanos a inversão das hierarquias durante as celebrações realizadas entre a morte de
um rei e a posse do próximo. Numa etnia da Costa do Marfim, com a morte do rei havia
uma inversão nas forças de poder que se manifestam em diversos distúrbios. Os menos
favorecidos tinham o direto de provocar escárnio que atingia os cumes da bufonaria
durante as cerimônias. Os descendentes de cativos – como no passado seus ancestrais –
encenam a tomada de poder e “se lançam a uma paródia-sacrilégio do aparato real,
designando o mais hábil dentre eles como soberano, dando-lhe uma rainha, servidores,
carregadores de liteira”. Enquanto os membros da elite se submetem a uma série de
restrições durante o período de transição ao governo, tudo se permite aos celebrantes 231.
Era por ocasião destas festas, além das procissões, que as irmandades saiam às ruas.
Esses eventos tinham para elas importância fundamental, pois era nesses momentos que
eram reconhecidas como parte de um corpo social. As festas e procissões eram espaços
de sociabilidade, devoção e palco político privilegiado para disputas de interesses
locais, uma forma de exteriorização da fé, de propagação do culto religioso e
consagração do jubilo cristão.
De acordo com Anderson Oliveira dimensão pública da religião católica
imprimia uma necessidade de exteriorização em procissões e festas, nas quais a
apresentação do símbolo de devoção do santo era fator fundamental. Nas casas existiam
mastros nos quais as bandeiras dos santos de devoção eram exibidas 232. Ao estilo das
confrarias medievais, as festas das irmandades do período colonial e do Império do
Brasil, conservaram o aspecto confraternização e reunião do grupo. Algumas
irmandades colocavam clausulas especifica que menciona o comparecimento às festas
como uma das obrigações fundamentais do irmão 233.
O banquete de confraternização parecia desempenhar também um papel
fundamental, mesmo em meios às críticas severas dos bispos que viam esse como um
ato de respeito e de falta de espirito religioso. Numa cultura barroca como a colonial, a
preocupação de apresentar o símbolo devocional era prática essencial entre os fiéis,

231
THOMAS, Louis Vincent, La mort africaine, Paris, 1982, pp.173-4. Ver também Catolicismo negro, in
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil, São Paulo, 1971, I, esp. Cap. V; Scarano, Julita.
Devoção e escravidão. São Paulo, 1975.
232
OLIVEIRA, op. cit., 2008, p. 270; cf. também. MOTT Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela
e o calundu. In SOUZA, Laura de Mello e (org.) história da Vida Privada no Brasil: o cotidiano e vida
privada na América portuguesa. São Paulo Cia das Letras, vol. 1. p. 156,160,164,186.
233
OLIVEIRA, op. cit., 1995, p. 176-177.
203

tendo sido absorvida pelos africanos escravizados. A coroação de reis e rainhas remetia
a um passado idealizado, ligado a uma terra natal desprovida de particularidades
concretas, vivida como lugar abstrato, portador de características gerais e distantes das
realidades diferenciadas de cada região. Para a maioria dos estudiosos essas festas têm
suas origens nas tradições africanas 234.
A proibição ou a permissão das festas promovidas pelos pretos africanos e
seus descendentes em determinados momentos do ano de acordo com seus costumes
próprios foi alvo de constantes debates entre administradores régios e senhores. Tendo
em vista os riscos de revoltas que sempre pairavam no ar e a maior exploração do
trabalho dos escravizados levou senhores e administradores a adotarem posturas
antagônicas 235. De um lado estavam aqueles que defendiam a repressão a qualquer
ajuntamento de negros sob quaisquer circunstancias, em geral ao som de tambores com
danças cujo significado era incompreensível aos agentes da sociedade colonial. Estes
viam nessas ocasiões momentos extremamente perigosos propícios para se tramar
conspirações e/ou deflagrar uma rebelião que poderia ter sido tramada para detonar
durante os festejos 236.
De outro lado estavam aqueles que achavam que a permissão a festa e ritos
negros era um importante momento para os escravizados extravasarem as tensões
acumuladas na lida diária resultantes da violência do cativeiro; de modo que poderiam
retomar as atividades com maior boa vontade 237. Muitas vezes estavam senhores de um
lado, governantes e agentes da lei de outro. Por traz da atitude de repressão ou
concessão pairava sempre o fantasma da rebelião. Encontrar uma forma de conter,
reprimir ou extinguir as rebeliões que se multiplicaram no século XIX foi uma constante
obsessão dos administradores régios e da elite senhorial 238.
Como já vimos, com o incremento do tráfico atlântico a partir do início do
século XVIII aumentou o contingente de população escravizada, livre/liberta nos
centros urbanos das principais capitanias do Estado do Brasil, como Rio de Janeiro,
Bahia, Pernambuco e Minas Gerais. As festas promovidas pelas irmandades de pretos
onde ocorria coroação de reis e rainhas causavam nas autoridades um certo desconforto
234
SOUZA, op. cit., p. 194.
235
REIS, J.J. Nas malhas do poder escravista: a invasão do Candomblé do Accú. In SILVA, Eduardo e
REIS, J.J. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1989,
37; SOUZA, op. cit., p.228.
236
SCHWARTS, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. 1550-1835. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 389
237
SOUZAop. cit., p. 228.
238
REIS, op. cit., 1989, 37.
204

e inspirava o medo de que tramassem alguma rebelião. Assim, as festas que elegiam reis
e rainhas tornaram-se ameaçadoras para algumas autoridades, que viviam em um clima
de constante tensão que provocou um quadro de perseguição. Houve várias tentativas
por parte das autoridades para banir as festas e coroações de reis e rainhas negros 239.
Na região de Minas Gerais, em 1720, o Conde de Assumar proibiu a festa
de coroação de reis e rainhas. Ameaçou não pagar os sacerdotes que concordassem com
a coração de reis e rainhas dos pretos. Tal medida foi imposta por conta de rumores que
surgiram sobre um grupo de escravos rebeldes que haviam nomeado entre si um rei, um
príncipe e oficiais militares. Embora o conde suspeitasse que isso não passasse de uma
zombaria dos negros, sugeriu que todos os negros minas que se autonomeassem reis
fossem capturados e expulsos da comarca 240.
Em Salvador, em 1729, um decreto tornou ilegal a coroação de reis e
rainhas durante a festa de Nossa senhora do Rosário. Sob alegação de atos de
indisciplina e roubos praticados pelos negros para decorar com a pompa habitual seus
folguedos. Eram acusados também de “entrarem violentamente nas casas de muitos
moradores, retirando delas os escravizados que estavam sendo castigados”, sob a
suposta alegação de que estes pudessem participar da festa. A festa dos pretos era
associada ao rompimento da ordem, além da preocupação das autoridades com os
poderes que o rei detinha durante os festejos. A partir de então, há o um endurecimento
por parte das autoridades, proíbem as irmandades de elegerem e coroarem reis e rainhas.
Permitindo apenas os Juízes e Juízas de Nossa Senhora do Rosário que podiam fazer
suas festas nas igrejas. Qualquer preto que participasse nas coroações de reis ou rainhas
seria punido com açoites, os homens serviriam um ano nas galés e as mulheres seriam
sentenciadas a prisão 241.
Apesar da repressão e das medidas preventivas tomadas pelas autoridades
régias, os escravizados continuaram a fazer suas festas e coroar seus reis e rainhas. “As
repetidas referências sobre reis e rainhas liderando suas comunidades de escravizados

239
KIDDY, Elizabeth W. quem é o rei do Congo? um novo olhar sobre os reis africanos e afro-brasileiros no
Brasil. In HEYOOD, Linda M. (organizadora). Diáspora negra no brasil. São Paulo: Editora Contexto,
2008, p. 173.
240
BORGES, Célia Aparecida Resende Maia. Devoção branca de homens negros. As irmandades do Rosário
em Minas Gerais no século XVIII. Tese de Doutorado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, UFF,
1998, P. 96; SOUZA, Marina Mello e. Reis Negros no Brasil escravista... p. 234; KIDDY, Elizabeth W.
Quem é o rei do Congo? ... p. 173-4.
241
MULVEY. Patricia Ann. The Blacks lay brotherhoods of colonial Brazil: a history. City University of
New York, Ph.D. University Microfilms international, 1976, p. 116; apud. SOUZA, Marina Mello e. Reis
Negros no Brasil escravista... p. 236; BORGES, op. cit., p. 97-98; KIDDY, op. cit., p. 173-4.
205

foragidos em grande parte do século XVIII em várias regiões do Estado do Brasil


demonstram que os grupos elegiam, ou selecionavam de alguma forma, lideres com
título de realeza para conduzi-los” 242. O poder desses reis, embora estivesse
condicionado a festividade, ou seja, durava apenas o tempo da festa. Entretanto, mesmo
depois de deixarem o cargo, esses negros continuavam a serem tratados de forma
especial no seio da comunidade 243. Stuart Schwartz observou na Bahia que à medida
que o número de africanos crescia aumentava também o número de rebeliões, as
autoridades coloniais e senhores buscaram por maneiras contê-las, restringi-las ou
elimina-las. Principalmente aquelas abertamente africanas 244. Inseridas em um
catolicismo barroco, as festas de coroação a partir do século XIX foram sendo
identificadas como práticas de origem popular.
Na passagem da colônia para o império, o Rio de Janeiro tornou-se a sede
desse império, devido à chegada em 1808, da família real e sua corte. O passado
colonial passa a ser visto como arcaico e retrógado, incompatível com a cidade que se
tornara sede da corte portuguesa. Proibiu-se as irmandades de saírem às ruas aos
domingos e feridos para pedirem esmolas, embora tais práticas tivessem como espaço
preferencial o Campo de Santana. A justificativa era de que provocava enorme
ajuntamento de negros resultando em distúrbios e bebedeiras.
Em 1817, o príncipe regente proíbe os ajuntamentos provocados pelos
peditórios 245 de negros ao som dos tambores, as festas de coroação de reis e rainhas
passam a ser realizadas em locais permitidos de acordo com as negociações entre as
partes interessadas. Serão mantidas nas cidades do interior e desaparecendo dos centros
urbanos 246.

242
KIDDY, op. cit., p. 174.
243
SOUZA, op. cit., p. 237.
244
Nessa conjuntura os batuques e candomblés, tornaram-se um problema de polícia. As casas de cultos
passaram a ser invadidas em Cachoeira, em 1785, em Salvador, em 1829; SCHWARTZ, Stuart. Cantos e
quilombos numa conspiração de escravo Haussás. Na Bahia, 1814. In REIS, J.J. & GOMES, Flavio dos
Santos (Org.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1996, p. 388.
245
O intendente Geral de Polícia, Paulo Fernandes Vianna, faz um acordo com os juízes das irmandades na
qual elas passam a receber a quantia de 50$réis anuais para que não saíssem às ruas para pedir esmolas,
garantido o sossego público e as irmandades não ficariam privadas do bem que recebiam. Mas tão acordo
só durou cinco anos, as autoridades sentiram-se desobrigadas a pagar tal quantia havia sido autorizada
verbalmente pelo príncipe regente.
246
Jean Baptiste Debret, relata que com a presença da Corte no Rio de Janeiro proibiram-se aos pretos as
festas e fantasias “extremamente ruidosas” a que se entregavam em certas épocas do ano para lembra a
mãe pátria; essa proibição privou-os igualmente de uma cerimônia extremamente tranquila, embora com
fantasias, que haviam introduzido no culto católico. É por esse motivo que somente nas outras províncias
do Brasil se pode observar ainda eleição anual de um rei, e de uma rainha, de um capitão da guarda. Cf.
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro S.A. s/d.
206

Muitos aspectos relacionados às festas de eleição e coroação das realezas


negras não estavam regulamentados nos compromissos das irmandades. Talvez por
fazerem parte de um conjunto de atividades não plenamente aceitas pelas autoridades
eclesiásticas, mas que sempre estiveram presentes nas comemorações religiosas. Tais
compromissos traziam frequentemente apenas informações de como se deveria fazer a
escolha dos reis e rainhas. Observamos que este aspecto da festa era muito importante
para os irmãos de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos do Rio
de Janeiro. Pelo menos é que o parece indicar o capítulo 13 do compromisso de 1759 –
quando fala das festividades de São Benedito – nos parágrafos 36 e 37, juntamente com
as festividades de Nossa do Rosário.

o dia Sabado primeiro de Outubro no qual se juntarão pela


manhã todos os oficiaiz da Meza, e mandará o Juiz pelo
Escrivão abrir o cofre, e dele tirar a pauta, e fazer a Eleição para
a festa de Sam Benedito, que se fará de Juiz, huma Juiza de
Vara, e cinco Juizas do Ramalhete; e logo a mandará lançar no
livro das Eleiçõez de donde se tirará por tras lado a que se há de
publicar no dia seguinte, pelo Pregador da festividade de Nossa
Snr.a do Rozario; E na Eleição que se fizer nenhum Juiz,
Oficial, ou Irmão de Meza poderá ser reeleito em ficarem na
mesma Meza, mas sim sendo [...] hum anno; e só o poderá ser
em lugares superiores aos que tiverem servido, salvo algum
acontecimento que a Meza julgue, ou que hajas por bem julgar o
que fique reeleito esta ou aquele oficial da Meza a utilidade da
Irmandade 247.

O compromisso regulamentava a forma de eleição de “Juiz e Oficial, ou


Irmão da Mesa”, que poderiam ser reeleitos na mesma mesa por mais um ano, mas
somente em cargos superiores aos que já haviam servido. Os reis e rainhas são citados
no capítulo 10 que fala dos requisitos, lugar e obrigações dos irmãos da mesa,
afirmando que haverá “também hum Rey, e sua Raynha, que darão de esmola quatro mil
mil reiz”. Nas atas das eleições, quando são firmados os nomes dos que
desempenhariam papeis específicos na preparação e realização da festa é possível ver os
nomes e a quantia que cada um dos ocupantes dos cargos contribuía para a realização da
festa e que, quando o eleito era cativo, vinha acompanhado do nome de seu senhor 248.

p. 582; SOUZA, op. cit., p. 247-8; KIDDY, op. cit., p. 175-6.


247
Compromisso da Irmandade de Nossa senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos do Rio de
Janeiro. AHU/CU. Códice 1950. Cap. 13.
248
SOUZA, op. cit., p. 212.
207

Julita Scarano diz que muito embora esses reis negros se vestissem à
maneira dos brancos, dançavam a sua própria maneira e cantavam suas canções
misturadas com as letras das orações. A importância desses reis não se limitava aos dias
de festa, durando o ano inteiro, sendo respeitados indistintamente por negros de
“qualquer nação”. Tal situação contribuiu eficazmente para a união de diferentes grupos
de procedência, uma vez que pessoas de quaisquer origens, desde fossem pretas, podiam
ascender à “realeza”. Muito embora o título recebido em muitas regiões mineiras fosse
de “Rei do Congo”, poucas eram as associações em que os indivíduos que subiam a tal
posto tinham sua origem nessa região do continente africano 249. Assim como o rei era
um cargo ritual, o nome atribuído como “rei do Congo” era simbólico 250.
Para Célia Borges, as irmandades eram um lugar de constante negociação,
conflito, aprendizado de respeito às diferenças e reconstrução cultural no contexto da
diversidade étnica e opressão do sistema escravista. A autora observa que, ao contrário
das confrarias mineiras, nas irmandades cariocas as diferenças étnicas eram mais
evidentes. Ao encontrar indícios de conflitos entre reis e juízes, no tocante a disputa de
autoridade no interior de uma mesma irmandade, a autora sugere a possibilidade de que
essa querela estivesse ligada a diferenças étnicas, sendo esses cargos ocupados por
indivíduos oriundos de grupos de origem étnica e procedência diferente. Segundo a
autora, enquanto em Minas Gerais, os conflitos interétnicos ocorriam no interior das
irmandades, no Rio de Janeiro, onde as diversas nações se reuniam em irmandades
diferentes, os conflitos ocorriam entre as associações distintas.
Assim, os pretos da nação Benguela da irmandade do Rosário dos pretos do
Rio de Janeiro enviam, em 1767, um requerimento ao Conde da Cunha, reivindicando
que devia haver um único rei, o de sua irmandade, apesar de outras nações de pretos
erigirem suas irmandades e instituírem seus reis, chamando-o “do Congo”. As
discórdias surgiam na medida que essa multiplicidade de reis, quisesse cada um ser
acompanhado pelas demais nações. Os suplicantes entendiam que devia existir apenas
um rei, o da irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Pretos, a qual
todas as demais deviam obedecer, e pediam que não fossem mais obrigados a
acompanhar outros reis que não fosse o seu 251.

249
SCARANO, op. cit., p. 45-6
250
SOUZA, op cit., p. 195
251
BORGES, Célia Aparecida Resende Maia. Devoção branca de homens negros: As Irmandades do.
Rosário em Minas Gerais no século XVIII, p. 101; cf. OLIVEIRA, op. cit., 1995, especialmente o
capítulo 4
208

O documento citado por Célia Borges revela os conflitos interétnicos entre


as diferentes irmandades de negros existentes na cidade Rio de Janeiro no período
colonial, na medida que os irmãos do Rosário reivindicavam a exclusividade e primazia
na eleição de um único rei, o seu, e não queriam acompanhar os reis das outras
confrarias. Ao mesmo tempo, reivindicavam que todos os outros grupos de procedência
deveriam render homenagem ao seu rei. De acordo com Marina Mello e Souza, estavam
os irmãos defendendo a unidade da comunidade negra em torno de seu rei, na medida
em que exigiam que todos o acompanhassem na ocasião dos rituais festivos 252.
Ao estudar a Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, Mariza Soares
percebeu que esses conflitos existiam no interior da agremiação. Através da análise do
seu compromisso ela nos revela que os irmãos procuravam criar mecanismo para
regulamentar a presença de pequenos grupos no interior da irmandade e centralizar o
poder nas mãos grupo “fundador”. Além disso, a autora demonstra que a criação do
Estado Imperial tinha dupla função, distribuir cargos e títulos, e estabelecer
hierarquias/distinções no interior da igreja confrarial com o objetivo de aumentar a
receita da irmandade 253.
No interior da irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia reuniam-se
diferentes grupos de procedência, como são mencionados pela autora: pretos da Costa
da Mina, de Cabo Verde, Ilha de São Tomé e Moçambique. Para ela, a participação das
mulheres, que foram as mais beneficiadas com a reforma do compromisso aprovada em
1748, tal fato sugere que sua contribuição deve ter sido substancial a ponto de ampliar
sua influência na direção da irmandade, através da inclusão no compromisso de juíza e
mesa femininas. Após se instalarem na nova igreja, os diferentes grupos de procedência,
até então aliados em torno da construção do templo, “começam a se desentender e a
disputar em nome de preferência e maiorias”. Sendo a primeira ruptura entre os minas e
as demais procedências minoritárias. A segunda se deu no interior dos minas, opondo-
os aos dagomes. Tudo indica que os makis deviam constituir o maior grupo e que para
fazer frente ao reino do Daomé se equipararam a ele como oriundos do grande reino
Maki, um dos mais excelentes potentados da Costa dá Mina. Esses diferentes grupos de
procedência da Costa da Mina que se reuniam no interior da irmandade de Santo
Elesbão e Santa Efigênia disputavam entre si o controle da igreja e seus recursos. Como
os outros grupos de procedência eram majoritariamente pequenos, os preto-minas

252
SOUZA, op. cit., p.196
253
SOARES, op. cit., pp. 191-4
209

controlavam a igreja. Nesse sentido, o conflito ou a ausência dele se dava pela


afirmação do grupo étnico 254.
A criação do Estado Imperial pela mesa da irmandade de Santo Elesbão e
Santa Efigênia se explica pela necessidade de contemplar esses pequenos grupos na
participação da esfera de poder e prestigio da irmandade, através da distribuição de
cargos. Estabeleciam em sete o número de reis, cada qual com sua corte; o que se dava
justamente por serem sete os grupos identificados no interior da irmandade:
moçambiques, cabo-verdianos, dagomes, makis, sabarus, agolins e ianos. Os irmãos
santomenses eram deixados de fora, certamente por formarem um grupo muito pequeno.
As folias estavam integradas aos mecanismos de poder, de diferenciação social e de
construção das identidades 255. Assim, fica claro que no interior de uma mesma
irmandade ocorriam conflitos entre os grupos étnicos ali abrigados, os quais marcavam
suas diferenças. Fica evidente também que a criação do Estado imperial, com a
distribuição dos cargos e a eleição de seus reis, era uma tentativa de administrar as
tensões e as disputas políticas e ao mesmo tempo incrementar a arrecadação dos
recursos para o sustento da agremiação e festa do orago.
Observamos que este não é o único caso de coroação de diferentes reis
negros no interior de uma irmandade no Rio de Janeiro. Tal situação é confirmada pelo
relato de Mello Moraes Filho sobre a coroação de diversos reis negros no interior da
irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa, em 1748. O autor transcreve uma petição
datada de 03 de novembro de 1748, endereçada ao Desembargador Ouvidor-Geral do
Crime, em que o “Imperador, Rei, a Rainha e mais adeptos da nação do Santo Baltazar”
pedem permissão para “em os domingos e dias-santos festivos, tirar as suas esmolas por
meio de danças e brinquedos que fazem com as demais nações, com todo o recato e
sossego” para serem “aplicadas às festividades do santo Rei”. O que torna evidente que,
além das vultosas contribuições que davam para festa, os reis e rainhas eram também
responsáveis pela arrecadação das esmolas e doações necessárias para a realização da
festa, feitas por meios de coletas e campanhas de séquito musical e dançante que
percorriam as ruas da cidade mediante a aprovação prévia das autoridades coloniais. No
dia da festa do padroeiro os irmãos organizavam uma mesa junto à entrada do templo
presidida pelo irmão de mais alto grau, assistido por vários irmãos, um secretário e um
tesoureiro responsável pelo registro das contribuições feitas pelos irmãos e suas

254
SOARES, op. cit., pp. 191-4; FARIA, op. cit., 2004, p. 137.
255
SOARES, op. cit., pp. 191-4.
210

famílias 256, (veja figura 2). Pediam também os irmãos, permissão para no “dia dos Reis
coroar para rei da nação Rebolo a Antônio, fâmulo do mesmo Ilmo. e Exmo Sr Vice-
Rei, e que nesse dia pretendem sair com seus instrumentos e danças da mesma nação
para ser feito como maior obséquio” 257.
Embora o vice-rei tenha autorizado à festa, o ouvidor do crime na época não
permitiu as comemorações. Autorizou apenas a coroação, pois em sua opinião a festa
era um “atestado do atraso mental do Brasil”. Com sua morte, o seu substituto, com
uma visão diferente, não achava que a mentalidade brasileira pudesse ser afetada “por
uma festa de escravos” 258 e a tradição foi restabelecida. Recebendo autorização, os
irmãos saiam pelas ruas da cidade e fazendas do Engenho Velho, do Engenho Novo, do
Macaco e de Santa Cruz. Segundo os limites da autorização concedida, cantavam com
seus instrumentos e dançavam, recolhendo as esmolas “profusas, dádivas valiosas, que
entravam para o cofre da irmandade, por conta do qual corria a despesa da festa”. A
estes se juntavam outros pretos, homens mulheres e crianças de diversas nações, que “se
associavam a alheios prazeres” 259.
Marina Mello e Souza observou que recolher donativos para festa em nome
dos reis era costume lusitano nas folias, assim como no universo cultural banto. Era
costume na África Centro-Ocidental as aldeias enviarem tributos aos reis e chefes
tribais. Tal sistema atingiu alto grau de complexidade no reino do Congo, pois estava
diretamente ligado à estrutura da corte congolesa e à organização do poder no interior
da elite dirigente. Entre os séculos XVI e XIX, no reino do Congo, participar de uma
determinada rede de tributação significava fazer parte de um mesmo corpo político,
mesmo que a administração dos assuntos cotidianos fosse independente do rei e da
capital. O rei ocupava um lugar simbólico que era reafirmado por uma fidelidade que se
expressava, entre outras formas, pelas remessas de tributo. “Além disso, sendo o rei o
representante maior da divindade, quando se lhe enviava parte da produção buscava-se
garantir, por seu intermédio, um determinado estado de ventura da comunidade, no qual
vigorava a harmonia social e a fartura material”, frutos de um bom auxílio religioso e
um bom governo. Neste sentido, a tradição centro-africana era incorporada à festa
religiosa e reforçava os laços sociais no interior da comunidade. A atribuição dessa

256
DEBRET, op. cit., p.581.
257
MORAES FILHO, Mello. Festas e tradições populares do Brasil Coleção Biblioteca Brasileira, 2002,
p.279-283.
258
MAURICIO, op. cit., p. 94.
259
MORAES FILHO, op. cit., pp. 279-283.
211

função a um rei aproximava-se das tradições centro-africanas, uma vez que tais recursos
eram revertidos em benefícios para o grupo em forma de festa, mas também em
harmonia e bem-estar de todos os membros do grupo, garantidos pelo bom governo do
rei 260.

Imagem 2 – Coleta de esmolas na irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Porto


Alegre. 1828

FONTE: DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo:
Círculo do Livro, s/d, p. 581

Voltando ao relato de Mello Moraes, a festa suntuosa do rei santo Baltazar


ocorria no Campo de São Domingos, nas proximidades da capela da Lampadosa. Com
muita pompa, participavam dos festejos variados grupos representantes de uma
pluralidade de nações de procedência africana, escravizados no Brasil (moçambiques,
cabundás, banguelas, rebolos, congos, cassanges, minas). Estes grupos “exibiam-se
autênticos”, segundo o memorialista, cada qual com sua característica própria e

260
SOUZA. Reis Negros no Brasil Escravista...Op. Cit. 2006, p. 211.
212

diferencial de sua nação da África. Entregavam-se em imensa sensação de prazer e


alegria “da liberdade de um dia”, rendendo culto ao Santo Rei Baltazar, que lhes trazia
recordações de sua terra de origem e ao mesmo tempo aliviava as tensões do cativeiro, e
pela cor de sua pele os aproxima. Tomando como base o mesmo arquivo da irmandade
da Lampadosa, o autor faz outro relato que demonstra que outros reis eram coroados na
confraria:
Termo de coroação do Rei e Rainha de nação Cabundá. – Aos
seis dias do mês de outubro de 1811, nesta capela de Nossa
Senhora da Lampadosa, tiveram posse e se coroaram de Rei,
Caetano Lopes dos Santos, e de Rainha, Maria Joaquina, ambos
de nação Cabundá, por estarem eleitos pela sua nação e por
terem licença do Ilmo. Sr. Intendente-Geral de Polícia, e para
constar se lhe mandou passar este termo, no dia, mês e ano
acima declarado. – Padre Tomás Joaquim de Melo, capelão da
irmandade 261.

Conforme relato de Mello Moraes, “seguiam-se sinais ou assinaturas dos


reis coroados e de outras diversas nações que testemunharam o ato”. Tudo indica que,
assim como na irmandade de Santo Elesbão, a irmandade do Santo Rei Baltazar
congregava irmãos de diferentes grupos de procedência que coroavam vários reis
representantes dos principais grupos étnicos 262. Ainda de acordo com o memorialista,
concluída a solenidade religiosa, o Rei, a Rainha e os demais figurantes incorporavam-
se ao séquito e perdiam-se na imensidão do Campo de São Domingos, arrastando atrás
de si uma imensa multidão atraída pela “musica estridente, pelo balancear majestoso do
préstito” 263.
Após a festa religiosa da manhã, na parte da tarde ocorria uma segunda festa
mais concorrida, com a presença dos personagens régios. Eram as festas públicas
comemorativas, nas quais se realizavam os clássicos batuques feitos por negros de
diferentes nações tendo como palco o areal improvisado em frente ao templo da
irmandade. Participavam negros das fazendas dos jesuítas e escravos das casas fidalgas
que recebiam consentimento para isso. Ocupavam o Campo de São Domingos em
“alegre algazarra”, segundo Mello Moraes, tocando seus instrumentos, cantando e
dançando, sob o olhar vigilante da polícia que os espreitava 264.

261
Termo de coroação do Rei e Rainha de nação Cabundá. MORAES FILHO. Op. cit., p. 283; cf.
MAURICIO, op. cit., p. 94.
262
Cf. MORAES FILHO, op. cit., p.p.279-283
263
Idem., p. 283.
264
Ibidem., p. 283
213

Esse relato de Mello Moraes demonstra como as relações entre as diferentes


nações que compunham as irmandades no Rio de Janeiro eram bastante ambíguas. A
festa de coroação dos reis da irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa era
prestigiada por todas as outras nações, demonstrando que havia sociabilidade e
solidariedade entre as diferentes etnias no seio da irmandade em festas de coroação de
diversos reis. No entanto, quando a festa era para diferentes oragos, essa solidariedade
poderia não existir, como foi o caso dos irmãos do Rosário que não queriam
acompanhar os reis de outras nações e defendiam a coração apenas de seu rei, sendo
acompanhado e prestigiado pelas outras nações. Assim como os irmãos de Santo
Elesbão e Santa Efigênia, no estado de folias da nação Maki diziam que no dia da festa
de Nossa Senhora do Rosário só acompanhariam o rei se fosse da Costa da Mina.
A eleição desses reis era uma forma de as comunidades se organizarem no
contexto da sociedade colonial e imperial escravista, em que esses reis tinham o papel
de intermediários entre o grupo que representavam e a sociedade senhorial,
amortecendo os conflitos internos e externos à comunidade que exerciam autoridade.
Podiam também ter papel de destaque enquanto lideranças nas organizações de levantes,
tomando frente, liderando rebeliões devido a insatisfações dentro da sociedade
escravista. Os viajantes estrangeiros notaram que com frequência muitos já tinha sido
reis em sua comunidade de origem na África ou eram filhos de reis 265. De acordo com
Scarano esses reis possivelmente tenham sido criados para substituir os régulos
africanos, aos quais os negros se submetiam mais facilmente de forma voluntária do que
à autoridade imposta pelo branco. Assim, o negro se submetia voluntariamente ao
comando de alguém de sua própria cor onde parecia encontra maior legitimidade 266.
Podemos dizer que a propagação da eleição de reis negros por toda a
América portuguesa e no Império do Brasil pode ser melhor compreendida se, ao invés
de a considerarmos como reminiscências do passado africano – guardadas na memória,
ou como se fossem transplante dos costumes ibéricos no Novo Mundo, onde também
existiram –, tentássemos compreender os processos históricos em que tais costumes se
constituíram 267. É no contexto do encontro de culturas nas sociedades coloniais que
devemos buscar a razões que levaram os diferentes grupos de africanos a elegerem seus
reis, anualmente e festejá-los com pompa e distinção. Podemos concluir que tais

265
SOUZA, op. cit., pp. 206-7.
266
SCARANO, op. cit., p.150.
267
SOUZA, op. cit., pp. 207-8.
214

costumes eram resultado do encontro de culturas nas sociedades coloniais em que


devemos buscar entender as razões que levaram diversos grupos de africanos de
diferentes procedências a organizarem suas folias, elegerem seus reis e rainhas e
festejarem, com batuques, cortejos, danças e comilanças para homenagear seus
ancestrais e (re)criar suas identidades.
215

Capitulo – 4 –
Preparando-se para a morte

4.1 A preparação para a morte entre os africanos e seus descendentes no Rio de


Janeiro

Preparar-se para a “boa morte” era fundamental para os católicos, pois


ninguém queria ser pego de surpresa com uma morte repentina 1, sem que tivesse tempo
de prestar contas ao criador, de demonstrar arrependimento pelos pecados cometidos, de
fazer a penitência e ter garantido o perdão antes da partida, para que no dia do Juízo
Final não houvesse empecilhos para a salvação da alma. De acordo com Sheila de
Castro Faria “não era fácil salvar a alma, ou seja, ter uma ‘boa morte’. Encaminhar bem
o destino da alma dava trabalho, tanto para o próprio indivíduo quanto para os outros,
com os diversos mecanismos de salvação”. Além da redação do testamento, receber os
últimos sacramentos ainda em vida, escolher o tipo de mortalha, o cortejo fúnebre, o
local de enterramento e, após o passamento da alma para o além, eram necessários
realizar os sufrágios conforme recomendava a legislação eclesiástica. Os rituais
fúnebres, nos séculos XVII e XVIII nas sociedades católicas, até a primeira metade do
século XIX seguiam o estilo “barroco”. A pompa acompanhava todas as etapas da arte
do bem morrer 2.
Nesse sentido era fundamental instruir familiares, amigos mais próximos e
irmandade, se fosse filiado a uma ou mais confrarias, das suas últimas vontades: como
dispor de seu cadáver, de sua alma e de seus bens terrenos. Uma das primeiras
providências na preparação do bem morrer, recomendada pela Igreja e seguida à risca
principalmente, mas não exclusivamente, pelas pessoas abastadas era redigir um
testamento. Tal providência pode ser entendida como um rito de separação 3. Sheila de
Castro Faria observou “que a grande maioria da população liberta não fazia testamento,
uns por não ter condições, outros pela forma repentina da morte”, a autora analisou
1.270 registros de óbitos da capitania do Rio de Janeiro no século XVIII, de pessoas
com mais de 20 anos. Dentre estes, 601 (48%) não tiveram referência à presença de

1
Cf. LE GOFF, Jacques o Nascimento do Purgatório. Lisboa: Editorial Estampa, 1981, p. 346.
2
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 265-6.
3
REIS, op. cit., 1991, p. 92; RODRIGUES, op. cit., 1995, p. 150; 2005, p. 40.
216

testamento, entre os demais 669, 417 (62%) fizeram testamento e 252 (38%) tiveram a
indicação “sem testamento”, o que sugere que teriam condições para testar, mas não
puderam fazê-lo, pois a maioria sofreu morte violenta ou repentina. Já os indivíduos que
não tiveram nenhuma explicação dos motivos por que não fizeram testamento, a autora
afirmou que eram justamente aqueles indivíduos de quem não se esperava a redação de
um testamento. Sendo assim, preparar-se para a boa morte só era possível para os
indivíduos que eram proprietários de bens. Neste sentido, os testamentos se colocavam
como peça fundamental para o ato de morrer, mas somente para aqueles que possuíam
bens 4.
Tais afirmativas estavam em conformidade com as Constituições Primeiras
do Arcebispado da Bahia, que estabeleciam que em todas as paróquias houvesse um
livro para que se assentassem os nomes dos defuntos e no mais tardar dentro dos três
primeiros dias se fizesse o assento de óbito do falecido em que deveria mencionar se o
mesmo fizera testamento, se estabeleceu o número de missas e ofícios para sua alma,
“ou morreu ab intestado, ou se era notoriamente pobre, e, portanto, se lhe fez o enterro
sem se lhe levar esmola” 5. Claudia Rodrigues observou que neste modelo proposto
pelas Constituições Primeiras, havia uma significativa associação entre o ato de testar e
a pobreza, no caso de o individuo morrer sem fazer testamento. O ato de testar era
revestido de grande importância nessa legislação, pois mesmo aqueles que não tivessem
feito testamento eram obrigados justificar porque não o fez. O motivo geralmente era a
pobreza 6.
Este aspecto pode nos levar a questionar a ideia de que quem não tivesse
bens ou que estivesse em alegada pobreza não fazia testamento. Como afirmou
Rodrigues, a legislação eclesiástica esperava que todos os fiéis fizessem testamento e,
talvez, por isso, a pobreza era utilizada como justificativa para aqueles que não o
faziam. Entre os libertos da amostragem de registros de óbitos que analisei, foi possível
perceber alguns que mesmo declarando viver pobremente procuravam fazer o seu
testamento com vistas a se preparar para uma “boa morte”, como ocorreu com Maria do
Nascimento, parda forra, natural da cidade de Angra da Ilha Terceira, que faleceu em 11
de fevereiro de 1748. Declarou que não tinha irmandade alguma e que seria sepultada
na igreja de Nossa Senhora do Desterro na capela de Nossa Senhora da Lapa, “e se me

4
FARIA, op. cit., p. 272-3.
5
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XLIX, c.831, p.
292
6
RODRIGUES, op. cit., 2005, p. 129.
217

dê uma esmola conforme puder”. Embora tenha feito declaração de bens e declarado
que tinha uma filha, não a instituiria por herdeira “por que não [tinha] nada e [vivia]
pobremente”. Em seu testamento declarou:

Declaro que os bens que possuo é o seguinte um fio de contas de


ouro com cinqüenta contas, e um relicário pequeno, mais dois
cordões de ouro finos que se cumprido tem cada uma duas varas
mais um grêmio que vem a ser quatro varas menos um palmo,
mais também um par de calçados pequenos com seus aljofres,
mais uma saia de seda veada, e uma de gala preta, uma baeta de
temiste quatro camisas, uma saia branca com seu uso, que tudo
tomará logo conta meus testamenteiros 7.

Acredito que o que motivou Maria do Nascimento a não instituir a filha


como herdeira, foi fato de ter declarado que sempre esteve em sua companhia um neto
de nome Salvador que ela criava. Ao qual instruiu os seus testamenteiros que após
terem cumpridos os seus legados e pago as suas dívidas o que sobrasse deveria ser dado
a seu neto por esmola 8. Outro exemplo de declaração de pobreza é o caso de José
Gonçalves Moinho, preto forro, natural da Costa da Mina, faleceu em 7 de dezembro de
1793, recebeu todos os sacramentos, foi amortalhado no habito de Santo Antônio,
encomendado pelo reverendo Coadjutor João de França Campos. Em seu testamento
declarou o seguinte:

[...] sou irmão de Nossa Senhora do Rosário e de Santo Antônio


da Mouraria e também sou irmão de Santa Efigênia e do Senhor
São Domingos e no dia do meu falecimento o meu corpo será
sepultado na Igreja de Nossa Senhora do Rosário o meu Irmão
Juiz me dará a sepultura debaixo da pia de água benta e que
depois que cai em pobreza não tenho com que faça pagar e não
farão os sufrágios pela minha alma 9.

O fato de ser filiado em quatro irmandades nos leva a pensar que devia ter
sido um africano com posses antes de cair na pobreza como declarou e não ter como
arcar com as despesas dos sufrágios e legados pios. Portanto, apelava para o irmão juiz

7
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Livro de testamentos e Óbitos da freguesia da Sé
AP0155 (1746-1758). Testamento de Maria do Nascimento, p. 77.
8
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Livro de testamentos e Óbitos da freguesia da Sé
AP0155 (1746-1758). Testamento de Maria do Nascimento, p. 77.
9
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Livro de testamentos e Óbitos da freguesia da Sé
AP0157 (1790-1797). Testamento de José Gonçalves Moinho, p. 214.
218

do Rosário para lhe dar sepultura, o que coloca em evidência um dos principais motivos
para os quais os negros africanos e seus descendentes procuravam instituir suas
irmandades. Ou seja, para prestar assistência aos irmãos na hora da morte. Da mesma
forma que Maria do Nascimento, mesmo declarando que havia caído na pobreza fez
declaração de bens dizendo ser possuidor de uma morada de casas térreas que já haviam
sido dadas em vida para seu filho. Declarou ainda que possuía alguns trastes velhos,
além de uma quantia em dinheiro que deixou para seu filho, a quem instituiu seu
legitimo herdeiro e testamenteiro. O fato de ter caído na pobreza não o impediu de
estabelecer sufrágios em forma de missas para salvação de sua alma, de seu ex-senhor,
sua esposa e outras pessoas 10.
Tais aspectos reforçam a argumentação de Claudia Rodrigues de que o
testamento representava mais que um instrumento de demonstração de posses e
transmissão de herança, constituindo-se num instrumento de busca da salvação da alma
do testador. Desde que comportasse legados pios, o testamento era uma forma de
prestação de contas em que o testador buscava demonstrar que tinha se conduzido, pelo
menos no final de sua vida no caminho da fé conforme determinava a Santa Madre
Igreja Católica Romana. 11 Nesse sentido, o testamento pode ser entendido como parte
integrante dos ensinamentos da Igreja sobre o “bem morrer”. Conforme podemos
perceber no testamento da crioula forra Agostinha Rodrigues, viúva, que faleceu em 24
de setembro de 1795. Declarou ser natural da cidade do Rio de Janeiro, foi batizada na
freguesia de Nossa Senhora da Guia de Pacobaíba, não teve filhos e não tinha herdeiro
algum. Foi amortalhada no hábito de São Antonio e sepultada na Igreja Nossa Senhora
do Parto 12, onde era afiliada a irmandade de Nossa senhora das Mercês. Deixou uma
dobla para a irmandade de Nossa Senhora do Rosário da freguesia de Magé, onde
também era irmã. Instruiu a seu testamenteiro que depois de satisfeitas todas as suas
dívidas o restante de seus bens deveria distribuir em sufrágios por sua alma. Em seu
testamento fez a seguinte declaração:

Em nome de Deus, Amém. [...]eu Agostinha Rodrigues crioula


forra estando doente de cama de moléstia que Deus foi servido
dar-me porém em meu perfeito juízo e entendimento e temendo-

10
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Livro de testamentos e Óbitos da freguesia da Sé
AP0157 (1790-1797). Testamento de José Gonçalves Moinho, p. 214.
11
RODRIGUES, op. cit., cap. 2.
12
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Livro de testamentos e Óbitos da freguesia da Sé
AP0157 (1790-1797). Óbito de Agostinha Rodrigues, p. 314.
219

me da morte e não sabendo quando o mesmo Senhor me


chamará fiz e desejando dispor e preparar a minha alma faço as
disposições seguintes. Primeiramente encomendo a minha alma
a Santíssima Trindade que a criou e rogo ao Eterno Padre a
queira receber assim como recebeu a de seu Unigênito Filho
estando para morrer na Árvore da Vera Cruz e a meu Senhor
Jesus Cristo rogo pelos merecimentos de sua paixão e morte me
queira dar a sua Santa Glória e a Virgem Mãe Santíssima e
Senhora Nossa e a todos os Santos e Santas da Corte Celestial e
especialmente da minha devoção queiram como Anjo da minha
guarda interceder por minha alma agora quando de meu corpo
sair pois como verdadeiro cristão que creio tudo quanto crê e
tem a Santa Madre Igreja Católica de Roma e espero nesta fé
salvar a minha alma não pelos merecimentos mais pelos da
sacratíssima Paixão de meu Senhor Jesus Cristo 13.

A partir do século XVIII, em algumas regiões da Europa Ocidental o


testamento deixou de ser um instrumento de disposição de bens apenas para “ad pias
causas” (motivações religiosas), tornando-se um instrumento de distribuição de bens
entre herdeiros, como um dever de consciência que prevalecia sobre as esmolas e
disposições de obras pias 14. No Brasil, no entanto, até pelo menos a primeira metade do
século XIX 15, este parece não ter sido o aspecto mais relevante dos testamentos, e sim a
busca da salvação em detrimento a transmissão de bens, como vimos no caso da crioula
forra Agostinha. Havia ainda indivíduos que declaravam a sua alma como única e
universal herdeira. Como fez a preta forra Luiza Rodrigues e muitos outros indivíduos.
Natural da Costa da Mina, faleceu em 13 de outubro de 1793: “Declaro que visto não ter
herdeiros algum instituo a minha alma por minha única e universal herdeira” 16, o que
demonstra que até mesmo a transmissão de bens poderia ser utilizada como meio de se
alcançar a salvação. Desde o período medieval essa prática era incentivada pela Igreja
católica como uma das etapas para a preparação para a “boa morte” 17. Mas estes casos
geralmente ocorriam quando os indivíduos eram solteiros e não tinham herdeiros, pois
em geral eles podiam dispor apenas de sua terça, para gastos com o funeral, missas,

13
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0157 (1790-1797). Testamento de
Agostinha Rodrigues, p. 314 verso.
14
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: livraria Francisco Alves,1977. p. 208-9.
15
FARIA, op. cit., p. 268.
16
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro – ACMRJ. Livro de óbitos e testamentos da
freguesia da Sé, Ap0157 (1790-1797). Testamento de Luiza Rodrigues, p. 201.
17
RODRIGUES, Claudia. Apropriações da morte católica por africanos e seus descendentes no Rio de
Janeiro setecentista. Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria.v. 10, n.18, jul. - dez. 2007, p. 428.
220

esmolas e obras pias. 18 Neste sentido, o testamento foi utilizado como meio de
exteriorização do sentimento religioso e da fé em Deus em que os fiéis buscavam
demonstrar sua obediência nos preceitos do catolicismo, a crença em seus dogmas.
Geralmente, na profissão de fé, como fez Agostinha Rodrigues, os testadores pediam a
intercessão da Virgem Maria, de Cristo, dos santos, dos anjos da Corte Celestial,
especialmente ao santo de sua devoção e de seu nome e ao anjo de sua guarda que
intercedessem por sua alma. De acordo com os rituais fúnebres católicos determinavam
que fossem realizados sufrágios em favor de sua alma e de outrem, instituíam legados
pios como celebração de missas, distribuição de esmolas aos pobres como forma de
demonstrar arrependimento pelas faltas e pecados que acreditavam ter cometidos em
vida, para saldarem suas dividas 19.
A preocupação com a preparação para uma “boa morte”, fez com que
muitos negros libertos africanos e crioulos, mesmo os que não possuíam bens, fizessem
seu testamento para deixar ali registrado as suas últimas vontades, tais como: o local de
sepultamento, a escolha da mortalha, encomendação e acompanhamento, número de
sufrágios em forma missas, esmolas e obras pias era uma preocupação recorrente entre
todos. De acordo com Claudia Rodrigues, podemos identificar nesses testamentos
vestígios do passado escravista quando estes fazem menção de sua origem africana ou
aos ex-senhores.
Além de permitir conhecer as últimas vontades do falecido os testamentos
revelam que os pretos forros, africanos e crioulos que conseguiram juntar algum pecúlio
e acumular um patrimônio, mesmo que modesto deixavam sempre uma parte para uma
ou varias irmandades dependo da projeção social alcançada pelo defunto. O que em vida
possivelmente tenha lhe garantido alguma influência e possibilitando-lhe ocupar algum
cargo na direção da irmandade. Para as irmandades, não só as esmolas e doações, mas
também a herança deixada pelos confrades era fundamental para a sobrevivência da
instituição garantido a manutenção do culto do orago e assistência aos irmãos.

18
Sheila de Castro Faria observou que em caso da morte de um dos cônjuges, a metade dos bens era do
cônjuge sobrevivente, a outra metade era dividida em três, duas para os “herdeiros necessários” e a
terceira parte, a “terça” o falecido poderia usar livremente em seu testamento. FARIA, op. cit., p. 257.
Cf: FRAGOSO, João. “Apontamentos para uma metodologia em História Social a partir de assentos
paroquiais (Rio de Janeiro, séculos XVII e XVIII)”. In: FRAGOSO, João; GUEDES, Roberto;
SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Arquivos Paroquiais e História Social na América Lusa, séculos
XVII e XVIII: métodos e técnicas de pesquisa na reinvenção de um corpus documental. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2014, p. 74.
19
RODRIGUES, op. cit., 2005. p. 38 e 50.
221

Conforme podemos ver o caso da preta forra Maria do Rosário, que faleceu
em 29 de janeiro de 1747 com todos os sacramentos, foi sepultada na Igreja da Sé
Catedral (Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos), era
filiada à irmandade de Nossa Senhora Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, em
seu testamento diz: “peço aos irmãos de minha irmandade Nossa Senhora do Rosário
acompanharem meu corpo na sua tumba como é de costume.” Declarou que tinha três
escravas, sendo uma fugida e um rapaz que alforriou. Relacionou varias jóias de ouro, a
maioria cordões. E uma cruz com sete diamantes, que disse ter empenhado. E o restante
conforme afirmou estaria na “mão de seu senhor”, provavelmente o antigo proprietário.
Menciona ainda estar devendo 18 patacas da compra de uma baeta. Determinou aos seus
testamenteiros que depois de pagas todas as suas dívidas dessem vinte mil réis de
esmola a sua irmandade Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos.
Depois de cumpridos todos os seus legados o que restasse seria de sua alma, sua
herdeira 20.
Outro caso bastante interessante é o de Cristina de Almeida, preta forra,
natural da Costa da Mina, que faleceu em 05 de julho de 1751. Era afiliada à irmandade
de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos a qual deixou de
esmola a quantia de dez mil réis. Deixou também esmolas para mais duas irmandades às
quais provavelmente era afiliada: Vinte mil réis para as obras de Nossa Senhora da
[ilegível] do Caminho de Nossa Senhora da Gloria e dez mil réis a Nossa Senhora da
Conceição do Hospício e Boa Morte, também para ajudar nas obras. Sem dúvida, o caso
de Cristina é de uma preta forra que prosperou 21. Voltaremos a falar dela mais a frente.
Bastante interessante também é o caso do preto forro Gracia José Manoel, que faleceu
em 30 de outubro de 1799, declarou ser natural do gentio da Guiné, foi batizado no
reino de Angola. Foi amortalhado em habito de Santo Antônio, encomendado pelo
Reverendo pároco e seis sacerdotes, conduzido processionalmente para a Capela de São
Domingos, onde foi sepultado a qual declarou ser indigno irmão. Pediu para ser
acompanhado por seus irmãos e pelos meninos órfãos de São Joaquim, a qual “se lhe
dará esmola competente, e serei conduzido em caixão da Santa Casa da misericórdia, a
quem também se dará a esmola competente”. Pediu ainda ao irmão juiz de sua
irmandade que mandasse “dizer às missas que são obrigados, para o que se pagará os

20
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Livro de testamentos e Óbitos da freguesia da Sé
AP0155 (1746-1758). TESTAMENTO DE Maria do Rosário, p. 30.
21
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0155 (1746-1758). Testamento de Cristina
de Almeida, p. 207 verso.
222

anuais que eu dever” Era casado com a preta forra Ignácia Antonia Ferreira, a qual
instituiu como sua universal herdeira e sua primeira testamenteira. Em seu testamento
fez a seguinte declaração:

Declaro que minha mulher dará uma dobla a Irmandade do


Patriarca São Domingos, recebendo recibo do Tesoureiro, ou
Juiz da dita irmandade. Declaro que se dê meia dobla a
Irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa, recebendo também
recibo do Juiz, ou Tesoureiro da dita. Declaro que se dará meia
dobla a minha [...] Senhora Nossa, que foi Dona Ana para esta
repartir com suas irmãs e irmãos para os seus alfinetes. Declaro
que minha mulher repartirá meia dobla por todos os meus
afilhados, porque ela sabe muito bem quem são. Declaro que no
dia de meu falecimento se repartirá com os pobres dez patacas, a
vintém cada um. Declaro que se dará a minha comadre Rosa
uma dobla os seus alfinetes 22.

Pode-se perceber que Gracia José Manoel não era um preto comum e que
acumulou algum pecúlio e conquistou prestigio entre os irmãos. Declarou que possuía
cinco escravos, mas não fez relação de bens, pois alegou que sua esposa os conhecia
bem. Declarou ser também irmão da Irmandade de São Felipe Santiago, porém seus
irmãos de irmandade não fizeram caso dele, não sabia por que razão, contudo como
tinha devoção ao santo instruiu seu testamenteiro a dar quatro mil réis de esmola para a
dita irmandade e declarou ainda: ”se meus irmãos quiserem mandar fazer por mim
algum sufrágio “obrigado agradeci este beneficio” 23.
Bastante interessante é o caso do preto forro Ignácio Gonçalves do Monte,
que faleceu em 27 dezembro de 1783, com todos os sacramentos, foi amortalhado em
habito de São Francisco e sepultado na Capela de Santa Efigênia, acompanhado pelo
reverendo pároco e dez sacerdotes o que já demonstra a pompa de seu funeral, pois não
é qualquer um que podia dispor de recurso para tal aparato, ainda mais sendo um preto
africano. Seu testamento é riquíssimo em informações que merece uma maior atenção.
Ignácio era um barbeiro sangrador, proprietário de uma “oficina de babeiro”, era uma

22
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0158 (1797-1812). Testamento de Gracia
José Manoel, p. 52-4
23
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0158 (1797-1812). Testamento de Gracia
José Manoel, p. 52-54.
223

importante liderança negra na cidade 24, membro da irmandade de Santo Elesbão e Santa
Efigênia, fazia parte de um dos grupos de procedência da Costa da Mina denominado
Maki. Grupo este que por causa de diversos conflitos entre os diferentes grupos no
interior irmandade, juntamente com os “Angolin, Zano, Sabaru saíram do julgo de
Dagmé, [...]. Procuram fazer seu rei com efeito na pessoa do capitão Ignácio Gonçalves
do Monte no ano de 1762. por ser verdadeiro Makino, este foi o primeiro que fez termo
e endireitou e aumentou essa Congregação” 25.
Durante o reinando de Ignácio (1762-1783), novos conflitos vão surgir,
agora no interior da Congregação Maki, o que fizeram com que os angolin e savalu se
retirassem da congregação para constituírem suas próprias folias elegendo seus próprios
reis 26. Em 1786 os Makis sob a liderança do regente Francisco Alves de Souza fazem os
Estatutos da Congregação dos “Pretos Minas do Reino Maki”, com o objetivo de
sufragar as almas dos seus irmãos nacionais 27. A partir da leitura de seu testamento é
possível conhecermos um pouco de sua história. Declarou que era natural da Costa da
Mina, casado com Vitória Correa da Conceição a qual instituiu sua primeira
testamenteira e herdeira depois que cumprissem os seus legados, pois não tinha nenhum
herdeiro. Sua mulher era sua parenta, filha de seu avô “Eseú Agoa, bem conhecido rei
que foi entre os gentios daquela Costa do Reino de ‘Maý ou Maqui’” 28 e devido a este
parentesco, para se casarem foi necessário que o bispo lhes desse uma autorização.
Ignácio era escravo de Domingos Gonçalves do Monte (de quem ao que tudo indica
recebeu o sobrenome de batismo) e comprou sua carta de alforria por 350$000 réis.
Esses dados confirmam que Ignácio não era um africano forro qualquer, que tinha

24
RODRIGUES, op. cit., 2005. 106.
25
Regra ou estatutos por modo de um dialogo onde se dá noticias das caridades e sufragações das Almas,
que usam os pretos Mina, com seus nacionais no Estado do Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, por
onde se há de regerem, e governarem, fora de todo o abuso gentílico, e supersticioso; com posto por
Francisco Alves de Souza, preto e natural do Reino Maki, um dos mais excelentes e potentados daquela
oriunda Costa da Mina. Biblioteca Nacional: Seção de Manuscritos, Códice 9,3,11, p. 22. Cf. também
SOARES, Mariza de Carvalho (Org.). Diálogos Makii de Francisco Alves de Sousa: Manuscrito de uma
Congregação católica de Africanos Mina, 1786. São Paulo: Cão Editora, 2019.
26
SOARES, Mariza de Carvalho. Histórias cruzadas: os mahi setecentistas no Brasil e no Daomé. in
FLORENTINO, Manolo (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro , séculos XVII – XIX. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 143.
27
Regra ou estatutos por modo de um dialogo onde se dá noticias das caridades e sufragações das Almas,
que usam os pretos Mina, com seus nacionais no Estado do Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, por
onde se há de regerem, e governarem, fora de todo o abuso gentílico, e supersticioso; com posto por
Francisco Alves de Souza, preto e natural do Reino Maki, um dos mais excelentes e potentados daquela
oriunda Costa da Mina. Biblioteca Nacional: Seção de Manuscritos, Códice 9,3,11, p. 37. Cf. também
SOARES, Mariza de Carvalho (Org.). Diálogos Makis... 2019.
28
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0156 (1776-1784). Testamento de Ignácio
Gonçalves do Monte, p. 442 verso.
224

prosperado e conquistado uma projeção política econômica e social dentro e fora de sua
comunidade mina, pois seu oficio de barbeiro sangrador lhe possibilitava estabelecer
relações sociais e comerciais com diferentes indivíduos na cidade, além do seu grupo
social. Alguns desses indivíduos tinham nele total confiança, pois podia comprar com
os mesmos tanto “levando dinheiro para compra a vista ou não”. Como fica explicito
em seu testamento:

[...] declaro que costumo comprar fazendas a um freguês meu


moço, mercador, e morador na Rua do Rosário, ao pé do
Trapiche ao Açúcar, por nome Senhor André Correa Brandão,
sócio com o Senhor José Duarte de Almeida, para uso meu, e de
minha família [...] me vendem sempre as fazendas que careço,
para o gasto da minha casa com tão ampla vontade, e
deliberação, quer levando o dinheiro para os comprar a vista
como não 29.

A grande influência que Ignácio adquiriu junto a seus patrícios que garantiu
sua projeção no interior da comunidade mina alcançando o posto de capitão e titulo de
rei podem ser justificados pela sua ascendência real sobre os membros do grupo étnico –
maki – ao qual pertencia, pois conforme afirmou era neto de “Eseú Agoa, um bem
conhecido rei” do reino dos makis na Costa da Mina. A lembrança de sua origem
africana guardada na memória associada à lembrança do nome africano de seu avô
sugere a existência de uma identidade africana, que embora distante manteve-se viva no
cativeiro 30. Assim, o capitão Ignácio, um rei africano entre os negros de procedência
mina de etnia maki, gozava de certo poder e prestígio entre os seus patrícios que lhe
garantiu a atribuição de pode guardar as esmolas da congregação e ter controle sobre
elas, além de ter a confiança de patrícios e amigos para guardar seus dinheiros, o que
são indícios de que o capitão Ignácio era também usurário, pois fazia empréstimos a
varias pessoas, conforme declarou em seu testamento:

[...] declaro que alguns meus patrícios, e amigos me dão a


guardar seus dinheiros por mais seguros em minha mão, e os
vêm buscar quando querem, ou tudo, ou por parcelas cujos
assentos e declarações faço em um livrinho que tenho na minha

29
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0156 (1776-1784). Testamento de Ignácio
Gonçalves do Monte, p. 444.
30
RODRIGUES, op. cit., 2005, pp. 107-8.
225

gaveta, aonde trago as mais cousas de valor de que minha


mulher de tudo tem perfeito conhecimento e o dito livrinho tem
setenta e cinco folhas, rubricadas com o meu nome ou apelido,
Monte. Tudo quanto estiver assentado e declarado nele por
minha letra, é a mesma verdade. Os ditos assentos e declarações
de dívidas, os faço em uma página conforme o número das
folhas e as saídas em fronte como livros de deve, e o de haver
dos homens de negócio. [...] declaro que no mesmo sobredito
livrinho, faço também assentos, e declarações de algum
dinheiro, que empresto a várias pessoas, e pago que seja ponho
pg. e riscado a tal assento, e todos que assim não estiverem, é a
mesma verdade que me está devendo a tal pessoa 31.

O capitão 32 Ignácio construiu junto a seus patrícios e amigos uma rede


financeira 33 que apresenta indícios de cooperação mutua entre africanos para juntar um
pecúlio. Além dos forros provavelmente muitos desses seus patrícios poderiam ser
escravizados que desejavam guardar seu dinheiro longe do domínio do senhor. Nada
mais seguro do que nas mãos de um africano que, além de forro, 34 era um rei que
gozava de alto prestígio entre os seus. Ignácio também foi testamenteiro de Quitéria
Fernandes da Silva, preta forra, que ainda não havia dado conta, mas o tempo estipulado
ainda não havia acabado, tinha dois cadernos onde fazia os assentos e declarações
pertencentes à mesma testamentária.
Redigiu o testamento de Luís Francisco do Couto, preto forro de
procedência mina, o que indica, conforme observou Claudia Rodrigues que tinha
experiência com a burocracia relativa à elaboração de testamentos e/ou inventários ou
pelo menos teve contato com essa prática 35. Não fez uma declaração de bens detalhada,
disse apenas que os bens do casal em escravos, ouro, prata e mais trastes móveis da
casa, deixava tudo a disposição de sua “mulher e herdeira, a qual venderá os que forem
preciso para dar cumprimento dos seus legados exceto o escravo João de nação mina
que deixava forro de sua parte”. Fez questão de dizer que não devia nada a ninguém,

31
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0156 (1776-1784). Testamento de Ignácio
Gonçalves do Monte, p. 443-4.
32
Não há nenhuma explicação em seu testamento por que Ignácio também era chamado de capitão,
improvável que seja associado ao Regimento dos Pretos então existente na cidade. De acordo com Mariza
Soares o mais provável ser algum título honorifico no interior da folia da irmandade. O Manuscrito Maki
designa ainda Gonçalo Cordeiro como alferes, Luiz Roiz Silva e José da Silva como generais. BN (MA)
9,3,11, p. 25. Cf. SOARES, op. cit., 2005, p. 163.
33
Idem, p. 131.
34
BRAVO, Milra Nascimento. Hierarquias na morte. 2014, pp. 72-3.
35
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0156 (1776-1784). Testamento de Ignácio
Gonçalves do Monte, p. 444; RODRIGUES, op. cit., 2005, p. 106-7.
226

além da conta que sempre tinha com os dois senhores André Correa Brandão e José
Duarte de Almeida, mas declarou que na ocasião de sua morte houvesse pessoa que
dissesse que lhe ficara devendo sendo pessoa sincera que se pagasse sem contenda na
justiça. Declarou ainda que o senhor Davi de Magalhães Coelho da região de Minas de
Pitangui lhe devia a quantia de setenta e um mil e duzentos e trinta e cinco réis, resto da
venda de um moleque. Seus testamenteiros deveriam ver no livro que tinha em sua
barbearia as pessoas que o estava devendo para lhe cobrar a divida. Determinou que
seus testamenteiros pagassem os anuais que estivesse devendo a sua irmandade de
Santo Elesbão e Santa Efigênia, para que no dia do seu falecimento seus irmãos
fizessem por sua alma os sufrágios necessários. Determinou o pagamento de seis mil e
quatrocentos réis de esmola aos meninos órfãos de São Joaquim. Deixou estipulado que
rezassem vinte missas de corpo presente pela sua alma, de quatrocentos réis cada uma, a
serem ditas, dez na igreja de sua freguesia e dez na igreja de sua irmandade. Deixou de
sufrágios pela sua alma: duas capelas de missa (ou seja, cem missas), de esmola de
trezentos e vinte réis cada uma. Determinou que seus testamenteiros mandassem dizer
seis missas pela alma do seu antigo senhor, quatro pela alma de sua madrinha, quatro
pela alma do Reverendo Padre Tomás de Abreu Maciel e seis pelas almas dos seus
“parceiros defuntos”, de esmola de trezentos e vinte réis cada uma. Deixou quatro
patacas de esmolas para os pobres. Legou de esmola seis mil e quatrocentos réis para os
santos de sua irmandade. Deixou vinte mil réis aos seus testamenteiros de prêmio por
seu trabalho.
Outro aspecto pode ser observado nos testamentos dos negros africanos e
crioulos libertos a exemplo no testamento de Ignácio Gonçalves do Monte e de Gracia
Manoel, era o seu significado soteriológico, ou seja, um grande temor da morte e a
preocupação com a salvação da alma, o que era bastante recorrente na época entre todos
aqueles que redigiam seus testamentos e declaravam suas últimas vontades, entre os
diferentes segmentos sociais, de acordo com a doutrina da Igreja católica, mas que se
manifestava de forma mais intensa nos testamentos dos africanos libertos e de seus
descendentes. Assim diz Ignácio do Monte em seu testamento:

Em nome da Santíssima Trindade. Amém. Eu Ignácio


Gonçalves do Monte, estando são, e de saúde em meu perfeito
juízo, e entendimento que Nosso Senhor me deu temendo-me da
morte, e desejando pôr minha alma no Caminho da Salvação por
não saber o que Nosso Senhor de mim quer fazer, e quando será
227

servido levar-me para si, faço este meu testamento na forma


seguinte. = Primeiramente encomendo a minha alma a
Santíssima Trindade que a criou, e rogo ao Padre Eterno pela
morte e paixão de seu Unigênito Filho me queira receber como
recebeu a sua, estando na árvore da Vera Cruz; e a meu Senhor
Jesus Cristo, peço por suas divinas chagas, já que nesta vida me
fez mercê dar-me o Seu precioso sangue em merecimento de
Seus trabalhos me faça também mercê na vida que esperamos
dar o prêmio deles que é a Glória, e peço e rogo a Gloriosa
Virgem Maria Nossa Senhora Mãe de Deus, e ao Glorioso Santo
do meu nome, e a todos os Santos, e Santas da Corte Celestial, e
particularmente ao anjo da minha guarda, e a todos os Santos
com quem tenho devoção queiram por mim interceder, rogar a
meu Senhor Jesus Cristo agora e quando minha alma deste
corpo sair, porque como verdadeiro cristão protesto viver, e
morrer em sua Santa Fé Católica, e crer o que crê, e ensina a
Santa Madre Igreja Romana, e nesta fé espero salvar a minha
alma, não por meus merecimentos, mas pelos da Santíssima
Paixão do Unigênito Filho de Deus 36.

As mesmas questões podem ser percebidas no testamento do preto forro


Gracia José Manoel.

[...]Gracia José Manoel preto forro, estando em meu perfeito


juízo e entendimento que Deus Nosso Senhor me deu, temendo-
me da morte, e desejando pôr minha alma no Caminho da
Salvação, por não saber o dia nem a hora em que o mesmo
Senhor será servido levar-me para si, faço este meu testamento
na forma seguinte. Primeiramente creio em tudo quanto crê e
ensina a Santa Madre Igreja Católica de Roma, em cuja fé,
protesto de viver, e morrer, para o que tomo por minha
advogada a Sempre Virgem Maria Nossa Senhora, o Santo do
meu nome, e Anjo da minha guarda, para que intercedam por
mim agora, e quando minha [alma] sair do meu corpo, para que
vá gozar da bem-aventurança para a qual foi criada 37.

Fica patente, conforme já dissemos no momento da profissão de fé a suplica


por intercessão da Virgem Maria, de Cristo “e a todos santos e santas da Corte
Celestial”, principalmente o de seu nome, ao anjo de sua guarda por sua alma junto a
Deus. Porque como verdadeiros cristãos protestavam “viver, e morrer em sua Santa Fé
Católica, e crer o que crê, e ensina a Santa Madre Igreja Romana”. O que deixa claro

36
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0156 (1776-1784). Testamento de Ignácio
Gonçalves do Monte, p. 442 verso.
37
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0158 (1797-1812). Testamento de Gracia
José Manoel, p. 52-4.
228

que a redação de seus testamentos seguiam a risca os ensinamentos da doutrina da Igreja


no sentido de preparar-se para uma “boa morte”. Podemos perceber que os africanos
libertos de diferentes procedências e seus descendentes ao redigirem seus testamentos e
declararem suas últimas vontades obedeciam a esse mesmo padrão que era seguido por
todos em geral de diferentes segmentos sociais na colônia e império, pois afinal era uma
determinação da Igreja, e o meio de alcançar a salvação da alma após sua saída do corpo
e gozar das bem-aventuranças para a qual foi criada. Vejamos outros casos.
José Alvares Salvador, crioulo forro, morador na rua detrás do Hospício,
solteiro. Faleceu em 07 de novembro de 1794, foi encomendado pelo reverendo pároco
coadjutor João de França Campos e mais quatro sacerdotes, foi amortalhado no hábito
de São Francisco e sepultado na igreja nossa Senhora do Parto, em seu testamento
declarou:

Em nome de Deus Amém. Eu José Alvarez Salvador estando


enfermo de cama e no meu perfeito juízo e entendimento,
temendo-me da morte e desejando a salvação da minha alma por
ignorar, o quando será servido Deus N. Sr. julgar me faço as
minhas últimas disposições testamentária, os quais terão toda a
validade de instrumento público de testamento cédula
testamentaria de última vontade ou como em direito melhor
lugar tenha o haja. Encomendo primeiramente a minha alma a
Santíssima Trindade que a criou e rogo ao Senhor meu Senhor
Jesus Cristo pelo seu preciosíssimo sangue morte, e paixão a
queira salvar havendo deste grande pecador misericórdia para
cujo fim interponho os méritos da sempre Virgem Maria N. Sra.
a quem humildemente suplico que como mãe dos pecadores
volva em benefício da minha salvação os seus misericordiosos
olhos intercedendo o seu unigênito filho meu Sr. Jesus Cristo
pelo perdão das minhas culpas e o mesmo rogo a todos os santos
e santas da corte do céu por mim supliquem sendo os
medianeiros da salvação da minha alma o santo do meu nome, e
o anjo da minha guarda me queiram livrar das ilusões do
inimigo agora e na hora da minha morte. Creio como católico
em todos os mistérios da Nossa Santa fé e religião e como tal
propõem digo como tal protesto de na mesma viver e morrer
crendo tudo quanto nos propõem para crermos a santa igreja
católica de Roma e nesta viva fé espero salvar a minha alma
pelos merecimentos de meu Senhor Jesus Cristo 38.

38
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0157 (1790-1797). Testamento de José
Alvares Salvador, p. 268 verso.
229

Na abertura do testamento de José Alvares aparecem os mesmos elementos


do testamento de Gracia Manoel e Ignácio Gonçalves do Monte com algumas variações,
o que ratifica a semelhança do discurso testamentário. Essa uniformidade se deve a
difusão dos manuais de bem morrer 39. Outro elemento que aparece no testamento de
José Alvares é “estando enfermo de cama e no meu perfeito juízo [...] faço minhas
últimas disposições testamentárias”. Também bastante recorrente entre a maioria dos
testadores que só lembrava-se de fazer seu testamento estabelecendo suas últimas
vontades no momento em que estava doente. Embora a igreja recomendasse que os fiéis
se preparassem com antecedência. Conforme vimos anteriormente que a melhor
preparação para ter uma “boa morte” era preparar-se cotidianamente tendo uma vida
piedosa e vivida com o pensamento cotidiano na morte, em prejuízo a valorização da
agonia. Mas a maioria deixava para fazer isso no momento em que estava doente com
risco eminente de morte.
Na sua profissão de fé José Alvares se reconhece como “grande pecador” e
suplica a misericórdia de Cristo em prol da sua salvação, pede a proteção da Virgem
Maria “mãe dos pecadores” que volte seus olhos misericordiosos sobre ele e interceda
junto ao seu unigênito filho, Jesus Cristo o perdão de suas culpas. Ao mesmo tempo em
que rogou a todos os santos e santas da corte celeste que por ele supliquem, sendo
mediadores da salvação de sua alma. Ao santo de seu nome e ao seu anjo da guarda
pede que o livre das ilusões do inimigo, na hora de sua morte, declarando ser católico e
crê em todos os mistérios da santa fé, e nesta fé tem esperança de salvar sua alma pelos
merecimentos de Cristo.
Outro caso que reflete esse intenso temor da alma ir para o inferno é o da
parda forra Francisca de Souza Melo, natural de Pernambuco, casada com Francisco
Nunes. Faleceu em 7 de janeiro de 1756, foi amortalhada no hábito de Santo Antônio,
encomendada pelo reverendo cura da freguesia da Sé e sepultada na igreja do Senhor
Bom Jesus. Era afiliada à Irmandade de Santa Ana da igreja de São Domingos. Em seu
testamento, fez as seguintes declarações:

[...] Conheço a obrigação que tenho de chamar a meu Deus de


todo o coração sobre todas as coisas suposta que tão
ingratamente tenho faltado a ele, agora protesto com sua graça
de o amor como Deus assim o declaro o amor de todo o meu
coração lhe ofereço todo o amor que lhe tem a Virgem Maria

39
RODRIGUES, op. cit., 2005, p. 99.
230

todos os bem aventurados de quem [...] de amar que me falta


resignar-me totalmente nas mãos de Deus com a sua graça a
morte e todas as diversidades que ele for servido dar-me por
qualquer via oferecendo justamente com os merecimentos de
Nosso Senhor Jesus Cristo em satisfação de meus imensos
pecados, perdôo a qualquer pessoa que de mim estiver ofendida
e agravada.

Observa-se novamente com algumas variações que o testamento de


Francisca segue a mesma linha de construção do testamento de Gracia José, Ignácio
Gonçalves do Monte e de José Alvares, embora na abertura ela não use os mesmo
termos “temendo-me da morte e desejando a salvação da minha alma” ela disse
“conhecendo a incerteza da vida e assim, digo, da vida e a certeza da morte”, mas o
objetivo é o mesmo preparar-se para a “boa morte” de acordo com as diretrizes da Igreja
Católica. Em sua profissão de fé aparecem importantes elementos que identificam as
representações católicas da morte e do além-túmulo. Nota-se primeiramente que uma
grande precaução em não deixar nenhuma dúvida em relação a sua fé, “Primeiramente
declaro e protesto que sou cristã por graça de Deus Nosso Senhor e fiel Católica
Romana e que como tal creio e confesso tudo o que ensina e crê a Santa Madre Igreja de
Roma” nesse sentido tinha “firme esperança na infinita misericórdia de Deus” alcançar
a absolvição dos “inúmeros pecados que julgava ter cometido”. Pela graça, paixão e
morte de cristo tinha firme propósito de “alcançar a bem aventurança eterna”. Contava
com a “intercessão da Santíssima Virgem Maria, refúgio dos pecadores, a qual
acreditava que era a maior delas e a mais ingrata que já havia pisado na terra que não
merecia que ela voltasse para ela os seus olhos misericordiosos”. Contava também com
a intercessão dos “santos e dos anjos principalmente o de sua guarda e que não se
lembrasse das desatenções que havia cometido com ele por toda a vida”. Invocava a
intercessão de “todos os santos da Corte Celestial, em especial do patriarca São José, de
Maria Santíssima, São Joaquim e em particular o de seu nome”. A partir de tamanha
contrição “rogava humildemente pelo amor de Deus que intercedesse por ela e lhe desse
a ‘boa morte’”. Para isso “entregava-se totalmente nas mãos de Deus com sua graça e
morte e todas as diversidades intervenção de Cristo buscava satisfação de seus imensos
pecados”.
Esse grande temor da morte e a preocupação com a salvação da alma entre
os africanos libertos e seus descendentes estava relacionado ao medo da condenação
divina, ou seja, o castigo eterno no Inferno, por isso os testamentos eram redigidos no
231

sentido de prestação de contas da vida terrena; do pedido de perdão dos pecados e


intercessão dos santos, anjos e da Virgem Maria; do estabelecimento de sufrágios por
meio de missas e obras pias para que no momento do julgamento individual ao menos
ter a chance de no Purgatório expiar com maior brevidade os pecados, que acreditavam
serem muitos, entre os africanos e seus descendentes. Isso fez com que uma parcela
significativa dos indivíduos desse segmento declarasse um maior grau de culpabilização
ao redigirem seus testamentos em comparação com o segmento social “branco” livre 40.
Conforme observou Claudia Rodrigues esse maior grau de culpabilização indica uma
apropriação diferenciada, entre os africanos libertos e seus descendentes do discurso
eclesiástico sobre a morte 41.
Esse processo de apropriação é resultado do projeto de
catequese/cristianização que a Igreja católica adotou para os africanos escravizados, ela
buscava estimular a realização das práticas funerárias católicas entre os africanos e seus
descendentes para que estes aceitassem um sepultamento cristão. Mas o projeto da
Igreja católica ia além de garantir a realização de um sepultamento cristão para os
africanos e seus descendentes. Ela tinha o claro propósito de difundir entre os negros,
africanos e crioulos, livres, libertos e escravizados as crenças católicas do além-túmulo.
Destarte, um dos recursos utilizados para alcançar tal objetivo foi à adoção de um
catecismo para os mesmos. Um breve compêndio, contido nas Constituições Primeiras
do Arcebispado da Bahia, intitulado “Breve instrução nos Ministérios da Fé, acomodada
ao modo de falar dos escravos do Brasil, para serem catequizados por ela.”, como
mostra Rodrigues.
D. Sebastião Monteiro da Vide alegava que os escravos do Arcebispado da
Bahia, e de todo o Brasil eram os mais necessitados da doutrina cristã, que havia tantas
nações com uma diversidade de línguas, e que passavam do gentilismo a este Estado.
Portanto, deviam se buscar de todos os meios para instruí-los na fé cristã. Para aqueles
que ainda não conhecessem o idioma português deveriam ser instruídos em suas
próprias línguas. Os párocos eram obrigados a mandar fazer cópias do catecismo para
ser distribuído entre os fregueses para que instruíssem seus escravos nos mistérios da fé,
e da doutrina cristã 42. Através da catequese a Igreja tinha como objetivo fazer com que

40
RODRIGUES, Claudia. Apropriações da morte católica por africanos e seus descendentes no Rio de
Janeiro setecentista. Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria.v. 10, n.18, jul. - dez. 2007, p. 428-9.
41
RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 436.
42
VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, feitas, e ordenadas pelo
ilustríssimo e reverendíssimo senhor Sebastião Monteiro da Vide, arcebispo do dito arcebispado, e do
232

os cativos absorvessem os ensinamentos da doutrina católica, principalmente sua


escatologia. Sendo o cristianismo difundido na sociedade colonial uma religião
soteriológica por excelência, a leitura do texto não deixa dúvida do peso dado pela
instituição eclesiástica à temática da morte, da salvação e condenação da alma 43, com
um diferencial da catequese destinada aos “brancos” e livres pela ênfase no aspecto do
pecado 44. Embora a noção de pecado sempre estivesse presente no catolicismo de um
modo geral, no que dizia respeito à catequese dos negros, ela estava presente com maior
intensidade 45. A partir do século XVII, os discursos eclesiásticos passaram a fazer uma
associação entre a escravidão africana e a purgação dos pecados na tentativa de
legitimá-la procurando os fundamentos morais, jurídicos ou religiosos sobre sua
existência, no sentido dotá-la de uma justificativa ideológica 46. Foram os letrados
católicos da Idade Moderna, sendo os jesuítas os primeiros, os principais ideólogos da
escravidão negra cristã, apoiados em uma vasta produção intelectual de origem
medieval 47. Assim, para o discurso jesuíta da Época Moderna, a legitimidade da
escravidão estaria repousada no pecado original, e como resultado do pecado está seria
ao mesmo tempo punição e remédio, enquanto o escravizado seria pecador e
penitente 48.
O padre Jorge Benci com base nas sagradas escrituras procurou demonstrar
que o cativeiro dos negros africanos teria sua origem na maldição de Cam, que por ter
“escarnecido” da nudez de seu pai enquanto este dormia embriagado por ter tomado
vinho. Em castigo por tal “atrevimento” Cam e toda a sua descendência 49 foram

Conselho de Sua Majestade, propostas e aceitas no sínodo diocesano, que o dito senhor celebrou em 12 de
junho de 1707. Lisboa, 1719, Coimbra, 1720. Livro 3º. Titulo XXXII, pp. 219-222.
43
RODRIGUES, Claudia. Experiências sociais da morte no Rio de Janeiro colonial... 2017, p. 111-17.
44
Cf. VAINFAS, Ronaldo. Ideologia & Escravidão: os letrados e a sociedade escravista colonial.
Petrópolis: Vozes 1986; OLIVEIRA, op. cit., 2008; RODRIGUES, op. cit., 2005.
45
RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 437.
46
VAINFAS, op. cit., 1986, pp. 93-100; RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 437.
47
Varia História. Revista do Departamento de História. Pós-Graduação em História, Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais .Vol. 4, n. 7, setembro de 1988, p.
53.
48
BENCI, JORGE. Economia Cristã dos senhores no governo dos escravos. Roma, Oficina de Antonio de
Foffi, Praça de Ceri, 1705, p. 1e 2; VAINFAS, Ronaldo. Ideologia & Escravidão... 1986, pp. 94-96.
49
Gn. 9, 18-25: “Os filhos de Noé que saíram da arca eram Sem, Cam e Jafé (Cam é antepassado de
Canaã). São esses os três filhos de Noé se propagaram por toda a terra. Noé que era lavrador, foi o
primeiro que plantou uma vinha. bebeu vinho, embriagou-se e ficou nu dentro de sua tenda. Cam
(antepassado de Canaã) viu a nudez de seu pai e saiu para contá-lo a seus irmãos. Sem e Jafé pegaram
uma capa, jogaram-na sobre os ombros e, caminhando de costas, cobriram a nudez de seu pai. De costas,
não viram a nudez de seu pai. Quando passou a embriaguez de Noé, e ele tomou conhecimento do que
fizera o seu filho menor, disse: Maldito Canaã! Seja servo dos servos de seus irmãos.” De acordo com
José Rivair Macedo a afirmação de que os negros eram filhos de cam teve forte presença nos manuais
religiosos cristãos até pelo menos o século XIX, “abrindo um campo fértil aos defensores da inferioridade
233

amaldiçoados por seu pai, que os condenou a escravidão eterna com o consentimento de
Deus. Portanto, estariam os negros africanos naturalmente condenados à escravidão por
serem descendentes de Cam 50.
Este texto de Benci foi publicado com autorização de seus superiores, o que
de certa forma pode significar que teve aval da Companhia de Jesus e da Igreja Católica.
Tendo em vista que esse texto de Benci influenciou, além de outras obras, as
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, que regeram toda a vida religiosa na
colônia, até o Concílio Plenário Latino Americano, de 1899. O que pode demonstrar a
forte influência que os jesuítas tiveram nesse processo 51. Pois detinham a primazia da
educação 52 na colônia até o século XVIII, quando as reformas pombalinas lhes
subtraíram esse direito e foram expulsos dos domínios coloniais portugueses. 53.
O Padre Antônio Vieira considerava os “pretos” ou “etíopes” naturalmente
escravos, pois eram “filhos de Coré” que significa calvário, através do sofrimento a eles
imposto pelo trabalho árduo, alcançariam a salvação após a morte 54. Compara o martírio
dos negros no cativeiro com o martírio de Cristo, os escravizados são compreendidos

dos negros”. MACEDO, José Rivair. Os filhos de Cam: a África e o saber enciclopédico medieval.
Signum: Revista da Associação Brasileira de Estudos Medievais, São Paulo, v. 3, p. 101-132, 2001,
pp,112-13. Cf. DAVIS, David Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental Rio de Janeiro
Civilização Brasileira, 2001, pp. 79-109; BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia
das Letras, 1992, pp. 246-261.
50
BENCI, JORGE. Economia Cristã dos senhores no governo dos escravos. Roma, Oficina de Antonio de
Foffi, Praça de Ceri, 1705, p. 28 VAINFAS, op. cit., pp. 95-96; RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 437.
51
Dos dezenove examinadores sinodais nomeados para a sua elaboração, seis eram jesuítas, dois eram
beneditinos, dois eram carmelitas, dois franciscanos, um agostiniano e um era carmelita descalço. Os
cinco restantes eram padres seculares de altas dignidades eclesiástica. VIDE Sebastião Monteiro de.
Constituições Primeiras ... 1853, p521-22.
52
Não estou querendo afirmar que os escravizados estavam inseridos no projeto de educação formal,
instituído pela Igreja e/ou pelo Estado, pois sabemos que estes juntamente com os negros alforriados e
mestiços estavam excluídos. Apenas gostaríamos de frisar que “as ideias morais e teológicas de Benci e
dos seus coetâneos, advindas da Patrística e da Escolástica, influenciaram, sobremaneira, na elaboração
das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, promulgadas em 1707 pelo Arcebispo D. Sebastião
Monteiro da Vide, e, por uns dois séculos, forneceram as diretrizes jurídicas, ideológicas, religiosas e
pedagógicas para confirmar e legitimar o sistema de poder imposto pelo Estado Absolutista e pela Igreja.”
Cf. CASIMIRO, A. P. B. S. Igreja, Educação e Escravidão no Brasil Colonial. Politeia - História e
Sociedade, [S. l.], v. 7, n. 1, 2010, p 96. Disponível em:
https://periodicos2.uesb.br/index.php/politeia/article/view/3879. Acesso em: 4 nov. 2021.
53
BEOZZO, J. O. A Igreja frente aos Estados Liberais: 1880-1930. In DUSSEL, E. História liberationis:
500 anos de História da Igreja na América Latina. São Paulo: paulinas, 1992, P. 195; CASIMIRO, Ana
Paula Bittencourt Santos. Quatros visões do escravismo colonial: Jorge Benci, Antônio Vieira, Manoel
Bernardes e João Antônio Andreoni. Politeia: Hist. E Soc. Vitória da Conquista. V.1 2001, p.142.
54
OLIVEIRA, Amanda Melissa Bariano de. EDUCAÇÃO E RELIGIÃO NO BRASIL DO SÉCULO
XVII: PADRE ANTONIO VIEIRA E A ESCRAVIDÃO. 98 f. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Universidade Estadual de Maringá. Orientador: Célio Juvenal Costa. Maringá, 2012, p.80.
234

como eleitos por Deus e feitos à semelhança de Cristo para salvar a humanidade através
de seu sacrifício 55. Nas palavras do padre Antônio Vieira:

A Paixão de Cristo parte foi de noite sem dormir, parte foi de


dia sem descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias.
Cristo despido, e vós despidos; Cristo sem comer, e vós
famintos; Cristo em tudo maltratado, e vós mal-tratados em
tudo. Os ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os nomes
afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa imitação, que, se for
acompanhada de paciência, também terá merecimento de
martírio 56.

Padecimento e graça foram os mecanismos utilizados no discurso do padre


Vieira para legitimar a escravidão. No entanto, nem todos os negros alcançariam tal
graça, somente aqueles que não ofendessem a Deus 57. “A gente preta, tirada das brenhas
da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus e a sua
Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão
um grande milagre.” Ao contrário de seus pais, “que nasceram nas trevas da
gentilidade” e da idolatria, “e nela vivem acabam a vida sem lume da fé nem
conhecimento de Deus”. Após a morte tem como destino o inferno e lá arderão por toda
a eternidade. Nesse processo de transfiguração a escravidão é felicidade e milagre e os
escravos devem agradecer a Deus, pois o que parece ser martírio e cativeiro é na
verdade salvação 58. “Os negros deveriam dar infinitas graça a Deus ter dado
conhecimento de si, e por vos ter tirado de vossas terras, onde vossos pais e vós vivíeis
como gentios, e vos ter trazidos a esta, onde instruídos na fé, vivais como cristãos e vos
salveis” 59. Neste discurso, o cativeiro se transformaria em um estágio para a salvação da
alma 60.
A associação entre a escravidão africana e pecado foi o que motivou a Igreja
na construção do catecismo especifico para os negros como modelo para a salvação. Seu

55
LITERATURA BRASILEIRATextos literários em meio eletrônicoSermão XIV (1633), de Padre
António Vieira. Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, p. 7. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000032pdf.pdf. Acesso em 16/10/2020; VAINFAS,
op. cit., pp. 96-7; RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 437.
56
LITERATURA BRASILEIRATextos literários em meio eletrônicoSermão XIV (1633), de Padre
António Vieira. Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, p. 7. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000032pdf.pdf. Acesso em 16/10/2020.
57
VAINFAS, op. cit., pp. 97.
58
Idem, pp. 97.
59
LITERATURA BRASILEIRA Textos literários em meio eletrônico Sermão XIV (1633), de Padre
António Vieira. Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, p.29 . Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000032pdf.pdf. Acesso em 16/10/2020
60
RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 437.
235

conteúdo revela uma grande preocupação atribuída às temáticas da morte e da salvação


ou condenação da alma. Dava-se muito mais ênfase ao destino da “alma de mau
coração”, que tinha como destino final o inferno do que o destino da alma “boa”,
conforme esta no texto:

Onde morreo este Filho? Na Cruz


Depois que morreo onde foi? Foi lá embaixo da terra buscar as almas
boas.
E depois onde foi Ao Ceo.
Ha de tornar a vir? Sim.
Que ha de vir buscar? As almas de bom coração
E para onde as ha de levar? Para o Ceo.
E as almas de máo coração para
onde hão de ir ? Para o inferno.
Quem está no inferno? Está o Diabo.
E quem mais? As almas de máo coração.
E que fazem lá? Estão no fogo que não se apaga nunca.
Hão de sahir de lá alguma vez? Nunca. 61

Só citou uma única vez o que se passava no Céu, mas apresentava o inferno
como um local terrível e assustador para qualquer cristão, local onde o fogo não se
apagava nunca, assim sendo, o destino das almas de mau coração seria terrível, pois a
punição era eterna, enquanto a almas boas iam para junto de Deus no Céu e lá viveriam
para sempre. Instruía-os para fazer a confissão, para lavar a alma dos pecados, e em tom
ameaçador dizia que aqueles que escondessem os seus pecados teriam como destino
após a morte o inferno. O pecado matava alma, que somente voltaria a viver através da
confissão, pois ela era o caminho para comunhão que garantia a reconciliação com Deus
e a salvação da alma.
Outro aspecto que reforçava a associação entre escravidão e pecado estava
relacionado ao discurso em torno da cor preta de alguns santos católicos conforme
vimos no capitulo três. Tal discurso no século XVIII, de acordo com a interpretação de
Anderson Oliveira, não traduzia perspectiva racial e /ou racista entendida à luz do

61
VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, 1720, c. 579, p. 220.
236

campo discursivo das teorias científico-raciais do século XIX 62. Na tradição medieval,
tanto em Portugal, quanto no restante de toda Europa preto ou negro eram cores vistas
como castigos impostos aos pecadores. O negro era sinônimo de “desgraçado”, ou seja,
desprovido de graça divina, em oposição a cor branca, que era a cor dos bons e dos
recompensados por Deus. 63 Assim, a catequese dos africanos e seus descendentes era
uma tarefa extremamente importante para Igreja, e “a promoção de santos negros fazia
parte das estratégias para a catequese dos negros. Carmelitas e franciscanos lançaram-se
deliberadamente na promoção de santos que tivessem aceitação entre os africanos e seus
descendentes”. No discurso carmelita produzido por Frei José Pereira de Santana,
Elesbão e Efigênia eram pretos, mas apesar desse “acidente” não estavam inferiorizados
na corte celeste porque se destacavam pelos seus procedimentos e suas virtudes. Nesse
sentido, a cor preta como acidente poderia ser superado pelas virtudes e pelos dogmas
religiosos. 64 Utilizando-se do mesmo procedimento Frei Apolinário da Conceição
escrevendo sobre a vida de São Benedito afirmava que apesar de ser preto, ele foi
beatificado e canonizado primeiro que outros franciscanos também virtuosos. Era
importante que os africanos e seus descendentes entendessem, sem qualquer sombra de
dúvida, que os santos eram negros. A cor preta representava um castigo, mas que este
poderia ser superado com uma vida virtuosa de acordo com os preceitos da fé. Santo
Elesbão e Santa Efigênia eram pretos e africanos, aqueles que tinham a mesma origem
ou fossem da mesma cor, a exemplo dos santos, poderiam também ser virtuosos 65.
Associação que permite compreender porque a presença tão forte da
expressão de culpa nos testamentos dos negros africanos libertos e seus descendentes, o
que intensificou o temor já existente nas representações católicas sobre a morte e o
morrer 66. A presença de tal conteúdo de forma especifica nos testamentos de africanos
libertos e seus descendentes preconizava a possibilidade de convivência entre as
representações católicas e africanas com relação às vivências da morte e do morrer.
Afinal, uma parcela destes indivíduos se apropriou de elementos da doutrina católica,

62
OLIVEIRA, op. cit., pp. 185. De acordo com Horta “A contraposição branco/negro de sentidos
respectivamente positivo e negativo não representa em si qualquer preconceito de tipo racial, mas é tão-só
o resultado do sistema de cores próprio do código cultural.” HORTA, José da Silva. A imagem do
Africano pelos portugueses antes dos contactos. In FERRONHA, Antônio Luís (coord.). O confronto do
olhar: o encontro dos povos na época das Navegações portuguesas. Séculos XV e XVI. Portugal, África,
Ásia, América. Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Caminho, coleção universitária, s/d. p.
45.
63
HORTA, op. cit., s/d, p. 45; OLIVEIRA, op. cit., pp. 185; RODRIGUES, ,op. cit., 2007 p. 442.
64
OLIVEIRA, op. cit., pp. 186; RODRIGUES, op. cit., 2007 p. 442.
65
OLIVEIRA, op. cit., pp. 181-191.
66
RODRIGUES, op. cit., 2007 p. 443; 2010, p. 41.
237

especialmente os escatológicos 67, Pois em seus testamentos dentro das devidas


proporções era unânime a declaração: “Creio como católico em todos os mistérios da
Nossa Santa fé e religião e como tal propõem digo como tal protesto de na mesma viver
e morrer crendo tudo quanto nos propõem para crermos a santa igreja católica de Roma
e nesta viva fé espero salvar a minha alma pelos merecimentos de meu Senhor Jesus
Cristo” 68. Mostraram-se contritos na iminência da morte, temendo a punição divina de
no momento derradeiro de suas vidas não alcançarem a salvação da alma. Por isso fazer
o testamento para “prestar contas” com o criador antes da partida era tão importante, no
sentido de garantir a salvação da alma no além-túmulo.
Conforme observou Claudia Rodrigues, é possível perceber de forma mais
evidente como uma parcela dos africanos e seus descendentes libertos e escravizados, se
apropriaram da representação escatológica católica da morte e do além-túmulo, quando
um grupo de africanos residentes na cidade do Rio de Janeiro, membros da irmandade
de Santo Elesbão e Santa Efigênia, conforme já vimos liderados por Francisco Alves de
Souza, preto forro, de procedência mina, do reino Maki, resolveram elaborar o estatuto
de uma congregação para sufragação 69 das almas do Purgatório de seus nacionais 70, que
em 1786 foram concluídos, sob o título de “Estatutos da Congregação dos Pretos Minas
Maki no Rio de Janeiro 71”.
Além da devoção das almas dos seus nacionais, o objetivo da congregação
era mostrar um distanciamento em relação aos costumes fúnebres que eles associavam
como gentílicos 72, como se percebe no fragmento do estatuto redigido pelo o regente
Francisco Alves de Souza:
[...] os pretos de Angola, não só tiram esmolas para enterrar os
seus parentes que morrem se não arrojarem e com indecência
tomar os cadáveres que vão na tumba da Santa Casa da

67
RODRIGUES, op. cit., 2007 p. 443; 2010, p. 41.
68
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0157 (1790-1797). Testamento de José
Alvares Salvador, p. 268 verso.
69
Regra ou estatutos por modo de um dialogo onde se dá noticias das caridades e sufragações das Almas,
que usam os pretos Mina, com seus nacionais no Estado do Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, por
onde se há de regerem, e governarem, fora de todo o abuso gentílico, e supersticioso; com posto por
Francisco Alves de Souza, preto e natural do Reino Maki, um dos mais excelentes e potentados daquela
oriunda Costa da Mina. Biblioteca Nacional: Seção de Manuscritos, Códice 9,3,11, p. 31. Cf. SOARES,
Diálogos Makii ... 2019.
70
SOARES, op. cit., 200, pp. 213-230.
71
RODRIGUES, op. cit., 2007 p. 444; 2010, p. 43.
72
Cortejos fúnebres de africanos com cantos africanos, palmas, toques de tambor, bombas e rojões que
ocorriam pela cidade, e foram registrados nos relatos de vários viajantes. Embora seja da primeira metade
do século XIX tem uma estreita relação com a fala do regente da Congregação dos Pretos Minas Maki,
no final do século XVIII. Essa questão já foi analisada por Claudia Rodrigues. RODRIGUES, op. cit.,
1996, pp. 158-163; 2007 p. 450; 2010, p. 43-4. Cf. também. REIS, op. cit., 1991, pp. 159-163.
238

Misericordia, para os pôr nas portas das freguesias, a tirar


esmolas dos fiéis, para enterrar com cantigas gentílicas e
supersticiosa, como levo dito no primeiro capitulo. porem
informando-se disso o meritíssimo senhor juiz do crime, desse
mau procedimento, que os tem mandado prender e castigar, e
por esta razão cuidam os senhores brancos que todos os pretos
usam do mesmo que praticam esses indivíduos 73.

Através dos estatutos da devoção às almas do Purgatório, ainda de acordo


com Claudia Rodrigues buscava-se ao mesmo tempo doutrinar as atitudes diante da
morte dos “seus nacionais”, assim como dissociar a imagem de que os pretos minas
makis cultuavam seus mortos de forma semelhantes aos africanos considerados como
“gentios” 74. Nesse sentido, o capítulo quarto estabelecia que todas as pessoas que
estivessem nesse adjunto deviam ser “devotas de Deus, sua Sacratíssima Mãe Maria
Santíssima, e dos santos da corte do Céu, especialmente dos santos de seus nomes, e
anjos da guarda e das almas do Purgatório por quem ouvimos missas todos os dias,
especialmente as segundas feiras, por sete dias dedicados pela Igreja”. Aqueles irmãos
que não pudessem comparecer nesses dias deveriam “rezar de joelhos diante da imagem
do Senhor crucificado uma estação que consta de seis padres nossos, seis ave maria,
com gloria patris, aplicadas pelas almas do purgatório” 75.
Conforme propõe o adjunto percebe-se aqui uma grande preocupação com a
conduta e obediência dos irmãos a doutrina católica da pedagogia da morte em prol das
almas do Purgatório. A especial atenção pelas segundas-feiras como dia de ouvir missas
e fazer orações pelas almas esta relacionada à tradição católica que remonta o período
medieval em relação à rotina semanal das almas no além-túmulo. Da mesma forma que
os vivos, os mortos viviam um ritmo semanal de sofrimento, e no sétimo dia tinham o
“lazer de repousar”. Ou seja, o domingo (dia do Senhor, denominado repouso sabático)
foi o dia escolhido para o repouso dos mortos cristãos, ou, ainda, da realização de
castigos menos duros, na segunda-feira retornavam a rotina dos tormentos com os
castigos mais severos para as almas condenadas à expiação no Purgatório. Por isso era

73
Regra ou estatutos por modo de um dialogo onde se dá noticias das caridades e sufragações das Almas,
que usam os pretos Mina, com seus nacionais no Estado do Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, por
onde se há de regerem, e governarem, fora de todo o abuso gentílico, e supersticioso; com posto por
Francisco Alves de Souza, preto e natural do Reino Maki, um dos mais excelentes e potentados daquela
oriunda Costa da Mina. Biblioteca Nacional: Seção de Manuscritos, Códice 9,3,11, p. 22; SOARES,. op.
cit., 2019, pp. 20 e 40.
74
RODRIGUES, op. cit., 2010, p. 43-4.
75
Estatutos da Congregação dos Pretos Minas Maki no Rio de Janeiro. Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro – BNRJ. BN/MA – 9, 3, 11. Capitulo 4º.
239

recomendado pela Igreja que este seria o dial ideal para se celebrar missas e rezar pelos
mortos 76. Percebe-se a grande preocupação que esse grupo de negros africanos da Costa
da Mina tinha com as necessidades de seus irmãos nacionais vivos e mortos, pois além
do exposto acima em relação às missas e orações dedicadas aos irmãos falecidos, de
acordo com os estatutos da devoção das almas do purgatório este adjunto teria sido
criado para fazer caridade aos seus irmãos nacionais conforme o estabelecido no
capitulo quinto.

Este adjunto ou congregação foi feito para se fazer caridade aos


nossos nacionais com estes fundamentos, a saber, primeiro que
todos os que forem desta nação e estiverem neste adjunto, e
morrerem sendo irmão de qualquer irmandade terão obrigação
de o acompanhar até a sepultura, e outrossim, que o regente fará
juntar os da congregação para cada um contribuir com sua
esmola, conforme a posse de cada um, e depois de tirada e da a
esmola, fará o regente votar pelos grandes, e os mais
autorizados, que tem nomes na congregação, para cada um deles
dizer quantas missas, se mandarão dizer e o regente é o último
que os aprova ou desempata, tirando toda a dúvida que se
oferecer 77.

Ao detalhar a assistência que deveria ser feita pelos vivos aos irmãos mortos
com acompanhamento, missas e esmolas colocava a morte e ancestralidade como
elemento central da identidade maki. Ao mesmo tempo, segundo Rodrigues, mantinham
a identidade mina. A leitura dos estatutos da Congregação revela que eles buscavam
estabelecer a hegemonia maki, no interior da comunidade mina; buscando-se excluir os
Angolas, identificados como “gentios”, pelo uso de canções consideradas gentílicas e
supersticiosas pelos makis. 78 As determinações estabelecidas nos estatutos da
Congregação dos Pretos Minas Maki evidenciam a grande importância atribuída por
este grupo com os sufrágios dos mortos, numa estreita relação com as doutrinas
escatológicas do catolicismo. Que contribuíram de forma imprescindível para a
construção indenitária do grupo 79. Conforme já foi dito por Mariza Soares e Claudia

76
SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo Companhia das
Letras. 1999. p. 197; RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 454-5; 2010, p. 44-5; CAMPOS, Adalgisa Arantes.
As irmandades de São Miguel e as Almas do Purgatório: culto e iconografia no setecentos mineiro. Belo
Horizonte: C/Arte, 2013, p. 98.
77
Estatutos da Congregação dos Pretos Minas Maki no Rio de Janeiro. Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro – BNRJ. BN/MA – 9, 3, 11. Capitulo 5º, p. 32.
78
RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 454-5; 2010, p. 44-5.
79
RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 455; 2010, p. 45.
240

Rodrigues por traz da regulamentação dos Estatutos da Congregação dos Pretos Minas
de Reino de Maki, para devoção das almas do Purgatório, Francisco Alves de Souza
procurava apresentar os makis como verdadeiros católicos. A preocupação com os
“gentilismos” e as “superstições” ao que tudo indica teria sido uma inovação da
Congregação orquestrada pelo próprio regente Souza, com o apoio do secretário
Cordeiro que demonstrava interesse pessoal na conversão dos makis ao catolicismo,80
apresentando-os como tementes a Deus, “briosos que nunca usam de superstições, fiéis
aos senhores e grandes católicos” 81.
A partir da leitura dos estatutos da Congregação é possível perceber como o
regente Souza e o secretário Cordeiro buscavam demonstrar enfaticamente sua fé,
procurando falar “catolicamente” 82, utilizando-se de citações bíblicas em latim. Além de
temente a Deus, Souza colocava-se como obediente ao “que mandava Santa Madre
Igreja Católica de Roma”. Em diálogo com o secretario Gonçalo Cordeiro afirmava que
a “vaidade era a causa de muitos irem para o Inferno”. Nesse sentido reiterava ser
cristão desde a infância pela graça de Deus não por seus merecimentos, por isso
declarava-se um “miserável pecador”. Assim, fica clara a aproximação da fala de
Francisco de Souza com os elementos da escatologia católica presente nos testamentos
de negros analisados 83.
Não há dúvidas que a regulamentação da devoção às almas do Purgatório se
constituiu em meio de afirmação do catolicismo entre os makis na cidade do Rio de
Janeiro a partir das últimas décadas do século XVIII. Ou seja, através das atitudes diante
da morte, esse grupo de africanos buscava converter ao catolicismo os seus irmãos
nacionais. Francisco Alves de Souza “inventa”, inclusive uma tradição ou memória
africana, ao narrar à história de um grande“Reino Maki”, “cristão” na Costa da Mina.
De acordo com Mariza Soares e Claudia Rodrigues, ao narrarem à história da origem
dos makis o regente e seu secretário procuram estabelecer uma linha ininterrupta de
continuidade entre o grande reino Maki na Costa da Mina e eles próprios, identificando-

80
SOARES, op. cit., 2000, pp. 215-19; RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 455; 2010, p. 45.
81
Regra ou estatutos por modo de um dialogo onde se dá noticias das caridades e sufragações das Almas,
que usam os pretos Mina, com seus nacionais no Estado do Brasil, especialmente no Rio de Janeiro...
Biblioteca Nacional: Seção de Manuscritos, Códice 9,3,11, p. 7.
82
Regra ou estatutos por modo de um dialogo onde se dá noticias das caridades e sufragações das Almas,
que usam os pretos Mina, com seus nacionais no Estado do Brasil, especialmente no Rio de Janeiro...
Biblioteca Nacional: Seção de Manuscritos, Códice 9,3,11, p. 8.
83
Regra ou estatutos por modo de um dialogo onde se dá noticias das caridades e sufragações das Almas,
que usam os pretos Mina, com seus nacionais no Estado do Brasil, especialmente no Rio de Janeiro...
Biblioteca Nacional: Seção de Manuscritos, Códice 9,3,11, p. 8.
241

se como os herdeiros legítimos de seus ancestrais, aos quais eles rezavam com devoção
para que salvassem suas almas. Procuravam, assim, mostrar a presença cristã na África,
combatendo. Também lá, as práticas gentílicas dos daomeanos, que também eram
membros da irmandade 84.
Ao construírem uma imagem de um grande “Reino Maki” “cristão” na
Costa da Mina estavam evocando uma longa tradição católica que havia começado na
África com seus ancestrais e que com entrada dos makis tráfico Atlântico tal tradição
continuou no Brasil em especial na cidade do Rio de janeiro, sendo eles e irmãos
nacionais os seus legítimos herdeiros. Tal questão coloca em evidencia o significado da
identidade de um grupo de africanos que buscava construir uma congregação
majoritariamente constituída por africanos com um caráter evidentemente católico.
Concordando com Mariza Soares e Claudia Rodrigues, é possível afirmar que, se num
primeiro momento a recusa de certas práticas culturais africana poderia nos levar a
acreditar que os congregados makis estavam renegando sua identidade étnica, uma
análise detida de outros indícios demonstra que isso não ocorreu 85.
Rodrigues demonstra como, nos estatutos da Congregação dos Pretos Minas
Makis, é possível perceber de forma recorrente ao longo do texto o uso de expressões
como “parentes” e “nacionais” para se referir aos demais africanos do grupo de
procedência, o vinculo com os ancestrais através da devoção às almas, além do uso da
“língua geral da Mina”, que aparece em dois momentos pelo menos. O primeiro ocorre
no terceiro capítulo ao se referirem que as pessoas que quisessem entrar no adjunto ou
congregação deveriam ser “examinados pelo secretário deste adjunto, e Oggãn 86, que é
o mesmo que procurador geral”, deveriam se certificar que não fossem “pretos ou
pretas, que usem de abusos e gentilismos ou superstição”, neste caso os angolas estavam
excluídos. O segundo momento quando Francisco de Souza nomeou os membros da
congregação em seus cargos e títulos.
A José Antônio dos Santos para jacolûduttoqquêm, que é o
mesmo que cá duque. É o primeiro-conselheiro com as chaves
do cofre. Alexandre de Carvalho para Euçûm, que é como cá
duque, segundo do conselho, com a segunda chave do cofre. A
Marçal Soares, Alolû Belppôn Lissoto,que é como cá duque, e
terceiro do conselho, com a terceira chave do cofre. [...] A
Boaventura Fernandes Braga, Aeolû Cocoti de Daçá, que é

84
SOARES, op. cit., 2000, pp. 226-9; RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 457; 2010, p. 46.
85
SOARES, op. cit., 2000, pp. 226-9; RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 458; 2010, p. 46.
86
De acordo com João Reis Ogan é o termo jeje, língua fon, que define postos masculinos na hierarquia
dos atuais candomblés, mas originalmente significava chefe. REIS, op. cit., 1997, p. 11.
242

como cá duque, segundo-secretário e quarto conselheiro com a


chave de dentro. [...] A José Luiz, Ajacôto, chaûl de Zá, que é
como cá marques de tal parte, e é do conselho o quinto. [...] A
Luiz da Silva com o posto de Ledó, que é o mesmo que conde, é
o sexto do conselho. [...] A Luiz Roiz Silva para Aggaú, que é o
mesmo que general. [...] A José Silva para Aggaú, [...] 87

Observa-se ainda a insistência na recuperação da história da Costa da Mina,


que é recriada em um passado distante, presença cristã na África, e a negação dos
costumes “bárbaros” do Benim e dos daomeanos. Assim, a identidade maki cristã foi
construída em contraste com a daomeana tida como pagã 88.
Como afirmam as autoras, os makis liderados por Francisco Alves de Souza
rompem com o passado tribal e pagão para construir uma identidade cristã. Rompem
com os daomeanos no interior da Irmandade de Santo Elesbão e de Santa Efigênia,
atribuindo a estes, parte dos “gentilismo” funerários. Mais significativo foi o
desenvolvimento de forma explicita do vinculo com os ancestrais que se tornaram alvo
de culto através da regulamentação da devoção às almas. Conforme afirmou Mariza
Soares, o especial cuidado com os mortos denota que ser maki longe do reino africano
representava construir uma identidade voltada para o passado com base numa rede
étnica geracional 89.
Para Rodrigues, embora pareça contraditório – a defesa fervorosa do
catolicismo e, ao mesmo tempo, da identidade étnica africana – é, na verdade, o
encontro de duas culturas que partilham um interesse comum em torno dos mortos.
Recorrendo a João Reis, a autora afirma que a morte e a ancestralidade mantinham-se
como elementos centrais da identidade maki e africana, de um modo geral. A ênfase
extremada na proteção pessoal através do santo do nome e nas almas do Purgatório
sugere o apego uma visão de mundo africana que privilegiava uma relação especial com
os ancestrais, ou seja, com o mundo dos mortos. O uso de termos como “regente” e os
“mais grandes” não usuais nos compromissos da irmandades, assim como, como o uso

87
Regra ou estatutos por modo de um dialogo onde se dá noticias das caridades e sufragações das Almas,
que usam os pretos Mina, com seus nacionais no Estado do Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, por
onde se há de regerem, e governarem, fora de todo o abuso gentílico, e supersticioso; com posto por
Francisco Alves de Souza, preto e natural do Reino Maki, um dos mais excelentes e potentados daquela
oriunda Costa da Mina. Biblioteca Nacional: Seção de Manuscritos, Códice 9,3,11, p. 25. Cf. SOARES,
op. cit., 2019, p. 45.
88
SOARES, op. cit., 2000, pp. 29-30; RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 458-9; 2010, p. 46.
89
SOARES, Mariza de Carvalho. O Império de Santo Elesbão na cidade do Rio de Janeiro. Topoi, Rio de
Janeiro: Programa de Pós-Graduação em História da UFRJ/7 Letras, vol.4, 2002, p. 75; RODRIGUES,
op. cit., 2007, p. 459; 2010, p. 47.
243

da língua geral mina para definir os cargos e títulos dos irmãos nos leva a concordar
com João Reis que a Congregação dos Pretos Minas Makis era uma organização mais
densamente africana que as irmandades em geral, na qual as identidades
especificamente africanas faziam-se representar com mais intensidade 90.
Tais aspectos nos coloca a questão da relação que estes e outros grupos de
africanos da cidade do Rio de Janeiro construíam com o mundo dos mortos, para além
das aproximações com as concepções e práticas católicas. Nesse sentido, observamos
que a Congregação dos Pretos Minas Makis era muito parecida com a “Nobre Nação de
Benguela”, instituída no interior da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São
João del Rei, por escravizados e forros procedentes da região de Benguela, na África
Centro-Ocidental, dedicada a sufragação das almas do purgatório e prestar caridade aos
irmãos compatriotas. A qual teve adesão de outros grupos de origem centro-africana,
como os angolas, morumbas, ganguelas e seus descendentes em solidariedade às almas
de seus irmãos compatriotas que um dia serviram como vassalos da “Nobre Nação de
91
Benguela” . Que foi estudada por Silvia Brügger e Anderson Oliveira, e mais
recentemente por Leonara Delfino.
Assim, os irmãos benguelas reunidos em um reinado de cunho étnico
religioso decidem aumentar o número de sufrágios para a salvação das almas do
Purgatório além do oferecido pela devoção do Rosário com o objetivo de potencializar a
liturgia da morte aumentando o número de missas fúnebres, entre a última década do
século XVIII até a segunda metade do século XIX 92. Prova da dedicação dos irmãos
benguelas em cultuar seus mortos e prestar a caridade aos seus “parentes” 93. Nesse
sentido fica evidente a construção de um parentesco ritual mais coeso em relação ao
próprio parentesco confraternal ou familiar consanguíneo 94. A partir do pertencimento

90
REIS, op. cit., 1997, p. 10 e 11.
91
BRÜGGER, Silvia e OLIVEIRA. Anderson de. Os Benguelas de São João Del Rei... 2009, p. 187-189;
DELFINO, Leonara Lacerda. O culto dos mortos da nobre nação de benguela na experiência devocional
do rosário dos homens pretos são João Del-Rei, MG (1793-1850). Afro-Ásia, 58 (2018), p.11.
92
“Embora datado de 1803, as anotações ao longo do livro permitem que se perceba que a congregação
havia sido criada, pelo menos, desde a última década do século XVIII, já que se encontra um recibo de
1793, passado pelo Padre Luís Pereira Gonzaga, dando conta de duas missas rezadas pelas almas de Ana
e Mariana Lopes, mandadas dizer por João Ladino. Embora não existisse uma regularidade nas certidões
a indícios de que a congregação existiu até a segunda metade do século XIX, pois consta no livro uma
certidão de uma missa celebrada pela alma de João da Cunha Preto, em 1871”. BRÜGGER e OLIVEIRA,
op. cit., p. 187-188.
93
DELFINO, Leonara Lacerda. O culto dos mortos da nobre nação de benguela na experiência
devocional do rosário dos homens pretos são João Del-Rei, MG (1793-1850). Afro-Ásia, 58 (2018), pp.
9-11.
94
REIS, op. cit., 1991, p. 55; DELFINO, Leonara Lacerda. O culto dos mortos da nobre nação de
benguela... Afro-Ásia, 58 (2018), p.11.
244

étnico, os irmãos benguelas e seus vassalos, reconheciam-se espiritualmente e


fortaleciam de forma continua seus vínculos com os “parentes” de nação, atribuindo
novos sentidos a ancestralidade africana viabilizada pelo culto as almas por intermédio
da liturgia católica. As memorias centro-africanas no interior da devoção do Rosário,
voltadas para o culto das almas foram recriadas no interior da associação, mais
especificamente no âmbito da “Nobre Nação de Benguela” 95.
O que nos remete a afirmação de Silvia Brügger e Anderson Oliveira de que
“os benguelas de São João Del Rei reforçam o que vem sendo afirmado pela
historiografia brasileira quanto às irmandades terem sido espaços privilegiados para a
afirmação de identidades coletivas, principalmente, para os africanos e seus
descendentes”. Os autores afirmam que “no caso de Minas Gerais, especificamente com
relação aos africanos, embora não se encontre uma maior pulverização na construção de
templos distintos dos diversos grupos étnicos como no Rio de Janeiro e Bahia, está
diferenciação se fazia presente em torno das devoções e de congregações como a de
Nossa Senhora do Rosário de São João del Rei por eles estuda 96.
Leonara Delfino ao estudar a “Nobre Nação Benguela”, desenvolveu
também estudos etnográficos sobre a região sul de Angola, estabelecendo um diálogo
com as memórias africanas recriadas pelos benguelas e suas nações vassalas e o culto as
almas estabelecido no interior da irmandade, percebeu o interesse crescente do reinado
da “Nobre Nação” em aperfeiçoar o culto das almas benditas que incentivou a
mobilização de seus “parentes” espirituais a investir por meio de esmolas, boa parte
advindas dos “Folguedos da Praia” 97, na aquisição de uma propriedade que serviria aos
devotos como espaço sagrado para aprimorar a liturgia católica do bem morrer, em prol
da salvação das almas dos irmãos da “Nobre Nação” 98. Este espaço sagrado foi uma
casa particular adquirida em nome de dois irmãos forros da associação que recebeu a
denominação de “Palácio Real da Nobre Nação de Benguela”, devido ao “aspecto
religioso atribuído á Corte de Benguela, considerada representante e mediadora entre os
compatriotas vivos e mortos” 99. O “palácio” era um espaço sagrado onde às heranças

95
DELFINO, op. cit., p.12.
96
BRÜGGER e OLIVEIRA, op. cit., p.189.
97
“A praia localizava-se às margens do Córrego do Lenheiro ou do Tejuco que cortava a Vila de São
João, portanto, um lugar central e de grande visibilidade. Área vulgarmente denominada de Prainha pelos
memorialistas. Onde se situava o oratório dedicada às almas Milagrosas do Purgatório” . Cf. BRÜGGER
e OLIVEIRA, op. cit., p. 188; DELFINO, op. cit.,, p.13.
98
Idem., p.13.
99
Ibidem., p.16.
245

centro-africanas foram reinterpretadas lado a lado com as apropriações dos parâmetros


de poder do Antigo Regime, adaptados as estruturas políticas da sociedade colonial 100.
Silvia Brügger e Anderson Oliveira com base na historiografia observaram
que embora não pudessem saber de fato qual o real significado do termo “casa” 101 ou
“casas” empegado pelos irmãos benguelas, a casa assumia um sentido de sobrevivência
simbólica para o grupo, sendo um elemento importante na definição da identidade. A
ideia de vivência e sobrevivência coletiva, a qual poderia possibilitar uma série de
questões que reforçavam a identidade do próprio grupo. Ainda com base na
historiografia da escravidão, principalmente no espaço urbano, os autores revelam que a
posse ou aluguel de casas por escravizados e libertos ocorreu de forma frequente no
âmbito da sociedade colonial e imperial, como locais de encontros, que na maioria das
vezes eram vistos com bastante suspeita por parte das autoridades, devido aos cultos ali
praticados, com cantos, danças, possessões, transe, adivinhações que dependo do grupo
reunido, remetiam a heranças culturais da África Ocidental e/ou África Centro
Ocidental, como vodus e calundus. As autoridades policiais tinham grandes
preocupações com essas “casas”, pois poderiam dar lugar a “ajuntamentos ilegais” de
escravizados e libertos, além do grande temor que provocavam na população livre em
relação ao poder que os feiticeiros negros exerciam sobre a população escravizada102.
Ao reconstituírem tais práticas no interior de suas “casas rituais” no universo escravista
colonial e imperial, africanos e seus descendentes buscavam nestes “espaços rituais” a
possibilidade de enfrentamento dos males cotidianos, ao mesmo tempo em que estavam
reconstruindo suas memórias da herança cultural de sua terra de origem no âmbito da
sociedade escravista colonial 103.
Além de espaço sagrado para as práticas de rituais, a casa era também um
espaço de encontro, de convivência, sociabilidade e solidariedade que ajudava aos
irmãos benguelas, especialmente os escravizados suportar as pressões imposta pela
sociedade escravista colonial. Era um lugar de “abastecimento cultural”, que além dos

100
DELFINO, op. cit., p.14.
101
Para ver o significado e diferentes formas de uso do termo casa confira: FARIA, op. cit., p. 370; REIS,
João José “Magia Jeje na Bahia: a invasão do calundu do Pasto de Cachoeira, 1785”, Revista Brasileira de
História, São Paulo, ANPUH/Marco Zero, v. 8, n. 16, 1988, p. 67-72; ALGRANTI, Leila Mezan O feitor
ausente: estudos sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro – 1808-1822, Petrópolis, Vozes, 1988, p.
147; SOARES, Carlos Eugênio Líbano Zungú: rumor de muitas vozes, Rio de Janeiro, Arquivo Público
do Estado do Rio de Janeiro, 1998, p. 26-30.
SOUZA, Laura de Mello e O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil
colonial, São Paulo, Cia. das Letras, 1989, p. 291; 352-353.
102
BRÜGGER e OLIVEIRA, op. cit., p.198.
103
Idem., p.199.
246

calundus, estava também associada aos batuques e a alimentação – como, por exemplo,
o consumo de Angu nas Casas de Zungú 104 ou Angu do Rio de Janeiro que era também
uma tradição centro-africana 105.
De acordo com Silvia Brügger e Anderson Oliveira “Comer em grupo
assume caraterísticas rituais importantes. Partindo da ideia de que a morte reintegra ao
convívio dos ancestrais é motivo de alegria, de dança, de comer; fato que,
provavelmente, os benguelas conservaram em sua memória. Chamamos a atenção, no
entanto, para o fato de que a casa por eles adquirida poderia também ser um espaço para
106
estas manifestações” . Para os adeptos das religiões afro-brasileiras comer em grupo
na casa do santo tem um forte valor simbólico, portanto, fazer a alimentação em grupo é
um importante elemento identitário, que vai além de um ato meramente biológico;
constituindo-se uma prática sociocultural 107. O banquete de confraternização era uma
prática comum nas irmandades, como vimos no capitulo anterior, e a Igreja tentou
controlar os seus excessos por meio das Constituições Primeiras, numa tentativa de
evitar que estas fizessem gastos dispendiosos com elementos profanos e se ocupassem
mais com questões ordinárias e licitas. Ligadas ao sagrado para o bom funcionamento
da confraria 108. Nesse sentido a casa se constituía em um espaço de ritual, de encontro,
de louvor aos ancestrais, de reforço às identidades baseadas nas recordações readaptadas
ao novo cenário funcionando como um espaço de “abastecimento cultural” 109.

104
De acordo com Sheila de Castro Faria uma primeira denominação para essas casas era de casa de
quilombo, pois serviam de rota de fuga para escravizados. Segundo Carlos Eugenio Líbano Soares, essas
casas eram de propriedade, administradas ou servidas por mulheres, esmagadoramente oriundas da Costa
da Mina. FARIA, op. cit., 2004, p. 151; SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Zungú: rumor de muitas
vozes, Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998, p. 26-30.
105
Descrição da cidade de São Felipe de Benguela em que o narrador fala do consumo de angu no local.
“Estes negros são todos criadores de gados vacum e ovelhum, e se sustentam de leite, que lhe tiram, e
deixam coalhar para lhe tirarem a manteiga, de que se servem para comer, e tratar os seus engrenhados
cabelos, e lhe chamam à tal manteiga ingunde, e a coalhada, a que eles chamam mabele, é seu sustento
com seu infunde (o qual é feito do farinha de milho, e outro mais miúdo chamado massambala e outro
ainda mais miúdo, e muito mau chamado massango, que é o que comem os passarinhos). Estes os moem
entre duas pedras, e depois fazem ao lume uma massa a que chamam Infunde, ou quita, e nós os
Portugueses, Angu”. LACERDA, Paulo Martins Pinheiro de. Notícia da Cidade de S. Filipe de Benguela,
e dos costumes dos gentios habitantes daquele sertão, 1797, p. 2. (Transcrito dos Annaes Marítimos e
Coloniaes (Parte não Oficial), Série n.º 5 (12), 1845, pags. 486-491). Disponível em: https://arlindo-
correia.com/100109.html. Acesso em 10 de fevereiro de 2022. Tomei conhecimento deste texto através da
leitura do artigo de BRÜGGER e OLIVEIRA, op. cit., p.200.
106
BRÜGGER e OLIVEIRA, op. cit., p.201.
107
Raul Lody, Santo também come, Rio de Janeiro, Pallas, 1998, p. 23-30. Apud. BRÜGGER e
OLIVEIRA, op. cit., p.201.
108
Cf. Constituições Primeiras...Titulo LXII, p.306; OLIVEIRA, Anderson José Machado de. A Festa da
Glória. Festas, irmandades e resistência cultural no Rio de Janeiro Imperial. HISTÓRIA SOCIAL
Campinas - SP Nº pp. 7 19-48, 2000. pp. 37-37; BRÜGGER e OLIVEIRA, op. cit., p.202.
109
Idem., p.202.
247

Ao nomear a casa como o Palácio da Nobre Nação de Benguela, a ideia de


palácio remonta as estruturas políticas do Antigo Regime em que a busca de prestígio
pelos irmãos benguelas na sociedade colonial mineira da época os levou a se
apropriarem de termos como duques e marqueses (muito parecidos com os utilizados
pela Congregação dos Pretos Minas Makis), que estavam diretamente ligados a
nomenclatura de corte que remete a existência de um palácio como local de abrigo dos
paramentos utilizados nas ocasiões de realização dos “folguedos”, assim como, para a
guarda do cofre e livros da congregação. A ideia de palácio estava também relacionada
à memória dos diferentes grupos de africanos na diáspora no que diz respeito às suas
heranças culturais. Para as diversas culturas africanas, entre elas as da África Centro-
Ocidental, o palácio era o centro do poder político e religioso dos reinos. Era visto como
replica simbólica do universo. Os rituais ali praticados desde a sua fundação, tinham
como objetivo a purificação do local para receber o Palácio sagrado. Acreditava-se que
a violação desse espaço poderia trazer a infelicidade a toda coletividade 110. Para
Leonara Delfino o aparato assistencial que se estabeleceu no palácio da “Nobre Nação”
possibilitou a readaptação do culto aos mortos e a ancestralidade africana, haja vista que
as almas cativas do purgatório assumiram traços dos antepassados e entes finados,
reconhecidos como as almas penitentes dos irmãos compatriotas 111.
Assim, podemos perceber que os africanos e seus descendentes conseguiram
reconstruir no âmbito da sociedade escravista colonial e imperial espaços que
remontavam as suas sociedades e origem. Nesse sentido, o “Palácio da Nobre Nação de
Benguela” era um local onde cultuavam seus ancestrais, reorganizavam o poder dos
vivos, destes com os ancestrais. Funcionando como sede da “Nobre Nação de
Benguela” o “palácio” possibilitou a reorganização de parte da memoria do grupo
permitindo-o reforçar a sua identidade, criando situações de promoção e consagração de
espaços de convivência, solidariedade e prestígio entre eles. Embora fossem maioria, os
benguelas eram o grupo mais recente na região e no interior da irmandade, portanto
tiveram maiores dificuldades em para exercer pressão e angariar melhores resultados na
composição dos quadros administrativos da confraria. Portanto, apesar de sua
superioridade numérica no interior da irmandade, diferente dos makis do Rio de Janeiro,
tiveram que fazer uso de estratégias semelhantes para se auto afirmarem em meio às

110
BALANDIER,Georges. La vie quotidienne au Royaume de Kongo du XVIe au XVIIIe siècle, Paris,
Hachette, 1965, p. 137-139. Apud. BRÜGGER e OLIVEIRA, op. cit., p.202. Cf. DELFINO, op. cit.,
p.15.
111
Idem., p.15.
248

disputas entre os diferentes grupos étnicos. Tal situação explica a necessidade de


construírem uma congregação para sufragação das almas do Purgatório e fazer caridade
aos seus compatriotas, o que ao mesmo tempo, permitiu reforçar sua identidade e grupo,
ocupar cargos de prestígio que não conseguiam na administração da confraria e
fortalecer a liturgia da morte, concorrendo para a salvação das almas de seus parentes de
nação 112.
Todavia, o tráfico atlântico impunha aos diferentes grupos de africanos a
necessidade de atualização constante das estratégias de sobrevivência, pois a
instabilidade provocada pelo tráfico era elemento fundamental na constituição das
identidades, pois a chegada constante de novos grupos reatualizava cotidianamente os
fragmentos das sociedades originais. Neste contexto era fundamental a manutenção do
culto aos antepassados como forma de garantir vivas as histórias da origem dos
diferentes grupos 113.
Assim, as estruturas políticas, sócias e religiosas baseadas nas sociedades de
linhagens e parentesco tiveram que ser reconstruídas na diáspora em função da ruptura
causada pelo tráfico atlântico e pelas imposições da sociedade escravista. A nova
realidade obrigou os irmãos makis e benguelas a transformarem o parentesco étnico em
parentesco ritual forjado no interior de suas congregações. Apropriaram-se dos signos
católicos do bem morrer associando-os aos elementos de sua herança africana com o
objetivo de cultuar os seus ancestrais. O culto aos ancestrais não se opôs a crença
católica no poder milagroso das almas penitentes. Baseado na reciprocidade entre vivos
e mortos, o Purgatório, espaço emblemático da escatologia católica, foi eleito como o
lugar privilegiado de assistência aos irmãos falecidos de nação, tornando-se assim, o elo
fundamental de solidariedade entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos 114.

4.2 – A morte e seus rituais

Entende-se hoje em nossa sociedade contemporânea de acordo com a


legislação brasileira que a existência da pessoa natural termina com a morte 115. “Morte é
a desintegração dos elementos do dinamismo vital, psicológico, sociológico e cultural

112
BRÜGGER e OLIVEIRA, op. cit., p.203-4; DELFINOop. Cit., pp.26-7; SOARES, op. cit., 2005, p.
151.
113
BRÜGGER e OLIVEIRA, op. cit., p.204.
114
DELFINO, op. cit., pp. 33-4.
115
Art. 6º do Código Civil Brasileiro. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm . Acesso em 05/10/2020
249

do ser humano, em Direto denominado Pessoa de modo total e irreversível.” 116 A vida e
morte são conceitos centrais para a compreensão das concepções de pessoa e estão
presentes em diferentes culturas. Os modos de administração do início e finitude da vida
são diversificados e dependem das crenças compartilhadas, e elaboradas por cada grupo
social.
A morte é um evento natural e cultural que consiste em duas modalidades de
comportamento social frente à finitude do ser. A primeira de natureza biológica é a
cessação de todos os sentidos do indivíduo, de forma irreversível e imediata estabelece
o reconhecimento de que o ser feneceu biologicamente 117. Portanto, morte natural é
aquela que resulta de um processo esperado e previsível, ainda que não desejado, é a
mais aceitável por envolver essencialmente o envelhecimento natural, com o
esgotamento progressivo das funções orgânicas, ou o avanço de uma doença interna,
aguda crônica, transcorrido sem a intervenção de qualquer fator externo ou exógeno. 118
Fábio Leite, ao estudar as sociedades africanas iorubá, agni e senufo, no
final da década de 1970 e inicio de 1980 119 observou que para elas a morte de um idoso
é mais aceitável, pois este já preencheu alguns critérios socialmente aceitáveis, como
iniciação formação de família numerosa permitindo descendência, ou seja, existência de
herdeiros legais, comportamento ético apropriado, dedicação ao trabalho, conhecimento,
respeitado na comunidade, a posse de certos bens materiais etc. Uma pessoa nessas
condições é considerada mais “forte”, menos suscetível de ser atingida pela morte em
virtude de ações mágicas de homens ou divindades, ancestrais ou outras forças
irredutíveis da natureza.
Entre os senufo, por exemplo, os idosos recebem menos “sacrifícios”
voltados para proteção, devido ao fato de estarem mais próximos das fontes sagradas de
energia e do espaço ancestral, onde deverá ocupar o seu lugar em breve. Entre eles os
ancestrais são considerados uma espécie de elo entre os homens e o sagrado, e os idosos

116
FRANÇA, Rubens Limongi. O conceito de morte, diante do Direito ao transplante e do Direito
hereditário, in: Revista dos Tribunais, S. Paulo, 84 (717): jul. 1995, p. 59, 60; SANTOS, Maria Celeste
Cordeiro Leite dos. Conceito médico-forense de morte. Revista da Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo, São Paulo, v. 92, n. ja/dez. 1997, p. 341-380, 1997. DOI: 10.11606/issn.2318-
8235.v92i0p347-8.
117
CAMPOS, Adalgisa Arantes. Notas Sobre os Rituais de Morte na Sociedade Escravista. In: Revista do
Departamento de História da FAFICH/UFMAG. VI (1988) p. 109.
118
SANTOS, op. cit., p. 359
119
O autor realizou seu trabalho de campo nas regiões da Costa do Marfim, Gana, Togo, Benin e Nigéria
a qual estudou os Iourubá do Benin (reino de Ketu) e da (Nigéria (reinos de Ifé e Oyo), os Agni-Akan
(reinos Ndenie, samwy e Morofoé, da Costa do Marfim) e os Senufo também da Costa do Marfim (África
do Oeste).
250

por sua vez constituem-se em elos eficazes entre as pessoas e os ancestrais. Isso explica
porque a maior parte das funções relacionadas a essa comunicação sejam ocupadas
pelos mais velhos. Neste sentido, de acordo com Leite o “velho sábio africano” é quase
um ancestral vivendo na comunidade. Desta forma, é compreensível o acesso mais
eficaz dos idosos ao sagrado e grande respeito a eles devotado legitimando o poder
gerontocrático 120. O que demonstra de que modo à proximidade com a morte se investe
de sentido cultural, passível de ritualizações.
A morte cultural 121 é aquela através da qual os vivos confirmam socialmente
a morte biológica, e constroem o status ontológico espiritual do morto. Nesse sentido, o
que se leva em conta aqui é a consciência que se tem da morte 122. A cultura é a forma
como estão encadeadas as ideias, argumentos, ações, emoções, palavras, num conjunto
organizado num determinado contexto social que revela a dimensão histórica do ser.
Através dela os processos naturais de hominização são transformados em processos
intencionais e conscientes de humanização, que podem ser definidos como processos
sociais e históricos com base nas relações humanas 123. Antropologicamente, a morte foi
explicada por vários estudiosos como um rito de passagem 124, um momento de transição
entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, um trajeto de provações e incertezas
que só termina com o fim da celebração dos rituais fúnebres. Exatamente por isso ela é
reconhecida como a passagem de uma forma social de vida a outra; de modo que ela
não representa o fim da existência, mas a início de uma nova vida 125.
Na América portuguesa e no Império do Brasil, mais precisamente no Rio
de Janeiro, os ritos fúnebres faziam parte do cotidiano dos indivíduos, dos mais ricos
aos escravizados, havia a crença de que a morte não era o fim da vida, e sim uma
passagem da alma de uma vida para a outra no além-túmulo. Assim, o processo de
incorporação do morto ao mundo dos mortos por meio de cerimônias fúnebres era
fundamental para que o morto fizesse a passagem e fosse bem recebido na nova morada

120
LEITE, Fábio. A questão ancestral. São Paulo, Palas Athena, 2008, p. 96.
121
O Conceito de cultura ao qual nos referendamos nesta pesquisa esta baseado em Glifford Geertz: “ele
denota padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de
concepções herdadas e expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam,
perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em ralação avida”. GEERTZ, Glifford. A
interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC - Livros Técnicos e Científicos Editora S.A. GEN –
Grupo Editorial Nacional. 2008, p.66.
122
BATAILLE, George. O erotismo. Porto Alegre: L&pm, 1987, p. 29; CAMPOS, op. ci., p. 109
123
Cf. CAMPOS, op. cit., p. 109.
124
GENNEP. Arnold Van. Os ritos de passagem. Petrópolis: Editora Vozes, 2011.
125
RODRIGUES, José Carlos. Tabu da Morte. Rio de Janeiro: Edições Achiamé, 1983, p. 46;
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 149.
251

por aqueles que partiram antes dele 126. Envolto em dramatizações, a morte era marcada
por rituais que se diferenciam de acordo com cada cultura 127.
Em muitas sociedades onde existe uma visão religiosa do mundo, a
realização dos rituais funerários adequados é fundamental para a segurança dos mortos e
dos vivos, pois a morte vai além de um momento instantâneo, uma mera destruição, mas
um processo de transição em que o morto precisa seguir o seu destino 128. Sua integração
ao “outro mundo” somente é reconhecida como acontecida após a realização dos rituais
fúnebres. Ou quando a alma ou o espirito do indivíduo tiver sido ritualmente conduzida
a uma nova morada, no além-túmulo, e lá for aceita pela comunidade dos mortos 129.
Nesse sentido, os ritos funerários que agregam o morto ao mundo dos mortos são os
mais elaborados e aqueles aos quais se atribui a maior importância. Assim, é
fundamental o papel desempenhado pelos vivos nesse processo cuidando para munir os
mortos de todos os objetos materiais necessários (roupas, alimentos, armas, utensílios)
ou mágicos religiosos (amuletos, signos e senhas, etc.), que lhes garantirão, como se
fosse um viajante vivo, a jornada ou travessia e depois o acolhimento auspicioso no
além-túmulo 130.
Van Gennep observa que, por um lado, dificuldades são criadas quando o
morto não consegue seguir seu destino. Devido à ausência de ritual funerário, esses
mortos são condenados a uma existência deplorável, não podem jamais ingressar no
mundo dos mortos ou se incorporar à sociedade aí constituída. São os mortos mais
perigosos, pois desejam reintegra-se ao mundo dos vivos, mas como não podem fazê-lo
tornam-se estrangeiros hostis. Não possuindo meios de subsistência que os outros
mortos têm a seu dispor em seu próprio mundo, e, por conseguinte, tentam obtê-lo a
custas dos vivos. Além do mais, estes mortos sem lugar onde habitar sentem com
frequência um profundo desejo de vingança 131. Destarte, os ritos mortuários são ao
mesmo tempo ritos utilitários de grande abrangência, que ajudam a livrar os
sobreviventes de inimigos eternos. Tal classe de mortos poderia ser encontrada entre os
diferentes povos. Além dos indivíduos citados, nela também figuravam os sem família,
os suicidas, os mortos em viagem, por raio, pela violação de algum tabu, etc. Isto em
126
REIS, op. cit.,, 1991, p. 89; SILVA, Michele Helena Peixoto da. Morte, escravidão e hierarquias na
freguesia de Irajá: um estudo sobre os funerais e sepultamentos dos escravos (1730-1808). Dissertação de
Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, 2017, p. 130.
127
SILVA, op. Cit., p. 130
128
REIS, op. cit., 1991, p. 89.
129
RODIGUES, op. cit., 1996, p. 149.
130
GENNEP. Op. cit., p.133.
131
Idem., p.138.
252

teoria geral, pois o mesmo ato pode não ter as mesmas consequências em diferentes
sociedades 132. Por outro lado, Gennep argumenta que se o morto recebeu os rituais
condignamente, passa ao outro mundo “plenamente feliz”, e se junta aos ancestrais,
podendo interceder pelos vivos juntos aos deuses, inclusive facilitando-lhes a futura
incorporação à comunidade dos mortos. Nesse sentido, tem os vivos todo o interesse em
cuidar bem dos seus mortos, assim como da própria morte. 133
De acordo com Arnold Van Gennep, os ritos funerários podem ser divididos
três momentos distintos: os ritos separação ou “preliminares”, momento simbólico de
desligamento do morto do mundo visível dos vivos para que ele possa ingressar no
mundo invisível dos ancestrais. Entre os ritos de separação estariam os “procedimentos
de transporte do morto para fora, a queima dos utensílios da casa, das joias, das riquezas
do morto, a morte das mulheres, de seus escravos, de seus animais favoritos, lavagens,
unções em geral, ritos de purificação, tabus de toda espécie”, etc., além desses existiam
os “procedimentos materiais de separação como fosso, caixão, cemitério”, etc., que
eram “construídos ou utilizados ritualmente, terminando frequentemente com
fechamento do caixão ou da tumba o rito inteiro, de forma particularmente solene”.
Nesta categoria estariam ainda incluídos os ritos coletivos como as cerimonias de
expulsão das almas para fora da casa, da aldeia, do território, da tribo. O “rapto” da
noiva corresponderia à luta pelo corpo do morto tão difundo na África. Neste caso o
grupo que sofreu com a perda de um de seus membros, é obrigado a admitir a
diminuição do seu poder social. Quanto mais elevada fosse à posição do morto na
sociedade mais violentas eram essas lutas 134.
Ritos de margem ou “liminaridade”, estágio intermediário em que o morto
empreende sua viagem e que nem bem deixou o mundo dos vivos, nem bem passou a
pertencer ao mundo dos mortos. Segundo Van Gennep, esses ritos funerários
caracterizam-se em primeiro lugar, materialmente, pelo tempo mais ou menos longo em
que o corpo ou o caixão permanece na câmara mortuária (velório), no vestíbulo da casa,
etc 135., mas esta é apenas uma etapa de uma série inteira de ritos. Depois de certo
tempo novas exéquias são feitas e termina-se de cumprir o que é devido ao morto com
novos deveres fúnebres 136.

132
GENNEP. Op. cit., p.138.
133
REIS, op. cit., 1991, p. 89, 90.
134
GENNEP, op. cit., p.140-141.
135
Cf. BRAVO, op. cit., p. 99.
136
GENNEP, op. cit., p.130.
253

Ritos de agregação ou “pós-liminares”, momento em que a alma do morto é


integrada no além. Quando se consumaria a passagem do morto para o mundo dos
ancestrais. Neste momento os sobreviventes retomam a vida normal e o grupo se
recobra, restabelece sua paz e se reafirma 137. Como exemplo desses ritos o autor cita as
refeições consecutivas aos funerais e os banquetes das festas comemorativas, refeições
que tem por finalidade ligar novamente entre todos os membros de um grupo
sobrevivente, e às vezes com o defunto, a corrente que foi quebrada pelo
desaparecimento de um dos elos. Quando os funerais são realizados em duas etapas
(provisória e definitiva), em geral no fim da primeira etapa há uma refeição de
comunhão dos parentes, à qual se julga que o morto assiste. Finalmente se a tribo, o clã
ou a aldeia estão em questão, o modo de convocação (tambor, arauto, mensageiro, etc.)
marca ainda mais o caráter ritual coletivo do banquete, ao qual se convocam os
membros dos grupos interessados. Os ritos de agregação ao outro mundo, seriam
aqueles ligados a hospitalidade, da agregação ao clã, da adoção, etc. O autor cita ainda
como ritos de agregação a extrema-unção católica 138, a deposição dos mortos no chão,
as “danças dos mortos” executada por certos grupos de Ameríndios, Pelos Anianja 139 da
África 140.
Van Gennep observou também que festas dessa natureza também são
realizadas por ocasião da suspensão do luto. Para ele, o luto seria um fenômeno
complexo que ia além de um “conjunto de tabus e práticas negativas que marcavam o
isolamento em relação à sociedade em geral, daqueles que a morte, considerada como
qualidade real, material, tinha posto em um estado sagrado, impuro”. Na verdade,
representaria um estado de margem para os vivos, no qual entram em função dos ritos
de separação, e terminam quando se iniciam os ritos de reintegração na sociedade em
geral (ritos de suspensão do luto). Em alguns casos, o período de margem dos vivos é

137
Idem., p.128-142; RODRIGUES, José Carlos. Tabu da Morte. Rio de Janeiro: Edições Achiamé, 1983,
p. 46.
138
Cf. BRAVO, op. cit., p. 99.
139
Os Anianjas ou Nianjas (Wanianjas), População que vive na região Norte de Moçambique nas
proximidades do Lago Niassa. A região Norte de Moçambique é habitada por povos com uma grande
diversidade linguística e grande riqueza cultural. Praticam diversos tipos de danças tradicionais, além de
outras expressões artísticas baseadas nas tradições de povos autóctones. Cf. MEDEIROS, Eduardo. A
actual província do Niassa e o vale do rio Chire na 2.ª metade do séc. XIX. Contextos africanos e
imperiais e as expedições de Serpa Pinto nesta região. In AFRICANA STUDIA Revista Internacional de
Estudos Africanos International Journal of African Studies. Centro de Estudos Africanos da Universidade
do Porto. N.º 17 ‑ 2.º semestre ‑ 2011, p. 114. JAMBE, José Fernando Saide. A habitação como expressão
cultural nas zonas rurais da província do Niassa – Moçambique. Revista África(s). In Revista do
Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos e Representações da África (UNEB DEDC II), e do
Grupo de Pesquisas África do Século XX (UNEB/UNILAB).Vol.07. Nº. 14. Ano 2020, p. 140.
140
GENNEP, op. cit., p.141.
254

contrapartida do período de margem do morto e o fim do primeiro coincide com o fim


do segundo, ou seja, com a agregação do morto no mundo dos mortos. Neste caso o luto
instituía um caráter duplo de liminaridade, ou seja, enquanto o falecido ia se agregando
ao mundo dos mortos, os vivos iam se separando do individuo que partiu 141 Van
Gennep observa ainda que durante o luto os vivos e o morto constituem um tipo de
sociedade especial, situada entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos 142.
Os vivos poderiam sair mais ou menos rapidamente desse tipo de sociedade
dependendo do grau de parentesco com o morto. As estipulações do luto são
estabelecidas de acordo com esse grau de parentesco (paterno, materno, de grupo, etc.),
pois durante esse período a vida social fica suspensa para todos os atingidos por ele. Se
o morto for um chefe, a interdição atinge toda a sociedade. Como ocorre após a morte
de alguns régulos africanos em que os lutos e licenças são públicos. O viúvo e a viúva
que pertencem a este mundo especial por um período de tempo maior só saem mediante
a realização de ritos apropriados. Nesse sentido, os ritos de suspensão de todas as
restrições do luto devem ser considerados como ritos de reintegração a vida social 143.
Fábio Leite, ao analisar os ritos fúnebres entre os Agni, observou que entre
os momentos formais do luto era realizado uma refeição comunitária no terceiro dia
após a morte, momento de encerramento dessa parte do ritual fúnebre, atingindo todos
os membros mais próximos da família. Segundo o mesmo autor o luto propriamente
dito envolve três fases especificas.
A primeira inicia-se logo após a morte encerrando-se na alvorada do
segundo dia após o sepultamento, que coincide com o dia da refeição comunitária
(“refeição do terceiro dia”). Este é um período bastante crítico, onde os processos de
separação dos elementos vitais encontram-se em curso incipiente, está é uma fase
dramática e prevê a interdição do trabalho e jejum total. A exteriorização da dor atinge
toda a comunidade, e em particular toda a família do morto, porém o cônjuge
sobrevivente (Kulavoe), não participa das manifestações públicas, recolhendo-se a um
aposento especial onde permanece isolado com as mulheres da família durante todo o
período do luto.
A segunda etapa tem duração variável, iniciando-se logo após a refeição
comunitária do terceiro dia, que encerra a fase anterior do ritual, podendo durar de sete

141
BRAVO, op. cit., p. 100.
142
GENNEP, op. cit., p.129.
143
Idem., p.129.
255

dias a um ano ou mais, dependendo do grau de importância das cerimonias, terminando


antes dos ritos de permanência. Nessa fase do luto é permitido comer após ao meio-dia.
As mulheres permanecem isoladas, proibidas de trabalhar, eventualmente lhes é
permitido buscarem lenha nas terras da pessoa falecida, não podendo nelas permanecer,
embora mais branda essa fase do luto ainda é bastante delicada devido à proximidade da
ocorrência do óbito.
Na terceira fase do luto, em que ocorre seu momento final, o cônjuge
sobrevivente pode trabalhar moderadamente, mas deve evitar contatos prolongados com
a terra, onde o morto trabalhava, as mulheres da família podem trabalhar normalmente,
mas a refeição matinal continua proibida. A duração completa do luto, portanto, vai
desde o momento em que ocorreu a morte ao início do funeral, abrandando-se
paulatinamente as interdições com o distanciamento do óbito 144.
Victor Turner ao analisar as cerimonias fúnebres entre os Ndembu, na
Tanzânia, observou que quando uma pessoa morria, todos os laços sociais eram
rompidos. Quanto mais importante fosse à pessoa do morto, maior era o número e a
variedade dos laços que existiam para serem rompidos. Neste momento, um novo
padrão de relações sociais deveria ser estabelecido. Mas antes que todas estas coisas
pudessem ser realizadas, deveria existir um período de ajuste, um intervalo durante o
qual a sociedade passava da velha para a nova ordem. Entre os Ndembu, esse período
coincide com a duração de um acampamento de luto, Chipenji ou Chimbimbi.
Os Ndembu acreditam que durante esse período a sombra do morto ficava
mais irrequieta, sempre tentando revisitar os locais e comunicar-se com as pessoas que
melhor conheceu em vida. Sem esse ritual de luto, a sombra do morto jamais
descansaria no túmulo, mas estaria constantemente interferindo nos assuntos dos vivos,
com ciúmes de cada novo ajuste realizado, como o casamento da sua viúva ou a escolha
de um sucessor que ele desaprovasse, ela poderia ainda causar doenças em todas as
pessoas que deveriam ter honrado sua memoria realizando um funeral, mas não o
fizeram 145.
Diante destas constatações acredito que tanto os ritos fúnebres católicos
como africanos possam analisados a partir da proposição de Van Gnnep, 146 levando-se

144
LEITE, op. cit., p. 108.
145
TURNER, Victor. Floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Niterói, Rio de Janeiro: Editora
da Universidade Federal Fluminense – EDUFF, 2005, pp. 37-8.
146
Para uma análise detalhada das etapas do ritual fúnebre católico na proposição de Van Gennep veja.
BRAVO, op. cit., pp. 98-104.
256

em consideração que os funerais são ritos de passagem para o além-túmulo, tanto na


visão de mundo católica quanto na visão de mundo africana. Nesse sentido, passo a
analisar os rituais fúnebres dirigidos aos mortos africanos e seus descendentes, no
sentido de entender como eles lidaram com a morte e o morrer na sociedade colonial e
imperial do Rio de Janeiro. Diante da iminência da morte, momento em que o indivíduo
se encontrava ainda moribundo, estando em plena consciência de seus atos ou em
delírios, era necessário à administração dos sacramentos pelo pároco, representante da
Igreja. Os africanos e seus descendentes, livres, libertos e escravizados também
recorreram a eles na hora derradeira da morte 147.

4.2.1 – A administração dos “últimos sacramentos” como ritos católicos na


iminência da morte

A administração dos sacramentos fúnebres católicos na proposição de Van


Gennep se encaixa nos ritos de agregação e tem como função incorporar alma do
falecido ao “mundo dos mortos” 148, e representava uma das etapas fundamentais na
preparação do moribundo para a “boa morte”, Era a segurança de que o morto estava no
caminho da salvação. Para o cristão, simbolizava o sagrado e fazia parte do universo da
comunicação entre Deus e o fiel, eram sinais eficazes da graça transmitida por Deus
para que este alcançasse a salvação 149. De acordo com a doutrina católica são sete os
sacramentos: batismo, confirmação, eucaristia, penitência, extrema-unção, ordem e
matrimonio. Dentre estes, vamos deter nossa análise no sacramento da
penitência/confissão, eucaristia e extrema-unção, porque dizem respeito aos rituais
mortuários 150. Quando o indivíduo se encontrava em seu leito de morte com uma
doença grave, incurável e fatal, na iminência da morte a presença do padre era solicitada
pelo próprio moribundo, por seus parentes ou amigos, para que fossem administrados os
últimos sacramentos 151.

147
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 176.
148
Cf. BRAVO, op. cit., p. 100.
149
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 176; cf. BRAGA, Vitor Cabral. Lugares para “bem morrer” no
Recôncavo da Guanabara/RJ: Irmandades, Ritos e tensões na geografia da morte (c.1720 a c. 1800).
Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de janeiro/UNIRIO,
2015, P. 118; SILVA, op. cit., 2017, p. 131.
150
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... Liv. Primeiro. Títulos, 23, 30, 47, pp. 35,
50,81.
151
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 176.
257

Tendo em vista a necessidade de ele se conectar intimamente com Deus na


hora derradeira, antes que se consumasse a sua “partida” para o além. Sendo assim, a
figura do padre apresenta-se como interlocutor entre o moribundo e Deus. Este seria um
mensageiro da palavra de Deus e representante oficial da Igreja, responsável em
administrar os sinais (sacramentos) divinos 152. Administrados no momento em que
antecedia a partida do indivíduo para o além-túmulo, estes sacramentos podem ser
considerados como ritos de agregação 153 e instituição 154, pois além de garantirem ao
morto sua entrada no mundo dos mortos instituem a diferença entre aqueles que
obtiveram sacramentos sagrados antes de morrer e iniciaram a jornada para uma boa
morte 155 e aqueles que não tiveram acesso a eles, sendo excluídos do reino dos céus. A
ideia de exclusão eterna do reino dos céus era considerada um dos piores castigos para o
cristão. Nesse sentido, era de estrema importância à preparação para o momento
derradeiro com o auxílio dos representantes do sagrado na presença de parentes e
amigos 156, pois “uma boa morte era sempre acompanhada de especialistas em bem
morrer e solidários espectadores” 157.

152
Idem., p. 176-177.
153
GENNEP, op. cit., 2011, p.128.
154
Pierre Bourdieu critica a teoria de Van Gennep sobre os ritos de passagem argumentado que esta não
contempla as funções sociais do ritual e os significados sociais da linha que demarcaria a passagem de um
estado a outro. Assim Bourdieu argumenta que a teoria de Van Gennep confere ênfase apenas na
passagem temporal, o que poderia mascarar os efeitos essências do rito que seria separação daqueles que
já passaram por ele, daqueles que ainda não passaram e ainda aqueles que não poderão nunca passar por
um determinado tipo de rito. Assim, para Bourdieu o rito de instituição marcaria esse limite entre aqueles
que passaram pelo rito daqueles que ainda não passaram ou ainda daqueles que nunca poderão participar
do rito. Para Bourdieu o rito consagra e legítima uma determinada diferença, considerando legitimo um
limite que é arbitrário, criando uma linha de separação entre os limites constitutivos da ordem social154.
Assim, de acordo com a teoria dos “ritos de instituição”, “qualquer rito tende a legitimar”. Portanto a
diferença básica entre Van Gennep e Bourdieu, consiste na questão de que enquanto o rito de passagem
privilegiaria a passagem em si pura e simplesmente, o rito de instituição teria como elemento chave a
linha que demarcaria o antes e o depois, além do estabelecimento da divisão social entre o grupo dos que
teria ou não passado pela mudança instituída pelo rito. Nesse sentido os ritos de instituição teriam uma
eficácia simbólica: “o poder que lhes é próprio de agir sobre o real ao agir sobre a representação do real”.
Observo que apesar da diferença entre as teorias de ambos os ritos instituídos pelos dois autores, elas não
se excluem ao contrário se complementam, portanto é possível fazer uso de ambas as teorias no estudo da
morte, e do morre, dos mortos e das representações das práticas fúnebres. BOURDIEU, Pierre. A
economia das trocas linguísticas: o que falar que dizer. São Paula: Editora da Universidade de são Paulo,
1996, pp. 97-100. Para uma abordagem mais detalhada sobre os ritos de instituição cf. BRAVO, Milra
Nascimento. Hierarquias na Morte... 2015, pp.101 e 102. Veja também. BRAGA, op. cit., p. 116.
155
BOURDIEU, PIERRE. Cf. PAIXÃO, Anne Elise Reis da. Morrer na “Banda d’ Além”: as práticas
fúnebres nas paróquias de São Gonçalo de Amarante e São Sebastião de Itaipu no século XVIII.
Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015, p. 95; BRAGA,
op. cit., p. 119.
156
PERREIRA, José Carlos. Os ritos de passagem no catolicismo: cerimonias de inclusão e sociabilidade.
Rio de Janeiro: Mauad X, 2012, p. 159.
157
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro I. 3ª ed. Brasilia: INL/MEC, 1972, p.
573.
258

Vistos como ritos de passagem dentro do catolicismo, e que envolvem além


do corpo o espirito, preceitos racionais, emocionais e religiosos, os sacramentos
fúnebres teriam um valor inestimável no interior da comunidade religiosa. Indo além de
simples elementos de inclusão religiosa ou social, no referido espaço da comunidade ao
qual o indivíduo pertence; eram uma espécie de escudo simbólico protetor de diversos
males que adoeciam o corpo e a alma 158. Através da legislação eclesiástica a Igreja
exortava e encarregava os párocos que visitassem periodicamente os fregueses enfermos
em provável perigo de morte e os admoestassem a tomar os sacramentos que não
tivessem recebido desde que estivessem em seu juízo perfeito. Assim, obedecendo uma
certa ordem, o primeiro sacramento fúnebre que seria administrado ao moribundo pelo
sacerdote era penitência ou confissão. Após um exame de consciência, o moribundo se
confessava, demonstrando arrependimento e pedia perdão dos pecados cometidos. De
acordo com as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, o sacramento da
penitência representava a segunda tábua depois do naufrágio para o homem batizado
que naufragou pela culpa mortal, perdendo a graça de Deus que no batismo havia
recebido. Não lhe restava outro remédio para salvar-se do naufrágio, se não pelo
sacramento da penitência, confessando-se inteiramente, e com dor os seus pecados ao
legitimo ministro alcançando por meio deste a absolvição dos pecados 159. Entretanto,
fazer a penitência dos pecados cometidos exigia um certo tempo mais ou menos longo,
durante o qual o penitente dedicava-se as práticas de mortificação, sendo absolvido
imediatamente após a confissão penitencial 160.
É possível perceber o caráter medicinal, escatológico e soteriológico do
texto, em que o sacramento era oferecido ao pecador como um remédio que simbolizava
a cura divina do corpo e da alma, isso pode explicar porque as Constituições Primeiras
ordenavam aos médicos cirurgiões e barbeiros, que indo visitar um enfermo que
estivesse em estado grave, antes de lhe aplicarem a medicina para corpo, o tratasse
primeiro com a medicina da alma. Nesse sentido, deveriam persuadir aos enfermos que
se confessassem imediatamente, pois cuidando da alma estariam também cuidando do
corpo, visto que os males que o corpo padecia eram consequência dos males da alma
causados pelo pecado 161.

158
PERREIRA, op. cit., p, 12-13; BRAVO, op. cit., 2015, p. 106; BRAGA, op. cit., p. 119.
159
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... Título XXXIII c. 123, p. 54
160
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 176-177.
161
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... Título XXXIII c. 160, p. 68.
259

O texto das Constituições Primeiras advertia os profissionais de saúde que


aqueles fiéis que não cumprissem as normas se confessando até o terceiro dia não
deveriam mais ser visitados por eles. O peso e rigidez da legislação eclesiástica ficam
patentes logo no início do cânone 160, em que alerta que o seu descumprimento
incorreria na pena de pagarem cinco cruzados para as obras pias, e ao meirinho geral,
além de outras penas de direito. Esse argumento é reforçado no cânone 161 em que a lei
ameaçava em punir com a excomunhão e o pagamento de dez cruzados os médicos,
cirurgiões e barbeiros que em descumprimento da lei tratassem de qualquer doente
grave, dos males do corpo sem que antes estes tivessem sido tratados dos males da
alma 162. Essa questão revela o poder conferido à religião católica, religião oficial do
Estado, em uma sociedade colonial de Antigo Regime, sobre os demais aspectos sociais
e políticos relacionados à vida, a morte, as doenças e as artes de curar. Conforme
observou Claudia Rodrigues, dava-se maior prioridade a figura do sacerdote e aos
rituais religiosos em detrimento o papel do médico e da medicina no que se referia ao
tratamento das doenças 163.
A associação entre pecado e doença era fato bastante presente na sociedade
colonial da América portuguesa e do império do Brasil (principalmente até a primeira
metade do século XIX), bem como na maioria das sociedades do Antigo Regime. Nesse
sentido, era para os santos, anjos e demais membros da sociedade celestial, assim como
para os amuletos e outras práticas associadas ao sagrado e/ou sobrenatural, que a
população se voltava em momentos de doença 164.
Tal situação pode ser explica pela ausência de uma fronteira rígida entre os
domínios deste mundo e do sobrenatural, conforme observou Márcia Moisés Ribeiro,
em sua pesquisa sobre a arte médica no Brasil do século XVIII. De acordo com a autora
a doença era muitas vezes concebida como ira de Deus e ação do Demônio, por isso
deveria ser tratada no campo do sobrenatural, através do recurso a magia e aos
exorcismos, sendo assim, os médicos e o clero eram comparados a “feiticeiros” que
tinham a tarefa de extirpar os males do espirito, que eram as causas das doenças, com o
objetivo de cura-las. Por esse motivo a Igreja exortava os médicos, cirurgiões e

162
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720, artigos 160/161, pp. 68-9.
163
RODRIGUES, op. cit., 2005, pp. 121-2.
164
Idem., pp. 122.
260

barbeiros, para que em primeiro lugar se buscasse a cura dos males da alma antes dos
cuidados dos males do corpo 165.
No pensamento médico da época vigia a crença de que nos processos de
cura devia-se recorrer à magia e ao sobrenatural, principalmente quando não se
encontrava soluções pelo caminho do natural 166. Nesse sentido, pode-se entender o fato
de os médicos recorrerem à medicina da alma como aliada da medicina do corpo.
Assim, medicina e religião eram campos indissociáveis dentro do pensamento médico
do século XVIII. De acordo com Márcia Moisés Ribeiro, embora pareça contraditório, a
concepção que se tinha de doença na época comportava tranquilamente os princípios
religiosos. Era perfeitamente possível a existência de uma aliança entre medicina e
catolicismo que estava plenamente de acordo com o momento que se pregava a
necessidade do progresso e a utilidade de uma ciência experimental 167.
Em Portugal as transformações ocorridas na arte médica eram mais visíveis
no âmbito do discurso, ao passo que na colônia havia muitos obstáculos que impediam o
progresso intelectual e científico, eram pouquíssimos os indivíduos que tinham
condições que lhes permitiam o acesso à leitura. Portanto, no âmbito colonial mesmo no
campo do discurso observasse com pouquíssima nitidez um progresso no discurso
médico, pois a produção literária cientifica foi muito escassa entre o final do setecentos
e o início do século XIX 168. Foi somente com a instituição das escolas médico-
cirúrgicas da Bahia e do Rio de Janeiro, que o saber médico se desenvolveu dando
origem à concepção médica que procurava explicar as doenças através de princípios
fisiológicos e de alteração dos órgãos. Assim, é perfeitamente compreensível esta
concepção de doença do corpo como consequência da doença da alma associada aos
sacramentos, às orações e curas dos enfermos existente no século XVIII e boa parte do
século XIX, como resultado de causas sobrenaturais e a importância a ela atribuída em
termos de preparação para a morte 169.
Nessa etapa da preparação para morte, de acordo com as Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia a penitência tinha um papel fundamental, pois era
um sacramento necessário para todos aqueles, que haviam cometido pecado mortal após

165
RIBEIRO, Marcia Moisés. A ciência dos trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII. São Paulo:
Hucitec, 1997, p. 80-1; RODRIGUES, op. cit., 2005, pp. 122.
166
RIBEIRO, op. cit., p. 127.
167
Idem., 1997, p. 139-140; RODRIGUES, op. cit., 2005, pp. 123.
168
RIBEIRO, op. cit. p. 141.
169
RODRIGUES, op. cit., 2005, pp. 121-3.
261

o batismo, constituindo-se assim de direito divino170. A Igreja lamentava ver a perda e a


ruina de muitas almas que se condenavam por má confissão, convertendo a medicina em
peçonha, e o sacramento em sacrilégio. Assim, de acordo com as Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia, para que uma confissão fosse bem feita ela teria
duas etapas, ao qual levaria o penitente alcançar a remissão dos pecados 171.
A primeira era a contrição ou penitencia perfeita, caracteriza-se por um
profundo sentimento de arrependimento dos pecados, com o firme propósito de não
nunca mais pecar com a graça de Deus. Era considerada perfeita por causar no penitente
uma dor profunda, um aborrecimento por ter pecado contra Deus. Por ser Deus perfeito,
digno de ser amado sobre todas as coisas, por sua infinita bondade, o penitente deverá
ter o firme propósito de nunca mais o ofender. A atrição ou contrição imperfeita seria
uma dor, e o pesar também dos pecados cometidos nascidos do medo das penas do
inferno, que por eles tem merecido, mas com o firme propósito de nunca mais pecar
ajudado pela divina graça 172.
Entre o ato de contrição e atrição haveria uma grande diferença. Segundo as
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, a contrição seria um ato verdadeiro e
de coração, com o objetivo sincero de se evitar o pecado e aconteceria também fora do
sacramento da confissão, enquanto que a atrição aconteceria somente no momento do
sacramento da confissão e seria uma busca pela graça de Deus. Mas para que ocorresse
de fato uma boa confissão o penitente deveria colocar-se verdadeiramente na graça de
Deus, com o verdadeiro proposito de não mais pecar. Para alcançar o perdão de Deus o
ideal seria a união dos dois atos. Entretanto, na impossibilidade de isso ocorrer deveria
o penitente privilegiar o primeiro que era mais seguro 173. É possível perceber a
importância deste sacramento para a Igreja, no cânone 158 das Constituições Primeiras
que preconizava se por negligencia e culpa do pároco falecer alguma pessoa sem o
sacramento da confissão, este seria preso e suspenso do oficio, e haveria mais penas que
por direto merecesse de acordo com sua culpa, o mesmo valia para o sacerdote que
ficasse responsável pela freguesia na ausência do pároco. Mesmo que o pároco principal
tivesse cura e coadjutor, isso não o isentava da pena. Em época de epidemias ou
doenças contagiosas, mesmo com perigo de vida era obrigado a administrar este
sacramento a seus paroquianos, e em caso de culpa comprovada de negligencia por

170
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720. Título XXXIII. Artigo 128 p. 55.
171
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720. Título XXXIV. Artigo 130 p. 56
172
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720. Título XXXIII. Artigo 131 p. 56
173
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720. Título XXXIII. Artigo 132 p. 57.
262

parte da cura e do coadjutor, estes deveriam ser por ele castigados. Quando a culpa pela
falta da confissão fosse por parte daqueles que tinham a obrigação de curar o enfermo
ou dos seus familiares que não avisaram o pároco a tempo, estes também seriam
castigados, de acordo com a qualidade de suas culpas 174. Tal situação além de revelar o
caráter punitivo e repressivo da lei eclesiástica, também demonstra importância do papel
deste sacramento na preparação da boa morte. Mas devido à escassez de párocos
principalmente em épocas de epidemias muitos fregueses partiram para o mundo do
além sem receber os últimos sacramentos 175.
Na sequência do ritual de preparação para a boa morte o sacerdote deveria
administrar a eucaristia ou a comunhão, que desde os primórdios a Igreja exortava os
fiéis que estivessem em perigo de vida, na iminência da morte, impossibilitados de sair
de casa fossem “reconfortados” com a comunhão em forma de viático. Era uma espécie
de provisão indispensável para a “viagem”, justificada pela ideia de que a eucaristia agia
como um alimento espiritual para a alma. Assim, como todos os demais sacramentos
deveria ser ministrada no momento em que o moribundo ainda estivesse em plena
consciência de seus atos, para entregar-se a cristo, na passagem para Deus, na morte
assumida. Por esse motivo os menores de sete anos não recebiam este sacramento por
serem considerados ainda inocentes, não tendo ainda consciência de seus atos 176. José
Carlos Pereira em seu estudo sobre os ritos de passagem no catolicismo descreve a
eucaristia em forma de viático como provisão espiritual par a eternidade. Nas palavras
do autor:
Juntamente com a unção é levada ao doente, se ainda estiver
lucido e em condições de ingerir algum alimento, a eucaristia.
Nesse caso, ela recebe o nome de viático, que quer dizer
sacramento da comunhão ministrado em casa aos enfermos
impossibilitados de sair ou os moribundos. A razão desse nome
é devido ao fato de a comunhão fazer parte de um conjunto de
provisões espirituais levadas até os doentes, das quais a unção
também faz parte. Um tipo de viagem com dois significados:
primeiro o da comunhão que sai de seu lugar de origem, o
sacrário, a Igreja, e é conduzida até o enfermo, fazendo, assim,
uma espécie de viagem até o local onde está o doente. O outro
aspecto é a comunhão como abastecimento espiritual que
prepara o fiel para a viagem para a eternidade 177.

174
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720. Título XXXIII. Artigo 158 p. 67-8.
175
Cf. RODRIGUES, op. cit., 1996, 181.
176
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720. Título XXIII. c. 83 pp. 36, 46-7;
RODRIGUES, op. cit, 1996, p. 178.
177
PEREIRA, op.cit., p. 165.
263

Segundo a legislação eclesiástica, a extrema-unção era um sacramento de


grande utilidade para os fiéis, para lhes dar especial ajuda, conforto e auxilio na hora da
morte, em que as tentações do “nosso inimigo comum” costumavam ser mais fortes, e
perigosas, “sabendo que tem pouco tempo para nos tentar”. Os efeitos desse sacramento
são muitos, os mais principalmente três. O primeiro é perdoar os pecados que ainda não
haviam sido confessados pelo enfermo e aqueles possivelmente esquecidos durante a
confissão, dando alivio a alma do enfermo. O segundo era, muitas vezes, em todo ou em
parte, restaurar a saúde corporal do enfermo, quando assim conviesse para o bem de sua
alma. O terceiro era consolar ao enfermo, dando-lhe confiança e força, para que na hora
da agonia da morte pudesse resistir aos assaltos do inimigo e aceitar com paciência as
dores da enfermidade. Sendo assim, o ritual da extrema-unção tinha a função de
entregar o doente aos cuidados de Deus, cuja finalidade era aliviar e salvar a alma do
moribundo. Assim, o conceito de alívio e salvação pode ser compreendido também
como a passagem do doente, ou seja, a morte, cuja salvação corresponderia a sua
instituição no reino celeste 178.
Os sacramentos não deveriam ser administrados aos inocentes, aos que
tiveram morte violenta por justiça, aos que morressem em batalha ou em longa e
perigosa navegação no mar, aos excomungados impenitentes, aos que estivessem em
pecado público, aos loucos. Também não se deveria administrar esse sacramento em
tempo interdito, nem pela segunda vez ao enfermo que já tivesse recebido durante a
mesma doença. Salvo se essa se prolongasse e o doente tornasse a cair em perigo de
morte. Neste caso poderia ser administrada quantas vezes fosse necessário 179.
De acordo com as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia os
párocos tinham a obrigação de levar a sagrada eucaristia a seus paroquianos enfermos,
antes de sair deveriam mandar fazer o sinal com o sino maior da igreja tangendo
campainha pelas ruas, salvo quando a necessidade do enfermo fosse urgente e não
pudesse esperar. Devia ordenar que a casa do enfermo fosse limpa, e preparada para a
cerimonia, uma mesa com toalhas limpas sobre esta, duas velas acesas, com espaço
reservado para receber a ambula do Santíssimo Sacramento 180.

178
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720. Título XLVII. c. 191, 193, 194, 195 pp.
81-82; REIS, op.cit., 1991 p. 103; RODRIGUES, op. cit., 1996, pp.178-9; PEREIRA, op.cit., p147-8.
179
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720. Título XLVII. c. 196, 197 pp. 82-83;
RODRIGUES, op. cit., 1996, pp.179.
180
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720. Título XXIX. c. 102, pp. 46-47.
264

Descreviam o ato, os objetos, os atores e como se deveria proceder ao


sacramento da extrema-unção: os párocos deviam “administrar a seus fregueses
enfermos com toda a diligência e cuidado espiritual o socorro do sacramento da
extrema-unção, para que mais facilmente na última hora possam rebater os cavilosos
assaltos do demônio”. Em caso de seu impedimento esse deveria se administrado pelo
sacerdote aprovado. Estes deveriam estar vestidos de forma adequada e portando os
objetos necessários para o ritual, ou seja, trajando o “sobrepeliz, a estola roxa, levando a
mão os Santos Oleos em sua ambula com toda a decência”. Caso o caminho fosse longo
devia levar outros clérigos para ajudá-lo, na falta destes podiam ser leigos. Para carregar
a cruz, a caldeira de água benta e o livro de ritual romano. Deviam ir rezando o salmo
“Miserere mei Deus”, (Que Deus tenha piedade de mim) e os mais “penitenciaes”.
Assim, deixavam a igreja em procissão do viático, para levar a comunhão
eucarística “como provisão espiritual e mística da viagem para a eternidade”. Ao entrar
na casa do enfermo dirá: “pax huic domui”; (paz para esta casa) e posto o óleo sobre a
mesa, está deverá estar aparelhada com toalha limpa, e ao menos uma vela acesa, a cruz
era dada ao enfermo para que ele a beijasse com o objetivo de reconciliar-se com o
sagrado, o ritual prosseguiria com ele fazendo a leitura de preces, o sacerdote o ungia de
acordo com os ritos e cerimonias ordenadas pela Santa Madre Igreja. Se o enfermo
estivesse em grave perigo correndo o risco de vir a falecer antes do fim da cerimônia o
pároco ou sacerdote deviam abreviar o ritual em meio a preces fazendo as cinco unções
necessárias, ungindo olhos, orelhas, nariz, boca e mãos, instrumento dos cinco sentidos,
peças de pecado. Em seguida passava a outras partes do corpo, evitando com pudor
tocar os seios e as costas das mulheres. Falecendo o enfermo em meio à unção, essa
deveria ser interrompida imediatamente 181.
Debret retratou a elaboração de uma procissão do viático e descreveu
detalhadamente como procedia ao ritual da extrema-unção. Ele afirma que ela sempre
impunha “religiosamente, sacrifícios de dinheiro feitos até com ostentação, na esperança
de consolar a alma do moribundo ou retê-la ainda, milagrosamente, durante mais alguns
instantes na terra”, que remete a questão da diferenciação social e econômica entre o
moribundo e suas famílias, tendo em vista que o viajante francês descreveu três tipos de
cortejo. No primeiro um irmão carregrando a sineta, seguido de dois soldados de cabeça
descoberta, com a arma virada em sinal de luto; em seguida, vinham quatro outros

181
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720. Título XLVIII. c. 198, 199, 200 pp. 83-
84; REIS, op. cit., 1991 p. 103-106.
265

irmãos, precedendo o padre, que caminhava sob o pálio quadrado, sustentado por braço
de ferro recurvado, preso a uma vara carregada por um irmão, marchando
imediatamente atrás do eclesiástico (sacerdote); este tipo de cortejo era acompanhado
por uma ou duas pessoas. O segundo tipo de cortejo era um pouco mais nobre, diferia
do primeiro apenas quanto ao pálio, que era maior e de veludo carmesim com franjas de
ouro. O terceiro tinha uma maior demonstração de luxo, o pálio era sustentado por seis
varas, com a presença de músicos negros e uma retaguarda militar 182.

Imagem 3 – Viático sendo levado a um doente

Fonte: DEBRET, Jean-Baptiste (desenhista), 1768-1848. Voyage pittoresque et


historique au Brésil. Tome troisième. p. 21. Disponível em:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon393054/icon393054_147.html

Debret citou também que um dos objetivos da levar o viático ao moribundo


era a esperança de consolar sua alma ou retê-la ainda, milagrosamente por mais alguns
instantes na terra. Sabemos que, de acordo as Constituições Primeiras do Arcebispado

182
DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. São Paulo: Tradução cedida para o
Circulo do Livro por cortesia da Livraria Martins Fontes Editora, s/d. volume II p. 516.
266

da Bahia, o sacramento da extrema-unção trazia em seu conjunto, o poder de cura que


podia resultar na recuperação física do corpo em todo ou em parte quando convém para
o bem de sua alma 183. Visava, acima de tudo, a solidariedade na dor do passamento184.
Nas freguesias onde existia a irmandade do Santíssimo Sacramento, seriam os seus
irmãos os responsáveis em acompanhar o pároco na procissão do viático. De acordo
com Debret:
Cada paróquia tem sua irmandade do Santíssimo, encarregada
de escoltar o padre no momento de levar a extrema-unção a um
doente. Essa assistência religiosa é solicitada na sacristia, onde
se encontra sempre um irmão de plantão, a quem cabe despachar
imediatamente um sineiro, que percorre as ruas adjacentes e
reúne os irmãos disponíveis para esse dever religioso. Não
conseguindo número suficiente, apelam para os soldados do
posto militar mais próximo, o que faz com que a cruz, os
candelabros e o pálio sejam quase sempre carregados por
soldados vestidos momentaneamente com a opa carmesim. O
cortejo mais decente comporta sempre um destacamento militar
de oito homens mais ou menos, comandados por um oficial,
todos de boné na mão, precedidos por um tambor e uma
trombeta ou de um pífaro, conforme a arma. Quando, por acaso,
isso acontece num dia de festa celebrada especialmente na igreja
cuja assistência é solicitada, o cortejo é acrescido solenemente
da banda de música de negros, estacionada fora do pórtico e que
se transforma então numa vanguarda composta de duas
clarinetas, um triângulo, uma trombeta, um tambor e um bumbo.
Nesse caso o destacamento militar fecha a marcha 185.

Em todas as paroquias devia haver uma irmandade do Santíssimo


Sacramento, que tinha entre as suas atribuições o dever de acompanhar o pároco à casa
do enfermo na procissão do viático. Para isso, devia sempre haver um irmão de plantão
nas sacristias, assim logo que fosse solicitado, cabia a ele despachar imediatamente o
sineiro para percorrer as ruas das proximidades para reunir os irmãos da irmandade para
esse “dever” religioso. Caso esses não aparecessem, os soldados os substituiriam. Neste
sentido, formariam um batalhão terreno da “milícia celestial” para escoltar o viático.
João Reis afirma que “Ao ceder para esta finalidade homens e armas, o Estado fazia sua
parte na batalha pela salvação das almas de seus cidadãos” 186. Claudia Rodrigues, ao
analisar o Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento da freguesia de

183
VIDE, op. cit., 1720. Título XLVIII. c. 193, p. 81; REIS, op. cit., 1991 p. 103;
184
PEREIRA, op. cit., p. 159.
185
DEBRET, op. cit., s/d. volume II p. 516-17.
186
REIS, op. cit., 1991 p.107; RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 190.
267

mesma invocação, observou que havia uma hierarquia de posições e funções,


estabelecida pelos cargos que os irmãos ocupavam, de acordo com a ordem de
precedência, assim descrita pela autora:
Provedor - atrás do pálio, presidindo sempre com a vara;
Secretário - adiante da cruz com a campainha;
Tesoureiro - levar a toalha, caldeirinha e vara, entre as alas,
compondo-as; mandar correr a campainha para o chamamento
dos irmãos; dispor as opas, tochas, e mais insígnias;
Procurador - com tocha ao lado direito, adiante do pálio;
Irmãos de mesa - uns levarão uma das varas do pálio e outros
irão com tochas aos lados;
Capelães - entoar salmos e cânticos;
Andador - pronto a correr com a campainha para chamamento
dos irmãos 187.

Nas paroquias onde não existia a irmandade do Santíssimo Sacramento,


conforme foi observado pela autora, tais funções eram executadas pelos paroquianos
organizados pelo sacristão ou pelo pároco, que disputavam as funções no cortejo 188.
Como descreveu Machado de Assim em Dom Casmurro, no capitulo intitulado “O
Santíssimo”:
Pádua solicitava ao sacristão uma das varas do pálio. José Dias
pediu uma para si.
— Há só uma disponível, disse o sacristão.
— Pois essa, disse José Dias.
— Mas eu tinha pedido primeiro, aventurou Pádua.
— Pediu primeiro, mas entrou tarde, retorquiu José Dias; eu já
cá estava.
Leve uma tocha.
Pádua, apesar do medo que tinha ao outro, teimava em querer a
vara, tudo isto em voz baixa e surda. O sacristão achou meio de
conciliar a rivalidade, tomando a si obter de um dos outros
seguradores do pálio que cedesse a vara ao Pádua, [...] José Dias
transtornou ainda esta combinação. Não, uma vez que tínhamos
outra vara disponível, pedia-a para mim, [...]
Pela minha parte, quis ceder-lhe a vara; lembrou-me que ele
costumava acompanhar o Santíssimo Sacramento aos
moribundos, levando uma tocha, mas que a última vez
conseguira uma vara do pálio. A distinção especial do pálio
vinha de cobrir o vigário e o sacramento; para tocha qualquer
pessoa servia.

187
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 191.
188
Idem., p. 191.
268

As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia determinavam que a


todas as pessoas que acompanhassem o Santíssimo Sacramento fossem concedidas
muitas indulgências pelos Sumos Pontífices. Estas podem ser as justificativas pelas
disputas entre os paroquianos narradas em Dom Casmurro, além da pompa e poder que
poderiam estar implícitas em tais funções advindas das distinções de conduzir o pálio
que cobria o vigário e o Santíssimo Sacramento 189.
As descrições de Luiz Edmundo e Mello Moraes Filho, embora divergentes
em alguns pontos, são muito parecidas com as de Debret e de Machado de Assis. Em
Luiz Edmundo, por exemplo, está presente a organização do cortejo pelos irmãos do
Santíssimo Sacramento, mas acrescenta a participação dos paroquianos, que não faziam
parte da irmandade, registra ainda a presença de uma grande multidão barulhenta e feliz.
Mello Moraes observa que estando completo o pessoal necessário não era preciso
chamar os soldados, o que foi observado por Debret. Acrescenta ainda que a calçada e a
entrada da casa do enfermo eram estendidas folhas de canela, de cravo e de laranjeiras,
as casas eram iluminadas com lanternas e castiçais, ao ouvir o soar da campa as mães
acordavam seus filhos tomando-os no ombro, quando procissão passava as pessoas nas
ruas ajoelhavam-se e batiam no peito; nas casas que havia pessoas doentes, estes eram
ajudados a se sentar na cama. “Nosso pai seguia à casa do pecador contrito” 190.
Em ambos os autores aparecem descrições muito próximas as de Machado
de Assis sobre o comportamento, tanto das pessoas que participavam do cortejo, como
daquelas que se encontrava com o mesmo na rua. “Cantam os que vão marchando, bem
como todos que estão pela rua piedosamente de joelhos e mãos postas, orando por
aquela alma que sofre e que vai desencarnar” 191.
Ao chegar à casa do doente, permitia-se somente a entrada das pessoas
necessárias, os demais participantes aguardavam na rua entoando cantos, misturando
valsas, alemandas e lundus com litanias de Nossa Senhora em clima de festa, que alias
estava presente nas descrições de Luiz Edmundo e Mello Moraes. Para Debret, esse
clima de festa era indecente e primitivo, ridicularizava a cerimonia e retirava dela
qualquer “dignidade religiosa”, ou seja, a pura expressão da “barbárie”. Segundo ele,
embora se “afirmasse que muitas vezes a eloquência feliz e caridosa do padre podia

189
VIDE, op. cit., Titulo XXIX, c. 105, p.48
190
MORAES FILHO, Mello. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho
Editorial, 2002, p. 265.
191
EDMUNDO, LUIZ. O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis, 1763-1808. Brasília: Senado Federal,
Conselho Editorial, 2000, p. 46.
269

valer-se desse barulho bárbaro para persuadir o moribundo de que já o céu se abre para
recebê-lo e os anjos o anunciam com seu concerto harmonioso”. Mas segundo ele isso
não passava de uma doce ilusão que embalava a credulidade de alguns cristãos 192.
Segundo João Reis a morte como motivo de festa tinha adeptos em varias
sociedades. O barulho estava presente em ritos fúnebres em diversas sociedades. Pois
era visto como facilitador da comunicação entre o homem e o sobrenatural. Entre os
africanos, por exemplo, a morte silenciosa era considerada uma má morte. 193 De acordo
com Louis Vincent Thomas, em África o barulho estava relacionado à diversão, uma
estratégia que assumia uma importância excepcional e tinha o objetivo de compartilhar
a morte com o silêncio, o grito dos enlutados, o toque dos tambores representava a
exaltação da vida diante da morte. O silêncio era necessário diante de uma “morte
ruim”, estéril. Representava a morte final, em que os indivíduos estariam “duplamente
mortos” perdidos para sempre, pois não tinha esperança de sobrevivência. Mas podemos
constatar que nem sempre esses funerais ocorriam em total silêncio, isso dependia muito
do povo da cultura e da região. Entre os Dogon no Mali, por exemplo, o funeral de uma
mulher grávida acontecia à meia-noite, sem o conhecimento de todos. No máximo ao
som abafado de um tambor e de pedaços de cerâmica batidos uns contra os outros dando
ritmo a marcha. Não eram permitidas lamentações nem lagrimas. Entre os Kisi na
Guiné, a morte de uma mulher gravida desencadeava os gritos das outras mulheres
tocadas pela morte, geralmente as estéreis e aquelas que em que todos os seus filhos já
haviam morrido 194.
Assim, como havia funerais de “boa morte” em muitos momentos que essas
manifestações não eram apropriadas, Louis Vincent Thomas observou que em certos
grupos étnicos eram as mulheres mais velhas da vizinhança que assumiam o papel do
luto, elas podiam dar gritos extremamente comoventes em momentos específicos
durante o funeral ou nos dias subsequentes a ele. Proferiam gritos lamentosos, perto de
soluços, redobrando o zelo quando se transportava o morto ou quando chegava um
ilustre convidado. Em outros grupos todas as mulheres participavam das lamentações,
entoando canções ao ritmo dos tambores. O barulho era a característica mais espetacular
dos grandes funerais africanos. Batendo palmas ao som de trombetas, tiros, tambores,
sinos e castanholas acompanhadas por canções, gritos e grande alvoroço. Se o morto

192
DEBRETop. Cit., s/d. volume II p. 517.
193
REIS, op. cit., 1991, p.105.
194
THOMAS, Louis Vincent. La Mort Africaine. Idéologie funéraire em Afrique Noire. Paris: Payot,
Boulevard Saint-German, 1982, p. 164.
270

fosse mais velho e mais influente, o barulho era mais forte e mais intenso ao ritmo
frenético dos tambores, libações de vinho de palma ajudavam a criar uma atmosfera de
algazarra. Todo esse transbordamento pode ser interpretado como uma liberação
coletiva dos membros do grupo diante da morte, mas para as culturas africanas eles são
a expressão da vida e como tal deviam desafiar efetivamente os mortos. Barulho e
agitação simbolizavam a fertilidade e renascimento, pois o morto poderia se regenerar
dos ancestrais e reencarnar no ventre de uma mulher. Por isso ele devia ter um funeral
estrondoso, evocativo de seu renascimento.
Com base na tabela 16, segundo a origem dos mortos na freguesia da Sé,
podemos observar que um número significativo de crioulos, 53,4%, recorreu aos
sacramentos recebendo todos ou pelo menos um, enquanto 42,6% dos africanos também
o fizeram com o objetivo de garantir uma “boa morte”. Entre aqueles que receberam
todos os sacramentos mantem-se a distância entre os dois grupos: 35% dos crioulos e
19,4% africanos receberam todos os sacramentos. É possível perceber também que entre
aqueles que receberam mais de um sacramento predominou a combinação entre
penitência e extrema-unção, sendo recebida por 10,7% dos africanos e 7,3% dos
crioulos respectivamente e entre aqueles que receberam apenas um sacramento houve
um predomínio da extrema-unção que foi administrado para 8,9% dos africanos contra
7,2% dos crioulos. Esses menores índices dos crioulos se justificam pelo fato de a maior
parte ter recebido todos os sacramentos, como mencionado.
Percebe-se também que entre aqueles que partiram para o outro mundo sem
receber nenhum sacramento houve um predomínio dos africanos com 7,8% contra 7,3%
dos crioulos. Como era de se esperar os crioulos, por terem nascidos no Brasil teriam
por conta disso uma maior proximidade da religião católica e, portanto, recorreriam com
mais frequência o recurso aos sacramentos em busca de uma boa morte; ao passo que os
africanos, devido a constante renovação pelo tráfico atlântico, estivessem mais apegados
às suas crenças de origem e possivelmente recorreriam com menos frequência ao
recurso dos sacramentos.
271

TABELA 16 – SACRAMENTOS SEGUNDO A ORIGEM


SACRAMENTOS CRIOULOS AFRICANOS TOTAL
Nº % Nº % N %

Todos 411 35,0 410 19,4 821 25,0


Sem referência* 443 37,7 1016 47,9 1459 44,3
Extrema-unção 84 7,2 188 8,9 272 8,3
Penitencia e Extrema-unção 85 7,3 225 10,7 310 9,5
Penitencia 40 3,4 71 3,4 111 3,4
Penitencia e eucaristia 6 0,5 5 0,2 11 0,3
Batismo - - 1 0,0 1 0,0
Por se achar morto 2 0,1 - - 2 0,0
Por não dar lugar - - 1 0,0 1 0,0
Morte repentina 18 1,5 35 1,7 53 1,6
Não recebeu por morrer afogado - - 1 0,0 1 0,0
no sangue
Sem sacramentos 85 7,3 165 7,8 250 7,6
Sem sacramentos executado - - 1 0,0 1 0,0
Total 1174 100 2119 100 3293 100
*
Subtraídos os 1153 e 19 inocentes, que não receberam os sacramentos por serem
menores de sete anos.
FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de
Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).

Porém, um número significativo de africanos, 47,9%, passou para o outro


mundo sem que possamos saber se receberam ou não algum sacramento por falta de
referência, enquanto entre os crioulos foram 37,7% que morreram e ficaram sem
nenhuma referência se receberam ou não algum sacramento. Esta situação ajuda a
explicar porque os africanos tiveram menos registros de recurso ao uso de sacramentos.
Pois este alto índice de ausências não necessariamente significa que todos esses
indivíduos morreram sem receber ao menos um sacramento. É improvável que um
número tão significativo de ausência de referência somado aos que nos registros de
óbitos trazem a notícia de que morreram sem sacramentos, signifique recusa aos
sacramentos. Conforme já observou Claudia Rodrigues 195, ainda que esta pudesse ter
ocorrido, pois a não aceitação por parte de determinados grupos africanos da ortodoxia
católica é perfeitamente possível de ter ocorrido. No entanto, de acordo com as
Constituições Primeiras Arcebispado da Bahia, aqueles que recusassem os sacramentos
católicos seriam impedidos de ter sepultamento cristão. Sendo assim, é bem provável
que boa parte das ausências de referências e aqueles que morreram sem receber os

195
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 180 e 189.
272

últimos sacramentos estivessem relacionados a outros fatores que não a recusa dos
sinais sagrados. Mas a demora em entrar em contato com o sacerdote a tempo, diante de
uma morte repentina, acidental, pela dificuldade deste ser encontrado, ou ainda a
dificuldade de chegar à casa do moribundo a tempo, por negligencia por parte de
familiares e amigos do morto, dos senhores quando se tratasse de escravos ou ainda
descaso por parte do sacerdote. Mas é bom lembrar como já mencionamos neste
trabalho que as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia terminavam que o
pároco atendesse a todos os fiéis que recorressem aos sacramentos sendo estes livres ou
escravizados e exortava aos senhores que cuidassem da catequese de seus cativos e
consequentemente os acudissem na hora da morte com um enterro cristão conforme
ordenava a Santa Madre Igreja.

Com base na tabela 17, é possível perceber que entre os grupos de


procedência os benguelas foram aqueles que mais receberam todos ou pelo menos um
sacramento, com 9,7%; seguidos dos minas, com 8,5%; a seguir os congos, com 5,4%;
angolas, com 5,1%; rebolos, com 3,4 e moçambiques, com 3,3. Importante notar que os
africanos identificados apenas como de nação por não trazerem no registro de óbitos a
sua origem, mas apenas essa expressão atingiram o percentual de 15,2%. Tais números
não refletem apenas a demografia do tráfico atlântico, mas revelam a capacidade de
inserção de cada grupo no seio da sociedade colonial, a proximidade que cada grupo ou
indivíduos teve com a religião oficial do Estado e sua capacidade de instituir ou
participar da organização das irmandades. Principalmente os minas ou uma boa parcela
deste grupo, os Makis, mas que majoritariamente era pequeno em relação aos demais
africanos. Declaravam-se verdadeiros católicos enquanto acusavam os angolas e os
daomeanos de usarem-se de cantigas gentílicas e supersticiosas, nas diferentes
cerimonias e rituais religiosos. Buscando a diferenciação social, religiosa e de grupo.
Observamos que este grupo recebeu 10,4% de todos os sacramentos, só perdendo para o
grupo denominado de nação que recebeu 10,9, ultrapassando os benguelas que
receberam 7% de todos os sacramentos. Observamos também a confirmação da
presença expressiva dos crioulos recebendo 36,4% de todos ou pelo menos um
sacramento ministrado.
Uma questão intrigante é o caso dos benguelas, que aparecerem em
quantidade expressiva nos registros paroquias de óbitos recebendo uma quantidade
significativa de sacramentos, apesar de eles quase não aprecem entre os libertos
273

africanos que redigiram testamentos, assim como, também não aparecem nos
compromissos das irmandades por nós analisados. Em relação aos livros de matricula
das irmandades de negros, não tivemos acesso a essa documentação, portanto, não
temos informação se eles se filiaram as irmandades de negros no Rio de Janeiro como
ocorreu em Minas Gerais, por exemplo, que aparecem nos testamentos e na organização
das irmandades, o que se pode constatar através dos trabalhos de Silvia Brugger e
Anderson oliveira 196.
O fato de não termos essa informação não significa que eles não
participaram das irmandades, pois entre os 92 testamentos 197 por mim analisados apenas
um pertencente à Catharina do Espirito Santo, preta forra de nação benguela que
faleceu em 1804, era irmã da irmandade de São domingos. Anderson Oliveira ao
analisar os livros de registros de irmãos da irmandade de Santo Elesbão e Santa
Efigênia no período 1843-1930 observou a presença de 10 benguelas, contra 88 minas,
14 cabindas, 14 congos, e 11 angolas, 9 moçambiques, 7 calabares. Embora nos dados
apresentado por Anderson de Oliveira eles apareçam em número menor que os outros
grupos, sendo superiores apenas aos moçambiques e calabares, não temos como saber se
sempre foram membros dessa irmandade e se sua quantidade foi sempre inferior aos
outros grupos. De acordo com o compromisso de 1740, essa irmandade foi fundada por
africanos oriundos da Costa da Mina, Cabo Verde, Ilha de São Tomé e Moçambique e
era controlada pelos negros minas. Portanto, eles e os outros grupos estavam
praticamente excluídos da administração da mesma. Mas pelo menos para o século XIX
é possível afirmar que havia benguelas nas irmandades do Rio de janeiro e
possivelmente no século XVIII também.

196
BRÜGGER e OLIVEIRA, op. cit., pp. 177-204.
197
Agradeço a professora Claudia Rodrigues por ter me cedido gentilmente esses testamentos.
274

TABELA 17 – SACRAMENTOS DE ACORDO GRUPOS PROCEDÊNCIA


Todos Sem Extrema- Penitência e Penitência Penitência Batismo Por morte Sem Total
Sem
SACRAMENTOS referência* unção Extrema- e repentina sacramentos
inform. 1
unção eucaristia
PROCEDÊNCIA N % N % N % N % N % N % N % N % N % N % N %
África - - 6 0,4 1 0,4 7 0,2
Angola 40 4,9 77 5,2 9 3,3 18 5,8 4 3,6 1 9,1 - - - - 5 8,2 16 6,2 170 5,1
Ambaca - - 2 0,1 - - 1 0,3 - - - - - - - 1 0,4 4 0,1
Benguela 58 7,0 154 10,4 34 12,5 38 12,2 17 15,1 1 9,1 - - - - 7 12,0 16 6,2 325 9,7
Cabo Verde 2 0,2 - - - - 1 0,3 - - - 1 6,7 - - 1 1,6 5 0,1
Cabinda 19 2,3 108 7,3 12 4,4 11 3,5 4 3,6 1 9,1 - - - - 2 3,2 3 1,2 160 4,9
Cabundá - - 1 0,0 - - - - - - - - - - - - - - 1 0,0
Calabar 2 0,2 25 1,7 2 0,7 2 0,6 - - - - - - - - 31 0,9
Camundongo 3 0,4 2 0,1 1 0,4 1 0,3 1 0,9 - - - - - - 1 1,6 9 0,3
Cassange 3 0,4 25 1,7 4 1,5 7 2,3 - - - - - - - - 1 1,6 3 1,2 43 1,4
Cobu 1 0,1 - - - - - - - - - - - - - - 1 0,0
Congo 35 4,3 89 6,0 19 6,9 17 5,5 5 4,5 - - - - - 3 4,5 7a 2,7 175 5,4
Courana - - - - - - 1 0,3 - - - - - - - - 1 0,0
De nação 89 10,9 237 16,0 54 19,9 69 22,3 20 17,8 1 9,1 - - - - 1 1,6 34 13,5 505 15,2
Ganguela 12 1,5 11 0,7 1 0,4 2 0,7 - - - - - - - - 3 4,5 1 0,4 30 0,9
Guiné 13 1,6 - - 2 0,7 1 0,3 3 2,7 - - 6 40,0 - - 4 6,6 4 1,5 33 1,0
Inhambane - - 7 0,5 1 0,4 1 0,3 - - - - - - - - 1 0,4 10 0,3
Loango - - 1 0,0 - - - - - - - - 1 6,7 - - 2 0,0
Luanda 1 0,1 - - - - - - - - - - - - - 1 0,0
Mapinda 1 0,1 - - - - - - - - - - - - - - 1 0,0
Marimba - - 1 0,0 - - - - - - - - - - - - - 1 0,0
Mina 85 10,4 107 7,2 21 7,7 17 5,5 13 11,6 - - 5 33,3 - - 10 16,4 22b 8,5 280 8,5
Moçambique 6 0,7 74 5,0 11 4,1 8 2,6 - - - - - - 1 100 7 2,7 107 3,3
Moange - - 2 0,1 - - - - - - - - - - - - - - 2 0,0
Mocoso - - - - - - 1c 0,3 - - - - - - - - 1 0,0
Mofumbe 2 0,2 11 0,7 4 1,5 - - 1 0,9 - - - - - - 1 1,6 1 0,4 20 0,6
Monjolo 4 0,5 31 2,1 6 2,2 5 1,6 - - 1 9,1 - - - - 1 1,6 4 1,5 52 1,6
Mugungo 1 0,1 - - - - - - - - - - - - - - 1 0,0
275

Nagô 1 0,1 1 0,0 - - - - - - - - - - - - 2 0,0


Quilimane - - 5 0,3 1 - - - - - - - - - - 6 0,0
Quissama 9 1,1 6 0,4 1 0,4 4 1,0 1 0,9 - - - - - - 21 0,6
Rebolo 23 2,8 58 3,9 5 1,8 21 6,8 3 2,7 - - - - - - 1 1,6 4 1,5 115 3,4
São Tomé - - 1 0,0 1 1,6 1 0,4 3 0,0
Songo - - 3 0,2 1 1,6 2 0,8 6 0,1
Crioulos 411 50,1 443 30,0 84 30,8 85 27,5 40 35,7 6 54,5 2 13,3 - - 18 29,5 133d 51,0 1222 36,4
TOTAL 821 100 1488 100 273 100 311 100 112 100 11 100 15 100 1 100 61 100 260 100 3353 100
*
Subtraídos os 1153 e 19 inocentes, que não receberam os sacramentos por serem menores de sete anos.
FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
1
Sem informação sobre qual sacramento foi ministrado ou texto ilegível.
a
Um executado e um por não ter lugar
b
Um não por morrer afogado em sangue
c
Um por morrer de facada
d
Uma Faleceu de parto e um por se achar morto
276

Com base nos dados da tabela 18, podemos perceber que 52,4% de todos os
moribundos receberam todos ou pelo menos um sacramento, 38,1% recebeu todos os
sacramentos. Levando-se em conta que 38,6% não tiveram referência se receberam ao
menos um sacramento, podemos supor que entre estes alguns poderiam ter recebido ao
menos um sacramento e por algum motivo não foi registrado pelo padre coadjutor,
como por exemplo, por falta da informação. Esse número possivelmente poderia ser
maior. Tal situação indica que havia uma grande preocupação com a preparação para
morte entre os segmentos livres, forros e escravizados na freguesia da Sé no período
estudado. Essa tendência já foi percebida por Milra Bravo 198 ao analisar as hierarquias
da morte no Rio de Janeiro entre 1720 e 1808. A autora identificou que 66,5% dos
moribundos receberam todos os sacramentos e que 80% receberam ao menos um.
Embora nossos dados sejam em menor proporção evidenciam a permanência de uma
forte preocupação com a preparação para uma boa morte entre os três segmentos
sociais.
Ao analisarmos os dados da tabela de forma mais detalhada percebemos que
tal tendência fica mais evidente, pois 51,8% dos livres receberam todos ou pelo menos
um sacramento, entre os forros o percentual é ainda maior, 66,9%, entre os escravizados
o percentual é menor, mas não menos importante, 43,2%. Em relação ausência de
referência aos sacramentos temos: 39,8% entre os livres, 34,9% entre os forros e 46%
entre os escravizados. Dentre aqueles que receberam alguns sacramentos houve o
predomino da combinação penitência e extrema-unção, sendo recebido por 10,9% dos
escravizados, 8,8% dos forros e 2,4% dos livres. Dentre aqueles que receberam apenas
um sacramento a extrema-unção foi o sacramento mais administrado, sendo recebido
por 9% dos escravizados, 7,3% dos forros e 2,5% dos livres. Tal situação evidencia uma
maior dificuldade dos cativos em receber todos os sacramentos e foram aqueles que
mais os receberam no leito de morte.

198
BRAVO, op. cit., p. 114.
277

TABELA 18 – SACRAMENTOS X CONDIÇÃO SOCIAL

CONDIÇÃO SOCIAL LIVRES FORROS ESCRAVOS TOTAL


SACRAMENTOS N % Nº % Nº % Nº %
Todos 2750 44,7 1041 46,3 617 19,5 4408 38,1
Sem referência 2448 39,8 561 24,9 1464 46,0 4473 38,6
Extrema-unção 153 2,5 164 7,3 287 9,0 604 5,2
Penitência e Extrema-unção 147 2,4 197 8,8 344 10,9 688 6,0
Penitência 110 1,8 92 4,1 108 3,4 310 2,7
Penitência e eucaristia 21 0,4 9 0,4 14 0,4 44 0,4
Batismo - - - - 1 0,0 1 0,0
Sem sacramentos 307 5,0 127 5,7 295 9,3 729 6,3
Sem por morte repentina 182 3,0 49 2,2 40 1,3 271 2,4
Sem por não dar lugar 1 0,0 - - 1 0,0 1 0,0
Sem por desastre no mar - - - - 1 0,0 1 0,0
Sem por lhe faltar a fala - - - - 1 0,0 1 0,0
Sem por morrer afogado 1 0,0 - - 1 0,0 2 0,0
Sem por não dar tempo 12 0,2 2 0,0 3 0,0 17 0,1
Sem por se achar morto 1 0,0 1 0,0 1 0,0 3 0,0
Sem por não pedirem 1 0,0 - - 1 -0,0 1 0,0
Sem por morte acidental 1 0,0 - - 1 0,0 2 0,0
Sem por morrer afogado em sangue 1 0,0 - - - - 1 0,0
Sem por ser louco 1 0,0 - - - - 1 0,0
Sem por morrer de uma facada 1 0,0 - - - - 1 0,0
Sem por não ser prevista a morte 1 0,0 - - - - 1 0,0
Sem por se achar degolada 1 0,0 - - - - 1 0,0
Sem por se enforcar com as próprias mãos 1 0,0 - - - - 1 0,0
Sem Por ter sido morto na rua à 1 0,0 - - - - 1 0,0
noite
Sem por ser morto a tiro 1 0,0 - - - - 1 0,0
Por vir morto de fora - - 1 0,0 - - 1 0,0
Sem por morte súbita 1 0,0 - - - - 1 0,0
Sem informação 10 0,2 6 0,3 6 0,2 22 0,2
TOTAL 6154 100 2250 100 3186 100 11.590 100

Subtraídos os 389, 166 e 808 inocentes, que não receberam os sacramentos por serem
menores de sete anos.
FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de
Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).
278

Tais dados sugerem ainda uma aproximação entre os índices de ausência de


referência aos sacramentos dos livres com os índices dos escravizados. Claudia
Rodrigues apontou esta aproximação entre os livres e os forros, considerando os forros
mais inseridos no universo da liberdade que os escravizados 199. De acordo com os dados
de nossa amostragem, foram os escravizados que tiveram o maior percentual de
ausências de referências de recursos aos sacramentos como era de se esperar, pois
devido sua condição social, teriam menos acesso ao pároco ou sua família ou amigos
poderiam ter mais dificuldade para avisá-lo, o que o impediria de chegar a tempo ao
leito de morte do cativo para ministrar os últimos sacramentos 200.
No entanto, quando analisamos os dados de nossa amostragem em termos
de números absolutos percebemos que o maior número de ausência de referência de
recursos aos sacramentos ocorreu entre os livres e não entre os escravizados. Dos
25.372 registros de óbitos analisados por mim 49,1% não tiveram a condição social do
morto registrada, 25,7% foram registrados como livres, 15,7% como escravos e 9,5%
como forros 201. Essa maior quantidade de livres se justifica, pois estes eram em maior
número na população da cidade. Portanto, é possível que muitos livres não tivessem sua
condição social registrada no assento de óbito pelo padre, pois era mais importante
marcar ou definir quem era escravizado ou forro nessa sociedade com características de
Antigo Regime 202, para demonstrar a relação de proximidade com o cativeiro 203. Mas
não podemos esquecer que o volume da população cativa era expressiva, muito próxima
dos livres, conforme vimos no capitulo dois. No universo de indivíduos que não tiveram
sua condição social registrada, assim como dentro do índice de ausência de referência
aos sacramentos de livres havia muitos africanos e crioulos livres, libertos/forros
conforme análise feita no capitulo dois sobre Cor/condição, já que o mundo dos livres
não era monopólio dos brancos. Assim, os motivos para que muitos cativos não

199
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 184. Os anos analisados pela autora foram: 1812, 1816, 1820, 1824,
1828, 1835, 1845, 1850, 1855, 1860, 1865, 1870, 1875, 1880 e 1885.
200
Idem., p. 185.
201
Situação semelhante foi encontrada por Claudia Rodrigues ao considerar um total de 5848 registros de
óbitos analisados pela autora, em 58% não foram registrados a sua condição social do morto. 18% foram
declarados como escravizados, 8,1% foram declarados como forros e apenas 16,1% como livres. Os
dados demográficos da freguesia do santíssimo sacramento para a década de 1840 apontavam para um
maior número de livres que de forros, em concordância com o maior número de livres entre a população
como um todo. Assim, esses dados confirmavam que grande parte dos livres não teve referenciada a sua
condição social no assento de óbito. Dos 58% de registros sem referência à condição, a sua grande
maioria poderia ser de livres. Tal situação permite explicar porquê os índices dos livres teriam se
aproximado dos índices dos escravizados. Cf. RODRIGUES, Claudia. Ibidem., p. 186.
202
BRAVO, op. cit., p. 29.
203
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 186.
279

tivessem a condição social no assento de óbitos e a ausência de referência aos


sacramentos poderiam ter sido vários: por falta de informação, ou por deixar para fazer
os registros dias após o acontecimento do óbito, devido ao acumulo de atividades, pois
havia poucos párocos para dar assistência uma quantidade considerável de fieis 204. Em
épocas de epidemias a situação se tornava muito pior devido o grande número de
mortos, quando possivelmente não se daria tanta atenção ao registro de óbito de um
escravizado.

Tabela 19 – Sacramentos de acordo com o número de testadores


Sacramentos Testadores %
Todos 199 78,0
Sem/Referência 23 9,0
Extrema-unçâo 5 2,0
Penitencia 8 3,1
Penitencia e Extrema-unção 10 3,9
Morte Repentina 4 1,6
Sem/Informação 4 1,6
Sem sacramentos 2 0,8
Total 255 100,0
* Até 1843
FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de
Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).

Com base na tabela 19 podemos perceber que entre os negros africanos e


seus descendentes que faleceram na cidade do Rio de Janeiro em nosso período de
estudo, de acordo com os registros de óbitos da freguesia da Sé, 255 fizeram testamento,
destes 88,6% receberam todos ou pelo menos um sacramento; 78% receberam todos os
sacramentos; 9% não há referência de que receberam algum sacramento. Tais dados
confirmam entre aqueles que testaram havia uma grande preocupação com a preparação
para a boa morte, confirmando o caráter soteriológico do mesmo, pois além de fazerem
seus testamentos para registrar suas últimas vontades prestando contas junto a Deus,
buscaram cumprir todos os preceitos que determinava a Santa Madre Igreja, no sentido
de alcançar a salvação eterna. O interessante de se perceber aqui, na verdade é que
aqueles indivíduos que fizeram testamento apresentaram índices maiores de recurso aos
sacramentos, o que indica que se trata de um grupo com mais possibilidades de acesso a
estes rituais funerários, uma vez que tinham acesso aos testamentos.

204
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 186.
280

Após receber os últimos sacramentos a próxima etapa ritual era prepara o


cadáver para o velório e sepultamento, ou seja, colocar o morto em sua nova morada no
além-túmulo. Assunto que trataremos no próximo capítulo.
281

CAPÍTULO – 5 –
A morte e seus ritos

5.1 Os panos para envelopar o morto

Após receber os últimos sacramentos, etapa do ritual que preparava para


uma “boa morte”, caso o moribundo não resistisse às enfermidades e viesse a falecer,
outros ritos seriam necessários para assegurar que o morto realizasse uma boa passagem
e não ficasse vagando entre os vivos 1, sendo bem recebido no além-túmulo. Porém,
desta etapa em diante a participação dos vivos na realização do ritual era de extrema
importância. Os familiares do morto, amigos mais próximos 2 e a irmandade, caso este
fosse membro de alguma, dariam início a uma série de cuidados com o corpo e a alma
do morto. A primeira providência era preparar o defunto para o velório e organização do
funeral. De acordo com João Reis, os cuidados com o cadáver eram de suma
importância. Cortava o cabelo, as unhas, fazia a barba. O banho tinha de ser
imediatamente, para que o corpo não enrijecesse, dificultando a tarefa. Para realizar essa
tarefa era preciso ser “uma pessoa especial que sabia fazer o ‘toalete’ do cadáver. Uma
pessoa comum, não iniciada no lidar com os mortos, não podia tocá-lo, sob pena de
também morrer”. Assim como na África e na Europa, haviam os especialistas em lidar
com defuntos, rezadores profissionais” 3.
Segundo Louis-Vincent Thomas entre os africanos do norte, o banho dos
mortos é o primeiro ato do ritual fúnebre propriamente dito, é realizado com gestos
delicados para não machucar os mortos, para que o rosto do cadáver não ficasse
estremecido. Essa era uma ideia expressa ente os Any e os Diola. O banho era realizado
em silêncio para evitar que o falecido ouvisse as pessoas, pois o morto tinha vergonha
de expor sua nudez. O banho do morto é um rito de conservação e apresentação, para
que o mesmo fosse apresentado em condição de superioridade. As mulheres Dida, da
Costa do Marfim, esfregavam o corpo com suco de limão, especialmente nas
articulações; nas narinas elas usavam suco de cebola, na boca álcool de vinho de palma,

1
PAIXÃO, Anne Elise Reis da. Morrer na “banda d’além”: as praticas fúnebres nas paroquias de São
Gonçalo de Amarante e São Sebastião de Itaipu no século XVIII. Rio de Janeiro: Universidade Federal do
Rio de Janeiro, 2015, p. 107.
2
BRAGA, Vitor Cabral. Lugares do “bem morrer” no Recôncavo da Guanabara/RJ: Irmandades, Ritos e
tensões na geografia da morte (c.1720 a c. 1800). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade
Federal do Estado do Rio de janeiro/UNIRIO, 2015, p. 134.
3
REIS, op. cit., 1991, p. 114.
282

atualmente gin. Tais procedimentos tinham como objetivo a preservação da aparência e


do cheiro do morto, por razões de higiene e decência. Visavam à purificação do corpo
do falecido, pois a impureza dos mortos era considerada perigosa; acreditava-se que seu
espirito vagava pela casa, talvez pronto para se vingar. De todas as regras a serem
observadas, silêncio e dignidade eram as mais observadas, pois sublinhavam a seriedade
do ritual de purificação. O banho dos mortos era o equivalente simbólico ao banho dos
recém-nascidos, para marcar claramente que a passagem era invertida. O corpo do
morto era frequentemente lavado ao contrario. Entre os Any, da Costa do Marfim,
geralmente começavam pelos pés, subindo em direção a cabeça passando pelas nádegas
e costas antes de lavar o estomago e tórax, ao contrário dos banhos tomados
diariamente. Podemos interpretar o banho dos mortos como um ritual de morte e
renascimento que, como qualquer rito de passagem, exigia o estabelecimento de um
processo de purificação com objetivo de marcar a ruptura através de gestos simbólicos,
como por exemplo, fazer a barba e cortar o cabelo servia de suporte para força vital.
Além do banho dos mortos, havia outras práticas rituais que eram
elaboradas na preparação do corpo do falecido para fazer a passagem, como:
maquiagem, adornos e roupas entre outros elementos. Usavam-se cinzas, esterco,
caulim, carvão amassado ou conchas de cauri, ocre vermelho e outros produtos. Entre
esses elementos, a cor era simbolicamente bastante significativa, pois tinha um valor
ambivalente significando ao mesmo tempo morte e vida. O caulim e, por extensão, a cor
branca eram símbolos dos mortos e da morte, mas ao mesmo tempo simbolizava
renascimento. Os Ba Léké, no Congo, faziam um penteado no morto, raspando o
cabelo, deixando-o arrepiado no topo da cabeça, atestando que ele era um iniciado; uma
pena colocada na mecha superior afirmava seu grau de conhecimento; os traços
desenhados na maquiagem vermelha que cobriam o seu rosto o conectavam com o
invisível que iria guiá-lo na escuridão em direção ao outro mundo. Esses elementos,
penteados, maquiagem e roupas, variavam muito dependendo do grupo étnico em
relação à austeridade, superabundância e luxo. Este último caso, obviamente prevalecia,
pois o prestigio do falecido era reconhecido pelos atributos de seu cargo, de sua riqueza,
pelas roupas em camadas que vestia colares, pulseiras, cintos. Entre os Bankala, da
Nigéria, assim como entre os Any e os Baulé, da Costa do Marfim, por exemplo,
colocavam o pó de ouro no corpo do morto 4.

4
THOMAS, Louis-Vincent. La Mort Afrcaine: idéologie funéraire em Afrique noire. Paris: Payot.
Boulevard Saint-Germain, 1982, pp. 213-4.
283

Após o banho, o morto deveria ser vestido de forma conveniente para dar
continuidade ao ritual. Entre os moradores da cidade do Rio de Janeiro havia uma
grande preocupação com as roupas para vestir o morto, conforme observou o viajante
americano Thomas Ewbank. Da mesma forma como os brasileiros preocupavam-se com
suas roupas enquanto estavam vivos, ao morrer eram enterrados em seus melhores
trajes, salvo quando os trajes religiosos eram preferidos. “formalistas ao máximo impõe
etiqueta mesmo aos mortos. Estes deveriam seguir para o outro mundo em atitudes e
trajes convenientes” 5. Segundo Cláudia Rodrigues o costume de amortalhar o morto
estava relacionado à crença de que na “passagem” para o além o morto deveria estar
convenientemente vestido. A representação simbólica dos trajes fúnebres estava
presente, tanto no universo das crenças cristãs quanto das crenças africanas 6. João Reis
observou que, tanto os nagôs quanto os iorubas acreditavam que a falta dessa cerimonia
impedia o morto de encontrar seus ancestrais, tornando-se um espirito errante, um
isekú 7. Rodrigues observou que seu uso era uma das formas de garantir uma “boa
morte”, uma espécie de salvo-conduto 8 que permitia o morto fazer a passagem para o
outro mundo. Para os cristãos tinha o objetivo de garantir a salvação, enquanto que para
os africanos fazia parte do ritual de preparação para o encontro com os ancestrais e para
que sua alma não ficasse vagando aqui na terra. 9
Segundo a autora, a cor e o tipo de mortalha tinham uma grande
importância, tanto para os cristãos, como para os africanos, pois sua função era integrar
o morto no outro mundo. Assim, as vestimentas fúnebres faziam parte dos ritos de
agregação do morto ao mundo dos mortos, de acordo com a concepção de Van Gennep.
Se por um lado, de acordo com a crença cristã, o uso da cor errada poderia impedir o
desprendimento da alma, criando obstáculos para sua entrada no Além, por outro o uso
da cor correta funcionava como uma espécie de passaporte para a salvação 10. Vestir o
cadáver com a indumentária fúnebre certa podia não ser suficiente, pois outras etapas do
ritual de sepultamento ainda tinham de ser cumpridas, mas com certeza era necessário
para alcançar a salvação. Para os africanos, o sentido de salvação poderia ser o encontro
com os ancestrais. Nos registros de óbitos da Freguesia da Sé do Rio de Janeiro entre
1700 e 1850 em relação ao uso das mortalhas encontramos os seguintes dados:

5
EWBANK, Thomas. A vida no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1976, p.58.
6
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 196.
7
REIS, op. cit., 1991, p. 114.
8
Cf. REIS, op. cit., 1991, p. 124.
9
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 196.
10
Idem., p. 196.
284

De acordo com tabela 20, com base na origem dos mortos, é possível
perceber que entre os crioulos predominou o uso das mortalhas dos santos com 47,9%.
Destaque para o hábito de Nossa Senhora da Conceição, com 21,2%; seguido do hábito
de menino do coro, com 11,9%. O uso desses dos tipos de mortalhas entre os crioulos se
justifica por que entre eles havia maior equilíbrio entre os sexos e consequentemente um
considerável número de crianças. O hábito de Nossa Senhora da Conceição era o
preferido entre as mulheres, pois além de buscarem sua intercessão para alcançar a
graça divina, seu uso também se justificava pela relação da santa com a procriação.
Assim, não só as mulheres adultas, mas muitas meninas eram amortalhadas de Nossa
Senhora da Conceição. Enterrar uma menina com essa mortalha representava um tipo de
rito de fertilidade, para que os outros filhos não viessem a falecer. A perda de uma filha
significava perder uma vida que na fase adulta poderia gerar outras vidas. Nossa
Senhora era o modelo cristão de mãe. O uso de sua mortalha evocava sua qualidade de
conceber e gerar vida. A Senhora da conceição era uma espécie de deusa brasileira da
fecundidade 11. O vocábulo “conceição” é sinônimo de “concepção”. De acordo o
dogma católico da imaculada conceição Maria, mãe de Jesus, foi preservada imune da
mancha do pecado original, isto é, de forma pura 12. Enquanto devoção popular, seu
caráter de “imaculada” quase não era lembrado, o que a humanizava 13 e a aproxima

11
REIS, op. cit., 1991, p. 120-1.
12
O dogma da Imaculada Conceição foi promulgado por Pio IX, na bula Ineffabilis Deus, em 1854 na
qual declarou que Maria, mãe de Jesus, foi preservada imune do pecado original. O dogma da imaculada
conceição é fruto de um longo processo histórico dentro da Igreja, inicia-se na Baixa idade media, com a
reforma Protestante, período em que a Igreja teve uma grande perda de influencia, principalmente porque
o pensamento reformista buscava a libertação da hierarquia romana, uma independência do pontificado e
uma dependência cada vez mais forte em relação à sociedade civil. A tentativa de renovação da Igreja
veio com a contrarreforma, que culminou com Concilio de Trento (1545-1563). Tal situação atinge seu
auge no século XVIII com o iluminismo, século das luzes que buscava resolver os problemas da
humanidade a luz da razão, opondo-se ao obscurantismo religioso propondo uma religião natural reduzida
ao deísmo. Essa busca pela liberdade seria a base da Revolução Francesa que assumiu uma posição
anticlerical. A razão contra todo tipo de revelação divina, contra toda forma de dogmatismo absolutista
em prol de um ideal de liberdade humana, embora desconfiasse de qualquer tipo de autoridade
instrucional acreditava na capacidade do homem de dominar o mundo através da ciência. Em meio a toda
essa turbulência social, politica e eclesial, os pontífices desdobraram-se para fazer frente às mudanças que
ia tornado a sociedade menos cristã e cada vez mais laica. Nesse contexto destaca-se o pontificado de Pio
IX que lutou com todas as armas contra as ideias modernistas, entre elas a proclamação do dogma a
Imaculada Conceição. A bula apresenta dois textos para fundamentar o dogma; um é o Gênesis 3:15, no
qual se fala que a descendência da mulher esmagara a cabeça da serpente, e outro, retirado do evangelho
de Lucas 1,28, na saudação do anjo, no qual se vê que Maria é especialmente agraciada por Deus e,
depois, Lucas 1.42, no qual Isabel chama Maria de bendita entre as mulheres. LANDGRAF, Robert D. A
experiência religiosa presente no dogma da Imaculada Conceição. Dissertação de Mestrado. Campinas:
Pontifícia Universidade Católica de Capinas. PUC-Campinas, 2018, p. 9-11.
13
Anderson Oliveira observou que “a relação com os santos era mediada segundo a critérios mundanos.
Os santos eram vistos com protetores particulares das pessoas, das corporações e das cidades. Além do
que a relação estabelecida com eles era de grande intimidade. O culto aos santos superava em importância
a doutrina e prática sacramental. OLIVEIRA. Anderson José Machado de. Devoção e caridade:
285

ainda mais dos problemas de concepção de suas devotas. Ela regia simbolicamente o
nascimento e morte das crianças 14.
Entre as mortalhas de santos, a terceira opção foi a de Santo Antônio, 9,7%;
em quarto lugar ficou a mortalha de São domingos com 5,7%. Ao usar as mortalhas de
santos, a intenção dos indivíduos era obter através de sua intercessão, a graça de Deus.
Essas mortalhas “antecipavam de alguma forma, a fantasia de reunião à corte celeste.
Ao mesmo tempo em que protegia, com a força do santo que invocava, elas serviam de
salvo-conduto na viagem rumo ao paraíso” 15. João Reis observou que normalmente os
homens escolhiam as mortalhas de santos e as mulheres escolhiam mortalhas de santas,
mas havia mortalhas que eram usadas por todos, como as franciscanas, as de Nossa
Senhora do Carmo e as de São Domingos, pois além do fato de haver pessoas de
ambos os sexos nas ordens terceiras, tal fato pode estar ligado a crença no poder de
intercessão que estes santos tinham junto ao criador 16.
Quanto ao uso das mortalhas de cor entre os crioulos, a branca foi a mais
procurada, 14,3%, ocupando o segundo lugar na preferencia dos crioulos entre os tipos
de mortalha, seguida bem de perto pela mortalha preta com 12,2%, representando
terceiro lugar na preferência entre os tipos de mortalhas.

TABELA 20– MORTALHAS DE ACORDO COM A ORIGEM


CRIOULOS AFRICANOS TOTAL
ORIGEM N % N % N %
MORTALHA
Háb. de S. Francisco 61 2,7 47 2,3 108 2,5
Háb. de S. Antônio 216 9,7 243 11,5 459 10,5
háb. de N. Sra. Do Carmo 24 1,1 6 0,3 30 0,7
Háb. de N. Sra. Da Conceição 476 21,2 34 1,6 510 11,7
Háb. de São Bento 5 0,2 2 0,0 7 0,2
Háb. de S. Domingos 129 5,7 40 1,9 169 3,8
Háb. de N. Sra. das Dores 62 2,8 - - 62 1,4
Háb. de N. Sra. da Mercês 33 1,5 1 0,0 34 0,8
Háb. de S. João Evangelista 29 1,3 1 0,0 30 0,6
Háb. de Sta. Efigênia 21 0,9 1 0,0 22 0,5
Háb. de menino do coro 266 11,9 1 0,0 267 6,1
Háb. de outros santos 19 0,8 2 0,0 21 0,5
Branca 319 14,3 791 37,2 1110 25,4

irmandades religiosas no Rio de Janeiro Imperial (1840-1889). Niterói: Universidade Federal Fluminense.
UFF, 1995, P. 39.
14
REIS, op. cit., 1991, p. 121.
15
Idem., p. 124.
16
Ibidem., p. 120.
286

Preta 272 12,2 532 25,0 804 18,4


Lençol 92 4,1 237 11,2 329 7,5
Outras cores 77 3,4 9 0,4 86 2,0
Outros 17 0,7 19 0,9 36 0,8
Sem referência 126 5,5 164 7,7 290 6,6
TOTAL 2244 100 2130 100 4374 100

FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de


Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).

Entre as mulheres, a cor preta era mais difundida como cor funerária devido
à tradição colonial que as mulheres casadas deveriam usar o preto na hora da morte,
enquanto o branco era a cor da pureza virginal e a cor que para a mulher marcava o
importante ritual do casamento, ritual de despedida da virgindade e início do ciclo da
procriação 17. Assim sendo, as mulheres podiam ser mais motivadas a usar o preto.
Thomas Ewbank observou que o preto era a cor das mulheres casadas enquanto o
branco era cor das solteiras 18. Conforme vimos no capitulo dois, entre os crioulos, as
mulheres eram em maior número. Provavelmente por isso, a mortalha preta foi à
terceira opção na ordem de preferência geral entre os mesmos.
Entre os africanos prevaleceu o uso das mortalhas de cor, 62,6%, sendo a
mortalha branca a mais procurada com 37,2%, seguida da mortalha preta com um
percentual relativamente expressivo, 25%. Já entre as mortalhas de santos a maior
procura pelos mortos africanos foi do hábito de Santo Antônio que ficou em terceiro
lugar na preferência geral com 10,5%. Uma quantidade bastante significativa de
africanos utilizou como indumentária fúnebre o lençol, 7,5%, quase o dobro do número
de crioulos, 4,1%. O uso de forma expressiva dessa mortalha entre os escravizados pode
estar ligado ao seu preço, pois muito escravizados não possuíam recursos suficientes
para utilizar as mortalhas mais caras. João Reis observou que em salvador o branco foi
muito mais utilizado apresentando uma enorme distância em relação ao uso do preto.
Assim sendo, a mortalha branca foi utilizada por 73,5% dos africanos e, apenas 12,2%
dos indivíduos deste segmento fez uso da mortalha preta. Enquanto 54,5% dos crioulos
fez uso do branco como cor de mortalha, 18,5% usou o preto. Em nossa amostragem, ao
contrario de Salvador, as mortalhas pretas tiveram uma grande procura tanto por parte
dos africanos quanto pelos crioulos. Entre os africanos, o branco foi utilizado por 37,2%
dos indivíduos e o preto por 25% dos indivíduos. 14% dos crioulos usaram o branco e

17
REIS, op. cit., 1991, p. 120.
18
EWBANK, Thomas. A vida no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1976, p.58.
287

12,2% usou o preto. Situação semelhante foi encontrada por Claudia Rodrigues para o
Rio de Janeiro no século XIX em que o índice de uso das mortalhas pretas era muito
próximo ao uso das mortalhas brancas. De acordo com os dados, o índice de uso das
mortalhas brancas foi de 54,1% e das pretas de 42,8%, sendo que a partir ano de 1845 o
uso da mortalha preta superou a branca. De acordo com a autora em 1850 a menção as
cores desaparece dificultando a confirmação da substituição da mortalha branca pela
preta na preferência dos habitantes da cidade 19.
A alta procura pela mortalha branca pode ser explicada, tanto pelo universo
cultural cristão, quanto africano. Entre os cristãos o branco era motivo de alegria, pois
simboliza a esperança na vida eterna, prometida através da ressurreição, expressava uma
relação mais direta com o Santo Sudário pano branco que envolveu o corpo de Jesus
Cristo e com o qual ele ressuscitou e ascendeu ao Céu 20. Ainda dentro universo cristão e
africano, o branco também representava tanto a morte como o (re)nascimento, sendo
associado a ressureição pelos cristãos e, para os africanos ao nascimento para uma nova
vida 21. Voltaremos a esta questão do uso do branco entre os africanos mais a frente ao
analisarmos a tabela 20. A Mortalha de Nossa Senhora da Conceição teve uma procura
baixíssima entre os africanos, 1,6%, confirmando a lógica do tráfico, em que o padrão
demográfico apresenta um enorme desequilíbrio sexual e etário, ou seja, uma maior
quantidade de homens, atingindo o índice de três a quatro homens para uma mulher.
Quanto às crianças, o padrão era parecido havia sempre mais meninos que meninas 22.
O quadro 3 confirma que, entre os grupos de procedência africana, as
mortalhas de cor foram mais utilizadas, sendo a branca a mais procurada seguida muito
próxima pela preta. Entre os grupos de procedência africana, aqueles que mais
escolheram essas mortalhas foram os benguelas que em números absoluto utilizaram
19
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 199-200.
20
REIS, op. cit., 1991, p. 118; RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 201
21
Idem., 1996, p. 201
22
KLEIN, Herbert S. The trade in African slave to Rio de Janeiro, 1795-1811: “Estmates of Motality and
Patterns of Voyages.” The Journal of African History, vol. 10 nº 4, 1969, pp. 533-549 disponível em
JSTOR, www.jstor.org/stable/179897; KLEIN, Herbert S. The Portuese Slave Trade Angola in the
Eighteenth Century The Journal of History, 32. 894918.10.1017/S0022050700071199. 1972; KLEIN,
Herbert S. o tráfico de escravos africanos para o porto do Rio de Janeiro, 1825-1830. Anais de História,
Assis, São Paulo, 1973; KLEIN, Herbert S. A demografia do tráfico Atlântico de escravos para o Brasil.
São Paulo: Estudos Econômicos. Instituto de Pesquisas Econômicas. USP. Vol. 17, nº 2, 1987; KLEIN,
Herbert S. novas interpretações do tráfico de escravos do atlântico. Revista de História. 120. p. 3-25,
jan/jul. 1989; KLEIN, Herbert S. O comércio atlântico de escravos: quatro séculos de comércio
esclavagista. Lisboa: Editora Replicação, 2002; KARASCH, op. cit., 2000. FLORENTINO, Manolo. Em
costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997. Ed. 2002; CAMPBELL, Gwyn; MIERS, Suzanne; Miller, Joseph C. (Org.)
Children in slavery through the ages. Ohio University Press. 2009; CAMPBELL, Gwyn; MIERS,
Suzanne; Miller, Joseph C.(Org.) Child slaves in the modern world . Ohio University Press. 2011.
288

116 mortalhas brancas; seguidos pelos congos que utilizaram 73 mortalhas brancas; em
terceiro lugar os minas com 66; em quarto lugar os cabindas com 63; em quinto lugar
moçambiques com 51; em sexto lugar os angolas com 43 e em sétimo lugar os rebolos
40. Em relação às mortalhas pretas, novamente os benguelas foram os que mais
utilizaram com 85; em segundo lugar os minas com 58; seguidos pelos cabindas com
52; em quarto lugar os congos com 44; em quinto lugar os rebolos 36; em sexto
moçambiques com 31 e sétimo os angolas com 28. O grupo de procedência africana
que mais utilizou mortalhas de santos foi o dos minas, com 64 mortalhas de Santo
Antônio e 15 de São Francisco; seguidos pelos benguelas com 23 mortalhas de Santo
Antônio e 7 de Nossa Senhora da Conceição; em terceiro os cabindas com 18 mortalhas
de Santo Antônio; os congos e os angolas ficaram em quarto lugar com 16 mortalhas de
Santo Antônio cada um. Com exceção dos benguelas e dos africanos denominados “de
nação”, que usaram 7 e 8 mortalhas de Nossa Senhora da Conceição respectivamente, a
maioria dos africanos não fez uso dessa mortalha, assim como, do hábito de menino do
coro, comprovando os índices do tráfico de um número reduzido de mulheres e crianças
entre os grupos traficados. A amostragem também evidencia que, entre os crioulos,
tanto o uso das mortalhas de cor como das mortalhas de santos foi bastante expressivo,.
No caso das mortalhas de cor o branco foi mais utilizado, com 318, seguido do preto
com 271. Entre as mortalhas de santos a mais utilizada foi a de Nossa Senhora da
Conceição, com 476, Santo Antônio, 217 e São domingos, 129. Destaque para o habito
de menino do coro com 266.
Observamos que o uso dessas mortalhas seguia a lógica do tráfico atlântico,
pois seu uso em maior escala foi justamente pelos grupos que se fizeram presentes de
forma majoritária na cidade entre o século XVIII e XIX e que atuaram de forma
marcante no processo de instituição das irmandades e igrejas de negros. O que lhes
possibilitou a construção de espaços de sociabilidade e solidariedade e permitiu
reelaboração de suas identidades individuais e de grupo, conforme já vimos nos
capítulos 1, 2 e 3. Nesse sentido, é possível afirmar que essas escolhas foram feitas
tendo como base os universos culturais e religiosos cristão e africano presentes na
colônia e império de forma multifacetada, demonstrando que os africanos não
abandonaram suas crenças e tradições de origem, assim como, também se apropriaram
das crenças e tradições cristãs. O que pode ser exemplificado pelo uso considerável das
mortalhas de santos, especialmente entre os minas que no “Estatuto da Congregação dos
pretos minas Maki” se declaravam verdadeiros católicos. Esse documento será
289

analisado mais a frente. Tal hipótese pode ser estendida aos descendentes de africanos,
pois entre os crioulos foi grande o uso de mortalhas brancas e pretas, assim como as de
santos. Assim, pode-se se dizer que ao homenagear seus mortos e buscar a salvação da
alma, africanos e seus descontentes estavam também cultuando os seus ancestrais. Este
assunto será aprofundado no último tópico deste capítulo.
A partir dos dados da tabela 21, de acordo com a condição social dos
mortos, podemos perceber que as mortalhas de santos tiveram uma procura bastante
acentuada entre os três segmentos, sendo que o maior índice de uso dessas mortalhas
ocorreu entre os livres, com 49,9%, entre os forros o índice foi de 43,% e entre os
escravizados, 19,6%. Analisando de forma individual o uso dessas mortalhas,
percebemos que entre os livres a mortalha de santo mais utilizada foi o hábito de Santo
Antônio, com 23,1%; seguido do habito de São Francisco, com 12,8%; e em terceiro
lugar na preferência dos livres foi o hábito de Nossa Senhora do Carmo com 5,6%.
Entre os forros, a ordem de preferência foi bem próxima a dos livres. O hábito de Santo
Antônio foi também o mais procurado pelos forros, com 24%; seguido do hábito de São
Francisco, com 6%. Em terceiro lugar na preferência por mortalhas de santos entre os
forros, ficou o habito de Nossa Senhora da Conceição, com 5,7%. Já entre os
escravizados, a mortalha de santo que teve o maior índice de preferência foi o hábito de
Nossa Senhora da Conceição, com 8,2%; curiosamente superando os livres e os forros.
Questão curiosa e intrigante, pois era de se esperar que o maior índice de uso dessas
mortalhas fosse entre os livres, pelo fato de essas mortalhas serem mais utilizadas pelas
pessoas do sexo feminino, principalmente pelas meninas 23. Entre os escravizados, a taxa
de masculinidade era maior de acordo com o padrão geral do tráfico, conforme já vimos
nesse estudo. Assim, havia mais homens do que mulheres e mais meninos do que
meninas. Como explicar então esse maior índice de uso de mortalhas de Nossa Senhora
da Conceição entre os Escravizados? Tal explicação talvez esteja no alto índice de
ausência de referência ao uso de mortalhas entre os livres, somados ao também elevado
índice de ausência de informação sobre a condição social de livre ao qual já citamos
anteriormente.
Em segundo lugar na preferência dos escravizados por mortalhas de santos,
ficou a mortalha de Santo Antônio, com 5,2% e em terceiro lugar o hábito de menino do
coro, com 4,7%, ficando dentro do padrão demográfico do número de crianças entre os

23
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 202-3.
290

africanos escravizados. Mas curiosamente, do mesmo modo como o hábito de Nossa


Senhora da Conceição, seu índice foi também superior ao índice de livres e forros.
Quando na verdade o uso dessas mortalhas deveria ser em maior quantidade entre os
livres, pois entre os forros e os escravizados (africanos principalmente), havia um índice
maior de adultos e uma maior taxa de masculinidade. Claudia Rodrigues analisou esses
dados para o século XIX e constatou que número de escravizados que foram
amortalhados em o habito de Nossa Senhora da Conceição e de menino do coro eram
muito reduzidos, em comparação com os crioulos que tinham um maior equilíbrio
numérico entre homens e mulheres e um maior número de crianças. Assim sendo, houve
um maior uso do habito de Nossa Senhora da Conceição e de Menino do coro entre os
escravizados do que entre os forros. Portanto, podemos perceber que esses resultados
são parciais correspondendo a determinadas conjunturas e flutuações demográficas,
tanto do índice do tráfico atlântico, como da taxa de natalidade e mortalidade, além da
falta de informações nas fontes que limitam o resultado da análise 24.
Entre as mortalhas de cor, o maior índice de uso ocorreu entre os
escravizados, com 49,7%; seguidos pelos forros, com 33,9%; sendo que a mortalha de
cor mais utilizada pelos cativos foi a branca, com 28,9%, seguida da preta com 18,8%.
Entre os forros a mortalha de cor mais utilizada foi à preta, com 18,2%; seguida da
branca, com 15,2%. Já entre os livres, as mortalhas de cor tiveram uma baixa procura:
3,5% dos indivíduos deste segmento utilizou a mortalha branca, enquanto 2,9% utilizou
a mortalha preta.
A alta procura entre os livres pelos hábitos de santos evidencia que estes
hábitos eram usados entre os segmentos mais privilegiados, pois eram os mais caros. O
que nos leva a pensar que essa aproximação dos forros com mundo dos livres em
relação ao uso de mortalhas de santos foi possivelmente em busca de distinção social e
tentativa de distanciamento do mundo do cativeiro 25. João Reis afirma que, entre as
mortalhas de santos, as franciscanas tinham grande difusão em Salvador, favorecidas
pelo próspero comércio mantido pelos frades franciscanos e apontou que tal comércio
também ocorria no Rio de janeiro. Assim, no Brasil, os franciscanos da Bahia não
estavam sozinhos nesse próspero comércio de confecção e venda de mortalhas. Outros
conventos na Bahia vendiam seus hábitos como os do Carmo e de São Bento. No Rio de

24
Idem., pp. 202-5.
25
BRAVO, op. cit., p. 120.
291

Janeiro, esse comércio era mantido pelos religiosos do convento de Santo Antônio 26. De
acordo com William de Souza Martins “os frades mendicantes fluminenses tinha
desenvolvido um prospero comércio de mortalhas, semelhante ao que era realizado
pelos religiosos franciscanos da Bahia. Os preços variavam entre quatro mil e dezesseis
mil reis, sendo a primeira quantia correspondente ao valor unitário dos hábitos
comprados pela ordem terceira franciscana para amortalhar os irmãos pobres e constava
nas despesas do Convento. Já os hábitos de dezesseis mil reis eram adquiridos pelos
diversos membros da associação carmelita juntos aos religiosos respectivos, cujo preço
mais elevado se justificava pela capa que acompanhava tais vestimentas” 27
Constatamos em nossa amostragem que uma parcela dos escravizados,
embora em número menor que os livres e forros, fez uso dos hábitos de santos e, entre
estes, o mais utilizado foi o hábito de Nossa Senhora da Conceição, seguido do hábito
de Santo Antônio. O hábito de São Francisco foi menos utilizado, juntamente com
outros santos, como São Domingos, São Bento, Nossa Senhora do Carmo, Santa
Efigênia entre outros. O que demonstra que o preço do hábito não impediu que uma
parcela dos escravizados tivesse acesso às mortalhas de santos, pois sabemos que havia
outras formas de acesso a essas mortalhas mais caras.
Muitos cativos na urbe carioca realizavam o trabalho de escravo ao ganho,
que lhes proporcionava uma determinada autonomia em relação à vigilância imposta
pelo mundo do cativeiro. De acordo com Leila Mezan Algranti, diferente do mundo
rural, na cidade o controle do senhor sobre o escravo era menor, o que possibilitava ao
cativo uma “mobilidade vertical e horizontal” em termos de “estratificação social”. Por
conseguinte, lhe permitia uma maior “mobilidade física e um maior contato com outros
grupos sociais” 28, além de lhe possibilitar maiores chances de acumular um pecúlio que
poderia servir para compra de sua mortalha ou poderia filiar-se a uma irmandade para
ter acesso a um funeral condigno. O que em muitos casos poderia dar a eles o acesso às
mortalhas de santos, entre elas a de Santo Antônio e São Francisco, embora em menor
quantidade. Afinal, era esse o principal motivo que levou muitos cativos a se filiarem às
irmandades: terem um funeral condigno e poder fazer uma boa passagem para o além-
26
REIS, op. cit., 1991, p. 118, 231-4; DEBRET, op. cit., s/d, p. 566.
27
MARTINS, William de Sousa. Membros do corpo místico: ordens terceiras no Rio de Janeiro (c. 1700
– 1822). São Paulo: editora Universidade de São Paulo, 2009, p. 398.
28
ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de janeiro.
Petrópolis: Vozes, 1988, pp. 65-6. Sobre o trabalho do escravo ao ganho no Rio de janeiro veja também.
SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Negro Na Rua. A Nova Face da Escravidão. São Paulo, Hucitec,
1988. SOARES, Luiz Carlos. O “povo de Cam” na capital do Brasil: a escravidão urbana no Rio de
Janeiro do século XIX, Rio de Janeiro: FAPERJ/7 LETRAS, 2007.
292

túmulo. Alguns eram membros de duas ou três irmandades ou mais. Portanto, mais que
a grande difusão do comércio e o alto preço das mortalhas de santos, foi a devoção o
fator determinante para o seu uso, principalmente entre os escravizados.
Os hábitos de santos mais procurados entre livres e forros foram o de Santo
Antônio e o de São Francisco, que inclusive podem ser somados (35,9%), pois se refere
ao mesmo tipo de hábito, neste caso o de São Francisco, pois em determinado momento
de sua vida Santo Antônio tornou-se franciscano. De acordo com João Reis, a razão pela
preferência desse tipo de mortalha segundo os costumes funerários brasileiros está
ligada à herança ibérica, que remonta a Idade Média, pois era costume das pessoas em
Portugal pedirem em testamento que seus corpos fossem amortalhados com hábito de
São Francisco. De acordo com a iconografia franciscana, esse santo teria um lugar de
destaque na escatologia cristã, pois é retratado nas imagens resgatando as almas do
purgatório, que visitava periodicamente com essa finalidade. Uma pintura no teto da
catacumba no convento São Francisco na cidade da Bahia e um quadro do século XVIII,
na parede do consistório da igreja do mesmo convento retratam o santo resgatando
almas no purgatório e as almas tentando se salvar agarrando-se no cordão do hábito do
santo, pois de acordo com a tradição “sertaneja” o cordão “afastava o inimigo e serve
aos anjos para puxarem o finado” 29.
São Francisco era filho de um rico comerciante. Deixou uma vida luxuosa,
rejeitando qualquer tipo de acumulo material e confortos sensuais, em troca de uma vida
na pobreza. Sua mortalha representava a simplicidade cristã, atitude que ajudava a
conquistar a morte serenamente 30. Estando já moribundo ele compôs o Cântico das
Criaturas, também conhecido como Cântico ao Irmão Sol. Esse cântico é um hino de
ação de graças e louvor ao Criador, agradecendo-o por todas as criações. Nos versos 28
e 29 ele acolhe a irmã morte: “Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa, a morte
corporal, da qual nenhum homem vivente pode escapar”. Ai daqueles que morrerem em
pecado mortal: bem-aventurados os que ela encontrar na tua santíssima vontade, porque
a morte segunda não lhes fará mal!”. Enquanto advertia àqueles que morressem em
pecado mortal, ele confortava aqueles que morressem na presença de Deus. Nestes
versos, o santo dava boas-vindas a própria morte. Não se trata aqui de uma elevação
espiritual ou de uma exortação sobre o tema da morte em geral. Estes versos exprimem
um encontro existencial do santo com sua própria morte. Memorável e definitivo

29
REIS, op. cit., 1991, p. 117.
30
Idem., 1991, p. 117.
293

encontro totalmente interiorizado na santa vontade divina, onde os mortos descansarão


em paz 31.

31
SOUZA, Vilma K. Barreto de. São Francisco de Assis, uma tradição e a análise temática do “Cântico
Delle Creature”. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
(FFLCH). Língua e Literatura. V. 15. 1986, pp. 199-213; O Cântico das criaturas: da origem à sua
originalidade. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/37870/37870_5.PDF. Acesso em 30
de dezembro de 2020. Cf. AGUIAR, Veronica Aparecida Silveira. Considerações sobre o Cântico do
Irmão Sol: a língua vernácula na poesia franciscana. Universidade Federal de Rondônia. Centro
Interdisciplinar de Estudo e Pesquisa do Imaginário Social. Revista Labirinto, ano XVIII. Volume 28
(Jan-Jun), 2018, pp. 324-341; O Cântico das Criaturas. São Francisco de Assis. Site Franciscanos.
Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil – OFM disponível em:
https://franciscanos.org.br/carisma/simbolos/o-cantico-das-criaturas#gsc.tab=0. Acesso em 30 de
dezembro de 2020.
294

QUADRO 3 – ESCOLHA DE MORTALHAS DE ACORDO COM OS GRUPOS DE PROCEDÊNCIA


Mortalha

S.

N.

H. S. J.

S.
H. N. S.

H. N. S.

H. N. S.

M.
H. S. ANT
H. S. FRA

H. S. F. P.

DOMING

MERCES

BRANCA
H.S.EFIG
S.DORES

LENÇOL

S/REFER
OUTRAS

OUTRAS
Grupo de

SANTOS
CARMO

TOTAL
OTROS
BENTO

CORES
PRETA
CORO
CONC
procedência

EVAN
H.

H.

H.

H.
Angola 1 1 16 3 1 1 - - - - - - 43 28 3 36 - 27 160
Ambaca 2 2 4
Benguela 4 - 23 7 1 7 - - 1 1 - - 116 85 1 6 50 27 329
Baca 1 1 2
Cabo Verde - - - - - - - - - - - - 1 - - - - 4 5
Cabinda 2 - 18 4 - 2 - - - - 1 - 63 52 - - 17 3 162
Cabundá - - - - - - - - - - - - 1 - - - - - 1
Calabar - - 6 - - 2 - - - - - - 12 8 - - 3 - 31
Camundongo - - - - - - - - - - - - 8 1 - - - - 9
Cassange 1 5 1 2 14 14 6 2 45
Cobu - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 1
Congo 2 16 1 1 2 1 73 44 27 7 174
Courana - - - - - - - - - - - - 1 - - - - - 1
De nação 13 1 64 8 14 - - - - - 1 220 128 - - 31 16 496
Ganguela - - 2 - 1 - - - - - - - 14 1 1 - 5 7 31
Guiné - - 1 - - - - - - - - - 4 - - 1 7 20 33
Inhambane - - 1 - - - - - - - - - 3 5 - - 1 - 10
Loango - - - - - - - - - - - - - - - - - 2 2
Luanda - - - - - - - - - - - - - 1 - - - - 1
Mapinda - - 1 - - - - - - - - - - - - - - - 1
Marimba - - 1 - - - - - - - - - - 1 - - - - 2
Mina 15 64 4 1 1 - - - 1 - 1 66 58 - 5 28 35 279
Moçambique 1 1 3 4 - 2 - - - - - - 51 31 2 - 10 3 108
295

Moange - - - - - - - - - - - - - 2 - - - - 2
Mocoso - - - - - - - - - - - - - 1 - - - - - 1
Mofumbe 1 - 1 - - - - - - - - - 1 11 2 - - 4 - 20
Monjolo 1 - 4 - - 2 - - - - - - - 21 20 - - 3 3 54
Mugungo - - 1 - - - - - - - - - - - - - - - - 1
Nagô - - - - - - - - - - - - - 1 1 - - - - 2
Quilimane - - 2 - - - - - - - - - - 2 - 1 - 1 - 6
Quissama - - 6 - - - - - - - - - 1 9 4 1 - 2 - 23
Rebolo - 1 11 - 1 4 - - - - - - 2 40 36 - 3 14 5 117
São Tomé - - - - - - - - - - - - - 1 1 - - 1 - 3
Songo 1 - - - - - - - - - - - - 4 1 - - - - 6
Crioulos 46 14 217 476 24 129 63 33 29 21 5 266 25 318 271 76 16 92 124 2245
TOTAL 88 18 463 508 30 168 63 34 30 21 7 267 31 1101 795 85 68 304 286 4367

FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
296

TABELA 21 - MORTALHAS X CONDIÇÃO SOCIAL


CONDIÇÃO SOCIAL LIVRES FORROS ESCRAVOS TOTAL
N % N % N % N %
MORTALHAS
Háb. de S. Francisco 827 12,8 146 6,0 38 1,0 1011 7,9
Háb. de S. Francisco de Paula 180 2,8 21 0,9 14 0,4 215 1,7
Háb. de S. Antônio 1497 23,1 579 24,0 205 5,2 2281 17,7
Háb. de N. Sra. Do Carmo 365 5,6 15 0,6 19 0,5 399 3,1
Háb. de N. Sra. Da Conceição 172 2,7 136 5,7 326 8,2 634 4,9
Háb. de São Bento 63 1,0 15 0,6 4 0,1 82 0,6
Háb. de S. Domingos 9 0,1 80 3,3 79 2,0 168 1,3
Háb. de N. Sra. das Dores 25 0,4 21 0,9 43 1,0 89 0,7
Hábito de S. Teresa 24 0,4 1 0,0 4 0,1 29 0,2
Háb. de N. Sra. da Mercês 7 0,1 31 1,3 6 0,2 44 0,3
Háb. de S. João Evangelista 8 0,1 12 0,5 18 0,5 38 0,3
Háb. de Sta. Efigênia - - 8 0,3 1 0,0 9 0,0
Háb. de menino do coro 12 0,2 38 1,6 189 4,7 239 1,9
Háb. de outros santos 52 0,8 4 0,2 15 0,4 71 0,6
Háb. da O. S. F. Penitência 52 0,8 4 0,2 4 0,1 60 0,5
Háb.da O. T. de N. Sra. do Carmo 20 0,3 - - - - 20 0,2
Háb. da O. Terc. de S. Antônio 6 0,0 - - - - 6 0,0
Háb. da O. S. Francisco de Paula 4 0,0 - - - 4 0,0
Háb. da O. T. da Conc. E B. Morte 2 0,0 5 2 0,0 9 0,0
Háb. da O. T. de S. Domingos - - 5 1 0,0 6 0,0
Vestes sacerdotais 92 1,4 - - - - 92 0,7
Vestes militares 20 0,3 - - - - 20 0,2
Branca 231 3,5 366 15,2 1149 28,9 1746 13,5
Preta 189 2,9 439 18,2 747 18,8 1375 10,7
Lençol 279 4,3 185 7,7 425 10,7 889 6,9
297

Hábito de cavaleiro 48 0,7 - - - - 48 0,4


Outras cores 74 1,1 12 0,5 75 2,0 161 1,2
Outros 24 0,4 22 0,9 49 1,2 95 0,7
Sem referência 2230 34,2 275 11,4 556 14,0 3061 23,8
TOTAL 6512 100 2420 100 3969 100 12901 100

FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
298

Para a Bahia no século XIX, João Reis a princípio atribuiu o maior uso de
mortalhas brancas pelos escravizados devido ao fato de essas mortalhas serem mais
baratas. No entanto, segundo Rodrigues, havia mortalhas brancas que tinham tecido de
alto valor, como as de cetim, veludo e tafetá 32. Não estou querendo com isso afirmar
que boa parte dos escravizados pudessem ter usado essas mortalhas brancas mais caras,
pois a maioria deve ter usado com certeza os tecidos mais baratos, como algodão. Mas
não podemos esquecer que uma parcela dos escravizados fez uso de mortalhas de santos
que eram as mais caras. Um número significativo de escravizados utilizou as mortalhas
pretas que eram mais caras que as brancas. Como vimos anteriormente muitos cativos
realizavam o trabalho ao ganho e tinham chance de acumular um pecúlio. Neste sentido,
a questão socioeconômica parece não ter sido um fator determinante para utilização de
mortalhas brancas pelos cativos na cidade do Rio de janeiro 33. Outra questão constatada
pelo autor foi que, quanto maior era a taxa de Africanidade, maior era o uso do branco.
Considerando todos os africanos juntos, escravizados e libertos, o uso do branco ainda
permanecia alto. Assim, o autor concluiu que proporções tão altas poderiam significar
também adesão a valores culturais preservados através da herança africana 34. Para o Rio
de Janeiro no século XIX, Claudia Rodrigues observou que o uso das mortalhas brancas
pelos africanos e seus descendentes livres, foros e escravizados, ia além da aproximação
com o universo da escravidão, significava a manutenção de uma identidade africana, no
sentido que seu uso reiterava práticas ancestrais 35.

Segundo João Reis, o branco era tradicionalmente a cor funerária do


candomblé. Os africanos muçulmanos, chamados malês na Bahia, eram sepultados com
a mortalha branca. Entre os edos do Benim, o branco simbolizava pureza ritual, paz,
“ofure” na língua local. Entre os iorubas, estava associado ao orixá Obatalá, senhor da
criação e zelador da vida, cuja cor símbolo é o branco 36. De acordo com Louis-Vincent
Thomas, em África o branco era o símbolo dos mortos e da morte. Por isso servia para
evitar a morte e, por extensão os infortúnios, simbolizando a morte da morte. Estava

32
RODRIGUES op. cit., 1996, p. 206.
33
Sobre essa questão do uso das mortalhas brancas pelos cativos veja RODRIGUES, op. cit., 1996, p.
206-7.
34
REIS, op. cit., 1991, p. 126.
35
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 205.
36
REIS, op. cit., 1991, p. 118.
299

presente em vários rituais africanos. 37 A água de argila branca, por exemplo, era
utilizada para banhar os recém-nascidos, no tratamento de doenças, contra os
infortúnios, especialmente em cerimonias de súplica durante as quais borrifava-se os
campos já semeados. Essa solução de água e argila era preparada por uma sociedade de
iniciados, o que evidencia o seu alto poder curativo. Em muitos ritos de passagem o
branco era a cor da primeira fase, a da luta contra a morte, mas também representava
renascimento. Entre os Bapende, no Zaire, sacerdotes iniciadores do rito mugongo eram
pintados de branco com o “pemba” 38. As viúvas ndiki, em Camarões do Sul, pintavam
as pernas de branco; os fali, em Camarões do Norte, envolviam o cadáver, exceto os pés
e as mãos com fitas de algodão branco; no norte do Togo aqueles que estão de luto
traçam uma linha branca na testa. Todos esses procedimentos com a argila branca são
feitos para marcar o morto e delimitar sua condição de morte, sendo assim, o contágio
da morte é duplamente contido. Por essa razão, a mensagem de renascimento presente
na argila branca tem sentido ambivalente, pois significa ao mesmo tempo morte e vida.
Em outras palavras, isso ajudava e dava apoio ao morto que precisava partir. Essa
situação permitiria aos poderes do além integrá-lo em seu lugar de direito, mas também
definia sua localização que, neste mundo, o situava em relação aos vivos 39.
O branco era também cor dos espíritos dos antepassados reencarnados.
Entre alguns grupos de procedência bantos, o branco era a cor dos mortos. Louis-
Vincent Thomas observou que os primeiros europeus que chegaram à região do Zaire
foram honrados em nome de heróis tribais que haviam recentemente desaparecido. Um
cadáver que caía na água voltava embranquecido, por esse motivo o branco europeu foi
frequentemente assimilado com um espirito aquático. Entre os benguelas do Zaire, seu
deus ibanza vivia na água. Por estes motivos é compreensível que no imaginário local se
associasse os brancos (europeus) que vinham da água (oceano) com certos atributos da
divindade. Assim sendo, os europeus eram considerados como espíritos dos
antepassados reencarnados. Por diferentes grupos africanos, o que ajuda a explicar a

37
Parte do que analiso a seguir tem como base RODRIGUES, Claudia. Op. cit., 1996. p. 205-206.
38
Bastão grosso, cônico, de giz colorido misturado com cola, com que se riscam os pontos ('conjunto de
sinais mágicos') que identificam cada entidade, segundo um código de cores. Em angola era usado pelo
curandeiro para riscar ou marcar o que pretende proteger dos maus espíritos. Utilizado nas religiões de
matriz africana. Cf. PINTO Altair. (Org.). Dicionário da Umbanda. Rio de Janeiro: Editora Eco, s/d. p.
142-3.
39
THOMAS, Louis-Vincent. La Mort Africanine: ideologie funéraire em Afrique noire. Paris: Payot.
Boulevard Saint-Germain, 1982. P.215; THOMAS, Louis-Vincent. Antropologia de la muerte. Mexico:
Fondo de cultura Economica, 1983, p.523.
300

associação que estes grupos faziam entre a América, terra dos brancos com a terra dos
mortos. Portanto atravessar o oceano, a Kalunga, era uma travessia para a morte 40.
Na cosmogonia bacongo, a cor branca representava a morte, assim como os
europeus eram tidos por mortos, comedores de negros, ou seja, de vivos 41. De acordo
com James Sweet, os portugueses eram vistos pelos povos da África Central como
feiticeiros comedores de negros, ou seja, para os centro-africanos, a travessia da
Kalunga (o Oceano Atlântico) a bordo dos navios negreiros significava uma morte
prematura na mão dos feiticeiros que se alimentavam de seus corpos 42. Aspecto esse
que também foi comentado por Marina de Mello e Souza, quando afirmou que o
“mundo do além é habitado por ancestrais e espíritos diversos, que afetam a vida das
pessoas desse mundo, diretamente ou por intermédio de algum líder religioso” 43. Ainda
sobre estas representações simbólicas sobre a associação entre a morte e a cor branca, é
importante mencionar a relação que existe entre estes componentes e a água do
mar/oceano. Entre os africanos de matriz banto, o mar que banhava a costa ocidental da
África era visto como um local de travessia para o mundo do além, ou, como na língua
banto, a “kalunga”, porque, para os kimbundos e umbundos, o sentido era basicamente
o mesmo: a linha divisória ou superfície que separava o mundo dos vivos daquele dos
mortos; portanto atravessar a Kalunga – simbolicamente representada pelas aguas do rio
ou do mar, ou mais genericamente por qualquer tipo de água ou por uma superfície
refletiva, como a de um espelho – significava “morrer”, se a pessoa vinha da vida, ou
renascer se o movimento fosse no outro sentido 44. Ela, a Kalunga, era como um portal
de passagem para o mundo espiritual habitado pelos mortos. Portanto, cria-se que se o
africano fosse transladado para a terra dos mortos, poderia retornar à África, desde que

40
THOMAS, Louis-Vincent. Antropologia de la muerte. Mexico: Fondo de cultura Economica, 1983,
p.524; RODRIGUES, Claudia. Os lugares dos mortos na cidade dos vivos... 1996, p. 205.
41
Segundo Blackburns, “em algumas culturas africanas os brancos eram considerados espíritos dos
mortos, que precisavam dos vivos para seus próprios fins obscuros e apavorantes”. BLACKBURNS,
Robin. A construção do escravismo no Novo Mundo, 1492-1800. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 476. É
o que observa Mary Karash quando traz um relato de um exemplo de “crença do canibalismo, presenciada
pelo francês Dabadie, um escravo novo gritava aterrorizado e escondendo-se embaixo da cama em um
hotel. Espantado com os gritos o francês indaga aos presentes o motivo do acontecido e, de pronto,
recebeu as explicações de um garçom que lhe afirmara que era comum os africanos recém-chegados a
ideia de que seriam literalmente devorados pelos brancos”; KARASCH, Mary. A vida dos escravos no
Rio de Janeiro. 2000, p. 78.
42
SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro- português (1441-
1770). Lisboa: Edições 70, 2007, p. 192.
43
SOUZA, Marina de Mello. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação do Rei do
Congo. Belo Horizonte: editora UFMG, 2002, p. 63.
44
SLENES, Robert W. “Malungu, Ngoma Vem!” África coberta e descoberta no Brasil. Revista USP. 12
– dez/jan/fev. 1991-1992, pp. 53,54.
301

mantivesse um coração puro. Este é o sentido da canção cantada por escravos, na


esperança de que um dia retornassem à terra natal sobrevoando a Kalunga 45.
Com base nos dados da tabela 22, de acordo com o sexo e origem dos
mortos percebemos que, entre os crioulos, as mulheres preferiram mais as mortalhas de
santos, com 58,4% contra 32,1% entre os homens. Estes, por sua vez, utilizaram mais as
mortalhas de cor, com 30,2% contra 29,4% entre as mulheres. Entre os africanos, as
mulheres também usaram mais mortalhas de santos, com 29,9%, enquanto os homens
utilizaram 14,2% dessas mortalhas. Da mesma forma que ocorreu entre os crioulos,
entre os africanos as mortalhas de cor foram mais utilizadas pelos homens, com 65,4%
contra 59,8% entre as mulheres. Mas não podemos deixar de notar que o uso do branco
entre as mulheres, mesmo sendo em quantidade menor que entre os homens não deixa
de ser uma quantidade bastante expressiva. Esses dados demonstram que enquanto entre
os crioulos prevaleceu o uso de mortalhas de santos entre os africanos prevaleceu o uso
das mortalhas de cor.
Analisando detalhadamente os dados da tabela percebemos que entre as
mulheres crioulas a mortalha de santo mais utilizada foi a de Nossa Senhora da
Conceição, com 31,8% seguida da mortalha de Santo Antônio, com 11,9% e em terceiro
lugar ficou a mortalha de Nossa Senhora das Dores, com 4,5%. Entre os homens a
mortalha de santo mais utilizada foi a de São Domingos, com 10,6%, em segundo lugar
a de Santo Antônio, com 6,4% e em terceiro Nossa Senhora da Conceição, com 5,4%.
Entre os homens crioulos a mortalha de cor mais utilizada foi à branca, com 14,9%,
seguida da preta com 10,9%. Entre as mulheres desse segmento, o uso da mortalha
branca representou 13,4 e o da preta 13,1%, confirmando uma maior preferência do
preto também entre as mulheres crioulas. Entre os africanos, a mortalha de santo mais
utilizada foi a de Santo Antônio, com 12,3% entre as mulheres e 10,7% entre os
homens, enquanto as demais mortalhas de santo foram pouco utilizadas pelos mortos
desse segmento. Entre as mortalhas de cor prevalece o branco entre ambos os sexos,
sendo que entre os homens seu uso foi de 41,7% enquanto entre as mulheres foi de
32,5%. Já a preta foi mais utilizada entre as mulheres, 26,6%%, enquanto entre os

45
De acordo com Ki-Zerbo: “O culto dos defuntos, tão característico da religião dos africanos, para quem
os mortos não vivem, mas existem mais fortes do que neste mundo, tomou neste contexto um significado
comovente até sublime: acreditava-se que os mortos agora libertados do látego do patrão-tirano, iam fazer
em sentido inverso a infernal travessia do Atlântico. Voando sem entraves para o continente bem-amado,
iam juntar-se à assembleia venerada dos antepassados, lá longe, do outro lado da ‘grande água’, no ‘pai
da Guiné’. KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra 2ª ed. Trad. Américo de Carvalho. Lisboa:
publicações Europa-América. 1972: p. 287.
302

homens seu índice de uso foi de 23,4%. Tal situação sugere uma aproximação das
mulheres africanas com as crioulas na preferência pelo preto, pois entre as africanas
possivelmente já estivesse difundida a tradição colonial de o preto ser a cor funerária
para as mulheres.
303

TABELA 22 – MORTALHAS X SEXO DE ACORDO COM A ORIGEM


ORIGEM/SEXO CRIOULO AFRICANOS TOTAL
FEMININO MASCULINO FEMININO MASCULINO
MORTALHAS N % N % N % N % N %
Háb. de S. Francisco 37 2,8 9 0,9 33 3,1 11 1,0 90 2,0
Háb. de S. Franc. Paula 4 0,3 10 1,1 1 0,0 2 0,2 17 0,4
Háb. de S. Antônio 158 11,9 58 6,4 130 12,3 113 10,7 459 10,5
háb. de N. Sra. Do Carmo 14 1,0 10 1,1 4 0,4 - - 28 0,6
Háb. de N. Sra. Da Conceição 424 31,8 49 5,4 28 2,6 6 0,6 507 11,6
Háb. de São Bento 4 0,3 1 0,1 2 0,1 - - 7 0,2
Háb. de S. Domingos 32 2,4 96 10,6 21 2,0 18 1,7 167 3,8
Háb. de N. Sra. das Dores 60 4,5 3 0,3 - - - - 63 1,4
Háb. de N. Sra. das Mercês 23 1,7 10 1,1 1 0,0 - - 34 0,8
Háb. de S. João Evangelista 2 0,1 27 2,9 - - 1 0,0 30 0,7
Háb. de Sta. Efigênia 8 0,6 13 1,4 1 0,0 - - 22 0,5
Háb. de menino do coro 19 1,4 247 27,3 - - 1 0,0 267 6,1
Háb. de outros santos 14 1,0 7 0,8 4 0,4 1 0,0 26 0,6
Branca 178 13,4 135 14,9 345 32,5 443 41,7 1101 25,2
Preta 175 13,1 99 10,9 283 26,6 248 23,4 805 18,5
Lençol 50 3,8 43 4,7 109 10,3 128 12,0 330 7,6
Outras cores 38 2,9 40 4,4 7 0,7 3 0,3 88 2,0
Outras 9 0,7 8 0,9 9 0,9 16 1,5 42 1,0
Sem referência 84 6,3 40 4,8 86 8,1 74 6,9 284 6,5
TOTAL 1333 100,0 905 100,0 1064 100,0 1065 100,0 4367 100,0

FONTE: Banco de dados de óbitos e testamentos da Freguesia da Sé, 1700-1850, feito a partir do Livro de óbitos e testamentos da Freguesia da
Sé (AP0400: 1701 – 1710; AP0406: 1737 – 1740; AP0155: 1746 – 1758; AP0156: 1776 – 1784) e Livro de óbitos e testamentos da Freguesia do
304

Santíssimo Sacramento da Antiga Sé: (AP0157: 1799 – 1797; AP0158: 1797 – 1811; AP0159: 1812 – 1819; AP0160: 1819 – 1824; AP0161:
1824 – 1828; AP0161: 1824 – 1828; AP0162: 1828 – 1830; AP0163: 1830 – 1833; AP0164: 1833 – 1837; AP0165: 1837 – 1840; AP0166: 1840
– 1843; AP0167: 1843 - 1861).
305

A partir da análise da tabela 23, de acordo com o sexo e condição social do


morto é possível perceber que entre os livres o maior índice de uso das mortalhas de
santos ocorreu entre as mulheres, com um índice de 54%, enquanto entre os homens o
índice foi de 45%. Entre os forros, a procura por mortalhas de santos também foi maior
entre as mulheres, com 48%, enquanto entre os homens o índice foi de 36%. O índice de
uso de mortalhas de cor foi pequeno entre os livres, conforme já vimos na tabela 22:
8,2% para as mulheres e 4,5% para os homens. Já entre os forros, o uso de mortalhas de
cor foi bastante significativo. Neste caso, o número de homens que fez uso dessas
mortalhas foi superior, com 37%, contra 31,6% de mulheres. Ao analisarmos o uso de
mortalhas de forma individual entre esses dois segmentos temos: para os livres, tanto
entre as mulheres quanto entre os homens, prevaleceu o uso do hábito de Santo
Antônio, com 24,1% para as mulheres e 22,3% para os homens. Em segundo lugar na
preferência de ambos ficou o hábito de São Francisco, com 13,1% entre as mulheres e
12,3% entre os homens. Em terceiro e quarto lugares na preferência das mulheres
ficaram os hábitos de Nossa Senhora do Carmo e Nossa Senhora da Conceição, com 6%
e 4% respectivamente. Entre os homens em terceiro lugar ficou o hábito de Nossa
Senhora do Carmo, com 6%. Percebe-se ai uma aproximação na escolha de mortalhas
entre livres de ambos os sexos, divergindo apenas no habito de Nossa Senhora da
Conceição que era o preferido das mulheres. Entre as mulheres e homens forros a
primeira opção também foi o habito de Santo Antônio, com o índice de 25% entre as
mulheres e 22% entre os homens. A segunda opção entre as mulheres forras foi o hábito
de Nossa Senhora da Conceição, com 8,3%, enquanto que entre os homens foi o de São
Francisco com 5,3%. O índice de uso de mortalhas de cor entre mulheres e homens
forros, como vimos, foi bastante expressivo, confirmando o branco como primeira
opção entre ambos: 19% entre os homens e 18,3% entre as mulheres. Em seguida veio à
mortalha preta, com 18% entre os homens e 13,3% entre as mulheres. Observamos que
uma parcela de forros de ambos os sexos fez uso de lençol como mortalha que estava
entre as mais baratas sendo usadas em maior quantidade pelos escravizados,
confirmando que embora os forros estivessem mais próximos do mundo dos livres e
buscassem distinção social, afastando-se do mundo do cativeiro, mas nem todos
conseguiam. Uma parcela de forros ainda estava próxima ao mundo da escravidão,
talvez por ter conquistado a alforria recentemente.
306

TABELA – 23 MORTALHAS X CONDIÇÃO SOCIALO POR SEXO


COND. SOCIAL SEXO LIVRES FORROS ESCRAVOS TOTAL
MORTALHAS FEMININO MASCULINO FEMININO MASCULINO FEMININO MASCULINO

N % N % N % N % N % N % N %
Háb. de S. Francisco 430 13,1 399 12,3 102 6,5 44 5,3 27 1,3 15 0,8 1017 7,9
Háb. de S. Francisco de Paula 84 2,6 95 3,0 13 0,8 8 0,9 5 0,3 9 0,5 214 1,7
Háb. de S. Antônio 789 24,1 709 22,0 394 25,0 185 22,0 108 5,4 97 4,9 2282 17,6
Háb. de N. Sra. Do Carmo 198 6,0 167 5,2 13 0,8 2 0,2 12 0,6 7 0,4 399 3,1
Háb. de N. Sra. Da Conceição 143 4,4 29 0,9 131 8,3 8 0,9 286 14,3 39 2,0 639 4,9
Háb. de São Bento 37 1,1 28 0,8 10 0,6 5 0,6 4 0,2 - - 84 0,7
Háb. de S. Domingos 3 0,0 6 0,2 45 2,8 35 4 18 0,9 61 3,1 168 1,3
Háb. de N. Sra. das Dores 25 0,8 - - 20 1,3 1 0,1 39 1,9 4 0,2 89 0,7
Hábito de S. Teresa 22 0,7 2 0,0 - - - - 4 0,2 - - 28 0,2
Háb. de N. Sra. das Mercês 6 0,2 1 0,0 24 1,5 7 0,8 2 0,1 4 0,2 44 0,3
Háb. de S. João Evangelista - - 8 0,2 - - 12 1,4 3 0,3 15 0,8 38 0,3
Háb. de Sta. Efigênia - - - - 3 0,1 5 0,6 - - 1 0,0 9 0,0
Háb. de menino do coro - - 12 0,4 2 0,1 36 4,3 11 0,5 178 8,9 239 1,8
Háb. de outros santos 32 1,0 30 0,9 5 0,3 - - 9 0,4 9 0,5 85 0,7
Háb. da O. S. F. Penitência 18 0,5 34 1,0 - - 3 0,4 - - - - 55 0,4
Háb.da O. T. de N. Sra. do Carmo 6 0,2 14 0,4 - - - - - - - - 20 0,2
Háb. da O. Terc. de S. Antônio 1 0,0 4 0,1 - - - - - - - - 5 0,0
Háb. da O. S. Francisco de Paula 3 0,0 1 0,0 - - - - - - - - 4 0,0
Háb. da O. T. da Conc. E B. Morte - - - - 2 0,1 - - - - - - 2 0,0
Háb. da O. T. de S. Domingos - - - - 4 0,3 2 0,2 - - 1 0,0 7 0,0
Vestes sacerdotais - - 93 3,0 - - - - - - - - 93 0,8
Vestes militares - - 20 0,6 - - - - - - - - 20 0,2
307

Branca 131 4,0 98 3,0 208 13,3 160 19,0 536 26,8 634 31,9 1767 13,7
Preta 137 4,2 50 1,5 287 18,3 151 18,0 410 20,5 337 16,9 1372 10,6
Lençol 140 4,3 146 4,6 108 6,8 78 9,4 181 9,0 250 12,5 903 7,0
Hábito de cavaleiro - - 51 1,6 - - - - - - - - 78 0,6
Outras cores 35 1,1 11 0,3 8 0,5 2 0,2 45 2,2 34 1,7 101 0,8
Outras 16 0,5 35 1,0 10 0,6 15 1,8 14 0,7 26 1,3 117 0,9
Sem referência 1021 31,2 1200 37,0 188 12,0 84 9,9 288 14,4 268 13,4 3049 23,6
TOTAL 3277 100,0 3243 100,0 1577 100,0 843 100,0 2002 100,0 1988 100,0 12930 100,0

FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
308

Entre os escravizados de ambos os sexo, confirma-se a superioridade no uso


das mortalhas de cor, 48,8% entre os homens e 47,3% entre as mulheres. Entre estes,
mante-se o predomínio do uso do branco, com 31,9% entre os homens e 26,8% entre as
mulheres. Em segundo lugar veio à mortalha preta, com 20,5% entre as mulheres e
16,9% entre os homens. Confirmando uma maior preferência das mulheres pela cor
preta, assim como, dos homens pela cor branca. Uma parcela significativa de cativos de
ambos os sexos fez uso do lençol como mortalha, pelos motivos já mencionados
anteriormente, por terem um custo mais baixo, essas mortalhas eram mais acessíveis a
certo número de cativos que não possuíssem recursos suficientes para adquirir às
mortalhas caras. Entre as mortalhas de santos, confirma-se a preferência das mulheres
escravizadas pelo hábito de Nossa Senhora da Conceição, com 14,3%, seguido pelo
hábito de Santo Antônio com 5,4%. Entre os homens a preferência foi pelo o hábito de
Santo Antônio seguido pelo hábito de São domingos, com 4,9% e 3,1%
respectivamente. Observa-se que o uso do hábito de Nossa da Conceição entre as
mulheres cativas foi superior ao uso pelas mulheres livres e forras, assim como, o hábito
de menino de coro teve uma considerável procura entre os escravizados de sexo
masculino, sendo seu uso superior ao uso entre os livres e forros, pelos motivos já
mencionados de uma maior ausência de referência entre livres e forros.
Nesse sentido, construímos as tabelas 24 e 25 com o índice de uso de
mortalhas entre os inocentes, de acordo com a origem sexo e condição social, para
percebemos melhor tal situação. Com base na amostragem da tabela 24, confirma-se a
grande difusão das mortalhas de Nossa Senhora da Conceição entre as meninas crioulas,
com 58,6%, em segundo lugar aparece à mortalha de Nossa Senhora Das Dores, com
8,4. Entre as mortalhas de cor, a branca foi primeira opção entre as meninas, com
12,4%, o preto foi pouco utilizado entre elas, com 2,5%. Entre os meninos crioulos a
maior preferência no uso de mortalhas foi pelo hábito de menino do coro, com 40,5%,
em segundo lugar ficou a mortalha de Santo Antônio, com 14,1% e terceiro lugar o
hábito de Nossa Senhora da Conceição, com 7,1%. Entre as mortalhas de cor, a branca
foi a mais usada, com 13,4%, em seguida veio a da preta com, 5,1%.
309

TABELA 24 – MORTALHAS PELOS INOCENTES SEGUNDO ORIGEM E SEXO


ORIGEM/SEXO CRIOULO AFRICANOS TOTAL
FEMININO MASCULINO FEMININO MASCULINO
MORTALHAS N % N % N % N % N %
Háb. de S. Franc. Paula - - 7 1,3 - - 1 6,7 8 0,7
Háb. de S. Antônio 1 0,1 1 0,1 - - - - 2 0,2
háb. de N. Sra. Do Carmo 5 0,8 5 0,9 - - - - 10 0,8
Háb. de N. Sra. Da Conceição 351 58,6 40 7,1 5 50,0 1 6,7 397 33,3
Háb. de São Bento 1 0,1 - - - - - - 1 0,0
Háb. de S. Domingos 8 1,4 80 14,1 - - 3 20,0 91 7,6
Háb. de N. Sra. das Dores 50 8,4 3 0,5 - - - - 53 4,4
Háb. de N. Sra. das Mercês 6 1,0 4 0,7 - - - - 10 0,8
Háb. de S. João Evangelista 2 0,3 25 4,1 - - - - 27 2,3
Háb. de Sta. Efigênia 7 1,2 13 2,3 - - - - 20 1,7
Háb. de menino do coro 18 3,0 231 40,5 - - 1 6,7 250 20,9
Háb. de outros santos 10 1,6 2 0,3 - - - - 12 1,0
Branca 74 12,4 76 13,4 2 20,0 2 13,3 154 12,9
Preta 15 2,5 29 5,1 1 10,0 5 33,3 50 4,2
Lençol - - 2 0,3 - - - - 2 0,2
Outras cores 35 5,9 41 7,2 - - - - 76 6,3
Outras 4 0,7 2 0,3 - - - - 6 0,5
Sem referência 12 2,0 10 1,8 2 20,0 2 13,3 26 2,2
TOTAL 599 100,0 571 100,0 10 100,0 15 100,0 1195 100,0
FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
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Entre os inocentes africanos, o maior índice de uso ocorreu entre as


mortalhas de cor, sendo que a preta foi mais procurada, com 33,3%, superando o uso da
branca que ficou com 13,3%. Entre os hábitos de santos, a maior procurar foi Pelo
habito de Santo Antônio, com 20%; a seguir foram utilizados os hábitos de São
Francisco de Paula e Nossa Senhora da Conceição e o hábito de menino do coro, todos
com 6,7%. Mas quando analisamos os dados da tabela 24 em números absolutos
observamos que enquanto os inocentes crioulos de ambos os sexo somados alcançam
um total de 1.170, o total de africanos é igual 25, demonstrando o que já vimos em
relação ao grande desequilíbrio sexual e etário e um reduzido número de crianças entre
os africanos traficados. O número de inocentes que aparecem nos livros de registro de
óbitos da freguesia da Sé no período analisado somam 7.600, sendo 1.170 crioulos, 25
africanos, um gentio da terra e 6.404 ausências de referência à origem. O que
impossibilita uma analise mais próxima da realidade.
Na tabela 25 percebemos que o hábito de Nossa Senhora da Conceição foi
utilizado pelos três segmentos, sendo seu uso foi maior entre as meninas livres, com
76,3%; em seguida vieram as forras com 62,2% e as escravizadas com 51,6%. A
segunda opção no uso de mortalhas entre as meninas dos três segmentos foi o hábito de
Nossa Senhora das Dores, sendo mais utilizado pelas forras, com 18%, 13,9% entre as
livres e 6,8% entre as escravizadas. Nessa mesma ordem de uso de mortalhas de santos
entre as meninas dos três segmentos, o habito de São João Evangelista foi à terceira
opção, também mais utilizado pelas forras com 13,2, seguidas pelas livres com 12,4%.
Entre as escravizadas o índice foi bem pequeno, apenas 0,7%. As mortalhas de cor
também foram usadas entre as meninas dos três segmentos, sendo predominante seu uso
entre as escravizadas, com a mortalha branca ocupando o primeiro lugar na preferência,
com 13,9%, entre as forras 7,9% e entre as livres 2,7%. A mortalha preta foi a segunda
opção, mas seu uso foi bem pequeno, com 2,6% entre as escravizadas; 1,4% entre as
livres e 1,3% entre as foras. Observamos que esta aproximação na escolha das
mortalhas permaneceu entre os inocentes do sexo masculino dos três segmentos. Porem,
entre os meninos o hábito de menino do coro teve a maior preferência, com 44,7% entre
os forros, 39,2% entre os livres e 37,7% entre os escravizados. Como segunda opção
somente entre os inocentes livres foi o hábito de São João, com 28,1%%. Em segundo
para os forros e terceiro lugar para os livres ficou o hábito de São João Evangelista, com
13,2% e 12,4% respectivamente.
311

TABELA – 25 MORTALHAS PELOS INOCENTES DE ACORDO COM A CONDIÇÃO SOCIAL POR SEXO
COND. SOCIAL SEXO LIVRES FORROS ESCRAVOS TOTAL
MORTALHAS FEMININO MASCULINO FEMININO MASCULINO FEMININO MASCULINO

N % N % N % N % N % N % N %
Háb. de S. Francisco de Paula - - - - - - 1 1,3 - - 3 0,7 4 0,0
Háb. de S. Antônio 1 0,5 2 0,8 1 1,1 1 1,3 2 0,5 - - 7 0,5
Háb. de N. Sra. Do Carmo - - 2 0,8 - - - - 5 1,2 3 0,7 10 0,8
Háb. de N. Sra. Da Conceição 164 76,3 20 8,6 61 62,2 5 6,6 218 51,6 28 6,5 495 33,6
Háb. de São Bento - - - - - - - - 1 0,3 - - 1 0,0
Háb. de S. Domingos - - 1 0,4 - - 7 9,2 5 1,2 35 8,2 48 3,3
Háb. de N. Sra. das Dores 30 13,9 - - 17 18,0 1 1,3 29 6,8 4 0,9 81 5,5
Hábito de S. Teresa - - - - - - - - 1 0,3 - 1 0,0
Háb. de N. Sra. das Mercês - - 2 2,3 - - - - 4 0,9 6 0,4
Háb. de S. João Evangelista - - 29 12,4 - - 10 13,2 3 0,7 13 3,0 55 3,7
Háb. de São João - - 66 28,1 66 4,5
Háb. de Sta. Efigênia - - - - 1 1,1 5 6,6 - - - - 6 0,4
Háb. de menino do coro - - 92 39,2 2 2,3 34 44,7 8 1,9 162 37,7 298 20,2
Háb. de outros santos 6 2,7 6 2,6 1 1,1 - - 3 0,7 7 1,6 23 1,6
Háb. da O. T de S. F. Paula 1 0,5 - - - - - - - - - - 1 0,0
Branca 6 2,7 9 3,8 4 1,1 6 7,9 59 13,9 51 11,9 135 9,2
Preta 3 1,4 1 0,4 - - 1 1,3 11 2,6 31 7,2 47 3,2
Lençol - - - - 1 1,1 - - 1 0,3 2 0,5 4 0,3
Outras cores 1 0,5 4 1,7 2 2,3 1 1,3 29 6,9 32 7,4 69 4,7
Outras 1 0,5 2 0,8 - - - - 5 1,2 3 0,7 11 0,7
Sem referência 2 1,0 1 0,4 7 7,4 4 5,3 42 9,9 52 12,1 108 7,4
TOTAL 215 100,0 235 100,0 99 100,0 76 100,0 422 100,0 430 100,0 1477 100,0
312

FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
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O hábito de São João Evangelista teve pouca preferência entre os


escravizados, com apenas 3%; sendo o hábito de Santo Antônio a segunda opção em
mortalhas de santo para os escravizados, com 8,2%. Nossa Senhora da Conceição
também aprece em nossa amostragem como opção de escolha de mortalha de santo
entre os três segmentos, ocupando o quarto lugar na preferência dos inocentes livres,
com 8,6%; terceiro lugar entre foros e escravizados, com 6,6% e 6,5% respectivamente.
As mortalhas de cor também foram opção de escolha entre os três segmentos, sendo
mais utilizadas pelos cativos, mantando-se o predomínio do uso da branco sobre a preta.
Seu índice de uso entre os inocentes escravizados foi de 11,9%; 7,9% entre os forros e
3,8% entre os livres. A preta também foi mais utilizada pelos cativos, com 7,2%,
enquanto entre os livres e forros seu uso foi muito pequeno, com 1,4% e 1,3%,
respectivamente.
Mas qual seria a explicação para essa aproximação na escolha do uso de
mortalhas entre os inocentes de ambos os sexos desses três segmentos? Observa-se que
o índice de ausência de referência em relação ao uso de mortalhas foi muito pequeno
entre os três segmentos. Lembramos que o número de inocentes entre os escravizados
de origem africana era muito pequeno. Assim sendo, ao analisar detalhadamente a
origem dos inocentes de nossa amostragem nos registros de óbitos da freguesia da Sé
percebemos que dos 852 inocentes escravizados de ambos os sexos apenas 15 era de
origem africana, 356 eram crioulos e 483 não tinham referencia a origem. O que nos
leva a pensar que sendo estes nascidos na América portuguesa, que no século XIX
passou a ser Império do Brasil, estariam mais próximos ao mundo dos senhores e dos
livres, bem como, seriam mais suscetíveis e influenciáveis pelas doutrinas da Igreja
católica dirigida aos cativos através da sua catequese. Mas não podemos descartar de
forma alguma a hipótese de que essas escolhas tenham sido pautadas de acordo com o
universo cristão e africano ao mesmo tempo, pois os descendentes de africanos teriam
recebido de seus pais ou dos mais velhos o conhecimento de suas raízes culturais,
preservada e recriada a partir da experiência do cativeiro. Ao mesmo tempo em que
essas escolhas teriam sido feitas a partir do critério dos seus pais ou dos mais velhos.
Entre as meninas e meninos crioulos houve também a procura por hábitos
de outros santos em pequena proporção: São João Evangelista, Santa Efigênia, São
Francisco de Paula, Santo Antônio, Nossa senhora do Carmo, Nossa Senhora das Dores
e outros. Entre outras mortalhas de cor aparece o uso da cor azul, rosa, roxo, vermelho e
314

amarelo. Conforme observado por Claudia Rodrigues, uso de mortalhas coloridas entre
as crianças talvez por serem consideradas inocentes pela Igreja e já consideradas em
estado de graça, o uso de mortalhas coloridas representasse um estado de contentamento
pela certeza da salvação 46.

5.2 Cosmologia centro-africana e cosmologia católica da morte

Vendo-se diante da morte, as sociedades africanas organizam-se


imediatamente para dar continuidade à existência do ser humano, desta vez vivida no
mundo dos ancestrais. O que explica a notável importância dada às cerimônias fúnebres,
veículos que permitem que as sociedades organizem a passagem crucial do morto,
conforme Arnold Van Gennep analisado anteriormente. Não há possibilidade de
repouso para um individuo atingido pela morte e nem a de sua entrada no espaço
sagrado dos ancestrais sem a realização dos rituais fúnebres 47. De acordo com Mary Del
Priore, os rituais fúnebres sempre foram às cerimônias mais importantes na África.
Verdadeiros reveladores, deles se extraem inúmeras informações sobre a organização
familiar, a vida social e as tensões entre os grupos. Ainda segundo autora, os funerais
eram também momentos críticos para emitir opiniões desfavoráveis e críticas sobre
certos membros da comunidade; ou seja, um dos momentos mais importantes das
exéquias consistia em descobrir a causa da morte. Os participantes faziam insinuações
sobre possíveis responsabilidades, iluminando questões em nível micro político:
desafetos, brigas de vizinhos, tensões familiares dividas comerciais podiam servir como
explicação. Enquanto o problema não fosse resolvido; ou seja, enquanto não se
descobrisse “quem” causou a morte, persistia a tensão 48. O relato de João Julião da
Silva 49, um funcionário português que viveu na Vila de Sofala, em Moçambique, entre
1790 e 1852, revela que entre os cafres de Machanga e Mambone, os parentes do morto

46
RODRIGUES, op. cit., p.196.
47
LEITE, Fábio. A questão ancestral. São Paulo, Palas Athena, 2008, p. 104.
48
DEL PRIORE, Mary. Passagens, rituais e práticas funerárias entre ancestrais africanos: outra lógica
sobre a finitude. REDE-A: vol.1, nº1, jan.-jun. 2011, p. 127. Disponível em
http://revista.universo.edu.br/index.php?journal=4revistaafroamericanas4&page=article&op=view&path
%5B%5D=459. Acesso em 24/10/20
49
João Julião da Silva nasceu em 1769, em Macau, era filho de pais emigrados do Porto. Chegou a
Moçambique em 1790, passou a morar na Vila de Sofala, foi escrivão interino da Feitoria Nacional, onde
entrou em contato com vários documentos antigos que versavam sobre os costumes africanos. Foi tenente
coronel de Milicias do território de Bandire. fugiu da fortificação em 1832, por isto o Conselho de Guerra
o culpou de traição, mas foi reabilitado e recompensado pelo governo em 1842, quando a pedido do
governador de Moçambique, resolveu escrever suas memórias sobre a região de Sofala. Era casado com a
filha do governador Manuel Antônio Baptista Monteiro. Exerceu também a atividade de comerciante.
315

davam grande importância às adivinhações que poderiam indicar os feiticeiros que


teriam causado a morte de seu familiar 50.

Depois de falecer qualquer pessoa, e enterrado, procurão os


parentes pellas adevinhaçoens particulares Saber os feiticeiros
que fizerão aquella morte: sabendo isto; se algum destes for
algum escravo, ou familiar, são logo mortos, ou segurados: e
não pode isto ser sem sentença formal pronunciada pelo
Gangueiro, ou mestre da Ganga que autoriza este fim.

Para estes povos, a morte não era simplesmente o fim, mas a passagem de
um ciclo para outro, à volta ao mundo dos espíritos. Mesmo concebida como uma
passagem de um ciclo para o outro, a morte é encarada por eles como uma ruptura, e
como tal gerava dor e sofrimento e deixa saudade do familiar querido que partiu.
Todavia, esse sofrimento poderia ser agravado quando a morte era provocada por causas
que fugiam a concepção de mundo desses povos à harmonia era quebrada, pois na
maioria das vezes eles entendiam a morte como resultado de ações mágicas causadas
por algum feiticeiro, que normalmente era morto após a cerimonia de ganga. De acordo
com James Sweet, durante os séculos XVII e XVIII, havia uma grande comunicação
entre o mundo dos vivos e o mundo dos espíritos. Os adivinhos efetuavam uma série de
rituais para invocar os espíritos e saber das suas intenções para com os vivos. Ao
estabelecer uma ponte entre os dois mundos, o adivinho podia prever eventos passados
e futuros, descobrir a culpa ou inocência de criminosos suspeitos e determinar a causa
de uma doença e outros infortúnios 51.
Em seu estudo sobre Angola, Roquinaldo Ferreira observou que a cerimonia
de ganga era amplamente disseminada entre os diferentes estratos sociais na sociedade
angolana, que tinha como objetivo invocar os espíritos dos ancestrais a fim de descobrir
os males que afligiam os vivos. O ganga (adivinho) era a autoridade religiosa que
presidia a cerimonia e impunha respeito e poder pela sua capacidade de conectar o
mundo dos mortos e dos vivos. As obrigações cerimoniais e rituais realizadas pelos
gangas estavam relacionadas à crença de que a alma do falecido, zumbi (aparição)
poderia influenciar os vivos. Para os africanos desta região, aquele que via um zumbi

50
SILVA, João Julião da; SILVA, Zacarias Herculano da e SILVA, Guilherme Hermenegildo da.
Memória de Sofala. Etnografia e História das Identidades e da Violência entre os Diferentes poderes no
Centro de Moçambique, séculos XVIII e XIX. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1998, p. 113.
51
SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro- português (1441-
1770). Lisboa: Edições 70,2007, p. 145.
316

iria morrer em breve. Outra forma de saber o que a alma do antepassado precisava era
através dos sonhos. Mas os gangas eram os principais condutas para o mundo
sobrenatural e ajudavam os africanos a identificar o zumbi responsável por suas aflições
de saúde. Significativamente, muitas cerimonias organizadas pelos gangas eram
realizadas no próprio túmulo do parente falecido 52.
No momento em que desaparecia um membro do grupo, era necessário
“compensar a perda dos mortos e reorganizar as relações sociais de sexo, parentesco,
idade, propriedade, direitos e obrigações”. 53 Para tanto, se procedia ao inventário dos
bens deixados pelo morto. O gangueiro, aquele que presidia esta cerimônia, recolhia
todos os bens do defunto e neste momento todos os parentes presentes ficavam
conhecendo-os e decidiam o destino a lhes ser dado 54. De acordo com Sebastião Xavier
Botelho, o Ganga era uma espécie de devassa 55 ou inquirição, feita com a autorização
do Inhamasango. O gangueiro geralmente deveria ser proveniente de uma aldeia
vizinha, para se evitar suspeitas. O objetivo dessa cerimônia era encontrar aquele que os
membros da família queriam que fosse o feiticeiro, encontrando-o se fosse membro da
aldeia, “como esteja presente, agarrão-o e prendem-o a hum cepo, quando he que logo
ahi mesmo o não Matão” se estivesse ausente e fosse membro da aldeia, “fica em reféns
o filho e a filha na falta delles o parente mais chegado”, se fosse estrangeiro iam buscá-
lo onde residia, “convidando com presentes o Inhamasango para que lho entreguem”. O
feiticeiro ou a feiticeira (podiam ser de ambos os sexos) recorria ao Inhamasango,
queixando-se de ter sido acusado injustamente por falso testemunho, e queriam provar
publicamente sua inocência 56.
Para provar sua inocência, os acusados eram obrigados perante o público a
ingerir uma planta venenosa chamada moavi. A planta era colhida por um dos parentes
do falecido que, antes do amanhecer entregava-a ao mestre que o estava esperando no
campo. Este a amassava no pilão, dando-lhe a forma de três bolas do tamanho de um
limão. Os acusados e os co-réus (suspeitos de terem participado do crime) estavam de
custódia desde o dia anterior para evitar que comessem alguma coisa. Eram levados ao
local da execução na presença de todos da aldeia, e seus arredores, ficando frente a
52
FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil
during the era of Slave Trade. Cambridge University Press, 2012, pp. 177-180; 195-198.
53
RODRIGUES, José Carlos. Tabu da morte. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983, p. 75
54
SILVA, op. cit., p.113.
55
Cf. Idem., p.114
56
BOTELHO, Sebastião Xavier. Memória estatística sobre os domínios portugueses na África Oriental.
Lisboa, Tipografia de José Baptista Morando, 1835. Este relato refere-se ao modo como os Cafres
praticam as gangas. pp. 220-222.
317

frente com o mestre, ajoelhavam-se e cruzavam as mãos. Neste momento, recebiam na


mão esquerda os três bolos que deveriam mastigar e engolir retirando-se para alguma
distância a onde estavam os seus parentes e os do falecido, ou dos queixosos, conforme
a natureza da culpa. De acordo com Sebastião Xavier Botelho 57,

Todos os assistentes formão-se em duas allas, armados cada


hum delles de huma varinha de verbana, que rodeão e cruzam os
ares triangularmente, e hum delles brada em altas vozes – se este
individuo he o feiticeiro que obrou o malefício, o moavi o
arrebente – seja assim, respondem todos em côro – se elle não
he, e falsamente o accusão o moavi o deixe viver – embora viva,
dizem todos ao mesmo tempo. Repetem alternadamente esta
emprecação, até os acusados, que passam pelo meio das allas, ou
vomitem ou cahirem em terra atordoados: então os Matão, e os
queimão captivão a mulher, os filhos, e os bens a favor dos
parentes do morto (...) O que não vomitou nem cahio, he havido
por innocente, e todos o acompanham a casa, aonde lhe
accodem logo com huma bebida emética para expulsar o
veneno, e fazem – purures – por três dias, que em liguagem quer
dizer festas públicas de regosijo. 58

A culpa sempre recaia sobre um desafeto da comunidade, geralmente, um


feiticeiro, já que estes eram vistos como portadores de poderes maus e capazes de levar
alguém à morte pela diminuição da força vital. 59 Desse modo, os indesejáveis eram
retirados do seio da comunidade, condenados à morte, ou vendidos como escravos.
Podemos entender porque tantos escravos vieram para o Brasil por terem sido
condenados por feitiçaria na África e vendidos aos traficantes nos grandes mercados. 60
A realização do ritual fúnebre era de extrema importância, pois tinha por
objetivo restabelecer a solidariedade e a ordem social perturbada, realocando os
vínculos entre o mundo dos vivos e dos mortos, assegurando a proteção do antepassado.

57
Sebastião Xavier Botelho grande do reino, comendador da ordem de Cristo, freire da ordem de São
Tiago da Espada, desempenhou sucessivamente os seguintes cargos: provedor dos resíduos e cativos, juiz
dos direitos reais da Casa de Bragança, desembargador da Relação do porto, inspetor-geral dos
transportes de mar e terra para o exercito, juiz privativo do comissariado britânico durante a Guerra
Peninsular, inspetor dos teatros, desembargador da Casa de Suplicação do Rio de Janeiro, deputado fiscal
da Junta dos Arsenais, Fabricas e fundições do Brasil, diretor do Liceu Nacional em 1822, capitão general
da ilha da Madeira em 1820; nomeado pelo mesmo cargo para Moçambique em 23 de junho de 1824,
tomando posse em 20 de janeiro de 1825.
58
BOTELHO, op. cit., pp. 222-223. Este relato refere-se ao modo como os Cafres praticam as gangas. Cf
também SILVA, op. cit., p p. 114-119.
59
ALTUNA, Raul Ruiz de Azús. A cultura tradicional banto. Luanda: Secretariado Arquidiocesano de
Pastoral 1985, p.445.
60
PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. A Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de
Janeiro: Garamond: IPHAN, 2007, P. 166.
318

A família e a comunidade promoviam o defunto à classe de


antepassados vingam-se do causador da morte, restabelecem a
solidariedade e a ordem social perturbadas, ordenam a harmonia
pacifica, asseguram a proteção do antepassado e reforçam a
amizade entre os dois mundos 61.

Em seu estudo sobre os ancestrais nas sociedades africanas – Ioruba, Agni e


Senufo –, Fábio Leite explica que, por acreditar na imortalidade, os africanos dariam
uma extraordinária importância à morte e às cerimônias fúnebres. A morte se
apresentaria como um fator de desequilíbrio, por excelência, ao promover o rompimento
da união dinâmica e interdependente entre os elementos vitais e constitutivos do ser
humano. Diante da morte, a sociedade, se organizaria rapidamente no sentido de
promover o reestabelecimento do equilíbrio perdido através das cerimônias fúnebres,
permitindo a passagem do homem de sua existência terrestre à condição de Ancestral. A
realização do ritual fúnebre era de extrema importância, pois tinha por objetivo
restabelecer a solidariedade e a ordem social perturbada, restabelecendo os laços entre o
mundo dos vivos e o dos mortos, assegurando a proteção dos antepassados. Muito
embora o ritual garantisse os vínculos entre os dois mundos, o mundo dos mortos era
considerado o mais poderoso, pois estava em outra dimensão. Portanto, não homenageá-
los com rituais condignos à sua dimensão, poderia trazer grandes infortúnios para a
comunidade. Entre todos os ritos funerários, aqueles que agregavam o morto ao mundo
dos mortos eram os mais elaborados e a eles é que se atribui a maior importância 62.
Além de garantir ao morto um lugar junto aos antepassados, restabelecer a
harmonia e o equilíbrio na comunidade, os ritos fúnebres eram uma forma de
exteriorização da posição social, prestigio e poder de cada indivíduo diante da
comunidade, por isso variavam de acordo com o lugar social que cada uma ocupava na
sociedade. Quanto mais elevada fosse à posição social do morto, maior era a
exuberância do ritual. Quanto maior o prestígio em vida, maior era a pompa do ritual,
principalmente se este fosse um rei, ou grande chefe. O padre Altuna 63 nos revela que
viu serem sacrificados, nestas ocasiões, até 15 bois e que as festas podiam se prolongar

61
SILVA, op. cit., p. 113
62
LEITE, op. cit., p. 128.
63
Sacerdote espanhol, chegou em Angola com o primeiro grupo de padres diocesanos das Missões
Diocesanas Bascas, em 1959. Em 1960, fundou a Missão de Brito Godins, no distrito de Malange. Passou
a trabalhar na arquidiocese de Luanda em 1965 e escreveu sobre a cultura banto.
319

durante um mês 64. Segundo Fábio Leite, a família do morto ainda recebia uma série de
doações, dos aliados e amigos, constituídos de tecidos, alguns de vários metros de
comprimento, bebidas, perfumes, além de doações em dinheiro e alimentos que seriam
utilizados no banquete ritual em homenagem ao falecido. Assim, estabelecia-se um
princípio de reciprocidade em que a família do morto deveria proceder da mesma forma
caso o óbito ocorresse na família ofertante. Parte dessas doações era colocada no ataúde
do morto e o acompanhava na condição de símbolos de sua posição social, prestigio e
estima desfrutados na comunidade. Constituíam a bagagem com a qual ele entraria no
mundo dos ancestrais e tomaria lugar junto a seus pares após o termino dos funerais 65.
Mary Del Priore diz que em toda a África Atlântica, “os panos ou tecidos do
morto” eram de vital importância. Tais lençóis e mortalhas tinham por objetivo sugerir à
passagem, a regeneração, a vida contida na morte e pela morte; não sendo mera
decoração. Eram, sim, valores de troca fundamentais, que na maior parte das vezes
intervinham nas transações e nas oferendas coletivas feitas pelos africanos aos seus
mortos. O ato de enrolar os mortos em tecidos consolidava a coesão e o entendimento
entre o grupo e seus antepassados. Ao envelopar o corpo do defunto, os africanos
estavam reconstituindo as redes de alianças sociais, em particular, os familiares e
clânicas, que permitiam que o morto fosse reconhecido e recebido pelos ancestrais.
Quanto aos vivos, a generosidade de seus presentes seria retribuído com boas graças
pelo morto. Desta forma, a oferenda do tecido mantinha a continuidade entre o passado
e o presente. Pois, entre os panos que cobriam o morto, se encontravam os que
pertenciam ao seu pai. Os panos que cobriam a tenda do rei falecido podiam servir de
mortalhas para seus herdeiros. Entre muitos grupos congoleses, o movimento de enrolar
o pano à volta do corpo, significava o movimento em espiral da vida 66.
Após analisar elementos das cosmologias africanas com relação à passagem
da vida para a morte e a concepção sobre os mortos em diferentes reinos, avançaremos
para as noções relacionadas à escatologia católica sobre a passagem da vida para a
morte.
De acordo com a escatologia católica o destino da alma, até os séculos XII-
XIII, esteve circunscrito ao Céu ou ao Inferno. O purgatório surgiu no século XII e

64
ALTUNA, op. cit., p. 446; LEITE, op. cit., p. 104; GENNEP, op. cit., p. 129; SILVA, op. cit., p. 111.
65
LEITE, op. cit., p. 106.
66
DEL PRIORE, Mary. Passagens, rituais e praticas funerárias entre ancestrais africanos: outra lógica
sobre a finitude. 2011, pp. 128-9
320

início do século XIII como um “terceiro lugar” 67 na geografia celeste, um “inferno


temporário” neste sentido um sistema binário, bem/mal, Céu/Inferno foi adquirindo aos
poucos uma feição tripartida cedendo lugar à trindade, Inferno/Purgatório/Paraíso, uma
“antessala quase necessária do paraíso”, onde ficavam a maioria das almas que
escapavam do fogo do inferno, mas que não eram totalmente puras para entrar direto no
paraíso 68.
O Purgatório se apresentava como um espaço intermediário entre o Céu e o
Inferno, onde permaneceriam por um determinado tempo os mortos que em vida
praticaram pecados considerados leves que eram classificados como veniais. Enquanto
aqueles que cometeram em vida pecados graves, classificados como pecados capitais,
aos quais não haveria perdão tinham como destino o inferno. Para estas almas, nada
mais poderia ser feito, mas para aquelas almas que iam para o espaço intermediário do
além, isto é, o Purgatório, algo ainda podia ser feito para que alcançassem o mais breve
possível o Paraíso celeste 69. Sendo necessário um tempo de purgação dos pecados, que
poderia ser abreviado pelos vivos por meio de orações e missas, e pela intervenção dos
santos e almas benditas junto a Deus, “antes durante e depois do julgamento individual
da alma do morto” 70.
O destino da alma no além-cristão dependia do Juízo Final, quando Cristo
voltaria para julgar todos os homens, conduzindo os justos para glória dos Céus, para a
vida eterna e condenando os injustos ao castigo eterno. Portanto, o destino da alma
estaria sujeito a um duplo julgamento. O primeiro, no momento da morte que era o
julgamento individual, e o segundo, coletivo, no dia do Juízo Final 71. Assim, entre a
morte e ressurreição ocorreria à purgação dos pecados, que poderia terminar antes ou
ultrapassar esse tempo intermediário 72, ou seja, “durar mais ou menos, de acordo com a
gravidade das faltas ainda a expiar e consoante o zelo dos vivos de intercederem pelo
condenado a purgação através de sufrágios” 73. Aqueles que terminassem a purgação
antes do dia do juízo final passavam imediatamente para o Paraíso celeste 74.

67
Denominação dada por Lutero ao Purgatório. Esse além “inventado” não estava nas Escrituras. LE
GOFF, Jacques. O nascimento do purgatório. Lisboa, Portugal: Editorial Estampa, 2ª edição, 1995, p. 15.
68
REIS, op. cit., 1991. p. 203.
69
LE GOFF, op. cit., 1995, p. 18-19; RODRIQUES, op. cit., 1995. pp. 150-151; ______. 2007, p. 444;
______. 2010, p. 42; BRAGA, op.cit., p. 96.
70
REIS, op. cit., 1991. p. 203; RODRIGUES, op. cit., 2005. p. 46.
71
GOFF, op. cit., 1995, p. 19.
72
Idem., p. 164.
73
RODRIQUES, op. cit., pp.151-152.
74
Idem., 95. pp.151.
321

O Purgatório seria um lugar duplamente intermediário: “nele não se é nem


tão feliz como no Paraíso nem tão infeliz como no Inferno, e só durará até ao
julgamento final” 75. Dentro da lógica de uma pedagogia do medo elaborada pela Igreja,
o Purgatório estaria mais próximo ao inferno que do Paraíso 76. O que permitiu a Igreja
adotar penas purgatórias cada vez mais duras, no sentido de prolongar seu poder sobre
os fiéis para além da morte. Assim, há uma valorização por parte da Igreja da agonia
dos últimos momentos no qual se daria o julgamento individual em que o destino da
alma do morto seria decidido. 77 Como dificilmente se entrava direto para o Paraíso, a
morte provocava um sentimento misto de pavor e agonia, por não saber se o destino
seria o Inferno ou o Purgatório, cujas penas e castigos eram tão terríveis quanto no
Inferno, com a diferença de que eram temporárias ao contrário do Inferno, onde o
castigo era eterno 78. Aproveitando-se desse medo a Igreja utilizou em grande medida a
doutrina do Purgatório como forma enquadramento das atitudes e das representações
dos cristãos em relação à morte e o além-túmulo. Tal doutrina foi elaborada e
desenvolvida de forma primordial entre o final século XII e ao longo do século XIII,
mas foi entre os séculos XV e XVIII que ela se enraizou mais profundamente no
sistema de crenças da sociedade cristã ocidental, tendo sido reforçada no período
posterior ao Concílio de Trento como uma forma de reação aos protestantes 79.
Em meio a esse cenário um novo clima espiritual influenciado pelo discurso
culpabilizador da Igreja conferiu maior responsabilidade pessoal ao cristão, levando a
um aumento do medo sobre o destino da alma – que, a partir da doutrina do Purgatório,
seria decido logo após a morte. O que levou a intensificação da prática de sufrágios
pelas almas do Purgatório e que, portanto, estabeleceram novos laços de solidariedade
entre os vivos e os mortos 80. Assim, ajudados pela intercessão dos vivos, através dos
sufrágios (preces, jejuns, orações, esmolas e, sobretudo missas) na intenção de suas
almas, os mortos teriam sua penas expurgadas, com isso, alcançariam o Paraíso, onde
passariam a interceder por aqueles vivos que os teria arrancado do Purgatório. Aos
poucos se construiu a ideia da vantagem em rezar pelas almas que estavam no

75
LE GOFF, op. cit., 1995. p. 268.
76
Ídem., 1993. p. 343.
77
RODRIGUES, op. cit., 2005, p.44.
78
Idem., 2005. p. 48.
79
Idem., 2005. p. 50.
80
Ibidem., 2005. p. 48; ARAÚJO, Manoela Vieira Alves de. A importância do reforço da doutrina do
Purgatório por Trento para o desenvolvimento da atuação dos leigos na busca pela salvação.
Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016). p. 184.
322

Purgatório, pois estas logo que estivessem no Paraíso rezariam por aqueles que as
tiraram do Purgatório 81.
Surge um grande interesse por parte dos vivos em rezar, especialmente pelas
as almas de parentes e amigos, pois estes não seriam ingratos e se tornariam seus
intercessores no Paraíso celeste 82. Le Goff observou que a devoção que se exprimia
“pelos altares e pelos ex-votos às almas do Purgatório mostrava que dai em diante não
só essas almas adquiriam méritos, mas poderiam também dirigi-los aos vivos,
restituindo-lhes a assistência” 83. Assim, a devoção às almas do Purgatório tornou-se
“uma cadeia circular sem fim, uma corrente de reciprocidade perfeita” que garantiu à
solidariedade entre os vivos e os mortos 84. Através desta solidariedade estendida ao
além, foram reforçados os laços familiares, corporativos e confraternais. Estes últimos
manifestaram-se, principalmente a partir do século XIII, com o surgimento das
confrarias, pois estas tinham como uma das suas principais funções a realização dos
sufrágios em intenção das almas de seus confrades 85.
Ao mesmo tempo em que adotava uma pedagogia da morte baseada no
medo, a Igreja também oferecia aos fiéis a esperança, a segurança, por meio das
garantias de proteção proporcionadas por ritos tranquilizadores. A igreja soube
manipular “as sensações de angustia e insegurança coletivas, transformando-as em
medos religiosos”. Assim como, a partir da ideia de culpabilização, buscou, por um lado
difundir o ideal de penitência, e por outro, ela ofereceu aos fiéis a tranquilização,
através das orações, procissões, culto aos santos, sufrágios e intercessores entre outros.
Diante de uma forte representação de culpabilização ela ofereceu a imagem de um Deus
misericordioso para aqueles que confessassem e se arrependessem de seus pecados e se
preparassem com antecedência para a morte, fazendo testamento, buscando os
sacramentos, instituindo legados pios e sufrágios 86.
Ao disseminar uma pedagogia do medo, um dos recursos de tranquilização
aos fiéis que a Igreja católica lhes ofereceu foi o culto aos santos, que eram

81
LE GOFF, op. cit., 1995. p. 373.
82
Idem., 1995. p. 373, 248.
83
Idem., 1995. p. 425.
84
Ibidem., 1995. p. 50; 164-5; 373; 425-6; A importância do reforço da doutrina do Purgatório por Trento
para o desenvolvimento da atuação dos leigos na busca pela salvação. Temporalidades – Revista de
História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016). p. 185.
85
LE GOFF. Op. cit., 1993. p. 275; 347-8; RODRIGUES, op. cit., 2005. p. 48; ARAÚJO, Manoela Vieira
Alves de. A importância do reforço da doutrina do Purgatório por Trento para o desenvolvimento da
atuação dos leigos na busca pela salvação. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150,
Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016). p. 184.
86
RODRIGUES, op. cit., 2005. p. 52.
323

reconhecidos como intercessores especiais diante da morte. Um dos traços mais


importantes da religião nessa época foi à difusão generalizada das formas de devoção a
Virgem Maria e a toda uma rede de santos funcionando como intercessores diante de
Deus, no momento do julgamento da alma imediatamente após a morte 87. No século
XVI o culto aos santos foi reafirmado pelo Concilio de Trento, sendo estabelecido na
América portuguesa pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, em que
ordenava que “os anjos espíritos celestiais, e santos aprovados pela Igreja deviam ser
venerados devido a sua superioridade e perfeição, e por estarem reinando com Deus
nosso senhor, e porque rogam, e intercedem continuadamente por nós em nossos
trabalhos, e aflições diante do mesmo senhor” 88.
Além de ser objeto de uma crescente devoção, o culto aos santos tinha uma
função importante na pastoral da “boa morte”, tendo grande destaque no que diz
respeito à esperança em contraposição à angústia provocada pela pastoral do medo.
Tendo como base a proteção e a segurança, as quais os santos e anjos eram guardiões e
protetores da alma contra as forças demoníacas. Diante do crescente medo que
dominava os indivíduos no início da Idade Moderna – “medo dos perigos exteriores,
reais ou imaginários, medo de si mesmo como pecador ameaçado pelo Inferno. A
devoção ao anjo da guarda e o culto aos santos era essencial. Portanto, foram
reforçados.” 89.
O cumprimento dos ritos fúnebres no universo do catolicismo, portanto, era
encarado como um caminho de intercessão pela alma após a morte. Neste sentido, tanto
o catolicismo como as cosmologias africanas atribuíam grande importância aos
momentos após a morte. Vejamos a sequência dos rituais funerários católicos e como os
africanos e seus descendentes se adequaram a eles.

5.2 - Velório, encomendação da alma, acompanhamento e missas fúnebres

Após a escolha da mortalha, as próximas etapas do ritual fúnebre católico,


que antecedia o sepultamento, seriam estas: o velório, a encomendação da alma, o

87
RODRIGUES, op. cit., 2005. p. 52; DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800.
Uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras. 2009; ARAÚJO. Manoela Vieira Alves de. A
importância do reforço da doutrina do Purgatório por Trento para o desenvolvimento da atuação dos
leigos na busca pela salvação. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8,
N. 3 (set./dez. 2016)
88
VIDE, op. cit., Título VII, c. 21, p. 9.
89
RODRIGUES, op. cit.,... 2005. p. 52.
324

acompanhamento e a missa de corpo presente, com o objetivo de oferecer orações em


intenção da salvação da alma do morto 90.Várias pessoas eram envolvidas na preparação
do funeral, enquanto uns cuidavam do toalete do corpo, outros preparavam a casa para o
velório, e as demais coisas relacionadas ao sepultamento. Geralmente um parente do
sexo masculino cuidava de todos os preparativos para concretização do funeral. A casa
deveria ser decorada com símbolos que representassem o luto. Na entrada colocavam-se
ramos fúnebres ou panos acortinados, sinais que indicavam aos transeuntes que naquela
casa havia morrido alguém 91. Se o defunto fosse casado, pendurava-se uma cortina preta
e dourada na porta da casa, se fosse solteiro as cores seriam lilás e preto; para as
crianças normalmente o branco ou azul e dourado 92.
Havia ainda outras formas de se anunciar a morte de alguém, como o grito
das carpideiras, celebração de “missas de notícia” e o dobre dos sinos das igrejas.
Muitas famílias abastadas faziam cartas-convites que eram distribuídas por seus
escravizados convidando para o funeral de seus entes queridos. Aqueles que tinham
condições contratavam um profissional para fazer a “armação” da casa 93, sendo o preço
estabelecido de acordo com o aparato 94. Usava-se muito pano cortinado, frisado,
armado com varas, veludos, baetas, belbutinas, galões para ornamentar o melhor
cômodo da casa. Geralmente era a sala, onde o cadáver era depositado para o velório 95.
João Reis observou que as famílias faziam de tudo para transformar o funeral de seus
membros um acontecimento social de grande importância com o sentido explicito de
espetáculo, expedindo dezenas e às vezes centenas de convites. Essa atitude das famílias
em buscarem uma numerosa audiência para os seus funerais ocorreu por todo o século
XIX.
Para o velório montava-se na sala uma tarimba, espécie de estrado alto, ou
palanque sobre o qual o corpo era depositado sem o caixão ou esquife, 96 pois estes
raramente eram utilizados tanto por pessoas ricas ou pobres. Normalmente, eram
utilizados para transportar o morto até o local onde seria enterrado, depois eram
devolvidos ao agente funerário – em geral uma irmandade religiosa, neste período -
juntamente com os outros aparatos utilizados no funeral. Para as pessoas casadas

90
RODRIGUES, op. cit., 1996, p.214.
91
REIS, op. cit., 1991, p. 128.
92
EWBANK, op. cit., p. 58.
93
REIS, op. cit., 1991, p. 128.
94
Sobre os valores que se gastavam na armação da casa para o velório cf. BRAVO, op. cit., p. 125.
95
EWBANK, op. cit., p. 58; REIS, op. cit., 1991, p. 128.
96
REIS, op. cit., 1991, p. 129-130.
325

usavam-se caixões pretos, para os jovens os caixões vermelhos, escarlates ou azuis. Os


sacerdotes eram sepultados ou transportados até o túmulo em caixões com uma enorme
cruz pintada. Era costume conduzir os cadáveres das crianças em pé em procissão presa
a uma cruz de madeira ligada a uma plataforma. Os parentes mais próximos não
acompanhavam o corpo ao cemitério, o caixão era entregue aos amigos na entrada, aos
quais era confiada a deposição final e respeitosa do falecido 97.
Voltando a questão da arrumação do espaço para o velório, de acordo com
João Reis, essa arrumação poderia ser simples ou luxuosa dependendo do cabedal da
família, como por exemplo, enquanto as mais pobres usavam castiçais de madeira as
mais ricas usavam castiçais de prata ou ainda muitas velas para iluminar o morto e
afastar os maus espíritos 98. A posição correta do cadáver no velório para garantir um
bom resultado, devia obedecer a uma certa simbologia: “os pés do defunto deveriam
estar sempre voltados para rua e quando fosse carregado no féretro conservava a
direção. Saia para sepultura com os pés, ao inverso de como entrou no mundo, com
exceção se fosse sacerdote católico. Deixaria a câmara mortuária com a cabeça para
porta por portar a coroa sagrada”. Toda essa simbologia de espaço e movimento
garantia ao morto uma boa passagem ao mundo dos mortos. Além dessas práticas, havia
outras que poderiam proporcionar ao morto uma boa passagem, como por exemplo, a
limpeza dos sapatos, pois qualquer vestígio de poeira e areia do mundo dos vivos
impedia a passagem e despertava saudades, provocando na alma do morto o desejo de
voltar para rever a família. Talvez por esse motivo as famílias mais abastadas
comprassem roupas novas, sapatos, meias e véus, pois além da obrigação de apresentar
bem os seus mortos, buscava-se evitar de todos os meios que eles retornassem ao
mundo dos vivos 99. Ewbank observou que às vezes gastavam-se grandes somas em
dinheiro em roupas e joias para o morto. Geralmente eram usados bordados, lantejoulas,
borlas, cordões, tiaras etc., as joias eram de pechisbeque (liga de cobre e zinco que imita
o ouro) ou ouropel (liga metálica de cobre de cor amarela que imita ouro), mas em
alguns casos os defuntos eram inumados com joias verdadeiras. Os pobres buscavam o

97
EWBANK, op. cit., p. 58-59.
98
REIS, op. cit., 1991, p. 130.
99
CASCUDO, Luís da Câmara. Anúbis e outros ensaios: mitologia e folclores. Rio de Janeiro:
FUNARTE/INF: Achiamé; Natal: UFRN, 1983, p. 15; REIS, João José. A morte é uma festa... 1991, p.
130.
326

auxilio dos amigos, muitas vezes vendiam os móveis ou roupas que podiam dispor com
propósito de honrar os seus mortos 100.
As mãos do defunto não podiam ir livres, eram amarradas com rosários. As
cores dependiam da condição social do morto, sendo o preto usado nos homens e
mulheres casadas, azul nas virgens, branco nas crianças que já haviam feito à primeira
comunhão e roxo nas viúvas. Colocava-se uma vela acesa entre as mãos para iluminar
os caminhos que levavam as bem-aventuranças. Aqueles que chegavam para se despedir
do morto, saudava-o com água benta, costume herdado de Portugal que tinha como
função espantar os demônios que pudessem atormentar o morto. Até a saída do enterro
o morto ficava completamente encharcado devido à umidade das flores e os pingos de
água benta que todos que entravam, obrigatoriamente deviam lhe aspergir 101.
As mulheres presentes no velório faziam diversas orações pelo defunto,
rezavam padre nossos, ave-marias, credos, rosários e ladainhas, cantavam incelências ou
excelências, cantigas de guarda, cantigas de sentinela e benditos de defuntos eram
pronunciadas em homenagem ao morto, reforçando os ritos de separação. Assim como,
as carpideiras, “velhas devotas de lágrima fácil e gestos teatrais que abraçavam
convulsivamente os parentes do morto, fazendo exclamações trágicas, com suspiros de
sugestiva extensão dirigindo orações com voz plangente, tentando, por todos os meios
lícitos atrair as atenções”, choravam com eloquência para afastar a alma do defunto do
mundo dos vivos. Elas gritavam de forma estridente ao longo do velório, na saída do
defunto de casa e durante o sepultamento, essas gritadeiras mantinham-se acesas.
Mesmo com todo o alvoroço que faziam, não impediam que o morto ouvisse os recados
dos vivos para aqueles que já haviam morrido. Pedidos que tinham como objetivo curar
doenças e solução de outros infortúnios, e até pedidos de vingança celeste contra os
desafetos entres os vivos 102.
Os familiares e amigos não recusavam esmolas, enquanto o cadáver
permanecia exposto. Parentes e amigos passavam a noite velando o morto. O
comportamento alegre e divertido sem faltar com o respeito era bem vindo, pois “era
sinal de que o morto não queria tristezas”. Não faltava comida e bebida, apesar dos
viajantes não falarem nada sobre esta etapa do ritual ela existia 103. Ewbank chegou a

100
EWBANK, op. cit., p. 59-60.
101
VIANNA, Hidegardes. A Bahia já foi assim: crônicas de costume. Salvador, Bahia: Editora Itapuã,
1973, pp. 65; CASCUDO, op. cit., P. 16; REIS, op. cit., 1991, p. 130.
102
CASCUDO, op. cit., p. 18; REIS, op. cit., p. 130-131.
103
VIANNA, op. cit., pp. 56,60 e 65; CASCUDO, op. cit., p. 16-7; REIS, op. cit., p. 131.
327

dizer que não se ofereciam jamais comida e bebida nos funerais. Tal afirmação é
contrária nossa memória coletiva sobre esse costume herdado de Portugal e da África
que possivelmente ainda exista em regiões rurais do Brasil 104.
De acordo com as Ordenações Manuelinas, o banquete mortuário era
permitido, exceto no interior das igrejas 105. Hidelgardes Vianna afirma que “defunto
sozinho era presa fácil para o demônio” 106. Portanto, era tarefa dos vivos zelar pelos
seus mortos para que os maus espíritos não se aproximassem deles no momento
derradeiro. Tinham o dever de fortalecer sua alma através de orações. A família tinha
obrigação de cuidar para que parentes, amigos e vizinhos não esmorecessem,
encorajando-os para que enfrentassem a noite de espírito elevado, por isso a importância
da distribuição de comes e bebes, especialmente da bebida espirituosa 107. De acordo
com Câmara Cascudo servir comidas e bebidas em velório é um costume que teve início
no antigo Egito. A partir de então os banquetes fúnebres espalharam-se pelo mundo,
chegando até Portugal. Assim sendo, passaram a fazer parte das obrigações domesticas
de diversos povos. Esses alimentos eram servidos aos vivos e aos mortos, aos quais
eram oferecidas bebidas, doces, pão, carne, deixando-os no túmulo ou jogando-os para
dentro do mesmo. Nas camadas populares, o velório era agitado, barulhento e
abundante: bebia-se em grande quantidade, falava-se alto e os gestos eram menos
contidos 108.
Adalgisa Campos observou que em visita pastoral a Capitania de Minas
Gerais em 1726 o Bispo D. Frei Antônio de Guadalupe ao constatar que alguns
escravizados, principalmente os da Costa da Mina faziam ajuntamentos à noite “com
vozes e instrumentos em sufrágios de seus falecidos” reuniam-se “em algumas vendas,
onde compravam varias bebidas e comidas, e depois de comerem lançavam os restos
nas sepulturas”. O bispo recomendou aos reverendos vigários das freguesias em que
isso ocorria que combatessem tal costume, que fizessem “desterrar estes abusos,
condenando em três oitavas para a Fabrica aos que receberem em sua casa e ajudarem
estas superstições” 109.

104
EWBANK, op. cit., p.59; REIS, op. cit. 1991, p. 131.
105
Ordenações Manuelinas. Livro V, Titulo 33, parágrafo 7, p. 96.
106
VIANNA, op. cit., pp. 58
107
REIS, op. cit., 1991, p. 131.
108
CASCUDO, op. cit., p. 16-7.
109
CAMPOS, Adalgisa Arantes. Considerações sobre a pompa fúnebre na Capitania das Minas – no
século XVIII. Revista do Departamento de História da UFMG, n. 4, 1987, p.16.
328

As recomendações do bispo são testemunho das tradições africanas


recriadas no cativeiro em varias regiões da colônia, nas quais as oferendas em formas de
comidas deveriam ser levadas aos túmulos para que os mortos também participassem do
banquete festivo em suas despedidas 110. A cachaça também não podia faltar. O costume
de “beber o morto” foi praticado no interior de varias cidades do Brasil. Um costume
dos povos de origem banto vindos da África Centro Ocidental, ressignificado no
cativeiro. Entre esses povos, quando morria alguém da comunidade, tomavam o marufo,
também conhecido como maluvo, “vinho de palma”, bebida alcoólica feita a partir da
fermentação da seiva extraída de uma palmeira típica de Angola 111. Esse costume
espalhou-se por toda a colônia e império, cuja bebida tradicional passou a ser a cachaça.
A última etapa do ritual de despedida do morto era a encomendação da
alma, consistia numa espécie de entrega feita pelo pároco da alma do morto a Deus.
Geralmente era acompanhado por músicos, manifestação especial de respeito e carinho
feito pela família para com o morto, que celebrava publicamente sua despedida do
mundo dos vivos e entrada no mundo dos mortos, tal ato representava pompa112
fúnebre 113. A execução dos ritos fúnebres de encomendação, compreendidos como
exéquias é constituído por quatro momentos principais: o acolhimento dos presentes, a
liturgia da palavra, o sacrifício Eucarístico e o adeus. Recomendava-se normalmente
que as exéquias fossem realizadas momentos antes do sepultamento, possibilitando a
participação de mais pessoas, tendo em vista que quando se aproxima a hora do
sepultamento de acordo com a tradição, concentra-se o maior número de pessoas para

110
BONOMO, Juliana Resende. Alimentando o luto: uma pesquisa sobre as comidas servidas nos
velórios de Entre Rios de Minas e Belo Horizonte. REVISTA M. Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, jul./dez. 2018,
p. 448.
111
MUTEKA, Faustino Tchimbundo. Consumo de Álcool em Angola: estudo com militares e civis.
Departamento de Psicologia. Instituto Superior de Ciências da Saúde – Norte. (ISCS-N), 2012, p. 15;
BARBOSA, Francisco José. Nas fronteiras da liberdade: colonização, descolonização e fitos fúnebres na
Angola contemporânea. São Paulo: pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, 2015, p.
178; BONOMO, Juliana Resende. Alimentando o luto: uma pesquisa sobre as comidas servidas nos
velórios de Entre Rios de Minas e Belo Horizonte. REVISTA M. Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, jul./dez. 2018,
p. 448.
112
De acordo com o Dicionário de Rafael Bluteau pompa significa acompanhamento por cortejo, em
triunfos, ou enterros; Pompa fúnebre. Pomposo, pompa, acompanhado de muita gente Esplendido,
magnífico; estilo pomposo. BLUTEAU, Rafael. Dicionário da Língua Portuguesa, reformado e
acrescentado por Antonio de Moraes Silva. Tomo segundo. Lisboa: na Officina de Simão Thaddeo
Ferreira, 1789, p. 215; Adalgisa Campos observou que o sentido original da palavra “pompa”. De origem
grega “pompê" detinha o sentido de procissão. Em latim continuou traduzindo essa ideia de cortejo e
séquito. Significou também exterioridade ou aparência e ainda, luxo e gala. Nas descrições de cerimônias
fúnebres do século XVIII, o termo foi bastante utilizado, tendo assumido muitas vezes o sentido de
séquito e ou luxo da aparência, ou ainda, foi usado para enfatizar a hierarquia presente no
acompanhamento fúnebre. A pompa podia faltar durante a vida, mas era muito essencial no último
momento da existência. CAMPOS, op. cit., 1987, p. 5.
113
REIS op. cit., 1991, p. 132; RODRIGUES, op. cit., 1996, p.214.
329

participar do desfecho final do ritual. Dando início à cerimônia o sacerdote proclamava


as orações reconhecendo a morte como um evento inevitável e comum a todos os
indivíduos, exortando a crença na ressurreição e conclamando a Deus a salvação da
alma do falecido, para que este fosse acolhido pelos anjos e santos no festim celeste. Na
oração de encomendação suplicava pela felicidade do morto, que tendo passado pela
morte, possa participar do “convívio dos santos na luz eterna”, que sua alma no sofresse
e alcançasse a vida eterna 114.
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia preconizavam que
nenhum defunto poderia ser sepultado sem que primeiro fosse encomendado pelo
pároco ou outro sacerdote por ele indicado. Antes da encomendação deveria consultar
se o morto havia feito testamento declarando as suas últimas vontades, onde deveria ser
enterrado, se deixou legados pios, ou obrigações de missas, ou se em seu momento
derradeiro declarou algumas dessas vontades para que com brevidade se fizesse
cumprir. Somente após ter conhecimento dessas informações se cumpria a
encomendação no local em que o corpo estivesse, com sobrepeliz, e estola preta, ou
roxa, conforme determinava o ritual romano. No sentido de garantir o cumprimento de
tais determinações estabeleciam ainda, que os párocos que deixassem de encomendar
algum defunto e não nomeassem um sacerdote para substituí-los estariam obrigados a
pagar mil réis. Quanto aos párocos e clérigos que fossem negligentes e enterrassem
qualquer defunto sem a devida encomendação e acompanhamento seriam severamente
castigados ao livre arbítrio da instituição eclesiástica. As constituições determinavam
ainda que no caso de ausência do pároco por qualquer impedimento e não havendo
nomeado qualquer sacerdote para substituí-lo, a encomendação e o acompanhamento do
defunto poderiam ser realizados, concluindo o ritual com o enterro do defunto sem a
assistência do mesmo 115.
Portanto, tal rito não se tratava de um sacramento, porque se o fosse só
poderia ser ministrado por alguém que tivesse recebido o sacramento da ordem. Mas
devido à sua importância, assim como o peso que tinha a figura do pároco junto à
comunidade religiosa como representante de Deus entre os fiéis, dificilmente o ritual
das exéquias era realizado sem sua presença 116.

114
PEREIRA, op. cit., pp. 172-3.
115
VIDE, op. cit., Titulo XLV, c. 812,813 e 814, pp. 287-288.
116
BRAVO, op.cit., p. 128. De acordo com Câmara Cascudo a presença do padre era fundamental, pois se
não houvesse o acompanhamento de um sacerdote até o momento do enterro a alma do morto poderia se
330

De acordo com os registros de óbitos da freguesia da Sé, entre 1700 e 1843,


a maioria das encomendações foi realizada em casa ou na igreja. Todas foram
conduzidas por um ou mais sacerdotes. A partir da amostragem da tabela 26, nota-se
que apenas 1% dos crioulos foram encomendados em casa, 2% na igreja e a grande
maioria, 97% não trazia a referência do local de encomendação. Entre os africanos 1,6%
foi encomendado em casa, 6,2% na igreja. Apenas um africano representando menos de
1%, foi encomendado no cemitério (que poderia ser o da Santa Casa da Misericórdia ou
o dos Pretos Novos, este último vigente até 1831). Assim como ocorreu com os
crioulos, a grande maioria dos registros de óbitos dos africanos, ou seja, 92,2% não
trazia referência ao local de sepultamento.

TABELA 26 – ÍNDICE DE LOCAIS DE ENCOMENDAÇÃO DOS CORPOS POR


ORIGEM
LOCAIS CRIOULOS AFRICANOS TOTAL
N % N % N %
Casa 24 1,0 34 1,6 58 1,4
Igreja 47 2,0 131 6,2 178 4,0
Cemitério - - 1 0,0 1 0,0
Sem referência 2173 97,0 1968 92,2 4141 94,6
TOTAL 2244 100,0 2134 100,0 4378 100,0

FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de


Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).

A partir da análise da tabela 27, percebe-se que a grande maioria dos


crioulos e dos africanos foi encomendada por um sacerdote apenas, representando
75,7% dos indivíduos, entre os crioulos e 73,7% entre os africanos. Analisando a tabela
de forma mais detalhada em termos de números absolutos, nota-se que à medida que vai
aumentando o número de sacerdotes vai diminuindo o número de encomendados. O que
sugere a dificuldade que a maioria dos indivíduos desses dois segmentos teve para ter
acesso a um ritual com mais pompa e prestígio. 16 crioulos e 32 africanos foram
encomendados por 2 a 5 sacerdotes, 23 crioulos e 23 africanos foram encomendados por
6 a 10 sacerdotes. Já o número daqueles que tiveram na encomendação entre 11 e 15
sacerdotes foi bem pequeno, 2 crioulos e 5 africanos. Surpreendente é o fato de nenhum

perder, não acompanhado o corpo, e ficar vagando na terra dando trabalho aos vivos. CASCUDO, op. cit.,
1983, p. 18
331

crioulo ter sido encomendação com o número de 16 a 20 ou de 20 e 23 sacerdotes,


embora apenas dois africanos tenham alcançado tal condição. Isto demonstra que estes
indivíduos conquistaram alguma distinção na sociedade. Uma parcela significativa dos
registros de óbitos, 22,3% entre crioulos e 23,3%, entre os africanos não teve referência
sobre o número de sacerdotes na encomendação.

TABELA 27 – ÍNDICE DO NÚMERO DE PADRES NAS ENCOMENDAÇÕES


DOS CORPOS POR ORIGEM

ENCOMENDADO POR CRIOULOS AFRICANOS TOTAL


N % N % N %
Coadjutor/cônego cura 1699 75,7 1574 73,7 3273 74,8
Coadjutor/cônego cura mais 2 a 16 0,7 32 1,3 48 1,1
5 sacerdotes
Coadjutor/cônego cura mais 6 a 23 1,0 23 1,5 46 1,1
10 sacerdotes
Coadjutor/cônego cura mais 11 2 0,0 5 0,2 7 0,1
a 15 sacerdotes
Coadjutor/cônego cura mais16 a - - 1 0,0 1 0,0
20 sacerdotes
Coadjutor/cônego cura mais 20 - - 1 0,0 1 0,0
a 23 sacerdotes
Coadjutor/cônego cura e vários 6 0,3 - - 6 0,1
sacerdotes
Capelão da Misericórdia - - 1 0,0 1 0,0
Sem referência 498 22,3 497 23,3 995 22,8
TOTAL 2244 100,0 2134 100,0 4378 100,0

FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de


Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).

Fica evidente que entre a maioria dos crioulos e africanos ocorreu uma
encomendação simples, sem pompa. Curiosamente, a maior pompa ocorreu entre os
africanos e não entre os crioulos. Mas no total geral, foram os crioulos que mais
receberam o rito de encomendação, com o total de 1.746, enquanto entre os africanos
foram 1.637; contudo, a distância entre os dois segmentos foi muito pequena. A
proporção entre crioulos e africanos encomendados por apenas um sacerdote foi muito
próxima. Sendo a encomendação uma cerimônia de direto paroquial, pela qual o
sacerdote recebia esmolas para realizá-la, tudo leva a crer que esse elemento do ritual
era acessível aos diferentes segmentos sociais; muito embora nem todos aqueles que
332

fizeram a passagem para o além-túmulo o recebesse, de acordo com número de


ausências de referência ao recebimento do rito. No entanto, é possível que entre este
número de ausências alguns tenham recebido as exéquias e por algum motivo não foi
registrado 117.
Selecionamos alguns casos entre aqueles que tiveram mais sacerdotes na
encomendação, para analisarmos o que os distinguia dos demais. Entre os crioulos,
temos o caso de Pascoa Maria Nogueira, crioula forra, solteira, faleceu em 27 de
dezembro de 1820, recebeu todos os sacramentos, foi amortalhada no hábito de Santo
Antônio, encomendada em casa por dez sacerdotes e acompanhada em enterro pelos
mesmos para igreja de Nossa Senhora do Rosário, onde foi sepultada e fez testamento.
Este é um caso típico de uma crioula que conquistou distinção social. Infelizmente, as
poucas informações que temos sobre ela são do registro de óbito. Não tivemos acesso ao
seu testamento, pois o mesmo não constava junto ao óbito. O que nos impede de
confirma se participava da irmandade do Rosário ou de outra, se possuía bens e algum
pecúlio acumulado, tudo indica que sim pelo tipo de mortalha usada e a pompa de sua
encomendação 118.
O segundo caso entre os crioulos foi o de Ana Maria da Conceição, crioula
livre, solteira, faleceu em 1822, apenas com o sacramento da extrema-unção. O que
pode ter ocorrido devido à morte repentina. Foi amortalhada no hábito de Santo Antônio
e encomenda na igreja do hospício pelo cônego cura e onze sacerdotes, sendo
acompanhada pelos mesmos em andor. Não ficou claro se ela foi sepultada na igreja do
Hospício, mas é possível que tenha sido. Infelizmente, o registro de óbito não traz
referência se ela fez testamento o que nos ajudaria a entender sua trajetória, pois é mais
um caso de uma crioula que alcançou alguma distinção 119.
O terceiro caso entre os crioulos foi de Ana Luiza, crioula forra, solteira,
faleceu em 1802, foi amortalhada no hábito de Santo Antônio, encomendada por cinco
sacerdotes e acompanhada em procissão pelos mesmos para a igreja de São domingos,
onde foi sepultada. Deixou estabelecido que seu testamenteiro cumprisse com os anuais
“da mesma irmandade de São Domingos, assim como da irmandade Rosário” 120, onde
também era irmã. Seu caso é interessante porque em seu testamento ela pede um enterro

117
BRAVO, op. cit., p. 129.
118
ACMRJ. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé, AP0 160 (1819-1824), p. 31.
119
ACMRJ. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé, AP0 160 (1819-1824), p. 57v.
120
ACMRJ. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé, AP0158, 1797-1812. Testamento de Ana
Luiza, pp.1.
333

simples “sem maior solenidade alguma”. No entanto, foi amortalhada em hábito de São
Santo Antônio, que estava entre os mais caros e foi acompanhada por cinco padres, que
também tinha um custo considerável 121, além de participar de duas irmandades. O que
sugere que tinha algum pecúlio acumulado, pois uma negra pobre não poderia arcar com
tais despesas. Mas infelizmente ela não fez a relação de bens declarando que seu
primeiro testamenteiro e universal herdeiro tinha total conhecimento dos mesmos. É
possível que tenha conquistado uma posição social de relativa importância, questão que
é reforçada com a escolha dos testamenteiros, benfeitores e administradores de seus
bens, conforme podemos ver: em primeiro lugar ela optou por João Gonçalves Santiago,
seu universal herdeiro, que era anspeçada 122 do Primeiro Regimento de Linha da Praça
da cidade do Rio de Janeiro; em segundo pelo quartel-mestre 123 do mesmo regimento,
Domingos Alves e, em terceiro, pelo tenente de milícias João Rodrigues Botelho, aos
quais ela delegou plenos poderes constituindo-os seus procuradores, o que sugere ter
tido uma relação mais íntima com os mesmos 124.
Entre os africanos, temos três casos bem interessantes. O primeiro caso é o
de Antônio Luiz Soares, preto forro, nação Mina, casado. Faleceu em 27 de janeiro
de1755, foi encomendado pelo reverendo cura e doze padres e foi amortalhado em um
lençol. Fato este que chama a atenção, pois não se trata de um caso em que o morto não
tinha condições, mas ao contrário poderia ter feito uso de uma mortalha mais cara e
luxuosa. Portanto, a opção pelo lençol pode ser para expressar uma tentativa de
demonstrar humildade. Embora o corpo tenha sido conduzido em uma rede, foi
depositado no esquife da irmandade de São Domingos, além da presença dos treze
padres para encomendação pedia a presença de todos os irmãos de suas irmandades com
todas suas cruzes. Embora não tenha dito quantas irmandades, tal afirmativa é suficiente
para percebemos à pompa empregada no rito. Lembrava aos juízes e mais irmãos da
mesa que encomendassem sua alma “a Deus Nosso Senhor” e que cada uma de suas
irmandades como de costume mandassem fazer “todos os sufrágios costumados que
fazem aos irmãos ao falecerem”. Nota-se que Antônio não era um preto qualquer, pois
tinha prestígio e se destacava entre os irmãos. E não era para menos, pois além de ter
121
Para conhecer maiores detalhes sobre o preço das encomendações cf. BRAVO, op. cit., 4, p. 135.
122
Posto militar da classe das praças, existente nas forças armadas de diversos países do mundo, bem
como em forças de segurança e outras organizações militares ou paramilitares.
123
Oficial responsável pelo alojamento das tropas, recepção e distribuição de fundos pelos corpos,
supervisionado por um conselho administrativo militar.
124
ACMRJ. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé, AP0158, 1797-1812. Testamento de Ana
Luiza, pp.1.
334

sido juiz e procurado tinha servido em todos os cargos da irmandade do patriarca São
Domingos. O que nos leva a supor que o morto devia gozar de uma boa reputação, além
da posição de liderança entre os irmãos. Assim, rogava ao irmão juiz e mais irmãos da
mesa que lhe dessem sepultura e cumprissem com todos os sufrágios necessários.
O segundo caso é o de Joanna Pinta, preta forra de nação Benguela, que
faleceu em 1802, recebeu o sacramento da extrema-unção por não poder falar por causa
da doença, foi amortalhada com o hábito de Santo Antônio e encomendada por vinte
sacerdotes. Infelizmente o registro de óbito não trazia a informação do local onde foi
sepultada, mas pelo fato ter “conduzida processionalmente com os mesmo para esta
freguesia”. Possivelmente tenha sido enterrada na matriz, que nessa época era a igreja
de Nossa Senhora do Rosário, pois era comum os registros de óbitos virem com a
expressão “sepultada nesta freguesia” o que indicava a igreja matriz. O que me leva
suspeitar que talvez fizesse parte da irmandade do Rosário. Seu caso nos ajuda a
entender que possivelmente outros benguelas tenham feito testamento e conquistaram
certa distinção social. Era casada com o Alferes do Regimento de Milícias dos pretos,
que poderia lhe possibilitar uma posição de destaque em relação aos demais os pretos. O
fato de ter usado habito de Santo Antônio, encomendada e acompanhada e procissão por
vinte sacerdotes, que lembra os cortejos festivos citados por João Reis 125, demonstra
que não era uma negra comum e que tinha certa representatividade social. Devido a
todo esse aparato fúnebre, é provável que possuísse bens e tivesse algum pecúlio
acumulado. No registro de óbito consta que ela redigiu testamento, mas não se
encontrava no livro de registros dos mesmos. Assim sendo, não há como saber se
Joanna realmente foi sepultada na Igreja do Rosário, se teria sido filiada a irmandade do
mesmo nome ou em qualquer outra. No entanto, não há dúvida que com todo esse
aparato este é um caso de pompa fúnebre que a distingue dos demais pretos africanos
forros 126.
A já citada Cristina de Almeida, preta forra, nação Mina, casada, faleceu em
5 de julho de 1751, recebeu apenas o sacramento da extrema-unção por morrer de
repente. Fez testamento, o que permite que conheçamos um pouco melhor sua trajetória.
Entre os seus testamenteiros, benfeitores e procuradores estavam os irmãos de sua
irmandade Nossa Senhora do Rosário. Declarou que de seu casamento com Domingos
Fernandes, teve um filho, que já havia falecido, assim como, seu marido. Mas teve outro

125
REIS, op. cit., 1991, p. 137-170.
126
ACMRJ. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé, AP0158, 1797-1812.
335

“filho chamado João Garcia do Lago, que se encontrava em Goa, na Índia, que instituiu
como seu legitimo herdeiro. Fez questão de frisar que o filho era pardo; o que o
distanciava do passado escravista. Em seu testamento declarou que possuía 4 moradas
de casas térreas, 3 escravos, 6 cordões de ouro, 2 pares de brinco, 4 pares de botões e 10
botões de colete, todos de ouro, 1 imagem de N. Sra. da Conceição e 1 fio de contas,
alguns colares de ouro que não especificou quantidade, “e mais uma volta de cordão de
ouro” que deixou para seu primeiro testamenteiro, mais nove dobras, que somavam a
quantia de 115 mil réis para pagar saldar um empréstimo que tinha feito com ele. Tinha
dividas com outras pessoas que ordenou que se pagasse. Deixou quantias em dinheiro,
joias e outros bens para diversas pessoas. Como irmã de N. Sra. do Rosário, pediu 400
missas pela sua alma, 50 missas de corpo presente e 10 missas pela alma de seus
escravos falecidos. Solicitou que seu corpo fosse encomendado e acompanhado pelo
pároco com 30 padres juntamente com seus irmãos da Irmandade do Rosário, em cuja
igreja foi enterrada, usando a mortalha de São Francisco. Pediu 31 sacerdotes em sua
encomendação, mas só teve de fato, 23. Não sabemos por qual motivo, mas é possível
que fosse esse o número de sacerdotes disponíveis no momento. Mas o que queremos
demonstrar aqui é a pompa com que se deu seu funeral.
Este é mais um caso de uma preta forra que prosperou e alcançou distinção
entre pretos africanos em geral. De acordo com Sheila de Castro Faria essas pretas
forras de origem mina em geral eram aquelas que conseguiam depois dos homens
“brancos” conquistarem as maiores fortunas. Construíam suas fortunas através de suas
próprias agências, indústrias e trabalhos, formavam a primeira classe das quitandeiras e
dominavam o comércio de retalho. Essas “damas mercadoras” construíram uma riqueza
fabulosa, possuíam vários bens, joias, casas. Sua escravaria era 95% feminina.
Deixavam sua herança para suas ex-escravas, suas crias, para suas irmandades ou para
salvação de suas almas 127. Com base na tabela 28, observa-se que de acordo com a
condição social do morto entre os livres ocorreu a maior quantidade de encomendações:
16,3%, contra 11,3% entre os forros e 3,5% entre os escravizados. Entre os livres 4,6%
foi encomendado em casa, 0,1% em casa e na igreja e 11,6% na igreja. Entre os forros,
4,6% foi encomendado em casa, 6,7% na igreja e apenas um indivíduo foi encomenda
em outra freguesia. Entre os escravizados, 0,1% foi encomendado em casa e 3,4% na
igreja e um indivíduo foi encomendado no cemitério. O índice de ausências de

127
Cf. FARIA, op. cit., 2004.
336

referências ao local de encomendação foi altíssimo entre os três segmentos, sendo


83,7% entre o livres, 88,7% entre os forros e 96,5% entre os escravizados.

TABELA 28 – ÍNDICE DE LOCAIS DE ENCOMENDAÇÃO DOS


CORPOS POR CONDIÇÃO SOCIAL
LOCAIS LIVRES FORROS ESCRAVOS TOTAL
N % N % N % N %
Casa 303 4,6 110 4,6 5 0,1 418 3,2
Em casa e na igreja 7 0,1 - - - - 7 0,0
Igreja 757 11,6 162 6,7 136 3,4 1055 8,2
Cemitério - - - - 1 0,0 1 0,0
Na freguesia de Guaratuba - - 1 0,0 - - 1 0,0
Sem referência 5467 83,7 2144 88,7 3852 96,5 11463 88,6
TOTAL 6534 100,0 2417 100,0 3994 100,0 12945 100,0

FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de


Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).

A partir da tabela 29, com o índice da quantidade de padres na


encomendação de acordo com a condição social, nota-se que entre os livres, forros e
escravizados ocorreu situação semelhante a dos crioulos e africanos. Ou seja, a grande
maioria foi encomenda por apenas um sacerdote, sendo que entre forros e escravizados
o índice foi três vezes mais que entre os livres, assim temos: 21,8% entre os livres,
62,9% entre os forros e 77,6% entre os escravizados. Portanto, fica evidente que foi
entre os livres que ocorreu o maior número de encomendações com pompa; o que
sugere que tal situação era privilégio de uma pequena elite. Com isso não quero afirmar
os escravizados não tenham conquistado algum privilégio que os diferenciasse, criando
uma certa hierarquia entre a escravaria, possibilitando o surgimento de uma “elite
escrava” no interior das senzalas, formada por cativos que tinham laços consanguíneos,
de compadrio, ou de alianças outras com os senhores, que lhes possibilitavam certas
conquistas que os diferenciava do restante da escravaria, como por exemplo a
participação nas irmandades religiosas que lhes garantiriam uma sepultura no interior de
uma igreja 128.

128
RODRIGUES, Claudia. Morte e rituais fúnebres. In SCHWARCS. Lilia Moritz e GOMES, Flavio dos
Santos. (orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 325.
Para o conceito de “elite das senzalas” veja FRAGOSO, João. Elite das senzalas e nobreza da terra numa
sociedade rural do Antigo Regime nos trópicos: Campo Grande (Rio de Janeiro), 1704-1741. In
337

Analisando a tabela em números absolutos, observa-se que entre aqueles


que tiveram entre 2 a 5 padres na encomendação, 132 eram livres, 40 eram forros e 8
eram escravizados. Entre aqueles que foram encomendados por 6 a 10 padres percebe-
se que a distância entre livres, forros e escravizados é maior ainda, sendo o número de
livres (691), o que representa três vezes mais a quantidade de forros (174), e trinta e
quatro vezes mais que o número de escravizados (20), que tiveram a mesma quantidade
de sacerdotes na encomendação. À medida que aumentava o número de sacerdotes
diminuía o número de encomendados nos três segmentos. Mesmo sendo pequeno, o
número de livres que foram encomendados com maior pompa permaneceu maior que o
de forros e escravizados 83 livres foram encomendados por 16 a 20 e 21 e 25
sacerdotes, enquanto entre o forros foram 2 e nenhum entre os escravizados, assim
como, nenhum forro e nenhum escravizado foi encomendado com número entre 26 a 31
e 39 a 50 sacerdotes. Entre os livres foram apenas 8 indivíduos, confirmado que
somente aqueles que tinha mais condições econômicas, tinham acesso a rituais mais
pomposos. Observamos que mesmo de forma tímida os forros tentavam se a aproximar
do segmento livre em busca de distinção social e ao mesmo tempo afastar-se do mundo
do cativeiro, conforme já constatamos neste trabalho.
Os casos de Antônio Luiz Soares, Joana Pinta e Cristina Almeida, já
analisados, são exemplos de pompa no ritual entre forros. Como o que nos interessa é
analisar as vivências da morte e do morrer entre os africanos e seus descendentes,
analisaremos o óbito de três escravizados que tiveram o maior número de sacerdotes no
rito de encomendação. Vejamos os casos de Thereza, polucena e Maria de Araújo.
Thereza tinha onze anos e meio de idade quando faleceu em 4 de março de 1822, já
Polucena faleceu em 19 de agosto de 1841, não teve sua idade registrada. Ambas foram
amortalhadas em hábito de Nossa Senhora da Conceição, confirmando a prática de se
inumar as mulheres e as meninas no hábito desta santa, foram encomendadas por doze
sacerdotes, sendo que Thereza foi encomendada na igreja de Santa Efigênia, onde foi
sepultada, enquanto Polucena foi encomendada em casa e acompanhada para a igreja de
Nossa Senhora da Conceição onde foi sepultada. Como não há referência aos pais no
registro óbito de ambas, possivelmente as providências de seus funerais foram tomadas
por suas respectivas senhoras, pois sendo ambas cativas não poderiam arcar com os
custos do pomposo funeral. Sabemos que uma parcela dos escravizados tinha como

FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima. O Brasil colonial 1720-182. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, volume 3, 2014. pp. 241-305.
338

atividade o trabalho ao ganho, o que lhes permitia bancar um funeral mais pomposo,
mas no caso de uma menina doze anos de idade seria improvável que tivesse um pecúlio
acumulado para tamanha pompa. Já o caso de Thereza, o fato de ter sido encomendada
na igreja de Santa Efigenia é possível que seja filiada à irmandade do mesmo nome ou
ainda a de Nossa Senhora dos Remédios que tinha como uma das suas principais
funções prestar assistências aos seus irmãos. O terceiro caso é o de Francisco de
Chagas, escravo do capitão Silvestre Moreira Claro, que faleceu em 16 de janeiro de
1822. Foi amortalhado em hábito de São Antônio, encomendado por onze sacerdotes e
acompanhado pelos mesmos para igreja de São Domingos onde foi sepultado. É
possível que Francisco fosse irmão da irmandade de São Domingos e a mesma tenha
providenciado o seu funeral, pois no registro de óbito não havia informação se tinha
pais, esposa ou outros parentes que pudessem tomar tais providências. Ou seu funeral
pode ter sido providenciado também pelo senhor, pois ter seus escravizados inumados
com esplendor dava status e poder aos senhores 129.
Com toda certeza estes foram casos de escravizados que se diferenciaram na
hierarquia social entre os demais cativos da cidade. A diferença entre ter a participação
de um ou vários sacerdotes na encomendação e acompanhamento dependia da condição
social do morto. Indivíduos livres e pertencentes à elite colonial tinham maiores
condições econômicas para garantir um maior número de sacerdotes em suas
cerimônias, os forros que conseguiam ascensão econômica e social almejavam obter
rituais faustosos aproximar do mundo do livres, afastando-se do mundo do cativeiro,
pois este era objetivo da sociedade, mas vimos que seria possível aos escravizados
obterem funerais suntuosos, pois na morte de uma forma geral todos buscavam alguma
pompa.

129
Veja BRAVO, op. cit., pp. 125-136.
339
340

TABELA 29 – ÍNDICE DO NÚMERO DE PADRES NAS ENCOMENDAÇÕES DOS CORPOS CONDIÇÃO SOCIAL
ECOMENDADO POR LIVRES FORROS ESCRAVOS TOTAL
N % N % N % N %
Coadjutor/cônego cura 1426 21,8 1519 62,9 3096 77,6 6041 46,7
Coadjutor/cônego cura mais 2 a 5 sacerdotes 132 2,0 40 1,8 8 0,2 180 1,4
Coadjutor/cônego cura mais 6 a 10 sacerdotes 691 10,6 174 7,3 21 0,5 886 6,9
Coadjutor/cônego cura mais 11 a 15sacerdotes 279 4,3 19 0,7 3 0,0 301 2,4
Coadjutor/cônego cura mais 16 a 20sacerdotes 41 0,7 1 0,0 - - 42 0,3
Coadjutor/cônego cura mais 21 a 25 sacerdotes 42 0,7 1 0,0 - - 43 0,3
Coadjutor/cônego cura mais 26 a 31 sacerdotes 5 0,0 - - - - 5 0,0
Coadjutor/cônego cura mais 39 a 50 sacerdotes 3 0,0 - - - - 3 0,0
Coadjutor/cônego cura e vários sacerdotes 38 0,6 2 0,0 1 0,0 41 0,3
Capelão da Misericórdia - - - - 1 0,0 1 0,0
Sem referência 3877 59,3 661 27,3 864 21,7 5402 41,7
TOTAL 6534 100,0 2417 100,0 3994 100,0 12945 100,0

FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
341

Em muitos casos a encomendação era seguida de acompanhamento até o


local da sepultura. Este era um momento de grande visibilidade nos rituais fúnebres,
pois o cortejo fúnebre poderia ser acompanhado por uma quantidade considerável de
pessoas: familiares; amigos; os irmãos da confraria, se o morto fosse membro de uma
ou mais irmandades, como vimos no caso do preto forro Antônio Luiz Soares; além do
pároco e demais sacerdotes que dirigiam o cerimonial 130. Todos que estavam
decentemente vestidos e passassem nas imediações da casa do falecido eram convidados
a pegar uma tocha e seguir o cortejo, pois o objetivo era impressionar os
espectadores 131. Segundo João José Reis, o funeral era vivido como um ritual de
descompressão e era tão mais eficaz quanto maior a difusão de signos, quanto mais
gestos e objetos simbólicos fosse capaz de produzir. E quanto mais gente pudesse
acompanhá-lo, pois a “pompa dos funerais antecipava o feliz destino imaginado para o
morto e, por associação, promovia esse destino” 132.

Para as irmandades em geral a pompa fúnebre era parte central na condução


do ritual fúnebre, portanto cuidavam para que seus membros, ricos ou pobres tivessem
enterros solenes, embora os ricos buscassem com frequência torná-los mais suntuosos.
Através dos compromissos, as irmandades se comprometiam a acompanhar
solenemente os seus irmãos à sepultura. Muitas se comprometiam também em
acompanhar os parentes dos irmãos. Todos os membros vivos eram obrigados a
acompanhar os cortejos fúnebres dos irmãos falecidos devidamente paramentados com
suas vestes, velas, tochas e vários outros emblemas da irmandade, pois tal ritual de
solidariedade para com os mortos estava associado à ideia de que uma boa morte nunca
seria solitária e desprovida de cerimônia 133.
Podemos perceber que as confrarias levavam muito a sério esse dever, pelo
fato de em seus compromissos dedicarem vários capítulos sobre o tema. Na irmandade
de Nossa Senhora da Lampadosa, a preocupação com acompanhamento e sufrágios aos
mortos aparece registrado em cinco capítulos do seu compromisso de 1740. Já
irmandade Santo Elesbão e Santa Efigênia em seu compromisso de 1740 foram
dedicados seis capítulos ao tema estabelecendo regras e normas para o
acompanhamento fúnebre. Nos capítulos décimo primeiro e terceiro estabelecia que

130
BRAVO, op. cit., p. 131; BRAGA, op. cit., p. 155.
131
DENIS, Fedinand. O Brasil... Apud 131 REIS, op. cit., 1991, p. 139.
132
REIS, op.cit., 1991, p. 138.
133
Idem., 1991, p. 144.
342

“falecendo um irmão desta irmandade, sua esposa ou seus filhos” deveriam se juntar
todos os irmãos para saírem acompanhado o corpo do defunto, juntamente com o padre
capelão, o juiz com sua vara, e na falta deste o escrivão tesoureiro ou o procurador “e
assim farão os irmãos suas alas mui compostas e depois de enterrado o defunto se
recolherão na mesma forma para a Igreja”. 134
A irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens
Pretos em seu compromisso de 1759 dedicou dezessete parágrafos ao tema, o que
demonstra como a confraria levava a sério obrigação de acompanhar e dar enterro
solene aos irmãos falecidos e a seus parentes. No capítulo oito, parágrafo vinte seis,
estabelecia que a irmandade tinha obrigação de acompanhar e dar sepultamento para os
irmãos falecidos, sua esposa e seus filhos legítimos, estando estes debaixo de seu pátrio
poder e sendo filhos naturais, só lhes daria sepultura 135. No capítulo doze, parágrafo 34,
determinava que todos os irmãos eram obrigados a comparecer em todas as procissões,
festividades e enterros dos irmãos, conforme texto.

[...] serão também obrigados todos os Irmãos desta Irmandade


não estando antes ou legitimamente empedidos; por serviço de
Nossa Irma. acontecer para todos os actos de prossisõez e
festividades a que a Irmandade hé obrigada, etambem aos
enterros dos nossos Irmãos defuntos, carregando-os, e dando-
lhes sepulturas como heobrigação, e não faltando a nenhum
deles quando da parte do Juiz forem chamados. 136.

A confraria Nossa senhora dos Remédios, estabelecida na Capela de Santa


Efigênia, no ano de 1788, com o objetivo de prestar assistência a seus irmãos nacionais,
que se encontrassem “em necessidade extremas com botica, enfermeiro, comida e até
mortalha, se Deus os leva para si” 137. Estabelecia de forma detalhada em oito capítulos
do seu compromisso as normas para acompanhamento e sepultamento dos irmãos. No
capítulo quatorze determinava que o principal objetivo da instituição da irmandade foi
para prestar caridade e acompanhamento dos irmãos que morressem e conclamava que

134
Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Efigênia do Rio de Janeiro. Museu do Negro. Capitulo
13.
135
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos do Rio
de Janeiro. Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa – AHU/CU. Códice 1950. Capitulo 8 parágrafo 26.
136
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos do Rio
de Janeiro. Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa – AHU/CU. Códice 1950. Capitulo 12, parágrafo
34.
137
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios (1788). Arquivo Histórico Ultramarino
de Lisboa – AHU/CU. Códice 1300, p. 2.
343

os irmãos não faltassem a tão piedoso ato. Mas, aquele que faltasse sem uma causa
legítima seria multado em 120 réis para as despesas da irmandade. Tais atitudes por
partes das confrarias de pretos africanos e seus descendentes para prestar assistência aos
irmãos e seus familiares reforçam a ideia de que estas confrarias ao praticar a caridade
aos irmãos nacionais estavam também reforçando os laços de sociabilidade e
solidariedade entre seus membros que garantia que os irmãos fossem bem assistidos no
processo de preparação do bem morrer.
Fazia parte também das responsabilidades das irmandades estabelecidas em
seus compromissos arcar com despesas de missas de corpo presente e pela alma dos
irmãos falecidos, que estavam no Purgatório. As Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia estabeleciam que as irmandades mandassem regularmente rezar
missas pelas almas dos irmãos vivos e falecidos, conforme os recursos que cada uma
delas possuísse. As confrarias não só acataram as recomendações, mas foram além, pois
sem exceção mandavam rezar missas pela alma de cada um dos seus membros
falecidos. Embora não tivessem tantos recursos quantos as confrarias de brancos da
elite, as confrarias de negros africanos e seus descendentes não deixaram a alma de seus
confrades desamparada.
O capitulo 19 parágrafo 45 do compromisso da irmandade de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos de 1759, estabelecia a
obrigatoriedade desta confraria mandar rezar missas pela alma dos confrades falecidos e
estabelecia uma hierarquia dos sufrágios fúnebres que gozariam os irmãos de acordo
com o cargo exercido: aos reis e rainhas 26 missas, os juízes e juízas de Nossa Senhora
e São Benedito 24 missas, escrivão tesoureiro, procurador e juízas de ramalhete 16
missas, aos irmãos da mesa 12 missas e aos irmãos que não haviam exercido nenhum
cargo 10 missas. Os irmãos gozariam ainda de uma missa rezada aos sábados de todos
os anos com ladainha a Nossa Senhora, e outra aos domingos dedicada a São Benedito,
rezada pelos capelães da irmandade no altar de Nossa Senhora do Rosário. A irmandade
devia mandar rezar outras missas nos dias de Nossa Senhora da Conceição, da
Purificação, da Anunciação, de São Domingos, de Nossa Senhora da Assunção, da
Natividade, do Rosário. No dia de Natal mandariam rezar três missas, a qual os irmãos
deveriam assistir vestidos com suas opas brancas com tochas acesas nas mãos.
344

Recomendava aos juízes que dessem assistências a estas missas, principalmente os que
fossem da mesa, e gozariam do beneficio de uma indulgência na hora da morte 138.
O compromisso da irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia de 1767,
estabelecia que quando falecesse um irmão o procurador e o tesoureiro seriam avisados
para mandarem rezar as missas de corpo presente e pela alma dos irmãos defuntos da
seguinte forma: aos juízes 20 missas, às juízas de ramalhete, ao escrivão tesoureiro e ao
procurador 18 missas, aos membros da mesa 16 missas, ao andador 12 missas e àqueles
que não possuíam cargo 10 missas. A irmandade manifestava o desejo de aumentar os
sufrágios dos irmãos defuntos caso houvesse mais dinheiro de esmolas dos irmãos
vivos 139.
Já a irmandade de Nossa Senhora dos Remédios estabelecia um número
mínimo de 10 missas para cada irmão falecido, por não saber ao certo quanto cada
irmão devoto contribuiria cada vez que fossem pedidas esmolas para os sufrágios. Mas
estabelecia que sempre que houvesse acréscimo deveria se recolher ao cofre. Ao final de
cada semestre deveria ser feito um balanço e se o capital excedesse mais que o dobro de
três capelas de missas, se mandaria rezá-las aos irmãos vivos e defuntos na Capela de
Santa Efigênia, onde haveria na sacristia uma pauta para que os reverendos sacerdotes
assinassem cada vez que fossem celebrar para prestação de contas do procurador 140.
O compromisso da irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa também
estabelecia mínimo de 10 missas pela alma de cada irmão falecido que não tivesse
exercido nenhum cargo. Sendo que juiz ou juíza teria direito a 20 missas por sua alma.
Ao provedor, tesoureiro e escrivão 18 missas, aos irmãos da mesa dezesseis missas e se
alguns destes tiverem servido à confraria em algum cargo receberia 20 missas por sua
alma. A irmandade também se obrigava a rezar todos “os sábados uma missa pelos
irmãos vivos e defuntos e outra todos os meses pelos irmãos benfeitores desta
irmandade as quais missas assistirão dois ou quatro irmãos com suas opas todos
pagando a esmola costumada” 141. Era unânime entre todas as confrarias que as missas
fossem rezadas o mais breve possível para que a alma do morto não padecesse por falta

138
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos do Rio
de Janeiro. Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa – AHU/CU. Códice 1950. Capitulo 19, parágrafo
45.
139
Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Efigênia do Rio de Janeiro. Museu do Negro. Capitulo
13.
140
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios. Arquivo Histórico Ultramarino de
Lisboa – AHU/CU. Códice 1300. Capitulo 16.
141
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa. Arquivo da Torre do Tombo,
Chancelaria da Ordem de Cristo. Livro 291. Capitulo 11.
345

de sufrágio e abreviasse o seu tempo no Purgatório. Por isso, o capitulo onze do


compromisso da irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa determinava que as missas
pelas almas dos irmãos defuntos fossem rezadas com maior brevidade pelo Reverendo
Padre Capelão e que prestasse contas das missas 142. De acordo com os dados até aqui
apresentados, havia entre as confrarias uma hierarquia entre os beneficiados por
sufrágios fúnebres de acordo com o cargo ocupado na irmandade.
O compromisso da irmandade Santo Antonio da Mouraria estabelecia que
para o cargo de juiz e juíza da vara seriam rezadas 20 missas, para os de escrivão,
tesoureiro e procurador 16 missas, para o de juíza do ramo 14 missas, para aqueles que
não haviam servido a irmandade em nenhum cargo receberiam 10 missas por sua alma
pela esmola de 320 réis. Os irmãos vivos e falecidos seriam beneficiados com algumas
missas em dias especiais, como nas quartas-feiras, domingos e feriados, quando a
irmandade mandaria celebrar uma missa pelos irmãos vivos e falecidos pela esmola de
480 réis. No dia 13 de junho, dia do glorioso Santo Antônio de Pádua, o compromisso
determinava que era obrigação da irmandade mandar celebrar seis missas de esmolas de
640 réis, pela intenção dos irmãos vivos e defuntos 143. Observamos que havia um
determinado equilíbrio entre as irmandades de pretos africanos e seus descendentes em
relação à quantidade de missas que eram rezadas em favor dos seus confrades vivos e
mortos o que deixar transparecer que tais irmandades teriam um patrimônio bem
próximo uma das outras.
As missas fúnebres ocupavam boa parte dos compromissos das irmandades
e quase todos os irmãos estavam envolvidos em uma ou outra tarefa relacionada a livrar
as almas do Purgatório e sua passagem para o paraíso celestial. Isso interessava aos
vivos, pois os mortos que alcançassem o paraíso retribuiriam o favor sendo
intercessores pela alma do doador junto ao criador. Enquanto o uso da mortalha, o
acompanhamento (cortejos fúnebres, muitas vezes pomposos) e a sepultura era a forma
como os indivíduos se despediam do mundo dos vivos, era através das missas e da
intercessão dos santos que eles entravam no mundo dos mortos e enfrentavam o
Tribunal Divino com o objetivo de abreviar e até mesmo evitar a passagem pelo
Purgatório. Sendo assim, as missas fúnebres rezadas pelas irmandades não eram

142
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa. Arquivo da Torre do Tombo,
Chancelaria da Ordem de Cristo. Livro 291. Capitulo 11.
143
Compromisso da Irmandade do Glorioso Santo Antonio da Mouraria dos Homens Pretos, ereta na
Igreja da Senhora do Rosário. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro – ANRJ. Códice 825. Capitulo 19,
parágrafos 1º, 2º, 3º, 4º e 5º.
346

suficientes para resgatar as almas do Purgatório, além do mais havia aqueles que não
eram membros de nenhuma irmandade 144.
Este foi o caso do preto forro Pedro Francisco de Araújo, “nação congo”,
viúvo, morador da rua do Cano, faleceu em 23 de março de 1808, recebeu todos os
sacramentos. Foi encomendado pelo reverendo coadjutor e sepultado na igreja da
Lampadosa. Em seu testamento declarou que não tinha irmandade e por isso seria
sepultado na igreja de escolha de seu testamenteiro, que seu corpo fosse envolto em um
lençol e conduzido em uma rede. Determinou que no dia do seu falecimento ou no dia
seguinte fossem ditas 6 missas de corpo presente de esmola de um cruzado 145 cada uma;
que fosse distribuída a quantia de 12$800 réis em missas por sua alma no valor de $320
réis cada uma, celebradas na igreja que seu testamenteiro achasse melhor; o que dava
um total de 40 missas. Determinou ainda que seu testamenteiro mandasse dizer uma
capela de missas por sua alma e a de sua esposa. Embora ele não tenha declarado o
valor da capela de missas (que continha cinquenta missas). Supondo que o valor de cada
missa tenha sido $320 réis teremos um valor de 16$000 réis, que somados aos 2$880
réis mais os 12$800 réis, Pedro Francisco teria gasto um valor de 31$680 réis em missas
pela salvação sua alma. Não era qualquer um que podia fazer esse investimento. A partir
de sua declaração de bens, podemos perceber que Pedro Francisco era um liberto que
prosperou. Declarou que tinha um sítio na freguesia do Pilar, com uma casa coberta com
capim, plantação de arroz e cafezais e “mais arboredos”, pelo qual pagava foro de
3$200 réis ao ano, e que deles nada devia. Declarou que possuía uma escrava que
deixava quartada em uma dobla e que tal quantia deveria ser aplicada em missas pela
salvação sua alma e de sua mulher. Como não tinha herdeiro, Pedro Francisco declarou
que era lícito dispor de sua herança como bem quisesse, portanto, investiu na sua
salvação e na de sua esposa 146.
Assim, era através do testamento, uma das recomendações da Igreja na
preparação da boa morte, que muitos indivíduos em muitos casos a beira da morte
deixavam registradas as suas últimas vontades. Mas seria somente por intermédio das
ações dos vivos que as últimas vontades dos mortos poderiam ser realizadas. Muitos

144
REIS, op. cit., 1991, p. 209.
145
Um cruzado português era igual a $480 réis. Dinheiro do Brasil. Banco Central do Brasil 2ª ed.
Brasília: BCB, 2004, p. 24; AMATO, Claudio; NEVES, Irlei S; RUSSO, Arnaldo. Livro das moedas do
Brasil. São Paulo: s/e, 11ª ed. 2004, p. 106.
146
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0158 (1797-1812). Testamento de Pedro
Francisco de Araújo, p. 269.
347

deixavam seus desejos expressos em testamentos, que mesmo depois do sepultamento


deveriam ser cumpridos através de missas. Observamos que no caso das missas de
corpo presente, Pedro Francisco determinou que fossem ditas no dia do seu falecimento
ou no máximo no dia seguinte, isso por que tais missas deveriam ser rezadas antes do
sepultamento do corpo do morto, elas simbolizavam o desaparecimento definitivo do
indivíduo do convívio entre os vivos. Era, conforme observou João Reis,
verdadeiramente uma cerimônia de separação. Seus pedidos eram bem frequentes entre
os testadores, em geral solicitava-se primeiro as missas corpo presente 147. Isso sugere
uma forte crença na relação entre corpo e alma. Ainda de acordo com João José Reis, as
missas de corpo presente, quando numerosas, deveriam ser celebradas em altares de
várias igrejas, durantes dias. As missas rezadas com o cadáver presente eram mais
longas e mais solenes, enquanto as outras mais comuns, eram mais curtas, duravam no
máximo meia hora, podendo ser celebradas por diversos padres de forma simultânea na
mesma igreja. Eram distribuídas em diversos altares laterais, além do altar-mor. Para a
igreja, as missas celebradas até o sétimo dia eram consideradas de corpo presente 148. Os
indivíduos especificavam em seus testamentos quantas missas seriam de corpo presente,
quantas por sua alma. Logo que se dava o passamento os cristãos desejavam receber as
missas em sua intenção, para que abreviasse a sua permanência no cárcere
purgatorial 149.
Conforme vimos essa era uma das principais preocupações das irmandades
e uma determinação das Constituições Primeiras, que as missas fossem rezadas o mais
breve possível para que a alma do morto não padecesse no Purgatório por falta
sufrágios. Pois era coisa louvável e piedosa socorrer com sufrágios a alma dos defuntos,
para que o mais breve possível se vissem livres das penas temporárias que sofriam e
encurtasse o seu tempo de purgação. E para aquelas que já estivessem na presença de
Deus, aumentasse a sua gloria. Nesse aspecto, as missas fúnebres tinham uma grande
importância dentro da economia material e simbólica da Igreja. As Constituições
Primeiras exortavam enfaticamente os fiéis que provassem sua fé deixando em
testamento o maior número de “missas e ofícios conforme sua devoção, e
possibilidade” 150. Este foi o caso de preta forra Antônia Mendes, natural da Costa da
Mina, moradora da freguesia da Sé, casada com Manoel do Rosário. Faleceu em 27 de

147
REIS, op. cit., 1991, p. 210.
148
Idem., 1991, p. 219.
149
Ibidem., 1991, p. 210.
150
VIDE, op. cit., Titulo L c. 834, p. 293.
348

março de 1752, com todos os sacramentos. Seu corpo foi amortalhado em um pano de
linho, encomendo pelo reverendo pároco e sepultado na igreja da Sé 151, de acordo com
o seu registro de óbito. Em seu testamento declarou: “pagas as dívidas do casal, meu
marido e testamenteiro mandará dizer pela minha alma oitocentos missas da esmola de
trezentos e vinte réis” 152. Portanto, para que suas últimas vontades fossem cumpridas
seria necessário uma elevada quantia no valor de 256$000 réis. Não foi possível saber o
valor do seu patrimônio, pois em sua declaração de bens disse apenas que os bens que
possuía eram de uma herança deixada por seu filho de quem era testamenteira, cujos
bens estavam em litígio. Mas podemos presumir que deveria ser uma quantia
considerável, pois deveria pagar as dívidas do casal que eram 34 patacas 153, mais 8$000
réis de um par de brincos empenhado que somariam um total de 18$880 réis, tinha duas
filhas que eram suas herdeiras. Ela declarou que após serem pagas todas as dívidas e
satisfeitos os seus legados, do remanescente de sua terça, instituía seu marido com
herdeiro. O que nos leva a supor que a herança deixada por seu filho era de um valor
considerável 154. Tal situação esta relacionada à crença de quanto maior o número de
missas rezadas na terra pelas almas do Purgatório mais rápido purgariam suas penas e
entrariam no paraíso celeste.
As Constituições Primeiras exortava aos herdeiros e testamenteiros
daqueles que não fizessem pedidos de missas e ofícios por suas almas, que estes o
fizessem corrigindo a falta do morto pelo bem de sua alma. Esta situação se aplicava
principalmente para aqueles que morressem sem fazer testamento. Recomendava aos
párocos que haviam cuidado da alma de seus fregueses em vida, que cuidassem delas
também na morte. Morrendo alguma pessoa ab intestato que pressionasse a família
desse defunto que mandassem rezar pelo menos missas de corpo presente, de mês e de
ano, considerando a qualidade da pessoa, possibilidade da fazenda, e número de

151
A Igreja da nesse período até 1808 era a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos
Homes Pretos, conforme vimos no capítulo 3.
152
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0155 (1746-1758). Testamento de
Antonia Mendes, p. 220.
153
A pataca era uma moeda de prata, com o valor de 320 réis que foi emitida pelo governo português até o
século XIX. As patacas foram às moedas que por mais tempo circularam no país – de 1695 a 1834. A
série era composta por moedas de 20, 40, 80, 160, 320 e 640 réis. O valor de 320 réis – pataca – deu
nome à série. Pesava 8,96 gramas (em média) com teor de prata de 917 por mil. De 1810 a 1834, foi
também cunhada uma outra moeda de prata, que valia 960 réis ou 3 patacas – o chamado patacão. Já a
moeda de 160 réis está na origem da expressão popular de meia-pataca, que designa alguma coisa de
pouco valor ou de má qualidade. A série chegou a ser cunhada no Brasil até 1821, nas casas da moeda de
Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais. AMATO, Claudio; NEVES, Irlei S; RUSSO,
Arnaldo. Livro das moedas do Brasil. São Paulo: s/e, 11ª ed. 2004, p. 106.
154
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0155 (1746-1758). Testamento de
Antonia Mendes, p. 220
349

herdeiros, obrigando-os que assim o cumpram 155. De acordo com João José Reis, era
considerado perigoso deixar os mortos sem missas. A ausência de sufrágios,
principalmente as missas poderiam fazer surgir almas penadas para atormentar os vivos.
Podiam exigir varias coisas dos vivos, mas seus pedidos concentravam-se em: sepultura,
confissão, orações e principalmente missas. Assim, a tradição popular estava em
consenso com a doutrina da Igreja, que instituía o sacrifício da missa como o recurso
mais adequado ao resgate das almas do purgatório 156. Adalgisa Arantes Campos
observou que no catolicismo barroco em geral a missa era vista como instrumento de
salvação 157. Isso pode explicar o porquê dos pedidos de uma imensa quantidade de
missas por parte dos testadores em nosso caso particularmente entre os testadores
africanos e seus descendentes, como no caso de Antonia Mendes.
A partir da leitura dos testamentos podemos perceber que raramente alguém
se esquecia de estabelecer a quantidade de missas fúnebres em favor de sua alma e de
outras pessoas do seu convivo. Entre os 92 testamentos por mim analisados apenas 3
não apresentaram solicitação de missas. O que demonstra uma grande preocupação por
parte dos testadores africanos e crioulos forros com a salvação da alma. Embora a
maioria não tenha estabelecido uma quantidade elevadíssima de missas, como a já
citada Antonia Mendes, sem dúvida apresentam uma quantidade bastante significativa
tratando-se de negros africanos e crioulos forros, atestando caráter soteriológico de tais
testamentos, atendendo as exigências da legislação eclesiástica.
Dois casos já aqui citados são bastante emblemáticos nesse sentido. O
primeiro é o da preta forra natural da Costa da Mina, Cristina de Almeida, que
estabeleceu em seu testamento que fossem ditas por sua alma 460 missas de esmola de
$320 réis cada, dentre as quais 10 pela alma de seus escravizados já falecidos. A preta
Cristina de Almeida investiu na salvação de sua alma e de seus escravizados um valor
considerável de 144$000 réis. Conforme já vimos, um valor que só poderia ser pago por
alguém de posses. O segundo caso é o do Capitão Ignácio Gonçalves do Monte, rei dos
makis. Deixou estabelecido em seu testamento um total de 140 missas a serem rezadas
em prol de sua alma e da de várias pessoas, no valor de 46$400. Vejamos outros casos.
A crioula forra, Mariana Francisca da Conceição, faleceu em 20 de agosto
de 1756. Em seu testamento deixou estabelecido que no dia do se falecimento se

155
VIDE, op. cit., Titulo L c. 835 e 836, p. 293.
156
REIS op. cit., 1991, p. 204.
157
CAMPOS, Adalgisa Arantes. As irmandades de São Miguel e as almas do Purgatório: culto e
iconografia no Setecentos mineiro. Belo Horizonte. M.G. Editora C/Arte, 2013, p. 82.
350

dissesse por sua alma 30 missas de corpo presente a serem ditas: 10 na igreja da Sé, 10
na igreja do Hospício dos pardos onde deveria ser enterrada e 10 na igreja da
Candelária. Deixou também 20 missas pela alma de seu pai e de seu marido, que fossem
ditas na igreja onde ela fosse sepultada de uma pataca cada uma. Deixou também mais
duas missas “da mesma esmola” por uma intenção particular que devia, mas se caso esta
já estivesse satisfeita que fossem aplicadas em favor de sua alma. Embora o número de
missas pedido por Mariana Francisca seja menor em relação aos casos vistos até aqui.
Seu caso é interessante porque tem uma riqueza de detalhes. Declarou que não tinha
herdeiros ascendentes ou descendentes e por isso instituiu sua alma por universal
herdeira, pediu para seu corpo ser amortalhado no habito de São Francisco e sepultado
na igreja de Nossa Senhora da Conceição do Hospício dos Pardos em sepultura mais
próxima a porta principal, levada à sepultura em esquife e acompanhada pela mesma
irmandade a qual deixava a esmola de 25$600 réis. Que seu “corpo fosse encomendado
pelo reverendo pároco da freguesia da Sé, onde ela residia, e por ele fosse acompanhado
com mais 20 sacerdotes para a sepultura e que se desse a esmola costumada com vela de
meia libra”. Pediu ainda que seu corpo fosse “acompanhado pelos Meninos Órfãos do
Colégio de São Pedro a quem se desse a esmola costumada, e a cada um uma vela de
quarta”. Deixou a “Senhora Santana duas velas de libra na mesma Capela do Hospício
dos Pardos”. A partir desses dados, percebe-se que ela havia prosperado
financeiramente. Mas afirmou que sua declaração de bens seria feita em juízo e não
especificou o motivo. Depois de realizado seu funeral, pagas suas dívidas, o que
restasse de seus bens seu testamenteiro converteria em missas em prol de sua alma 158.
A crioula forra, Marcelina Penha, solteira, natural da cidade da Bahia,
faleceu em 23 de outubro de 1756, era filiada na irmandade de Nossa Senhora das
Mercês e Nossa Senhora da Lampadosa, em sua disposições testamentárias estabeleceu
o seguinte: no dia do seu falecimento lhe seriam ditas 10 missas de corpo presente no
valor de $400 réis cada, sendo 5 na freguesia da Sé e as outras 5 na igreja de Nossa
Senhora do Parto, onde pediu para ser sepultada. Declarou que por sua alma seu
testamenteiro mandaria dizer 4 capelas de missas a saber: “em Santo Antônio uma

158
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0155 (1746-1758). Testamento de
Mariana Francisca da Conceição, p. 346 verso
351

capela, outra no Convento de Nossa Senhora do Carmo, e outra no Convento do


Hospício, e outra na minha Freguesia da Sé, e se dará a esmola costumada” 159.
José Soares, preto forro, casado com Felipa Pinto de Faria, faleceu em 23 de
maio de 1757. Declarou em seu testamento que no dia do seu falecimento seus
testamenteiros mandassem dizer por sua alma 25 missas de corpo presente a esmola de
$400 réis cada, 2 missas ao “glorioso” São José, 2 a São Francisco de Paula e 2 as bem
aventuradas almas, todas a esmola de $320 réis cada. Declarou também, que se
dissessem 10 missas pelas almas de seus escravos à esmola de $320 réis cada uma.
Declarou que se dissessem mais 100 missas por sua alma à esmola de $320 réis cada e
destas se concedesse uma capela a seu reverendo pároco. Observa-se aqui que os
pedidos de missas não eram feitos somente para a própria alma, mas em geral parentes,
amigos, ex senhores, escravos, parceiros de negócios. Lembravam-se também dos
santos e anjos, sacerdotes entre outros, mas nem sempre se lembravam das almas do
Purgatório. Era fundamental lembrar-se da alma desses defuntos, pois estes podiam
auxiliar a alma do novo defunto 160. Observa-se que o preto forro José Soares e a preta
mina Cristina de Almeida não se esqueceram da alma de seus escravizados. Assim
como havia libertos que na hora da morte dedicavam missas a seus ex-senhores, havia
senhores que lembravam de seus escravizados na hora da morte. 161 Conforme observou
João José Reis uma espécie de jogo de reciprocidade na hora da morte. “Libertos
pagavam com missas os bons tratamento de ex senhores e estes os bons serviços
prestados por seus finados escravizados” 162. As Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia recomendava aos senhores não deixassem desamparados na hora
da morte seus escravizados que haviam tanto lhes servido em vida:
E porque é alheio da razão e piedade Christã, que os Senhores,
que se servirão de seus escravos em vida, se esqueção delles em
sua morte, lhes encommendamos muito, que pelas almas de seus
escravos defuntos mandem dizer Missas, e pelo menos sejão
obrigados a mandar dizer por cada um escravo, ou escrava que
lhe morrer, sendo de quatorze annos para cima, a Missa de corpo
presente, pela qual se dará a esmola costumada 163.

159
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0155 (1746-1758). Testamento de
Marcelina da Penha, p. 353 verso.
160
REIS, op. cit., 1991, p, 211.
161
Cf. SOARES DE SOUSA, op. cit., 2009, pp. 85-134.
162
REIS, op. cit., 1991, p, 213.
163
VIDE, op. cit., Titulo L c. 838, p. 294
352

No entanto, muitos senhores deixavam muito poucos sufrágios em forma de


missa para seus cativos, de acordo com as Constituições Primeiras era um ato caridoso
e obrigação o senhor deixar ao menos uma missa de corpo presente por cada escravo
falecido com mais de 14 anos, já que em vida este trabalhou para si.
Outro aspecto que merece atenção é que enquanto os testadores podiam
especificar os locais onde as missas por sua alma fossem rezadas, em geral em sua
freguesia, onde fosse sepultado, na igreja da irmandade ou igreja do santo de sua
devoção, outros deixavam à escolha do seu testamenteiro. João José Reis observou que
tempo e local de sepultamento eram muito valorizados pelos testadores baianos 164. As
missas em favor de parentes, amigos e confrades, de acordo com Adalgisa Campos,
tinham grande valor expiatório: “O envolvimento espiritual dos parentes, amigos e
comunidade confrarial era considerado importante para a purificação das almas.
Supunha-se que os santos eram sensíveis ao apelo dos que rogavam por seu amor” 165.
De acordo com João José Reis, “era notável a solidariedade entre os vivos e os mortos
fundada no parentesco. Os pedidos de missas em favor dos parentes em especial os pais
era sinal de que o culto aos mortos referia-se a noções de ancestralidade” 166. Já em
relação às almas do Purgatório havia quase que uma total insensibilidade da maioria dos
testadores, que estariam mais preocupados com sua própria salvação. João José Reis, ao
analisar 210 testamentos de fiéis baianos entre 1800 e 1836, observou que apenas 5,3%
das missas eram destinadas às almas do Purgatório, ao passo que 39,5% eram destinadas
ao próprio testador, demonstrando que estava preocupado em primeiro lugar com a
salvação da própria alma. De acordo com o autor, “se dependesse dos pedidos dos
testadores, incontáveis almas anônimas do Purgatório, por exemplo, penariam muito
tempo. A maioria das missas rezadas nas igrejas de Salvador a elas dedicadas eram
provavelmente provenientes de doações anônimas depositadas nas caixas de esmola” 167.
Ao analisar os pedidos de missas no setecentos mineiro, Adalgisa Campos
observou que a insensibilidade com as almas do Purgatório não se devia apenas ao
declínio da caridade e sociabilidades tradicionais decorrente da mercantilização da
economia e do utilitarismo, próprios do século XIX. Ela ocorre no âmbito do
catolicismo barroco. Relacionava-se com um tipo de colonização especifico das minas,
pautado no imediatismo decorrente de uma visão pragmática, sintonizada com um

164
REIS, op. cit., 1991, p. 210.
165
CAMPOS, op. cit., 2013, p. 93.
166
REIS, op. cit., 1991, p. 211.
167
Idem., 1991, p. 209 e 217.
353

projeto individual de vida pessoal, expresso claramente nos testamentos mineiros da


segunda metade do setecentos. Ou seja, a preocupação maior era com a salvação da
própria alma 168.
Observamos essa preocupação com a própria salvação nos testamentos dos
africanos libertos e seus descendentes na freguesia da Sé, como o caso da preta forra,
Francisca Maria Tereza. Natural da Costa da Mina, era irmã da irmandade de Santo
Elesbão e Santa Efigênia, faleceu em 13 de novembro de 1780. Em seu testamento
declarou que no dia do seu falecimento seriam ditas por sua alma 25 missas de corpo
presente de esmola de um cruzado cada, sendo que seriam ditas metade na “Capela de
Santa Efigênia”, onde seria sepultada e a outra metade onde o seu reverendo pároco as
quisesse que fossem ditas. Em relação ao remanescente de seus bens, assim declarou: “o
remanescente de meus bens Satisfeitos que Sejam meus legados para a minha
Irmandade do que lhe eu dever. E neste Caso o remanescente da Terça Se me dirão mais
Cinquenta missas de esmola Costumada em altar privilegiado de Nossa Senhora da
Conceição” 169.
O preto forro José Rodrigues dos Santos, solteiro, morador da rua de São
Joaquim, faleceu em 8 de abril de 1795, era membro da irmandade de São Domingos.
Em seu testamento estabeleceu as seguintes disposições a seu testamenteiro: que no dia
de seu falecimento fossem ditas por sua alma 20 missas de corpo presente na igreja em
que fosse sepultado ou como melhor lhe parecer. Depois de pagas as suas dívidas, as
disposições de seu enterro, o que sobrasse seria dividido em duas partes, uma seria dada
a sua irmã e a outra seria convertidas em sufrágios por sua alma. Caso sua irmã já
estivesse falecida seu testamenteiro aplicaria toda a quantia em favor de sua alma.
Determinou ainda que seu testamenteiro mandasse dizer uma capela de missas e mais 5
missas em favor de sua alma e 20 missas pela alma de sua mãe. O que é interessante no
seu caso é que ele pediu um enterro humilde e pobre sem pompa, supondo que 95
missas que legou em seu testamento fossem no valor de $320 réis, teria uma despesa de
30$400 réis, uma quantia significativa. Pediu para ser amortalhado em hábito de São
Francisco que era um dos mais caros, pediu para ser enterrado na Igreja de São
Domingos e rogou aos irmãos que lhe fizessem os sufrágios costumados e que seu
testamenteiro pagaria os anuais que estivesse devendo. Não fez uma declaração

168
CAMPOS, op. cit., 2013, p. 96
169
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0156 (1776-1784). Testamento de
Francisca Maria Tereza, p. 238.
354

detalhada dos seus bens. Declarou apenas que possuía uma morada de casas e que seu
testamenteiro as venderia para pagar suas dívidas e cumprir seus legados 170.
Agostinho da Mota, pardo forro, casado com Luiza Maria da Conceição,
natural da Comarca de Sabará. Determinou a seus testamenteiros que no dia de seu
falecimento se diria 4 missas de corpo presente e mais 50 missas por sua alma na
freguesias de seu nascimento de esmola costumada. Determinou que seu corpo fosse
amortalhado em um lençol e enterrado na igreja da Sé em uma cova da irmandade de
Nossa Senhora do Rosário e São Bendito dos Pretos “dado por seu reverendo pároco
sem pompa alguma pagando tudo a esmola e despesa necessárias”. Embora seu funeral
tenha sido mais modesto que o de José Rodrigues, observa-se que as 54 missas -
supondo que foram a $320 réis cada uma - geraria uma despesa significativa no valor de
17$280. O que nos leva a pensar que mesmo optando por um funeral sem pompa os
indivíduos não abriam mão de uma quantidade significativa de missas para que seu
tempo no Purgatório fosse abreviado. Agostinho da Mota era uma pessoa de posses. Seu
testamento é rico em detalhes e por isso vamos dedicar a ele uma maior atenção. Era
proprietário de uma fazenda no distrito de Sabará com lavouras, engenho de pilões,
minas de ouro e engenho de secar pedras. Declarou que possuía outras terras na mesma
comarca num lugar chamado Brumado com lavouras e minas de ouro, além de possuir
nove escravos, mais “outros três moveis e roupas, várias moradas de casas no mesmo
arraial”. Declarou que seus bens tinham sido sequestrados pelo Juízo da Ouvidoria
daquela Comarca por requerimento de Luís da Mota, por sentença de fiança, que se
habilitou como filho de seu pai, a fim de obter partilha de bens. Talvez seja esse o
motivo de ter pedido um enterro sem pompa. Declarou ainda que várias pessoas tinham
dívidas com ele e que seus testamenteiros deveriam cobrá-las. Tinha contas com o
Coronel Julião e que o mesmo lhe devia seiscentos mil réis. Tinha oito filhos que foram
instituídos como herdeiros das duas partes de seus bens. Depois de cumpridos seus
legados instituía sua esposa com herdeira dos remanescentes de sua terça 171.
A preta Forra Josefa Correia Barbosa, natural da Costa da Mina, casada com
Joaquim Botelho, faleceu em 18 de janeiro de 1801. Em seu testamento pediu que se
rezasse 30 missas de corpo presente de esmola de $400 réis cada e mais um capela de
missas a $320 réis. Pediu para ser amortalhada em habito de São Francisco,

170
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0157 (1790-1797). Testamento de José
Rodrigues dos Santos, p. 296 verso.
171
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0158 (1797-1812). Testamento de
Agostinho da Mota, p. 17 verso.
355

encomendada pelo reverendo pároco mais oito sacerdotes e conduzida pelos mesmos,
juntamente com os irmãos da irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia da qual era
filiada e onde foi enterrada. Deixou de esmola para ser distribuída aos pobres no dia do
seu falecimento a quantia de três mil e duzentos réis, sendo dois vinténs para cada um.
Seus gastos em missas chegariam a 28$000 réis 172.
Vitória de Jesus, preta forra viúva, moradora na rua do piolho, faleceu em
29 de outubro de 1801. Em suas disposições testamentárias determinou que no dia do se
falecimento seu testamenteiro mandasse dizer 10 missas de corpo presente a $400 réis
cada. Assim, declarou: “meu corpo será amortalhado em hábito de Santo Antônio,
depois de encomendado pelo reverendo pároco será conduzido pelo modo que meu
testamenteiro parecer, sem pompa alguma, para a Igreja de Nossa Senhora do Parto,
para ali em uma das sepulturas da irmandade de Nossa Senhora das Mercês, de que sou
irmã se dá sepultura”. Deixou a cargo de seu testamenteiro os sufrágios por sua alma,
assim como o encargo de seu funeral e toda a despesa do seu funeral seria “despendida
da demanda que tinha com o padre Bento Soares de Carvalho, como herdeiros dos
falecidos seus pais e avos, cuja pende no Juízo da Ouvidoria Geral do Civil”. Depois de
pagas todas as suas dívidas determinou a seu testamenteiro que do líquido que existisse
mandasse dizer por sua alma uma capela de missas, mais um pela alma de seu marido,
mais um pela alma de seu pai e sua mãe, a esmola de $320 réis cada uma e nas igrejas
que melhor lhe parecer. Curiosamente este é mais um caso em que o testador alega que
quer um funeral sem pompa, mas as despesas realizadas sugerem o contrario. Seus
gastos com missas chegaram à significativa quantia de 52$000 réis 173.
Em 21 de junho de 1803 faleceu a preta forra de Rosária Maria, “nação”
mina, era filiada a irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, foi amortalhada em
habito de Santo Antônio, encomendada pelo reverendo pároco e seis sacerdotes na
igreja de São José, “em sepultura pertencente à irmandade do mesmo santo”. Pediu
licença para ser acompanhada pelos irmãos da irmandade de Santo Elesbão e Santa
Efigênia a qual pertencia. Determinou que seu testamenteiro providenciasse a esmola
necessária para sua sepultura e que pagasse os anuais que estivesse devendo para que se
fizesse por sua alma os sufrágios o que costumavam fazer para os irmãos falecidos.
Determinou que no dia do seu falecimento se dissesse 25 missas de corpo presente,

172
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0158 (1797-1812). Testamento de Josefa
Correia Barbosa, p. 74 verso.
173
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0158 (1797-1812). Testamento de Vitória
de Jesus, p. 98 verso.
356

sendo 12 na “Catedral” (igreja da Sé, Nossa Senhora do Rosário), e as demais na igreja


onde seria sepultada. Deixou para serem distribuídos aos pobres 32$000 réis, dando a
cada um a esmola de $80 réis, deixou de esmola a irmandade de Santo Elesbão e Santa
Efigênia 19$000 réis e legou a sua alma três capelas e meia de missas 174.
O preto forro Afonso Alves, “nação” mina, casado com a preta forra
Francisca Maria do Sacramento faleceu em 31 de julho de 1807. Foi amortalhado em
hábito de São Francisco, encomendado pelo reverendo pároco e acompanhado pelo
mesmo e os irmãos da irmandade de São Domingos a qual era confrade. Em suas
disposições testamentárias legou a sua alma no dia do seu falecimento 25 missas de
corpo presente a um cruzado 175 cada e mais uma capela de missas por sua alma a
esmola de uma pataca cada. Seus gastos com missas foram de 28$000 réis 176.
Podemos concluir que além dos sufrágios e missas realizados pelas
irmandades, os pedidos de missas revelam um esforço individual dos fiéis africanos e
seus descendentes no sentido de garantir a salvação da alma de acordo com a pedagogia
da “boa morte” estabelecida pela doutrina da Igreja católica. Evidentemente podemos
perceber uma diferenciação social, pois muitos africanos e crioulos forros esforçavam-
se para deixar em seus testamentos o maior números de missas possíveis, que além de
expressar um cuidado especial com a salvação da alma, revelam uma tentativa de
aproximação das práticas fúnebres da elite “branca”. Os testamentos revelam os gastos
que esses indivíduos foram capazes de fazer de acordo com a sua capacidade financeira,
pois nem todos podiam pagar por tais cerimônias. Alguns esperavam contar com a
solidariedade de suas confrarias ou com a caridade alheia, para aqueles que não eram
filiados a uma irmandade. Características de uma sociedade marcada por diferenças
sociais construídas ao longo dos séculos, ou seja, traços de uma sociedade hierarquizada
típica de Antigo Regime. Esses indivíduos levaram para a morte as desigualdades
sociais existentes na sociedade dos vivos. Assim, de acordo com a crença da época é
possível afirmar que alguns tinham melhor condições que outros de se preparar para
uma “boa morte”.

174
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0158 (1797-1812). Testamento de Rosária
Maria, p. 152.
175
Um cruzado português era igual a $480 réis. Dinheiro do Brasil. Banco Central do Brasil 2ª ed.
Brasília: BCB, 2004, p. 24.
176
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0158 (1797-1812). Testamento de Afonso
Alves, p. 255.
357

CAPÍTULO – 6 –

Os lugares dos mortos entre o Rio de Janeiro ou África

6.1 – O sepultamento de africanos e seus descendentes na cidade

Desde os primórdios da fundação da cidade do Rio de Janeiro, os


escrazados e seus descendentes eram inumados “no antigo e pequeno campo santo
existente atrás do Hospital da Santa Casa junto ao Morro do Castelo. Onde eram
enterrados: os indigentes, aqueles que morriam no hospital, os justiçados, os escravos
índios e africanos e seus descendentes”. 1 Mas devido ao incremento do tráfico e à alta
taxa de mortalidade e condições de vida da escravaria, além das grandes epidemias que
ceifavam a centenas as pobres “vitimas” do tráfico, ainda no século XVII houve a
necessidade de se criar os cemitérios para pretos e mulatos, sobretudo escravos, como o
Cemitério do Rocio, em 1613, também conhecido como cemitério dos Mulatos. Neste
mesmo período, os carmelitas passam a permitir que os cativos fossem enterrados em
frente à testada do seu convento e igreja. Também os franciscanos passaram a enterrar
escravos em um terreno junto ao morro de Santo Antonio, mas como o local era muito
pequeno, em 1709, obtiveram concessão do Conselho Ultramarino para ampliar o
terreno em 18 braças de chão, onde mais tarde foi construído o Hospital da Penitência.
Este espaço hoje é o largo da Carioca. 2
Ainda neste contexto, os vereadores constatavam que faltavam na cidade
lugares competentes para o sepultamento dos cadáveres “dos mesmos escravos, que
morriam” e que essa falta causava “consequências prejudiciaes, com escândalo
público”. Na tentativa de sanar esse problema, em 27 de maio de 1722, o rei mandava o
governador informar o pedido do Cabido “para se instituir no Rio de Janeiro, um
cemitério exclusivamente para escravos”. Assim, foi instituído no antigo sitio do
Valverde, largo de Santa Rita, o Cemitério dos Pretos Novos que, mais tarde – na gestão
do Marquês de Lavradio 3 (1769-1779) –, no ano de 1774 4, seria transferido para o
Valongo, funcionado dentro do Mercado de Escravos até sua extinção em 1831, com a

1
FAZENDA, José Vieira. Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Tomo 86. v. 140. 1919, p. 348.
2
FAZENDA, op. Cit., p. 349.
3
Idem., pp. 349-50.
4
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Carta de Lei de Marquês do Lavradio. Codice 70. v. 7, p. 231.
358

primeira lei antitráfico. No local hoje funciona o Instituto de Pesquisa e Memoria Pretos
Novos 5.
Em 1623, foi criado o cemitério da Santa Casa da Misericórdia. Em
cumprimento da ordem régia 6 de 23 de janeiro de 1694 e estimulado por uma “terrível”
epidemia de varíola. Em 03 de junho deste mesmo ano o governador Antonio Paes de
Sande realizou o primeiro acordo com a Santa Casa da Misericórdia, a respeito do
enterramento dos escravos. Por ele, ficava estabelecido que a Santa Casa forneceria um
esquife com seu pano, mandaria buscar o cadáver do escravo, encomendá-lo e
acompanhá-lo por um dos capelães. Por cada escravo sepultado os senhores pagariam a
quantia de 960 reis para custear as despesas com duas missas da alma, no valor de 320
réis e os 640 réis restantes seriam destinados “para a esmola do clérigo e para os negros
que carregassem o esquife”, ficando a Santa Casa da Misericórdia com a obrigação de
enterrar os cativos dos senhores pobres que não tinham recursos para arcar com aquela
quantia. 7 Essa questão não seria exclusiva aos senhores pobres do Rio de Janeiro, pois a
caridade era uma prerrogativa do serviço funerário prestado pela Misericórdia a todos os
pobres e constava em seu estatuto que mantinha uma tradição de funerais coorporativos
existentes nas irmandades da Europa desde o início do Império Romano 8. O Conselho
Ultramarino não aprovou tal valor, achando-o exorbitante, alegando que a Santa Casa da
Misericórdia da Bahia havia feito semelhante acordo por 400 réis sem a obrigação de
celebrar as duas missas. Ponderou que não se podia obrigar os senhores a pagar missas
pela alma de seus negros, uma vez que eles não eram obrigados a mandar rezá-las nem
para os próprios filhos, além do que “nem os senhores podiam ou deviam ser
constrangidos pelos capítulos de visitação eclesiástica” 9. Em janeiro de 1695 o rei
ordenou ao governador que fizesse um novo acordo com a Misericórdia com base na
taxa cobrada na Bahia. Em 17 de maio de 1695 foi celebrado novo acordo entre o
governador Sebastião de Castro Caldas e a Santa Casa da Misericórdia pelo qual esta
ficava isenta da obrigação de mandar celebrar as duas missas dispensava a presença do

5
Cf. PEREIRA, Júlio Cesar Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2ª edição, 2014; HONORATO, Claudio de Paula. Valongo: o
mercado de escravos do Rio de Janeiro, 1758 a 1831. Dissertação de mestrado, Niterói: UFF, 2008.
6
RUSSEL-WOOD, Anthony John R. Fidalgos e Filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia,
1550-1755. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981, p.153, 176.
7
FAZENDA, op. cit., p. 347.
8
RUSSELL-WOOD, op. cit., p.153, 175.
9
FAZENDA, op. cit.,. p. 348
359

clérigo e aceita receber 400 réis por cada cativo sepultado em seu cemitério 10. Russell-
Wood observa que é possível que a Mesa da Misericórdia tenha sido tocada por
sentimentos piedosos para assim tratar o sepultamento dos cativos, mas é muito
provável que a Misericórdia tenha sofrido uma pressão oficial para enterrar os escravos,
pois se não obedecesse corria o risco de perder o monopólio sobre a posse de esquifes.
A instituição de uma liteira para o enterro de cativos pela Misericórdia do Rio de
Janeiro em maio de 1694 estaria relacionada a essa pressão 11.
De acordo com Vieira Fazenda “os corpos dos cativos que pertenciam a
uma irmandade religiosa, podiam ser inumados nos interior ou no adro de suas
respectivas igrejas e capelas. Algumas dessas irmandades conquistaram o direito de
possuir seu esquife próprio”. Privilégio concedido pela Santa Casa da Misericórdia, que
detinha o controle desse serviço 12. Este foi o caso da irmandade de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, que em 1687, recebeu uma licença especial
para possuir esquife. No ano seguinte o mesmo privilégio foi conquistado pela
irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte dos Homens Pardos e, em 1699, também
seria conquistado pela irmandade de São Domingos. Em contrapartida assumiam o
compromisso de pagar à Misericordia um cruzado por cada sepultamento 13. Assim, os
africanos e seus descendentes conseguiriam realizar um funeral mais barato e ao mesmo
tempo escapar dos enterramentos coletivos nas covas rasas do cemitério da Santa Casa
da Misericórdia, onde eram enterrados aqueles que não tinham condições de arcar com
os custos de seu funeral. A Santa Casa da Misericórdia por sua vez também era
beneficiada, pois cuidava dos enterramentos mais lucrativos e isentava-se de cuidar dos
mais onerosos que passaram a ser realizados pelas irmandades de africanos e seus
descendentes, que com isso desobrigava a Santa Casa de arcar com uma parte dos
funerais gratuitos 14.
Ao analisar a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, Russell-Wood percebeu
que ao conceder tal privilégio às irmandades de negros africanos e seus descendentes, a
Misericórdia se livrava da responsabilidade moral de enterrar todos os escravos, tarefa
evidentemente impossível. A Misericórdia concedia tal privilégio com a condição de
que essas irmandades somente enterrassem os irmãos cativos. Estabelecia que os negros

10
FAZENDA, op. cit., p. 348; COARACY, Vivaldo, Memórias da cidade do Rio de Janeiro. Vol. 3,
Livraria José Olympio Editora, 1965, p. 296-297; RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 176.
11
RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 176.
12
FAZENDA, op. cit., p. 348; RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 175.
13
FAZENDA, op. cit., p. 348.
14
SOARES, op. cit., 2000, p. 143.
360

forros fossem enterrados pela Misericórdia, garantindo a estabilidade financeira, pois


estes podiam pagar o preço dos funerais utilizando a “essa” da Misericórdia. Ao
partilhar a obrigação moral de dar sepultura aos cativos, a Misericórdia constituía “uma
linha de defesa contra as críticas sobre a inexistência de instrumentos adequados em
seus funerais”. Por fim, a Misericórdia tinha muito pouco a perder concedendo “essas”
às irmandades negras e o número de padres e soldados enterrados anualmente em
“essas” próprias de suas irmandades não comprometeria sua renda. O mesmo não
aconteceria se a Ordem Terceira de São Francisco possuísse sua própria “essa”, pois
ambas as irmandades provinham da mesma classe social e muitos indivíduos da elite
dispunham em seus testamentos serem amortalhados em hábito de São Francisco,
enterrados na Capela da ordem Terceira e conduzidos na “essa” da Misericórdia. Se a
Ordem Terceira possuísse “essa”, a Misericórdia não receberia nada, afetando
substancialmente sua renda, pois as esmolas deixadas para este fim eram substanciais.
Com o objetivo de garantir seus privilégios e situação financeira, a Misericórdia negou
firmemente às continuas petições da Ordem Terceira 15.
Segundo Claudia Rodrigues, de acordo com os costumes e princípios
cristãos, “a aproximação dos vivos com os mortos teve início no final da Antiguidade,
fruto da associação entre o culto dos antigos mártires, de seus túmulos e a fé crescente
na ressureição. Acreditava-se que a sepultura adequada e inviolada possibilitaria a
salvação na medida em que estava associada a conservação do corpo”. Ainda segundo a
autora, de acordo com a crença vigente entre os cristãos, a violação da sepultura
impediria o despertar do morto no último dia, comprometendo assim, a sua ressureição
para eternidade. Foi justamente esse temor da profanação que levou à prática de se
enterrar junto aos túmulos dos santos e mártires que, tendo seu lugar garantido no
paraíso, tinham o poder de repelir os profanadores de túmulos, associado à busca de
proteção dos despojos mortais, ou seja, o anseio de que o “corpo espiritual” estivesse
sob a mesma guarda. Outra motivação para a generalização dos sepultamentos ad
sanctos era que a crença de que a aproximação dos santos representava alivio e
eliminação dos pecados. 16
Houve uma busca progressiva pelo enterro no interior da igreja e em
terrenos eclesiásticos, pois quanto mais perto dos santos, melhor seria a proteção do

15
RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 174-5.
16
RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos. Tradições e transformação fúnebres
no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de
Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997, p. 224; BRAVO, op. Cit., p.140
361

corpo. Ser enterrado no interior de uma igreja representava a garantia de salvação, uma
vez que estando próximo aos santos e mártires se conseguiria maior intercessão do santo
pela alma do que ali fosse sepultado, além de serem beneficiados pelas orações a eles
destinadas pelos passantes. Dessa preferência pela inumação dos corpos junto aos
santos e mártires deu-se início aos chamados sepultamentos ad sanctos apud eclesiam.
Prática que teve início na Época Medieval e atravessou a Época Moderna, chegando à
América lusa. Foi adotada amplamente nas igrejas, capelas e nos terrenos pertencentes a
elas enquanto característica marcante de uma sociedade predominantemente católica.
Tal característica se constituiu em prática comum na cidade do Rio de Janeiro durante o
período colonial e imperial até cerca e 1850 17. Enquanto vigorou o sepultamento no
interior e no entorno das igrejas, os negros africanos e seus descendentes, escravizados e
libertos também o adotaram, associando-o a elementos de suas tradições culturais.
Uma das principais justificativas para a construção das irmandades de pretos
africanos e seus descendentes, além de prestar culto em homenagem ao santo padroeiro
era dar um enterro considerado digno aos confrades. Tal informação está presente em
todos os compromissos das irmandades, estabelecendo regras e punições aos confrades
que sem justificativa não comparecessem ao sepultamento de um irmão falecido. O
Estatuto da Congregação dos pretos minas Makis estabelecia que:

Todos os congregados que faltarem quando falecer seu irmão, e


o não acompanharem, até a sepultura, sendo forros, que não
tiverem legítima causa para o fazer dará de esmola para o cofre
120r castigo de sua rebeldia e frouxidão, e os que tiverem
legítima causa por razão de suas ocupações bastam só rezar o
padre nosso, e ave maria, com gloria patris, oferecida a sagrada
paixão do Sr pela alma daquele falecido nosso nacional; pelo
contrário o forro que puder assistir ou acompanhar ao mesmo
falecido tendo justa causa rezará uma coroa, a sagrada morte, e
paixão do Sr pela alma do mesmo. 18

Tal situação se justificava, pois frequentemente os escravizados eram


abandonados por seus senhores nas portas das igrejas ou nas praias para que fossem
levados pela maré da tarde. Não raras vezes, os senhores mandavam conduzir seus

17
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989 (v. 1), pp. 37 - 43;
RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformação fúnebres no
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e
Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997, pp. 217-225; BRAVO, op. cit. pp., 3 a 7.
18
Estatuto da Congregação dos pretos minas Makis no Rio de Janeiro. Capitulo decimo primeiro. BNRJ.
BN/MA – 9,3,11.
362

corpos para lugares ermos, pântanos e outros faziam sepultá-los em covas rasas que cães
e outros animais descobriam 19. Em 1688, o rei D. Pedro II ordenou ao governador do
Rio de Janeiro que investigasse todas as denúncias de crueldades praticadas pelos
senhores contra seus escravos, e que adotasse medidas judiciais se essas acusações
fossem verdadeiras 20. Em 1693, escreveu ao cabido da Sé do Rio de Janeiro ordenando
que fossem garantidos a todos os cativos moribundos os últimos sacramentos, pois era
de seu conhecimento que isso não acontecia, fosse porque de um lado os padres
cobravam taxas exorbitantes, fosse porque os senhores se recusavam a chamar os padres
para assistir os cativos moribundos 21. De acordo com Russell-Wood, as cartas do rei aos
governadores e arcebispos na prática raramente surtiam efeito, além de demonstrar a
grande preocupação do monarca com as condições de vida dos escravizados no Brasil 22.
Além do abandono dos corpos de cativos por parte dos senhores, havia outras formas de
abandono de cadáveres, possivelmente por famílias pobres que não tinham acesso a uma
irmandade e abandonavam o corpo de seu defunto na porta de uma igreja para serem
enterrados por caridade 23. Um relato de Vieira Fazenda ilustra bem essa situação. Em
uma noite três homens de braços dados aproximaram-se da porta da igreja de Santa Rita
e se ajoelharam. Passado algum tempo, dois deles se retiram e um permaneceu de
joelhos. Passadas algumas horas, um soldado aproximou-se do homem, bateu em seu
ombro e ordenou que se levantasse, mas o mesmo permaneceu de joelhos sem
responder. Bateu novamente no ombro do homem ordenando que se levantasse, mas
este caiu no chão. Ao examina-lo o soldado constatou “que tinha diante de si um
cadáver” 24. Mariza Soares observou que abandono dos cadáveres não era praticado
apenas pelos senhores, mas também pelas irmandades pobres que não tinham recursos e
abandonavam seus mortos na porta de uma Igreja ou de um comerciante na esperança
de que fossem sepultados “pelo amor de Deus” 25, por alguma alma caridosa 26.
De acordo com as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia era
“costume pio, antigo, e louvável na Igreja Católica, enterrarem-se os corpos dos fiéis

19
COARACY, op. cit., p. 296; QUINTÃO. Op. Cit. 2002, p. 156.
20
Documentos históricos, vol. 79, pp. 397-88. Apud. RUSSEL WOOD, op. cit., p. 175.
21
Carta de 17 de março de 1693. ANRJ, Códice 952, vol. 6, fl. 225. Apud. RUSSEL WOOD, op. cit., p.
176.
22
RUSSEL WOOD, op. cit., p. 176.
23
BRAVO, op. cit., p, 154.
24
FAZENDA, op. cit., Tomo 86 – vol. 140, 1919. p. 350
25
Cf. CAMPOS, Adalgisa Arantes. “A ideia do Barroco e os desígnios de uma nova mentalidade: a
misericórdia através dos sepultamentos pelo amor de Deus na Paróquia do Pilar de Vila Rica (1712-
1750)” IN: Revista Barroco. Belo Horizonte, 18 (2.000): 45-68, p. 2.
26
SOARES, op. cit., 2000, p, 144, 152 e 15.
363

cristãos nas igrejas, e cemitérios delas, porque como são lugares, onde todos os fiéis
frequentam para ouvir, e assistir às missas, ofícios divinos e orações, tendo à vista as
sepulturas, se lembrarão de encomendar a Deus nosso Senhor às almas dos ditos
defuntos, especialmente dos seus, para que, mais cedo, sejam livres das penas do
purgatório. E não se esqueçam da morte”. Segundo esta legislação eclesiástica, seria
“aos vivos mui proveitoso ter memória dela nas sepulturas. Portanto ordenamos e,
mandamos, que todos os fiéis que nesse bispado falecerem, sejam enterrados nas igrejas
ou cemitérios, e não em lugares não sagrados” 27. Assim, a Igreja promovia a
aproximação entre os vivos e os mortos com base na doutrina do purgatório, destino da
maioria dos cristãos que enfrentavam o julgamento individual, logo após a morte 28 e
aguardava o juízo final.
De acordo com as normas eclesiásticas todo cristão tinha o direito de
escolher o local de sua sepultura, se no interior da igreja ou no adro, onde melhor “lhe
parecer, conforme sua vontade, e devoção”. Se o individuo não tivesse deixado
indicado o local de sua preferência em vida, ao morrer seria “sepultado com seus avós, e
antepassados, caso a família tivesse jazigo próprio, não possuindo seria enterrado em
sua igreja paroquial, as mulheres casadas que não tivessem sepulturas próprias, nem as
elegessem, seriam enterradas na de seus maridos e na do último, se fossem casadas duas
ou mais vezes” 29.
Em relação aos escravizados da mesma forma que as Constituições
Primeiras exortavam orientações sobre sua vida, também faziam em relação à morte.
No primeiro caso, determinavam que os senhores eram responsáveis por sua instrução
religiosa 30 e pelo ensino da doutrina, estabelecendo que deveriam permitir-lhes
assistirem às missas e preocuparem-se em batizá-los. Determinava aos párocos que
mandassem fazer cópias do breve catecismo para distribuir aos seus fregueses para
instruírem os seus escravizados nos mistério da fé e doutrina cristã 31. No segundo caso,
diante da morte, deveriam lhes proporcionar um enterramento condigno, como podemos
constatar no fragmento que afirma que “E porque é alheio da razão e piedade cristã, que
os senhores, que se serviram de seus escravos em vida, se esqueçam deles em sua morte,
[...] sejam obrigados a mandar dizer por cada um escravo ou escrava que lhe morrer”,

27
VIDE, op. cit., Titulo 53, c. 843, p. 295.
28
REIS, op. cit., 1991, p. 172.
29
VIDE, op. cit., Titulo 53, c. 845, p. 296
30
Idem., Títulos 2 e 3, c. 3 a 8, p. 2 a 4.
31
Ibidem., Titulo, 32, c. 577 e 578, p. 218-19.
364

sendo maior de quatorze anos, mandar rezar “missa de corpo presente, pela qual se dará
a esmola costumada”. 32 Proibia que os senhores enterrassem seus escravos no “campo, e
mato” como se fossem brutos animais, sob pena de excomunhão e pagamento de
cinquenta cruzados ao aljube, pois tal atitude era falta de humanidade, “que nenhuma
pessoa de qualquer estado, condição, e qualidade que seja, enterrado, ou mande enterrar
fora do sagrado defunto algum, sendo cristão batizado, ao qual conforme a direito se
deve dar sepultura Eclesiástica”. Determinava “aos párocos e os visitadores que com
particular cuidado inquiram do sobredito” 33.
Segundo João Reis, uma “das formas mais temidas de morte era a morte
sem sepultura. E os mortos sem sepultura eram os mais temidos, pois morrer sem
sepultura significava virar alma penada” 34. Mircea Eliade afirma que “para certos
povos, só o sepultamento ritual confirma a morte: aquele que não é enterrado segundo o
costume não está morto. Além disso, a morte de uma pessoa só é considerada valida
após a realização dos rituais fúnebres, ou quando a alma do morto foi ritualmente
conduzida a nova morada no além, e lá foi aceita pela comunidade dos mortos 35. Para
os cristãos ter um enterro decente e ser enterrado em um lugar sagrado era muito
importante. De acordo com as Constituições Primeiras esse lugar era a igreja ou os seus
cemitérios contíguos. Mas o enterramento dentro da igreja era o mais almejado devido a
sacralidade de seu solo, pois a igreja era a casa de Deus e da corte de seus santos e
anjos, e nela os mortos deveriam habitar aguardando a ressureição no fim dos tempos 36.
João Reis observou que “os irmãos de Santa Efigênia do convento de São Francisco
reivindicavam enterros decentes em nome da imortalidade de suas almas e da futura
ressureição de seus corpos. Pois se o corpo ressuscitaria, ele devia estar espiritualmente
integro, embora fisicamente estivesse decomposto. Essa integridade dependia do local
da sepultura” 37.
Neste sentido, os indivíduos que ainda em vida haviam se filiado a uma
irmandade ou confraria teriam a garantia de um enterro digno em um lugar santo. Este
era um importante meio que os escravos tinham para evitar que seus corpos fossem
sepultados em cemitérios onde estariam sujeitos a profanações. Neste sentido, a filiação
a uma irmandade ou confraria era uma garantia de morte digna dentro dos padrões

32
VIDE, op. cit., Titulo, 51, c. 838.
33
Idem., Título, 51, c. 844.
34
REIS, op. cit., 1991, p. 171.
35
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 89.
36
REIS, op. cit., 1991, p. 171; RODRIGUES, op. cit., 1996, 234.
37
REIS, op. cit., 1991, pp. 148 e 172.
365

estabelecidos na sociedade escravista colonial e imperial. Dentro das igrejas das


irmandades de negros eram sepultados os corpos de seus confrades, seus parentes,
mulher e filhos, além daqueles que pertenciam a outras irmandades, mas que não
possuíam templos próprios (um exemplo é que a irmandade Santo Antônio da Moraria,
enterrava seus mortos nas covas da Igreja do Rosário 38). Os que não fossem afiliados a
nenhuma confraria também receberiam sepultura mediante o pagamento de uma taxa
estabelecida. Em algumas delas, tais regras estavam estabelecidas nos estatutos ou
compromissos. A irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens
Pretos estabelecia que a qualquer pessoa que não fosse afiliada à irmandade e quisesse
ser acompanhada em enterro pelos irmãos bastava acertar o valor da esmola com o
irmão procurador 39. A irmandade de Nossa Senhora dos Remédios, formada por negros
da Costa da Mina na Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia, em 1788, com objetivo
de prestar assistência aos “irmãos nacionais”.

Pretos minas que se achassem em necessidade extremas com


botica, enfermeiro, comida e até mortalha, sufrágios de missas
pela alma dos mesmos irmãos, com cuja providência têm os
suplicantes atalhado em parte a impiedade, com que alguns
pretos minas, sendo desamparados já de seus senhores e vendo-
se reduzidos na velhice a mendigar de porta em porta [...] no
campo, exposto à injúria do tempo, o cadáver a que nós
suplicantes procuramos dar sepultura com toda a pressa” 40.

A Igreja também abria suas sepulturas para aqueles que não conseguiram
em vida garantir o recurso necessário para a passagem ao mundo dos mortos e
dependiam da ajuda de parentes e amigos. Muitas vezes esses recorriam aos pedidos de
esmolas para conseguir um funeral digno.
Na tabela 30 podemos observar que entre o início do século XVIII e a
primeira metade do século XIX houve uma maior procura para sepultamentos nas
igrejas das principais irmandades de negros africanos e seus descendentes na cidade do
Rio de Janeiro. Estas igrejas receberam 55,2% do total de sepultamentos do período,
sendo a igreja de N. S. da Conceição e Boa Morte a mais procurada, com 10,2%,
seguida pela igreja do Senhor Bom Jesus do Calvário e N. S. da Lampadosa, ambas em
38
Compromisso da Irmandade Santo Antônio da Mouraria dos Homens Pretos. Arquivo Nacional do Rio
de janeiro. ANRJ. Códice 825. Capitulo 19º. Paragrafo. 12º, p. 20.
39
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos. Arquivo
Histórico Ultramarino de Lisboa – AHU/CU. Códice 1950. Capitulo 8º, paragrafo 26.
40
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios. Arquivo Histórico Ultramarino de
Lisboa – AHU/CU. Códice 1300.
366

segundo lugar, com 9,4% respectivamente e N. S. do Rosário e São Benedito dos


Homens Pretos em terceiro lugar com 9,3% do total de sepultamentos do período. Entre
as demais, com 44,8%, viria à igreja Matriz/Freguesia da Sé, com 9,2% dos
sepultamentos, o que representa o quarto lugar em busca por sepultamento nas igrejas
da freguesia da Sé. Levando-se em conta que o número de sepultamentos nas demais
igrejas de outras paroquias, irmandades ou ordens terceiras foi muito pouco expressivo,
ou seja, pouquíssimos mortos foram enterrados fora de sua freguesia. Assim sendo, a
maioria dos mortos da freguesia da Sé foi enterrada dentro da própria freguesia e nas
igrejas das irmandades e ordens terceiras de negros africanos e seus descendentes. O
que era de se esperar em uma freguesia cuja população era majoritariamente constituída
por negros africanos e seus descendentes e na qual a maior parte das igrejas eram
pertencentes às suas irmandades, conforme observou Rodrigues 41. Esta situação
também foi observada por João Reis em Salvador onde a maioria dos mortos das
freguesias foram enterrados dentro das matrizes paroquiais 42. Conforme já
mencionamos anteriormente, as Constituições Primeiras determinavam que quando os
indivíduos não deixavam indicado o local de sepultamento estes seriam inumados em
sua paroquia. No entanto, no caso dos escravizados que não redigiam testamentos,
podemos supor que a escolha da sepultura estaria relacionada ao local onde estava
estabelecida a igreja de sua irmandade. Aqueles que não eram afiliados a uma confraria,
receberiam sepultura em uma dessas igrejas caso tivessem conseguido durante a vida
recursos para custear seu sepultamento ou o obteriam através de seus senhores,
conforme determinavam as Constituições Primeiras. Caso contrário, dependeriam da
caridade alheia para ser sepultado “pelo amor de Deus”. Embora saibamos que era
prática comum entre senhores abandonar os corpos dos cativos para evitar a despesa
com enterramento, para alguns senhores ter os seus escravizados enterrados em uma
igreja poderia representar símbolo de status.

Tabelas 30 – Locais de sepultamentos de acordo com os livros de óbitos da


freguesia da Sé 1700 a 1850*
SEPULTURA TOTAL
Nº %
1 - Igreja de N. Srª. da Conceição e Boa Morte 1934 10,2
1 - Igreja do Senhor Bom Jesus do Calvário 1789 9,4
1 - Igreja de N. Srª. da Lampadosa 1771 9,4
41
RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos... p. 229. Cf. também BRAVO, Milra.
Hierarquias na morte... p. 149.
42
REIS. João José. A morte é uma festa... pp. 189 e 190.
367

1 - Igreja de N. Srª do Rosário e São Benedito 1764 9,3


1 - Igreja Matriz/Freguesia da Sé 1749 9,2
1 - Igreja de São Domingos 1634 8,6
1 – Igreja do Convento de Santo Antonio 1488 7,9
1 - Igreja da O. T. de São Francisco de Paula 1305 6,9
1- Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia 940 5,0
2 - Igreja da O. T. N. Sr.ª do Carmo (1) 673 3,6
1 - São Gonçalo Garcia e São Jorge 616 3,3
1 - Igreja da O. T. de São Francisco da Penitência 359 1,9
1 - Igreja de N. Srª do Parto 350 1,8
1 - Igreja da O. T. de São Francisco** 283 1,5
3 - Igreja de N. Sr.ª do Carmo (3) (3.1) 283 1,5
3 - Igreja Matriz de São José 271 1,4
2 - Igreja de N. Srª Mãe dos homens 226 1,2
3 - Igreja de N. Sr.ª do Bonsucesso/Santa Casa da 219 1,2
Misericórdia
2 - Igreja de São Pedro dos Clérigos 216 1,1
4 - Igreja Matriz de Santa Rita 157 0,8
5 – Igreja de Santo Antonio dos Pobres 136 0,7
2 - Igreja de Santa Cruz dos Militares 124 0,7
Outras igrejas matrizes 99 0,5
2 - Igreja Matriz da Candelária 93 0,5
3 - Santa Casa da Misericórdia **** 88 0,5
4 - Igreja de São Bento 86 0,5
1 - São Domingos *** 74 0,4
3 – Igreja de Santa Luzia 51 0,3
3 - Cemitério da Santa Casa da Misericórdia 48 0,3
2 - Convento do Carmo (2) 43 0,2
1 - Igreja do Senhor dos Passos 40 0,2
1 - Cemitério de São Domingos 13 0,1
5 - Igreja Nossa Senhora de Santana 6 0,0
2 - Cemitério do Carmo 4 0,0
4 – Igreja de são Joaquim 2 0,0
TOTOAL 18934 100
Fonte: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da
Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).
(1) destes, 6 foram enterrados em catacumbas.
(2) destes, 1 foi enterrado no claustro.
(3) destes, 3 foram enterrados em catacumbas
(3.1) dois óbitos fazem referência ao sepultamento no Hospital do Carmo.
* Até 1843
** Sem especificação se é de Paula ou da Penitencia.
*** Não especifica se é na igreja ou no cemitério de São Domingos.
**** Não especifica se é na igreja de N. S. do Bonsucesso ou no cemitério da Misericórdia.
1 – Sé/Santíssimo Sacramento - 2 - Candelária - 3 – São José – 4 – Santa Rita – 5 – Santana.
Igrejas de irmandades/ordens terceiras de negros e pardos

Através da tabela 31a, condição social por igrejas, é possível perceber que
as igrejas de negros no total geral foram as que mais receberam corpos no período
368

estudado, com 66,% dos enterramentos, sendo a igreja de São Domingos a mais
procurada, com 17,9%, seguida da igreja de Nossa Senhora do Rosário, com 14,3%;
Nossa Senhora da Lampadosa em terceiro lugar, com 13,6%; Santo Elesbão e Santa
Efigênia em quarto lugar, com 7,6%; Nossa Senhora da Conceição e Boas Morte,
Ordem Terceira do Senhor Bom Jesus e São Gonçalo Garcia e São Jorge ficaram em
quinto, sexto e sétimo lugares, com 5,3%, 5,1% e 2,2% respectivamente. Destaque
também para igreja Matriz, com 18,8% do total de enterramentos. Observa-se que tanto
no total geral, como se somarmos os enterramentos apenas nas Igrejas de irmandades de
negros africanos e seus descendentes há um predomínio no sepultamento de
escravizados. O que nos leva a pensar que tal resultado possa ser reflexo do tráfico
atlântico. Apenas 0,6% foram inumados nos cemitérios de São Domingos e da Santa
Casa e 2,3% na Santa Casa e São Domingos sem especificar se era igreja ou cemitério.
Esta situação reforça a ideia que os indivíduos buscavam fugir das covas rasas dos
cemitérios da cidade. Ficando os cemitérios para os mais pobres, principalmente o da
Santa Casa que recebia os indigentes, os escravizados e os justiçados. Mas mesmo os
mais pobres buscavam fugir desses espaços de enterramentos, conforme veremos na
ilustração de Debret, imagem 4, enterro de uma negra pobre. Embora esses cemitérios
fossem considerados campos santos, as cerimonias religiosas eram precárias ou
inexistentes. Freireyss 43, cita que havia um “velho com vestes de padre, lendo um livro
de rezas pelas almas dos infelizes” no Cemitério dos Pretos Novos no Valongo. Em
geral em todos eles os corpos eram jogados em valas superficiais, “a flor da terra”,
ficando a mercê de animais famintos. De acordo com os relatos dos viajantes não havia
nenhum tipo de cuidado com os corpos ai enterrados. John Luccok afirmou que nesses
cemitérios se assistiam “cenas repugnantes, os corpos eram atirados sem cerimonia em
uma espécie de pilhas uns sobre os outros pés com cabeça até encher a cova quase por
inteiro, em seguida cobriam com terra a cima do nível” 44. Robert Walsh diz que os
corpos eram depositados num estrado em uma casinha no meio do terreno, até que
houvesse um número suficiente de corpos para serem enterrados 45. Situação semelhante
foi presenciada por Freireyss quando visitou o Cemitério dos Pretos Novos no Valongo.
Que nos dá a informação que neste cemitério os corpos eram queimados, possivelmente

43
FREIREYSS, G. W. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/ São Paulo: EDUSP, 1982,
p. 132-134.
44
LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e parte meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1975, p. 39.
45
WALSH, Robert. Notícias do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 1985, p. 170.
369

para diminuir o volume e facilitar o trabalho do negro coveiro 46. O viajante alemão
Karl Seider dizia que suas lembranças sobre o cemitério da Misericórdia o
“arrepiavam”, segundo ele o corpo era atirado como um cão morto, cobriam-no com
pouca terra em uma cova de pouca profundidade, se alguma parte do corpo ficasse
descoberto, socavam com pesados tocos de madeira, que em suas palavras formava “um
horrível mingau de terra, sangue e excrementos” 47 Tais relatos demonstram que esse
tipo de enterramento contrariava todos os ditames do que seria uma “boa morte” de
acordo com os princípios cristãos 48.

Tabela 31a – Locais de sepultamentos de acordo com a condição social (POR


IGREJAS)

CONDIÇÃO LIVRES FORROS ESCRAVOS TOTAL


SOCIAL
SEPULTURA Nº % Nº % Nº % Nº %
1 - Igreja Matriz/Freguesia da Sé 738 43,4 170 7,9 413 13,0 1321 18,8
1 – Igreja do Convento de Santo Antonio 97 5,7 39 1,8 27 0,9 163 2,3
1 - Igreja da O. T. de São Francisco da 15 0,9 1 0,0 1 0,0 17 0,2
Penitência
1 - Igreja da O. T. de São Francisco de Paula 64 3,8 14 0,7 70 2,2 148 2,1
1 - Igreja da O. T. de São Francisco* 4 0,2 2 0,1 2 0,1 8 0,1
1 - Igreja de N. Srª do Parto 13 0,8 89 4,2 22 0,7 124 1,8
1 - Igreja do Senhor dos Passos - - 3 0,1 3 0,1 6 0,1
1 - Igreja de N. Srª do Rosário 57 3,4 407 19,0 542 17,1 1006 14,3
1 - Igreja de N. Srª. da Conceição e Boa Morte 105 6,2 152 7,1 116 3,7 373 5,3
1 - Igreja de N. Srª. da Lampadosa 63 3,7 301 14,1 593 18,7 957 13,6
1 - Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia 13 0,8 252 11,8 268 8,4 533 7,6
1 - Igreja do Senhor Bom Jesus/O. T. S. B. 34 2,0 47 2,2 278 8,8 359 5,1
Jesus
1 - Igreja de São Domingos 224 13,2 498 23,3 530 16,7 1252 17,9
1 - São Gonçalo Garcia e São Jorge 25 1,5 47 2,2 79 2,5 151 2,2
1 - São Domingos ** 26 1,5 28 1,3 28 0,9 82 1,2
1 - Cemitério de São Domingos 2 0,1 2 0,1 8 0,3 12 0,2
2 - Igreja Matriz da Candelária - - 7 0,3 24 0,8 31 0,4
2 - Igreja da O. T. N. Sr.ª do Carmo 23 1,4 - - 1 0,0 24 0,3
2 - Convento do Carmo 9 0,5 - - 6 0,2 15 0,2

46
FREIREYSS, G. W. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/ São Paulo: EDUSP, 1982,
p. 132-134.
47
SEIDER, Karl. Dez anos no Brasil. São Paulo, Martins; Brasília, Instituto Nacional do Livro. INL,
1976, pp. 312-13.
48
Sobre os cemitérios no Rio de Janeiro veja. RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos
vivos... 1995; RODRIGUES, Claudia. Funerais sincréticos: Praticas fúnebres na sociedade escravista.
Cativeiro e Liberdade, Revista Interdisciplinar em História Social, ano II, vol. 3. 1996; RODRIGUES,
Claudia. “A morte como elemento de afirmação da cultura africana no Rio de Janeiro escravista: o caso
do cemitério dos “pretos novos” in Estudos de História. Franca, v.10, n.1, 2003; PEREIRA, Júlio César
Medeiros da Silva. À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Garamond: IPHAN, 2007; BAVO, Milra. Hierarquias na morte... 2017.
370

2 - Igreja de N. Srª Mãe dos homens 4 0,2 3 0,1 9 0,3 16 0,2


2 - Igreja de São Pedro dos Clerigos - - 2 0,1 12 0,4 14 0,2
2 - Igreja de Santa Cruz dos Militares 1 0,1 - - 2 0,1 3 0,0
3 - Igreja Matriz de São José 23 1,4 20 0,9 14 0,4 57 0,8
3 - Igreja de N. Sr.ª do Bonsucesso/Santa Casa 77 4,5 9 0,4 41 1,3 127 1,8
da Misericórdia
3 - Igreja de N. Sr.ª do Carmo 4 0,2 3 0,1 1 0,0 8 0,1
3 – Igreja de Santa Luzia 7 0,4 2 0,1 9 0,3 18 0,3
3 - Cemitério da Santa Casa da Misericórdia 16 0,9 2 0,1 8 0,3 26 0,4
3 - Santa Casa da Misericórdia *** 37 2,2 12 0,6 27 0,9 76 1,1
4 - Igreja Matriz de Santa Rita 8 0,5 4 0,2 16 0,5 28 0,4
4 - Igreja de São Bento 1 0,1 3 0,1 4 0,1 8 0,1
4 – Igreja de são Joaquim - - 2 0,1 - - 2 0,0
Outras igrejas matrizes 10 0,6 20 0,9 18 0,6 48 0,7

Total 1700 100 2141 100 3171 100 7013 100

Fonte: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da


Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).
* Sem especificação se é de Paula ou da Penitencia.
** Não especifica se é na igreja ou no cemitério de São Domingos.
*** Não especifica se é na igreja de N. S. do Bonsucesso ou no cemitério da Misericórdia.
1 – Sé/Santíssimo Sacramento - 2 - Candelária - 3 – São José – 4 – Santa Rita – 5 – Santana.
Igrejas de irmandades/ordens terceiras de negros e pardos

Entre os escravizados, tabela 31b, observa-se que a maioria foi inumada na


Igreja de Nossa Senhora da Lampadosa, com 18,7%, seguida pela Igreja do Rosário e
São Benedito dos Pretos, com 17,1%; em terceiro lugar na escolha para sepultura entre
os escravizados foi a Igreja de São domingos, com 16,7%; em quarto lugar a Igreja
Matriz/Freguesia da Sé com 13%; em quinto lugar Igreja do Senhor Bom Jesus do
Calvário, com 8,8%; em sexto lugar Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia, com
8,4%. A estas, soma-se a Igreja de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte e São
Gonçalo Garcia e São Jorge, com 3,7% e 2,5% respectivamente. Assim, conclui-se que
88,9% dos cativos foram enterrados dentro da própria freguesia, nas igrejas de suas
irmandades e na matriz. Do total de individuos sepultados pela matriz no período,
31,2% eram escravizados, superando o número de forros em mais que o dobro e
representando mais da metade do número de livres. O que sugere a hipótese de que as
covas da matriz sepultou uma quantidade significativa daqueles que não eram filiados a
nenhuma irmandade. Portanto, mesmo não pertencendo a uma irmandade, muitos
negros africanos e seus descendentes conseguiram em vida recursos para um
sepultamento digno, ou seja, evitando serem lançados em uma cova coletiva nos
cemitérios, ao conquistar um sepultamento ad sanctos apud ecclesiam no interior ou no
371

adro de uma igreja.


Embora em quantidade bastante pequena alguns cativos foram sepultados
nos templos que abrigavam as irmandades da elite. Casos interessantes são os da igreja
da Ordem Terceira da Penitência e o da igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do
Carmo, que sepultaram um cativo, demonstrando que embora fosse difícil não era
impossível que cativos conseguissem ser sepultados em templos mais prestigiosos.
Embora não fique explicito se foi dentro da igreja ou no adro, tal fato por si só já
representa uma diferenciação social destes em relação aos demais escravizados, ainda
que o sepultamento tenha sido feito em função da posição social de seu senhor ou que o
sepultado tenha sido cativo da ordem e que conquistou certa estima.

Tabela 31b – Locais de sepultamentos de ESCRAVOS, em ordem decrescente

CONDIÇÃO SOCIAL LIVRES FORROS ESCRAVOS TOTAL


SEPULTURA
Nº % Nº % Nº % Nº %
1 - Igreja de N. Srª. da Lampadosa 63 3,7 301 14,1 593 18,7 957 13,6
1 - Igreja de N. Srª do Rosário 57 3,4 407 19,0 542 17,1 1006 14,3
1 - Igreja de São Domingos 224 13,2 498 23,3 530 16,7 1252 17,9
1 - Igreja Matriz/Freguesia da Sé 738 43,4 170 7,9 413 13,0 1321 18,8
1 - Igreja do Senhor Bom Jesus/O. T. S. B. Jesus 34 2,0 47 2,2 278 8,8 359 5,1
1- Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia 13 0,8 252 11,8 268 8,4 533 7,6
1 - Igreja de N. Srª. da Conceição e Boa Morte 105 6,2 152 7,1 116 3,7 373 5,3
1 - São Gonçalo Garcia e São Jorge 25 1,5 47 2,2 79 2,5 151 2,2
1 - Igreja da O. T. de São Francisco de Paula 64 3,8 14 0,7 70 2,2 148 2,1
1 - Igreja da O. T. de São Francisco* 4 0,2 2 0,1 2 0,1 8 0,1
1 - Igreja do Senhor dos Passos - - 3 0,1 3 0,1 6 0,1
1 – Igreja do Convento de Santo Antonio 97 5,7 39 1,8 27 0,9 163 2,3
1 - São Domingos ** 26 1,5 28 1,3 28 0,9 82 1,2
3 - Santa Casa da Misericórdia *** 37 2,2 12 0,6 27 0,9 76 1,1
2 - Igreja Matriz da Candelária - - 7 0,3 24 0,8 31 0,4
1 - Igreja de N. Srª do Parto 13 0,8 89 4,2 22 0,7 124 1,8
Outras igrejas matrizes 10 0,6 20 0,9 18 0,6 48 0,7
4 - Igreja Matriz de Santa Rita 8 0,5 4 0,2 16 0,5 28 0,4
3 - Igreja Matriz de São José 23 1,4 20 0,9 14 0,4 57 0,8
2 - Igreja de São Pedro dos Clerigos - - 2 0,1 12 0,4 14 0,2
1 - Cemitério de São Domingos 2 0,1 2 0,1 8 0,3 12 0,2
2 - Igreja de N. Srª Mãe dos homens 4 0,2 3 0,1 9 0,3 16 0,2
3 – Igreja de Santa Luzia 7 0,4 2 0,1 9 0,3 18 0,3
3 - Cemitério da Santa Casa da Misericórdia 16 0,9 2 0,1 8 0,3 26 0,4
2 - Convento do Carmo 9 0,5 - - 6 0,2 15 0,2
3 - Igreja de N. Sr.ª do Bonsucesso/Santa Casa 77 4,5 9 0,4 41 1,3 127 1,8
da Misericórdia
372

2 - Igreja de Santa Cruz dos Militares 1 0,1 - - 2 0,1 3 0,0


4 - Igreja de São Bento 1 0,1 3 0,1 4 0,1 8 0,1
1 - Igreja da O. T. de São Francisco da 15 0,9 1 0,0 1 0,0 17 0,2
Penitência
2 - Igreja da O. T. N. Sr.ª do Carmo 23 1,4 - - 1 0,0 24 0,3
3 - Igreja de N. Sr.ª do Carmo 4 0,2 3 0,1 1 0,0 8 0,1
4 – Igreja de são Joaquim - - 2 0,1 - - 2 0,0

Total 1700 100 2141 100 3171 100 7013 100

Fonte: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da


Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).
* Sem especificação se é de Paula ou da Penitencia.
** Não especifica se é na igreja ou no cemitério de São Domingos.
*** Não especifica se é na igreja de N. S. do Bonsucesso ou no cemitério da Misericórdia.
1 – Sé/Santíssimo Sacramento - 2 - Candelária - 3 – São José – 4 – Santa Rita – 5 – Santana.
Igrejas de irmandades/ordens terceiras de negros e pardos

Observa-se que mesmo em número reduzido, outras igrejas de irmandades


de brancos, ordens terceiras e conventos também sepultaram cativos. O que podemos
supor que seja pelo prestígio e posição social de seus senhores, ou por estes serem
cativos das ordens ou conventos. Embora tal situação possa representar uma dificuldade
que os cativos tinham em conquistar uma sepultura fora das igrejas das irmandades de
negros, se comparados com os livres e forros é significativo, por exemplo, que a Ordem
terceira de São Francisco de Paula tenha sepultado 70 cativos contra 64 livres a 14
forros. É possível que tal situação, ao invés de dificuldade, possa representar para um
grupo de cativos ainda que reduzido, a possibilidade de distinção social quando
comparados com a maioria dos escravizados 49.
Além da distinção social, não podemos esquecer o caráter soteriológico dos
ritos fúnebres católicos, ou seja, ser sepultado dentro de uma igreja ou no seu adro,
conforme afirmaram João Reis e Claudia Rodrigues, está relacionado à sacralidade de
seu solo, casa de Deus e da corte dos seus anjos e santos, naturalmente também deveria
ser a morada do mortos até o dia do juízo final 50. Desta forma, mesmo que fossem
escravizados, pelo simples fato de terem sido sepultados dentro de uma igreja da elite
ou não, acabariam se destacando dos demais cativos que tiveram como destino uma
cova rasa em um dos cemitérios distantes dos templos.
Já a maioria dos forros (ver tabela 31c) foi enterrada na Igreja de São

49
Cf. BRAVO, op. cit., 2014.
50
REIS, op. cit., 1991, p. 171; RODRIGUES, op. cit., 1995, p. 234.
373

Domingos, com 23,3%; em seguida foi escolhida a igreja de Nossa Senhora do Rosário
e São Benedito dos Pretos, com 19%; em terceiro lugar foi escolhida a Igreja de Nossa
Senhora da Lampadosa, com 14,1%; em quarto lugar em escolha para sepultamento
pelos forros viria a Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia, com 11,8%; a Igreja
Matriz com 7,9% viria em quinto lugar, em sexto viria a Igreja de Nossa Senhora da
conceição e Boa Morte, com 7,1%. Entre as outras igrejas temos Nossa Senhora do
Parto, em oitavo lugar, com 4,2% e Igreja do Senhor Bom Jesus e São Gonçalo Garcia e
São Jorge, ambas em nono lugar, com 2,2% respectivamente. Assim, de acordo com os
dados obtidos da tabela, 87,6% dos forros foram sepultados nas igrejas de negros
africanos e seus descendentes e na matriz. Essa maior procura dos forros por sepultura
nas igrejas das irmandades de negros está relacionada à questão de seriam eles mais que
os escravizados que teriam recursos para se filiarem a uma irmandade.
374

Tabela 31c – Locais de sepultamentos de FORROS, em ordem decrescente

CONDIÇÃO SOCIAL LIVRES FORROS ESCRAVOS TOTAL


SEPULTURA
Nº % Nº % Nº % Nº %
1 - Igreja de São Domingos 224 13,2 498 23,3 530 16,7 1252 17,9
1 - Igreja de N. Srª do Rosário 57 3,4 407 19,0 542 17,1 1006 14,3
1 - Igreja de N. Srª. da Lampadosa 63 3,7 301 14,1 593 18,7 957 13,6
1- Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia 13 0,8 252 11,8 268 8,4 533 7,6
1 - Igreja Matriz/Freguesia da Sé 738 43,4 170 7,9 413 13,0 1321 18,8
1 - Igreja de N. Srª. da Conceição e Boa Morte 105 6,2 152 7,1 116 3,7 373 5,3
1 - Igreja de N. Srª do Parto 13 0,8 89 4,2 22 0,7 124 1,8
1 - Igreja do Senhor Bom Jesus/O. T. S. B. Jesus 34 2,0 47 2,2 278 8,8 359 5,1
1 - São Gonçalo Garcia e São Jorge 25 1,5 47 2,2 79 2,5 151 2,2
1 – Igreja do Convento de Santo Antonio 97 5,7 39 1,8 27 0,9 163 2,3
1 - São Domingos *** 26 1,5 28 1,3 28 0,9 82 1,2
3 - Igreja Matriz de São José 23 1,4 20 0,9 14 0,4 57 0,8
Outras igrejas matrizes 10 0,6 20 0,9 18 0,6 48 0,7
1 - Igreja da O. T. de São Francisco de Paula 64 3,8 14 0,7 70 2,2 148 2,1
3 - Santa Casa da Misericórdia **** 37 2,2 12 0,6 27 0,9 76 1,1
3 - Igreja de N. Sr.ª do Bonsucesso/Santa Casa da 77 4,5 9 0,4 41 1,3 127 1,8
Misericórdia
2 - Igreja Matriz da Candelária - - 7 0,3 24 0,8 31 0,4
4 - Igreja Matriz de Santa Rita 8 0,5 4 0,2 16 0,5 28 0,4
1 - Igreja do Senhor dos Passos - - 3 0,1 3 0,1 6 0,1
3 - Igreja de N. Sr.ª do Carmo 4 0,2 3 0,1 1 0,0 8 0,1
1 - Cemitério de São Domingos 2 0,1 2 0,1 8 0,3 12 0,2
2 - Igreja de N. Srª Mãe dos homens 4 0,2 3 0,1 9 0,3 16 0,2
4 - Igreja de São Bento 1 0,1 3 0,1 4 0,1 8 0,1
2 - Igreja de São Pedro dos Clerigos - - 2 0,1 12 0,4 14 0,2
3 – Igreja de Santa Luzia 7 0,4 2 0,1 9 0,3 18 0,3
3 - Cemitério da Santa Casa da Misericórdia 16 0,9 2 0,1 8 0,3 26 0,4
4 – Igreja de são Joaquim - - 2 0,1 - - 2 0,0
1 - Igreja da O. T. de São Francisco** 4 0,2 2 0,1 2 0,1 8 0,1
1 - Igreja da O. T. de São Francisco da Penitência 15 0,9 1 0,0 1 0,0 17 0,2
2 - Igreja da O. T. N. Sr.ª do Carmo 23 1,4 - - 1 0,0 24 0,3
2 - Convento do Carmo 9 0,5 - - 6 0,2 15 0,2
2 - Igreja de Santa Cruz dos Militares 1 0,1 - - 2 0,1 3 0,0

Total 1700 100 2141 100 3171 100 7013 100

Fonte: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da


Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).
(1) destes, 6 foram enterrados em catacumbas.
(2) destes, 1 foi enterrado no claustro.
(3) destes, 3 foram enterrados em catacumbas
(3.1) dois óbitos fazem referência ao sepultamento no Hospital do Carmo.
* Até 1843
** Sem especificação se é de Paula ou da Penitencia.
375

*** Não especifica se é na igreja ou no cemitério de São Domingos.


**** Não especifica se é na igreja de N. S. do Bonsucesso ou no cemitério da Misericórdia.
1 – Sé/Santíssimo Sacramento - 2 - Candelária - 3 – São José – 4 – Santa Rita – 5 – Santana.
Igrejas de irmandades/ordens terceiras de negros e pardos

Ao observarmos a tabela 31d veremos que em relação à condição social, a


maioria dos livres buscou sepultura na igreja matriz, com 43,4%. Claudia Rodrigues
observou que o fato de a maioria dos livres ter procurado a igreja matriz, possivelmente
esteja relacionado à predominância da igrejas das irmandades de negros na freguesia da
Sé Santíssimo Sacramento. 51 Portanto, boa parte deles pode não obtido muita opção de
escolha de sepultura fora da oferecida pela igreja matriz; principalmente aqueles que
não tinham condições de acesso, por exemplo, às sepulturas da Ordem Terceira da São
Francisco de Paula ou ao convento de Santo Antônio, mais caras.
Isto não significa, no entanto, que não lhes fosse facultado, em alguns casos,
o acesso às sepulturas nas igrejas das irmandades de negros. A igreja de São Domingos
foi à segunda opção dos indivíduos livres em busca de sepultura, com 13,2% do total de
inumações; em terceiro lugar viria a igreja de Nossa Senhora da Conceição e Boa
Morte, com 6,2%; em quarto lugar na busca de sepultura pelos livres viria a igreja do
Convento de Santo Antônio, com 5,7%; em quinto viria a igreja de Nossa Senhora do
Bonsucesso/Santa Casa da Misericordia, com 4,5%; em sexto lugar viria a igreja da
Ordem Terceira de São Francisco de Paula, com 3,8%; em sétimo lugar viria a igreja de
Nossa Senhora da Lampadosa, com 3,7%; em oitavo, nono e décimo lugares viria a
igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Pretos, a Santa Casa da
Misericórdia e a igreja do senhor Bom Jesus, com 3,4%, 2,2% e 2% respectivamente.
Em se tratando de igreja de negros ainda teríamos a igreja de São Gonçalo Garcia e São
Jorge em décimo primeiro lugar, com 1,5%. Observamos que 79,1% desses indivíduos
foram sepultados na igreja da matriz e nas igrejas das irmandades ou ordens terceiras de
negros.
Observarmos que embora em quantidade menor que na matriz e nas igrejas
de negros, estes indivíduos foram os que mais buscaram sepulturas fora da freguesia.
Sendo a igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo juntamente com a matriz
de São José as mais procuradas, ambas com 1,4%. O que sugere que estas igrejas
sepultavam quase que exclusivamente membros da elite colonial e imperial. Ao passo

51
RODRIGUES, op. cit. 1996, p. 224.
376

que os indivíduos forros e escravizados teriam menos recursos para pagar o translado
para outra freguesia, levando-se em conta que a freguesia da Sé concentrava
majoritariamente as igrejas das irmandades de negros africanos e seus descendentes,
mantendo-se a tendência observada por Milra Bravo para o período de 1720 a 1808 52.

52
BRAVO, op. cit. p. 149.
377

Tabela31d – Locais de sepultamentos de LIVRES, em ordem decrescente

CONDIÇÃO SOCIAL LIVRES FORROS ESCRAVOS TOTAL


SEPULTURA
Nº % Nº % Nº % Nº %
1 - Igreja Matriz/Freguesia da Sé 738 43,4 170 7,9 413 13,0 1321 18,8
1 - Igreja de São Domingos 224 13,2 498 23,3 530 16,7 1252 17,9
1 - Igreja de N. Srª. da Conceição e Boa Morte 105 6,2 152 7,1 116 3,7 373 5,3
1 – Igreja do Convento de Santo Antonio 97 5,7 39 1,8 27 0,9 163 2,3
3 - Igreja de N. Sr.ª do Bonsucesso/Santa Casa da 77 4,5 9 0,4 41 1,3 127 1,8
Misericórdia
1 - Igreja da O. T. de São Francisco de Paula 64 3,8 14 0,7 70 2,2 148 2,1
1 - Igreja de N. Srª. da Lampadosa 63 3,7 301 14,1 593 18,7 957 13,6
1 - Igreja de N. Srª do Rosário 57 3,4 407 19,0 542 17,1 1006 14,3
3 - Santa Casa da Misericórdia **** 37 2,2 12 0,6 27 0,9 76 1,1
1 - Igreja do Senhor Bom Jesus/O. T. S. B. Jesus 34 2,0 47 2,2 278 8,8 359 5,1
1 - São Gonçalo Garcia e São Jorge 25 1,5 47 2,2 79 2,5 151 2,2
1 - São Domingos *** 26 1,5 28 1,3 28 0,9 82 1,2
2 - Igreja da O. T. N. Sr.ª do Carmo 23 1,4 - - 1 0,0 24 0,3
3 - Igreja Matriz de São José 23 1,4 20 0,9 14 0,4 57 0,8
1 - Igreja da O. T. de São Francisco da Penitência 15 0,9 1 0,0 1 0,0 17 0,2
3 - Cemitério da Santa Casa da Misericórdia 16 0,9 2 0,1 8 0,3 26 0,4
1 - Igreja de N. Srª do Parto 13 0,8 89 4,2 22 0,7 124 1,8
1- Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia 13 0,8 252 11,8 268 8,4 533 7,6
Outras igrejas matrizes 10 0,6 20 0,9 18 0,6 48 0,7
2 - Convento do Carmo 9 0,5 - - 6 0,2 15 0,2
4 - Igreja Matriz de Santa Rita 8 0,5 4 0,2 16 0,5 28 0,4
3 – Igreja de Santa Luzia 7 0,4 2 0,1 9 0,3 18 0,3
1 - Igreja da O. T. de São Francisco** 4 0,2 2 0,1 2 0,1 8 0,1
3 - Igreja de N. Sr.ª do Carmo 4 0,2 3 0,1 1 0,0 8 0,1
2 - Igreja de N. Srª Mãe dos homens 4 0,2 3 0,1 9 0,3 16 0,2
1 - Cemitério de São Domingos 2 0,1 2 0,1 8 0,3 12 0,2
4 - Igreja de São Bento 1 0,1 3 0,1 4 0,1 8 0,1
2 - Igreja de Santa Cruz dos Militares 1 0,1 - - 2 0,1 3 0,0
1 - Igreja do Senhor dos Passos - - 3 0,1 3 0,1 6 0,1
2 - Igreja Matriz da Candelária - - 7 0,3 24 0,8 31 0,4
2 - Igreja de São Pedro dos Clerigos - - 2 0,1 12 0,4 14 0,2
4 – Igreja de são Joaquim - - 2 0,1 - - 2 0,0

Total 1700 100 2141 100 3171 100 7013 100

Fonte: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da


Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).
(1) destes, 6 foram enterrados em catacumbas.
(2) destes, 1 foi enterrado no claustro.
(3) destes, 3 foram enterrados em catacumbas
(3.1) dois óbitos fazem referência ao sepultamento no Hospital do Carmo.
* Até 1843
** Sem especificação se é de Paula ou da Penitencia.
*** Não especifica se é na igreja ou no cemitério de São Domingos.
**** Não especifica se é na igreja de N. S. do Bonsucesso ou no cemitério da Misericórdia.
378

1 – Sé/Santíssimo Sacramento - 2 - Candelária - 3 – São José – 4 – Santa Rita – 5 – Santana.


Igrejas de irmandades/ordens terceiras de negros e pardos

Ao analisarmos a tabela 32, com os locais de sepultamentos quanto à


origem, observamos que os crioulos em sua maioria foram enterrados na igreja
Matriz/Freguesia da Sé com 18,1%. Depois foram para a igreja do Rosário e São
Benedito dos Pretos com 17,9%; em terceiro lugar igreja de São Domingos. com 17,2%,
e em quarto e quinto lugares respectivamente igreja de Nossa senhora da Lampadosa
com 11,27% e Santo Elesbão e Santa Efigênia com 10,9%. Observamos que mesmo
tendo sido a igreja Matriz/Freguesia da Sé o local de preferência para inumação dos
crioulos, o que pode indicar, conforme observou Rodrigues uma maior integração dos
crioulos com a comunidade paroquial, mas no total geral, foram as igrejas das
irmandades de negros africanos e seus descendentes que receberam o maior número de
mortos de origem crioula. No entanto, não podemos esquecer que uma maior procura
dos crioulos pela igreja matriz os aproxima dos padrões da comunidade dos livres,
evidenciando assim, maior inserção dos crioulos no universo da liberdade, mesmo que
eventualmente a condição fosse de cativo.
Enquanto os africanos tiveram como preferências as igrejas das irmandades
de negros, sendo a igreja de Nossa Senhora da Lampadosa a que recebeu o maior
número de sepultamentos, com 24,0%; seguida da igreja de Nossa Senhora do Rosário e
São Benedito dos Pretos, com 19,5%; em terceiro a igreja de Santo Elesbão e Santa
Efigênia, com 16,0%; em quarto lugar a Igreja de São Domingos, com 15,0% e em
quinto lugar a Igreja de Bom Jesus, com 5,8%. De acordo com João Reis, o medo dos
africanos escravizados de acabarem inumados nos cemitérios fez com que eles se
associassem as irmandades, com objetivo de ter uma sepultura decente. O que, segundo
o autor, não era a mesma coisa que um túmulo na própria casa, como ocorria na África
dos nagôs, jejes e tapas, ou no jasigo dos reis, na aldeia e na floresta como era entre os
angolas, benguelas, congos e cafres em gral. Assim como, redefiniram também as noções de
parentesco doméstico, e a irmandade substituiu a casa de linhagem. O trauma do tráfico e
escravidão impossibilitou aos africanos escravizados viver entre os seus parentes, mas
morrer em uma família ritual e com ela passar para o além tornou-se possível com a
irmandade. Nesse sentido passamos a analisar os lugares de enterramentos em algumas
sociedades africanas do tronco Bantu, estabelecendo algumas comparações com as
imagens e relatos do pintor francês Jean de Baptiste Debret e os relatos do viajante
americano Daniel P. Kidder que estiveram no Rio de Janeiro na primeira metade do
379

século XIX.

Tabela 32 – Locais de sepultamentos de acordo com a ORIGEM


SEPULTURA CRIOULOS AFRICANOS TOTAL
Nº % Nº % Nº %
1 - Igreja Matriz/Freguesia da Sé 222 18,1 59 3,7 281 10,0
1 - Igreja de N. Srª do Rosário e São Benedito 219 17,9 307 19,5 526 18,8
1 - Igreja de São Domingos 211 17,2 235 15,0 446 15,9
1 - Igreja de N. Srª. da Lampadosa 138 11,3 377 24,0 515 18,4
1- Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia 134 10,9 253 16,0 387 13,8
1 - Igreja do Senhor Bom Jesus/O. T. S. B. Jesus 73 6,0 91 5,8 164 5,8
1 - Igreja de N. Srª do Parto 62 5,1 4 0,3 66 2,4
1 - São Gonçalo Garcia e São Jorge 51 4,2 48 3,0 99 3,5
1 - Igreja de N. Srª. da Conceição e Boa Morte 30 2,5 23 1,5 53 1,8
1 - Igreja da O. T. de São Francisco de Paula 12 1,0 11 0,7 23 0,8
1 – Igreja do Convento de Santo Antonio 12 1,0 2 0,1 14 0,5
2 - Igreja de São Pedro dos Clerigos 10 0,8 1 0,1 11 0,4
1 - São Domingos ** 9 0,7 22 1,4 31 1,1
Outras igrejas matrizes 8 0,7 14 0,9 22 0,8
3 –Santa Casa da Misericórdia *** 5 0,4 14 0,9 19 0,7
2 - Convento do Carmo 3 0,2 - - 3 0,1
1 - Igreja da O. T. de São Francisco* 3 0,2 2 0,1 5 0,2
3 - Igreja de N. Sr.ª do Bonsucesso/Santa Casa da 3 0,2 7 0,4 10 0,4
Misericórdia
3 - Igreja Matriz de São José 3 0,2 83 5,3 86 3,0
2 - Igreja Matriz da Candelária 2 0,2 5 0,3 7 0,3
3 - Cemitério da Santa Casa da Misericórdia 2 0,1 2 0,1 4 0,1
4 - Igreja de São Bento 2 0,1 2 0,1 4 0,1
1 - Igreja do Senhor dos Passos 2 0,1 1 0,1 3 0,1
1 - Igreja da O. T. de São Francisco da Penitência 2 0,2 - - 2 0,1
1 - Cemitério de São Domingos 1 0,1 4 0,3 5 0,2
2 - Igreja de N. Srª Mãe dos homens - - 3 0,2 3 0,1
4 - Igreja Matriz de Santa Rita 1 0,1 3 0,2 4 0,1
2 - Igreja da O. T. N. Sr.ª do Carmo 1 0,1 1 0,1 2 0,1
4 – Igreja de são Joaquim - - 1 0,1 1 0,1
2 - Igreja de Santa Cruz dos Militares 1 0,1 - - 1 0,1
3 - Igreja de N. Sr.ª do Carmo 1 0,1 - - 1 0,1
3 – Igreja de Santa Luzia 1 0,1 - - 1 0,1

Total 1224 100 1575 100 2799 100

Fonte: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da


Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).
* Sem especificação se é de Paula ou da Penitencia.
** Não especifica se é na igreja ou no cemitério de São Domingos.
*** Não especifica se é na igreja de N. S. do Bonsucesso ou no cemitério da Misericórdia.
1 – Sé/Santíssimo Sacramento - 2 - Candelária - 3 – São José – 4 – Santa Rita – 5 – Santana
Igrejas irmandades/ordens terceiras de negros e pardos

6.2 Lugares dos mortos em algumas sociedades centro-africanas

De acordo com o padre Raul Ruiz de Asúa Altuna muitos grupos bantu da
região de Angola enterravam seus mortos perto de suas casas ou dentro delas e as
destruíam quando terminava o luto. Era mais comum sepultá-los próximo às aldeias e à
380

beira dos caminhos para que os vivos lhe prestassem homenagem, todas as vezes que
passassem, inclinando a cabeça, aguardando silêncio ou depositando oferendas no
tumulo. Havia os cemitérios familiares em paragens solitárias e bem defendidas nas
florestas, normalmente cada aldeia tinha um cemitério comunitário 53. De certa forma,
este relato pode ser aproximado àquela determinação das Constituições Primeiras
mencionada anteriormente que justificava a necessidade de sepultura nos templos como
uma forma de os vivos manterem o contato com seus mortos, encomendando-lhe
orações.
Ainda segundo o padre Altuna, os pastores enterravam o chefe da família
normalmente no curral dos bois ou no lugar em que se acendia a fogueira. Os feiticeiros,
caçadores e guerreiros, quando eram pessoas de notória reputação, eram sepultados a
beira dos caminhos bem frequentados, ou nas encruzilhadas, sempre próximos a uma
arvore, onde seus instrumentos de trabalho, armas e troféus eram pendurados.
Buscavam agradar ao falecido colocando seu corpo em lugares familiares e rodeado de
seus objetos e bens, ao mesmo tempo que fortaleciam com a sua presença a
solidariedade. Os Quibalas de Angola depositavam os chefes sobre rochas e cobriam-
nos com pedras bem trabalhadas, formando um sarcófago retangular 54.
Henri Junod ao analisar os rituais de morte e sepultamento entre os Rhonga
de Moçambique, observou que quando morre um chefe, os homens da aldeia cavavam o
túmulo em um lugar atraz da palhota do morto ou mais longe, na pequena floresta que
em geral rodeia a aldeia, ou então no ntimu, bosque sagrado, e se o morto fosse um dos
guardas da floresta, se pertencia ao ramo primogênito da família, os coveiros buscam
um local próximo a uma arvore para cavar o túmulo, para que alguns objetos que
pertenciam ao morto fossem pendurados para serem conservados e purificados. A cova
em geral media cerca de seis pés de cumprimento, quatro de largura, dois e meio de
profundidade. Num dos lados abriam uma segunda cova mais ou menos circular com as
paredes bem aplanadas. Alguns grupos tinham o costume de rebocar as paredes com
lama tirada do rio. Colocavam ao lado do corpo um caniço e espalham no fundo do
túmulo erva que tinha crescido na agua, assim, o túmulo é, de certo modo, um duplo.
Apresenta dois níveis: o primeiro é o lugar público (huvu) do morto; o segundo é sua
palhota (yindlu ou xinyatu). O morto habita na palhota, mas sai para sentar-se na praça
subterrânea, exatamente como costumava fazer quando vivia na aldeia.

53
ALTUNA, Raul Ruiz de Asúa. A Cultura tradicional bantu. Prior Velho Portugal: Paulinas, 2014, p. p.
443.
54
ALTUNA, op. cit., 14, p. p. 443-44.
381

Depois de aprontarem o túmulo os coveiros, chamavam os parentes do


morto para verificarem se o túmulo foi construído de acordo com as necessidades do
morto. No momento em que os parentes se apresentam para verificar o túmulo, se a
terra da parede do tumulo vai abaixo, é sinal de mal presságio. Significa que a pessoa
que enfeitçou o morto está presente ou então um dos presentes é culpado de matluana
com ele, ou seja, teve relações sexuais com a mesma mulher que o morto. O tumulo é
um mhondro, isto é um meio mágico de adivinhação. Nos clãs do sul, o túmulo do
marido ou da mulher é cavado diante da palhota onde moravam, pois esta sera
abandonada. Quando o defunto é criança, é costume enterrarem-na ao lado da palhota,
neste caso a palhota não é destruída. Constroem ao redor do túmulo, uma paliçada de
paus cobertos com argila. Assim, não esquecem o lugar onde o corpo foi sepultado 55
Mas outras concepoções africanas sobre o local de sepultamento defendiam
o distanciamento das sepulturas em relação aos vivos. O padre Cavazzi observou que na
região do Congo e de Matamba, especialmente os camponeses e os cultivadores de
palmeiras congoleses enterravam os seus mortos nas florestas e longe das habitações,
realizam diversas cerimonias fúnebres conforme costume antigo de cada povo. Alguns
colocam o cadáver na cova de lado com o rosto virado para a parede, pois acreditavam
que assim a alma demoraria um tempo para sair do corpo. Desta forma, não poderia
incomodar os vivos caso estes não tivessem condições de cumprir com todas as
cerimonias com a liberdade e religião que a alma desejava. Outros construíam casa,
cavavam grutas, abriam cavernas onde colocavam o cadáver de algum príncipe, sentado
em posição de mando. Matavam criados e escravos, colocando-os à volta de seu dono
para que o sirvam e lhe assistam as suas necessidades. Abriam uma janela para o
exterior que comunicava, através de um cano, com a boca do cadáver, para lhe
transmitirem de tempo em tempo provisões de comida 56.
João Julião observou que entre os cafres na região de Sofala, em
Moçambique, o cadáver era enterrado em terra virgem, em uma cova funda, deitado do
lado direito com as pernas encolhidas, e a mão daquele lado debaixo da cabeça como
eles costumam dormir; depois de tapada a cova alisam a terra com água, para saber se
algum feiticeiro tentou desenterrar o corpo. Somente os parentes acompanham o enterro
até o final. Já os reis, eram enterrados no jazigo dos Reis, uma grande montanha

55
JUNOD, HENRI. Usos e Costumes Bantu. Campinas, SP: UNICAMP, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, 2009, pp. 136-7.
56
CAVAZZI DE MONTECÚCCOLO, Pe. João António. Descrição histórica dos três reinos do Congo,
Matamba e Angola. Tradução, notas e índices do Pe. Graciano Maria de Leguzzano. Lisboa: Junta de
Investigações do Ultramar, 1965, v.1, p. 124-6.
382

denominada mugamo, onde havia duas grutas naturais abertas na rocha, dentro das quais
eram depositados os ruessos, ou seja, ossos dos reis falecidos 57. Depositavam na
sepultura alguns objetos, como: uma cabeça de boi, uma cabaça ou garrafa com água,
mel, aguardente, alimentos, copo, taça, prato, instrumentos de trabalho, os troféus de
caça 58. Se o morto fosse nobre, colocavam uma cadeira, o arco, as setas, o chifre, a taça
e os outros utensílios por ele usados em vida. Observa-se que esses objetos eram
depositados no túmulo de acordo com a condição social do morto. Os indivíduos de
condição inferior tinham como insígnia da sua arte: caveira de feras para os caçadores;
cítaras, tambores e castanholas para os tocadores; cestos cheios de facas, emplastros,
raízes e ervas para os curandeiros. Os serralheiros, porém, tinham incontestável
superioridade sobre os demais, por ser a sua arte dos primeiros reis do Congo. Sobre os
seus túmulos eram depositados martelo, foles e bigornas com uma coroa por cima,
privilégio especial desta arte tão nobre e tão respeitada 59.
Os butongas besuntavam o cadáver com almagre (argila avermelhada – ocre
vermelho) e manteiga dobravam seu corpo como um feto no ventre da mãe, o
colocavam em um saco de cascas de certas arvores que tiravam também para outros
usos; amarravam bem a boca; faziam cova no formato de um poço redondo; e
colocavam o defunto sentado dentro do saco. Enterravam com morto carne, tabaco etc.,
pois acreditam que os espíritos dos mortos tinham necessidades semelhantes as dos
vivos, tais como comer, beber, fumar, etc 60.” De acordo com Sebastião Xavier Botelho,
os Cafres “enterram com o defunto todas as suas armas, arco e flechas, e azagaias;
dentro da cova lançam milho, arroz, feijões, e outros legumes; em cima depositam o
leito em que dormia, e as tripeças em que se assentava, e depois tapavam a cova” 61. Os
alimentos e bebidas eram depositados com certa periodicidade, pois acreditavam que os
mesmos ajudavam o morto a realizar a viagem para a nova morada, ao mesmo tempo
era uma forma de estabelecer entre os mortos e os vivos uma corrente vital 62.
Ao analisar os cerimoniais angolanas de sepultamento, conhecidos por
entambes (itambi), Arthur Ramos observou, que era motivo de festa para alguns e choro
e lamentações para outros “chora-se dão-se tiros em sinal de tristeza, e ao mesmo tempo
dançam, jogam, brincam, comem e embriagam-se”. Esta cerimonia durava oito dias, ao
final o dono do “itambi”, ou seja o parente mais próximo do morto oferece o banquete

57
SILVA, op. cit., p. 79;111 e 169; cf. BOTELHO, op. cit., p. 167 e 216.
58
ALTUNA, op. cit., p. 444.
59
CAVAZZI DE MONTECÚCCOLO, op. cit., p. 127.
60
SILVA, op. cit., pp. 112-3.
61
BOTELHO, op. cit., p. 216.
62
ALTUNA, op. cit., p. 444-5.
383

ritual aos convidados. Em certos funerais realizam o “costume de cum bandama,


quando um dos cônjuges falece, o sobrevivente tem de dormir uma noite com o cadáver
e com ele coabitar!” Enterram o corpo normalmente na propriedade pertencente ao
falecido ou de um parente mais próximo. O cadáver é colocado sentado ou na posição
horizontal, depositam no tumulo toda a “variedade de comida” a com o propósito de
alimentar a alma do falecido. Finalizam a cerimonia com grande comilância e
63
bebedeira . De acordo com Cavazzi, entre os Jagas logo após a morte de uma pessoa,
os parentes e amigos preparam-se para celebrar o “tambo”, como é conhecida a
cerimônia fúnebre. Se o defunto foi uma pessoa importante, ao redor de sua casa eram
construídas varias palhotas 64, para morarem durante oito dias os participantes do
cerimonial. A casa do morto ficava no meio, diante da qual se preparava um assoalho
coberto de esteiras, e sobre este colocava um cadeira, onde se colocava o cadáver com a
cabeça inclinada para trás. Permanecia nessa posição durante oito dias para receber as
homenagens de toda a população. O individuo que dirigia o cerimonial com danças,
musicas e outros ritos, seria digno de louvor se cuidasse para que não faltasse nada para
o bom êxito da cerimonia. Também seria digno de louvor aquele que durante o período
de quatros horas seguidas dançasse e encorajasse os companheiros a não interromper a
dança nem por causa do calor ou cansaço.

A festa começa pela madrugada e, durante todo o tempo que


durar [...] Os dançarinos, com grande admiração [...] giram
como piões sobre um único pé; depois, envencilhados entre si,
dão voltas precipitadamente, levantando vozes confusas, sem
que ninguém possa compreender se eles falam, cantam, choram,
riem, se se queixam ou se se alegram pela morte daquela
pessoa 65.

De acordo com Linda Heywood relatos de oficiais portugueses do século


XVIII, mostram como os entambes, eram funerais em que rituais africanos e católicos
coexistiam. “Muitos desses oficiais ficavam escandalizados ao perceber como os rituais
da Igreja tornaram-se africanizados e ficavam alarmados ao ver europeus participando
no que eles descreviam como ‘ritos não cristãos’ que vieram a dominar as práticas

63
RAMOS, Arthur. O Negro Brasileiro: etnografia religiosa e psicanalise. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1934, pp. 211-212.
64
Construção rústica africana, geralmente coberta de ramos ou palha. tambem conhecida como palhoça
ou palhote. In Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021,
https://dicionario.priberam.org/palhota [consultado em 23-11-2021].
65
CAVAZZI DE MONTECÚCCOLO, op. cit., p. 128-9.
384

religiosas da Igreja” 66. Dom Francisco Inocêncio de Souza Coutinho, governador de


Angola de 1764 a 1777 fez várias tentativas para extinguir tais cerimonias. concentrou
seus esforços em restaurar a fé católica em Angola. Em um bando que editou para
proibir tais cerimonias, o gvernador registra o seu profundo sentimento de repulsa em
relação a tais rituais que ele classificou como barbaridades praticados pelos negros, com
a participação de muitos brancos e que envolviam uma complexa presença de
escravizados, acompanhado de um choro compulsivo ao som de palmas e música com
tambores, dança indecente e bebedeira 67.

Havendo o nosso augustissimo e clementissimo soberano


proibido por diversas leis sumptuarias, e ultimamene pelas
pragmáticas do ano de 1749 e 1759, as excessivas despesas que
se faziam com os lutos das familias nas ocasioes de morte de
seus amos, ou parentes [...] chorarem todos em altos e
desagradáveis gritos por muitos dias e por muitos meses,
renovando o choro em certas horas, e reebendo as visitas na
mesma barbara confusão,[...] e o que ainda é mais escandaloso
acompanharem os corpos à sepultura muitas negras, chorando, e
repetindo em confusas lágrimas como vitudes as mais torpes e
repugnantes ações da lascivia, que caracterizam o merecimento
entre os negros, cujo venerado obsequio do seu chamado
estambe [sic] produz muitas desordens inimigas d apureza da
religiao, e dos bons costumes [...]declaro a todos os habitantes
desta capital que reconhecendo o beneficio de semelhante
proibição, façam uma seria reflexao sobre a indignidade de uns
costumes só digno das libatas dos potentados do sertão, e de
nenhum modo da capital de um reino conquistado gloriosamente
para o cristianismo 68.

Para Souza Coutinho os entambes era um costume bárbaro e gentílico, um


vício criminoso que ele buscava combater na tentativa de impor ao angolanos as
concepções eurpeias 69 sobre a morte expressa em sua fala de que tais costumes
deveriam ser extintos de uma capital e um reino conquistado gloriosamente para o
cristianismo e a monarquia portuguesa. Para alcançar seus objetivos Souza Coutinho
restaurou igrejas antigas, construiu novas, enviou instruções aos capitães-mores para
construírem com urgência cemitérios em seus distritos para que os africanos que

66
HEYWOOD, Linda M. De português a africano: a origem centro-africana das culturas atlânticas
crioulas no século XVIII. In HEYWOOD. Linda M. (org). Diáspora negra no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2008, p.109.
67
HEYWOOD, op. cit., 2008, p. 110; DELFINO, op. cit., 2017, p. 337.
68
Bando em que o governador Dom Francsico Inocencio de Souza coutinho proibe os estambes e varios
indignos abusos em Angola. Angola, Cx. 49 doc. 4. Agradeço ao professor Roberto Guedes por ter me
cedido esse documento.
69
DEL PRIORE, op. cit., p. 133.
385

viessem de lugares distantes dos presidos recebessem um enterro adequado 70. No


entanto, na fala do governador é possível perceber sua frustração e/ou indignação, pois
não só os grupos de africanos continuaram praticando seus entambes, como muitos
brancos aderiam a ele e participavam com fervor dessas cerimonias. Dez anos após o
seu governo Linda Reywood registrou que os relatórios portugueses e relatos dos
viajantes continuavam a relatar as cerimonias de entambes em Angola com a
particpação dos brancos nesses “rituais pagãos” 71. O que permite percebemos a
fragilidade das leis portuguesas e da doutrina do cristianismo em Angola.
Augusto Bastos observou que entre os benguelas havia cerimonias
mortuárias semelhantes. Logo após morrer alguém, a mobília e os trates de seu quarto
eram retirados. Em seguida o cadáver era banhado para receber indumentária especial
(mortalha) para o enterro. A casa mortuária era arrumada ao escurecer, quando todos já
haviam se recolhido, retirava-se o cadáver do quarto, o colocavam em uma tipoia e o
conduziam ao local da cerimonia. O feiticeiro então o perguntava qual foi a causa da
morte, se foi feitiço ou espirito 72. Dependendo da importância do morto, os ritos
fúnebres poderiam durar de três a dez dias; durante as exéquias, havia “danças, cantos,
bebidas, matando-se dias a dias um porco para comerem”. Antes do enterro, “um
mensageiro apregoava ao redor do cemitério que ia ser enterrado o fulano de tal filho de
fulano, rezando a genealogia e qualidades do morto. No cemitério matavam um boi,
cujo sangue era derramado na sepultura, depois colocavam nesta também a cabeça do
boi morto, que servia de almofada para a cabeça do morto. Ao fim dessas cerimonias
realizavam o sepultamento”. Após este, a carne de boi era distribuída entre aqueles que
acompanharam o morto até cemitério. “Os participantes do ritual presenteavam o morto
com galinhas, porcos, aguardente e quimbombo (bode)”. Entre os ganguelas o costume
de enterrar os defuntos com os seus escravizados vivos, era sinal de distinção social do
morto, de acordo com a crença de que os cativos sacrificados serviriam ao morto no
além-túmulo 73.
Os alimentos eram sacralizados e serviam de símbolo eficaz para que o
homem, e, sobretudo a comunidade, se conectasse com a realidade mística tornando-as

70
HEYWOOD, op.cit., p. 109.
71
Idem., p.110.
72
Morte por feitiço, era aquela causado por um feiticeiro através de ritos mágicos com drogas maléficas,
ervas venenosas, raíszes, casca de determinadas arvores, ossos, pelos, sangue de animais e humanos etc.
Morte por espirito, geralmente era causada pelo espirito de um antepassado como forma de castigar
aqueles que haviam falhado com suas obrigações familiares não lhes homenageando com rituais
condignos (SWEET, P. 129)
73
BASTOS, Augusto. Traços gerais sobre etnografia do Distrito de Benguela, Lisboa: Tipografia
Universal, 1909, pp. 53-5. Apud. DELFINO, op. cit., 2017, pp. 339-40.
386

propícias e se estreitando em uma comunhão de vida. Pela comida sacrificada, ou


ofertada o bantu libertava a vida essencial da oferenda, pois ela entrava em comunhão
vital e reafirmava a vitalidade do oferente e do oferendado. A sacralização do alimento
pode ser compreendida através da ontologia bantu, pois como a vida é considerada o
principio iniciador e valor fundamental, manifestando-se com energia, força e
fecundidade, necessita permanentemente do alimento-força. Nesse sentido, o alimento
estava na base ontológica de todos os seres criados e possuia um proposito sacral, por
ele próprio ser essencialmente vida e força, sendo considerado sagrado. Quando os
bantus depositavam alimentos sobre as sepulturas estavam realizando um ato
profundamente religioso de vivência de sua fé 74.
Todos estes relatos demonstram a preocupação que as diferentes sociedades
e culturas africanas demonstravam em relação às práticas de sepultamento. Preocupação
que também identificamos no Rio de Janeiro, embora a característica desta sociedade
cristã fosse o direcionamento desta preocupação para a busca do sepultamento em
espaço que preservasse o cadáver e que fosse sagrado.
Debret pintou e descreveu uma cena do enterro de uma negra pobre de
origem moçambicana que foi enterrada na igreja da Lampadosa na cidade do Rio de
Janeiro no início do século XIX em que a família não tinha recursos para o funeral.
Então, transportaram o corpo em uma rede e o depositam em frente de uma igreja ou
para porta de uma venda. Aí uma ou duas mulheres conservam acesa uma pequena vela
junto à rede funerária e recolhendo dos passantes caridosos módicas esmolas para
completar a importância necessária para o sepultamento em uma igreja ou na Santa
Casa de Misericórdia. Como se trata de um enterro de uma negra, o cortejo é formado
unicamente por mulheres, os homens presentes estão cumprindo funções no funeral, ou
seja, os dois carregadores da rede funerária, um mestre de cerimonias que preside a
celebração e um que toca o tambor, que puxava o cortejo e ditava o seu ritmo, ora
adiantando-se, ora detendo-se para tocar. Segundo Silvia Castri, a presença imponente
da igreja, com a parede branca, cor símbolo da pureza católica, dominando boa parte da
imagem, reforça a ideia de uma celebração influenciada pelo catolicismo. A morte se
apresenta de forma “disfórica”, causa inquietação “rompendo com a da continuidade da
vida, a celebração é eufemística”, sem muita pompa, “o barulho está sob medida”, o
ritual “religioso parece se render ao paradigma católico ocidental da morte, a morte é o

74
ALTUNA, op. cit., pp. 443-46.
387

fim da vida, momento triste, de despedida” 75.


No entanto, é possível perceber a presença dos elementos africanos na
celebração. De acordo com João Reis, nos funerais cariocas descritos por viajantes no
início do século XIX, os elementos africanos predominavam do velório à porta da
igreja 76. A exemplo do cortejo fúnebre formado unicamente por mulheres, o tambor, o
mestre de cerimonias, as palmas e o canto fúnebre em língua “nacional” em homenagem
à defunta. No momento em que o mestre de cerimonias faz o cortejo parar a porta da
igreja, o “tambor aproveita para fazer rufar o seu instrumento, enquanto as negras
depositam seus fardos no chão, a fim de homenagear a defunta com canto fúnebre e
palmas, sendo a mesma, acompanhada por oito parentes ou amigas íntimas que tocam
sua mortalha”. O viajante observa que “entre os moçambiques as palavras do canto
fúnebre são especialmente notáveis pelo seu sentido inteiramente cristão”. Ele nós da à
tradução em português; “nós estamos chorando o nosso parente, não enxergamos mais;
vai embaixo da terra até o dia do juízo, hei de século seculorum amém”. A “exposição
pública do cadáver atrai a atenção dos curiosos, sobretudo dos compatriotas da defunta
que também contribuem para o enterro”, pois entre os moçambiques é inadmissível
deixar os irmãos sem sepultura 77, tal questão remete à herança africana em que deixar o
morto sem sepultamento ou não realizar os ritos fúnebres de forma adequada causaria
desequilíbrio e traria infortúnios para a comunidade.

Imagem 4 – Enterro de uma negra prancha 16

75
CASTRI, Sílvia Regina Lorenso Castri. A cosmovisão africana sobre a morte nas telas de Jean Baptiste
Debret. University of Texas at Austin. XXIX Annual ILASSA Student Conference. p. 10. Disponível
em: http://lanic.utexas.edu/project/etext/llilas/ilassa/2009/loreno.pdf. acesso em 27/06/2021.
76
REIS, João José. A morte é uma festa... p.160.
77
DEBRET, Jean-Baptiste.Voyage pittoresque et historique au Brésil. Paris, Frimin Didot Frères,
Imprimeurs de L’institut de france, Libraires, 1839. Tome troisième. p. 152.
388

Fonte: Debret, Jean-Baptiste (desenhista), 1768-1848. Voyage pittoresque et historique


au Brésil. Tome troisième. p. 28. Disponível em:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon393054/icon393054_151.jpg
acesso em 10 de junho de 2021.

Pode-se perceber através das imagens e relatos de Debret que africanos e


seus descendentes conseguiram preservar vários elementos da sua cultura de origem no
Rio de Janeiro colonial e imperial que, juntamente com elementos do catolicismo,
deram origem a uma religiosidade multifacetada. Através da Imagem 5, que retrata o
enterro do filho de um rei negro, pode-se observar com mais intensidade a presença de
elementos da herança africana e como o cativeiro não eliminou as hierarquias sociais
trazidas das sociedades africanas 78, expressas na fala de Debret:

Não é extraordinário encontrarem-se, entre a multidão de


escravos empregados no Rio de Janeiro, alguns grandes
dignitários etiópicos e mesmo filhos de soberanos de pequenas
tribos selvagens. É digno de nota que essas realezas ignoradas,
privadas de suas insígnias, continuem veneradas por seus
antigos vassalos, hoje companheiros de infortúnio no Brasil. [...]
É comum [...] o súdito saudar respeitosamente o soberano de sua
casta, beijar-lhe a mão e pedir-lhe a bênção. Dedicado,
confiando nos conhecimentos de seu rei, consulta-o nas
circunstancias difíceis. [...] cobre com seus andrajos a sua
grandeza e, revestido de suas insígnias reais, preside anualmente
78
REIS, op. cit., 1991, p. 161.
389

[...] as solenidades reais de seus súditos. Ao morrer ele é exposto


estendido na sua esteira com o rosto descoberto e a boca fechada
por um lenço 79.

Imagem 5 – Enterro do filho de um rei negro prancha 16

Fonte: Debret, Jean-Baptiste (desenhista), 1768-1848. Voyage pittoresque et historique


au Brésil. Tome troisième. p. 28. Disponível em:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon393054/icon393054_151.jpg
acesso em 10 de junho de 2021

Durante o concorrido velório relatado por Debret, o morto foi


cerimoniosamente visitado por “deputações” de diferentes grupos de procedência
africana que compreendiam a população liberta escravizada no Rio de Janeiro. Do
amanhecer ao anoitecer reinava um clima de festa, com música e dança ao som de
instrumentos africanos acompanhados por palmas, que misturavam-se ao som de
bombas e rojões. No momento da saída do cortejo fúnebre, o mestre de cerimonias que
dirige o ritual, abre caminho a bengaladas em meio à multidão para dar passagem ao
cadáver do soberano que é levado em uma rede coberta com um pano mortuário. Neste
momento soltam-se bombas e rojões, e três ou quatro negros fazem acrobacias dando
saltos mortais e outras “cabriolas” para saudar o morto e animar a cena. O defunto é
respeitosamente acompanhado em silêncio por amigos e pelas delegações africanas.

79
DEBRET, Jean-Baptiste.Voyage pittoresque et historique au Brésil. Paris, Frimin Didot Frères,
Imprimeurs de L’institut de france, Libraires, 1839. Tome troisième. p. 153.
390

Finalmente a marcha é encerrada por alguns negros, armados de bengala, formando a


retaguarda, que tem por missão manter a distância respeitosa os “curiosos” que
acompanham o cortejo. Durante a cerimonia de enterro, no lado de fora da igreja
soltavam-se mais bombas e rojões, em meio às palmas e “som dos instrumentos
africanos que acompanhavam os cantos, dos nacionais de ambos os sexos e todas as
idades, reunidos na praça em frente à igreja” 80. “A morte é eufórica, justamente por não
ser uma ruptura, mas continuidade da vida que se prolonga na morte” em um outro
plano, na comunidade dos ancestrais. “O ritual pode ser entendido como a
reinterpretação de um passado livre, de um corpo livre em festa” 81, apesar da opressão
do cativeiro presente nos soldados da polícia que dispersam a chibatadas os últimos
participantes do ritual, que reúne diferentes elementos da cultura africana: a dança, a
música em língua nacional, os instrumentos africanos, muito embora o corpo fosse
inumado em uma igreja, o que sugere uma dupla pertença religiosa 82.
De acordo com Debret, a necessidade de envolver a parte inferior do rosto
do morto com um lenço se deve ao costume de os africanos colocarem uma moeda na
boca do defunto. Embora não tenhamos como comprovar se de fato essa parte do ritual
ocorria ou não, este relato de Debret sugere que elementos da religiosidade africana e do
catolicismo, coexistiam. Não era problema algum para os africanos e seus descendentes
adotar as duas religiões, umas vez que ambas, segundo seus dogmas, preceitos e
cosmologias, ao mesmo tempo que garantiam a salvação da alma do morto83
possibilitavam o culto aos ancestrais 84.
Na imagem é possível perceber um negro na posição invertida, de cabeça
para baixo. Ao descrever a cena, Debret dá destaque à presença do “negro fogueteiro
que soltava bombas e rojões, três ou quatro negros volteadores, dando saltos mortais,
fazendo mil e outras cabriolas para animar a cena” 85. Tal descrição demonstra o
desconhecimento por parte do autor do real significado religioso de tais práticas para os
80
DEBRET, op. cit.,, 1839. Tome troisième. p. 153.
81
CASTRI, Sílvia Regina Lorenso Castri. A cosmovisão africana sobre a morte nas telas de Jean Baptiste
Debret. University of Texas at Austin. XXIX Annual ILASSA Student Conference. p. 11 e 12.
disponível em: http://lanic.utexas.edu/project/etext/llilas/ilassa/2009/loreno.pdf. acesso em 27/06/2021
82
REIS, op. cit., 1991, pp. 159-162; RODRIGUES, op. cit.,1996, pp158-163; RODRIGUES, op. cit.,
2007, pp. 450-52; AMALADOSS, Michael. Double Religious Belonging and Liminality. An Anthropo-
Theological Reflection.Vidyajyoti (Journal of Theological Reflection), January 2002; DAZZI, Camila.
Possíveis indícios da dupla pertença religiosa dos escravos africanos na obra de Jean-Baptiste Debret.
Anais do XXXVII Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte: História da Arte em Transe,
Salvador-BA 8-12 de outubro de 2017,p. 207-8; CASTRI, op. cit., p. 11.
83
DAZZI, Camila. Possíveis indícios da dupla pertença religiosa dos escravos africanos na obra de Jean-
Baptiste Debret. Anais do XXXVII Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte: História da Arte
em Transe, Salvador-BA 8-12 de outubro de 2017, p. 218.
84
Cf. REIS, op. cit., 1991; REIS, op. cit., 1996; RODRIGUES, ______. 2007; ______. 2010.
85
DEBRET, op. cit., 1839. Tome troisième. p. 153
391

africanos e seus descendentes. De acordo com Cavazzi, os feiticeiros chamados


“xinguilas ou ngombos”, do Congo para aumentar a reputação de sua excelência,
andavam frequentemente de cabeça para baixo, com as mãos no chão e os pés no ar,
fazendo a maneira dos “prestidigitadores 86”, coisas extravagantes e na maior parte
obscenidades. Vangloriam-se de serem espertíssimos em “cutamanga”, a arte de prever
o futuro, de possuírem uma oculta mais infalível virtude de curar qualquer doença” 87.
James Sweet, ao trabalhar com os documentos da inquisição no Brasil, cita
um caso na paróquia de São Gonçalo, na Baía, de um negro liberto chamado João, que
antes de ser possuído pelos espíritos dos filhos falecidos, andava em um só pé atirando o
outro para o alto por cima dos ombros. Cita ainda um outro caso na paróquia de
“Iraruama” no Rio de Janeiro no início da década de 80 do século XVIII, quando um
negro liberto foi acusado por vários atos de feitiçaria incluindo possessão espirita.
Numa das denúncias, é descrito que ele andava pelas ruas “com a cabeça para o chão e
os pés no ar, saltando [...] no ar e falando na língua de sua terra”. O autor observou que
embora os termos xinguilas e ngombo não apareçam de forma explicita na
documentação por ele analisada, estes exemplos sugerem que tais atividades possa ter
existido no Brasil colonial 88. Para Sweet, é possível especular que essa prática de
inverter a posição do corpo e andar sobre as mãos tenha dado origem a “uma forma
primitiva de arte marcial afro-brasileira que ficou conhecida como capoeira”. No
entanto, o autor reconhece que os estudiosos da capoeira de um modo geral têm tido
dificuldades em identificar seu significado religioso mais profundo 89.
De acordo com T. J. Desch Obi, os artistas de artes marciais centro-
africanas assumiam uma posição de cabeça para baixo como uma representação do
kalunga, o mundo invertido dos seus antepassados. Para os congoleses, andar com o
corpo invertido apoiando-se sobre as mãos era como se andassem em um outro mundo.
Esta inversão ritual permitia ao indivíduo retirar forças do mundo espiritual. Os
adivinhos e curandeiros espiritualmente poderosos andavam sobre as mãos para tirar
forças do kalunga. O autor argumenta que os jogos de combate, conhecidos como
engolo, em sua opinião bastante disseminados no Sudeste de Angola, estariam nas
origens da capoeira brasileira. Segundo o autor, ao mesmo tempo que o engolo era
praticado como uma forma de divertimento, no passado, ele também tinha um lado
espiritual. Os mestres e professores do engolo eram iniciados na arte como uma vocação

86
Aquele que faz números de magica, ilusionista que tem grande agilidade com as mãos.
87
CAVAZZI DE MONTECÚCCOLO, op. cit., p. 93.
88
SWEET, op. cit., pp. 170-1.
89
Idem., pp. 170-1.
392

sagrada, ou seja, os mestre do engolo faziam parte de uma rede de profissionais


semelhante aquela da Kimbanda (adivinhos, especialistas em rituais), caçadores, oleiros
e ferreiros sagrados. Possivelmente, pelo desejo de continuar jogando, acreditava-se que
o falecido ancestral, mestre de engolo, incorporava no corpo de um de seus
descendentes vivos fazendo que adoecesse. Se o tratamento médico tradicional falhasse,
um quimbanda poderia ser chamado para determinar a causa da doença, revelendo que
se tratava de um espirito (okutumbwa), um mestre de engolo ancestral, convocando seu
inciado para prosseguir com seu legado de arte 90.
Mattias Assunção reexamina a principal narrativa afrocêntrica sobre as
origens da capoeira, o engolo ou “dança da zebra”, a partir de fontes primarias e
material etnográfico coletado durante pesquisa de campo no Sudeste de Angola.
Segundo ele, o engolo era praticado apenas por um grupo no Sudeste de Angola, os
nhkumbi, e que o problema da tese de Desch-Ob é que em sua análise ele “mistura
fontes de diferentes séculos de forma acrítica, justapondo descrições do engolo do final
do século XX com relatos da época do tráfico de escravos que lidam com outras
questões”; o que tornaria frágil a sua Análise. 91 Não é nosso objetivo fazer uma análise
das origens da capoeira. O que nos interessa aqui é perceber a relação dos jogos de
combate centro africanos com o culto aos ancestrais. Em sua pesquisa, Mattias
Assunção revela que desde os tempos antigos, quando morria um mais velho que era
praticante do engolo, podia-se dançar o engolo em seu funeral e alguns dançavam com o
espirito dos mais velhos. “Portanto, o jogo do engolo praticado na ocasião de um funeral
tinha como objetivo não apenas a homenagear os mortos, mas também permitia a um
jogador falecido se manifestar através da incorporação espiritual num jogador mais
jovem de sua família. Esta conexão ancestral fornece evidências de que o engolo esteve
presente no centro da identidade nhkumbi” e ao mesmo tempo “explica a grande
preocupação dos praticantes mais velhos com o enfraquecimento desta tradição”. Ao
analisar os relatos de missionários, o autor observa que entre os nhaneca existia a crença
de que os espíritos dos falecidos caçadores, curandeiros, mágicos, dançarinos ou
ferreiros, ao incorporar em seus descendentes, transmitiam-lhes o conhecimento que

90
DESCH OBI, Maduka T. J. Angola e o Jogo de Capoeira. ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 24, p. 102-
124, 1. sem. 2008, pp. 113-118. Cf. também. DESCH-OBI, Thomas J. Engolo: combat traditions in
African and African diasporic history. Tese (Doutorado em História), Universidade da California. Los
Angeles, 2000; DESCH-OBI, Thomas J. Fighting for honor: the history of African martial art traditions in
the Atlantic World. Columbia: South Carolina Press, 2008; DESCH-OBI, Thomas J. The jogo de capoeira
and the fallacy of “creole” cultural forms. African and Black Diaspora: An International Journal. v. 5, n.
2, p. 211-228, 2012.
91
ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. Engolo e capoeira. Jogos de combate étnicos e diaspóricos no Atlântico
Sul. Tempo. Niterói. Vol. 26 nº3. Set/Dez. 2020. pp. 523-526.
393

haviam adquirido. Incorporar um espirito ancestral era visto por este grupo como uma
necessidade para curar doenças. A possessão pelo espirito do ancestral deve ser seguida
de uma iniciação ritual (oktonkheka), que é sempre feita pelo mais velho que ensinou o
engolo. “É unânime entre os engolistas que há sempre um vinculo com o parente que
também jogou o engolo e que nutre um carinho especial pelo descendente que está
sendo possuído. Pois o espirito só incorpora na pessoa que gosta mais. Um filho ou um
sobrinho” 92.
O viajante Daniel P. Kidder, que esteve no Rio de Janeiro no final da década
de 1830, assim como Debret, presenciou diversos funerais dos quais fez descrições com
grande riqueza de detalhes. Sobre os enterros no Rio de Janeiro afirma que de um modo
geral eram muito parecidos pelas suas exterioridades e ostentações, mas no entanto
variavam em muito de acordo com a idade e condição social do morto. Quanto aos
enterros dos africanos e seus descendentes, o autor os classificou como “costumes
pagãos”. Num domingo, sua atenção foi “atraída por gritos intermináveis” que vinham
da rua. Ao olhar pela janela viu “um negro com uma bandeja de madeira na cabeça, a
qual levava o cadáver de uma criança, coberto com um pano branco enfeitado de flores,
com um ramalhete atado à mãozinha.” Atrás do negro seguiam umas vinte negras e uma
quantidade numerosa de crianças, adornadas com fitas de tecido vermelho, branco e
amarelo, em passos lentos cadenciados entoavam um canto em língua africana. “O
negro que levava o corpo da criança parava frequentemente e girava sobre os pés como
se dançasse”. Entre os que iam na frente sobressaia a mãe da criança, pela “exagerada
gesticulação, a qual não se podia, pela mímica, determinar com exatidão, se era de
alegria ou de tristeza os sentimentos que a empolgavam”. Ao chegar à igreja entregaram
o corpo ao padre e o cortejo retornou cantando e dançando com mais intensidade. De
acordo com o autor, essa cena se repetiu várias vezes durante a sua estadia no Engenho
Velho 93.
Podemos perceber que nos relatos de João Julião da Silva e Sebastião
Xavier Botelho sobre os sepultamentos entre os cafres na região de Moçambique há
muitos aspectos semelhantes aos relatos de Debret e Kidder, O que confirma a presença
de elementos da herança cultural africana na vivência da morte e do morrer entre os
africanos e seus descendentes no Rio de Janeiro. Sobre o funeral de reis e príncipes, que
intitulou de “Funeral e Enterro dos Reis e Príncipes do Quiteve”, João Julião da Silva

92
ASSUNÇÃO, op. cit., pp. 545-549.
93
KIDDER, Daniel P. Reminiscências de viagens e permanências no Brasil: Rio de Janeiro e Província
São Paulo. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2001, p. 155.
394

fez a seguinte descrição: “Logo após a morte de um rei, ou príncipe poderoso, todas as
mulheres se juntam dentro de casa, enquanto os homens do lado de fora fazem grandes
prantos acompanhando com o próprio toque de tambor”, ao qual participam todos
daquela terra, “bem entendido homens, e vem gritando e carpindo logo que avistam a
povoação do falecido. O cadáver é lavado em água morna, e depois estendido em um
leito de varinhas suspenso sobre quatro estacas da altura de três palmos, e o cobrem com
um pano, por baixo colocam algumas gamelas grandes para receberem toda a matéria
que do cadáver sair em sua putrefação;” enquanto isso, “dentro da casa em que está o
cadáver estão efetivamente alguns grandes e não o desamparam um só instante, para que
os feiticeiros não venham aproveita-se de qualquer coisa do cadáver para suas
feitiçarias, pois creem que qualquer membro, ou carne dos falecidos Reis e Príncipes
tem grande virtudes para fazerem chuvas, secas etc.”
Diariamente, do amanhecer ao pôr do sol, “todos os cafres daquela
povoação com seus tambores andam a chorar em volta da casa em que está o cadáver, as
mulheres tocando seus chocalhos em ritmo compassado carpem o falecido; estas tiram
todos os enfeites, até mesmo as manilhas que trazem nas pernas, em seu lugar fazem
linhas brancas com cascas de arvores, como também a enrolam a cabeça e penduram ao
pescoço”. Enfeitam-se também com folhas de uma planta trançada, que eles chamam de
“maxevo, que enrolam nas pernas e nos pulsos”. Entre estes povos o luto tem a duração
de um ano e todos são obrigados raspar a cabeça. Aquele que não o fizer é dado como o
“reputado feiticeiro” que causou aquela morte. Após ter extraído toda a materia do
cadáver e esta recolhida em gamelas bem tampadas, “fica conservada a ossada da
mesma maneira como o puseram até que tenha sido escolhido um sucessor 94, a quem as
Rainhas, e Tate (mordomo mór cabeça de todos os grandes do reino) tenham feito a
mercê de levar aquela ossadura para o Maóe ou Mávue, jazigo das ossaduras dos ditos
Reis”, que também é conhecido pelo nome de “Mugomo”, que é uma grande rocha
situada na Província de Hanganhe. Nela há uma enorme gruta com pequenas tarimbas
armadas sobre quatro forquilhas na altura de dois ou três palmos sobre a qual depositam
a ossadas dos reis. Uma povoação próxima fornece os guardas daquele lugar sagrado 95.
“O sucessor autorizado para a condução daquela ossada, que eles chamam
de ruesso”, manda avisar aos príncipes e régulos das terras onde sua comitiva passaria.

94
Sobre o papel das rainhas no processo de sucessão do soberano em Moçambique ver. RODRIGUES,
Eugenia. Rainhas, princesas e donas. Formas de poder político das mulheres na África Oriental nos
séculos XVI a XVIII. Cadernos Pagu, nº 49, 2017. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/cpa/i/2017.n49/. Acesso em 03 de julho de 2021.
95
SILVA, op. cit., pp. 79-81;167-168.
395

Apresenta-se com sua comitiva armada na povoação do rei falecido e “pede conta aos
guardas do cadáver de todos os ossos, dentes e unhas, que não pode faltar à mínima
coisa daquela ossada, sobe pena de morte”. Estando a ossada completa e enrolada em
um pano de samater 96, enviado de Sofala, mata um boi preto e embrulha com sua pele
aquela ossada, que é costurada com o próprio couro a qual fazem uma forte alça e
colocam um pau para que dois homens a conduza. É dada a ordem de marcha, segue a
frente um grupo armado, “segue-os o ruesso e logo atrás as mulheres do falecido
levando as gamelas com toda a matéria apurada e bem tampada”. Tanto os dois que
carregam a ossada do rei, quanto às mulheres que levam as “gorguletas”, devem
marchar com muita atenção, pois se tropeçarem ou derem uma topada “são
imediatamente mortos a facadas como feiticeiro que mataram o proprietário daqueles
ossos”. Chegando próximo ao Maóe, o tate juntamente com os outros grandes do reino e
os emissários das rainhas que o acompanham dirigem-se para a povoação próxima, que
fornece os guardas do Mugomo, enquanto o sucessor vai para gruta revistar os antigos
ruessos, e aqueles que estiverem “arruinados ele os faz renovar com samater, e pele de
boi que leva para esse fim”. Feito isto, coloca as gorguletas aos pé da entrada da gruta e
“sacrifica algumas das mais estimadas mulheres do finado e escravos”, para que sirvam
o falecido no além-túmulo 97.
Nos sepultamentos dos príncipes sobernos chefes de grandes famílias
ocorriam as mesmas cerimonias, com a diferença de não serem depositados no
Mugomo, e sim em jazigos diferentes de seus antepassados 98. Como no relato a seguir
que menciona que, ao falecer qualquer pessoa entre os cafres, a família se junta para
chorar. “As mulheres dentro de casa e os homens do lado de fora, os vizinhos logo
aparecem para participarem da mesma choradeira”, imediatamente mandam avisar a
todos os parentes. O cadáver é lavado, num costume praticado tanto com homem quanto
com mulher. O corpo é “amortalhado em pano e enrolado em uma esteira feita de
varinhas” interligadas, sendo “bem amarado a um pau longo que serve para que dois
homens o carreguem para a sepultura”. Para obter a sepultura a família envia “um pano
ou valor a ele equivalente, ao Inhamaçango, ou o Regulo daquela terra. Este envia uma
pessoa sua para mostra no mato próximo um lugar para sepultura. Fazem uma cova
funda e escavão para o lado onde o cadáver é depositado de lado junto com o pau que o
carregaram” Somente os parentes acompanham o enterro. Após o sepultamento, antes

96
Um pano branco que vem do norte da Ásia. Cf. BOTELHO, op. cit., pp. 150.
97
SILVA, op.cit., pp. 79-81;167-169.
98
Idem., p.169.
396

de entrarem na povoação, encontram com um individuo que preparou um certo remédio


que todos da comitiva comem pouco. “À entrada da povoação fazem novos choros e as
mulheres respondem”. Se o falecido é um regulo, ou magnata permite tocar o tambor do
choro imediatamente, do amanhecer ao pôr do sol, e quando alguém de fora vem dar os
sentimentos; assim que sua comitiva avista a povoação do falecido começa a dar gritos
fúnebres, e as mulheres que estão encerradas dentro da casa do falecido por oito dias
logo respondem 99.
Os relatos Sebastião Xavier Botelho foram produzidos com base nas
informações de João Julião da silva. Por isso são muito parecidos, mas não deixam de
ser riquíssimos em detalhes. Ele descreve os funerais aos quais intitulou de
“Enterramento dos Reis e Potentados”. Após a morte do rei, das rainhas, das damas, ou
qualquer outro príncipe de sangue real. Ajuntam-se todos os filhos, e parentes do rei
falecido que moram naquela povoação, e com trombetas, guizos, e tambores, tocando, e
dançando ao redor da casa em que está o cadáver desfazem-se em prantos, e
lamentações fúnebres “com tão desentoados e desconcertados gemidos, que metem
pavor. A esta casta de exéquias os chamam de matanga”. Usam roupas com sinais de
luto o tempo inteiro, tanto as pessoas da corte, como todo o povo. As rainhas nomeiam
o príncipe que vai acompanhar os ossos do rei ao “Mugamo”, local da sepultura dos
reis. Normalmente este príncipe costuma ser aquele que elas têm o propósito de alçar ao
trono. O nomeado parte em direção à casa do rei falecido, onde recebe “dos grandes que
o estão velando, osso por osso, unha por unha, sem lhe faltar a mínima relíquia de todo
o corpo”. A ossada é envolvida em três panos de samater, cobertos com uma pele de boi
preto morto recentemente. Tudo muito bem costurado por fora. Dois príncipes mais
próximos, parentes do rei falecido tomam-no sobre os ombros e iniciam a marcha em
direção ao jazigo dos reis. Porém, antes de iniciar a marcha, “o príncipe nomeado avisa
a todos os grandes, e os homens ricos, príncipes e ‘inhamaçangos’ de todas as terras por
onde a comitiva vai passar”. Feito isso marcham todos em fileiras cerradas como em
ação de combate, “com tamanha vozeria, tão agudos lamentos, e tão destoantes
tambores, trombetas, e charamelas que não há quem não ouça tão ‘horrível’ estrondo.
No centro das fileiras vai à ossada do rei, e cerram a marcha às rainhas, suas damas, e os
grandes de sua corte” 100.
“A uma légua do caminho o príncipe que dirige o funeral, com sua corte e
comitiva, todos de cabeça raspada aguardam o cortejo. Neste lugar, outros indivíduos

99
SILVA, op. cit., pp. 169 e 170.
100
BOTELHO, op. cit., pp. 164-6
397

tomam aos ombros o ‘ruesso’, ossada do rei, e reiniciam a marcha com firmeza, pois
aqueles que tropeçarem, são imediatamente mortos a facadas como se fossem os
feiticeiros que causaram aquela morte. Da mesma forma, toda pessoa estranha àquela
comitiva que se deparar com ela será morta 101. Ao chegar ao “Mugamo, o príncipe
examina todos os ruessos ali depositados e troca as peles que se acham corrompidas e
deposita o ruesso do rei falecido no lugar que lhe é de direito” 102. Em outro relato que o
autor intitulou de “Enterros ordinários dos Cafres” percebe-se a mesma riqueza de
detalhes. “É costume dos cafres quando morre alguém entre eles, sair de casa, um dos
parentes mais próximos do defunto, e começa em altas vozes a pranteá-lo. A estas vozes
acode toda a aldeia, homens e mulheres dando grandes gritos, e principiam um pranto
mui sentido em vozes entoadas. Um dos principais parentes é que entoa o pranto, e a
este respondem os outros com refrém, cadenciado”. Se o falecido é um maioral
poderoso, acompanham o choro com toque de tambores que chamam de –
xembuximué” –. Ao fim da cerimonia, as mulheres, filhos, e parentes do falecido
despem todos os ornamentos, tirando até as manilhas dos braços, e pernas, e dão o aviso
da morte aos parentes, e amigos ausentes. Amortalham o defunto em um pano branco e
o enrolam depois em uma esteira, que cobrem com outra de um tecido de varinhas, “á
feição de fios de piteira, e bem acondicionado, e amarrado tudo com um ‘leame’ da
mesma matéria, lhe atravessam por cima um pau, e carregam aos ombros”. Comunicam
ao inhamançango da terra, presenteando-o com meio pano, uma espécie de “oblata 103”,
para que este conceda um lugar para a sepultura, que pode ser dentro da povoação, ou
em campo aberto, que para os cafres é maior honra funeral. Neste caso, pagam doze
panos ao senhorio da terra. Geralmente, quando a sepultura é feita no mato, são
consideradas exéquias menores usadas apenas pelos cafres muito pobres. Neste caso, o
inhamaçango envia um escravo para o local indicado, onde deve fazer a cova e enterrar
o cadáver sem receber por isso nenhum pagamento 104.
Somente os homens acompanham o enterro, que sai da casa do morto em
direção ao local concedido pelo inhamaçango, abrem uma cova bem larga e funda, que
segundo a crença é para dar espaço ao espirito do defunto quando este se dilatar.
“Enterram com ele suas ferramentas de trabalho, suas armas, lançam dentro da cova
milho, arroz, feijão e outros legumes, em cima colocam a cama em que dormia e o
banco que sentava, depois tampam a cova. Continuam com o pranto até que as mulheres

101
Veja também, SILVA, op. cit., pp. 168.
102
BOTELHO, op. cit., pp. 164-6.
103
Oferenda feita a Deus ou aos santos; oblação. Pode ser também oferta de uma vitima a uma divindade.
104
BOTELHO, op. cit., pp. 214-6.
398

cheguem com cântaros de agua que despejam sobre a cova alagando a terra. Socam com
pilões de madeira até que fique seca e lisa, com aspecto brilhoso. Encerrada a
cerimonia, voltam para a aldeia, e na entrada comem uma papa cozida com diversos
ingredientes que os livram de o espirito do morto entrar em seus corpos”. Vão até a casa
do morto em pranto redobrado, “queimam a casa dele com todos os moveis, pois não
podem ter nenhuma coisa sua ou toca-la, e caso alguém toque, antes de entrar em casa
tem que ir se banhar no mar ou no rio”, pois tudo que tocar antes de se lavar precisa ser
queimado. As cinzas da casa e os paus que não queimaram totalmente colocam em cima
da sepultura do morto. Choram pelo morto durante oito dias. O primeiro pranto é
entoado pelo parente mais próximo que é seguido pelos outros nas lamentações, que
chamam de “matanga” 105.
Os cafres de Quiteve ajuntam-se na casa do falecido do amanhecer ao
anoitecer e continuam a pranteá-lo durante três meses seguidos, tocando os tambores em
todas essas lamentações. A forma de carpir os mortos varia de acordo com cada grupo.
No reino de Quiteve é costume cada mulher acompanhar as lamentações, tocando seu
chocalho; e os homens de mãos dadas, com os tambores no centro, dançam em volta da
roda com “gemidos”, e cantigas “lastimosas”. Os de Mambone e Muxanga, enquanto
derramam pranto, dão “saltos e quedas no chão, fazem trejeitos e caretas , e no
momento do enterro matam uma vaca, e jogam metade na cova do defunto e divide a
outra metade com a comitiva” 106.
Os cafres de Butanga também dão saltos no chão, e matam uma vaca nos
sepultamentos, mas não fazem uso de mortalhas em seus funerais. Entre eles, quando
morre alguém, untam-no dos pés a cabeça com “almagre” 107 e manteiga e, encolhendo-
lhe as pernas, metem-no dentro de um saco feito da casca de certas arvores. Abrem uma
cova no mato no formato de um poço redondo, colocam o cadáver de cima para baixo,
com cuidado para não tocar em nenhuma parte da sepultura, depois a tapam de maneira,
que fique todo o terreno com uma aparência uniforme, não deixando vestígios da
sepultura. Enquanto existir alguma família de luto, os de fora não entram na aldeia sem
que de longe comecem a entoar lamentos fúnebres que os de dentro respondem com o
mesmo clamor com o toque de tambores. Esses cafres levam tão a sério esses rituais que
indagam antes de entrarem na aldeia se há pessoas de luto, porque o menor descuido a
este respeito pode custar a vida 108.

105
BOTELHO, op. cit., pp. 216-7.
106
Idem., pp. 218.
107
Argila avermelhada, ocre vermelho.
108
BOTELHO, op. cit., pp. 218-9.
399

Nossos antepassados africanos sabiam que deveriam morrer para que sua
alma e espirito pudesse iniciar uma nova jornada que os levaria ao mundo dos
ancestrais. Nesse sentido a morte era apenas uma passagem para o outro lado da
Kalunga.Tal perspectiva se encaixou perfeitamente a cosmologia do cristianismo em
que a morte não era o fim da vida, e sim uma passagem da alma de um vida para outra
no além-túmulo.

6.3 - As almas ancestrais entre os dois lados da Kalunga

Não há dúvida que os africanos recriaram sua cultura no Novo


Mundo, readaptando-a diante da nova realidade imposta pela sociedadede
escravista colonial, em especial sua religião. Principalmente no que diz respeito
às concepções cosmológicas da vida e da morte de suas sociedades de origem
ressgnificando-a a partir da apropriação de elementos da cosmologia do
cristianismo para continuar cultuando seus ancestrais. De acordo com John
Thornton, não existe consenso entre os historiadores sobre a formação da cultura
africana nas Américas. Enquanto alguns, com base nas pesquisas de Melville J.
Hercovitz (produzidas na década de 1940), defendem que os africanos
mantiveram sua cultura e que a influência da África foi fundamental para o
surgimento da cultura afro-americana; outros, com base nos argumentos de E.
Franklin Frazier, afirmam ter ocorrido à desorganização da cultura escravizada
nas Américas, tornando-a dependente da cultura europeia ou euro-americana.
Pesquisas recentes, no entanto, rejeitam essas posições dicotômicas sobre a
cultura escrava. Uma delas é a dos antropólogos Mintz e Price, que dedicaram
seus estudos às dinâmicas da formação da cultura afro-americana e em especial
afro-caribenha. Ambos defenderam a tese da criolização da cultura africana,
argumentando que os africanos recriaram sua cultura no Novo Mundo através do
processo de transformação cultural. Muito embora reconhecessem que houve
importantíssimas continuidades em relação à civilização dos ancestrais,
afirmavam que a história dos africanos no Novo Mundo foi marcada por um
processo contínuo de transformações identitárias em função de condições sociais
em constante mudança. Os africanos recém-chegados, por terem um sistema
social bastante flexível, os teriam aceitado com muita facilidade. Portanto, o
400

sistema religioso africano não teria sido capaz de se manter intacto no novo
cenário que se apresentava a ele no Novo Mundo, muito embora fosse capaz de
manter algumas continuidades da cultura africana, isso foi mais exceção do que
regra 109.
Para Thornton, esta argumentação dos dois antropólogos baseia-se na
ideia de que o comércio de escravizados e a escravidão teriam impedido a
transmissão da cultura africana para o Novo Mundo; de que a cultura africana
não seria homogênea devido às várias culturas africanas e também de que o
comércio de escravizados teria provocado a sua dispersão ao reunir indivíduos de
diversas etnias em um mesmo grupo, ao contrário da cultura europeia em que a
imigração geralmente manteve os indivíduos de um mesmo grupo juntos 110.
Thornton questiona tais argumentos, duvidando sobre até que ponto os africanos
seriam culturalmente heterogêneos em solo do Novo Mundo, até que ponto eles
seriam bem sucedidos ou não ao partilharem sua cultura, e se perguntando quais
as dinâmicas do desenvolvimento cultural e do processo de mudança por que
passaram as diversas culturas africanas para forjar a cultura afro-americana
afirmada por Mintz e Price 111. Para Thornton, o comércio de escravizados não
provocou um processo de dispersão dos africanos, obrigando-os a reconstituir do
zero a sua cultura no Novo Mundo, pois apesar das dificuldades impostas pelo
tráfico, os africanos ao chegar às Américas tiveram com quem conversar na sua
língua, partilhar seus costumes, sobretudo nas grandes propriedades agrícolas e
nas áreas urbanas 112. Segundo ele, apesar da diversidade de origem dos africanos,
eles não possuíam uma cultura inteiramente diferente entre si, existindo traços
comuns mesmo entre povos de uma área razoavelmente grande. Contrariando a
tese da dispersão de Mintz e Price, ele afirma que os africanos eram embarcados
em um ou dois portos e desembarcados em grandes lotes no Novo Mundo e em
geral muitos proprietários buscavam conseguir o maior número possível de
escravizados da mesma nação, incentivando casamentos, objetivando a

109
MINTZ, Sidney W. e PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva
antropológica. Rio de Janeiro: Pallas: Universidade Candido Mendes, 2003, pp. 83-6; THORNTON,
John. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico. Rio de Janeiro, Elsevier/Campos, 2004, p.
253.
110
THORNTON, op. cit., p. 253-4.
111
Idem., p. 254.
112
Ibidem., p. 277-8.
401

estabilidade da comunidade, em busca da melhoria da produtividade e


diminuição das rebeliões. Thornton afirma que os africanos escravizados
formaram várias comunidades com base nos grupos da mesma procedência como
as irmandades religiosas criadas nas sociedades escravistas. Assim, vários
elementos da cultura africana puderam ser partilhados e transmitidos às futuras
gerações nas Américas 113.
Se por um lado, Thornton afirma que, mesmo que conseguisse
transmitir sua cultura às futuras gerações nas Américas, essa já não seria a
mesma cultura africana e sim o que denominou de afro-americana; por outro, a
cultura afro-americana teria se tornado muito mais homogênea que as culturas
africanas, pois se compuseram fundindo-se à cultura europeia 114. Para ele, o
maior exemplo disso era a religiosidade forjada no Novo Mundo, uma religião
que denominou de afro-atlântica, que originara-se e se identificara com a cristã
dando origem a um tipo de cristianismo que congregava a religião africana e
europeia, um cristianismo africano que permitiu a filosofia e o conhecimento de
algumas religiões africanas, possibilitando a acomodação do sistema religioso
europeu e africano, tornando-se algo além de uma simples mistura de ideias de
uma religião com a outra 115.
Com o objetivo de fazer a revisão da obra de Mintz e Price, James
Sweet criticou o conceito de cristianismo africano de Thornton, pois segundo ele
os africanos poderiam até se dizer cristãos, mas em essência não o seriam, por
que não teriam abandonado suas tradições religiosas africanas, ainda que
tivessem adotado alguns ritos e partilhado algumas concepções católicas 116.
Diferenciando-se de Sweet, Vincent Brown argumenta que os africanos e seus
descendentes mantiveram traços e práticas da herança africana, mesmo após a
conversão ao cristianismo. Discordando, assim, da tese da dissimulação de Roger
Bastide 117 de que o catolicismo negro seria superficial e dissimulado que está

113
THORNTON, op. cit., p. 263-9.
114
Idem., p.277.
115
Ibidem., p.312-3.
116
SWEET, op. cit., p. 16.
117
BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil. São Paulo: Livraria Pioneira Editora. Editora da
Universidade de São Paulo, 1971, pp.157-179.
402

implícita na argumentação de Sweet 118.


Em seu estudo sobre Angola no período do tráfico atlântico,
Roquinaldo Ferreira observa que as cerimônias de gangas eram parte integrante
da religiosidade multifacetada de Luanda, que combinava elementos do
cristianismo e da religião africana. As religiões cristãs teriam, assim,
desempenhado um papel central na vida social e cultural de Luanda. No entanto,
a marca do catolicismo praticado na cidade desviava-se da ortodoxia católica e
foi fundido com as tradições africanas. Se, por um lado, os relatos dos próprios
europeus demonstram a precariedade do cristianismo em Luanda; por outro, o
cristianismo era apenas uma dimensão do tecido religioso de várias camadas em
Luanda e os africanos que se juntavam na igreja e nas irmandades seriam
propensos a permanecer comprometidos com as suas crenças religiosas africanas.
Num contexto de normas cristãs frouxas repletas de práticas culturais locais, a
religião africana teria prevalecido, permeando a vida diária em seus níveis mais
básicos e proporcionando um pilar fundamental para a identidade da
comunidade. Mesmo os chefes africanos não teriam ousado romper com as
tradições religiosas de suas terras após a conversão ao cristianismo. O que
demostra a força das tradições africanas 119. O reino do congo convertido em 1491
tornou-se o centro de difusão do catolicismo centro-africano, e seu modo
particular de organizar a fusão entre suas tradições religiosas e o cristianismo
formou um padrão que foi exportado a vários lugares até mesmo a Angola
portuguesa 120.
Embora tenha ocorrido o intercambio cultural entre os cultos nativos e
o catolicismo congolês especialmente nas regiões Sul e Leste de Angola em que
o cristianismo tornou-se popular e grande número de pessoas passou a procurar
os missionários e dar os seus primeiros passos rumo à conversão, o sucesso maior
talvez tenha ocorrido na região de “Dembos”, entre os pequenos Estados de
língua quicongo e quimbundo. Entretanto, os relatos missionários revelam o

118
BROWN, Vicent. The Reaper’s Garden: death and power in the world of Atlantic slavery. First
Harvard University Press paperback edition, 2010.
119
FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil
during the era of Slave Trade. Cambridge University Press, 2012, pp. 180-186; 189-201.
120
THORNTON, John K. Religião e vida cerimonial no Congo e áreas Umbundo, de 1500 a 1700. In
HEYWOOD. Linda M. (org). Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, pp. 94.
403

fracasso de várias expedições na tentativa de converter reino do Ndongo, que


gerou dificuldades na difusão do cristianismo na região Sul do reino do Congo. O
Ndongo e a maioria das regiões que estiveram na sua órbita foram integrados
durante o processo de conquista. A partir de 1580, os portugueses instituíram os
primeiros atos de vassalagem, a conversão, a aceitação do batismo e a permissão
para o trabalho missionário, juntamente com o pagamento de tributo. As
principais bases portuguesas em Luanda, nos rio Bengo e Dande, e os postos
localizados no interior do Cuanza, muxima Cambembe e Massangano, com os
sobas subordinados a Portugal, foram os centros difusores do cristianismo 121.
Portanto, devemos considerar que a conversão dos africanos foi um
processo continuo que começo em África e se estendeu ao Novo Mundo. Além
disso, devemos considerar que tal processo não foi totalmente dependente da
escravidão, pois no lado africano muitos convertidos ao catolicismo eram livres e
até muito poderosos 122. As trocas culturais entre catolicismo e as religiões
africanas podem ser percebidas através dos relatos dos diversos viajantes e
missionários a exemplo de Cavazzi que, apesar de seu discurso eurocêntrico em
relação aos costumes africanos deixou relatos valiosos, principalmente no que diz
respeito ao culto aos mortos e a práticas fúnebres. Em suas palavras “Os cristão
do Congo, embora não tenham esquecido completamente os ritos dos gentios
merecem louvor de muito pios e zelosos com os finados [...] os enterram em
cemitérios ao pé das igrejas e nos lugares onde a Cruz e outras santas imagens
despertam nos vivos a lembrança deles”.
Linda Heywood observou como as heranças católicas dos
colonizadores, em especial dos portugueses e brasileiros e de seus descendentes
afro-lusitanos passaram por um longo processo de africanização. Os oficiais
portugueses nascidos na metrópole ficavam escandalizados ao perceber como os
rituais da Igreja tornaram-se africanizados. Ficavam especialmente alarmados ao
ver como os ritos africanos dominavam as práticas da Igreja 123. Os relatos de
Elias Alexandre da Silva Corrêa que esteve em Angola na década de 1790, nos
fornecem detalhes preciosos sobre as práticas africanas que predominavam nos

121
THORNTON, op. cit., 2008, pp. 97-8.
122
THORNTON, op.cit., 2004, p. 335.
123
HEYWOOD, op cit., 2008, p. 109.
404

rituais da Igreja. Segundo ele a religião em Angola “era uma miscelânea,


composta da católica, da Maometana e da pagã, pois os seus adeptos faziam o
sinal da cruz, traziam um rosário ao pescoço, celebravam a poligamia e adoravam
ídolos conforme sua imaginação” 124 .
Entre os séculos XVI e XVII africanos e europeus concebiam o
cosmos como divido em dois mundos separados, porem intimamente
interligados: “este mundo”, o mundo material no qual todos vivemos, que pode
ser percebido pelos cinco sentidos normais, e o “outro mundo”, normalmente
imperceptível, exceto por alguns poucos indivíduos com dons especiais, habitado
por uma variedade de seres ou entidades. Para ambas as culturas religiosas, era
possível passar deste para o outro mundo pela morte, de modo que as almas dos
mortos estavam entre os habitantes do outro mundo, que era mais que uma
morada para os mortos, era também um mundo superior, que governava os
eventos deste mundo 125.
Para Thornton tanto o cristianismo quanto as religiões africanas
foram construídas através de interpretações filosóficas de revelações. Entretanto,
diferentemente do catolicismo, essas interpretações africanas não possibilitaram
construção de uma ortodoxia. Por essa razão, os africanos podiam concordar com
a origem do pensamento religioso e aceitavam suas descrições filosóficas ou
cosmológicas, todavia não estavam totalmente de acordo com toda sua
especificidade. Assim, quando os africanos entraram em contato com os cristãos,
a ausência de uma ortodoxia e de um clero forte facilitou a conversão destes ao
cristianismo 126. Entretanto, mesmo existindo aspectos cosmológicos comuns, o
cristianismo no Novo Mundo também tinha características próprias que o
distinguia do africano. Tal situação se dera em decorrência de que o tráfico
Atlântico de escravizados teria reunido na diáspora pessoas de diferentes regiões
africanas com cosmologias distintas, que ao chegarem ao Novo Mundo se
amalgamaram dando origem a uma nova cosmologia comum, que não era nem
cristã e nem semelhante a uma cosmologia africana especifica. Ao contrário, era

124
CORRÊA, Elias Alexandre da Silva. História se Angola. série E – Império Africano. Coleção
Classicos da Expansão Portuguesa no Mundo. Vol. 1. Lisboa, 1937 p.93.
125
THORNTON, op.cit., 2004, pp. 313-314; RODRIGUES, op. cit., 2010, p. 48.
126
Idem., pp. 325-335; RODRIGUES, op. cit., 2010, 48.
405

resultado da mistura de diversos elementos construídos a partir de uma ampla


base comum a todas as religiões africanas atlânticas 127.
A partir de tais constatações, com base nessa mesma ortodoxia, pode-
se pensar no que levou um grupo de mais de duzentos africanos de origem da
Costa da Mina, do reino de Maki, no Rio de Janeiro a se reuniram para criar uma
congregação com o objetivo de fazer caridade aos seus irmãos “nacionais” e
sufragar as almas do purgatório de acordo com a escatologia católica. Buscavam
doutrinar as atitudes dos irmãos “nacionais” diante da morte repudiando os
“gentilismos” praticados por outros grupos de africanos na cidade e apresentar os
Makis como verdadeiros católicos, mas ao mesmo tempo mostravam-se
preocupados com os ancestrais e com a identidade maki.
O culto de devoção às almas na congregação dos pretos minas makis,
demonstra um apego à visão de mundo africana que privilegiava uma relação
especial com o mundo dos mortos (os ancestrais) 128. Mas cuidar dos mortos era
uma obrigação tanto cristã como africana. Em troca, no caso cristão receberiam a
sua intercessão, dos santos, dos anjos, da Virgem Maria e a do próprio Cristo
junto ao criador. No caso africano, a retribuição dos ancestrais vinha em forma
de boa saúde, sorte, boas colheitas, fertilidade, tanto do solo, como das mulheres.
Mas se fossem negligentes, no caso cristão, lhes seria negada à entrada no
paraíso, ou seja, a vida eterna. No caso africano, a negligência desencadearia o
desequilibrio e o infortúnio entre os vivos, a deflagração de desgraças individuais
e coletivas, má sorte, doenças, epidemias, infertilidade.

127
THORNTON, op. cit., 2004, pp. 343-346; RODRIGUES, op. cit., 2010, 48.
128
REIS, op. cit., 1996, p. 10.
406

CONCLUSÃO

Podemos concluir que não há dúvidas que os diferentes grupos de procedência


africana e seus descendentes em solo carioca cultuaram seus mortos e vivenciaram a
morte e o morrer de forma diferenciada, no período entre 1700 e 1850. O tráfico
atlântico impôs aos diferentes grupos de africanos atualizarem de forma constante suas
estratégias para garantirem a sua sobrevivência de suas raízes culturais. Diante da
instabilidade provocada pelas diferentes conjunturas do tráfico que alimentava
constantemente a cidade com novos grupos de indivíduos, havia uma constante
reatualização dos elementos das suas sociedades africanas originais, possibilitanto a
manutenção do culto aos ancestrais 1.
Se por um lado, com base na análise dos registros de óbitos, compromissos das
irmandades e testamentos, fontes essencialmente católicas, pudemos verificar como os
africanos e seus descendentes se declaravam católicos. E mesmo aqueles que não
participavam de uma irmandade buscavam garantir um funeral cristão, no sentido ter
uma boa morte, que de acordo com a doutrina do cristianismo era garantia de salvação.
Sendo assim, o projeto catequista da Igreja para os africanos e seus descendentes,
levado a cabo, sobretudo por carmelitas e franciscanos com a difusão do culto aos
santos pretos e pardos, surtiu efeito e muitos africanos e seus descendentes de fato
converteram-se ao catolicismo. Mas por outro lado, também é impossível negar que os
africanos se mantiveram fieis as suas crenças ancestrais o que podemos constatar
através diferentes relatos de viajantes, cronistas, missionários e funcionários coloniais, a
exemplo de Kidder, Debret e Luccock. As reminiscências das crenças africanas das suas
sociedades originais foram fundamentais para a reconstituição de sua cultura e
identidade. Ao mesmo tempo em que se fundiram ao catolicismo africanizando-o. Para
além da cidade do Rio de Janeiro, assim como nas diferentes regiões da América
portuguesa, se difundindo em toda a diáspora e dando origem a uma nova religião,
denominada de afro-atlântica 2.
A construção das irmandades foi uma forma de (re)construir suas sociabilidades,
solidariedade e identidade de grupo. Assim a família ritual substituiu a família
consanguínea na diáspora, fortalecendo os laços de solidariedade, as redes de proteção
entre os diferentes grupos de procedência garantindo a ligação com o passado africano e

1
SOARES, op. cit., 2005 p. 151; BRÜGGER e OLIVEIRA, op. cit., 2009, p.204.
2
THORNTON, op. cit., 2004, p. 312.
407

a proteção dos ancestrais. Catolicização dos africanos, assim como a africanização do


catolicismo foram duas faces de uma mesma moeda que norteou as atitudes dos cativos
traficados para a cidade do Rio de Janeiro diante da morte. Com a constituição das
folias os africanos e seus descendentes elegeram reis, rainhas, imperadores e
imperatrizes e suas cortes, se reapropriando de padrões de poder vigentes na sociedade
escravista colonial e imperial que lhes permitiram recriar verdadeiras linhagens
religiosas, com base num passado africano glorioso, que se reproduzia nas suas
procissões, nas festas, entre outras manifestações culturais e religiosas. Assim, de forma
simbólica recriavam suas tradições ao mesclarem elementos da cultura católica europeia
com os fragmentos da memória africana. O poder que os reis e chefes de linhagens
possuíam nas sociedades africanas transplantado para o novo mundo de forma física
e/ou simbólica possibilitou que os africanos da diáspora buscassem se unir em torno
destas lideranças, com o intuito de recriar um ambiente que resgatasse mesmo que de
forma limitada elementos das suas culturas locais.
O Purgatório como espaço intermediário entre Céu e Inferno, na perspectiva do
além-túmulo cristão, consolidou-se como espaço ideal para sufragação dos das almas
dos irmãos nacionais, transformando-se em um lugar privilegiado de crença no universo
religioso de africanos e seus descendentes na diáspora. Neste sentido, a devoção às
almas do Purgatório foi bem aceita entre o makis na medida em que viabilizava a
assistência aos mortos através dos sufrágios transformando-os em intercessores dos
vivos no além-túmulo. Resar por um parente de nação ou ofertar missas em prol da
salvação de sua alma fortalecia os laços comunitários entre vivos e mortos em uma
perspectiva étnica vivenciada no interior da congregação maki. Assim, o culto de
devoção às almas dos irmãos nacionais os aproximava do universo religioso de suas
sociedades de origem na medida em que os permitia continuar cultuando seus mortos.
A adoção de ritos fúnebres católicos pelos diferentes grupos de africanos
confirma a sua crença efetiva neles, assim como, possibilitava eventuais combinações
entre ritos fúnebres de origem africana com os ritos católicos. Deste modo, foi possível
a adoção consciente de práticas relacionadas a ambas as matrizes religiosas, a cristã e as
africanas. Nesse sentido, podemos afirmar que no Rio de Janeiro, entre 1700 e 1850, os
africanos e seus descendentes, reconstruíram sua cultura e identidade mesclando os
elementos herdados de suas sociedades tradicionais de origem africana, como os
oriundos do catolicismo.
408

FONTES:

ARQUIVO DA CÚRIA METROPOLITANA DO RIO DE JANEIRO:

SÉRIE ASSENTOS PAROQUIAIS

Livro de óbitos e testamentos da Freguesia da Sé/Santíssimo Sacramento da Antiga Sé:

AP0400: (1701 – 1710);

AP0406: (1737 – 1740);

AP0155: (1746 – 1758);

AP0156: (1776 – 1784);

AP0157: (1799 – 1797);

AP0158: (1797 – 1811);

AP0159: (1812 – 1819);

AP0160: (1819 – 1824);

AP0161: (1824 – 1828);

AP0161: (1824 – 1828);

AP0162: (1828 – 1830);

AP0163: (1830 – 1833);

AP0164: (1833 – 1837);

AP0165: (1837 – 1840);

AP0166: (1840 – 1843);

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Notícias do Bispado do Rio de Janeiro. Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de


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