Tese Claudio de Paula Honorato PPGH Unirio
Tese Claudio de Paula Honorato PPGH Unirio
Tese Claudio de Paula Honorato PPGH Unirio
2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS – CCH
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH
Rio de janeiro
Dezembro/2021
Catalogação informatizada pelo(a) autor(a)
Aprovado por:
_____________________________________
Profª. Drª Claudia Rodrigues – Orientadora
(UNIRIO)
______________________________________
Profº Drº Anderson José Machado de Oliveira
(UNIRIO)
______________________________________
Profª Drª Keila Grinberg
(UNIRIO)
_______________________________________
Profº Drª Mariza de Carvalho Soares
(UFF)
________________________________________
Profº Drº Roberto Guedes
(UFRRJ)
Rio de Janeiro
2021
A minha mãe Izabel (1942-2009) in memoriam
Ao meu pai Sebastião (1931-2021) in memoriam
A minha esposa Ivanise e a nossa filha Bruna
AGRADECIMENTOS
This thesis analyzes how Africans of different African origins and their
descendants experienced death and dying in Rio de Janeiro, between the 18th century
and the first half of the 19th century. It seeks to find elements of different African
customs and their coexistence with Catholic funeral practices in Rio de Janeiro. From
the parish sources of deaths, wills, commitments of brotherhoods and literature of
travelers, chroniclers, colonial officials and missionaries. Based on the funeral customs
identified, the different ways in which African identities were constituted and
reconstructed in the face of death in the New World were analyzed, especially in
relation to Catholicism and Africanity. As the adhesion of Africans to Catholicism was
fundamental for the maintenance of the cult of the ancestors.
Tabela 6 – Procedência dos navios negreiros que atracaram no porto do Rio de Janeiro
por região de embarque, 1790-1830, p. 63
Tabela 7 – Procedência dos navios negreiros que atracaram no porto do Rio de Janeiro,
provenientes da África Central Atlântica, 1790-1830, p. 65
Tabela 10 – Óbitos segundo a condição jurídica conforme intervalo dos livros de óbito,
p. 91
Tabela 13.1 – Presença de africanos e crioulos na freguesia da Sé, por sexo, por livro,
p. 101
Tabela 15.1 – Presença africana na população negra feminina e masculina, por livro, p.
135
Tabela 25 – Mortalhas Pelos Inocentes de Acordo Com a Condição Social por Sexo, p.
311
Tabela 27 – Índice do Número de Padres nas Encomendações dos Corpos por Origem,
p. 331
Tabela 28 – Índice de Locais de Encomendação dos Corpos por Condição Social, p.
336
Mapa 3 – Países e regiões do mundo atlântico que organizaram viagens negreiras, por
volume de cativos transportados da África 1501-1867, p. 55
Quadro 2.1 – Presença de africanos e crioulos, conforme SEXO, POR LIVRO, p. 132
INTRODUÇÃO, p. 17
CONCLUSÃO, p. 406
FONTES, p. 408
BIBLIOGRAFIA, p. 414
17
INTRODUÇÃO
1
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil no século XIX. São
Paulo, Cia. das Letras, 1991, RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos:
tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de
Cultura; Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 1995, SWEET, James H. Recriar África: cultura,
parentesco e religião no mundo afro- português (1441-1770). Lisboa: Edições 70, 2007.
18
2
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro S.A. s/d.
volume I e II; KIDDER, Daniel P. Reminiscências de viagens e permanências no Brasil: Rio de Janeiro
e Província São Paulo. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2001; LUCCOCK, John. Notas
sobre o Rio de Janeiro e parte meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/ São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1975;
3
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio
de Janeiro. São Paulo, Cia das Letras, 1997, 39-40.
19
do tráfico 6.
Ao longo deste período de cerca de um século e meio, houve diferentes
ondas de chegada e predomínio dos vários grupos de procedência africana na cidade do
Rio. Os estudos apontam para diferentes caminhos. Entre as décadas de 1710 e 1750, os
dados de Mariza Soares, com base em registros de batismo, sugerem a predominância
dos de procedência mina 7. Flávio Gomes, ao analisar os registros de óbitos relativos às
áreas urbanas e suburbanas da cidade, no século XVIII, encontrou a predominância de
cinco grupos de procedência: angolas, africanos oriundos da Guine, mina, benguelas, e
congos 8. James Sweet ao analisar os testamentos de proprietários de africanos
escravizados em duas paroquias do Rio de Janeiro no período de 1736-1740, identificou
que dois terços dos africanos eram provenientes da África Centro Ocidental, com
destaque para angolas, benguelas e ganguelas congos e monjolos 9. Esses dados
confirmam a predominância dos africanos centro-ocidentais entre os grupos de
procedência no Rio de Janeiro, principalmente a partir da segunda metade do século
XVIII. Para o século XIX, o estudo abrangente e pioneiro de Mary Karasch identificou
as origens dos seguintes grupos de africanos importados pelo Rio de Janeiro vindos da
África-Ocidental, Centro Ocidental e Oriental, além de “origem africana desconhecida”:
congo, angola, benguela, mina, cabinda, cassanje, moçambique 10. Flavio Gomes, ao
pesquisar os registros de óbitos da paróquia da Candelária relativos ao período entre
1810 e 1830, constatou a predominância dos seguintes grupos de procedência:
benguelas, congo, angolas, cabindas e moçambiques 11.
Acredito que os índices dos registros óbitos são importantes marcadores das
mudanças nos fluxos de escravizados que viveram e morreram na cidade, pois indicam
com mais segurança os escravos que viveram na cidade, diferentemente dos registros de
6
Cf. ELTIS, David. Economic growth and the endind of the transatlantic slave trade. New York: Oxford
University Press, 1987, pp. 243-4; FERREIRA, op. cit., pp. 15,16; PIRES,
Ana Flávia Cicchelli. Tráfico Ilegal de Escravos: os caminhos que levam a Cabinda. Dissertação
Mestrado. Niterói: Universidade Federal Fluminense. PPGH/UFF, 2006, pp. 23-25.
7
SOARES, Mariza de Carvalho. Os devotos da Cor. Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio
de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, 73-85; ______. Indícios para o
traçado das rotas terrestres de escravos na Baia do Benim, século XVIII. In SOARES, Mariza de
Carvalho (org.) Rotas atlânticas da diáspora africana: da Baía do Benim ao Rio de Janeiro. Niterói:
EDUFF, 2007
8
GOMES, Flávio. A demografia atlântica dos Africanos no Rio de Janeiro, séculos XVII, XVIII e XIX:
algumas configurações a partir dos registros eclesiásticos. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, Rio
de Janeiro, v. 19, supl, dez. 2012, p.93.
9
SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770).
Lisboa, PT: Edições 70, 2007, pp. 43-4.
10
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1800-1850). São Paulo Cia das Letras,
2000, p. 35.
11
GOMES, op. cit., 97.
21
batismo, que podem incluir escravizados deslocados para outras regiões da América
Portuguesa, como Minas Gerais. Nesta pesquisa utilizamos os registros de óbitos da
Freguesia do Santíssimo Sacramento da Sé, a fim de mapear o contingente de africanos
livres e escravizados que deram entrada e permaneceram na cidade, assim como o
contingente de crioulos no período estudado. Seguindo os argumentos de Mariza
Soares, estas nações são pensadas em termos de grupos de procedência devido a seu
universo semântico, pois poderiam designar desde portos de embarque, ilhas, vilas,
reinos a pequenos grupos étnicos. A autora faz opção de usar grupo de procedência em
lugar de nação, pois este último era atribuído pelo colonizador e só depois apropriado
pelo grupo. Com base no pressuposto que os grupos étnicos chegados às Américas em
situação de cativeiro tinham infinitas possibilidades de reorganização e não aquelas
previamente definidas em suas sociedades de origem, a autora escolhe o termo “grupo
de procedência”; embora esclareça que essa noção não eliminava a importância da
organização social e das culturas das populações escravizadas no ponto inicial do
deslocamento, privilegiando, ao contrário, sua organização no ponto de chegada. Deste
modo, as formas de organização dos negros africanos no Rio de Janeiro teriam tanto ou
mais a ver com as condições do cativeiro do que com o passado africano. Para ela, os
critérios de participação nesse ou naquele grupo foram definidos aqui e não na África 12.
Ao olhar para este amplo espectro de grupos de procedência de africanos
que se fizeram presentes na cidade do Rio de Janeiro, nossa análise será no sentido de
compreender as diferentes formas pelas quais estes vivenciaram seus costumes
fúnebres. Ao fazer isso, nossa intenção é identificar semelhanças e diferenças entre seus
funerais, com vistas a perceber a existência de elementos da morte africana na freguesia
da Sé da cidade do Rio de Janeiro. As evidências citadas no início deste texto indicam
que não podemos olhar para a morte dos africanos como se fosse algo unívoco.
O campo da história da morte no Brasil já completou três décadas, após os
estudos pioneiros do início dos anos 1990, tendo a obra de João José Reis como
importante publicação. Ao traçar um perfil da morte africana na Bahia, João José Reis
buscou suas origens nos Calundus, nos quais havia semelhanças com os ritos dos jejes
na África. Mas o autor lamenta não ter relatos tão ricos em detalhes sobre a morte
africana na Bahia como os do Rio de Janeiro, feitos por Kidder e Debret e os campara
com os relatos dos historiadores para os Estados Unidos, onde os funerais eram também
12
SOARES, op. cit., p. 109.
22
noturnos e festivos. O aponta que mesmo não tendo relatos tão ricos, havia indícios de
que, na Bahia, os africanos que ali residiam festejavam os seus mortos com cerimonias
semelhantes 13.
Ao estudar os registros paroquias de óbitos da freguesia da Sé, no Rio de
Janeiro do século XIX, Claudia Rodrigues analisou as concepções dos africanos acerca
da morte, bem como alguns rituais funerários. Fazendo uso de uma bibliografia
antropológica de africanistas e relatos de viajantes, percebeu que muitos escravos e
libertos, sendo estes africanos ou crioulos, recorreram ao funeral cristão, por ser este
oficialmente aceito e adotado pela maioria da população da Corte e o permitido pela
religião oficial do Estado. A autora afirma que isso não impedia que, paralelamente
aqueles indivíduos fizessem uso das suas práticas ancestrais, tanto antes como depois do
funeral cristão, o que apontava para a possibilidade de alguns daqueles indivíduos terem
adotado as duas práticas conscientemente. Os elementos africanos dos rituais
ressaltavam-se no clima festivo das cerimonias fúnebres africanas, onde eles cantavam,
dançavam, comiam e bebiam ao som de tambores, pandeiros e outros instrumentos 14.
Em estudo sobre a vida dos escravos na cidade do Rio de Janeiro na
primeira metade de século XIX, Mary Karasch, com base nas causas mortis em registros
de óbitos da Santa Casa da Misericórdia, analisou a morte escrava, como resultado de
uma complexa combinação de fatores: má alimentação, dieta inadequada, fome, descaso
dos senhores, maus tratos, que tornavam os cativos presas fáceis dos vírus, bacilos,
bactérias e parasitas que ceifavam a vida escrava em solo urbano. Os dados obtidos
através da análise das fontes permitiram a autora estabelecer padrões de mortalidade
diferenciados para homens, mulheres e crianças, africanos e crioulos, o que influenciava
diretamente no comércio de negros novos na cidade 15.
Ao estudar o Cemitério dos Pretos Novos localizado no Valongo, entre o
final do século XVIII e a primeira metade do século XIX, Júlio Cesar Pereira analisou o
que interpretou como sendo o descaso das autoridades eclesiásticas e dos agentes do
Estado associada à ganancia dos traficantes no sepultamento dos negros novos, bem
como à violência cultural e os infortúnios que tal campo santo causava na vida dos
13
REIS, op. cit., p. 160.
14
RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres
no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura; Arquivo Geral da Cidade do Rio de
Janeiro, 1995.
15
KARASCH, Mary C. op. cit., p.p, 143-158.
23
16
PEREIRA, Júlio Cesar Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond: IPHAN, 2007.
17
VIANA, Iamara da Silva. Morte escrava e relações de poder em Vassouras (1840-1880): hierarquias
raciais, sociais e simbolismos. Dissertação de mestrado – PPGH/UERJ, 2008, pp. 58-72.
24
18
BRAVO, Milra Nascimento. Hierarquias na Morte: uma análise dos ritos fúnebres católicos no Rio de
Janeiro (1720-1808). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro – UNIRIO, 2014, pp.136-173.
19
BRAGA, Vitor Cabral. Lugares para “bem morrer” no Recôncavo da Guanabara/RJ: Irmandades, Ritos
e tensões na geografia da morte (c.1720 a c. 1800). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro:
Universidade Federal do Estado do Rio de janeiro/UNIRIO, 2015.
25
rural 20.
A partir da análise desses trabalhos e considerando ainda a existência de
outros direcionados às questões acerca da mortalidade escrava de modo geral,
considerando que há ainda uma lacuna na historiografia da morte sobre a cidade do Rio
de Janeiro em relação às atitudes diante da morte e morrer entre africanos e seus
descendentes no que diz respeito às formas africanas diante da morte na cidade do Rio
de Janeiro escravista. Minha proposta é justamente analisar os costumes dos diferentes
grupos de africanos que se fizeram presentes no Rio de Janeiro, entre o século XVIII e
meados do século XIX, partindo de suas atitudes diante da morte e do morrer em busca
de elementos desses rituais entre os diferentes grupos. Proponho também fazer a viagem
“de volta” pelo Atlântico em busca de perceber como esses diferentes grupos de
procedência vivenciavam a morte e morrer em solo africano – levando em consideração
as três regiões geográficas que mais exportaram africanos para o Rio de Janeiro: África
Ocidental, Centro Ocidental e Oriental –, para efeitos de comparação com algumas das
práticas identificadas no Rio de Janeiro, na busca analisar as diferentes formas pelas
quais se construíram e reconstituíram as identidades africanas no Novo Mundo,
especialmente com relação ao catolicismo e africanidade na vivência da morte e do
morrer no período estudado.
Para a elaboração da pesquisa que originou esta tese, fiz uso de uma
documentação variada que teve como fontes principais os registros paroquias de óbitos
e testamentos relativos à freguesia da Antiga Sé do Rio de Janeiro. Utilizei metodologia
da história serial quantitativa: os conteúdos transcritos foram inseridos em banco de
dados de óbitos da freguesia da Sé – utilizando o programa ACCESS (Microsoft) –
elaborado e cedido pela professora Claudia Rodrigues e sua equipe de orientandos de
Iniciação Científica. Aos registros já existentes até 1812, agreguei os relativos aos anos
até 1845. Utilizei também os testamentos de africanos e crioulos libertos, os
compromissos das irmandades, literatura dos viajantes e memorialista, funcionários
colônias e missionários.
Levando-se em consideração todas essas questões, essa tese está dividida
em seis capítulos. O capítulo 1 tem por objetivo analisar a demanda por mão de obra
africana escravizada na cidade do Rio de Janeiro, assim como sua relação com o tráfico
Atlântico. Mapear como ocorreu a chegada das levas dos diferentes grupos de
20
SILVA, Michele Helena Peixoto da. Morte, escravidão e hierarquias na freguesia de Irajá. Dissertação
de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. UNIRIO, 2017.
26
CAPÍTULO – 1 –
21
BICALHO, Maria Fernanda. A Cidade e o Império: o Rio de Janeiro no Século XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira. 2003, p. 176; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá. Na Encruzilhada do Império:
Hierarquias Sociais e Conjunturas Econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650-c.1750). Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional. 2003, p. 57.
22
PESAVENTO, Fabio. Um Pouco Antes da Corte: A Economia do Rio de Janeiro a Segunda metade do
Setecentos. Jundiaí: Paco Editorial, 2013, p. 18
23
BICALHO, Maria Fernanda. A França Antártica, o corso, a conquista e a “peçonha luterana”. Revista
História, São Paulo, 27 (1): 2008.
24
DEAN, Warren. Indigenous populations of the São Paulo-Rio de Janeiro coast: trade, aldeamento,
slavery and extinction. Revista de História. Universidade de São Paulo n. 117, 12/07/1984.
“Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/61343. Acessado em: 22/032018.
30
devido a sua produção via guerras 25. Ao analisar as formas de acumulação da elite
carioca nos seiscentos, João Fragoso apontou que a distribuição de mercês viabilizou a
acumulação de riquezas que mais adiante se transformaria em engenhos de açúcar, ou
melhor, na própria economia de plantation. Em nome do bem comum da república, a
câmara municipal intervinha no mercado controlando os preços e serviços ligados ao
abastecimento da cidade. No Rio de Janeiro, nos séculos XVI e XVII, ela discutia o
valor dos fretes para o reino e o preço do açúcar. Da mesma forma, podia conceder o
exclusivo de bens e serviços essenciais à vida comum da cidade, a exemplo do açougue
público. Uma prática herdada da sociedade portuguesa foi a ideia de conquista, ou seja,
através da guerra se apropriar de terras e homens. No caso da América colonial tal
prática possibilitou aos ‘conquistadores’ a distribuição de territórios e do gentio da terra,
através das chamadas ‘guerras justas’. Assim, no Rio de Janeiro na passagem do
quinhentos para o seiscentos, a combinação da conquista, com o sistema de mercês e as
prerrogativas da Câmara contribuíram decisivamente para a montagem da economia de
plantation e para a afirmação de sua primeira elite senhorial 26. Portanto, a guerra contra
o gentio se expressou como um dos mecanismos fundamentais para o processo de
acumulação colonial 27.
No século XVII, o Rio de Janeiro já estava profundamente envolvido com o
tráfico atlântico e com o mercado de africanos na cidade em franco desenvolvimento. O
trabalho do africano escravizado já estava bastante enraizado na sociedade carioca 28,
embora, até meados do século XVII, os índios ainda se constituíssem em força de
trabalho essencial para a capitania carioca 29. Mesmo que os negros africanos fossem a
mercadoria principal no contrabando no Rio da prata, sua presença na capitania do Rio
de Janeiro foi crescente durante o seiscentos, fazendo com que, ao final do século, a
cidade e a capitania pouco ou nada mais dependesse das fontes indígenas de mão de
25
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: Identidade e cultura nas aldeias
coloniais do Rio de Janeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV-FAPERJ, 2013p. 87; SAMPAIO, op.
cit., p. 59; SCHARTZ, Stuart B. Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial. São
Paulo Cia das Letras, 2005, pp. 45-56-58.
26
FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fatima Silva e BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Uma
Leitura do Brasil Colonial: Bases da materialidade e da governabilidade no império. Penélope, Nº 23,
2000, p. 70; FRAGOSO, João. Algumas notas sobre a noção de colonial tardio no Rio de Janeiro: um
ensaio sobre a economia colonial. Locus: Revista de História. v. 6, n. 1 (2000), P. 14 e 15. Disponível
em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/20500, Acesso em 04/06/2019.
27
FRAGOSO, João. A espera das Frotas: hierarquia social e formas de acumulação no Rio de Janeiro,
século XVII. Cadernos do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa em História Social. Rio de
Janeiro: IFCS/UFRJ, n. 1, 1995, pp. 53-62; FRAGOSO, op. cit., 2000, p. 15.
28
SAMPAIO, op. cit., p. 66.
29
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Escravidão indígena e trabalho compulsório no Rio de Janeiro
Colonial. Revista Mundos do Trabalho, Vol. 6, nº 12, julho-dezembro de 2014, p. 11.
31
obra 30. De acordo com Alencastro na primeira metade do século XVII emerge uma nova
geografia sul-atlântica que evidencia as diferenças entre os peruleiros fluminenses e os
preadores de indígenas paulistas. Desviadas para o lado do Trópico de Capricórnio, as
rotas subequatoriais levam o Rio de Janeiro mais para dentro das trocas marítimas e
mais para fora da economia continental. Essa mudança no Centro-Sul leva os negócios
marítimos, negreiros, intercoloniais dos fluminenses a afastarem-se das empreitadas
continentais, indígenas, autonomistas e antijesuíticas dos paulistas 31. Neste sentido, foi
fundamental a reconquista de Angola e coube ao Rio de Janeiro tal empreitada. A
expedição organizada, comandada e financiada pelo Governador Salvador de Sá e sua
família contou com uma participação de recursos financeiros, homens e embarcações
fornecidos pelos negociantes da praça carioca 32.
Após a expulsão dos holandeses, os negociantes brasileiros de Pernambuco
e da praça carioca estabeleceram suas casas comerciais em Angola, se apoderando de
uma parcela do lucrativo tráfico negreiro que estava em mãos de negociantes reinóis.
No início do século XVIII os negociantes brasileiros assumiram o controle desse tráfico,
superando os negociantes reinóis. Na segunda metade deste século, o controle passa
para as mãos dos negociantes estabelecidos na praça comercial do Rio de Janeiro. Para
tal, investem em produtos essenciais para trocar por escravizados na costa africana, tais
como tabaco e cachaça 33.
Neste sentido, desde o século XVII seu porto desempenhava um
significativo papel no quadro da economia colonial brasileira, culminando com a
hegemonia de uma comunidade de comerciantes de grosso trato como uma elite
econômica da praça carioca e na transformação do Rio na principal praça mercantil do
Atlântico Sul, tendo ao seu redor circuitos mercantis, que abrigavam o comércio de
importação, exportação, os negócios de redistribuição de produtos estrangeiros
(europeus, africanos e asiáticos) no Brasil e o comércio colonial interno do Sudeste/Sul
coloniais 34.
30
ABREU, Mauricio de Almeida. Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502-1700). Rio de Janeiro:
Andrea Jakobsson Estúdio Editorial Ltda & Prefeitura do Município do Rio de Janeiro, 2010, vol. 2,
pp. 36 e 37.
31
ALENCASTRO, Luiz Felipe. Trato do Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, p. 199.
32
SAMPAIO, op. cit., p. 66; ALENCASTRO, op. cit., pp. 231-238.
33
CURTO, Vinho verso Cachaça: a Luta Luso-Brasileira pelo Comercio de Álcool e de Escravos em
Luanda, c. 1648-1703. In Angola e Brasil nas Rotas do Atlântico Sul. PANTOJA, Selma e SARAIVA,
Flavio Sombra (organizadores). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, pp. 69 e 70. ALENCASTRO,
op. cit. pp. 312-25
34
FRAGOSO, op. cit., 2000, p. 12.
32
35
SAMPAIO, op. cit., p. 65; ABREU, Mauricio de Almeida. Um quebra cabeça quase resolvido: os
engenhos da capitania do Rio de Janeiro, séculos XVI e XVII. Scripta Nova. Revista Electrónica de
Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona. Vol. X, núm. 218 (32), 1 de agosto de 2006,
p. 14; ABREU, op. cit., p. 94; PESAVENTO, op. cit., p.p. 21-26.
36
SCHWARTZ, op. cit., p, 148.
37
LISBOA, Balthazar da Silva. Annaes do Rio de Janeiro. Tomo IV, 1835, p. 295-296
38
O autor observou que 45% de todas as 197 famílias senhoriais seiscentistas têm como ponto de partidas
homens de sua Majestade. Mais da metade dos senhores de engenho do seiscentos eram empregados da
coroa, ou deles descendiam, ou ainda estavam casados com descendentes de ministros do Reino.
Portanto, eram tais famílias que tinham maior capacidade de reproduzir donos de moendas.
FRAGOSO, João. A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio
de Janeiro (séculos XVI e XVII). Topoi, Rio de Janeiro, nº 1, 2000, p. 56
33
algo que corresponda à economia de plantation do Rio 39. Ângelo Carrara, ao analisar os
rendimentos dos dízimos do Rio de Janeiro entre 1680 e 1688, aponta que enquanto a
produção de açúcar decaiu em Pernambuco e Bahia devido a uma epidemia que
desestruturou a produção da lavoura de cana, no Rio de Janeiro – que não conheceu os
efeitos dessa crise –, a produção de açúcar subiu; como sugerem os dados do contrato
dos dízimos entre 1680 e 1689, que atingiu um crescimento considerável: de 30.666
para 43.333 cruzados anuais 40.
Significativa também era a produção de farinha destinada ao tráfico
negreiro. Da região do Rio de Janeiro até São Paulo a produção de mandioca era
bastante abundante 41. Denise Demétrio aponta que na virada do século XVII para o
século XVIII as atividades voltadas para a produção de farinha nos engenhos do
Recôncavo da Guanabara ganharam algum destaque em relação aos engenhos de açúcar.
Se por um lado essa atividade demandava custos menores e se encaixavam na realidade
econômica dos senhores da região; por outro, havia uma profunda relação entre a
produção de farinha do recôncavo e o tráfico negreiro 42.
As exportações de mandioca contribuíam para o desenvolvimento
econômico do porto do Rio de Janeiro na virada do século XVI. Alencastro observou
que, exportando a produção fluminense e vicentina, a Baía da Guanabara enviava cerca
de 680 toneladas anuais de farinha de mandioca para angola na primeira metade do
39
FRAGOSO, João. Algumas notas sobre a noção de colonial tardio no Rio de Janeiro, p. 6
40
CARRARA, Ângelo Alves. Fiscalidade e conjunturas financeiras do Estado do Brasil, 1607-1808 -
Universidade Federal de Juiz de Fora, p. 15. - http://www.principo.org/fiscalidade-e-conjunturas-
financeiras- do-estado-do-brasil-1607.html; Sobre a história dos engenhos Fluminenses no seiscentos.
Cf. ABREU, Mauricio. Geografia Histórica do Rio de Janeiro. op. cit., pp. 77-177.
41
Observação feita por Dierick Ruiters. Navegador e cartografo Batavo que esteve no Rio de Janeiro
entre 1617-19. In FRANÇA. Jean Marcel Carvalho. Outras visões do Rio de Janeiro Colonial:
antologia de textos (1582- 1808). Rio de Janeiro: José Olympio, 2000, p. 40.
42
DEMETRIO, Denise Vieira. Famílias Escravas no Recôncavo Guanabara: séculos XVII e XVIII.
Dissertação de Mestrado. Niterói UFF, 2008, p.69-75; SOARES, Mariza de Carvalho. O vinho e a
farinha, ''zonas de sombra'' na economia atlântica no século XVIII. In SOUSA, Fernando (coord.) A
Companhia e as Relações Econômicas de Portugal com o Brasil, a Inglaterra e a Rússia. CEPESE –
Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade. Porto: Edições Aforamento, 2008, pp. 221-
227; BEZERRA, Nielson Rosa. Escravidão, farinha e tráfico atlântico: um novo olhar sobre as relações
entre o Rio de Janeiro e Benguela (1790-1830). Rio de Janeiro: Programa Nacional de Apoio à
Pesquisa Fundação Biblioteca Nacional – MinC, 2010; BEZERRA, Nielson Rosa. Mosaicos da
escravidão: identidades africanas e conexões atlânticas do Recôncavo da Guanabara (1780-1840).
Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2010, pp. 149-154; RODRIGUES, Jaime. De farinha,
bendito seja Deus, estamos por agora muito bem: uma história da mandioca em perspectiva atlântica.
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 37, nº 75, 2017. http://dx.doi.org/10.1590/1806-
93472017v37n75-03. SOARES. Mariza Carvalho de. Engenho sim, de açúcar não. O engenho de
farinha de Frans Post. VARIA HISTÓRIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 41: p.61-83, jan/jun 2009.
34
século XVII. Trocada do outro lado do atlântico por um número de escravizados cada
vez mais crescente, aumentava o consumo de gêneros alimentícios em Luanda 43.
Para Sampaio, havia um circuito mercantil consolidado em que a produção
de alimentos era responsável pela reprodução do próprio sistema escravista, pois a
cachaça só faria sua aparição na segunda metade do século XVII como moeda de troca
no tráfico atlântico. Em meados do século XVII a capitania fluminense já estava
profundamente envolvida no tráfico atlântico de escravizados. Prova disso é o fato de
ela ter sido a grande responsável pela reconquista de Angola 44.
Ao analisar cerca de 75 escrituras de compra e venda, no cartório do
primeiro ofício de notas da cidade do Rio de Janeiro, nos períodos de 1610-13 e 1630-
36, Fragoso observou que pouco mais de 70% dos valores transacionados,
correspondiam a negócios rurais (engenhos, terras, partidos de cana, entre outros). Tal
número indica que os negócios urbanos, mais precisamente aqueles ligados ao capital
mercantil (navios, lojas, estoques de mercadorias e outros), possuíam uma pequena
participação na economia fluminense do período 45. Tal situação evidencia as
dificuldades de o capital mercantil se reproduzir nesse período inicial de formação da
economia fluminense. Isso se explica pelo simples fato de não existir nesse período um
grupo de homens de negócios e mercadores suficientemente forte que formasse uma
classe mercantil. Portanto, nesse período inicial do seiscentos e até a primeira metade do
setecentos predominou no cenário econômico carioca uma elite agraria, tal como
denominou Fragoso: a primeira elite senhorial, a nobreza da terra, que tem origem nos
conquistadores quinhentistas e seus descendentes 46.
Analisando a economia fluminense entre 1650 e 1750, através dos padrões
de investimento da sociedade, Sampaio aponta que esta sociedade alocava seus recursos
em diversos campos de investimentos. Ao analisar as escrituras de compra e venda dos
cartórios do 1º e 2º Ofícios de Notas do Rio de Janeiro (1650-1750), o autor chama
atenção para o peso esmagador do valor dos negócios rurais (escrituras de compra e
venda de terras, engenhos, partidos de cana, sítios e fazendas) frente aos demais
negócios. Tais dados evidenciavam que a capacidade de acumulação mercantil da
43
ALENCASTRO, op. cit., pp. 251-256. Os navios que vinham ao porto do Rio de Janeiro abastecer de
farinha para trocar por escravos em Angola, em 1620, eram obrigados pela Câmara municipal a deixar
fiança, comprometendo-se em regressarem com os ditos negros para o Rio de Janeiro, numa tentativa
de evitar que fossem desviados para os portos das capitanias norte onde alcançavam melhor preço.
SAMPAIO, op. cit., p. 66; ALENCASTRO, op. cit., p.51.
44
SAMPAIO, op. cit., pp.66-7.
45
FRAGOSO, op. cit., p. 54
46
FRAGOSO, op. cit., pp. 45-122.
35
47
SAMPAIO, op. cit., p. 76
48
FRAGOSO, João. Mudanças e permanências no sistema atlântico luso centrado no Rio de Janeiro:
escravidão, antigo Regime e a economia atlântica na América lusa, 1670-1800. In SCOTT. Ana Silvia
Volpi etal/Organizadores. Mobilidade social e formação de hierarquias: subsídios para a história da
população. – São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2014, pp. 48-9
49
SAMPAIO, op. cit., p. 76.
50
FRAGOSO, João. A nobreza da República, op. cit., p. 54.
36
clero, para não falar dos marinheiros e capitães dos navios, exercem a mercancia 51. Ao
analisar a biografia de indivíduos que se destacaram nas atividades mercantis no Rio de
Janeiro, entre o último quartel do século XVII e o início do século XVIII, Sampaio
demonstra como todos, sem exceção, tornaram-se membros da elite agrária local através
da aquisição de engenhos e/ou casamentos com filhas de senhores de engenho 52. No
século XVII, os negociantes do Rio de Janeiro estiveram longe de alcançar o topo da
pirâmide social 53.
Tal quadro iria mudar a partir do final do século XVII, principalmente em
função da descoberta do ouro nos sertões de Minas Gerais. A capitania fluminense
experimentou uma ligeira crise de desabastecimento, na virada do seiscentos para o
setecentos, como resultado da combinação de vários fatores: o rush em direção as áreas
mineradoras; aumento da demanda urbana, em função da expansão da urbe carioca; a
diminuição da produção de açúcar e alimentos e a elevação dos preços, causadas pelo
êxodo em direção às minas de diversos indivíduos (agricultores, artesãos etc.). Tudo
isso se agravava pela necessidade de abastecer a colônia de Sacramento com farinha de
mandioca. No entanto, a crise de abastecimento da economia fluminense era conjuntural
e seu sistema agrário tinha plenas condições de responder 54.
A necessidade de mão de obra africana escravizada para o trabalho nas
minas foi crescente e provocou uma elevação avassaladora no número de cativos
desembarcados na América Portuguesa e principalmente no porto do Rio de Janeiro.
Devido à localização privilegiada de seu porto, ainda na primeira metade do século
XVIII, a cidade do Rio de Janeiro assume o papel de principal abastecedora e mais
importante porta de entrada de africanos escravizados para as regiões mineradoras 55.
Segundo Antonil, o intenso fluxo migratório do Rio de Janeiro para a região
das minas nos primeiros anos dos setecentos permitiu rapidamente a construção de um
eficiente sistema de abastecimento “atraído pelo brilho do ouro”. Essa atividade era tão
lucrativa que atraiu uma parcela considerável dos homens mais ricos, aumentando-lhes
51
PEDREIRA, Jorge M. V. Os homens de negócio da praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755 –
1822). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa (tese de doutorado), 1995, p. 18. Apud. FRAGOSO, A
nobreza da República ... p.55.
52
FRAGOSO, João. Algumas notas, p. 15; FRAGOSO, João A nobreza da República, p. 47.
53
SAMPAIO, op. cit., pp, 67-80; FRAGOSO, João A nobreza da República ... p. 54.
54
SAMPAIO, op. cit. p. 81; ABREU, Mauricio Geografia Histórica, p. 36.
55
OLIVEIRA, Lucimeire da Silva. Entre redes e negócios: uma análise dos homens de negócio da Praça
do Rio de Janeiro (c. 1750-1808). X Jornada de Estudos Históricos Professor Manoel Salgado. Rio de
Janeiro: PPGHIS, UFRJ. 09 A 13 de novembro DE 2015, 14-16.
37
ainda mais o seu “cabedal” 56. Foi a partir da Guerra dos Emboabas 57, com a vitória dos
emboabas sobre os paulistas, em razão da discrepância numérica e econômica entre os
dois lados, que se consolidou o domínio de cariocas e baianos sobre as áreas
mineradoras e as inseriu definitivamente no sistema atlântico do império colonial
português. Domínio esse que, no caso do Rio de Janeiro, será reforçado pela construção
do Caminho Novo 58.
Assim, a cidade se constituiu em ponto de articulação de toda a região
meridional do império atlântico português (o que a transformou em centro cosmopolita
e aberto à circulação de homens, capitais, embarcações, mercadorias, políticas e
projetos), por outro, ela sofrera um intenso assédio por parte de piratas e
contrabandista 59. A invasão francesa é exemplar no sentido de entendermos a força da
vinculação da praça carioca com o sistema atlântico e o papel desempenhado pelo ouro
que vinha para a cidade; assim como uma espécie de reconhecimento internacional do
papel da cidade, sobretudo em função da forma como a economia local reage às
consequências da invasão e restabelece de forma relativamente rápida seus fluxos
comerciais 60.
No Rio de Janeiro, os povos indígenas constituíram a mão de obra básica,
nos primórdios da colonização, foi utilizada em considerável escala, enquanto foi
possível, para exploração máxima de recursos com o mínimo de investimentos de
56
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil: por suas drogas e minas. Lisboa 1711.
Reimpressão no Rio de Janeiro em casa de Souza e companhia, 1837. p. 167-173
57
O Levante dos Emboabas foi um conflito entre paulistas e forasteiros pelo poder nas Minas no início do
século
XVIII. Os paulistas estavam ali desde o final do XVII e possuíam grande controle político e militar da
região. Já os recém-chegados eram mineradores e comerciantes vindos de outras regiões do Império
Português no início dos Setecentos. A rivalidade entre os novos e os antigos pelo controle do poder nas
minas logo se estabeleceu. Em 1708, a tensão se transformou em um conflito aberto. O Levante durou
três anos e culminou com a ascensão dos forasteiros ao poder e a migração dos paulistas para novas
áreas de mineração. Cf. ROMEIRO, Adriana. A Guerra dos emboabas: novas abordagens e
interpretações. In RESENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Coord.). História das
Minas Gerais. As minas setecentistas. Belo Horizonte, MG: Autêntica, Companhia do Tempo, vol. 1,
2007; BARCELOS, Mariana Lima. Entre conflitos e mediações: a formação da Câmara de Vila Rica
(1711-1736). Dissertação de mestrado. Brasília: Instituto de Ciências Humanas da Universidade de
Brasília. Dez. 2014; ROMEIRO, Adriana. Paulistas e Emboabas no coração das Minas - Ideias,
Práticas e imaginário político - Séc. XVIII. Minas Gerais: Ed. UFMG. Coleção: Humanistas, 2008
58
SAMPAIO, op. cit., p, 82; BOXER, Charles. A Idade do ouro do Brasil: dores de crescimento de uma
sociedade colonial. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, pp. 83-105.
59
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. O Rio de Janeiro no século XVIII: A transferência da capital e a
construção do território centro-sul da América portuguesa. A Urbana: Revista Eletrônica do Centro
Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade, v.1 nº1, jan./dez., 2006, p. 8. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/urbana/article/view/8635108. Acesso em 18/03/2018
60
ARAUJO, José de Souza Azevedo Pizzarro e. Memórias Históricas do Rio de Janeiro e das províncias
anexas A’Jurisdição do Vice-Rei do Estado do Brasil, dedicadas a’ El-Rei o Senhor D. João VI. Tomo
VII. Rio de Janeiro: Typografia de Silva Porto, 1822, v. 1 pp. 75-99.
38
capitais, tão raros na capitania nos séculos XVI e XVII. Por sua vez, não podemos
esquecer que o mercado de mão de obra africana escravizada, já existia desde finais do
século XVI, na medida em que a mão de obra indígena já não era suficiente para suprir
a demanda das atividades produtivas em expansão 61.
A escravidão africana foi introduzida na América portuguesa para atender as
exigências de uma produção colonial em ascensão, tendo em vista o esgotamento das
possibilidades de exploração da força de trabalho indígena em declínio. Tal declínio
está ligado às guerras e epidemias 62 frequentes, que dizimaram os povos indígenas em
larga escala. De acordo com Alencastro, 63 a vulnerabilidade dos povos indígenas ao
choque epidemiológico era muito maior que a do africano. Isso constitui-se em “fator
restritivo ao cativeiro indígena, ao passo que inversamente, facilitou o incremento da
escravidão” dos negros africanos, mais resistentes às doenças, especialmente aquelas
com as quais eles já tinham tido contato em sua região de origem, no continente
africano, e que assolavam a América portuguesa no momento de sua chegada. Por essa
razão, a escravidão africana tinha preferência à indígena, pois estes, apesar de
economicamente mais baratos, morriam em grande quantidade, tornando sua escravidão
mais cara que a dos africanos.
61
ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Metamorfoses indígenas... pp. 217, 218 e 225; . Maria Regina
Celestino de. Escravidão indígena e trabalho compulsório p. 12 – 17; . A atuação dos indígenas
na História do Brasil: revisões historiográficas. Revista Brasileira de História, vol. 37, núm. 75, maio-
agosto, 2017, p.27; COARACY, Vivaldo. O Rio de Janeiro no século 17. Coleção Rio 4 séculos, vol.
6. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1965, p. 98.
62
ALMEIDA, op. cit., pp. 225-6; SAMPAIO,op. cit., p. 59-60; SCHWARTZ, op. cit, 1988, cap. 3;
MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil: Resistência, tráfico negreiro e
alforrias, séculos XVII a XIX. Novos Estudos Cebrap, 74, março 2006, pp. 111.
63
ALENCASTRO, op. cit., pp. 127-133; ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Escravidão indígena e
Trabalho... pp. 18-19; SAMPAIO, op. cit., 59.
64
TOSTES, Ana Paula C. Para “viver livre como se de nascimento fosse”: um estudo sobre a geração da
população forra no Rio de Janeiro do século XVIII. Tese de doutorado em História Social. Rio de
Janeiro: UFRJ/IH-2018, p.46.
39
acordo com estatísticas históricas do Brasil 65, a população da colônia em 1660 era de
184.000 e em 1808 aumentou para 2.424.463; ou seja, em aproximadamente 150 anos a
população aumentou em cerca de mais 10 vezes o seu número.
Tal explosão demográfica está para além de um simples processo de
migração espontânea de indivíduos – muitas vezes com suas famílias –, vindos de
diferentes regiões da Europa e das ilhas atlânticas em busca de oportunidades do lado de
cá do Atlântico. Refere-se a um longo processo de migração forçada de um enorme
contingente de pessoas, homens, mulheres e crianças vindas de diferentes sociedades,
culturas e idiomas do continente africano para serem utilizadas como mão de obra
escravizada nas diferentes regiões do centro sul da América lusa. Tais movimentos
populacionais devem ser compreendidos dentro do quadro político econômico, social e
cultural, além do papel central que o Rio de Janeiro passaria a desempenhar no âmbito
do império colonial português a partir do século XVIII.
Sua localização no litoral meridional do Atlântico Sul o colocava em uma
posição estratégica central no seio da América lusa. Tal situação lhe proporcionou
alcançar condições excepcionais de trânsito entre as possessões espanholas no estuário
do Prata e enclaves negreiros na África, a partir do século XVII, conferindo-lhe uma
dimensão atlântica. Os negociantes estabelecidos no Rio de Janeiro tiveram participação
ativa no tráfico negreiro, com acesso privilegiado aos portos da região do Prata. De
acordo com Alencastro, o Rio de Janeiro se apresentava como peça chave na integração
do Atlântico Sul, estabelecendo a ligação entre Angola e Buenos Aires, através do
tráfico negreiro, formando o triangulo negreiro Luanda-Rio de Janeiro-Buenos Aires. 66
O papel desempenhado pelos negociantes sediados na praça comercial do
Rio de Janeiro no tráfico de africanos escravizados vindos do porto de Luanda se
alteraria sensivelmente no início do setecentos, principalmente após a reconquista de
Angola das mãos dos holandeses. Por traz do fluxo constante de cativos desembarcados
nos portos da América portuguesa estavam diversos conflitos por causa dos interesses
divergentes entre os governadores de Angola, os negociantes do Rio de Janeiro e
contratadores de direitos de escravos. De acordo com Roquinaldo Ferreira, os
governadores tiravam vantagens dos poderes concedidos a eles pelo cargo que
65
ESTATÍSTICAS HISTÓRICAS DO BRASIL: Séries Econômicas, Demográficas e Sociais de 1550 a
1988. 2ª edição. Rio de Janeiro, IBGE, 1990. p. 30; FRAGOSO, João Luís Ribeiro. GOUVÊA, Maria
de Fátima. Monarquia pluricontinental e repúblicas: algumas reflexões sobre a América lusa nos
séculos XVI-XVIII. Revista Tempo, n. 14, Vol. 27, 2009, p. 37.
66
ALENCASTRO, op. cit., p. 224.
40
67
De acordo com Leonardo Oliveira, “a guerra era uma via de mão indissociável da conquista do
comércio, onde por meio dela se viabilizava a conquista de postos de abastecimento de escravos.”
OLIVEIRA, Leonardo Alexandre de Siqueira. Redes de poder em governanças do Brasil a Angola:
administração e comércio de escravos no Atlântico Sul (Luís César de Meneses, 1697-1701).
Dissertação. Niterói: UFF, 2013, p. 91.
68
FERREIRA, Roquinaldo. Dinâmica do comércio intercolonial: Geribitas, panos asiáticos e guerra no
tráfico angolano de escravos (século XVIII). In: FRAGOSO, João; BICALJHO, Maria Fernanda, e
GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: A dinâmica imperial portuguesa
(séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 341.
69
DIAS, Ondemar. Escravos, Marfim, Tecidos: um governador do Rio de Janeiro relata seu comércio.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 161 (406): 143-219, jan/mar.
2000. P. 164. Esses preços variavam de acordo a com a região e a época. De acordo com o governador
Sebastião Castro e Caldaz, em 1695 no Rio de Janeiro um escravo podia ser vendido por 80 mil réis ou
mais. O próprio govenador de Angola Luiz Cesar Meneses relata em carta a Pascoal da Silva Siqueira
em 1699 a vantagem de enviar escravos para o Rio de Janeiro devido a alta de preço, porque
alcançavam de 80 a 100 mil réis por cabeça. Cf. AHU – Rio de Janeiro, cx. 6, doc. 35,49.
AHU_ACL_CU_017, Cx. 6, D. 607. Disponível em:
http://resgate.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=017_RJ_AV&PagFis=278, acesso em 16/03/2018;
Carta a Pascoal da Silva Siqueira. Luanda, 10 de outubro de 1699. IHGB, 72, 08 FOLHA 50verso.
Apud. OLIVEIRA, op. cit., 2013. Especialmente o capítulo três.
41
70
FERREIRA, op. cit., p. 342
71
DEMETRIO, op. cit., p.69-75; SOARES, Mariza de Carvalho. O vinho e a farinha, ''zonas de sombra''
na economia atlântica no século XVIII. In SOUSA, Fernando (coord.) A Companhia e as Relações
Econômicas de Portugal com o Brasil, a Inglaterra e a Rússia. CEPESE – Centro de Estudos da
População, Economia e Sociedade. Porto: Edições Aforamento, 2008, pp. 221-227; BEZERRA,
Nielson Rosa. Escravidão, farinha e tráfico atlântico, op. cit., (1790-1830), 2010; BEZERRA,
Mosaicos da escravidão, op. cit., 2010, pp. 149-154; RODRIGUES, op. cit., 2017; SOARES. Mariza
Carvalho de. Engenho sim, de açúcar não, op, cit., p.61- 83.
72
Arquivo Histórico Ultramarino – AHU – Consultas de Angola, Códice 554, fls 131-132v. Disponível
em: https://digitarq.ahu.arquivos.pt/viewer?id=1146438, acesso em 10/03/2018. Tomei conhecimento
desse documento através da leitura do texto de Roquinaldo Ferreira Dinâmica do comércio
intercolonial: Geribitas, panos asiáticos e guerra no tráfico angolano de escravos (século XVIII). In:
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda, e GOUVÊA, Maria de Fátima (Organizadores.). O
Antigo Regime nos Trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001. E do texto de CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos no Rio
42
setecentista. In: FLORENTINO, Manolo (org.). Tráfico cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos
XVII – XIX). Rio de Janeiro Civilização Brasileira, 2005, pp. 22 e 23
73
FERREIRA, op. cit., p. 342-343.
74
AHU – Rio de Janeiro, cx. 6, doc. 35,49. AHU_ACL_CU_017, Cx. 6, D. 607. Disponível em:
http://resgate.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=017_RJ_AV&PagFis=278, acesso em 16/03/2018.
75
SAMPAIO, op., cit. 2000; FERREIRA, op. cit., 2001, p. 342.
76
De acordo com Miller, já em 1680 inicia-se uma reorientação dos negociantes baianos para as fontes de
escravos na Costa da Mina. MILLER, C. Joseph. A Economia Política do Tráfico Angolano de
escravos no século XVIII. In: PANTOJA, Selma e SARAIVA, José Flavio (Organizadores). Angola e
Brasil nas rotas do Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. P. 17
77
AHU – Rio de Janeiro, cx. 6, doc. 35,49. AHU_ACL_CU_017, Cx. 6, D. 607. Disponível em:
http://resgate.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=017_RJ_AV&PagFis=278, acesso em 16/03/2018.
43
78
AHU – Cartas de Angola, Cód. 545, pp. 108v e 109. Disponível em:
https://digitarq.ahu.arquivos.pt/details?id=1146435, acesso em 17/03/2018.
79
De acordo com Ondemar Dias, em 1674 os navios do Rio de Janeiro já tinham garantida essa
preferência das monções desde que não ultrapassassem o número de quatro. Cf. DIAS, Ondemar.
Escravos, Marfim, Tecidos, p. 149.
80
Provisão Real feita por Manoel Pinheiro da Fonseca e André Lopes Lavra. Lisboa 07 de fevereiro de
1679. Príncipe Regente; AHU – Cartas de Angola, Cód. 545, pp. 108v e 109. Disponível em:
https://digitarq.ahu.arquivos.pt/details?id=1146435, acesso em 19/03/2018.
81
AHU – Cartas de Angola, Cód. 545, pp. 108v e 109. Disponível em:
https://digitarq.ahu.arquivos.pt/details?id=1146435, acesso em 19/03/2018.
82
Forma como os Mineradores eram conhecidos.
44
Estabeleceu ainda que aqueles que não cumprissem a lei seriam multados
pelo preço do escravo em dobro, ficando metade do valor para o denunciante e a outra
metade seria recolhida à Fazenda Real. Outra medida para organizar o fornecimento de
cativos foi a criação de cotas de escravos para cada porto brasileiro. O Rio de Janeiro
receberia 1.200 escravos, Pernambuco receberia 1.300 e os que restassem seriam
83
COARACY, Vivaldo. O Rio de Janeiro no século XVII. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora,
Coleção Rio 4 séculos, vol. 6, 2ª ed. 1965, p. 246; cf. GOULART, Mauricio. A escravidão africana no
Brasil: das origens à extinção do tráfico. São Paulo: Alafa-Ômega, 1975, p. 153.
84
AHU – Cartas de Angola, Cód. 545, p. 124.
45
85
AHU – Cartas de Angola, Cód. 545; AHU, Rio de Janeiro av. cx. 8, doc. 19. Cf. FERREIRA, op. cit.,
2001, p. 342; CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos no Rio setecentista. In: FLORENTINO,
Manolo (org.). Tráfico cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII – XIX). Rio de Janeiro
Civilização Brasileira, 2005, pp. 22 e 23.
86
SOARES, Mariza Soares de Carvalho. Os devotos da Cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão
no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 74.
87
AHU_ACL_CU, Consultas Mistas, Cód. 21, fls. 335v. – 337v.
Disponível em: https://digitarq.ahu.arquivos.pt/details?id=1146225, acesso em 17/03/2018.
88
AHU – Consultas de Angola, Cód. 554, fls. 131v. -132.
Disponível em: https://digitarq.ahu.arquivos.pt/viewer?id=1146438, acesso em
05/04/2018.
89
AHU – Consultas de Angola, Cód. 554, fls. 141 – 142.
Disponível em: https://digitarq.ahu.arquivos.pt/viewer?id=1146438, acesso em
05/04/2018.
Cf. também, FERREIRA, op. cit., 2001, p. 343
90
Os negociantes do Brasil eram mencionados como brasileiros, americanos ou brasilienses. Oficio do
governador de Angola Mossamedes, em 28 de outubro de 1785. AHU, Angola, av. cx 70. Apud
FERREIRA, op. cit., 2001, p.344.
46
Assunto que abordaremos mais à frente. Assim, ao alcançar a segunda metade do século
XVIII, o tráfico Angolano estava totalmente integrado ao sistema mercantil, cujo centro
estava no centro-sul do Brasil 97, sendo os portos da América portuguesa, de Recife,
Salvador e Rio de Janeiro responsáveis por 85% da movimentação dos negócios no
porto de Luanda, enquanto Lisboa era responsável por 15% desse comércio. No entanto,
de acordo com Elias Alexandre da Silva Corrêa, os poucos navios portugueses que
carregavam no porto de Luanda tinham como interesse o contrabando com os portos
brasileiros 98.
Brasil fornecia gêneros para o comércio dos sertões angolanos (álcool,
fazendas asiáticas, pólvora, armamentos, soldados e cavalos) para proteger e expandir o
controle português sobre Angola. As mercadorias 99 que financiavam os investimentos
brasileiros a princípio eram de baixo custo, mas logo as fazendas asiáticas que tinham
um valor mais alto que o principal produto brasileiro – as cachaças (geribitas) –
passaram a ser utilizadas para financiar os negócios negreiros nos sertões angolanos.
Tais produtos são a chave para o sucesso dos negociantes brasileiros nesse comércio
que controlava boa parte das rotas mercantis do Império Ultramarino Português,
provocando conflitos com a administração lisboeta 100.
De acordo com Sampaio, houve um fortalecimento do capital mercantil no
interior da sociedade fluminense no final do século XVII. Era no espaço urbano que o
capital mercantil se reproduzia, através de aquisição ou construção de lojas, armazéns,
sobrados, trapiches etc., que era parte fundamental da reprodução ampliada desse
mesmo capital. Ao fazerem suas aquisições através do mercado, os negociantes estavam
ampliando o grau de mercantilização da sociedade urbana como um todo, aplicando
nela os recursos adquiridos em seus negócios no Império. Portanto, o desenvolvimento
crescente da urbe carioca estava condicionado aos movimentos e tendências do setor
mercantil 101. O desenvolvimento acelerado das atividades mercantis no porto carioca
97
FRAGOSO, João Luís Ribeiro e FLORENTINO, Manolo Garcia. O arcaísmo como projeto: mercado
atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia (Rio de Janeiro, 1790-
1840). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
98
CORREIA, Elias Alexandre da Silva. Um militar brasileiro em Angola.1937, Vol. 1, pp. 48-49. Apud.
FERREIRA, op. cit., p. 345.
99
FARIAS, Sheila de Castro. Sinhás Pretas, Damas Mercadoras: As pretas minas nas cidades do Rio de
Janeiro e de São João Del Rey (1700-1850). Tese de Professor Titular em História do Brasil. Niterói:
UFF, 2004. pp. 12 e 13.
100
FERREIRA, op. cit., 2001. pp. 345-346.
101
SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. A produção política da economia: formas não-mercantis de
acumulação e transmissão de riqueza numa sociedade colonial. Rio de Janeiro, 1650-1750. Topoi. Vol.
4, n. 7, jul.-dez. 2003, p. 289.
48
Holanda
Bretanha
Espanha/
Uruguai
Bálticos
França
/Brasil
Totais
Países
EUA
Grã-
Periodos
102
De acordo com Thornton, as transformações econômicas ocorridas no Brasil no século XVIII,
especialmente a descoberta do ouro em Minas Gerais, contribuíram para o amento da demanda e
consequentemente dos preços dos escravos nas regiões de procedência africana. THORNTON, John. A
51
Minas Gerais, o Rio de Janeiro passau a ter um papel central na distribuição de cativos e
mercadorias para as áreas mineradoras, assim como para toda região Sul-Sudeste da
América lusa 103. Ainda no século XVIII, Campos dos Goitacazes com a produção de
açúcar e alimentos, além da pecuária, torna-se grande área de atração de cativos via
porto do Rio de Janeiro. Momento em que cidade passa por transformações que
culminariam em sua elevação à capital da colônia em 1763, tornando-se o principal polo
jurídico e econômico do império colonial português 104. No século XIX, o cultivo do
café no Vale do Paraíba – que superou temporariamente a produção de açúcar no Brasil
e no Caribe – seria o principal motor por mão de obra escravista para as Américas e
mantém o porto do Rio de Janeiro em sua posição 105.
A tabela 2, reproduzida do Atlas do Comércio Transatlântico de Escravos a
partir dos números do banco de dados The Trans-Atlantic Slave Trade Database,
contendo os desembarques nos principais portos de cada região onde o tráfico atlântico
operou, nos permite acompanhar o volume de entradas de africanos escravizados no Rio
de Janeiro. Situação que contribuiu para que o porto desta cidade se tornasse pujante ao
longo desse período, posicionando-a em condições de igualdade com as grandes áreas
de plantations escravistas do mundo atlântico. Ainda na primeira metade do século
XVIII, o volume de entradas no porto da cidade do Rio ultrapassa as entradas para o
porto de Pernambuco, e na segunda metade deste século começa a suplantar as entradas
no porto de Salvador. De acordo com essa tabela, podemos verificar que na segunda
metade do século XVIII o porto carioca só importa menos cativos africanos que as
regiões da Jamaica e São Domingos. Mas no volume total de importações, o porto
carioca é o maior importador de mão de obra africana escravizada, no período de 1801 a
África e os Africanos na Formação do Mundo Atlântico 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p.
395.
103
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio
de Janeiro. São Paulo: Cia das Letras, 2002, pp. 39-40; FLORENTINO, Manolo. Tráfico Atlântico,
Mercado Colonial e Famílias escravas no Rio de Janeiro, Brasil, c. 1790-c. 1830. 2009, p. 74.
104
BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 100; CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos novos no Rio
setecentista. In FLORENTINO, Manolo. Org. Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos
XVII- XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, pp. 21-22.
105
FLORENTINO, op. cit., 2002, pp. 39-40; Manolo. Tráfico Atlântico, Mercado Colonial e Famílias
escravas no Rio de Janeiro, Brasil, c. 1790-c. 1830. 2009, p. 74. CALDEIRA, Arlindo Manuel.
Escravos e Traficantes no Império Português. Lisboa: Distribuidora de Livros Betrand, 2013, p. 36;
ELTIS, David e RICHARDSON, David. Atlas of the transatlantic slave trade. New Haven & London:
Yale University Press. 2010 p.198.
52
1866, o Rio de Janeiro 106 recebeu 1.281.600 africanos escravizados, ou seja, 56,6% do
total de cativos desembarcados em todo o período do tráfico. Isso pode ser constatado
na tabela 3, que em números absolutos apresenta um total de 1.839.000 cativos
desembarcados no porto carioca, representando 22% do total de africanos
desembarcados nos vinte maiores portos de desembarque de cativos nas Américas. O
porto do Rio de Janeiro supera todos os locais de desembarque no Novo Mundo.
Observa-se que a capitania baiana estava bem próxima com um total de desembarques
de 1.550.000, representando um percentual de 18% do total dos africanos escravizados
desembarcados; seguida de Jamaica com 886.000, correspondendo a 10,6% e Recife
com 854.00, correspondendo a 10,2%. Tais números, além de comprovarem a liderança
do porto carioca no tráfico transatlântico, demonstram a supremacia da América
portuguesa no tráfico transatlântico durante o século XVIII e permaneceria no século
XIX durante o império do Brasil e só terminaria com o fim do tráfico negreiro em 1850.
106
Na tabela 2, o Rio de Janeiro está representado como região sudeste, englobando todos os portos
menores do Recôncavo da cidade e da capitania/província onde desembarcou cativos. Por isso a
divergência com o total da tabela 3
53
Paranaguá, Parati, Ponta Negra, Rio de Janeiro Província, Rio de Janeiro, São Paulo e
Santa Catarina.
FONTE: Eltis, David. Atlas do Comércio Transatlântico de Escravos, p. 23. Disponível
em: http://www.slavevoyages.org/tast/assessment/ estimativa.faces? yearFrom = 1501
& yearTo = 1866. Acesso em 14/04/2018.
Porto Número de
escravos
Rio de Janeiro 1.839.000
Salvador (Bahia) 1.550.000
Kingston (Jamaica) 886.000
Recife 854.000
Barbados (Bridgetown) 493.000
Havana 464.000
Cap-Français (now Cap. Haitien) 406.000
Suriname (Paramaribo) 256.000
Martinique (St. –Pierre) 217.000
Charleston (South Carolina) 186.000
Cartagena 150.000
Antigua (St. John’s) 138,000
St. Kitts (basseterre) 134.000
Port – au – Prince 130.000
Grenada (St. George’s) 129.000
Curaçao (Willemstad) 122.000
Dominica (Roseau) 110.000
Maranhão 98.000
Lógane (St.-Doming/Haiti) 98.000
Guadeloupe (Basse-Terre) 73.000
TOTAL 8.325.000
FONTE: ELTIS, David e RICHARDSON, David. Atlas of the transatlantic slave trade.
New Haven & London: Yale University Press. 2010, p. 204.
FONTE: ELTIS, David e RICHARDSON, David. Atlas of the transatlantic slave trade.
New Haven & London: Yale University Press. 2010 p. 17 ELTIS, David. Atlas do
Comércio Transatlântico de Escravos, p. 17.
107
Navio de guerra de grande porte, com artilharia de calibre médio
108
ELTIS, David e RICHARDSON, David. Atlas of the transatlantic slave trade. New Haven & London:
Yale University Press. 2010 p. 17
55
união das Coroas ibéricas (entre 1580 e 1640), os portugueses vão aumentar ainda mais
seu protagonismo, pois passam a deter a primazia no abastecimento da mão de obra
africana para a América espanhola. Mas o predomínio ibérico estava com os dias
contados 109, a partir de 1660, quando perdeu a primazia para outras nações - ingleses e
holandeses, principalmente. O século XVIII foi o período de maior competição pelo
controle do tráfico, principalmente com os ingleses, os maiores e mais bem- sucedidos
transportadores de cativos da África, no Atlântico Norte, em direção aos complexos
açucareiros do Caribe 110, enquanto os portugueses tentam manter sua hegemonia no
Atlântico Sul, a partir de sua colônia angolana e dos portos no Golfo do Benin. O que
não seria tão fácil, uma vez que os lusitanos viam esse controle hegemônico do tráfico
negreiro passar para as mãos dos negociantes da América portuguesa, notadamente os
sediados na praça carioca, que conquistam sua primazia. Reforça-se, portanto, a
importância da cidade do Rio de Janeiro nesse contexto. Conforme a base de dados The
Transn-Atlantic Slave Trade Database, dos 188 portos que organizaram viagens para a
África, 93% foram organizadas pelos vinte maiores portos de embarque de cativos (ver
tabela 4), sendo o Rio de Janeiro o principal porto, seguido do de Salvador e, depois, do
de Liverpool 111.
PORTO QUANTIDADE
DE CATIVOS
Rio de Janeiro 1.507.000
Salvador da Bahia 1.362.000
Liverpool 1.338.000
Londres 829.000
Bristol 565.000
Nantes 542.000
Recife 437.000
Lisboa 333.000
Havana 250.000
La Rochelle 166.000
Texel 165.000
Le Havre 142.000
Bordeaux 134.000
Vlissingen 123.000
109
CALDEIRA, Arlindo Manoel. Escravos e Traficantes no Império português, pp. 29 e 30.
110
ELTIS, David. Atlas do Comércio Transatlântico de Escravos, pp. 21-23
111
ELTIS, David. Atlas do Comércio Transatlântico de Escravos, p. 37.
57
112
MILLER, Joseph C. África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850. In:
HEYWOOD. Linda M. (org.). Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 42.
113
Idem, p. 43.
114
FLORENTINO, op. cit., 2002 pp. 78-100
115
KARASCH, Mary C. A vida de escravos no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia da Letras, 2000, pp.
35- 66
58
116
MILLER, Joseph C. África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850. In:
HEYWOOD. Linda M. (org.). Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 62.
59
117
Idem, 62.
60
minas ou no cultivo de cana de açúcar, sendo mais utilizados em tarefas nas áreas
urbanas e comerciais da América lusa 118.
Ao longo do século XVIII seria inegável a predominância da região Congo-
Angola como a principal fonte de escravizados africanos para o Rio de Janeiro
exportados, sobretudo, através dos portos de Luanda e Benguela. Ao longo deste século,
88% de africanos escravizados que entraram no Rio de Janeiro eram originários da
África Central Atlântica 119, contra 11% da África Ocidental e apenas 1% da África
Oriental.
Avançando no tempo, veremos que na passagem do século XVIII para o
XIX, após a proibição do tráfico ao norte do Equador, a participação da África
Ocidental no abastecimento do porto do Rio de Janeiro entra em declínio, mas não
desapareceu por completo, muito embora boa parte dos africanos ocidentais que entram
no Rio de Janeiro nesse período tenha vindo de outras regiões brasileiras, sobretudo
Bahia. Boa parte do tráfico dessa região da África tendeu-se a se deslocar para a zona
setentrional da África e outra parte deslocou-se em direção à região do Rio dos
Camarões 120.
Na América portuguesa, os desembarques constantes de africanos
correspondiam a uma diferenciação social entre os homens livres, pois o simples acesso
de diversos segmentos sociais à propriedade escrava não encobria a enorme
concentração da posse de escravizados nas mãos de alguns senhores. Manolo Florentino
observou que, entre 1789 e 1808, cerca de 60% dos senhores de escravos no Rio de
Janeiro possuíam pelo menos dez cativos, assim como os estabelecimentos urbanos e
rurais com mais de vinte cativos estavam nas mãos de cerca de 15% dos proprietários.
Estes constituíam-se numa elite que concentrava 45% dos cativos, ao passo que as
118
MILLER, Joseph C. África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850. In:
HEYWOOD. Linda M. (org.). Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 63
119
De acordo com Paul Lovejoy: “De 1600 a 1800, mais de 3,1 milhões de escravos foram embarcados
somente a partir desta região [África Centro-Ocidental], o que representava cerca de um terço de todos
os escravos exportados da África nesses dois séculos, incluindo o comércio transatlântico e o comércio
islâmico estabelecido. A porção do comércio do Atlântico que pode ser atribuída à África Centro-
Ocidental é correspondentemente maior do que um terço. No apogeu do comércio no século XVIII,
essa região era a maior exportadora isolada, exceto nas três primeiras décadas, quando era a segunda
maior fonte. Nas últimas décadas do século, os anos de apogeu do comércio transatlântico, a África
Centro-Ocidental contribuiu com mais de um terço, subindo para mais de 40 por cento do comércio
desde a década de 1770 até a de 1790”. LOVEJOY, Paul. A escravidão na África: uma história de suas
transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p.98.
120
PIRES, Ana Flávia Cicchelli. Tráfico Ilegal de Escravos: os caminhos que levam a Cabinda.
Dissertação Mestrado. PPGH/UFF, 2006, pp. 47,48; MILLER, 2008, op. cit. pp. 42-4; FLORENTINO,
Manolo. Tráfico atlântico, mercado colonial e famílias escravas no Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1830.
História: 2009, pp. 77-78.
61
pequenas unidades produtoras, possuíam apenas um entre cada quatro escravos, veja
tabela 5 121.
Ao analisar o tráfico e a escravidão no Rio de Janeiro entre 1789 e 1832,
Manolo Florentino constata que entre todos aqueles que morriam e abriam seus
inventários post- mortem, nunca menos de 84% eram possuidores de pelo menos um
escravo. Tal situação era indicativa de um alto grau de disseminação social da
propriedade escrava no Rio de Janeiro 122. Segundo o autor, o fato de tantos indivíduos
terem acesso à propriedade de escravos poderia nos induzir a pensar que tal elemento
por si só não seria capaz de produzir a diferenciação social dos homens livres entre si.
Levando-nos a negar a afirmação de Finley 123, de que a posse de escravos não torna
uma sociedade escravista, mas sim aquela em que a elite é capaz de se reproduzir
mediante a exploração do trabalho dos cativos 124.
Com a abertura dos portos, em 1808, segundo Florentino, intensificam-se os
desembarques de cativos no porto do Rio de Janeiro, correspondendo ao aumento da
fatia da escravaria concentrada nas mãos da elite colonial, que passou a deter 60% dos
cativos. Ao mesmo tempo em que ocorre uma diminuição no acesso à propriedade
escrava por parte daqueles que possuíam menos de vinte cativos, os que possuíam um
pouco mais da metade passam a possuir cerca de 40% do total de escravos. Entre 1789 e
1808, aumentou o número de proprietários sem escravos, o que representava 11,2% dos
inventariados, índice que passou para 16,4%, entre 1808 e 1830. Tais dados
demonstram o papel estrutural do tráfico transatlântico na cidade, demonstrando a
capacidade de os homens livres detentores das maiores fortunas gerarem renda a partir
da apropriação do trabalho escravo. Portanto, o tráfico transatlântico de escravizados
revela-se como o mecanismo central de acumulação e distanciamento (diferenciação
socioeconômica) da elite escravista em relação aos demais setores da população livre na
hierarquia socioeconômica 125.
121
FLORENTINO, Manolo. Tráfico atlântico, mercado colonial e famílias escravas no Rio de Janeiro, c.
1790. c. 1830. História: Questões & Debates, Curitiba: Editora UFPR. n. 51, p. 69-119, jul./dez. 2009,
pp. 72-74.
122
Ibid., pp. 72-74.
123
FINLEY, Moses I. Escravidão Antiga e ideologia moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1991, pp. 82-9
124
FLORENTINO, op. cit., p. 72- 3.
125
Ibid., pp. 72-74.
62
Obs: Segundo Florentino, 34 inventariados não possuíam escravos entre 1789 e 1808, o
mesmo ocorrendo com 126 inventariados entre 1810 e 1832.
FONTE: FLORENTINO, Manolo. Tráfico atlântico, mercado colonial e famílias
escravas no Rio de Janeiro, pp. 73, Tabela 1.
126
FLORENTINO, op. cit., pp. 75; FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Dos sertões ao Atlântico: tráfico
ilegal de escravos e comércio lícito em Angola, 1830- 1860. Dissertação de Mestrado em História,
UFRJ, Rio de Janeiro, 1996, 2-6.
127
CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e construção da cidade da invasão
francesa até a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2004. pp. 95-101; HONORATO,
Cláudio de Paula. Valongo: o mercado de escravos do Rio de Janeiro de 1758 a 1831. Dissertação de
Mestrado. Niterói, PPGH/UFF 2008, 37-49; SANTOS, Ynaê Lopes dos. Irmãs do Atlântico:
escravidão e espaço urbano no Rio de Janeiro e Havana (1763-1844). Tese de doutorado. PPGH/USP,
2012. pp. 118-146; SANTOS, Ynaê Lopes dos. Tornar-se Corte: Trabalho escravo e espaço urbano no
Rio de Janeiro, (1808-1815). Revista de História Comparada. Rio de Janeiro, 7, 1, 2013, 262-292.
63
sociais que acabaram gerando uma demanda maior por escravizados que foi suprida
rapidamente pelo tráfico transatlântico.
BARBOSA, Keith de Oliveira e GOMES, Flavio. Doenças, morte e escravidão africana: perspectivas
historiográficas. Ciências letras, Porto Alegre, n. 44, p. 237-259, jul./dez. 2008, p. 250.
128
FLORENTINO, op. cit., pp. 78,79.
129
“Em 1826, os representantes das coroas do Brasil e Inglaterra assinaram um acordo de abolição do
tráfico em três anos. Ratificava todos os acordos assinados previamente com Portugal e proibia toda a
importação de escravizados para o Brasil, efetiva três anos após a ratificação, que ocorreu em 13 de
março de 1827. O tratado considerava piratas os navios das duas nações que se encontrassem
engajados no tráfico. Seriam submetidos a julgamento por comissões mistas instaladas nos dois lados
do Atlântico, em Freetown, Serra Leoa e no Rio de Janeiro. Determinava a emancipação de todos os
africanos encontrados nos navios condenados. O governo imperial propôs um projeto de lei nacional
de proibição do tráfico, que foi debatido e aprovado no Senado e depois na Câmara, sendo promulgada
em 7 de novembro de 1831. Regulamentada pelo decreto de 12 de abril de 1832. Em seu art. 1º
declarava livres “todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil”. Apesar da
proibição intensificou-se o tráfico de africanos escravizados para o Brasil. Entre 1831 e 1850 mais de
750 mil africanos entraram no país ilegalmente”. MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. A proibição do
tráfico atlântico e a manutenção da escravidão. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (org.). O
Brasil Imperial, Volume 1: 1808-1831. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. Capítulo VI.
64
p. 207-233; Cf. Lei de 7 de novembro de 1831. Coleção de Leis do Império do Brasil, 1831, p. 182,
vol. 1 pt 1; GURGEL, Argemiro Eloy. A Lei de 7 de novembro de 1831e as ações cíveis de liberdade
na Cidade de Valença (1870 a 1888). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, UFRJ / IFCS, 2004, pp.
49-55; GRINBERG, Keila. Escravidão, alforria e direito no Brasil oitocentista: reflexões sobre a lei de
1831 e o "princípio da liberdade" na fronteira sul do Império brasileiro. In: CARVALHO, José Murilo
de. Nação e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
2007. p. 267-285; COTA, Luiz Gustavo Santos. Sagrado Direito da Liberdade: escravidão, liberdade e
abolicionismo em Ouro Preto e Mariana (1871 a 1888). Dissertação de Mestrado. Juiz de Fora:
Universidade Federal de Juiz de Fora, 2007, pp. 136 a 144; CHALHOUB, Sidney. A força da
escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012;
CARVALHO, Marcus J. M. de. O desembarque nas praias: o funcionamento do tráfico de escravos
depois de 1831. Revista de História, São Paulo, n. 167, p. 223-260, julho/dezembro 2012. Disponível
em <http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/49091>. Acesso em 30 de março. de 2020.
130
ELTIS, David. Economic growth and the endind of the transatlantic slave trade. New York: Oxford
University Press, 1987, p. 243-4; FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Dos sertões ao Atlântico p. 15-16;
CICCHELLI PIRES, Ana Flávia. Tráfico Ilegal de Escravos: os caminhos que levam a Cabinda.
Dissertação Mestrado. PPGH/UFF, 2006, 23-25.
131
FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras, pp. 37,38; FLORENTINO, Manolo; RIBEIRO,
Alexandre; SILVA. Daniel Domingues da Silva. Aspectos comparativos do tráfico de africanos para o
Brasil (séculos XVIII e XIX). Afro-Ásia, 31, 2004, pp. 87-89; FERREIRA, Roquinaldo Amaral.
Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil during the era of Slave Trade.
Cambridge University Press, 2012;
65
132
FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras, pp. 37,38 – FLORENTINO, Manolo; RIBEIRO,
Alexandre; SILVA. Aspectos comparativos do tráfico de africanos para o Brasil (séculos XVIII e
XIX). Afro-Ásia, 31, 2004, pp. 87-89; FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Cross-Cultural Exchange in
the Atlantic World: Angola and Brazil during the era of Slave Trade. Cambridge University Press,
2012.
133
FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras, pp. 37,38; FLORENTINO, Manolo; RIBEIRO,
Alexandre; SILVA, Daniel Domingues. Aspectos comparativos do tráfico de africanos para o Brasil
(séculos XVIII e XIX). Afro-Ásia, 31, 2004, pp. 87-89; FLORENTINO, Manolo. Tráfico Atlântico,
Mercado Colonial e Famílias Escravas No Rio De Janeiro, Basil, C. 1790-C.1830. História: Questões
& Debates, Curitiba, n. 51,
p. 69-119, jul./dez. 2009. Editora UFPR, pp. 75-6; FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Cross-Cultural
Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil during the era of Slave Trade. Cambridge
University Press, 2012.
66
* * *
134
KARASCH, op. cit., p. 35.
135
GOMES, Flavio. Demografia Atlântica, 2012, p. 97.
67
exterior como para o interior, por meio dos mares, rios e, deste modo, fazendo ligação
com os diversos portos do Recôncavo da Guanabara 136.
Outro aspecto que faz da freguesia da Sé uma importante área privilegiada
para estudos e compreensão de como a cidade do Rio de Janeiro se africanizou é pelo
fato de que quase todas as irmandades negras estavam nela localizadas, algumas sendo
proprietárias de seus próprios templos. O que reflete a capacidade de articulação e
reorganização política e religiosa dos diversos grupos de procedência africana
construída ao longo do tempo em solo da urbe carioca, reconhecendo-se enquanto
grupo, estabelecendo laços de solidariedade. Ao estudarmos as vivências da morte e do
morrer entre africanos e seus descendentes na freguesia da Sé, entendemos que a
concentração das confrarias de negros neste espaço da cidade, assim como a circulação
e convívio dos indivíduos entre os diversos grupos de africanos livres, libertos e
escravizados dialoga com os outros espaços que formam a urbe carioca, contribuindo
para compreendermos os efeitos da mobilidade espacial/social, a relativa autonomia e o
controle senhorial em uma sociedade escravista.
A história da freguesia da Sé está diretamente relacionada à história dos
primórdios da fundação da cidade e sua transferência para o alto do morro do Castelo,
quando em 1569 a freguesia de São Sebastião foi criada. Tendo originalmente sua igreja
matriz dedicada a São Sebastião, foi à única freguesia da cidade até 1634, quando foi
desmembrada para criação da freguesia de Nossa Senhora da Candelária devido ao
crescimento populacional e a expansão da cidade em direção as terras da planície
litorânea. Mais tarde, em 1751, foram criadas as freguesias de Santa Rita e São José.
Apesar das perdas territoriais, em decorrência dos desmembramentos, a freguesia da Sé
se manteve com a maior extensão territorial do perímetro urbano da urbe carioca 137
(como podemos ver através dos mapas 5, 6 e 7). Em 1676, a freguesia de São Sebastião
foi elevada à condição de Sé com a criação do bispado do Rio de Janeiro e instalação do
Cabido na igreja de São Sebastião, localizada no alto do morro do Castelo, tornando-se
Sé Catedral.
136
A partir da descoberta do ouro em Minas Gerais no final do século XVII, o Rio passa a ter a gigantesca
função de porta do sertão interior, e seu porto será frequentado incessante, progressiva e intensamente
pelas frotas de um comércio de proporções ponderáveis para o abastecimento da nova área econômica,
que se incorpora e sobre a qual também vai exercer jurisdição. FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em
nome do rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.:
Garamond, 1999, p.31.
137
CAVALCANTI, op. cit., p.p. 260-1.
68
FONTE: FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do rei: uma história fundiária da
cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Garamond, 1999, p. 19.
Obs.: A marcação das freguesias foi feita segundo o site imagineRio. Um atlas digital
pesquisável que ilustra a evolução social e urbana do Rio de Janeiro, tal como existia e
como era imaginado. Vistas, mapas históricos e plantas baixas de arquivos
iconográficos, cartográficos e arquitetônicos são localizados no tempo e no espaço,
enquanto seus dados visuais e espaciais são integrados em vários bancos de dados e
servidores, incluindo um repositório público de imagens, um sistema de informações
geográficas, um banco de dados relacional de código aberto e um sistema online de
disponibilização de conteúdo. Disponível em: https://imaginerio.org/#pr. Acesso em 12
de julho de 2019.
69
138
A partir da abertura da Av. Central (atual Rio Branco), essa rua foi dividida em dois pedaços que
ficaram distanciados um do outro. Ao pedaço menor, entre a Rua São José e Sete de Setembro, foi
dado o nome de Rodrigo Silva, permanecendo o trecho maior, entre a Rua do Ouvidor e o Largo de
Santa Rita, com a designação de Rua dos Ourives até que em 1936, teve seu nome alterado para
Miguel Couto por nela ter tido o consultório do conceituado médico.
139
HONORATO, op. cit., p. 32.
140
ALMEIDA, Elisa M. J. Mendes de e PINTO, Dulce Maria A. O desenvolvimento da área central. In:
Divisão de Geografia (organização) A Área Central da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
IBGE, Conselho Nacional de Geografia 1976, p. 49 e 50.
141
Memórias Públicas e Econômicas da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro para uso do vice-rei
Luiz de Vasconcellos por observação curiosa dos anos de 1779 até o de 1789. Rio de Janeiro: Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 47, v. 48, pp. 25-51. 1884.
70
FONTE: FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do rei: uma história fundiária da
cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Garamond, 1999, p. 32.
Obs.: A marcação das freguesias foi feita segundo o site imagineRio. Um atlas digital
pesquisável que ilustra a evolução social e urbana do Rio de Janeiro, tal como existia e
como era imaginado. Vistas, mapas históricos e plantas baixas de arquivos
iconográficos, cartográficos e arquitetônicos- são localizados no tempo e no espaço,
enquanto seus dados visuais e espaciais são integrados em vários bancos de dados e
servidores, incluindo um repositório público de imagens, um sistema de informações
71
São José
- 9.325 7.060 12.400 13.488 10.350 -
População
- 1.522 - 1.879 1.244 1.722 1.950
Fogos
Candelária
População - 10.037 8.283 13.382 9.867 9.720 -
142
Notícias do Bispado do Rio de Janeiro. Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, Série de
Visita Pastoral, VP38, 1687. Agradeço a Claudia Rodrigues por ter me cedido este documento.
72
Santa Rita
População - 5.117 4.927 6.587 5.355 5.224 -
Fogos - 963 - 1.280 1.167 1.061 1.057
Eng. Velho
População - - 1.647 - 1.775 2.388 -
Fogos - - - 250 - - 84
TOTAL
População 24.397 32.746 30.784 43.391 38.707 28.615 43.730 50144 60.163
Fogos 3.723 5.796 - 7.473 5.812 - 6.760 - 8.708
Cavalcanti observa que há limitações nesses levantamentos 143, pois não levam
em conta a população extramuros e que a cidade já havia ultrapassado largamente os
limites da muralha construída em 1713 após as invasões francesas. Alguns desses dados
não levam em conta o perfil populacional de cada freguesia. Apenas apresentam o total
da população da cidade de forma geral e todos esses levantamentos produzidos a partir
da segunda metade do século XVIII 144 indicam a quantidade da população e o número
de fogos. O matemático e astrônomo francês Nicolas-Louis de La Caille, comumente
chamado de La Caille, esteve no Rio de Janeiro em 1751 e em sua descrição da cidade
declarou que a mesma possuía 50 mil habitantes, incluindo nesse número os negros. Os
dados produzidos por este autor não fazem menção da abrangência da base territorial da
cidade, não sabemos se está se referindo à área central da cidade como um todo. Vieira
Fazenda, com base em Baltazar da Silva Lisboa, contesta esse número, dizendo que é
um exagero do autor, diz que nessa época havia na cidade 3.723 fogos e 24.397 pessoas.
Vieira Fazenda afirma que os menores de cinco anos de idade não foram incluídos nesse
número. O mesmo citando o Barão do Rio Branco, diz que dez anos mais tarde a cidade
143
CAVALCANTI, op. cit., p.p. 253-258.
144
SOUZA, Ingrid Ferreira de. Vivendo Além do Cativeiro. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro:
universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO, 2014. p. 30.
73
tinha 30.000 habitantes e somente muitos anos depois alcançaria a cifra de 50.000
almas 145.
Em Memórias públicas e econômicas da cidade do Rio de Janeiro, para uso do
vice- rei, Luís de Vasconcelos afirma que entre os anos de 1779 e 1789 o número da
população intramuros era de 38.707 habitantes, distribuídos em 5.827 fogos, sendo
divididos pelas freguesias da seguinte forma: Sé, 2.072 fogos; Candelária, 1.329 fogos,
São José, 1.244 fogos; Santa Rita, 1.167 fogos. Para a freguesia do Engenho velho, o
número de almas era de 1.775, não aparecendo o número de fogos 146. O Mapa geral
abreviado do Bispado do Rio de Janeiro restringiu-se às freguesias urbanas: Sé,
Candelária, São José e Santa Rita e excluem as crianças com menos de cinco anos.
Neste mapa a população da Freguesia da Sé somava 8.867 almas e a da cidade um total
de 30.784 habitantes 147. Nos Anais da cidade do Rio de Janeiro, escrito por Baltazar da
Silva Lisboa, os dados referentes à população da freguesia da Sé somavam 8.267
habitantes, distribuídos em 1.789 fogos para o ano de 1760 e 11.022 habitantes
distribuídos em 2.385 fogos para o ano de 1780 148.
Em suas Memórias históricas do Rio de Janeiro para o período de 1800-8,
Monsenhor Pizarro declarou que na cidade havia 46.944 indivíduos “de ambos os sexos,
entre brancos, pardos, e pretos, que libertos, que cativos”. No entanto, o próprio
Pizzarro cita que os mapas paroquiais contavam um total de 43.730, mais 2.500 homens
de tropa regular, que somados chegam a um total de 49.444 habitantes, embora Pizzarro
afirme que seja 49.344, excluídos “os vagabundos, os subtraídos, ou negados” aos róis
paroquiais, e as famílias encerradas nos claustros de São Bento, do Carmo, de Santo
Antonio, de N. Senhora da Ajuda, e de N. Senhora do Desterro, nos seminários de São
José, de São Joaquim, e Lapa, e nos Recolhimentos da Misericórdia, e do Parto, cujos
indivíduos montavam, quando menos a 800, alcançando a totalidade de 50.144
habitantes 149.
Embora exista uma aproximação de cálculo nesses dados, indicando a
possibilidade de estarem tratando períodos similares, havia divergências na forma como
145
FAZENDA, Vieira. Antiqualhas e memorias do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Tomo 86 – vol. 140, p. 166
146
Memórias públicas e econômicas da cidade do Rio de Janeiro, para uso do vice-rei, Luís de
Vasconcelos, por observação curiosa dos anos de 1779 até 1789. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, tomo XLVII, 1ª parte, 1884, p.
147
131 Mapa geral abreviado de todo o Bispado do Rio de Janeiro. IHGB, doc. 1,3,13
148
LISBOA, Baltazar da Silva. Anais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: na Typ. Imp. E Const. De
Seignot- Plancher tomo 1. 1834, p.439
149
ARAUJO, Joze de Souza Azevedo Pizzarro. Memórias Históricas do Rio de Janeiro, p. 146.
74
150
BOTELHO, Tarciso Rodrigues. Censos nacionais brasileiros: da estatística à demografia, séculos XIX -
XX. Trabalho apresentado no Congress of the Latin American Studies Association, Rio de Janeiro,
Brasil, 11-14, junho de 2009, p. 2; Estatísticas Históricas do Brasil: Séries Econômicas Demográficas e
Sociais de 1550 a 1988. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2ª ed. revista e
atualizada, vol. 3 Séries Estatísticas Retrospectivas, Rio de Janeiro: IBGE, 1990, p. 23.
151
CAVALCANTI, op. cit., p. 261
152
ALMAIDA, Elisa Maria José Mendes de e PINTO, Dulce Maria Alcides. O Desenvolvimento da Área
Central. In A Área Central da Cidade do Rio de Janeiro. Organizado pela Divisão de Geografia,
Conselho Nacional de Geografia. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. IBGE. Rio de Janeiro,
1967, p. 50.
153
GUEDES, Roberto. Porque sempre é bom que os forros tenham quem olhe para ele. Benignidade
senhorial e libertos submissos na cidade do Rio de Janeiro (primeira metade do século XVIII. In:
75
Fonte: Atlas da Evolução Urbana da Cidade do Rio de janeiro. Ensaio, 1565-1965. Rio
de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 1965, prancha 12.
A abertura de várias ruas na cidade foi promovida na maioria das vezes por
particulares e pelas ordens religiosas, através de acordos com os representantes do poder
régio no sentido de urbanizar suas propriedades. Na gestão do vice-rei Conde da Cunha
77
158
CAVALCANTI, op. cit., p. 261; SOUZA, op. cit., p. 33.
78
Fonte: Plano da cidade do Rio de Janeiro elevado em 1791 oferecido ao Ilmo. Senhor
Concelheiro Luis Beltrão de Gouveia de Almeida chanceller da rellação desta cidade.
Por Betancurt, Francisco Antonio da Silva. Bndigital. Disponível em:
http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital. Acesso em 28/10/2019
159
FRAGOSO, João. A noção de economia colonial tardia no Rio de Janeiro e as conexões econômicas do
Império Português: 1790-1820. In FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista;
GOUVEIA, Marias de Fátima Silva. Organizadores. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica
imperial portuguesa séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 337.
79
colônia, principalmente Minas Gerais para trabalhar na mineração 160. Mas na segunda
metade deste século a praça mercantil do Rio de Janeiro formada pela capital e sua
periferia imediata tornou-se um grande polo de concentração de africanos, livres,
libertos e escravizados.
Diante deste quadro, podemos afirmar que no decorrer do setecentos a
população que mais cresceu na cidade foi a de homens de cor 161, mediante as entradas
cada vez maiores de africanos na cidade, comparadas aos baixos índices de imigração
da população europeia. Tal quadro pode ser confirmado através dos registros de óbitos
da freguesia da Sé de acordo com os dados levantados na tabela 9. Seus dados
demonstram uma progressiva diminuição em termos proporcionais, da população livre,
que correspondia a 96,3% na primeira década do século XVIII (1701-1710), para
56,5%, a partir da década de 1751-1760. Podemos verificar um ligeiro aumento para
73,1% na última década deste século (1791-1800), passando para 74,5%, em 1811-1820
e reduzindo para 53,9% na década de 1841-1850, mediante ao continuo crescimento da
população escravizada e liberta 162.
Os novos territórios incorporados à freguesia da Sé passaram a ter uma
significativa concentração, circulação e convivência dos africanos e seus descendentes.
Todas as igrejas de irmandades negras da cidade estavam situadas dentro de seus
limites. Levando-se em conta que essas igrejas abrigavam também as outras irmandades
de homens pretos que não possuíam seus próprios templos e erguiam os altares para
seus santos de devoção nas igrejas então existentes, podemos identificar um número
considerável de irmandades de negros na freguesia da Sé, nas quais se encontravam
irmanados também os africanos e seus descendentes. Importante ressaltar que, além de
contribuir para o aumento populacional e consequentemente o crescimento urbano, a
disseminação de irmandades de negros, libertos ou escravos no centro da urbe carioca
indica o significativo grau de organização desse segmento populacional na freguesia da
Sé, no início de século XVIII.
Assim como sua capacidade de articulação entre si e com os poderes régio,
eclesiásticos e com outros segmentos sociais, na busca de aprovação de seus
160
144 COARACY, Vivaldo. O Rio de Janeiro no século 17. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora. Coleção Rio 4 séculos, vol. 6, p. 246.
161
FLORENTINO, Manolo. Sobre minas, crioulos e a liberdade costumeira no Rio de Janeiro, 1789-1871.
In: (Org.). Trafico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005, p. 337.
162
Essas informações já haviam sido levantadas por Ingrid de Souza, eu só atualizei os dados e ampliei até
o fim da primeira metade do século XIX. SOUZA, Ingrid Ferreira de. Vivendo Além do Cativeiro... p.
34.
80
163
CAVALCANTI, op. cit., p. 206
164
FRIDMAN, op. cit., p. 25.
81
165
LARA, Silvia Hunold. Fragmentos Setecentistas: Escravidão, culturas e poder na América portuguesa.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 51.
166
Idem, p.p. 51-52; VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem irmandades de pardos na América
Portuguesa. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007, p. 147.
167
LARA, op. cit., p. 51.
168
VIANA, op. cit. p.148.
82
CAPÍTULO – 2
Uma cidade africanizada c.1700 – c.1850
1
O objetivo inicial era ir até 1850, mas não foi possível finalizar a coleta dos registros a tempo. Por este
motivo, as análises terão como recorte final o ano de 1843. Em algumas tabelas e quadros, mesmo que eu
venha a abordar os dados fragmentados por década ou pelo recorte temporal dos livros, no caso da década
de 1840 e do último livro, que abrange o período de 1843 a 1861, as informações se referirão até ou
apenas o ano de 1843.
2
Os livros consultados se encontram no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro (ACMRJ):
“ASSENTOS PAROQUIAIS” - Livros de óbitos e testamentos da Freguesia da Sé (AP0400: 1701– 1710;
AP0406: 1737 – 1740; AP0155: 1746 – 1758; AP0156: 1776 – 1784) e Livros de óbitos e testamentos da
Freguesia do Santíssimo Sacramento da Antiga Sé: (AP0157: 1799 – 1797; AP0158: 1797 – 1811;
AP0159: 1812 – 1819).
3
Os registros de óbitos que compuseram a base para elaboração deste segunda etapa de construção do
Banco de Dados se referem aos Livros de óbitos e testamentos da Freguesia do Santíssimo Sacramento da
Antiga Sé que se encontram fisicamente no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, como
continuação da série mencionada na nota acima (AP0160: 1819 – 1824; AP0161: 1824 – 1828; AP0161:
1824 – 1828; AP0162: 1828 – 1830; AP0163: 1830 – 1833; AP0164: 1833 – 1837; AP0165: 1837 –
1840; AP0166: 1840 – 1843; AP0167: 1843 – 1861). Além deste acervo físico, a maioria destes livros se
encontra replicada em microfilmes digitalizados no site no banco de dados de imagens do site
FamilySearch, intitulado “Registros da Igreja Católica, 1616-1980”, disponível em:
https://familysearch.org. A transcrição foi feita por mim e por um grupo de voluntários que reuni: Evelyin
83
Vasconcelos, aluna do curso de Pós-graduação em história da África do IPN; Bruno Santana da Silva,
aluno do curso de História da UNISUAM; Maria Ivanise Honorato e Bruna Honorato, minha esposa e
filha. A todos e à professora Claudia Rodrigues, declaro os meus sinceros agradecimentos, pois foram
fundamentais para realização desse trabalho.
4
TOSTES, Ana Paula C. Para “viver livre como se de nascimento fosse”: um estudo sobre a geração da
população forra no Rio de Janeiro do século XVIII. Tese de doutorado em História Social. Rio de Janeiro:
UFRJ/IH-2018, p. 43.
5
SOUZA, op. cit., p. 41.
6
GUEDES, Roberto. Livros paroquiais de batismo, escravidão e qualidades de cor (Santíssimo
Sacramento da Sé, Rio de Janeiro, séculos, XVII e XVIII). In: FRAGOSO, João; GUEDES, Roberto e
SAMPAIO. Antonio Carlos Jucá de. Organizadores. Arquivos paroquiais e história social na América
Lusa, séculos XVII e XVIII: métodos e técnicas na reinvenção de um corpus documental. 1ª. ed. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2014, p,131-32 e 149.; cf. também SOARES, Mariza. Os devotos da cor...
7
O autor entende como qualidade de cor, cor e/ou cor-condição social qualquer alusão à qualidade (preto,
pardo, branco, crioulo, etc.), condição jurídica (forro/liberto, escravo livre) procedência africana (gentio
da Guiné, de nação Angola, Moçambique, etc.) ou indígena (pardo, mulato, mameluco, da terra, etc.), cor-
84
condição social (pardo, preto, cabra, crioulo), combinadas ou não entre si. São as palavras do autor. Cf.
GUEDES, op. cit., p. 127-28.
8
Para o autor, a forma de organização dos livros paroquias foi fundamental para compreensão da
formação do vocabulário social de cor. Na medida em que a escravidão africana e o tráfico atlântico
cresciam, os livros paroquiais deixavam de ser mistos e passavam a ser divididos conforme o estatuto
jurídico-social dos registrados. Guedes afirma que os livros de batismos da freguesia da Sé, a partir da
segunda metade do século XVII, passaram a segregar os registros de livres e de escravos. A categoria
“forros”, por sua vez passou a ser incorporada aos livros de “brancos” e/ou “livres”. GUEDES, Roberto.
Livros paroquiais de batismo, escravidão e qualidades de cor... pp. 136 a 138; GUEDES, Roberto. O
vigário Pereira, as pardas forras, os portugueses e famílias mestiças. Escravidão e vocabulário social de
cor na Freguesia de São Gonçalo (Rio de Janeiro, período colonial tardio). FRAGOSO, João; GOUVEA,
Maria de Fátima. Organizadores. In Brasil Colonial, vol. 3 (ca. 1720 ca. 1821) /– 1ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2014, pp. 346-348; GUEDES, Roberto. Escravidão e legados pombalinos nos
registros de cores (Itu/Porto Feliz, São Paulo, 1766- 1824). In: FALCON, Francisco; RODRIGUES,
Claudia. Organizadores. A Época Pombalina no mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2015, pp. 217-218.
9
Id. Livros paroquiais de batismo, escravidão e qualidades de cor... p. 145.
10
GUEDES, op. cit., p. 149; SOUZA, op. cit., p. 41.
11
SOUZA, op. cit., p. 42
85
12
SOUZA, op. cit., p. 42.
13
Na década de 1720, a câmara do Rio pediu ao rei que estabelecesse naquela cidade uma nova Relação,
devido às dificuldades de remessa dos processos e de apelação ao Tribunal da Bahia em razão da
distância, da morosidade dos despachos e do alto custo que daí se seguia. Durante as décadas de 30 e 40
este apelo foi várias vezes reforçado pelas câmaras de diversas vilas e cidades ao sul, sobretudo das
Minas. Uma vez estabelecida à relação do Rio de Janeiro deveria julgar as causas relativas a estas
capitanias, do Espirito Santo, até Santa Catarina, incluindo Minas, São Paulo e Goiás. Cf. BICALHO,
Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003, p. 10
14
BICALHO, op. cit., p. 83-84.
15
CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos novos no Rio setecentista. In FLORENTINO, Manolo.
Org. Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, século XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005, p. 22; PESAVENTO, op. cit., p. 33.
86
16
LARA, op. cit., p.126.
17
Cf. “Resumo total da população que existia no ano de 1779, compreendidas as quatro freguesias desta
cidade do Rio de Janeiro”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 21 (2ª ed., 1858): 216-
7; “Memorias públicas e econômicas da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro para uso do vice-rei
Luiz de Vasconcellos por observação curiosa até o ano de 1789”, Revista do Instituto Histórico
Geográfico Brasileiro, 47 (1884):27- 9; “Resumo dos fogos e população da cidade do Rio de Janeiro,
feito por ordem do Ilmo. exmo. Senhor, conde, de Rezende [...], 1º de dezembro de 1797”, Instituto de
Estudos Brasileiros, Coleção Lamego, 44.2.A.8 Apud LARA, Op. cit., p.18
18
BRAVO, Milra Nascimento. Hierarquias na Morte: uma análise dos ritos fúnebres católicos no Rio de
Janeiro (1720-1808). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro – UNIRIO, p. 29.
87
para 96,3%, os forros para 3,7% e os escravizados sem nenhum registro. Na década de
1751-1760 os livres passam para 56,5%, os forros para 20,4% e os escravizados 23,1%.
No início do século XIX, na década de 1801-1810 os livres representavam 68,7%, os
forros 20,7% e os cativos 10,5% e ao final da primeira metade do século XIX, década
de 1841- 1850, o número de livres se mantem superior ao número de forros e cativos
com o percentual de 53,9%, os forros 20,2% e os Cativos 25,9%.
Mesmo sendo em número menor que os livres, os cativos tiveram o aumento
crescente ao longo do século XVIII, embora apresente uma queda de 50% na primeira
década do século XIX em relação à última década do século XVIII, voltando a crescer a
partir da década de 1820. Mesmo assim, esses percentuais não refletem os números do
tráfico que teve um aumento significativo, principalmente na primeira metade do século
XIX, que alcançou cifras altíssimas em função do iminente fim do tráfico. Por outro
lado, é possível afirmar que a população de cor foi a que mais cresceu na cidade,
considerando o total de 25.372 registros de óbitos. Com base no quesito cor, somando
os forros aos livres com ascendência escrava e também os sem referência aos sem
referência com ascendência escrava, encontrei 1.450 pardos, 1.978 pretos, 41 cabras, 1
mulatinho, 1 negra, 7 brancos e 21.894 sem referência a cor. Embora tenha tido no
período estudado uma quantidade significativa de escravizados sem referência a cor
(3.191), tudo indica que não era relevante registar a condição de livre, assim como a sua
cor, uma vez que em toda a amostragem apenas 7 indivíduos foram identificados como
branco. Com isso, não queremos dizer que todos os 21.894 sem referência a cor eram
brancos e livres, uma vez que entre os escravizados muitos indivíduos não tiveram a sua
cor registrada, assim como entre os indivíduos considerados livres, havia muitos pretos,
pardos e cabras 19.
Homens nascidos livres eram considerados “brancos” sem necessidade de
qualquer qualificação, ou “pardos”, normalmente duplamente qualificados como “pardo
livre” em oposição a “pardo forro”. Mas também poderia designar tanto escravos como
19
Analisando esses mesmos segmentos entre 1720 a 1808, Milra Bravo constatou que, de um total de
5.352 óbitos na freguesia da Sé, os escravizados representavam 15,8% e os forros 11,8%, os livres 0,8% e
os sem referência 71,7%. O que a princípio podia significar que a cidade tinha mais escravizados do que
livres. Ao considerar os indivíduos sem referência jurídica como “livres”, a autora constatou que esse
segmento social passou para 72.5%. Além disso, percebeu também que 98% dos registros que indicavam
a ocupação de “Dona”, “comendador”, patentes militares, sacerdotes, etc., estavam ligados aos indivíduos
sem referência à condição social; o que reforçou a sua hipótese de que esses indivíduos faziam parte do
segmento social livre. Entre os 3.880 considerados como livres, a autora encontrou 1 branco 1 mulato, 4
cabras, 35 pretos 104 pardos e 3.375 sem referência a cor. Cf. BRAVO, Milra Nascimento. Hierarquias
da morte: uma análise dos Ritos fúnebres católicos no Rio de Janeiro (1720-1808). Dissertação de
Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. UNIRIO, 2014, pp.29 e 30
88
livres. Era uma categoria típica do final do período colonial utilizada para designar a cor
mais clara de alguns escravizados, sem relação com a mestiçagem como o termo
“mulato”. Já a cor “negra” aparecia essencialmente como sinônimo de escravizado ou
de liberto. “Pretos” eram geralmente classificados como escravos e forros e
normalmente era sinônimo de escravizado africano 20. Assim, tudo indica que as
designações de cor/condição na sociedade colonial escravista, tinha muito mais relação
com proximidade de um passado ou antepassado escravizado do que com a pigmentação
da pele 21. De acordo com Hebe Mattos, a noção de “cor” não significava
preferencialmente, matizes diferenciados de tons de pele ou diferentes níveis de
mestiçagem, buscava definir os lugares sociais dos indivíduos na sociedade escravista
colonial. Nesse sentido, a etnia e a condição estavam intrinsicamente ligadas. Com base
nesta perspectiva, a cor inexistente, antes de representar simplesmente branqueamento,
era um símbolo de cidadania, para a qual apenas a liberdade era necessária. A ausência
da cor representava uma crescente absorção dos negros e mestiços ao mundo dos livres,
que não era mais monopólio dos brancos, mesmo que o qualificativo “negro”
continuasse a ser sinônimo de escravo, mas também a desconstrução social de um ideal
de liberdade baseada na cor branca, associada à propriedade escrava 22. O que demonstra
que a mobilidade social baseada na cor era importante para a reprodução da estrutura
social da sociedade escravista 23.
20
MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, pp.
16 a 18; FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Sinhás Prestas, Damas Mercadoras: as pretas minas nas
cidades do Rio de Janeiro e de São João Del Rey (1700-1850. Tese apresentada ao Departamento de
História da Universidade Federal Fluminense. Concurso para Professor Titular em História do Brasil.
Niterói, 2004, pp. 67-69
21
FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Sinhás Prestas, Damas Mercadoras... p. 77.
22
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista –
Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1998, pp. 98-9; EISENBERG. Peter L.
Ficando Livre: as alforrias em Campinas no século XIX Estudos Econômicos, São Paulo, 17 (2): 175-
216, maio/agosto. 1987,
p. 187; FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Sinhás Pretas, Damas e Mercadoras... p. 76
23
GUEDES, Roberto. Mudança e silêncio sobre a cor: São Paulo e São Domingos (séculos XVIII e XIX).
Africana Studia, nº 14, 2010, Edição do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto. AS nº 14
– livro_ 1u Julho. indb p. 93.
89
90
Tabela 10: Óbitos segundo a condição jurídica conforme intervalo dos livros de óbito
24
175 KARASCH, op. cit., p. 106; FLORENTINO, Manolo. Tráfico atlântico, mercado colonial e
famílias escravas no Rio de Janeiro... p. 72-4.
25
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Cod.808, vol. IV, Estatística, 1790-1865, fólio 17. Apud.
KARASCH, op. cit., p.110.
93
26
Eusébio de Queiróz explicou por carta ao ministro da Justiça que a polícia não conseguiu realizar
corretamente o censo de 1834 e que o censo de 1838 foi impreciso. Tendo em vista que a polícia não
tratou a execução da tarefa como uma obrigação séria, o censo de 1834 ficou incompleto e por isso não
foi publicado. O censo de 1838 foi também deficiente, pois “nossa população é na realidade maior”.
Eusébio de Queiróz atribuiu o baixo número ao imposto sobre os escravizados, que levava os senhores a
esconder o verdadeiro número dos cativos, e ao recrutamento que, levava os homens livres a se esconder
da polícia. Os estrangeiros também escapavam com frequência dos recenseadores. Cf. Eusébio de
Queiróz Coutinho Matoso da Câmara ao ministro da Justiça, 3 de outubro de 1834, ANRJ, IJ6 169,
policia; e 25 de abril de 1838, ANRJ, IJ6 186, Polícia. Apud. KARASCH, op. cit., p.521-2; Cf. também
LOBO, Roberto Jorge Haddock. Recenseamento da população do Rio de Janeiro, Considerações gerais
sobre as vantagens e utilidade da estatística. Ano de 1849. Correio Mercantil, 7 de Janeiro de 1851.
Biblioteca Nacional Digital. p.
3. Disponível em http://memoria.bn.br/pdf/217280/per217280_1851_00006.pdf acesso em 20 de
maio de 2020
27
LOBO, op. cit., p.4.
28
Neste senso não foi feita a classificação por cor. De acordo com Haddock Lobo “poder-se-há saber
muito aproximadamente qual é a cifra da gente de cor, se se diminuir da totalidade todos os indivíduos
escravos, libertos, mais um terço dos livres”. LOBO, op. cit., p.4.
29
KARASCH, op. cit., p.107.
94
30
CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012, p. 110.
31
CHALHOUB, op. cit., p. 110.
32
TOSTES, Ana Paula C. Para “viver como se livre fosse”: pp. 70 e 71; cf. também SOUZA, op. cit., p.
43.
33
TOSTES, op. cit., p. 70 e 71
95
1701-1710 28.000 - -
1711-1720 42.000 50,0 66,7
1721-1730 59.500 41,7 85,0
1731-1740 72.033 21,1 55,0
1741-1750 76.051 5,6 37,8
1751-1760 68.797 -9,5 24,8
1761-1770 85.311 24,0 24,6
1771-1780 77.480 -9,2 17,94
1781-1790 85.932 10,9 16,87
1791-1799 90.177 4,9 15,2
Total 685.281
Fonte: CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos novos no Rio Setecentista, pp.
63-65.
34
CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos novos no Rio setecentista. 53; TOSTES, Ana Paula C.
Para “viver como se livre fosse” ...p. 71-2
96
Com base na tabela 11, produzida a partir das projeções de Nireu Cavalcanti
para o período de 1700 a 1799 35, e considerando também os dados de Ana Paula tostes,
é possível perceber uma queda no volume de entradas de africanos escravizados na
década de 1750, que apresenta um crescimento negativo em termos percentuais de -
9,5%, em relação à década anterior. Exatamente no mesmo momento em que há uma
queda nos registros de batismo da freguesia da Sé. Para Ana Paula Tostes, além das
lacunas presentes em relação aos registros, a menor participação no tráfico pode
também ter influenciado no volume de assentos de batismos.
No entanto, é preciso relativizar esses números, pois de acordo com a tabela
2, que apresenta dados do Atlas do Comércio Transatlântico de Escravos, houve um
aumento na entrada de africanos escravizados no porto carioca nesse período. Portanto,
não percebemos essa influência em relação aos registros de óbitos. Acredito que isso
deveria ocorrer porque os registros dos óbitos desses africanos recém-chegados devem
estar majoritariamente nos livros referentes a outro local de sepultamento que não a
igreja matriz da freguesia, como foi o cemitério voltado para os chamados Pretos
Novos. Até 1722, os assim chamados africanos recém-chegados do tráfico eram
sepultados no cemitério que existia atrás do Hospital da Santa Casa da Misericórdia.
Desse ano até 1774 36, eles passaram a ser destinados ao cemitério criado para esses
Pretos Novos no Largo de Santa Rita. De 1774 até 1831, esse cemitério foi deslocado
para a região do Valongo, junto com a transferência do mercado de escravos 37.
Acreditamos que isso pode explicar o fato de haver menos africanos registrados no livro
paroquial de óbitos das freguesias centrais da cidade.
Diferentemente dos Pretos Novos, os cativos que já estavam na cidade há
mais tempo, apresentaram mais condições de se inserirem na comunidade local a ponto
35
Cf. TOSTES,op. cit., p. 72.
36
HONORATO, op. cit., pp. 73-4.
37
Sobre esses cemitérios voltados para os negros ainda não inseridos na sociedade, ver RODRIGUES,
Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura; Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 1997, p. 68-
70; PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2007; RODRIGUES, Claudia; BRAVO, Milra Nascimento.
Morte, Cemitérios e Hierarquias no Brasil Escravista (séculos XVIII e XIX). Revista Habitus - Revista do
Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia, Goiânia, v. 10, n. 1, p. 3-20, mar. 2013. ISSN 1983-
7798. Disponível em:
<http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/habitus/article/view/2478>. Acesso em: 05 ago. 2020. doi:
http://dx.doi.org/10.18224/hab.v10.1.2012.3-20; BRAVO. Milra Nascimento. HIERARQUIAS NA
MORTE: Uma análise dos ritos fúnebres católicos no Rio de Janeiro (1720-1808). Dissertação de
mestrado – PPGH/UNIRIO, 2014; HONORATO, Claudio de Paula. Valongo: o mercado de almas da
praça carioca. Curitiba: Appris, 2019, pp. 90-8.
97
de conseguirem sepultamento em uma das igrejas matrizes da área central ou nas igrejas
voltadas para irmandades de homens de cor. Acreditamos que são esses os casos dos
africanos e seus descendentes listados nos registros aqui analisados. Acreditamos que,
por isso, o volume do tráfico não parecia ter uma influência imediata no quantitativo de
registros de óbitos dos cativos. O que só ocorreria com o passar do tempo. O volume de
cativos que entrou na cidade na década de 1750 via tráfico negreiro de acordo com a
tabela 11, foi de 68.797, sendo inferior somente às duas décadas anteriores (em 1731-
1740, com 72.033, e em 1741-1750, com 76.051), e bem superior às décadas de 1701-
1710, com 28.000; 1711-1720, com 42.000 e 1721-1730, com 59.500. Tal queda voltou
a ocorrer na década de 1771-1780, na qual houve um crescimento negativo de -9,2%
somente em relação à década anterior, mas em termos de volume é compatível com as
décadas de 1731-1740 (com a entrada de 72.033) e 1741-1750 (com 76.051 cativos). Os
índices voltaram a crescer na década de 1781-1790, alcançando o volume de 85.932 e
mantendo o crescimento na última década do século, e na década de 1791- 1799,
quando subiu para 90.177, com uma média anual de entradas de 9.018. Os dados de
Nireu Cavalcanti são compatíveis com os números apresentados por Manolo Florentino
entre 1790 e 1810 38.
Destrinchando os registros de batismo, Ana Paula Tostes percebe um alto
índice de batismo de escravizados adultos na freguesia da Sé, acompanhado da redução
de registros dos inocentes. Esse perfil estava diretamente ligado à alta demanda de mão
de obra africana para abastecimento das regiões mineradoras, na virada no século XVII
para o XVIII, que ao longo do século vai perdendo força, caindo de 49,3% na década de
1720 para 4,8% dos assentos registrados na década de 1790. Autora conclui que nessa
alta na média de registros de batismo de cativos adultos no início do século XVIII há
um peso considerável daqueles que entraram na cidade via tráfico negreiro. 39
Marisa Soares, ao analisar a entrada de africanos na cidade do Rio de
Janeiro ao longo do século XVIII, observou que o maior número de batismos de cativos
adultos na freguesia da Sé vinha da Costa da Mina, sendo os ritos concentrados entre
1722 e 1724. 40 Diferentemente dos escravizados da África Centro Ocidental que, em
geral, recebiam o sacramento do batismo nos portos de embarque, especialmente em
Angola, os escravizados que vinham da Costa Mina o recebiam no porto de chegada.
38
FLORENTINO, Manolo. Tráfico atlântico, mercado colonial e famílias escravas no Rio de Janeiro, c.
1790-c. 1830. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 51, p. 69-119, jul./dez. 2009. pp. 75
39
191 TOSTES, op. cit., pp. 73 e 74.
40
192 SOARES, op. cit., pp. 78 e 79.
98
Isso ajuda a explicar o maior volume de registro de escravizados Minas adultos nos
livros de batismos da freguesia da Sé, ao mesmo tempo em que dá uma estimativa da
importância deste grupo de cativos no conjunto da escravaria da cidade 41.
41
SOARES, Mariza de Carvalho. Mina, Angola e Guiné: Nomes d’África no Rio de Janeiro Setecentista.
Tempo, vol. 3, nº 6, dezembro de 1998, p 4.
99
Com base nos dados das tabelas 12 e 12.1 é possível perceber que a partir da
segunda metade do século XVIII, a presença africana na cidade dá um salto em relação
ao início do século, aumentando de 0,1% na década 1701-1710, em ambas as tabelas
para 5,0% na década de 1751-1760 (ver tabela 12) e 5,8% no intervalo de 1746-1758,
(ver tabela 12.1), apresentando um crescimento de cinco vezes. Tem uma ligeira queda
entre as décadas de 1770 e 1780, voltando a crescer a partir da década de 1790. Ao
atingir a década de 1820, volta a dar um salto espetacular atingindo um crescimento de
cerca de 374,4% em relação a década de 1800, caindo para 126,2% na década de 1840.
Levando-se em conta que nessa década estamos trabalhando com registros até 1843, ou
seja, com apenas três anos, houve um crescimento considerável. Com base nos dados da
tabela 12.1 observamos que a entrada de africanos escravizados se mantém crescente,
embora com percentuais menores, como por exemplo no intervalo de 1819-1824,
quando apresentou um crescimento de 2,1% em relação ao intervalo 1797-1812. Já o
intervalo de 1843-1861 apresentou um crescimento de 17,8% em relação ao intervalo de
1797-1812. Os dados separados por décadas apresentam de forma mais clara e objetiva
a quantidade de africanos escravizados na cidade, corroborando com os dados do tráfico
atlântico para a mesma. Constatamos também que o aumento e/ou diminuição na
quantidade de crioulos na freguesia da Sé parece estar condicionada às flutuações das
entradas de africanos escravizados no interior da urbe carioca 42.
Em alguns casos a documentação apresenta algumas dificuldades para se
identificar a origem dos indivíduos, pois o padre coadjutor nem sempre colocava o local
de nascimento/procedência. Os motivos podiam ser vários, falta de atenção, descaso ou
dificuldade dos padres em conhecer melhor os detalhes da vida de cada de seus
fregueses, que eram cada vez mais números e de origens diversas, como afirma Ingrid
Souza 43. Além disso, Roberto Guedes observa que o silêncio de cor poderia ser fruto de
42
SOUZA, op. cit., p. 44.
43
Idem, 44-5.
100
44
O passado africano só era mencionado para fins de herança – com as mudanças na legislação, por conta
das reformas pombalinas, em alguns casos, segundo o autor talvez por influência do tabelião vão fazer a
auto declaração da condição jurídica – mas a herança é o principal marcador da declaração da condição
jurídica e qualidades de cor. Em muitos momentos do silenciamento da qualidade de cor nos testamentos,
tal qualidade era quase sempre atribuída pelo padre no momento da elaboração do registro de óbito.
ROBERTO, Guedes Apagando as memórias do passado escravo (Rio de Janeiro, século XVIII). In:
ISNARA Pereira Ivo, GUEDES Roberto / organização. Memórias da escravidão em mundos ibero-
americanos: séculos XVI- XXI 1. ed. - São Paulo: Alameda, 2019, p. 74.
45
SOARES, op. cit., pp. 97-98.
101
39,8%. Embora no total geral aja um equilíbrio entre a população feminina e masculina,
ao longo do século XVIII e até a segunda década do século XIX, o número de óbitos da
população feminina africana foi maior que o da masculina. O que sugere que na
freguesia da Sé a origem da população africana contraria a lógica do tráfico atlântico da
superioridade numérica dos homens sobre as mulheres.
Tabela 13. Presença de africanos e crioulos na freguesia da Sé, por sexo, POR
DÉCADA
AFRICANOS CRIOULOS TOTAL
DÉCADAS F M F M F M F M F M F M
# # % % # # % % # # % %
1701-1710 0 2 0,0% 0,2% 0 0 0,0% 0,0% 0 2 0,0% 0,1%
1731-1740 13 10 1,2% 0,9% 1 1 0,1% 0,1% 14 11 0,6% 0,6%
1741-1750 10 7 0,9% 0,6% 1 0 0,1% 0,0% 11 7 0,5% 0,4%
1751-1760 61 46 5,7% 4,1% 19 8 1,7% 1,1% 80 54 3,7% 3,0%
1771-1780 10 5 0,9% 4,9% 6 1 0,5% 0,1% 16 6 0,7% 0,3%
1781-1790 6 6 0,6% 0,5% 4 6 0,4% 0,8% 10 12 0,5% 0,7%
1791-1800 31 27 2,9% 2,4% 36 19 3,2% 2,6% 67 46 3,1% 2,6%
1801-1810 97 71 9,1% 6,4% 43 25 3,8% 3,4% 140 96 6,4% 5,3%
1811-1820 78 53 7,3% 4,8% 70 24 6,3% 3,2% 148 77 6,8% 4,3%
1821-1830 380 416 35,7% 37,3% 286 182 25,6% 24,6% 666 598 30,5% 33,2%
1831-1840 198 221 18,6% 19,8% 391 297 34,9% 40,2% 589 518 27,0% 28,7%
1841-1850 180 200 16,9% 18,0% 262 176 23,4% 23,8% 442 376 20,2% 20,9%
TOTAL 1064 1064 100% 100% 1119 739 100,0% 100,0% 2183 1803 100,0% 100,0%
TOTAL
2128 1858 3986
GERAL
FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de
Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).
Tabela 13.1. Presença de africanos e crioulos na freguesia da Sé, por sexo, POR
LIVRO
1833-1837 56 79 5,3% 7,4% 111 80 9,9% 10,8% 167 159 7,7% 8,8%
1837-1840 51 67 4,8% 6,3% 79 70 7,1% 9,5% 130 137 6,0% 7,6%
1840-1843 87 97 8,2% 9,1% 180 140 16,1% 18,9% 267 237 12,2% 13,1%
1843-1861 106 119 10,0% 11,2% 117 64 10,5% 8,7% 223 183 10,2% 10,1%
TOTAL 1064 1065 100% 100% 1119 739 100% 100% 2183 1804 100% 100%
FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
105
FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
106
46
Ingrid Ferreira também identificou essa diversidade de grupos e/ou regiões de procedência, sendo que
sua amostragem vai até 1797e após 1730 ela só identificou apenas cinco regiões de procedência, embora
ela faça indicação que à medida que o tráfico se intensifica novos portos de embarques iam surgindo.
SOUZA, op. cit., p. 45. De acordo com Mariza Soares, a palavra gentio está associada às gentes,
indicando povos que, à diferença dos cristãos e judeus, seguem a chamada lei natural. Já a palavra nação
diz respeito à “gente de um país ou região, que tem língua, leis e governo a parte”. O termo é aplicado
ainda à raça, casta e espécie. Nesse sentido, diz respeito a povos que podem ser gentios, ou não, mas cujo
reconhecimento se dá pelo uso partilhado de um território, uma tradição ou uma língua comum. O termo
gentio é usado para designar os povos almejados pela catequese missionária. Já o termo nação se aplica a
qualquer povo, infiel ou cristão, com o qual o Estado português se relaciona. Por fim, uma observação
sobre o período de utilização dos dois termos. Enquanto “nação” tem uma utilização constante ao longo
do tempo desde o século XV até o XIX, “gentio” é aplicado a universos de amplitude variável, caindo em
desuso ainda no século XVIII. idem. Devotos da cor, pp. 96 e 97. Cf. também SOARES, Mariza de
Carvalho. Mina, Angola e Guiné... p. 4.
107
47
CANDIDO, Mariana Pinho. Fronteras de esclavización: esclavitud, comercio e identidad en Benguela,
1780- 1850 / Mariana Pinho Candido; traducción del inglés, María Capetillo Lozano. 1a. ed. México, D.
F.: El Colégio de México, Centro de Estudios de Asia y África, 2011. Especialmente capit.ulo 5
48
FERREIRA, Roquinaldo. The suppression of the slave trade and slave epartures from Angola, 1830s-
1860s. História Unisinos. 15(1):3-13, Janeiro/Abril 2011, p. 4; THORNTON. John. A África e os
Africanos na Formação do Mundo Atlântico. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 109. Cf. MILLER, J. Way
of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830. Wisconsin, University of
Wisconsin, 1988.
49
FERREIRA, op.cit., p.5
108
50
FERREIRA, op. cit., p.5
109
51
KARASCH, op. cit., p. 57.
52
FERREIRA, op cit., p.6
53
SILVA, Rosa da Cruz e. Benguela e o Brasil no final do século XVIII: relações comerciais e políticas.
In PANTOJA, Selma e SARIVA, José Flávio Sombra (organizadores). Angola e Brasil nas rotas do
Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1999, pp. 127-135.
54
FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Dos Sertões ao Atlântico: op. cit., p. 4
55
SILVA, op. cit., pp. 131.
56
GOMES, Flávio. A demografia atlântica dos Africanos no Rio de Janeiro, séculos XVII, XVIII e XIX:
algumas configurações a partir dos registros eclesiásticos. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, Rio de
Janeiro, v. 19, supl, dez. 2012, p. 97.
110
Misericórdia, a autora revela que mais da metade tinham vindo dessa região, de modo
que os Benguelas inundaram a cidade na década de 1840, se tornando uma das maiores
nações 57.
De acordo com Miller, no início do século XVIII um grupo de luso-
africanos instalara-se em Benguela e criaram novas fontes de escravizados, promovendo
uma série de ataques que alcançaram às serras do leste de Benguela, em 1720. Os
cativos por eles capturados eram vendidos para os donos das embarcações do Rio de
Janeiro. A partir de 1730, de acordo com o número de escravizados registrados nos
relatórios governamentais, que seriam deslocados de Benguela em direção ao Rio de
Janeiro, indicam uma conexão direta entre Benguela e o porto carioca 58. De acordo com
Mariana Candido, o tráfico movia a economia da cidade. A população que residia no
porto se ocupava do comércio e das caravanas que seguiam para o interior. Muitos
degradados ainda cumprindo pena eram empregados na administração e nas forças
militares e podiam ainda tornarem-se comerciantes de gente atuando na rede do tráfico
atlântico de escravizados 59. Roquinaldo Ferreira observou que desde o início do século
XVIII Benguela serviu como um refúgio seguro para os degredados que procuravam
conduzir escravizados para os funcionários de Luanda. No século XIX, dos vários
negociantes que atuavam em Benguela, muitos haviam nascido ou vivido no Rio de
Janeiro e ainda mantinham laços estreitos com a cidade brasileira. Benguela importava a
cachaça, um dos principais produtos brasileiros utilizado no comércio de escravizados
em Angola. Importava em torno de 1000 pipas por ano. Essa quantidade era metade do
que importava Luanda, o principal porto de escravizados angolano 60.
O domínio dos traficantes de escravizados sobre a política local era
fundamental para a continuação dos embarques de cativos em Benguela. Vários
57
KARASCH, op. cit., p. 57.
58
MILLER, Joseph. C. A economia política do tráfico Angolano de escravos no século XVIII. in
PANTOJA, Selma e SARIVA, José Flávio Sombra (organizadores) Angola Brasil nas rotas do Atlântico
Sul. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 22.
59
“A coroa portuguesa fez uso da pena de degredo para criminoso com o intuito de ocupar os territórios
de Angola e Benguela [...]. Apesar do comercio de escravos, Benguela não era um lugar muito atrativo.
Famosa por seu clima insalubre ficou conhecida também como açougue humano. Degredados e
comerciantes conviviam lado a lado graças à corrupção das autoridades locais e a mortalidade que afetava
todos os estrangeiros. Apesar das leis que proibiam que degredados exercessem posição de autoridade,
em Benguela muitos degredados ocupavam posições administrativas e militares”. Cf. CANDIDO,
Mariana P. Negociantes Baianos no porto de Benguela: redes comerciais unindo o atlântico Setecentista.
In GUEDES, Roberto. Organizador. Brasileiros e portugueses na África (séculos XVI-XIX). Rio de
Janeiro: Mauad , 2013, p.p. 72 a 74; Cf. também ABRAHÃO, Juliana Diogo. Degradado e reinserção
social de degradados, Angola (século XVIII). Anais do XXVIII Simpósio Nacional de História. Lugares
dos Historiadores: velhos e novos desafios. Florianópolis. SC. 27 a 31 de julho de 2015. p. 10.
60
FERREIRA op. cit., p.6; MILLER, op. cit., p. 25.
111
61
FERREIRA, op. cit., p.6.
62
FERREIRA, op. cit., p.p.6 e 7
63
SCARANO, Julita. Devoção e escravidão. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no
Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1975, p. 108.
112
especialmente a rota entre Luanda e o Rio de Janeiro que, desde o século XVIII, era
dominado pelos negociantes brasileiros que tinham estreitas relações com os mercados
africanos. Será implementada uma rigorosa política protecionista em Luanda em prol
dos negociantes portugueses, associado a uma agressiva política fiscal com altíssima
cobrança de impostos. Tal situação provoca a saída dos negociantes brasileiros e dos
luso-africanos (crioulos africanos) de Luanda, que passam a operar a partir dos portos
mais ao norte de Angola, fora da jurisdição portuguesa, a partir do centro de Cabinda e
Ambriz, transferindo suas atividades para os portos de Cabinda, Molembi, Loango,
Ambriz, Abrizete e Rio Zaire em função das vantagens obtidas pelos negociantes nestes
portos, longe da administração portuguesa 64.
A retirada britânica do comércio de escravizados em 1807 já havia alterado
profundamente a dinâmica do tráfico no norte de Angola criando um vácuo que foi
preenchido pelos negociantes brasileiros. O centro de gravidade do comércio entre
Angola e o Brasil mudou para o Brasil. Após a independência o domínio dos
negociantes brasileiros no norte de Angola aumentou ainda mais. Foram 185 navios
brasileiros embarcando escravos em Cabinda, entre 1823 e 1831. Não há dúvidas que o
comércio de escravizados na região de Cabinda era controlado pelos negociantes da
praça carioca 65. No calor da retirada britânica do comércio atlântico de escravizados, a
região de Ambriz parece ter sido imensamente afetada, só voltando a se recuperar a
partir 1823. Entre este ano e o ano de 1832 foram embarcados em Ambriz 91 navios de
escravizados. Os negociantes brasileiros foram os principais responsáveis pela
recuperação do comércio de escravizados em Ambriz. O fato de atuarem em Ambriz
comerciantes espanhóis, franceses e americanos é indicação da internacionalização do
comércio nessa região. Ambas as regiões, Cabinda e Ambriz, apresentavam na década
de 1840 condições propícias para abrigar o comércio de escravizados. A cinco milhas
em direção ao interior da costa de Ambriz existiam vários barracões que segundo as
64
Cf. FERREIRA, Roquinaldo. Brasil e Angola no Tráfico Ilegal de Escravos. 1830-1860.in PANTOJA,
Selma e SARAIVA, Flávio Sombra (organizadores). Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p. 148; PIRES, Flávia Cicchelli. Tráfico Ilegal de Escravos: os caminhos
que levam a Cabinda. Dissertação de Mestrado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2006. pp.
49,50,55-82; . Tráfico ilegal de escravos, 1830-1860: o redirecionamento dos embarques na costa
Centro-Ocidental africana. XXIII Simpósio Nacional de História. ANPUH. Londrina, 2005. P. 5 e 6;
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Entre caravanas de marfim, o comércio da urzela e o tráfico de
escravos: Georg Tams, José Ribeiro dos Santos e os negócios da África centro-ocidental na década de
1840. Programa Nacional de Apoio à Pesquisa Fundação Biblioteca Nacional – MinC. pp. 29-34.
Dinâmicas Históricas de um Porto Centro Africano: Ambriz e o Baixo Congo nos finais do tráfico
atlântico de escravos (1840 – 187). rev. hist. (São Paulo), n. 172, p. 163-195, jan.-jun., 2015, p. 163-168.
65
FERREIRA, op. cit., p.12.
113
66
FERREIRA, op. cit., p.12.
67
FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras... , 1997. pp. 80,81 e 234.
68
PESSOA, Thiago Campos. O comércio negreiro na clandestinidade: as fazendas de recepção de
africanos da família Souza Breves e seus cativos. Afro-Ásia, 47 (2013), 43-78. p. 49, 70,71
114
mão de obra escravizada para o Rio de Janeiro. Oito entre cada dez navios que entraram
no porto carioca entre 1795 e 1830 vieram da região Congo-Angola 69.
Em nossa amostragem tal situação se configura a partir da década de 1820.
Essas duas regiões juntas apresentaram um percentual de 100,0%. No entanto, coube a
Moçambique 70 a participação de 96,6%, enquanto Quelimane ficou com a participação
ínfima de 3,4%. Nas duas décadas finais de nossa amostragem, 1830 e 1840,
Moçambique mantém sua participação, 87,5% e 86%, respectivamente e a região de
Quelimane foi ultrapassada por Inhambane, apresentando essa última 10,0% e 12,0%
contra a primeira que apresentou 2,5% e 2,0% respectivamente. Em nossa amostragem
não aprece a ilha de Moçambique, apenas Moçambique. De acordo com Karasch, os
africanos orientais não eram muito conhecidos no Rio de Janeiro e os senhores tendiam
a chamá-los todos de Moçambique. Esse costume inviabilizava a identificação das
origens dos escravizados que vinham de outras áreas fora do domínio colonial português
através da África Oriental para o Rio de Janeiro, tais como: Quênia, Tanzania, Malaui,
Zambia, Zimbabue, África do Sul e Madagascar.
A forma mais comum com que os negociantes agrupavam os escravizados
era pelo porto de origem, que nessa região eram: Mombassa ou Mombaça, ilha de
Moçambique, Quelimane, Inhambane e Lourenço Marques. Havia outros como Ibo e
Angoche, mas estes raramente apareciam nas fontes para o Rio de Janeiro. De todos
esses, os que mais apareciam na documentação no Rio de Janeiro eram: Moçambique,
Quelimane e Inhambane, como ocorre com nossa amostragem. Essas três regiões eram
as maiores áreas de escravização da África Oriental no século XIX. Em primeiro lugar a
região de Moçambique que abrigava povos da ilha de Moçambique e de regiões mais ao
norte. A ilha de Moçambique era sem dúvida uma das áreas mais importantes de
operações do tráfico de escravizados da região no século XIX. Onde representantes das
casas comerciais brasileiras e autoridades portuguesas envolvidas no tráfico de
escravizados tinham residência.
Além dos brasileiros, faziam comércio também os traficantes africanos,
árabes e indianos que atuavam a partir do que hoje são Quênia, Tanzânia e Zanzibar.
Em segundo lugar estava o porto de Quelimane no Delta do rio Zambezi, com 31 navios
69
221 FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras... p.81.
70
Em nossa amostragem não aprece ilha de Moçambique, apenas Moçambique. Possivelmente seja a
mesma região. De acordo com Karasch, os africanos orientais não eram muito conhecidos no Rio de
Janeiro e os senhores tendiam a chama-los todos de Moçambique. Cf. KARASCH, op. cit., p.59
115
saídos para o Brasil depois da ilha de Moçambique com seus 44 71. Quelimane também
contava com a ilha de Moçambique como fonte de escravizados. Os Quelimanes na
cidade do Rio de Janeiro também eram agrupados com os Moçambiques. Sempre que
havia guerras no interior, bloqueavam as caravanas que iam para a ilha de Moçambique
ou quando os cruzadores britânicos navegavam ao longo da costa, os traficantes do
interior e os brasileiros como alternativa mudavam-se para o porto de Quelimane, mas
não foi só o perigo da presença britânica que explica a proeminência de Quelimane no
tráfico com o Brasil. O preço baixo e fornecimento regular de escravizados jovens com
idade entre 10 e 14 anos agradavam aos traficantes brasileiros. Como resultado na
década de 1840, Quelinane rivalizava com a ilha de Moçambique no fornecimento de
escravizados para o Brasil, em especial o Rio de Janeiro. Em terceiro lugar, o porto de
Inhambane, que era menos importante, principalmente antes de 1830. De acordo com
Klein, organizou apenas 4 viagens escravistas. Os Inhambanes no Rio de Janeiro era um
grupo muito reduzido 72.
71
KLEIN, Herbert S. O tráfico de escravos no Atlântico. Ribeirão Preto. SP. FUNPEC Editora, 2004. p.
71.
72
KARASCH, op. cit., pp. 59-62; KLEIN, Herbert S. O tráfico de escravos no Atlântico... p. 71;
MEDEIROS, Eduardo. Moçambicanização dos Escravos saídos pelos portos de Moçambique. TOC:
Ponta de Lança: Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura, São Cristóvão, v.12, n. 23, jul. - dez.
2018. p. 169.
116
Moange - - - - - - - - - 1 - 1 2
Mocosso - - - 1 - - - - - - - - 1
Mugungo - - - - - - 1 - - - - 1
TOTAL DE INDETERMINADAS - - - 1 - - - 2 1 1 1 2 8
GUINÉ/ GENTIO DA GUINÉ - 7 5 14 - 2 3 3 - - - - 34
CRIOULO - 2 1 27 7 10 55 68 94 470 691 439 1864
S/REF. - - - - - - 1 9 39 375 50 35 510
TOTAL 2 - 18 134 22 22 113 236 226 1267 1111 819 3996
Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro
(1701-1843).
Rebolo 2 1 - 11 10 26 10 7 15 4 4 15 11 116
CONGO - 1 3 - 4 23 8 22 11 15 11 21 7 19 28 173
Ambaca - - 1 - - - - - - - - 1 - - - 2
Cabinda - - - - 1 10 6 22 17 14 30 14 7 25 17 163
Loango 1 1 - - - - - - - - - - - - - 2
Mofumbe - - - - - 1 6 4 5 1 1 - - 2 - 20
Monjolo - - - - - 4 4 7 1 7 11 6 3 7 4 54
Songo - - - - - 1 - 1 - - 1 - 2 1 - 6
TOTAL ÁFRICA CENTRO 1 10 62 11 43 125 61 150 92 68 123 83 48 124 137 1139
OCIDENTAL
Inhambane - - - - - - - - - - 1 1 2 - 6 10
Moçambique - 1 - - - - 1 11 5 11 13 12 9 23 22 108
Quilimane - - - - - - - - 1 - - - 1 1 - 3
TOTAL ÁFRICA ORIENTAL - 1 - - - - 1 11 6 11 14 13 12 24 28 121
Baca - - - - - 1 - - - - - - - 1 - 2
Marimba - - - - - - - 1 - - - - - - - 1
Moange - - - - - - - - - 1 - - - 1 - 2
Mocosso - - 1 - - - - - - - - - - - - 1
Mugungo - - - - - 1 - - - - - - - - - 1
TOTAL DE INDETERMINADAS - - 1 - - 2 - 1 - 1 - - - 2 - 7
GUINÉ/ GENTIO DA GUINÉ - 7 19 2 1 5 - - - - - - - - - 34
CRIOULO - 2 28 12 51 90 73 94 132 206 334 191 149 321 181 1864
S/REF. - - - - 12 38 - 210 165 - 10 40 3 32 510
TOTAL 2 25 152 33 105 281 181 289 460 465 498 326 267 506 406 3996
Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro
(1701-1843).
119
73
SOARES, Mariza de Carvalho. Indícios para o traçado das rotas terrestres de escravos na Baia do
Benim, século XVIII.in SOARES, Mariza de Carvalho (organizadora). Rotas Atlânticas da Diáspora
Africana: da Baia do Benim ao Rio de Janeiro. Niterói: EDUFF, 2007. p. 67.
74
KARASCH, op. cit., p. 64; SOARES, Mariza de Carvalho. (Org.) Diálogos Makii: de Francisco Alves
de Souza; Manuscrito de uma congregação católica de africanos Mina, 1786. São Paulo: Chão Editora,
2019. p. 111-12; LAW, Robin. Etnias de africanos na diáspora: novas considerações sobre os significados
do termo 'Mina'. Tempo [online]. 2006, vol.10, n.20, pp.98-120. p. 99.
75
SOARES, Mariza de Carvalho. Indícios para o traçado das rotas terrestres de escravos na Baia do
Benim, século XVIII... p. 66; LAW, Robin. Etnias de africanos na diáspora: novas considerações sobre os
significados do termo 'Mina'. pp. 100 a 108.
76
SOARES, Indícios para o traçado das rotas terrestres de escravos na Baia do Benim, século XVIII. p.
69; SOARES, Diálogos Makii, op. cit., p. 131.
77
LAW, op. cit., p. 120
120
porto carioca os Ibos, Efiks ou Ibibios. Eram bem menos representativos entre a
escravaria no Rio em comparação aos minas 78. Contribuíam ainda para essa grande
diversidade de grupos de procedência africana no Rio de Janeiro os escravizados que
vinham de Cabo Verde e São Tomé. Além dos nascidos na Nigéria, no Congo Norte ou
Angola. Cabo Verde, que fica mais ao norte, provavelmente alimentava-se de grande
quantidade escravizados da África Ocidental 79.
Marisa Soares analisou o número de batizados de adultos na freguesia da Sé,
entre 1718 e 1750, e os dividiu em dois períodos: no primeiro de 1718 a 1726 e 1744 a
1750. No primeiro, constatou que o maior número de batizados adultos era de africanos
escravizados vindos da Costa Mina, concentrados entre 1722 e 1724. De um total de
790 batizados de adultos, os minas correspondiam a 681, representado 86,2% do
número total de batizados, seguidos dos guiné, com 8,7%. Os africanos centro
ocidentais representavam 2,0%, Cabo Verde, 0,4%; Cacheu, 0,3%; Contra costa, 2,4%.
No período seguinte, de 1744-1750, de um total de 265 africanos adultos batizados, os
Minas correspondiam a 235, indicando uma queda bastante acentuada (em torno de
61%) em relação ao período de 1718-1726. Entretanto, não comprometia sua
predominância entre os grupos de batizados adultos. Deste modo, nesse segundo
período, os minas representavam 88,68% de um total de 265 batizados de adultos,
enquanto os guiné representavam 1,89%; os da Costa Centro Ocidental, 1,89% e os
Cacheu, 0,38% 80.
Flavio Gomes analisou os óbitos da freguesia da Candelária no período de
1724 a 1736 e no período de 1793 a 1800, e constatou a superioridade numérica dos
africanos centro ocidentais nos dois períodos. No período de 1724 a 1736, de um total
de 360 registros de óbitos 18,8% recebeu a denominação genérica de Guiné. Os
africanos ocidentais representavam 26,7%, sendo 91% de denominação mina e os
demais, de Cabo Verde e São Tomé somam juntos 2,5%. Os africanos orientais nesse
período tinham uma participação mínima de apenas 0,9%. Os africanos centrais
somavam 53,5%, com destaque para os classificados como angolas, com 75%; e os
benguelas com 12%; os congos, com 6,2%; os ambaca com 1,2%; ganguela, com 2,3%;
loango com, 1,7%; monjolo, com 1,6%; qissama, com 0,5% e Rebolo, com 0,5%. No
período de 1793 a 1800, embora seja mais curto e apresente uma amostragem bem
78
KARASCH, op. cit., p. 66.
79
Idem, p. 66.
80
SOARES, Mariza de Carvalho. Os Devotos da cor, pp. 80-4.
121
81
GOMES, Flavio. Demografia Atlântica dos africanos no Rio de Janeiro, séculos XVII, XVIII e XIX:
algumas configurações a partir dos registros eclesiásticos. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio
de Janeiro. v. 19, supl., dez. 2012, pp. 90, 91-93.
82
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Uma porta para o mundo atlântico: africanos na freguesia da
Candelária da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, século XVIII. Revista do Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro. n.9, 2015, pp. 52-54.
83
SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor... p. 77.
84
SOARES, op. cit., p. 73.
122
Tudo indica que as reclamações foram intensas, pois ainda no mesmo mês a
Coroa estabeleceu uma cota de importação anual de 1.200 africanos que viriam da Costa
da Mina para o Rio de Janeiro. Conforme observou Charles Boxer, essa lei permaneceu
letra morta e o sistema de cotas foi abolido em 1715 85. Mariza Soares observa que essas
constantes proibições no comércio entre a cidade do Rio de Janeiro e a Costa da Mina
podem, em parte, explicar a ausência de registros e a consequente invisibilidade dessa
atividade. O governador da Bahia, em sua carta de 1703, já denunciava que os
moradores do Rio de Janeiro contrabandeavam o ouro em pó para trocar por escravos na
Costa da Mina. Ou seja, tudo indica que quanto maior a repressão maior a ilegalidade e
a ausência de registros 86.
Tal situação pode explicar a pouca presença dos minas nos registros do
banco de dados The Slave Trade Database referente ao Rio de Janeiro. Mas como
explicar a ausência dos africanos, em especial dos vindos da região de Angola nos
registros de óbitos do início do século XVIII, até a primeira metade da década de 1740?
Por que esses dados não se aproximam dos números do tráfico atlântico? Além da falta
de registros, da falta de página nos livros por problemas de conservação, é bom lembrar
que esses indivíduos estavam chegando e ainda não possuíam inserção social na
paróquia, da mesma forma que não se filiaram imediatamente a uma das irmandades de
pretos para que tivessem o sepultamento em uma das igrejas dessas irmandades, ou em
qualquer outra da cidade desde que tivesse como arcar com a despesa da inumação na
rede paroquial.
Diante desta dificuldade de inserção nas redes de sociabilidade da freguesia
aqui estudada, restariam aos mortos dessa condição os cemitérios fora dos templos,
como o da Santa Casa da Misericórdia e o dos Pretos Novos. Até 1722, os escravos
recém-chegados do tráfico que morriam na cidade eram sepultados no cemitério que
85
BOXER, Charles R. A Idade de Ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 69; SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor... p. 74.
86
Mariza Soares observa que novas dificuldades foram impostas ao comércio com a Costa da Mina no
decorrer do setecentos. A partir de 1730, as viagens para a Costa da Mina só podiam ser feitas com
autorização prévia do vice-rei, limitando assim mais uma vez o comércio entre a Costa da Mina e os
portos do Estado do Brasil. Mas essa medida não conseguiu conter o comércio clandestino. É possível
que diante dessa situação ele tenha aumentado, pois de acordo a autora, nos trinta anos anteriores esse
comercio já havia alcançado cifras alarmantes para a metrópole. Entre 1734-35, o contrabando de ouro do
Brasil para troca de escravos na Costa da Mina atingiu “proporções escandalosas”. Foram descobertas as
operações de uma companhia clandestina com representantes influentes sediados na Bahia, Pernambuco,
Rio de janeiro, Sacramento, São Paulo e Ilha de São Tomé, em que o próprio ouvidor estava envolvido
como principal acusado. Tal situação demonstra o quanto era frágil o controle metropolitano sobre o
comércio de diversos produtos coloniais especialmente aqueles mais valiosos, como ouro e escravos, uma
vez que os próprios funcionários da Coroa que deveriam combater a clandestinidade e o descaminho eram
os principais envolvidos na ilegalidade. Cf. SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor... pp. 74 e 82
123
existia detrás do hospital da Santa Casa da Misericórdia. Com o aumento do tráfico, foi
criado um cemitério específico para esse grupo social no Largo de Santa Rita, em 1722
e ali esteve até 1774 87, quando foi transferido para a área por trás da Praia do Valongo,
por ocasião da transferência do mercado de escravos para lá, durante a gestão do
Marques do Lavradio (1769-1779). 88 A questão é que os registros de óbitos deste
cemitério para os primeiros anos de sua existência no Largo de Santa Rita ainda não
foram encontrados. Existem alguns poucos registros para o ano de 1776 no Arquivo
Geral da Cidade do Rio de Janeiro, mas está impedido de se pesquisar. Para o período
do Valongo, os livros estão interditados no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de
Janeiro. No site dos mórmons é possível encontrar um livro de 1812 a 1818, um outro
livro de 1824 a 1830 e umas dez páginas soltas correspondentes ao ano de 1829.
Infelizmente, não foi possível fazer uso desse material até esse momento por falta de
tempo para a sua coleta. Por este motivo, eles ainda não serão considerados nessa etapa
da pesquisa. Mas acredito que essa pode ser uma explicação para a reduzida quantidade
de africanos nos livros de assentamentos de óbito da freguesia da Sé, uma vez que havia
outros locais de sepultamento de escravos e, principalmente de escravos recém-
chegados do tráfico, na cidade.
A presença dos poucos africanos centro ocidentais nos registros de batismo
do Rio de Janeiro significa que mesmo após a criação do bispado de Angola, a partir do
final do século XVII – quando os africanos embarcados no porto de Luanda deveriam
ser obrigatoriamente batizados antes de entrarem a bordo dos tumbeiros –, alguns
poucos africanos centro ocidentais não eram batizados na África. Diante das dúvidas se
haviam sido ou não batizados antes, eram levados a batismo sub conditione no Rio de
87
Carta de Lei do Marquês do Lavradio. Rio de Janeiro, 12 de abril de 1774. Arquivo Nacional do Rio de
Janeiro, Códice 70, v.7, p. 231. Cf. HONORATO, Cláudio de Paula. Valongo: o mercado de escravos do
Rio de Janeiro de 1758 a 1831. Dissertação de Mestrado. Niterói – PPGH/UFF 2008, p.p. 73-4.
88
RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres
no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de
Documentação. Coleção Biblioteca carioca. 1997, p. 68-70; PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. À
flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond: IPHAN, 2007;
BRAVO. Milra Nascimento. Hierarquias na morte: uma análise dos ritos fúnebres católicos no Rio de
Janeiro (1720-1808). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, 2014. Infelizmente, não foi possível fazer uso desse material por falta de tempo para a sua coleta.
Por este motivo, eles não serão considerados nessa pesquisa, p. 68-70; BRAVO. Milra Nascimento.
HIERARQUIAS NA MORTE: Uma análise dos ritos fúnebres católicos no Rio de Janeiro (1720-1808).
Dissertação de mestrado – PPGH/UNIRIO, 2014; HONORATO, Claudio de Paula. Valongo: o mercado
de almas da praça carioca. Curitiba: Appris, 2019, pp. 90-98
124
Janeiro. O que indicaria que esses indivíduos não foram embarcados no porto de
Luanda, segundo Carlos Eugênio Líbano Soares 89.
O segundo período analisado por Líbano Soares, de 1725 a 1730, apresenta
uma amostragem bastante reduzida com apenas 5 africanos ocidentais que corresponde
a 83,3%, todos do gentio da mina. Da África Centro Ocidental veio um indivíduo
apenas, de origem Benguela correspondendo a 16,7%. Já no terceiro e último período
analisado pelo autor, entre 1734 e 1744, de um total de 129 batizados, os africanos
ocidentais representavam 96,1% contra os centro ocidentais que representavam 3,1%,
todos vindos de Angola. Entre os ocidentais os minas representavam 83,9%, Cabo
Verde 14,5%, dois do gentio da Guiné que o autor soma com os africanos ocidentais
que representavam 1,6%, um coura ou courá, que representava 0,8%. O autor o separou
dos africanos ocidentais, pois segundo ele, esses escravizados quase não apreciam no
registro da escravidão no Rio e na Bahia. Sua hipótese é que esses cativos eram
oriundos do comércio clandestino entre os ingleses e os negociantes mineiros nos
primórdios do século XVIII e que tais indivíduos vinham da região de Coromanty (ver
mapa 11 nesse capitulo), perto da feitoria inglesa de Cape Cost 90.
Em nossa amostragem aparece apenas um courano que consideramos
oriundo da Costa da Mina. Luís Mott, apoiando-se em Pierre Verger, afirmou que os
couras habitavam a lagoa de Curamo, nos arredores da atual cidade de Lagos, localizada
no sudeste da Nigéria, no Golfo da Guiné 91. Mariza Soares observou que os Couras
faziam parte dos pequenos grupos oriundos da Costa da Mina, e que provavelmente
tanto eles quanto os Mahis eram embarcados em Ajudá e Janquem (ver Mapa 12) 92. De
acordo com Moacir Maia, courá ou courano era o aportuguesamento do nome Hula,
nome do grupo principal que habitava o Golfo do Benim, na África Ocidental. Eles
vinham da região da Costa da Mina, muitas vezes eram identificados de forma genérica
como minas ou mais especificamente como mina courano ou mina coura especialmente
89
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Uma porta para o mundo atlântico: africanos na freguesia da
Candelária da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, século XVIII. Revista do Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro. n.9, 2015, p.49-62. pp. 51 e 52.
90
Idem., p. 53
91
MOTT, Luís. Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1993. p. 14.
92
SOARES. Mariza de Carvalho. Mina, Angola e Guiné: Nomes d’África no Rio de Janeiro Setecentista.
Tempo, Vol. 3 - n° 6, dezembro de 1998. p.7; SOARES. Mariza de Carvalho. A “nação” que se tem e a
“terra” de onde se vem: categorias de inserção social de africanos no Império português, século XVIII.
Estudos Afro- Asiáticos, Ano 26, no 2, 2004, pp. 303-330. p. 309; cf. também PINHEIRO, Fernanda
Aparecida Domingos. Confrades do Rosário: sociabilidade e identidade étnica em Mariana. Dissertação
de Mestrado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2006. Especialmente o capítulo quatro
125
em Minas Gerais 93. Esse início do século XVIII foi um período de intensos conflitos na
Costa dos Escravos 94. A crescente presença de holandeses, ingleses e franceses na
região durante a segunda metade do século XVII e a concorrência comercial entre eles,
centrada, sobretudo no tráfico de cativos africanos, provocou uma transformação
político-econômica sem precedentes na Costa da Mina, que resultou no fim do poder
hegemônico de Ardra (Allada) 95 e a ascensão de Ajudá, a partir de 1680. Os negociantes
de Ajudá e Porto Novo não concediam monopólio aos europeus e, por isso, portugueses
e holandeses, acostumados ao exclusivismo, preferiam negociar com o reino do Benim,
em Calabar, e com o Congo. 96 Durante o século XVII, o reino de Alada foi a principal
foça política da costa da África Ocidental e o principal fornecedor de escravizados da
região, perdendo sua posição somente após a ascensão do Daomé (ver Mapa 10), em
1724 97, que consolidou-se como principal fornecedor de escravizados no Golfo do
93
MAIA, Moacir Rodrigo de Castro. Africanos senhores de suas casas: a propriedade escravista entre
libertos couranos em Vila Rica e Vila do Carmo, século XVIII. XVI Seminário sobre a Economia
Mineira: repensando o Brasil. Diamantina, 15 a 20 de setembro de 2014. Centro de Desenvolvimento e
Planejamento Regional da UFMG. Cedeplar. p. 3. Disponível em:
https://diamantina.cedeplar.ufmg.br/portal/publicacoes/diamantina- 2014/ acesso em 05/07/2020
94
“Ao longo do século XVIII Alalda e Uidá tornaram-se rivais nos negócios do tráfico. Uma guerra
comercial entre os dois reinos se estabeleceu nas primeiras décadas do século XVIII. a fase mais crítica
desse conflito foi entre 1705 e 1712. Nesse período o Golfo do Benim assistiu a Ascenção do reino do
Daomé. Reino interiorano que se alimentava do banditismo e das razias sobre os reinos vizinhos. No final
de 1715 já em rebelião aberta contra Alada, o Daomé decidiu assumir o protagonismo das transações
comerciais com os europeus. No alvorecer da década de 1720 avançou contra os seus dois principais
adversários políticos e comerciais no Golfo do Benim. Conquistou Alada em 1724, e três anos depois
avançou sobre Uidá, estabelecendo-o como o seu principal porto de comércio. Jakin e Weme organizaram
tentaram uma coalização contra o Daomé. Buscaram arregimentar outros povos, massa tentativa
malogrou. Jakin foi atacada em 1732 e totalmente destruída em 1734. O Daomé tornou-se o senhor do
tráfico na região. Na segunda metade da década de 1720 foi vez do reino de Oyó lançar uma série de
ataques contra o reino do Daomé. Suas incursões em território domeano duraram até 1747, quando os
dois reinos celebraram um acordo de paz em que o reino do Daomé passou a pagar tributos ao reino de
Oyó. Cf. SILVA JR, Carlos da. Ardras, Minas e Jejes, ou escravos de “primeira reputação”: políticas
africanas, tráfico negreiro e identidade étnica na Bahia do século XVIII.” Revista Almanack. Guarulhos,
n.12, jan./abr. 2016 p.6-33, pp. 16-7; SILVA JR, Carlos da. Interações Atlânticas entre Salvador e Porto
Novo (Costa da Mina) no século XVIII. Ver. Hit. (São Paulo), n. 176, a 02716, 2017
95
De acordo com Luís Nicolau Parés, “Arda” designava o centro comercial onde os escravos tinham sido
vendidos pelos portugueses. Da mesma forma que mina, “arda” ou “arada” foram denominações
metaétnicas elaboradas a partir do nome do lugar de procedência comercial. “Arada” não designava
necessariamente uma população indígena desse reino. PARÉS, Luís Nicolau. A formação do Candomblé:
história e ritual da nação jeje na Bahia. 2ª ed. rev. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007, p. 44;
Segundo Labat, “os aradas são os melhores escravos que podem ser comprados nos reinos de Juda[Uidá]
e Adres [Allada]; mas não devem ser confundidos com os naturais de Adres, eles não vem desse reino.
São trazidos a Juda de um país que fica a umas 150 léguas ao nordeste”. Cf. LABAT, Jean-Baptiste
(1663-1738). Voyage du chevalier Des Marchais en Guinée, isles voisines, et a Cayénne : fait en 1725,
1726 et 1727... ([Reprod.]) par le R.P. Labat, 1730. Tomo II, p. 125; O reino Ardra era também conhecido
por Allada, Alada
96
SOARES, Mariza de Carvalho. Os Devotos da cor, p. 78-85
97
SOUMONNI, Elisée. Daomé e o mundo atlântico. Published by the South-South Exchange Programme
for Research on the History of Development (SEPHIS) and the Centro de Estudos Afro-Asiáticos,
Universidade Candido Mendes, Brazil. Amsterdam/Brazil, 2001, p. 39. Em 1724, o reino do Daomé
conquistou o reino Alada e em 1727 conquistou o reino de Hueda. Além disso, mudou a relação com os
126
Fonte: REDIKER, Marcus. O navio negreiro: uma história humana. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011, p. 100.
europeus, já que havia destruído o porto de Jakin, rival de Uidá, Ajudá, em 1732. Alexandre Ribeiro
afirma que esta expansão do reino do Daomé desarticulou as redes que levavam escravos do interior para
a costa, prejudicando os negociantes baianos. Cf. RIBEIRO, Alexandre Vieira. A cidade de Salvador:
estrutura econômica, comércio de escravos e grupo mercantil. Tese de doutorado Rio de Janeiro: UFRJ,
Programa de Pós-graduação em História, 2005. p. 77
98
SILVA JR, Carlos da. Ardras, minas e jejes, ou escravos de “primeira reputação”: políticas africanas,
tráfico negreiro e identidade étnica na Bahia do século XVIII. Almanack. Guarulhos, n.12, pp. 15 e 17.
Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2236-46332016000100006.
Acesso em: 15 de nov. 2019.
127
Fonte: http://www.costadamina.ufba.br/index.php?/conteudo/exibir/11.
atlântico como escravizados. Foi no curso desse conflito que o Daomé guerreou contra
os makis 99. Joseph Laport, no relato O Viajante Universal, descreve que o comércio
praticado pelo reino Ardra consistia em escravos e provisões. Eram deportados
anualmente deste reino pelos europeus cerca de três mil cativos. Uma parte destes eram
prisioneiros de guerra, outros vinham das províncias vizinhas em forma de tributos. Há
ainda aqueles que eram réus aos quais foi comutada a pena de desterro perpetuo. Outros
nasceram na escravidão, ou seja, eram filhos de escravizados. Por último, os devedores
insolventes, que eram vendidos em benefício dos seus credores 100. Uma parte desses
escravizados traficados através do porto de Ajuda, entre os anos de 1720 e 1727, eram
enviados para a Bahia e para o Rio de Janeiro. Entre estes estão as primeiras levas de
daomeanos que vieram para o Brasil 101. Ao descrever o comércio do reino de Ardra,
Joseph Laport fornece importantes informações sobre o processo de escravização na
África que confirmam aquilo que já está consolidado pela historiografia 102.
99
POLNYI, karl. Dahomey and the slave trade. An Analysis of an archaic economy. Washington.
University Washington Press, 1968. p. 138. Apud SOARES, Mariza de Carvalho. Os Devotos da cor. p.
78
100
LAPORTE, J. O viajante universal, ou Noticia do Mundo antigo e moderno. Lisboa: Typografia
Rollandiana, 1798. Volume 13, p. 147.
101
SOARES, Mariza de Carvalho, op. Cit. 2000, p.79; SILVA JR, Carlos da. Op. Cit. P. 17.
102
Sobre o processo de escravização na África cf. FINLEY, Moses I. Escravidão Antiga e ideologia
moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1991, pp. 88-9; LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história
de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; MEILLASSOUX, Claude.
Antropologia da escravidão. O ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995;
THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico. Rio de Janeiro,
Elsevier/Campos, 2004; SILVA, Alberto da Costa e Silva. A Manilha e o Libambo. A África e a
escravidão 1500 a 1700. Rio de janeiro: Nova fronteira, 2007; MILLER, Joseph C. Way of Death
Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade 1730-1830. The University of Wisconsin Press. 1988;
CANDIDO, Mariana Pinho. Fronteras de esclavización: esclavitud, comercio e identidad en Benguela,
1780-1850. Colegio de México, Centro de Estudios de Asia y África, 2011; . An African slaving port and
the Atlantic world: Benguela and its Hinterland. Cambridge University Press. 2013
129
Fonte: Atlas of the Transatlantic Slave Trade. Por David Eltis and David Richardson,
Yale University Press – New Haven & London. 2015, p. 18 e 19.
predominância numérica entre os Minas, sendo 153 mulheres para 127 homens. Já entre
os Calabar, o número de homens é maior que o número de mulheres e, embora seja um
número pequeno comparado aos Minas, observamos 5 homens para cada mulher.
Essa diferença numérica é percebida tanto no quadro 2, organizado por
décadas, quanto no quadro 2.1, por intervalos de livros. Na década de 1820, por
exemplo, são 10 homens para 1 mulher, embora na década de 1840 essa diferença
diminua para uma média de 2 homens para cada mulher. Entre os africanos centro
ocidentais quando olhamos para o total óbitos percebemos que há um equilíbrio entre o
número de homens e de mulheres, mas quando olhamos para os grupos de procedência
percebemos que na maioria deles o número de mulheres é maior que o de homens. Dos
quinze grupos de procedência vindos dessa região, em dez deles o número de mulheres
é maior que os números de homens. Entre os maiores grupos, por exemplo, a
predominância do número de mulheres entre os angolas, benguelas cassange e rebolo. Já
entre os congos, luandas e cabindas prevalecia a superioridade dos homens sobre as
mulheres. Entre os africanos orientais predominava o número de homens em todos os
grupos, com destaque para os moçambiques, onde o número de homens representava
65,7% contra 34,3% das mulheres.
Ao analisar os registros de óbitos da freguesia da Candelária no período de
1724 a 1736, Flavio gomes encontrou 360 óbitos de escravizados, sendo 192 do sexo
masculino e 168 do sexo feminino, apenas entre os minas o número de mulheres era
maior que o número de homens, sendo o percentual de mulheres de 60,9% e o de
homens de 39,1%. Para o período de 1793 a 1800, o autor encontrou 87 registros de
óbitos, sendo 51 do sexo masculino e 36 do sexo feminino. O número de homens é
superior ao número de mulheres nas três regiões de procedência, África Ocidental,
África Centro Ocidental e África Oriental 103. Ao analisar os registros de óbitos, também
da freguesia da Candelária, no período de 1724 a 1736, Mariza Soares encontrou um
total de 323 registros, sendo 176 do sexo masculino e 147 do sexo feminino, o que
demonstra a superioridade de homens sobre as mulheres. Somente entre os minas o
número de mulheres é superior ao número de homens, sendo este de 55,7% e o de
homens de 44,3% 104.
103
GOMES, Flavio. Demografia Atlântica dos africanos no Rio de Janeiro... pp. 90, 91-93.
104
SOARES, Mariza de Carvalho. Os devotos da cor... p. 151
131
Marimba - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 - - 1 - - - - 2
Moange - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 - - 1 - - 2
Mocosso - - - - - - - 1 - - - - - - - - - - - - - - - - - 1
Mugungo - - - - - - - - - - - - - - 1 - - - - - - - - - 1
TOTAL DE INDETERMINADAS - - - - - - - 1 - - - - - - 1 1 - 1 8 1 1 - 1 1 1 7
FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
Rebolo - - - - 1 1 1 - - - 5 6 8 2 13 13 5 5 5 2 8 7 2 2 3 1 12 3 6 5 69 47
Congo - - - - 1 2 - - 1 3 10 13 2 6 8 14 5 6 6 9 5 6 6 15 2 5 7 12 14 14 68 105
Ambaca - - - - 1 - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 - - - - - - - 2 -
Cabinda - - - - - - - - - 1 5 5 3 3 6 15 6 11 6 8 11 19 6 8 3 4 8 17 9 8 63 99
Loango - 1 - 1 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 2
Mofumbe - - - - - - - - - - 1 - 5 1 2 2 4 1 1 - 1 - - - - - 1 1 - - 15 5
Monjolo - - - - - - - - - - - 4 - 4 1 6 - 1 2 5 4 7 - 6 - 3 2 5 1 3 10 44
Songo - - - - - - - - - - - 1 - - 1 - - - - - - 1 - - 1 1 1 - - - 3 3
TOT. ÁFR. CENTRO - 1 5 4 35 28 7 5 21 22 62 62 30 31 67 82 44 48 37 31 66 57 37 46 20 28 63 61 75 62 570 568
OCIDENTAL
Inhambane - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 - - 1 - 2 - - 3 3 4 6
Moçambique - - - 1 - - - - - -- - - - 1 3 8 1 4 4 7 7 6 2 10 5 4 11 12 4 18 37 71
Quilimane - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 - - - - - - - 1 - 1 - - - 3
TOTAL ÁFRICA ORIENTAL 1 1 3 8 1 5 4 7 8 6 2 11 5 7 11 13 7 21 41 80
Baca - - - - - - - - - - 1 - - - - - - - - - - - - - - - - 1 - - 1 1
Marimba - - - - - - - - - - - - - - - 1 - - - - - 1 - - - - - - - - - 2
Moange - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 - - - - - - - 1 - - - 2
Mocosso - - - - - 1 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1
Mugungo - - - - - - - - - - - 1 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 1
TOTAL DE INDETERMINADAS 1 1 1 1 1 3 9 1 5 4 7 8 7 2 11 5 7 11 15 7 21 42 87
GUINÉ/ GENTIO DA GUINÉ - - 4 3 11 8 1 2 1 - 2 3 - - - - - - - - - - - - - - - - - - 19 15
CRIOULO 1 1 20 8 10 2 29 22 62 28 51 22 59 35 88 44 117 87 195 136 111 80 79 70 180 140 117 56 1119 739
S/REF. - - - - - - - - - - 9 3 29 9 - - 104 106 88 76 - - 6 4 17 23 3 - 15 25 271 238
TOTAL 2 13 11 92 61 22 12 58 47 171 109 116 65 145 143 244 216 251 210 283 212 167 159 130 137 267 237 223 183 2183 1804
FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
134
105
256 SOARES, Mariza de Carvalho. Os devotos da cor. Op. Cit. P. 151.
135
Tabela 15.1- Presença africana na população negra feminina e masculina, por livro
Ingrid Souza se questiona até que ponto isso seria resultado das preferências
dos senhores cariocas ou simplesmente resultado da dinâmica do mercado de almas da
praça carioca, uma vez que a mão-de-obra escravizada masculina era mais cobiçada
entre os proprietários escravistas dos engenhos do Recôncavo da Guanabara, além
daqueles que eram encaminhados para Minas Gerais 106. Gostaria de frisar que há uma
significativa diferença entre os nossos dados e os de Ingrid. O que explica essa
diferença é que ela trabalhou apenas com o século XVIII, em um momento em que o
banco de dados estava em fase inicial. Além disso, ela unificou os registros com
condição jurídica como livres, libertos, forros e livres com ascendência negra; da
mesma forma que partiu alguns livros para atender às especificidades de sua análise.
Tais aspectos metodológicos tornaram sua amostragem bem diferente em termos dos
valores totais e percentuais comparativamente aos nossos. Mas apesar dessas diferenças
ao analisarmos os nossos dados apenas para o século XVIII percebemos que entre os
africanos a população feminina era superior à população masculina em quase todos os
períodos, sendo o número de homens superior ao número de mulheres apenas em 1701-
1710. Na década de 1781-1790 o número de homens mortos é igual ao número de
mulheres. No entanto, no total de sepultamentos para o século XVIII, o número de
mulheres é bem superior ao número de homens: são 306 registros de óbitos femininos
contra 106 masculinos. Somente ao atingir a década de 1821-1830 é que o número de
registros de óbitos masculinos supera os femininos. Mas como já vimos, no total geral
para todo período estudado o número de homens é igual ao total de mulheres.
Ao comparamos os dados produzidos por Mariza Soares e Flavio Gomes
para os africanos escravizados na freguesia da Candelária referentes aos registros
paroquias de óbitos os resultados são muito parecidos aos que analiso aqui na minha
amostragem. O que confirma a tendência do tráfico atlântico não só em relação à
superioridade numérica da população masculina em relação à feminina como também às
áreas de procedência dos africanos traficados para cidade ao longo do século XVIII. Ou
seja, mantendo supremacia numérica dos africanos centro ocidentais do tronco
linguístico banto, com destaque para os angolas. Nossa amostragem confirma as três
106
SOUZA, Ingrid Ferreira de. Os libertos da Sé... p. 47.
137
grandes regiões de procedência africana para o século XVIII e XIX, com destaque para
os benguelas, com uma forte presença dos congos e dos angolas e no século XIX
também dos cabindas e, a partir de 1811, destaque para a África Oriental, especialmente
para os moçambiques. Assim arisco a dizer que a composição da população escravizada
e liberta, para além dos efeitos do tráfico atlântico, variava de acordo com a época e
especificidades locais.
138
CAPÍTULO – 3 –
1
ANÔNIMO. Relâche du vaisseau L’Arc-em-ciel à Rio de Janeiro, apud. FRANÇA, Jean Marcel Carvalho.
Visões do Rio de Janeiro Colonial. Antologia de textos, 1531-1800, Rio de Janeiro, José Olympio, 1999.
P. 83.
2
“Carta de amizade a meu tio o arcebispo regedor em 21 de julho de 1768[...]”, em marquês de Lavradio,
Cartas da Bahia, 1768-1Ho769, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1972, pp. 33-34. Apud. LARA, Silvia
Hunold. Fragmentos Setecentistas: Escravidão, cultura e poder na América Portuguesa. São Paulo: Cia
das Letras, 2007.
3
Relatório do Marquês do Lavradio. RIHGB, tomo IV:409-486, 1842, p. p. 424,425.
4
Cf. “Resumo total da população que existia no ano de 1779, compreendidas as quatro freguesias desta
cidade do Rio de Janeiro”, RIHGB, 21 (2ª ed., 1858):216-7; “Memorias públicas e econômicas da cidade
de São Sebastião do Rio de Janeiro para uso do vice-rei Luiz de Vasconcellos por observação curiosa até
o ano de 1789”, RIHGB, 47 (1884):27-9; Resumo Total da População que existia no anno de 1799,
139
sustento 7. Ocupações que explicam a presença tão numerosa de cativos africanos nos
centros urbanos 8, que impressionava tanto aos europeus recém-chegados.
Para esse contingente populacional, as irmandades religiosas se
constituiriam num importante caminho de construção de sociabilidade na cidade,
agregando africanos e seus descendentes. Por meio dessas associações, se organizavam
em torno da devoção a santos católicos e de cerimônias rotineiras para a concretização
dessa devoção, para a administração da respectiva irmandade religiosa, para a obtenção
da alforria de irmãos e da realização de festas. É com base nessa estrutura de
solidariedade em vida que as irmandades dos homens de cor servirão de importante
suporte aos confrades por ocasião da doença e da morte, como analisarei no próximo
capítulo. Nesse momento, analisarei de que forma essas associações prestavam auxílio
em vida aos confrades africanos e seus descendentes e serviam de importante caminho
de solidariedade em vida.
7
Debret, produz um desenho de uma família pobre em casa em que uma negra velha com um barril na
cabeça, passa o dia todo carregando água nas ruas para levar para suas duas senhoras a cada noite de 6 a 8
vinténs, para garantir o sustento das três. Cf. Debret, Jean-Baptiste (desenhista), 1768-1848. Pauvre
famille dans sa Maison. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Tome deuxième. p. 39.Disponível em:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon326377/icon326377_113.jpg. Acesso em
30/12/2019
8
GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1988, p. 74-77; AMARAL, Rodrigo
de Aguiar. Nos Limites da Escravidão Urbana: A vida dos pequenos senhores de escravos na urbe do Rio
de Janeiro, c. 1800 – c. 1860.
9
MATTOS, Hebe, ABREU, Martha e GURAN Milton (Org.). Inventário dos Lugares de Memória do
Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos Africanos Escravizados no Brasil. Niterói: Programa de
Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, 2014, p, 45.
141
10
BASTIDE. Roger, As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpenetrações de
civilizações. São Paulo: Pioneira: Universidade de São Paulo, 1971; MACGAFFEY, Wyatt. Religion and
Society in Central Africa. The Bakongo of Lower Zaire. Chicago/ London: University of Chicago Press,
1986; VAINFAS, Ronaldo e SOUZA, Marina de Mello e. Catolização e poder no tempo do tráfico: o
reino do Congo da conversão coroada ao movimento antoniano, séculos XV-XVIII. Niterói: Revista de
Departamento de História da UFF, Tempo, nº 6 vol. 3, dez. 1998; SOUSA, Marina de Mello e. Reis
negros no Brasil escravista, história da festa de coroação de rei congo, Belo Horizonte, Editora UFMG,
2002; . Catolicismo Negro no Brasil: Santos e Minkisi, uma Reflexão Sobre Miscigenação Cultural.
Afro-Ásia, 28 (2002), p. 145; THORNTON, John. A África e os Africanos na formação do Mundo
Atlântico, 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. Especialmente o capítulo 9; HEYWOOD, Linda
M.; THORNTON, John K. Central Africans, Atlantic Creoles, and the Foundation of the Américas, 1585-
1660. Nova York: Cambridge University Press, 2007; SWEET, James H. Recriar África: cultura,
parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770). Lisboa: Edições 70,2007; RODRIGUES,
Cláudia. MORTE, CATOLICISMO E AFRICANIDADE NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
SETECENTISTA. Ciências Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 12, n. 12,
p. 31-52, outubro de 2010; SAPEDE, Thiago Clemêncio. Muana Congo, Muana Nzambi Ampungu:
Poder e Catolicismo no reino do Congo pós-restauração (1769-1795). Dissertação de Mestrado.
Universidade de São Paulo, 2012; SOUZA, Lana Mayer de. Entre coroas, províncias e missionário: o
Reino do Congo no fim do século XVIII. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2016.
142
* * *
11
BOSCHI, Caio. Os leigos e o poder. Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São
Paulo: Editora Ática, 1986, pp. 36-70; SOARES, Mariza de Carvalho. Os devotos da cor... 2000, p. 134 e
166.CATÃO, Beatriz Cruz Santos. Irmandades, Ofícios e Cidadania no Rio de Janeiro do século XIII. p.
4. Disponível em: http://www.brasa.org/wordpress/Documents/BRASA_IX/Beatriz-Catao-Cruz-
Santos.pdf aceso em 22 de março 2019; GONÇALVES, Lopes. “As Corporações e as Bandeiras de
Ofícios”. in: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Departamento de
Imprensa Nacional, 1952. v. 206. p.171-191.
12
BOSCHI, op. cit., p. 3.
13
OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção negra... p. 257.
143
14
DELFINO, Lenora Lacerda. O Rosário da Almas Ancestrais: fronteiras, identidades e representações: do
“viver e morrer” na diáspora atlântica. Freguesia do Pilar. São João Del-Rei (1787-1841). – Belo
Horizonte: Clio Gestão Cultural e Editora, 2017, p. 17.
15
REIS, João José. Identidade e Diversidade Étnicas nas Irmandades Negras no Tempo da Escravidão.
Tempo, Rio de Janeiro, vol. 2, n°. 3, 1996, p. 4.
16
Cf. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). São Paulo Typografia Dois de Dezembro
1853. Livro 4. Tomo LX, Par. 867, p. 304.
17
Provisão de 08 de março de 1765 expedida pela Mesa de Consciência e Ordens. Apud. BOSCHI, Caio
Cesar. Os Leigos e o poder... p. 57.
18
REIS, op. cit., p. 4. Os africanos introduziram elementos das religiões de matriz africana no catolicismo.
De acordo com Marina Mello e Souza: Considerando que no caso do antigo reino do Congo e de Angola
missionários católicos viviam entre povos da região desde o século XVI, onde se desenvolveram formas
144
24
BEZERRA, Analucia Sulina. As Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos no Brasil:
Identidade e Diferença Cultural. Projeto História, São Paulo, n. 51, pp. 119-138, set./dez. 2014, p. 122.
25
REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: irmandades negras, experiências escravas e
identidades africanas na Bahia setecentista. Tese de Doutorado. Campinas, SP: Universidade Estadual de
Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2005, p. 36.
26
REGINALDO, op. cit., p. 36.
146
27
HOORNAERT, E. O cristianismo moreno do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1991. Apud. BEZERRA,
Analucia Sulina. As Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos no Brasil, 2014, p.
122.
28
SCARANO, op. cit., p. 36-7.
29
REIS, op. cit., p. 3.
30
Idem., p. 5. O corporativismo, é um termo de origem latina, corpus, ou "corpo humano". Sabe-se que as
ideias corporativistas foram disseminadas na sociedade de Grécia e Roma antigas. Foram implementadas
em várias sociedades com uma ampla variedade de sistemas políticos. Na Idade Média, a Igreja Católica
patrocinou a criação de várias instituições, incluindo irmandades, mosteiros, ordens religiosas e
associações militares, especialmente durante as Cruzadas. Corporativismo, na concepção de Philippe
Schmitter, define-se como um sistema de representação de interesses cujas instituições se organizam num
número limitado de categorias funcionalmente distintas e hierarquizadas, compulsórias e não
concorrenciais, às quais o Estado concede o monopólio da representação em contrapartida de colaboração
no exercício do controle social e político; Still the century of corporatism? The Review of Politics, v, 36,
p. 85-131, 1974. Apud. GARRIDO, Álvaro. O corporativismo na História e nas Ciências Sociais, uma
reflexão crítica partindo do caso português. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 42, n. 2, maio-
147
instituições oriundas dessa sociedade refletiam tal forma de organização. Algumas vão
se organizar em torno de corporações profissionais, como o caso das irmandades de São
José e São Jorge, que abrigava os carpinteiros, marceneiros, funileiros, tanoeiros,
ferreiros, serralheiros, barbeiros 31. Mas um dos principais critérios de identidade dessas
organizações era a cor da pele combinadas com a origem/procedência. Assim, havia
irmandades de brancos, pretos e pardos. Podiam se dividir ainda conforme as etnias de
origem ou grupos de procedência ou, como se dizia na época, “nações” 32. No caso do
Rio de Janeiro, havia a dos angolas, dos benguelas, dos minas. Mariza Soares observou
que no Rio de Janeiro a irmandade de “São José abrigava as famílias mais ilustres da
cidade, que os pretos eram devotos de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário e os
pardos, de Nossa Senhora da Conceição. Era impossível pensar a hierarquia social no
Rio de Janeiro dos séculos XVII e XVIII sem levar em conta a hierarquia dos homens e
santos” 33.
Na cidade do Rio de Janeiro, assim como em todo o império colonial
português, as irmandades de pretos africanos e seus descendentes, forros e escravos,
faziam procissões, realizavam funerais pomposos, escolhiam reis e rainhas organizavam
suas cortes através dos reinados da folia, 34 em homenagem à memória de seus ancestrais
conforme veremos neste capítulo. O capitulo doze, parágrafo 33 do compromisso da
irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito revela que esta confraria foi
fundada por pretos africanos de diferentes procedências. O que fica evidente na hora de
escolherem os membros que atuariam nos diferentes cargos: “E como esta Irmandade
foram seus fundadores homens pretos de todas as nações, não é justo deixem de ocupar
todos os cargos e empregos dela, sem que para isso se admita preferência de melhoria
desta, ou daquela nação, tanto de Guiné, como da Costa da Mina” 35.
De acordo com o capítulo 2, parágrafo dois, embora esta irmandade tenha
sido fundada por homens pretos, nela havia muitos brancos, e por isso haviam
ago. 2016, p. 387-408. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil. Disponível em:
https://www.redalyc.org/pdf/1346/134646844004.pdf acesso em: 14/04/2020. Cf. FILHO, Wilson Ramos
e ALLAN, Nasser Ahmad. A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA E O CORPORATIVISMO: A
Encíclica Rerum Novarum e a Regulação do Trabalho no Brasil. JusLaboris. Biblioteca Digital da Justiça do
trabalho. Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/106889 aceso em: 15/04/2020.
31
Cf. CATÃO, op. cit., p. 5- Este texto é uma versão abreviada de um artigo que deverá ser publicado em
coletânea da Pós- graduação da UFRRJ (2008). Ele foi realizado com o apoio da BN, Fundação
Biblioteca Nacional.
32
REIS, op. cit., p. 5.
33
SOARES, op. cit., p. 136.
34
Idem., p. 27.
35
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos do Rio de
Janeiro, capítulo 12, parágrafo 33.
148
36
Idem.
37
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos do Rio de
Janeiro, capitulo 12, parágrafo 2.
38
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito... capítulo 13, parágrafo 35.
39
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito... op. Cit. capítulo 12,
parágrafo, 33.
149
toda a certeza eram maioria na irmandade. Os pardos por sua vez, só podiam fazer parte
da mesa se demonstrassem algum zelo à irmandade e devoção a Nossa Senhora,
portanto não participavam da administração da irmandade.
Não fica claro porque os pardos não podiam participar da administração da
irmandade. Podemos supor que talvez fosse porque os pardos na sociedade colonial
buscassem um distanciamento da origem africana para fugirem do estigma do cativeiro.
Podemos supor ainda pela associação do termo pardo ao termo mulato, associado ao
estigma da “mulatice”, que classificava esses sujeitos geralmente como “perturbadores
da ordem”, “arrogantes”, “soberbos” dentre tantas outras expressões agressivas. É bem
provável que estes sujeitos no Rio de Janeiro almejassem uma “identidade parda”
revestida de uma positividade, o que seria na verdade uma identidade reivindicada40.
Gente que queria se diferenciar do universo da escravidão, cobrar privilégio e
tratamento específicos e, mesmo, constituir-se em corpo social separado 41. Podia se
revestir, portanto, de uma positividade, ao contrário do termo “mulato”, geralmente
usado para desqualificar ou inferiorizar.
Na verdade, os pardos procuraram constituir suas próprias irmandades e
devoções. Em meados do século XVIII já existiam diversas associações de pardos no
Rio de Janeiro colonial. Algumas foram instituídas século XVII, como a de São Brás,
Nossa Senhora do Amparo, Nossa Senhora da Boa Morte e Nossa Senhora da
Conceição, originalmente localizadas em altares laterais de igrejas pertencentes a outras
irmandades ou ordens religiosas, como era o caso dos beneditinos e carmelitas, que
hospedavam irmandades de pardos em seus conventos. Apesar de terem sido
construídas em área mais valorizada da cidade, considerada privilegiada, essas
irmandades, por não possuírem templos próprios ocupavam altares laterais nas igrejas
que as hospedavam, o que as colocava em posição de subordinação àqueles que de fato
exerciam o controle desses templos 42. No século XVIII, Algumas irmandades de pardos
se deslocam para novas igrejas próprias, como foi o caso da criação do Hospício dos
Pardos e Igreja da Irmandade de São Gonçalo Garcia, devoção que já se difundia em
diversas cidades coloniais com um culto especialmente direcionado aos devotos pardos.
Ao construírem suas próprias igrejas, essas irmandades de pardos estavam também
ocupando as áreas mais periféricas da cidade, ultrapassando a Rua da Vala em direção
40
LARA, op. cit., p. 142
41
VIANA, Larissa. O Idioma da Mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa. Campinas,
SP: Editora Unicamp, 20007. Especialmente capitulo 4
42
VIANA, op. cit., p. 151.
150
43
Idem., p. 151.
44
VIANA, op. cit., p. 104.
45
VIEIRA, Padre Antônio. Sermão vigésimo do Rosário. Penguin Companhia. Clássicos. Padre Antônio
Vieira Essencial. Organização e introdução Alfredo Bosi. Disponível em : http://cabana-on.com/Ler/wp-
content/uploads/2017/08/Essencial-Padre-Antonio-Vieira-Padre-Antonio-Vieira.pdf. Acesso em 15 de
janeiro 2022. VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem... 2007, p. 111.
46
VIANA, op. cit., 7, p. 112.
47
Terço representa a terça parte do Rosário. O Rosário é tradicionalmente dividido em três partes iguais,
com cinquenta contas cada e que, por corresponderem à terça parte, foram chamadas de Terço. Cada
Terço compreende um conjunto especial de três Mistérios: os Mistérios Gozosos, os Mistérios Dolorosos
e os Mistérios Gloriosos.
48
Idem., p. 112.
151
49
O primeiro culto a Virgem de Guadalupe que se tem noticia data do século XIV, quando a imagem virgem
milagrosa teria sido encontrada por vaqueiro na região de Villercuas, na Espanha, foi imediatamente
convertida em culto sob o reinado de Afonso XI. A segunda aparição da Virgem ocorreu no México, em
1531, quando a virgem teria sido avistada pelo índio Juan Diego, a quem solicitou a construção de um
templo em sua homenagem. Embora inspirada no modelo espanhol à imagem de Nossa Senhora de
Guadalupe criada no México tinha traços indígenas, ou seja, ressignificada no contexto da conquista
ganhou reconhecimento mais efetivo das autoridades coloniais e disseminou-se por toda América
espanhola, sobretudo no século XVII. A imagem da Virgem de Guadalupe que chegou ao Brasil nesse
período teria vindo da Península Ibérica. Em 25 de maio de 1754, o Papa Bento XIV declarou Nossa
Senhora de Guadalupe patrona da chamada Nova Espanha, que correspondia à América Central e
América do Norte. Aprovou também os textos litúrgicos para a missa e breviário em sua homenagem. Em
1891, o Papa Leão XII concedeu novos textos litúrgicos. Em 8 de fevereiro de 1895, ele autorizou a
coroação canônica da imagem. Aos 12 de outubro de 1897, a imagem foi solenemente coroada. Em 1910,
São Pio X proclamou Nossa Senhora de Guadalupe como Padroeira da América Latina. Em 1945, o Papa
Pio XII deu-lhe o título de “Imperatriz da América”. Cf. VIANA, op. cit., p. 111; NIERO, Lidiane. A
construção sócio-histórica de devoção a Nossa senhora de Guadalupe. Sacrilegens, Revista dos Alunos do
Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião – UFJF. Juiz de Fora, v. 9, n.1, p. 97-112, jan-
jun/2012. Disponível em: http://www.ufjf.br/sacrilegens/files/2012/04/9-1-8.pdf. Acesso em 22 de janeiro
de 2022; BISINOTO, Eugênio Antônio. Nossa Senhora de Guadalupe. Pias Discípulas do Divino Mestre.
Comunidades das Irmãs Discípulas do Divino Mestre. Comunidade Madre Escolástica. Disponível:
https://piasdiscipulas.org.br/nossa-senhora-de-guadalupe/. Acesso em 25 de janeiro de 2022.
50
VIANA, op. cit., p. 113.
51
Idem., p. 119; veja também. ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. A redenção dos pardos: a festa de São
Gonçalo Garcia no Recife, em 1745. In JANCSÓ, István; KANTOR, Iris (org.). Festa: Cultura e
Sociabilidades na América Portuguesa. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo: EDUSP:
FAPESP: Imprensa Oficial, 200, v. , p. 423; OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Santos pardos e
pretos na América Portuguesa: catolicismo, escravidão, mestiçagem e hierarquias se cor. Ediciones
Universidad de Salamanca / Stud. his., H.ª mod., 38, n. 1 (2016), p. 74.
52
VIANA, op. cit., p. 119.
152
padre Vieira seriam os filhos prediletos da Senhora do Rosário. Portanto a busca dos
pardos por devoções que os diferenciassem dos filhos da Senhora do Rosário refletia as
tensões especificas de uma sociedade escravista, hierarquizada e miscigenada 53. O fato
de os pardos não se alinharem na irmandade do Rosário dos pretos tampouco na dos
brancos, conforme observou Larissa Viana fez com que no início do século XVII eles
buscassem se apropriar de novos títulos devocionais como Nossa senhora de
Guadalupe, do Amparo e do Terço que lhes garantissem a diferenciação social. Viana
observa ainda que de acordo com os sermões do padre Vieira e a crônica de frei
Agostinho de Santa Maria tal iniciativa dava aos pardos uma relativa liberdade para
instituir suas irmandades 54.
Em meados do século XVIII surgem mudanças no cenário colonial. A Igreja
se mostra mais atenta às demandas dos fieis pardos e setores da Igreja articulavam de
forma sistemática a promoção de uma devoção que fosse especialmente direcionada aos
pardos. Assim, promovem o culto a São Gonçalo Garcia, considerado o primeiro santo
pardo das Américas 55. No início do século XVIII o culto mais difundido entre as
irmandades de pardos era o de Nossa Senhora da Conceição que se tornou patrona das
irmandades dos pardos em várias regiões da colônia. No Rio de Janeiro a irmandade
Nossa Senhora da Conceição dos Pardos foi fundada em 1700, na Igreja da Sé. Embora
o culto a Nossa Senhora da Conceição tenha nesse período se disseminado entre as
irmandades de pardos, não era exclusivo dessas irmandades. As irmandades da elite
ligadas ao ideal de “pureza de sangue” matinha o culto a Nossa Senhora da Conceição,
como por exemplo, a irmandade da Conceição da Praia, na Bahia 56. Em Pernambuco a
Irmandade de Nossa Senhora da Conceição existia desde o século XVI, onde
congregava a elite açucareira. Juntamente com a Irmandade de Misericórdia fundaram o
Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição, para clausura feminina, que serviu a
elite até a invasão holandesa 57.
53
Idem., p. 119.
54
VIANA, op. cit., p. 120.
55
Idem., p. 120.
56
Ibidem., p. 121.
57
BEZERRA, Janaina dos Santos; ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. “Pompa e circunstância” a um
santo pardo: São Gonçalo Garcia e a luta dos pardos por inserção social no XVIII. História Unisinos:
Janeiro/Abril 2012, 119. Disponível em:
http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/htu.2012.161.10/827. Acesso em 8 de janeiro de
2022.
153
Ainda de acordo com Viana é possível sugerir que a busca dos pardos por
novas devoções, em especial a devoção a Nossa Senhora da Conceição, estava
relacionada à legislação portuguesa que tratava da “impureza de sangue” ligada ao
“sangue mulato”, que promovia um estigma de ordem religiosa e “proto-racial”, que
estabelecia restrições às pretensões a cargos e honrarias aos descendentes de africanos.
A mestiçagem era vista como condição indesejável, um estigma que era passado de
geração em geração através do sangue. O estigma do sangue mulato espalhou pelo
tecido social entre os séculos XVII e XVIII, a partir do momento em que os mulatos
passaram a ser frequentemente identificados como “desordeiros”, “perturbadores da
ordem” “soberbos” e “arrogantes”, inadequados a ocuparem determinadas posições
sociais 58. Neste contexto o fato de os pardos buscarem a especial proteção de Nossa
Senhora da Conceição, a “rainha da pureza” de acordo com a narrativa de frei
Agostinho de Santa Maria tinha como possibilidade simbólica eliminar ou distanciar-se
do estigma da “impureza de sangue”, atribuído pela legislação e pelas práticas ligadas
ao discurso jurídico. A pureza de Maria imaculada, concebida sem pecado podia livrar
seus devotos pardos do estigma da “impureza” que simbolicamente os ligava ao
“sangue mulato”, considerado “impuro” e indesejável em alguns setores da sociedade
colonial 59.
Foram os franciscanos os principais promotores da crença na Imaculada
Conceição entre os fiéis leigos desde o período medieval, em suas pregações eles
afirmavam com veemência o poder ilimitado da Rainha do Céu junto ao seu Divino
filho como intercessora em prol dos pecadores 60. Foram também os franciscanos os
responsáveis pela introdução do culto de devoção ao beato Gonçalo Garcia, considerado
o primeiro santo pardo das Américas em meados do século XVIII, colocando em
questão o discurso da “pureza” ou da “impureza” dos mestiços no contexto colonial 61.
A primeira imagem do beato Gonçalo Garcia que chegou a América
portuguesa, entrou no Recife em 1745 por ocasião de um “grandioso festejo” religioso e
profano organizado pelos homens pardos. A questão da origem e cor do beato foram
motivos de inquietações, polêmicas e muitas discussões, o que tornou o evento uma
58
VIANA, op. cit., 7, p. 123.
59
Idem., p. 123.
60
Ibidem., p. 123.
61
Ibidem., p. 124.
154
grande manifestação de aclamação à cor parda 62. A imagem do beato chegou em Recife
por intermédio de um homem pardo chamado Antônio Ferreira, que ao vê-lo logo foi
informado que se tratava de um santo pardo, “um santo de sua cor”. Antônio conservou
a imagem em seu poder por alguns anos tentando convencer as pessoas do Recife de
que se tratava de um santo pardo, lançando a ideia de seu culto. Seu projeto não teve
sucesso, pois as pessoas “religiosas e doutas” não acreditavam que um santo natural da
Índia pudesse ser pardo 63.
Após a morte de Antônio Ferreira a imagem foi guardada no oratório dos
religiosos franciscanos de Santo Antônio daquela cidade, até que no ano de 1745, o
culto foi oficializado na Igreja de Nossa Senhora do Livramento dos Homens Pardos de
Recife. Foi realizado um grande festejo ao qual diversas irmandades foram convidadas a
consagração daquele novo culto, ou seja, a entronização do santo pardo Gonçalo Garcia.
No entanto as dúvidas sobre a sua origem e cor ainda pairavam no ar. Tal questão só
teve um desfecho final quando frei Antônio de Santa Maria Jaboatão 64, religioso
franciscano, natural do Recife ingressou na polêmica determinado a provar a origem e
cor do beato e que se tratava de fato de um santo pardo, dando assim maior peso a causa
dos pardos. Frei Jaboatão expos seus argumentos defendendo que beato Gonçalo Garcia
era pardo em um sermão que durou três horas durante a festa de consagração da imagem
do santo em 1745. Afirmou que “São Gonçalo Garcia nasceu Baçaim, costa do Malabar,
ao Sul de Goa, nasceu em ano posterior ao de 1533”, filho de pai português e mãe hindu
exercia a atividade de comerciante. “Mais tarde pediu o hábito e fez profissão de fé para
frade leigo” e juntou-se aos franciscanos na evangelização das terras do Oriente. Ao fim
62
Gonçalo Garcia foi canonizado em 1862, mas já era venerado como santo desde o século XVIII. VIANA,
Larissa. O idioma da mestiçagem... 2007, p. 124; BEZERRA, Janaina dos Santos; ALMEIDA, Suely
Creusa Cordeiro de. “Pompa e circunstância” a um santo pardo: São Gonçalo Garcia e a luta dos pardos
por inserção social no XVIII. História Unisinos: Janeiro/Abril 2012, 118-129. Disponível em:
http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/htu.2012.161.10/827. Acesso em 8 de janeiro de
2022.
63
VIANA, op. cit., p. 125; OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Santos pardos e pretos na América
Portuguesa: catolicismo, escravidão, mestiçagem e hierarquias se cor. Ediciones Universidad de
Salamanca / Stud. his., H.ª mod., 38, n. 1 (2016), p. 72.
64
De acordo com Viana Frei Jaboatão descendia das principais famílias de Pernambuco e era filho legitimo
do sargento-mor Domingos Coelho Meireles e de dona Francisca Varela. Em 1816, aos 21 anos de idade,
apresentou-se ao provincial franciscano como candidato ao noviciado, somente foi admitido após ter
apresentado atestado de “pureza de sangue” e ter sido aprovado em rigoroso exame de latim. Inicio seus
estudos no Convento de Paraguaçu, no Recôncavo Baiano, onde foi ordenado a sacerdote em 1725.
VIANA, op. cit., p. 125-6.
155
do século XVI foi designado para uma a missão como intérprete no Japão, onde “veio a
ser um dos 26 mártires do Japão, crucificado em Nagasaki no ano de 1597” 65.
A questão do reconhecimento do martírio de Gonçalo Garcia não era um
problema para os “religiosos e doutos” que não aceitavam o seu culto junto aos pardos.
A questão estava na desconfiança de que realmente ele fosse um santo pardo. No
sentido de esclarecer todas as dúvidas em relação à cor do beato, frei Jaboatão buscou
definir o que era pardo com base no Vocabulário portuguez latino de dom Raphael
Bluteau afirmando que pardo era o individuo “nem branco nem preto”, mas que
participava das duas cores. frei Jaboatão buscava afirmar que a mãe de Gonçalo Garcia,
sendo natural de Baçaim, tinha a cor “preta e negra”, pois toda aquela região ao Sul de
Goa, de acordo com os relatos dos viajantes, era chamada de reino de Malabar e “todos
os malabares eram negros e os mais negros de toda a Índia”. “Assim, sendo Gonçalo
Garcia filho de pai português e ‘mãe negra’ natural de Baçaim, estaria em principio
comprovado que ele era pardo” 66.
Mas a questão era que havia quem dissesse que não bastava descender da
cor branca e da cor preta para ser pardo, era necessário ter o “cabelo retorcido e
descender de um negro natural da Etiópia”. Em resposta a tais questionamentos frei
Jaboatão utilizou-se dos relatos de missionários e tratados antigos, argumentando que a
65
LINS, Rachel Caldas; ANDRADE, Gilberto Osório de. Elogio do homem pardo. Ciência & Trópico.
Recife: Fundação Joaquim Nabuco. 12(1): 79-105, jan. /jun, 1984, pp. 80-1, 85. Disponível em:
file:///G:/ladic,+v12n1_5.pdf. Acesso em 15 de janeiro de 2022; VIANA, op. cit., p. 126; BEZERRA,
Janaina dos Santos; ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. “Pompa e circunstância” a um santo pardo:
São Gonçalo Garcia e a luta dos pardos por inserção social no XVIII. História Unisinos: Janeiro/Abril
2012, 119; São Gonçalo Garcia Mártir no Japão, religioso da Primeira Ordem (1557-1597). Canonizado
por Pio IX em 8 de junho de 1862. Fonte: “Santos Franciscanos para cada dia”, Ed. Porziuncola.
Disponível em: https://franciscanos.org.br/carisma/calendario/sao-goncalo-garcia#gsc.tab=0. Acesso em
12 de janeiro de 2022; SANGENIS, Luiz Fernando Conde. Aula magistral: frei Jaboatão e a exaltação da
cor parda na festa do beato Gonçalo Garcia no Recife setecentista. EDUR. Educação em Revista. 2017, p.
1. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/edur/a/PTVhX4hPNwJdRvDRXBLnXFr/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 25 de
janeiro de 2022.
66
Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, “Discurso histórico, genealógico, político e economiástico,
recitado em nova celebridade que dedicaram os pardos de Pernambuco ao santo de sua cor, o Besto
Gonçalo Garcia, na sua Igreja do Livramento do Recife, em 12 de setembro de 1745”. p. 187. Apud.
VIANA, op. cit., p. 127; LINS, Rachel Caldas; ANDRADE, Gilberto Osório de. Elogio do homem pardo.
Ciencia & Trópico. Recife: Fundação Joaquim Nabuco. 12(1): 79-105, jan. /jun, 1984, p. 86-7.
Disponível em: file:///G:/ladic,+v12n1_5.pdf. Acesso em 15 de janeiro de 2022; ARAÚJO, Rita de Cássia
Barbosa de. A redenção dos pardos: a festa de São Gonçalo Garcia no Recife, em 1745. In JANCSÓ,
István; KANTOR, Iris (org.). Festa: Cultura e Sociabilidades na América Portuguesa. São Paulo: Editora
Universidade de São Paulo: EDUSP: FAPESP: Imprensa Oficial, 200, v. , p. 424-7; SANGENIS, Luiz
Fernando Conde. Aula magistral: frei Jaboatão e a exaltação da cor parda na festa do beato Gonçalo
Garcia no Recife setecentista. EDUR. Educação em Revista. 2017 p.6 Disponível em:
https://www.scielo.br/j/edur/a/PTVhX4hPNwJdRvDRXBLnXFr/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 25 de
janeiro de 2022.
156
Índia era a Etiópia dos antigos e que primeiro houve negros na Índia, e que de lá
migraram para a África. Assim, frei Jaboatão reafirmava a todos que Gonçalo Garcia
era “pardo legitimo” por ser filho de pai português e mãe “etíope natural de Baçaim” 67.
Com isso, frei Jaboatão enaltece a cor parda ao argumentar que “[...] os mistos [...] são
mais perfeitos de que as partes de que resultam, porque participam da perfeição destas
partes. E aqui temos já por princípio natural, a cor parda mais perfeita que a cor preta e
branca [...]” 68.
Ainda de acordo com frei Jaboatão, o fato de o “primeiro santo pardo” da
Igreja ter morrido como mártir colocava os pardos em um “grau mais perfeito e
virtuoso”, pois na hierarquia da Igreja os santos mártires tinham um grau superior. Além
de pertencer à ordem franciscana como irmão leigo e evangelizador, o exemplo de
virtude oferecido pelo martírio de Gonçalo Garcia o credenciara a tornar-se um modelo
de santidade definido, não por acaso, por um reconhecido religioso franciscano. O
exemplo de virtude oferecido por Gonçalo Garcia salvaguarda do cristianismo e da
missão evangelizadora deveria ser imitado pelos fiéis pardos. Alguns modelos negros de
santidade já estavam consolidados no Brasil colonial quando o culto e devoção a São
Gonçalo Garcia surgiu. Os franciscanos tiveram um papel destacado desde o século
XVII, na promoção do culto a São Benedito, um santo “preto” que era cultuado ao lado
de Nossa Senhora do Rosário, mas foi no século XVIII que houve uma maior dedicação
na promoção da difusão de modelos de santidade que eram preferenciais, mas não
exclusivos dos africanos e seus descendentes. Os carmelitas não vão medir esforços na
difusão do culto a Santo Elesbão e Santa Efigênia como modelo ideal de santidade que
deveria ser imitados pelos africanos e seus descendentes. Assunto que discutiremos
mais a frente.
Evidentemente, interessava tanto ao poder temporal quanto ao poder
espiritual o controle das irmandades de pretos africanos e seus descendentes. No
entanto, podemos relativizar que as medidas de controle sobre as confrarias de pretos
67
LINS, Rachel Caldas; ANDRADE, Gilberto Osório de. Elogio do homem pardo. Ciencia & Trópico.
Recife: Fundação Joaquim Nabuco. 12(1): 79-105, jan. /jun, 1984, pp. 88. Disponível em:
file:///G:/ladic,+v12n1_5.pdf. Acesso em 15 de janeiro de 2022; SANGENIS, Luiz Fernando Conde. Aula
magistral: frei Jaboatão e a exaltação da cor parda na festa do beato Gonçalo Garcia no Recife
setecentista. EDUR • Educação em Revista. 2017, p. 6. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/edur/a/PTVhX4hPNwJdRvDRXBLnXFr/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 25 de
janeiro de 2022
68
LINS, Rachel Caldas; ANDRADE, Gilberto Osório de. Elogio do homem pardo. Ciencia & Trópico.
Recife: Fundação Joaquim Nabuco. 12(1): 79-105, jan. /jun, 1984, p. 81; Disponível em:
file:///G:/ladic,+v12n1_5.pdf. Acesso em 15 de janeiro de 2022; Frei Jaboatão. Discurso histórico... p. 99.
Apud. VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem... 2007, p. 127.
157
não foram tão eficazes assim, haja vista que muitas dessas organizações eram eretas
primeiro e somente depois é que irmãos pretos se dirigiam ao poder eclesiástico e civil
para autoriza-las. Veja por exemplo o caso da Irmandade do Glorioso Santo Antônio da
Mouraria dos Homens Pretos, fundada no Rio de Janeiro em 1716, por escravos do
Convento de Nossa Senhora do Carmo. Em 1812, se reuniram para redigir um novo
Compromisso. Afirmavam que o antigo Compromisso, de 1719, além de já ter
“caducado pelo tempo”, nunca havia sido aprovado pelo rei de Portugal, vindo daí a
necessidade de uma reforma 69.
Indubitavelmente, as irmandades vão buscar meios para conquistarem
autonomia junto aos poderes civil e eclesiástico, apesar de estarem em meio às disputas
entre Estado e Igreja e em muitos momentos sob a determinação e/ou disposição da
união de ambos os poderes, as irmandades constituíam-se em espaços privilegiados de
sociabilidades e solidariedades que possibilitava a construção da autonomia entre os
pretos africanos e seus descendentes, livres, libertos e escravizados.
Quando a primeira Prelazia de São Sebastião do Rio de Janeiro foi elevada a
condição de Diocese, em 16 de novembro de 1676, pela Bula do Papa Inocêncio XI,
“Romani pastoralis sollicitudo” 70, passando a Sé a funcionar na igreja de São Sebastião
do morro do Castelo, começam os desentendimentos entre o cabido e a Irmandade do
Rosário. Entre os motivos determinantes da questão, diz Monsenhor Pizarro de Araújo,
estava à obrigação de contribuir com determinada quantia para o cabido, por ter como
capelão um dos capitulares, e ter de pagar pelas covas ocupadas pelos cadáveres de seus
confrades. Medida em relação a qual não se conformavam os irmãos de Nossa Senhora
do Rosário e São Benedito, que alegavam estarem isentos de tudo isso pelo alvará de 14
de janeiro de 1700. Tal situação motivou a irmandade a buscar meios para construir sua
própria igreja 71.
Com o crescimento da cidade em direção à várzea ao longo do século XVII,
o núcleo urbano do morro do Castelo entra em decadência. Com a criação da freguesia
da Candelária, em 1634, esta passa a fazer o atendimento religioso da população da
várzea. Os homens bons e suas famílias passam a se reunir nas capelas de suas
69
Compromisso da Irmandade do Glorioso Santo Antônio da Mouraria dos homens pretos. ANRJ. Códice
825 p. 1.
70
CARVALHO, Arlindo José. Templos Católicos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2009, p.
27.
71
PIZARRO e ARRAUJO, José de Souza. Memórias Históricas do Rio de Janeiro e das províncias anexas à
jurisdição do Vice-Rei do Estado do Brasil. Rio de Janeiro, 1822. Typografia de Silva Porto, tomo VI –
capítulo 1 – p.61.
158
72
Cf. SOARES. Mariza de Carvalho. Os Devotos da Cor... p. 135.
73
Antes da obra terminada e mesmo com autorização real, os pretos de Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito enfrentaram a oposição do governador Antonio Brito de Meneses para construírem a sua igreja,
em 1719. No objetivo de resolver tal impasse, os irmãos enviaram uma representação ao rei. Em resposta,
o rei ordena ao governador que não impedisse a irmandade de construir sua igreja, pois não havia motivo
para tal, pois ele os havia concedido licença através da resolução de 14 de janeiro de 1700, e quando
houvesse alguma razão para impedir a obra, primeiro ele deveria apresentar os motivos a ele. ANRJ,
Códice 952, vol.20 (1717-1718) Cartas Regias, Provisões, Alvarás e avisos.
74
PIZARRO e ARRAUJO, op. cit., p. 53; BARBOSA, Diego Santos. A cor da devoção: entre espaços e
identidades na irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos no Rio de
Janeiro do século XVIII. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro, 2020, pp. 57 a 75.
159
determinações do bispo e das capitulares de forma pacifica e tão logo houve a instalação
da Sé recomeçaram os conflitos. Os irmãos do Rosário não estavam dispostos a abrir
mão do espaço conquistado e se utilizaram de todos os meios que estavam ao seu
alcance para reverter à situação ao longo dos setenta e um anos em que a Sé ficou
instalada em seu templo. Foram frequentes os conflitos entre o pároco e os irmãos do
Rosário, pois estes recusavam-se a prestar obediência ao pároco e à Freguesia da Sé.
Faziam suas celebrações sem o seu consentimento, todas as funções eram realizadas por
seus capelães, tais como: celebrar missas ordinárias da irmandade, confessar os irmãos,
rezar e cantar, realizar suas devoções dentro da igreja nos dias destinados a tais atos pela
religião, assistir aos moribundos, acompanhar a sepultura os falecidos. Determinava,
ainda, como seria o seu oratório, quem celebraria as missas de suas festividades,
independente da obediência e respeito paroquial 75. Após achegada da Família real em
1808, a Sé foi transferida para a igreja do Carmo em 15 de julho do mesmo ano por
determinação de D. João 76.
A tentativa de tomar as igrejas dos pretos africanos e seus descendentes vai
além do objetivo de controlar suas instituições, tem a ver com a sua estrutura física,
comodidade, beleza e imponência de seus templos que despertaram o interesse e cobiça
das autoridades eclesiásticas 77. Segundo o próprio cabido da Sé do Rio de Janeiro, a
igreja do Rosário era a mais apropriada para servir de Sé era a dos irmãos pretos de
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito 78. Frei Agostinho de Santa Maria descreveu a
igreja construída pelos irmãos pretos de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito
como magnifica e suntuosa que viria a ser um dos maiores templos do Rio de Janeiro,
como resultado da devoção dos irmãos pretos ajudados por Nossa Senhora do Rosário.
Quando os eclesiásticos e os cônegos perceberam que os pretos haviam construído a sua
igreja, com tanta grandeza e formosura foram tomados pelo desejo de tomar a igreja dos
pretos 79.
75
AHU. Rio de janeiro, Caixa 36. Doc. 69. s/d.
76
MAURICIO, Augusto... p. 134.
77
REGINALDO, op. cit., p.143.
78
PIZARRO e ARRAUJO, op. cit., p. 52 e 53; QUINTÃO, Antonia Aparecida. Lá Vem o Meu Parente: as
irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em Pernambuco, (Século XVIII) – São Paulo:
Annablume: Fapesp, 2001, p. 145.
79
SANTA MARIA, Frei Agostinho de. Santuário Mariano, e história das imagens milagrosas de Nossa
Senhora e das milagrosamente apparecidas, que se venerão em todo o Bispado do Rio de Janeiro, &
Minas, $ em todas as Ilhas do Oceano. Lisboa Occidental na Officina de Antonio Pedrozo Galram. Tomo
X, Tit VIII. 1723, pp. 24 e 25.
160
80
FAZENDA, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. RIHGB, Tomo 86 – vol. 140, P.
348.
161
General Câmara, anteriormente rua do sabão. Sua localização era próxima ao Cemitério
do Rocio da cidade ou dos mulatos, criado em 1613 devido às grandes epidemias na
cidade, sobretudo, para enterrar escravos. De acordo com o mesmo autor, nesse ano de
1613, após um longo período de chuvas, houve um período de seca que durou 96 dias,
no qual irrompeu uma violenta epidemia de varíola na cidade, nas proximidades deste
cemitério, localizado no meio do antigo campo da cidade 81.
Era uma igreja pequena (veja figura 1), com duas janelas no coro, um
frontão reto, uma torre do lado direito, três altares: o de São domingos, o de Nossa
Senhora da Conceição o de Nossa Senhora das Dores. Na Sacristia havia o da Senhora
Santa Ana. De acordo com Maria Aparecida Quintão, o capítulo 1 do compromisso
desta irmandade estabelecia que ela aceitava como confrade todos os pretos de Angola
ou de qualquer ponto da Guiné 82. Pouco sabemos sobre essa irmandade que teve sua
igreja arrasada em 1943, por ocasião da construção da Av. Presidente Vargas. A
imagem de São Domingos foi levada para a igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia
pelos irmãos desta confraria, que se dirigiram ao templo em procissão para buscar a
imagem e abrigá-la na rua da Alfandega, onde permaneceu juntamente com as outras
imagens até serem transferidas para a nova igreja daquele Santo, na rua José Higino, na
Tijuca 83.
81
FAZENDA, Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro... p. 349.
82
QUINTÃO, op. cit., p. 156.
83
MAURICIO, Augusto. Igrejas Históricas, p.192. O governo indenizou a ordem, sendo a construção da
nova igreja iniciada em 1967. Além da indenização e o trabalho da irmandade, foi fundamental a
colaboração da comunidade, que ajudou com campanhas para arrecadação de recursos. A igreja ficou
pronta em 19 de maio de 1968, e o Templo foi elevado à categoria de Igreja Matriz com a criação da
paroquia de São Domingos de Gusmão pelo decreto de sua Eminência, o Cardeal D. Jaime de Barros
Câmara, de 19 de maio de 1968. Houve vários conflitos entre a irmandade e o primeiro pároco, padre
Lucas Rebelo Malaquias, por causa da arrecadação da paroquia que ficava sob a administração da
irmandade. Por breve período de tempo o padre conseguiu autorização para nomear os membros da
irmandade, mas mesmo com tal medida os conflitos não sessaram. O pároco seguinte, padre Alfir Barreto
de Araújo, ciente da situação exigiu, que para tomar posse, a irmandade teria que sair, levando seus
respectivos bens. Assim os irmãos de são domingos ficaram mais uma vez sem a sua Igreja.
CARVALHO, Arlindo José de. Templos Católicos do Rio de Janeiro. Op. Cit. p. 309.
162
FONTE: Augusto Malta, Rio de Janeiro (entre 1903 e 1904) Biblioteca Nacional digital.
Disponível em:
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon404110/icon13293
05.jpg - Acesso em 16/04/2019
que tinha o direito de posse daquele terreno há quase um século, que compreendia as
vinte seis braças de testada com vinte seis de fundo que tinha sido doada como esmola
pelo Senado da Câmara, juntamente outro terreno que havia sido doado por esmola pelo
benfeitor Francisco Gonçalves Casado, cujos papeis haviam sido consumidos pelo
“lapso de tempo”. Os irmãos alegavam que por conta disso não tinham certeza se a
pequena porção de terra era na frente ou nos fundos da igreja 84. Essa querela vai se
prolongar por todo o século XVIII e terá fim apenas no século XIX. Tal situação sugere
que a irmandade de São Domingos talvez estivesse ocupando terras além daquelas
concedidas em esmola pelo Senado da Câmara. No entanto, em 1791, a irmandade
consegue uma Resolução Régia, para garantir o seu direito de posse tal qual foi
estabelecido na carta de aforamento de 1706 e vai a juízo para anular os aforamentos
feitos pelo Senado da Câmara. Porém, não apresentando documentos suficientes para
garantir sua posse antiguíssima, a irmandade perde a disputa. A sugestão dada foi que o
terreno fosse devassado e ali se construísse uma praça pública e que se encontrasse um
outro lugar para o cemitério fora da cidade 85.
Criada em 1740, a irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa ocupava um
altar da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, antes
de construir a sua igreja. Padroeira dos escravos, a invocação de Nossa Senhora da
Lampadosa tem origem na imagem da Virgem que era venerada na Ilha de Lampadosa,
no Mar Mediterrâneo, entre a Sicília e o Norte da África. Em seus primórdios, era
constituída por um grupo de pretos escravos de procedência da Costa da Mina.
Permaneceram na igreja dos irmãos de Nossa Senhora do Rosário e São Bendito até
1748, quando receberam do casal Pedro Coelho da Silva e Tereza de Jesus Almeida um
terreno que media seis braças de frente e vinte e cinco de fundos, conforme consta na
escritura de 7 de fevereiro de 1748, onde edificaram a sua igreja, com licença concedida
por frei D. Antônio do Desterro 86.
Ao iniciar a obra, os irmãos solicitaram ao Bispo 87 permissão para que o
local fosse benzido, tornando-o digno de receber os alicerces de sua capela. A
construção do templo ocorreu com grade morosidade. A capela-mor só foi benzida pelo
bispo em 1772, quando passaram a ser realizados os cultos religiosos enquanto
terminava o corpo da igreja.
84
AHU, rio de Janeiro, Caixa 200, doc. Nº 81, Ant. a 1802/06/28.
85
Idem.
86
MAURICIO, op. cit., p. 91.
87
Idem., p. 93
164
88
Compromisso da irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa. Arquivo da Torre do Tombo, Chancelaria
da Ordem de Cristo. Livro 291. Capítulos 5º e 16º.
89
Compromisso da irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa... capitulo 4º
90
Compromisso da irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa... capitulo 17º.
91
MAURICIO, op. cit., p. 185; SOARES, Mariza de Carvalho. O Império de Santo Elesbão na cidade do
Rio de Janeiro, no século XVIII. Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2002, pp. 59-83. p. 64.
92
Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Museu do Negro, p. 1.
165
Em 1740 93, um grupo de devotos desses dois oragos liderados, por Antônio
Bastos Maia, Francisco das Neves, Antonio Pires Santos e Francisco Vieira, resolve
levar as imagens para um templo “onde adoração seria mais conveniente e adequada” 94.
Para isso, os transportaram para a Igreja de São Domingos. Após instaladas as imagens
dos dois santos, os irmãos resolvem pedir ao bispo do Rio de Janeiro, D. Antônio de
Guadalupe, para instituírem sua irmandade sob a invocação dos ditos santos 95. O bispo
consulta o vigário da Freguesia da Candelária sobre tal assunto, antes de conceder-lhes
tal provisão. Em 23 de abril de 1740, D. Antônio de Guadalupe recebeu a seguinte
resposta do vigário da Freguesia da Candelária 96.
93
FARIA, Sheila de Castro Sinhás Pretas, Damas Mercadoras. As pretas minas nas cidades do Rio de
Janeiro e de São João Del REy, (1700-1850). Niterói: Universidade Federal Fluminense (Tese para
Professor Titular), 2004.
94
MAURICIO, op. cit., p. 185.
95
Idem., p. 185.
96
Idem., p.185.
97
Carta do Vigário da Candelária ao bispo do Rio de Janeiro, D. Antônio de Guadalupe, transcrita por
MAURICIO, op.cit., p. 185; ______ Templos Históricos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Grafica
Laemmert, Limitada. s/d, p. 215.
98
SOARES, Mariza de Carvalho. Os devotos da cor... p. 169.
166
99
BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder, São Paulo: Ática, 1986, p. 25-6.
100
No dicionário de Antônio Moraes e Silva, acidente é definido como: não é essencial, de nenhuma
substância. SILVA, Antônio de Moraes e. Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa: na Typografia de M.
P. de Lacerda. 1823, tomo primeiro p. 24. De acordo com Anderson Oliveira, “Tal definição estava
intimamente marcada por uma concepção fundamentada na metafisica aristotélica. O discurso sobre a cor
desenvolvido pelos carmelitas estava presente tanto na Escolástica Medieval quanto na Escolástica
Barroca que estavam fundamentadas numa determinada leitura da obra de Aristóteles. Na metafisica
Aristóteles busca fundamentar a teoria do ser e faz três distinções básicas, a primeira delas é a distinção
entre essência e acidente. A essência seria tudo aquilo “que é” [...]. o acidente corresponde as coisas
mutáveis, ou variáveis [...]. Durante a Idade Média, São Tomas de Aquino se apropria desta
fundamentação [...] para discutir a questão da cor. Segundo Tomas de Aquino, a essência da humanidade
é única e divina, pois o homem foi criado a imagem e semelhança de Deus. O homem comporta além da
essência, a matéria individual e os acidentes que o individualizam. A noção de humanidade não
compreende, portanto, a carne, os ossos, a brancura ou a negritude. Esses atributos são dados como forma
de individuação. Branco e negro são, deste modo, acidente que constituição uma diferença específica[...].
a visão acidental em relação à cor não estava desprovida, mesmo em Tomas de Aquino, de uma
concepção hierárquica entre branco e negro. Tais cores não tinham estatuto equivalentes. O branco estava
na esfera da verdade, traduzindo a santificação. O negro estava na esfera do falso, um contrário imperfeito
para o branco. OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção Negra: santos pretos e a catequese no
Brasil colonial. Rio de Janeiro: Quartet: FAPERJ, 2008, p. 184-5
167
procedimentos e suas virtudes. Nesse sentido, a cor preta como acidente poderia ser
superado pelas virtudes e pelos dogmas religiosos. O mesmo procedimento foi utilizado
no discurso franciscano no processo de difusão da “santidade da cor”. Frei Apolinário
da Conceição escrevendo sobre a vida de São Benedito afirma que apesar de ser preto,
ele foi beatificado e canonizado primeiro que outros franciscanos também virtuosos 101.
Era importante que os africanos e seus descendentes entendessem, sem
qualquer sombra de dúvida, que os santos eram negros. A cor preta representava um
castigo, mas que este poderia ser superado com uma vida virtuosa de acordo com os
preceitos da fé. Santo Elesbão e Santa Efigênia eram pretos e africanos, aqueles que
tinham a mesma origem ou fossem da mesma cor, a exemplo dos santos, poderiam
também ser virtuosos. O Frei carmelita José Pereira de Santana procurou diferenciar os
“pretos” dos maometanos, afirmando que Elesbão não se confundia com eles. Na
verdade tal distinção começou a ser estabelecida a partir dos primeiros contatos dos
portugueses com os demais povos africanos. Orientada por objetivos de catequese, tal
distinção em alguns casos tendia a valorizar mais os “gentios” em relação aos mouros,
pois acreditava-se que a catequese dos “pretos” poderia render mais frutos. Tais
questões aproximavam-se de uma perspectiva sociocultural difundida tanto em Portugal
quanto na sociedade colonial da América portuguesa, em que a cor designava lugar
social, ou seja, a caracterização do individuo como preto ou pardo, mesmo sendo forro
ou livre, significava um passado ou antepassado africano e escravo 102.
Era desejo da igreja que os “pretos” seguissem os exemplos de Elesbão e
Efigênia, serem virtuosos e obedientes a Deus e à Igreja e seus ensinamentos, pois
assim seriam merecedores das glorias divinas. Da mesma forma o discurso franciscano
deixava claro que São Benedito era um exemplo a ser seguido pelos “pretos.” Assim,
propor aos pretos um santo de sua própria condição os tornaria mais fervorosos em sua
devoção, ao mesmo tempo em que afirmava a importância da catequese dos negros
101
OLIVEIRA, op. cit., p. 89, 181 a 191. Sobre a cor como um lugar social, ver FARIA, Sheila de Castro. A
colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp.
135-9; MATTOS, Hebe Maria. A escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo
Regime em perspectiva atlântica. In FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda Baptista e GOUVEA,
Maria de Fátima Silva, organizadores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 143
102
OLIVEIRA, op. cit., p. 89, 181 a 191. Sobre a cor como um lugar social, ver FARIA, Sheila de Castro. A
colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp.
135-9; MATTOS, op. cit., p. 143.
168
103
OLIVEIRA, op. cit., p. 89, 181 a 191. Sobre a cor como um lugar social, ver FARIA, Sheila de Castro. A
colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp.
135-9; MATTOS, op. cit., p. 143.
104
Provisão em que D. Frei Antonio de Guadalupe, Bispo do Rio de Janeiro autoriza a constituição da
Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia em 7 de abril de 1740. Compromisso da Irmandade dos
Santos Elesbão e Efigênia de S. Domingos d´esta Cidade do Rio de Janeiro. Museu do Negro. Documento
1.
105
MAURUCIO, op. cit., p. 185. Sobre este assunto cf. OLIVEIRA, Anderson José machado de. Devoção e
Caridade Irmandades Religiosas no Rio de Janeiro Imperial (1840-1889). Dissertação de Mestrado.
Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1995, pp. 129-171; ______. Devoção Negra: santos pretos e a
catequese no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Quartet: FAPERJ, 2008, p. 258.
169
106
Provisão de confirmação de quatro capítulos a favor da Irmandade de Santo Elesbão e Sta. Efigênia.
Compromisso da irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia – Documento nº 3. p. 3. Museu do Negro.
107
Idem, documento nº 9. p. 4.
108
Ibidem, documento nº 10. p. 5. Cf. OLIVEIRA, op. cit., p. 259.
109
OLIVEIRA, op. cit., p. 259. Em meados do século XVIII desenvolveu-se uma nova conjuntura sob o
ponto de vista do poder régio para as irmandades e confrarias com a instauração da administração
pombalina. Por meio desta, a Coroa passou a exercer um maior controle sobre as intuições leigas de seus
domínios ultramarinos. Deste modo, a partir de 1765, todas as irmandades estavam obrigadas a enviar
seus compromissos para a Mesa de Consciência e Ordens para sua apreciação e aprovação. BOSCHI,
Caio César. Os Leigos e Poder... p.116; OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Irmandades Religiosas
na Época Pombalina: algumas considerações. In FALCON, Francisco José Calazans, RODRIGUES,
Claudia (Organizadores). A “Época Pombalina” no mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2015, p. 351.
110
BOSCHI, op. cit., pp.121-2. De acordo com Larissa Viana, a política regalista era marcada pelas estreitas
relações entre Igreja e Estado nos países ibéricos, observável, por exemplo, através dos direitos de
padroado e beneplácito régio. Pelo menos desde o século XV, pertenceu aos soberanos portugueses a
atribuição de indicar candidatos para os cargos eclesiásticos, privilégio ao qual somava o do beneplácito
régio (reforçado durante século XVIII), que impedia a adoção de bulas, breves ou despachos papais em
Portugal sem prévio acordo com a Coroa. VIANA, op. cit., pp. 173.
111
BOSCHI, op. cit., p. 118-19
112
Provisão expedida pelo Rei D. José autorizando o compromisso da irmandade de S. Elesbão e Santa
Efigênia. Compromisso da Irmandade dos Santos Elesbão e Efigênia. Museu do Negro. Documento nº 11
170
Fica patente nas palavras do Rei neste ano de 1767 a autoridade do Estado
sobre a Igreja, através do padroado personificado na figura do rei, grão-mestre da
Ordem de Cristo. A partir de então, a aprovação dos compromissos das irmandades
estava sob jurisdição da Coroa, conforme diz o texto, que por “ignorância” teriam
confirmado seu compromisso apenas com o bispado, “cuja incompetência reconhecendo
agora” enviaram o compromisso a presença real para aprovação. O rei aproveita para
afirmar sua autoridade sobre o poder eclesiástico afirmando que aprovação dos
compromissos das irmandades compete ao poder real. Como os irmãos estavam
implorando sua real piedade, de acordo com a resposta do Desembargador Procurador
Geral das Ordens, e que para o bem dos Santos Elesbão e Ephigenia, lhes confirmaria o
compromisso com determinadas modificações, tais como: retirar a menção à diferença
de naturalidade dos pretos estabelecida no capitulo 10, voltaremos a este assunto mais a
frente; estabelecimento de novos valores das entradas, esmolas do juiz, que deveria ser
proporcional ao valor dos demais oficiais da mesa; determinação de que as eleições do
113
Cf. OLIVEIRA, Anderson José Machado de. As irmandades religiosas na Época Pombalina algumas
considerações..., 2015, p. 352. Cf. SOARES, op. cit., 2000, p. 195 e 196.
114
Compromisso da Irmandade dos Santos Elesbão e Efigênia... Documento nº11. p. 5.
171
120
OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção Negra, op. cit., p. 285-288; OLIVEIRA, Anderson
José Machado de. As irmandades religiosas na Época Pombalina, op. cit., p. 350
121
Cf. MAURICIO, op. cit., p. 187.
122
Cf. LARA, op. cit., P. 51-52; VIANA, op. cit., p. 147.
123
TEIXEIRA, Claudia Barbosa. A Territorialidade das Ordens Leigas e a Configuração Urbana do Centro
da Cidade do Rio de Janeiro no Século XVIII. Espaço e Cultura, Uerj, RJ, N. 37, p.179-156, Jan./Jun. de
173
construídos e embelezados pelos fieis: novas ruas eram abertas, casas comerciais e
residências iam sendo construídas ao redor, pois muitos queriam morar perto de suas
devoções. A vida social naqueles logradouros tornou-se rica e intensa com as muitas
festas e procissões que ocorriam o ano inteiro. Dessa forma, as irmandades contribuíram
para a expansão da cidade, constituindo-se em vetores de expansão da urbe carioca,127
conforme se pode observar na planta da cidade de 1767(ver mapa 14) 128.
LEGENDA
1– Irmandade São Braz, no Mosteiro de São Bento.
2– Irmandade de Nossa Senhora do Amparo, na igreja de São José.
3– Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte e Assunção, no Convento do
Carmo.
4– Sé Velha.
127
Cf. CAVALCANTI, op. cit., p. 210; VIANA, op. Cit., p. 144-45.
128
MAURICIO, op. cit., p. 205; Dados da planta obtidos de VIANA, op. cit., p. 147.
175
129
MOTT, Luiz. Rosa Egipicíaca: Uma Santa Africana no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S/A, 1993,
p. 239-241.
130
Relato do capitão James Cook. In visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos, 1831-1800.
(org.) FRANÇA, Jean Marcel de Carvalho. EDUERJ; Livraria José Olympio Editora S.A, 1999, p. 133
176
Relata ainda o autor que a luz gerada em uma procissão era tanta, devido ao
número excessivo de velas, que os tripulantes do seu navio chegaram a pensar que a
cidade estava em chamas 132. O tenente Juan Francisco de Aguirre chegou ao Rio de
Janeiro em 10 de março de 1782, a bordo da embarcação portuguesa Santíssimo
Sacramento. O espanhol permaneceu na cidade apenas 25 dias, mas seu relato não é
apenas fruto dessa pequena estadia. Aguirre consultou informes portugueses e leu
narrativas de outros viajantes estrangeiros que haviam passado pela cidade e trabalhou
cuidadosamente seus apontamentos, compondo uma das mais belas descrições sobre a
cidade do Rio de Janeiro feita por estrangeiros. No que diz respeito às expressões da
religiosidade no cotidiano da cidade, o espanhol relatou que os habitantes do Rio de
Janeiro pensavam ser o povo mais devoto do mundo católico:
131
Relato do capitão James Cook. In FRANÇA, Jean Marcel de Carvalho. (org.) visões do Rio de Janeiro
colonial: antologia de textos, 1831-1800. EDUERJ; Livraria José Olympio Editora S.A, 1999, p. 133.
132
Relato do capitão James Cook. In FRANÇA, op. cit., p. 133
177
133
Relatos do tenente Juan Francisco Aguirre. In FRANÇA, op. cit., pp. 163-4.
134
Relatos de John Barrow. In FRANÇA, op. cit., p. 223-4.
178
Percebemos que os relatos dos viajantes que por aqui passaram entre o
século XVIII e a primeira metade do século XIX são excelentes fontes para
entendermos as relações sociais, políticas e religiosas, muito embora tenhamos que
observar os devidos preconceitos, estereótipos e o sentimento de superioridade
presentes em suas narrativas. O que fica bem visível na exposição dos missionários
ingleses da London Missionary Society que, ao descrever as práticas religiosas no
cotidiano da cidade, fizeram uma crítica contundente, tanto no que diz respeito ao
135
Relatos de John Barrow. In FRANÇA, op. cit., p. 224.
136
Relatos dos missionários da London Missionary Society. In FRANÇA, op. cit., pp. 238-242.
179
137
Relatos dos missionários da London Missionary Socieity. In FRANÇA, op. cit., p. 240
138
Relatos dos missionários da London Missionary Socieity. In FRANÇA, op. cit., p. 239, 3º parág.
139
Relatos dos missionários da London Missionary Socieity. In FRANÇA, op. cit., p. 240.
140
Relatos dos missionários da London Missionary Socieity. In FRANÇA, op. cit., p. 242. Para um estudo
sobre os relatos dos viajantes protestantes sobre a morte. Cf. CORDEIRO, Gabriel Cavalcante. Caixões
Esplêndidos, Costume Abominável: identidade e alteridade estrangeira perante a morte no Brasil (1805 –
1886). Dissertação de Mestrado. UNIRIO, 2015
141
As Cartas Régias autorizavam a alforria em casos de crueldade do senhor para com seus escravos. Um
Decreto Real de 21 de julho de 1702 ordenou julgar breve e sumariamente na Relação da Bahia uma
180
queixa sobre crueldade de um senhor para com sua escrava. Autorizava os juízes a punirem a réu como
julgassem digno, obrigando-o a vender as escravas que tinha e declarando-o inábil para possuir outros
escravos. QUINTÃO, op. cit., p. 136.
142
REGINALDO, op. cit., pp. 51-54
143
PENTEADO, Pedro. As confrarias portuguesas na época moderna problemas, resultados e tendências da
investigação. LUSITANIA SACRA, 2ª série, 7 (1995), pp. 28, 30.
144
Nos capítulos 22 e 23 do compromisso desta confraria encontrava-se as disposições referentes à atuação
da confraria nos processos de alforria dos irmãos cativos, que podiam depositar seu dinheiro aos cuidados
da mesa diretora, para que fosse guardado até que se alcançasse a soma necessária para a compra da
liberdade; a irmandade podia em certos casos assumir a tarefa de angariar esmolas, até o valor de 500
réis, para completar a alforria de membros com os quais tinha “muita obrigação”. Cf. VIANA. Op. Cit. p.
153
145
Petição da Irmandade de São Benedito e N.S. de Guadalupe sita no Convento de São Francisco de
Lisboa, 1778. Pedem os mesmos privilégios das irmandades do Rosário dos Homens pretos de Lisboa,
Maço 1345, doc. 19. Anexos: Certidões dos privilégios concedidos em cartas e alvarás as Irmandades do
Rosário dos Conventos de São Domingos, do Salvador, da Trindade, de Santa Joana, da Graça e de São
Francisco de Évora. IAN/TT, Desembargo do Paço, Maço 1345, doc. 19. Apud. REGINALDO. Op. Cit.
p. 52
181
146
Parecer da Mesa do Desembargo do Paço à respeito da petição da Irmandade de São Benedito e N. S. da
Guadalupe, ereta no Convento de São Francisco da cidade de Lisboa, 03-03-1779. IAN/TT, Maço 2109,
doc. 23. Apud. REGINALDO, op. cit., p. 52.
147
LAHON, Didier. “As irmandades de escravos e forros” in: Os Negros em Portugal, p. 130. Apud.
REGINALDO, op. cit., 53.
148
REGINALDO, op. cit., p. 53-54.
182
também pelo papel seu papel igualmente estruturante em relação àqueles que
permaneciam sob o jugo do cativeiro 149.
As irmandades religiosas foram um dos caminhos utilizados no auxílio à
obtenção da alforria dos seus irmãos africanos e seus descendentes. A invocação do
Rosário sempre teve a maior popularidade entre a população negra no Império Colonial
Português. A irmandade do Rosário sempre esteve associada com a proteção, defesa e
libertação das populações negras espalhadas pelo império. Nem todos os compromissos
das irmandades de homens pretos da cidade do Rio de Janeiro faziam referência ao
resgate dos irmãos cativos. Percebemos que esta discussão estava presente nos
compromissos da irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa, de Nossa Senhora dos
Remédios, no Estatuto da Congregação dos pretos minas Makis e no compromisso ou
regulamento interno da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos
homens pretos. O fato de alguns compromissos não citarem a questão da alforria não
significa que ela não tenha sido relevante para estas associações, pois eram constituídas
por um número significativo de escravos. No caso da Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito dos Homens Pretos do Rio de Janeiro é possível perceber que
ela empreendeu uma luta para garantir o direito de resgatar os irmãos do cativeiro,
conforme revela a correspondência entre a irmandade, o rei e o governador Duarte
Peixeira e Chaves. O que nos fornece importantes elementos para compreendermos os
meandros do cativeiro na cidade.
149
GUEDES, Roberto e SOARES, Marcio de Souza. As alforrias entre o medo da morte e o caminho da
salvação de portugueses e libertos (Rio de Janeiro, segunda metade do século XVIII). In: GUEDES,
Roberto, RODRIGUES, Claudia e WANDERLEY, Marcelo da Rocha (orgs.). Últimas vontades:
testamento, e cultura na América Ibérica (séculos XVII e XVIII). Rio de Janeiro: Mauad X, 2015, pp.
107-145. Cf. SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, SP: EDUS, 200, pp. 171- 218;
MARQUESE, Rafael de Bivar. A DINÂMICA DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL: Resistência, tráfico
negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. Novos Estudos – CEBRAP - março 2006 – pp. 107-
123. Ver também para a região de Campos de Goitacazes, SOARES, Marcio de Souza. A remissão do
cativeiro: a dadiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacases, c. 1750 c. 1830. Rio
de Janeiro: Apicuri, 2009, pp. 179 e 180.
150
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Códice 952, vol. 3 folha 202. Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário e Resgate do Rio de Janeiro 1685, 01/12.
183
151
IEB, Coleção Lamego, Códice 58.16. A8. Parecer de Duarte Teixeira Chaves, Governador do Rio de
Janeiro, sobre o resgate dos cativos pertencentes à irmandade de Nossa Senhora do Rosário. RJ,
1685/05/20. Apud QUINTÃO, Maria. La vem meu parente. Op. Cit p. 139.
152
IEB, Coleção Lamego, códice 58.7.A8 (Translado de uns Autos que vão remetidos a S.M., sobre a
liberdade dos irmãos de Nossa Senhora do Rosário e resposta que deram os oficiais da Câmara desta
cidade. 1685/04/25). Apud QUINTÃO, Maria. La vem meu parente. Op. Cit. IEB, Coleção Lamego,
códice, 46,130,A8. Lisboa, 1º de Abril de 1691. Apud. QUINTÃO, op. cit., p. 143.
184
discordando que fosse promulgada uma lei obrigando os padres da Companhia de Jesus
a resgatar seus escravos, nos fornece informações para entendermos tal situação. Nas
palavras do desembargador, “tais escravos são gente muito viciosa por natureza, e
estando em liberdade dão em atrozes crimes, principalmente ladrões, por não terem
outros meios para ganhar a vida, assim é muito melhor estarem em cativeiro” 153. O
roubo seria também uma forma de os escravizados conseguirem algum pecúlio para a
conquista da alforria ou pagar as entradas e anuais nas irmandades, caso não fossem
pagas pelos senhores. No caso dos forros, poderiam valer-se do roubo para compra da
alforria da companheira/companheiro e ou filhos. Mas possivelmente poderia ser que
quase todo o pecúlio adquirido fosse usado na própria sobrevivência diária. Pois com a
conquista da alforria muitos deles entraram para o rol dos despossuídos e malfeitores
tão temidos, que aparecem nos relatos dos viajantes estrangeiros e relatórios das
autoridades régias. “Teoricamente era possível que conseguisse recursos trabalhando
aos domingos e dias santos com autorização do senhor”. Mas, de uma forma geral
gastavam o lucro na compra de fumo e aguardente 154.
Por outro lado, o documento nos fornecesse uma valiosa informação em
relação à hierarquia na organização da escravaria, quando diz que os “mulatos são os
oficias”. O que nos leva a pensar que tais sujeitos eram libertos e que a aproximação da
cor dos senhores significava também o distanciamento do estigma da escravidão. Isso
nos ajuda a entender a própria organização das irmandades por cor e origem, nas quais
os africanos estavam associados à escravidão e que pardos, mulatos e crioulos estariam
mais próximos no mundo dos libertos. O que explica também a aproximação com o
universo senhorial, assim como, inversamente proporcional os afastaria do mundo da
escravidão 155.
153
IEB, Coleção Lamego, códice, 46,130,A8. Lisboa, 1º de Abril de 1691. Apud. QUINTÃO. Op. Cit. p.
143.
154
SCARANO, op. cit., p. 67.
155
OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção e Caridade: irmandades religiosas no Rio de Janeiro
Imperial (1840-1889). Dissertação de Mestrado. Niterói, RJ: UFF, 1995, p. 157; FARIA, Sheila Siqueira
de Castro. SINHÁS PRETAS, DAMAS MERCADORAS As pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro
e de São João Del Rey (1700-1850). Tese apresentada ao Departamento de História da Universidade
Federal Fluminense Concurso para Professor Titular em História do Brasil. Niterói, 2004, pp. 24;
Aspectos demográficos da alforria no Rio de Janeiro e em São João Del Rey entre 1700 e 1850, p.1;
KARASCH, Op. cit., pp.439-474; FLORENTINO, Manolo. 2002; SAMPIO, Antonio Carlos Jucá. A
produção da liberdade: padrões gerais das manumissões no Rio de Janeiro colonial, 1650-1750. In tráfico,
cativeiro e liberdade. Rio de Janeiro, séculos XVII – XIX. (Org.) FLORENTINO, Manolo. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. MARQUESE, Rafael de Bivar. A DINÂMICA DA ESCRAVIDÃO
NO BRASIL: Resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. NOVOS ESTUDOS 74 -
MARÇO 2006; EISENBERG 1989, PP. 283-4. Apud FARIA. O Cotidiano... p. 117; FLORENTINO.
185
Outra questão que aparece mesmo que de forma latente e que já foi
confirmado pela historiografia 156 é que a alforria estava muito mais presente no
universo feminino, seja no campo ou na cidade de forma individual ou coletiva. O que
nos leva a pensar que também eram elas que mais conquistavam a alforria via
irmandades. Também fica evidente no documento que as irmandades compravam
escravos. Tal questão nos faz refletir como a sociedade do século XVIII via a questão da
escravidão 157. Julita Scarano observou que mesmo as irmandades de cor eram donas de
escravos uma vez que era esse um costume aceito por todos na época. Segundo a autora,
se doavam ou pagavam dividas à irmandade com escravos. Muitas vezes, estes eram
deixados em testamentos para a associação. Tal situação era vista como normal pelas
confrarias de pretos que frequentemente mencionavam os “jornaes de pretos” 158.
Dos 165 compromissos analisados por Patrícia Mulvey, 11 fizeram
referência às alforrias. Eram elas: no Rio de Janeiro quatro irmandades do Rosário, e a
de Nossa Senhora dos Remédios; na Bahia duas irmandades do Rosário, a irmandade de
Nossa Senhora do Amparo e uma de Santo Antônio de Cartagerona; em Minas Gerais
duas irmandades do Rosário, todas anteriores ao século XIX. De acordo com Marisa
Soares, a questão fundamental é saber o que estava em jogo quando a irmandade
adquiria ou herdava um escravo e o que estava em jogo quando ela criava mecanismos
para libertar certos escravos. A combinação dessas duas atitudes pode ser o caminho
para a compreensão da questão em toda a sua complexidade 159.
Alforrias etnicidade... op. cit., p.22; SOARES, Marcio de Sousa. op. cit., p. 71; ENGEMANN, Carlos. De
Laços e de Nós: constituição e dinâmica de comunidades escravas em grandes plantéis do sudeste
brasileiro do Oitocentos. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2006, pp. 67- 6
156
FARIA, Sheila Siqueira de Castro. SINHÁS PRETAS, DAMAS MERCADORAS As pretas minas nas
cidades do Rio de Janeiro e de São João Del Rey (1700-1850). Tese apresentada ao Departamento de
História da Universidade Federal Fluminense Concurso para Professor Titular em História do Brasil.
Niterói, 2004, pp. 24; Aspectos demográficos da alforria no Rio de Janeiro e em São João Del Rey
entre1700 e 1850, p.1; KARASCH, op.cit., pp.439-474; FLORENTINO, Manolo. 2002; SAMPIO,
Antonio Carlos Jucá. A produção da liberdade: padrões gerais das manumissões no Rio de Janeiro
colonial, 1650-1750. In tráfico, cativeiro e liberdade. Rio de Janeiro, séculos XVII – XIX. (Org.)
FLORENTINO, Manolo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. MARQUESE, Rafael de Bivar. A
DINÂMICA DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL: Resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a
XIX. NOVOS ESTUDOS 74 - MARÇO 2006; EISENBERG 1989, PP. 283-4. Apud FARIA. O
Cotidiano... p. 117;
FLORENTINO. Alforrias etnicidade..., op. cit., p.22; SOARES, Marcio de Sousa, op. cit., p. 71;
ENGEMANN, Carlos. De Laços e de Nós: constituição e dinâmica de comunidades escravas em grandes
plantéis do sudeste brasileiro do Oitocentos. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2006, pp.
67- 69
157
Cf. SOARES, op. cit., p. 178.
158
SCARANO. op. cit., p. 71-3
159
Cf. MULVEY, Patrícia Ann. The black lay brotherhoods of colonial Braszil: a history. City University of
New York, Ph. D. 1976, p. 258. Apud. SOARES, op. cit., p. 178-9.
186
Voltando ao parecer dos oficiais da Câmara, eles relatam ao rei ainda mais
dois inconvenientes no caso de conceder licença para a irmandade. Primeiramente, o
conflito entre vizinhos que, por inveja, induziam os cativos “prometendo-lhes que os
libertará por via da irmandade ou os comprará, e lhes dará melhor cativeiro que
resultarão grandes enfados, discórdias e desuniões entre os mesmos moradores”. 160 O
segundo seria a possibilidade de fuga dos escravos, ficando até anos desaparecidos, para
que seus senhores os castigassem e os cativos se aproveitassem disso para se queixar da
violência dos senhores e pedir a liberdade. Aspecto que, segundo a autoridade, poderia
levar à ruina dos senhores. Por todas essas razões, não deveria V. M. lhes conceder a
licença 161.
Constatamos que a luta empreendida pela irmandade do Rosário e São
Benedito dos homens pretos do Rio de Janeiro foi incansável e teve um papel de
destaque na libertação dos irmãos da escravidão. Tal fato se deve à associação da
virgem do Rosário à libertação dos cativos e de São Benedito ter sido um negro
escravizado. O Dicionário da escravidão negra de Clovis Moura cita em um de seus
verbetes que, desde 1779, que está confraria gozava, por provisão régia, do direto de
poder libertar os irmãos cativos:
Desde 27 de Novembro de 1779, a Irmandade gozava, por provisão régia, da
vantagem de poder alforriar, mediante indenização do valor, os escravos que eram
maltratados pelos respectivos senhores ou que quisessem vender por castigo. No seu
compromisso ou regulamento interno, que data de 1831, há uma grande referência à
obrigação de “vir em socorro dos irmãos escravos”. Esse compromisso foi aprovado
pelo poder eclesiástico e pelo poder civil, o primeiro representado pelo então bispo de
Rio de Janeiro, Dr. José Caetano da Silva Coutinho, também conselheiro de Estado e
senador. O poder civil foi representado pela regência trina e por Diogo Feijó. O capítulo
1º sobre os deveres da Irmandade estabelece como objetivo libertar da escravidão os
“irmãos cativos”. Enquanto o capítulo 24 fixa a forma de auxílio para a libertação: era
162
por meio de sorteio, sendo o dinheiro retirado da “caixa da igreja” .
160
IEB, Coleção Lamego, códice 58.7.A8 (Translado de uns autos que vão remetidos a V. M., sobre a
liberdade dos irmãos de Nossa Senhora do Rosário e resposta que deram os oficiais da Câmara desta
Cidade 1685/04/25).
161
IEB, Coleção Lamego, códice 58.7.A8 (Translado de uns autos que vão remetidos a V. M., sobre a
liberdade dos irmãos de Nossa Senhora do Rosário e resposta que deram os oficiais da Câmara desta
Cidade 1685/04/25). Apud. QUINTÃO. Maria. Lá vem meu parente... p. 140.
162
MOURA, Clovis. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Edusp – Editoria da Universidade
de São Paulo 2004, p. 216-217
187
163
OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção e Caridade: irmandades religiosas no Rio de Janeiro
Imperial (1840-1889). Dissertação de Mestrado. Niterói, RJ: UFF, 1995, p. 158; REIS, João José e
SILVA Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista, Rio de Janeiro,
Companhia das Letras, 1989, 32-33.
164
BN - Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, Rio
de Janeiro, 1838, in: Diário Oficial/Dezembro de 1901, p. 5922. (O compromisso de 1838 serviu a
irmandade durante toda a segunda metade do século XIX).
165
“Os dias que antecederam à assinatura da Lei Áurea foram intensos. O consistório serviu como centro de
ação. A irmandade guardou todos os estandartes das associações que participaram da luta abolicionista,
dentre os quais, o da Confederação Abolicionista (fundada em 1883). Em 13 de maio 1888, a Irmandade
comemorou a libertação da escravidão e considerou a Lei Áurea como a libertação da Pátria, a
reabilitação da raça oprimida e espoliada da liberdade [...]. Há, senhores, sensações tais, que a linguagem
humana não tem expressões para pintar. A alma sente, experimenta, dulcíssimas alegrias, perde-se nos
delírios da imaginação, mas a voz emudece, porque não é capaz de transmitir pela palavra os sentimentos
que lhe vão n’alma.” Cf. relatório feito pelo escrivão Fortunato José Francisco Lopes. Arquivo do
IPHAN, 1941, pp. 113-14.
188
podemos perceber que sua luta comoveu os fies que contribuíam com esmolas para
alforria dos irmãos. O bispo louva a conduta piedosa da irmandade na luta para libertar
os irmãos e fez também a doação de esmola para contribuir “com tão honrosa missão”
que, segundo ele, era um dos grandes desejos da Santa Igreja Católica 166.
No compromisso da irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, o tema
alforria não aprece. De acordo com Mariza Soares, a tônica do compromisso dessa
confraria era o cuidado com os africanos forros, embora tal questão não significasse que
a irmandade não possuía irmãos escravos. Indicava apenas que ela não era responsável
por comprar-lhes a alforria. Os forros poderiam não ser a maioria dos irmãos da
confraria, mas eram os que ocupavam os cargos, os que decidem e, consequentemente,
seus maiores beneficiários 167. O Estatuto da Congregação dos Pretos Minas Makis168 e
o compromisso da irmandade de Nossa Senhora dos Remédios 169, ambos da década de
1780, também dão destaque ao tema.
O estatuto da congregação dos Makis estabelecia que aqueles irmãos que
não dispõem de todo o dinheiro ou que estiver faltando para a compra de sua alforria, a
instituição providenciaria o montante. O regente reuniria todos os congregados
participando-lhes da necessidade da ajuda mutua para a libertação do irmão e este se
comprometeria a pagar o valor mediante a assinatura de um termo de compromisso
preparado pelo secretário da congregação 170. A irmandade de Nossa Senhora dos
Remédios também propunha formas de assistência para a compra das alforrias dos
irmãos. Essas esmolas, no entanto, tinham limites bem claros: eram concedidos a
membros da congregação em determinadas condições. Não era um direito dos irmãos
nem tampouco uma obrigação ou ato de caridade à irmandade, mas um privilégio
166
“Como sabemos que essa Venerável Irmandade com as esmolas suas e dos fiéis de vez em quando
liberta alguns de seus irmãos que ainda gemem no cativeiro, desempenhando um dos grandes desejos da
Santa Igreja Católica, de ver livres a todos os cativos, assentamos em contribuir para essa obra tão
católica e tanto da Igreja com o óbulo, embora muito pequenino, decerto, de cento e cinquenta mil réis”.
Arquivo do IPHAN, 1941, P. 64.
167
SOARES, op. cit., 2000, p. 179.
168
Estatutos da Congregação dos pretos minas Maki no Rio de Janeiro, o manuscrito reúne um estatuto e
uma ata produzidos por um grupo de mais de duzentos africanos vindos do reino de Maki, situado ao
norte do Daomé. A Congregação estava instalada na Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia, no interior
da Irmandade desses santos, onde criou uma confraria para devoção às almas no ano de 1786. BN/MA–
9,3,11
169
Este documento é uma transcrição do Estatuto da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios, situada na
Capela de Santa Efigênia, no ano de 1788. O Estatuto apresenta, em seus 24 capítulos, os modos de
organização de uma irmandade formada por negros da Costa da Mina na cidade do Rio de Janeiro.
AHU/CU. Códice 1300
170
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios. Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa
– AHU/CU. Códice 1300. Capítulo 22.
189
171
SOARES, op. cit., p. 179 e 180.
172
“Todas as vezes que constar a mesa que algum preto mina é injustamente detido, ou penhorado, e este
mesmo buscar a proteção da Confraria, os oficiais e mesários terão obrigação de se aconselhar pelo
procurador com dois advogados de boa nota, consultando-os na [...] que ocorrer e conformando-se ambos
em que o servo, de que se trata não tem justa no que propõe, a irmandade lhe não concorrerá com
assistência alguma, e sendo vice versa, ou constando que tem justiça, então se fará mesa para
determinação das esmolas, ou quota parte, com que se lhe deve assistir do cofre para ajuda de custo de
mesma causa”. Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios. Arquivo Histórico
Ultramarino de Lisboa - AHU/CU. Códice 1300. Capítulo 23.
173
REIS. Identidade e diversidade Étnicas nas Irmandades Negra... p. 15
174
REIS. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX, são Paulo:
companhia das Letras, 1991, p. 55; Identidade e diversidade Étnicas nas Irmandades Negra... op. cit., pp.
7-33; OLIVEIRA, op. cit., 1995, p.136,157e 158; 2008, pp. 281-308; SOARES, op. cit., 2002, capítulo 6.
190
175
Uma atividade lúdica é uma atividade de entretenimento, que dá prazer e diverte as pessoas envolvidas.
Marina Mello e Souza, observa que “as festas dos oragos aparecem muito sucintamente nos
compromissos das irmandades, fazendo parte dos aspectos das festas religiosas que não eram vistos com
bons olhos pela igreja [...]. Com seu caráter lúdico, popular, permeado de danças e cantos executados na
rua com ingestão de grande quantidade de comida e bebida.” SOUZA, Marina de Mello. Reis Negros no
Brasil Escravista. História da Festa de Coroação de Rei do Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006,
p.191.
176
De acordo com Anderson Oliveira, era um catolicismo externo, de práticas cotidianas, leigo e pouco
sacramental, vivenciado multiplamente pela globalidade dos segmentos sociais na Colônia e no Império,
onde haveria uma relação muito direta com um conjunto de costumes religiosos consagrados por uma
vivência rotineira. Era visto pelos bispos reformadores como supersticioso, dotado de manifestações de
ignorância, irreverentes e fanáticas. OLIVEIRA, op. cit., 1995, pp. 41-44.
177
OLIVEIRA, Anderson José Machado de. A Festa da Glória. Festa, Irmandades e Resistência cultural no
Rio de Janeiro Imperial. História Social, Campinas – SP – nº 7 – 19-48 – 2000. P. 21.
178
ANTONIL, João André. Cultura e Opulência do Brasil: por suas drogas e minas. Lisboa, na Officina Real
Deslanderina coms as licenças necessárias, no anno de 1711, P. 36.
191
essas instituições tinham caráter eminentemente urbano 179, mas, embora em menor
quantidade, existiam também irmandades em áreas rurais. Os senhores deveriam ainda
evitar que os escravos se embriagassem com garapa azeda ou aguardente, concedendo-
lhes a garapa doce para festa. Assim, fica claro nas palavras do Padre Antonil que ao
contribuiriam para o bom funcionamento da festa os senhores estariam exercendo um
mecanismo de controle sobre os seus cativos, que passariam a lhes servir de boa
vontade. No entanto, observamos que ao “criarem seus reis, e bailar por algumas horas
honestamente em alguns dias do anno” 180, os escravizados na verdade estavam
recriando no Novo Mundo sua cultura e identidade.
Neste sentido, as irmandades foram vetor de criação de sociabilidades e de
construção de identidades. A festa contribuía para trazer à tona a memória das
sociedades africanas de onde foram arrancados. Ao serem enviados para as Américas
pelo tráfico atlântico aos milhares, muitos africanos escravizados perderam o contato
com as tradições familiares de sua região de origem e tiveram que reconstruí-las nos
locais de chegada com os malungus 181 da mesma etnia ou região de procedência 182.
Essa foi à forma encontrada pelos africanos escravizados para reconfigurar
suas tradições, antes fundada nas relações de parentesco. Roger Bastide disse, a respeito
das confrarias, que a reunião em torno de um santo, mais que mística, expressava uma
179
Cf. SOUZA, op. cit., p. 192.
180
ANTONIL, op. cit., p. 36.
181
Segundo Robert Slenes, a difusão do termo, nos séculos XVIII e XIX indica a existência de um processo
de criação de uma identidade comum entre os africanos escravizados, facilitados por traços linguísticos e
culturais que unificavam certas regiões africanas. Além de significar companheiro viagem, o termo tinha
ainda, significados religiosos que não eram compreendidos pelos brancos no Brasil e baseavam-se em
traços cosmológicos que unificavam os povos da África central-atlântica. Sobre a cultura dos africanos
vindos da África Centro Ocidental para o Rio de Janeiro e a construção de uma proto-nação banto. Cf.
SLENES, Robert W. “MALUNGU, NGOMA VEM!”: África coberta e descoberta no brasil. REVISTA
USP, São Paulo, n. 12, (dez. 1991/ fev. 1992): 500 anos de América. p. 48-67. Sobre as formas de
recriação ou dissolução das heranças culturais africanas no novo mundo cf. também. MINTZ, Sidney W.:
PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica. Rio de Janeiro:
Pallas/Ucam, 20003; THORNTON, Jhon K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico,
1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. HALL, Gwendolyn Midlo. Escravidão e etnias africanas nas
Américas, restaurando os elos. Petrópolis, RJ: ed. Vozes, 2017
182
Mariza Soares, propõe a utilização da noção de grupos de procedência: “esta noção, embora não elimine a
importância da organização social e das culturas das populações escravizadas no ponto inicial do
deslocamento, privilegia sua reorganização no ponto de chegada.” Essa proposição está relacionada aos
pressupostos teóricos do antropólogo norueguês Frederick Barth, “que critica a definição de grupo étnico
como uma unidade portadora de cultura. O grupo étnico é o ‘sujeito’ da etnicidade: embora possa haver
grupos que compartilhem uma mesma cultura, as diferenças culturais não conduzem à formação ou ao
reconhecimento de grupos étnicos distintos. Para Barth, o fato de compartilhar uma cultura é uma
consequência, não a causa, a condição ou, menos ainda, a explicação da etnicidade”. SOARES, Mariza.
Os devotos da Cor... p. 114-127; cf. também, BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações
antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000, pp. 25-5
192
espécie de parentesco étnico 183. De acordo com Katia Matoso, os africanos chamavam
de “parente” as pessoas do mesmo grupo étnico, estabelecendo com elas uma
vinculação essencial à redefinição das solidariedades de linhagem e das normas que
comandam as relações sociais 184. João Reis observou que a palavra parente incluía
todos da mesma etnia. Para este mesmo autor, a importância que os escravizados
produziam parentescos simbólicos ou fictícios revela como era grande o impacto do
cativeiro sobre esses homens e mulheres vindos de sociedades baseadas nos parentescos
complexos, das quais o culto aos ancestrais era uma parte importantíssima185.
Observamos que o termo parente era utilizado no aditivo da folia do compromisso da
irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, a qual dizia “se quiser o Imperador fazer
alguma mesa ou convocação de ‘parentes’ assim irmão” 186. A irmandade tornava-se
uma família ritual em que africanos desenraizados de seu continente pátrio poderiam
viver e morrer solidariamente 187. Assim, o “parentesco ritual, poderia oferecer aos
irmãos, além de um espaço de comunhão e identidade, socorro nas horas de
necessidade, apoio para conquista da alforria, meios de protesto contra abusos
senhoriais e, sobretudo rituais fúnebres dignos” 188. Mariza Soares observou que entre os
pretos minas da Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia, a distribuição de recursos
para as alforrias era uma obrigação assumida entre “parentes”, portanto a nível de
grupos étnicos 189. A autora observou ainda que o termo “parente” nas irmandades de
homens pretos era bem mais que serem “irmãos de compromisso”, expressão comum a
todas às irmandades, inclusive as de pardos e brancos. Ser “parente” indicava um
vínculo construído a partir de uma identidade étnica calcada na reconstrução de um
passado comum e de uma organização social e religiosa presente 190.
Se, por um lado, a escravidão impôs aos pretos africanos e a seus
descendentes o estatuto de escravizado, retirando-lhe a condição de pessoa
transformando-o em um estrangeiro desenraizado, um morto social, por outro lado será
nas irmandades de “Homens Pretos”, que terão a oportunidade de reconstrução de sua
183
BASTIDE, Roger. AS Religiões Africanas no Brasil. São Paulo: Livraria Pioneira Editora – Editora da
universidade de São Paulo, 1971.
184
MATOSO. Katia, Bahia do século XIX. Uma província do Império. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1992,
p. 163.
185
REIS, op. cit., 1991, p. 55.
186
Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão E Santa Efigênia. Aditivo da folia capitulo 3.
187
REIS, op. cit., 1996, p. 4.
188
MARIA, Quintão. Lá Vem o Meu Parente: as irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em
Pernambuco, (Século XVIII) – São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001, p. 39
189
SOARES, op. cit., 2000, p. 222.
190
Idem., p. 222.
193
humanidade. Por mais paradoxal que possa parecer à expressão “homens Pretos”, a
irmandade lhes conferia o estatuto de pessoa que não era retirado nem no momento da
morte, pois era para ser enterrado como homens que os irmãos pretos queriam morrer.
Era para alcançar esse objetivo que construíram suas capelas com sepultura, compraram
seus esquifes, mandavam celebrar missas de sufrágio para os falecidos. Foi para existir
socialmente que investiram na religião católica e que através das irmandades
reinventaram seus parentes e uma forma de vida comunitária 191.
Nas festas em homenagem aos santos padroeiros, nas quais se elegiam reis,
rainhas, imperadores e imperatrizes, eram visíveis as raízes africanas 192 que fundavam
no Novo Mundo encantações de reinos africanos, rituais que transformavam a memória
em força cultural viva, embora nunca se esquecessem de anunciar que tudo faziam “para
maior grandeza e aplauso” dos santos de devoção 193. Joaquim Manoel de Macedo relata
como eram famosas as festas de Nossa Senhora do Rosário no Rio de Janeiro.
191
BEZERRA, Analucia Sulina. As Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos No Brasil:
identidade e diferença cultural. Projeto História, São Paulo, n. 51, pp. 119-138, Set./Dez. 2014.
192
SOUZA, op. cit., p. 181.
193
REIS, op. cit., 1996, p. 15.
194
MACEDO, Joaquim Manoel. Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro. Brasília: Senado Federal,
Conselho Editorial, 2005. (Edições do Senado Federal; v. 42) p. 490.
194
por negros africanos escravizados “cujos senhores prestavam-se a fazer por eles as
maiores despesas da festa, e faziam garbo de gastar avultadas quantias para vestir com
todo o luxo o rei e rainha do Rosário” 195. A irmandade ganhava visibilidade, justamente
na sua aparição em público em seus cortejos pelas ruas presidindo uma série de atos
rituais e danças. Através da coroação dos reis negros, escravizados e libertos
encontraram uma forma de se organizarem comunitariamente ao mesmo tempo em que
celebravam de forma simbólica as práticas que haviam sido deixadas para trás em sua
terra natal, mas não esquecidas 196. Era costume nos quilombos, organizações
comunitárias formadas por cativos fugidos das senzalas dos engenhos, que buscavam
romper com a situação de dominação que estavam submetidos, eleger soberanos, viviam
sob o governo de um rei ou capitão 197.
A coroação de reis e rainhas tornou-se bastante difundida no âmbito das
irmandades de pretos africanos, a partir da qual se atribuía aos soberanos a denominação
genérica de reis e rainhas do Congo. A explicação histórica para essa prática está
relacionada à herança cultural trazida pelos negros africanos escravizados, vindos da
África Centro Ocidental. Essas lembranças recuperam elementos históricos da
conversão do reino do Congo ao catolicismo a partir de século XV 198. De acordo com
Marina Mello e Sousa, a festa de coroação do rei do congo ocorreu com mais
intensidade nas regiões que receberam um maior contingente de africanos do grupo
linguístico banto, oriundos da África Centro Ocidental, em especial os Bacongos,
habitantes do antigo reino do Congo. Entre os séculos XVI e XVII os mais importantes
portos se situavam na região de desembocadura do Rio Zaire; nos séculos XVII e
XVIII, Luanda se tornaria o porto de maior importância desta região; no século XIX as
rotas do tráfico voltariam para esta região do antigo reino do Congo. Independente da
rota que fosse predominante em cada momento, essa vasta região forneceu africanos
escravizados para a América portuguesa e o Império do Brasil em todo o período de
vigência do tráfico atlântico 199. No contexto do tráfico, os diversos grupos que foram
arrancados de sua região e pertencentes a diferentes tradições étnicas e culturais tiveram
195
MACEDO, op. cit., p. 490.
196
SOUZA, op. cit., p. 161; BEZERRA, op. cit., p.129.
197
SOUZA, Idem., p. 251; BEZERRA, Idem., p. 130.
198
BEZERRA, Ibidem., p. 130.
199
SOUZA, op. cit., p. 258.
195
que recriar seus laços sociais e novas formas culturais, sendo a festa de coroação de seus
reis e os seus cortejos uma de suas maiores expressões 200.
A festa de coroação do rei do congo era resultado dos contatos culturais
entre portugueses e africanos centro ocidentais ao longo de séculos de escravidão, por
meio do qual ser organizaram as comunidades negras na sociedade colonial e imperial.
Ao chegarem das terras africanas os escravizados iam deixando de ser estrangeiros, se
habituando com a vida cotidiana na sociedade colonial e imperial, integrando-se as
instituições, como a festa do rei do congo, que no século XIX já estavam consolidadas
ao longo de mais de dois séculos de convívio entre africanos e europeus. As identidades
particulares, vinculadas à etnia e/ou grupos de procedência, foram paulatinamente
cedendo lugar para identidades mais globalizantes, nas quais os elementos africanos
remetiam a sentimentos comuns a todos, entre os quais estava a identificação com o
reino do Congo cristianizado 201.
A preocupação com a festa também aparece no compromisso da Irmandade
de Santo Elesbão e Santa Efigênia. No compromisso da irmandade de Santo Elesbão e
Santa Efigênia, o monarca fictício é tratado de “Glorioso Santo Imperador” que é
acompanhado de sua “Imperatriz” 202.
200
BEZERRA, op. cit., p. 130.
201
SOUZA, op. cit., p. 266.
202
Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Museu do Negro. Cap. 3.
203
Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Museu do Negro. Cap. 1, do aditivo
sobre as folias.
204
REIS, op. cit., 1991, p. 15.
205
Cf. SOUZA, op. cit., p. 181.
196
Exo. Revo. Snr - nos cinco capitulos com que estes pretendem
querem addir ao seo compromisso não acho cousa que encontre
a Jurisdição Eclesiástica nem que também se opponha aos bons
costumes, e ainda que seja mal soantes aos ouvidos a palavra
“Folias”- como esta consiste em terem hum Imperador,
Imperatriz, Principe, Princeza, Reys Rainhas de estado; para
conciliarem por este meio melhor os animus e as esmolas d’esta
gente preta e há entre elles observado este costume nas cidades e
terras mais bem reguladas talvez para que tenhão esta
consolação; entre tantas trabalhos do captiveiro; a que o sujeitou
a sua infelicidade, parece-me, que se lhes pode conceder o que
pedem, ainda que triano, seja eleição attendendo a que não são
206
TRINDADE, Liana Salvia. Convergência e Conflito de Interpretação do Real: A Festa de Corpus Christi
Como Representação paradigmática da Diversidade Cultural. In Revista do Núcleo de Estudo
Interdisciplinar do Imaginário "Ruy Coelho" da Universidade de São Paulo Dinâmica do Simbólico
número 1, 1993, p. 102-4.
207
De acordo com Soares, as “comilanças” eram um dos pontos altos da festa e também dos mais
controversos. As pessoas perambulam por esses espaços comendo, cantando, tocando instrumento, numa
mistura constante, sendo impossível distinguir entre o sagrado e o profano na medida em que a ocasião
como que sacraliza o espaço e as ações como um todo, mas ao mesmo tempo, sob uma outra ótica, tudo é
“profanado”. SOARES, op. cit., 2000, p. 173.
208
REIS, op. cit., 1991, p. 61
209
Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Museu do Negro. Capitulo 1º dos
aditivos. Museu do Negro.
197
210
Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Museu do Negro. Capitulo 1º dos
aditivos. Museu do Negro. documento 5.
211
Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia capítulos de 1-5
212
REIS, op. Cit., 1996, p, 10
213
REIS, op. cit., 1991, p. 61.
214
OLIVEIRA, op. cit., 2000, p.p. 22-3.
215
Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Museu do Negro. Cap. 2.
198
216
Constituições Primeiras...Titulo LXII, p.306.
217
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título LXII p. 306 – 874.
218
AHU, Caixa 149, Rio de Janeiro, Doc. Nº 69, 16/06/1781. Apud. QUINTÃO, Antonia Aparecida. Lá vem
meu parente... p. 115.
219
Essa irmandade foi erigida pelos pretos minas no interior da igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia em
1788, pelo mesmo grupo que criou a Congregação dos pretos minas Makis, cujo objetivo era prestar
assistência aos irmãos nacionais. Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa – AHU/CU. Códice 1300.
Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa – AHU/CU. Códice 1300. Cap.
199
220
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios. Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa
– AHU/CU. Códice 1300.Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa – AHU/CU. Códice 1300. Cap. 20.
221
Cf. THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004
200
222
REIS, op. cit., 1991, p. 61.
223
OLIVEIRA, op. cit., 2000, p. 22.
224
REIS, J. J. A morte é uma festa... p. 61
225
MAURICIO, op. cit., p. 134-5.
201
226
REIS, op. cit., 1991, p. 65.
227
VIDE, op. cit., Título VII. p. 184 - 467
228
Existiram vários casos de clérigos que desrespeitaram as determinações das constituições primeiras como
por exemplo a devassa promovida pelo ouvidor geral do crime do Rio de Janeiro onde o frade Bernardo
Magalhães, organista do convento do Rio de Janeiro, com 53 anos de hábito é acusado de estar
frequentemente ébrio, e conviver com uma quadrilha de mulatos "peraltas", dos quais um estaria
constantemente em sua companhia. Junto com estes mulatos teria promovido "indecentíssimos
entremeses e bailes", para divertir outros dois frades do mesmo convento. O acusado não possuiria nem
dinheiro nem escravos, pois segundo o ouvidor "tudo é pouco para gastar com aquelas más companhias".
Cf. ANRJ – Códice 1064 – 1783. Devassa afeita pelo escrivão da Ouvidoria Geral do Crime da Relação
da cidade do Rio de Janeiro, contra os frades do Convento de Nossa Senhora do Carmo da mesma cidade.
229
REIS, op. cit., 1991, p.p. 65-6.
230
TUNER, Victor. O Processo Ritual: Estrutura e Antiestrutura. Petrópolis, vozes, 1974, p.p. 201-207
202
231
THOMAS, Louis Vincent, La mort africaine, Paris, 1982, pp.173-4. Ver também Catolicismo negro, in
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil, São Paulo, 1971, I, esp. Cap. V; Scarano, Julita.
Devoção e escravidão. São Paulo, 1975.
232
OLIVEIRA, op. cit., 2008, p. 270; cf. também. MOTT Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela
e o calundu. In SOUZA, Laura de Mello e (org.) história da Vida Privada no Brasil: o cotidiano e vida
privada na América portuguesa. São Paulo Cia das Letras, vol. 1. p. 156,160,164,186.
233
OLIVEIRA, op. cit., 1995, p. 176-177.
203
tendo sido absorvida pelos africanos escravizados. A coroação de reis e rainhas remetia
a um passado idealizado, ligado a uma terra natal desprovida de particularidades
concretas, vivida como lugar abstrato, portador de características gerais e distantes das
realidades diferenciadas de cada região. Para a maioria dos estudiosos essas festas têm
suas origens nas tradições africanas 234.
A proibição ou a permissão das festas promovidas pelos pretos africanos e
seus descendentes em determinados momentos do ano de acordo com seus costumes
próprios foi alvo de constantes debates entre administradores régios e senhores. Tendo
em vista os riscos de revoltas que sempre pairavam no ar e a maior exploração do
trabalho dos escravizados levou senhores e administradores a adotarem posturas
antagônicas 235. De um lado estavam aqueles que defendiam a repressão a qualquer
ajuntamento de negros sob quaisquer circunstancias, em geral ao som de tambores com
danças cujo significado era incompreensível aos agentes da sociedade colonial. Estes
viam nessas ocasiões momentos extremamente perigosos propícios para se tramar
conspirações e/ou deflagrar uma rebelião que poderia ter sido tramada para detonar
durante os festejos 236.
De outro lado estavam aqueles que achavam que a permissão a festa e ritos
negros era um importante momento para os escravizados extravasarem as tensões
acumuladas na lida diária resultantes da violência do cativeiro; de modo que poderiam
retomar as atividades com maior boa vontade 237. Muitas vezes estavam senhores de um
lado, governantes e agentes da lei de outro. Por traz da atitude de repressão ou
concessão pairava sempre o fantasma da rebelião. Encontrar uma forma de conter,
reprimir ou extinguir as rebeliões que se multiplicaram no século XIX foi uma constante
obsessão dos administradores régios e da elite senhorial 238.
Como já vimos, com o incremento do tráfico atlântico a partir do início do
século XVIII aumentou o contingente de população escravizada, livre/liberta nos
centros urbanos das principais capitanias do Estado do Brasil, como Rio de Janeiro,
Bahia, Pernambuco e Minas Gerais. As festas promovidas pelas irmandades de pretos
onde ocorria coroação de reis e rainhas causavam nas autoridades um certo desconforto
234
SOUZA, op. cit., p. 194.
235
REIS, J.J. Nas malhas do poder escravista: a invasão do Candomblé do Accú. In SILVA, Eduardo e
REIS, J.J. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1989,
37; SOUZA, op. cit., p.228.
236
SCHWARTS, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. 1550-1835. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 389
237
SOUZAop. cit., p. 228.
238
REIS, op. cit., 1989, 37.
204
e inspirava o medo de que tramassem alguma rebelião. Assim, as festas que elegiam reis
e rainhas tornaram-se ameaçadoras para algumas autoridades, que viviam em um clima
de constante tensão que provocou um quadro de perseguição. Houve várias tentativas
por parte das autoridades para banir as festas e coroações de reis e rainhas negros 239.
Na região de Minas Gerais, em 1720, o Conde de Assumar proibiu a festa
de coroação de reis e rainhas. Ameaçou não pagar os sacerdotes que concordassem com
a coração de reis e rainhas dos pretos. Tal medida foi imposta por conta de rumores que
surgiram sobre um grupo de escravos rebeldes que haviam nomeado entre si um rei, um
príncipe e oficiais militares. Embora o conde suspeitasse que isso não passasse de uma
zombaria dos negros, sugeriu que todos os negros minas que se autonomeassem reis
fossem capturados e expulsos da comarca 240.
Em Salvador, em 1729, um decreto tornou ilegal a coroação de reis e
rainhas durante a festa de Nossa senhora do Rosário. Sob alegação de atos de
indisciplina e roubos praticados pelos negros para decorar com a pompa habitual seus
folguedos. Eram acusados também de “entrarem violentamente nas casas de muitos
moradores, retirando delas os escravizados que estavam sendo castigados”, sob a
suposta alegação de que estes pudessem participar da festa. A festa dos pretos era
associada ao rompimento da ordem, além da preocupação das autoridades com os
poderes que o rei detinha durante os festejos. A partir de então, há o um endurecimento
por parte das autoridades, proíbem as irmandades de elegerem e coroarem reis e rainhas.
Permitindo apenas os Juízes e Juízas de Nossa Senhora do Rosário que podiam fazer
suas festas nas igrejas. Qualquer preto que participasse nas coroações de reis ou rainhas
seria punido com açoites, os homens serviriam um ano nas galés e as mulheres seriam
sentenciadas a prisão 241.
Apesar da repressão e das medidas preventivas tomadas pelas autoridades
régias, os escravizados continuaram a fazer suas festas e coroar seus reis e rainhas. “As
repetidas referências sobre reis e rainhas liderando suas comunidades de escravizados
239
KIDDY, Elizabeth W. quem é o rei do Congo? um novo olhar sobre os reis africanos e afro-brasileiros no
Brasil. In HEYOOD, Linda M. (organizadora). Diáspora negra no brasil. São Paulo: Editora Contexto,
2008, p. 173.
240
BORGES, Célia Aparecida Resende Maia. Devoção branca de homens negros. As irmandades do Rosário
em Minas Gerais no século XVIII. Tese de Doutorado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, UFF,
1998, P. 96; SOUZA, Marina Mello e. Reis Negros no Brasil escravista... p. 234; KIDDY, Elizabeth W.
Quem é o rei do Congo? ... p. 173-4.
241
MULVEY. Patricia Ann. The Blacks lay brotherhoods of colonial Brazil: a history. City University of
New York, Ph.D. University Microfilms international, 1976, p. 116; apud. SOUZA, Marina Mello e. Reis
Negros no Brasil escravista... p. 236; BORGES, op. cit., p. 97-98; KIDDY, op. cit., p. 173-4.
205
242
KIDDY, op. cit., p. 174.
243
SOUZA, op. cit., p. 237.
244
Nessa conjuntura os batuques e candomblés, tornaram-se um problema de polícia. As casas de cultos
passaram a ser invadidas em Cachoeira, em 1785, em Salvador, em 1829; SCHWARTZ, Stuart. Cantos e
quilombos numa conspiração de escravo Haussás. Na Bahia, 1814. In REIS, J.J. & GOMES, Flavio dos
Santos (Org.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1996, p. 388.
245
O intendente Geral de Polícia, Paulo Fernandes Vianna, faz um acordo com os juízes das irmandades na
qual elas passam a receber a quantia de 50$réis anuais para que não saíssem às ruas para pedir esmolas,
garantido o sossego público e as irmandades não ficariam privadas do bem que recebiam. Mas tão acordo
só durou cinco anos, as autoridades sentiram-se desobrigadas a pagar tal quantia havia sido autorizada
verbalmente pelo príncipe regente.
246
Jean Baptiste Debret, relata que com a presença da Corte no Rio de Janeiro proibiram-se aos pretos as
festas e fantasias “extremamente ruidosas” a que se entregavam em certas épocas do ano para lembra a
mãe pátria; essa proibição privou-os igualmente de uma cerimônia extremamente tranquila, embora com
fantasias, que haviam introduzido no culto católico. É por esse motivo que somente nas outras províncias
do Brasil se pode observar ainda eleição anual de um rei, e de uma rainha, de um capitão da guarda. Cf.
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro S.A. s/d.
206
Julita Scarano diz que muito embora esses reis negros se vestissem à
maneira dos brancos, dançavam a sua própria maneira e cantavam suas canções
misturadas com as letras das orações. A importância desses reis não se limitava aos dias
de festa, durando o ano inteiro, sendo respeitados indistintamente por negros de
“qualquer nação”. Tal situação contribuiu eficazmente para a união de diferentes grupos
de procedência, uma vez que pessoas de quaisquer origens, desde fossem pretas, podiam
ascender à “realeza”. Muito embora o título recebido em muitas regiões mineiras fosse
de “Rei do Congo”, poucas eram as associações em que os indivíduos que subiam a tal
posto tinham sua origem nessa região do continente africano 249. Assim como o rei era
um cargo ritual, o nome atribuído como “rei do Congo” era simbólico 250.
Para Célia Borges, as irmandades eram um lugar de constante negociação,
conflito, aprendizado de respeito às diferenças e reconstrução cultural no contexto da
diversidade étnica e opressão do sistema escravista. A autora observa que, ao contrário
das confrarias mineiras, nas irmandades cariocas as diferenças étnicas eram mais
evidentes. Ao encontrar indícios de conflitos entre reis e juízes, no tocante a disputa de
autoridade no interior de uma mesma irmandade, a autora sugere a possibilidade de que
essa querela estivesse ligada a diferenças étnicas, sendo esses cargos ocupados por
indivíduos oriundos de grupos de origem étnica e procedência diferente. Segundo a
autora, enquanto em Minas Gerais, os conflitos interétnicos ocorriam no interior das
irmandades, no Rio de Janeiro, onde as diversas nações se reuniam em irmandades
diferentes, os conflitos ocorriam entre as associações distintas.
Assim, os pretos da nação Benguela da irmandade do Rosário dos pretos do
Rio de Janeiro enviam, em 1767, um requerimento ao Conde da Cunha, reivindicando
que devia haver um único rei, o de sua irmandade, apesar de outras nações de pretos
erigirem suas irmandades e instituírem seus reis, chamando-o “do Congo”. As
discórdias surgiam na medida que essa multiplicidade de reis, quisesse cada um ser
acompanhado pelas demais nações. Os suplicantes entendiam que devia existir apenas
um rei, o da irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Pretos, a qual
todas as demais deviam obedecer, e pediam que não fossem mais obrigados a
acompanhar outros reis que não fosse o seu 251.
249
SCARANO, op. cit., p. 45-6
250
SOUZA, op cit., p. 195
251
BORGES, Célia Aparecida Resende Maia. Devoção branca de homens negros: As Irmandades do.
Rosário em Minas Gerais no século XVIII, p. 101; cf. OLIVEIRA, op. cit., 1995, especialmente o
capítulo 4
208
252
SOUZA, op. cit., p.196
253
SOARES, op. cit., pp. 191-4
209
254
SOARES, op. cit., pp. 191-4; FARIA, op. cit., 2004, p. 137.
255
SOARES, op. cit., pp. 191-4.
210
famílias 256, (veja figura 2). Pediam também os irmãos, permissão para no “dia dos Reis
coroar para rei da nação Rebolo a Antônio, fâmulo do mesmo Ilmo. e Exmo Sr Vice-
Rei, e que nesse dia pretendem sair com seus instrumentos e danças da mesma nação
para ser feito como maior obséquio” 257.
Embora o vice-rei tenha autorizado à festa, o ouvidor do crime na época não
permitiu as comemorações. Autorizou apenas a coroação, pois em sua opinião a festa
era um “atestado do atraso mental do Brasil”. Com sua morte, o seu substituto, com
uma visão diferente, não achava que a mentalidade brasileira pudesse ser afetada “por
uma festa de escravos” 258 e a tradição foi restabelecida. Recebendo autorização, os
irmãos saiam pelas ruas da cidade e fazendas do Engenho Velho, do Engenho Novo, do
Macaco e de Santa Cruz. Segundo os limites da autorização concedida, cantavam com
seus instrumentos e dançavam, recolhendo as esmolas “profusas, dádivas valiosas, que
entravam para o cofre da irmandade, por conta do qual corria a despesa da festa”. A
estes se juntavam outros pretos, homens mulheres e crianças de diversas nações, que “se
associavam a alheios prazeres” 259.
Marina Mello e Souza observou que recolher donativos para festa em nome
dos reis era costume lusitano nas folias, assim como no universo cultural banto. Era
costume na África Centro-Ocidental as aldeias enviarem tributos aos reis e chefes
tribais. Tal sistema atingiu alto grau de complexidade no reino do Congo, pois estava
diretamente ligado à estrutura da corte congolesa e à organização do poder no interior
da elite dirigente. Entre os séculos XVI e XIX, no reino do Congo, participar de uma
determinada rede de tributação significava fazer parte de um mesmo corpo político,
mesmo que a administração dos assuntos cotidianos fosse independente do rei e da
capital. O rei ocupava um lugar simbólico que era reafirmado por uma fidelidade que se
expressava, entre outras formas, pelas remessas de tributo. “Além disso, sendo o rei o
representante maior da divindade, quando se lhe enviava parte da produção buscava-se
garantir, por seu intermédio, um determinado estado de ventura da comunidade, no qual
vigorava a harmonia social e a fartura material”, frutos de um bom auxílio religioso e
um bom governo. Neste sentido, a tradição centro-africana era incorporada à festa
religiosa e reforçava os laços sociais no interior da comunidade. A atribuição dessa
256
DEBRET, op. cit., p.581.
257
MORAES FILHO, Mello. Festas e tradições populares do Brasil Coleção Biblioteca Brasileira, 2002,
p.279-283.
258
MAURICIO, op. cit., p. 94.
259
MORAES FILHO, op. cit., pp. 279-283.
211
função a um rei aproximava-se das tradições centro-africanas, uma vez que tais recursos
eram revertidos em benefícios para o grupo em forma de festa, mas também em
harmonia e bem-estar de todos os membros do grupo, garantidos pelo bom governo do
rei 260.
FONTE: DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo:
Círculo do Livro, s/d, p. 581
260
SOUZA. Reis Negros no Brasil Escravista...Op. Cit. 2006, p. 211.
212
261
Termo de coroação do Rei e Rainha de nação Cabundá. MORAES FILHO. Op. cit., p. 283; cf.
MAURICIO, op. cit., p. 94.
262
Cf. MORAES FILHO, op. cit., p.p.279-283
263
Idem., p. 283.
264
Ibidem., p. 283
213
265
SOUZA, op. cit., pp. 206-7.
266
SCARANO, op. cit., p.150.
267
SOUZA, op. cit., pp. 207-8.
214
Capitulo – 4 –
Preparando-se para a morte
1
Cf. LE GOFF, Jacques o Nascimento do Purgatório. Lisboa: Editorial Estampa, 1981, p. 346.
2
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 265-6.
3
REIS, op. cit., 1991, p. 92; RODRIGUES, op. cit., 1995, p. 150; 2005, p. 40.
216
testamento, entre os demais 669, 417 (62%) fizeram testamento e 252 (38%) tiveram a
indicação “sem testamento”, o que sugere que teriam condições para testar, mas não
puderam fazê-lo, pois a maioria sofreu morte violenta ou repentina. Já os indivíduos que
não tiveram nenhuma explicação dos motivos por que não fizeram testamento, a autora
afirmou que eram justamente aqueles indivíduos de quem não se esperava a redação de
um testamento. Sendo assim, preparar-se para a boa morte só era possível para os
indivíduos que eram proprietários de bens. Neste sentido, os testamentos se colocavam
como peça fundamental para o ato de morrer, mas somente para aqueles que possuíam
bens 4.
Tais afirmativas estavam em conformidade com as Constituições Primeiras
do Arcebispado da Bahia, que estabeleciam que em todas as paróquias houvesse um
livro para que se assentassem os nomes dos defuntos e no mais tardar dentro dos três
primeiros dias se fizesse o assento de óbito do falecido em que deveria mencionar se o
mesmo fizera testamento, se estabeleceu o número de missas e ofícios para sua alma,
“ou morreu ab intestado, ou se era notoriamente pobre, e, portanto, se lhe fez o enterro
sem se lhe levar esmola” 5. Claudia Rodrigues observou que neste modelo proposto
pelas Constituições Primeiras, havia uma significativa associação entre o ato de testar e
a pobreza, no caso de o individuo morrer sem fazer testamento. O ato de testar era
revestido de grande importância nessa legislação, pois mesmo aqueles que não tivessem
feito testamento eram obrigados justificar porque não o fez. O motivo geralmente era a
pobreza 6.
Este aspecto pode nos levar a questionar a ideia de que quem não tivesse
bens ou que estivesse em alegada pobreza não fazia testamento. Como afirmou
Rodrigues, a legislação eclesiástica esperava que todos os fiéis fizessem testamento e,
talvez, por isso, a pobreza era utilizada como justificativa para aqueles que não o
faziam. Entre os libertos da amostragem de registros de óbitos que analisei, foi possível
perceber alguns que mesmo declarando viver pobremente procuravam fazer o seu
testamento com vistas a se preparar para uma “boa morte”, como ocorreu com Maria do
Nascimento, parda forra, natural da cidade de Angra da Ilha Terceira, que faleceu em 11
de fevereiro de 1748. Declarou que não tinha irmandade alguma e que seria sepultada
na igreja de Nossa Senhora do Desterro na capela de Nossa Senhora da Lapa, “e se me
4
FARIA, op. cit., p. 272-3.
5
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XLIX, c.831, p.
292
6
RODRIGUES, op. cit., 2005, p. 129.
217
dê uma esmola conforme puder”. Embora tenha feito declaração de bens e declarado
que tinha uma filha, não a instituiria por herdeira “por que não [tinha] nada e [vivia]
pobremente”. Em seu testamento declarou:
O fato de ser filiado em quatro irmandades nos leva a pensar que devia ter
sido um africano com posses antes de cair na pobreza como declarou e não ter como
arcar com as despesas dos sufrágios e legados pios. Portanto, apelava para o irmão juiz
7
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Livro de testamentos e Óbitos da freguesia da Sé
AP0155 (1746-1758). Testamento de Maria do Nascimento, p. 77.
8
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Livro de testamentos e Óbitos da freguesia da Sé
AP0155 (1746-1758). Testamento de Maria do Nascimento, p. 77.
9
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Livro de testamentos e Óbitos da freguesia da Sé
AP0157 (1790-1797). Testamento de José Gonçalves Moinho, p. 214.
218
do Rosário para lhe dar sepultura, o que coloca em evidência um dos principais motivos
para os quais os negros africanos e seus descendentes procuravam instituir suas
irmandades. Ou seja, para prestar assistência aos irmãos na hora da morte. Da mesma
forma que Maria do Nascimento, mesmo declarando que havia caído na pobreza fez
declaração de bens dizendo ser possuidor de uma morada de casas térreas que já haviam
sido dadas em vida para seu filho. Declarou ainda que possuía alguns trastes velhos,
além de uma quantia em dinheiro que deixou para seu filho, a quem instituiu seu
legitimo herdeiro e testamenteiro. O fato de ter caído na pobreza não o impediu de
estabelecer sufrágios em forma de missas para salvação de sua alma, de seu ex-senhor,
sua esposa e outras pessoas 10.
Tais aspectos reforçam a argumentação de Claudia Rodrigues de que o
testamento representava mais que um instrumento de demonstração de posses e
transmissão de herança, constituindo-se num instrumento de busca da salvação da alma
do testador. Desde que comportasse legados pios, o testamento era uma forma de
prestação de contas em que o testador buscava demonstrar que tinha se conduzido, pelo
menos no final de sua vida no caminho da fé conforme determinava a Santa Madre
Igreja Católica Romana. 11 Nesse sentido, o testamento pode ser entendido como parte
integrante dos ensinamentos da Igreja sobre o “bem morrer”. Conforme podemos
perceber no testamento da crioula forra Agostinha Rodrigues, viúva, que faleceu em 24
de setembro de 1795. Declarou ser natural da cidade do Rio de Janeiro, foi batizada na
freguesia de Nossa Senhora da Guia de Pacobaíba, não teve filhos e não tinha herdeiro
algum. Foi amortalhada no hábito de São Antonio e sepultada na Igreja Nossa Senhora
do Parto 12, onde era afiliada a irmandade de Nossa senhora das Mercês. Deixou uma
dobla para a irmandade de Nossa Senhora do Rosário da freguesia de Magé, onde
também era irmã. Instruiu a seu testamenteiro que depois de satisfeitas todas as suas
dívidas o restante de seus bens deveria distribuir em sufrágios por sua alma. Em seu
testamento fez a seguinte declaração:
10
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Livro de testamentos e Óbitos da freguesia da Sé
AP0157 (1790-1797). Testamento de José Gonçalves Moinho, p. 214.
11
RODRIGUES, op. cit., cap. 2.
12
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Livro de testamentos e Óbitos da freguesia da Sé
AP0157 (1790-1797). Óbito de Agostinha Rodrigues, p. 314.
219
13
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0157 (1790-1797). Testamento de
Agostinha Rodrigues, p. 314 verso.
14
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: livraria Francisco Alves,1977. p. 208-9.
15
FARIA, op. cit., p. 268.
16
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro – ACMRJ. Livro de óbitos e testamentos da
freguesia da Sé, Ap0157 (1790-1797). Testamento de Luiza Rodrigues, p. 201.
17
RODRIGUES, Claudia. Apropriações da morte católica por africanos e seus descendentes no Rio de
Janeiro setecentista. Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria.v. 10, n.18, jul. - dez. 2007, p. 428.
220
esmolas e obras pias. 18 Neste sentido, o testamento foi utilizado como meio de
exteriorização do sentimento religioso e da fé em Deus em que os fiéis buscavam
demonstrar sua obediência nos preceitos do catolicismo, a crença em seus dogmas.
Geralmente, na profissão de fé, como fez Agostinha Rodrigues, os testadores pediam a
intercessão da Virgem Maria, de Cristo, dos santos, dos anjos da Corte Celestial,
especialmente ao santo de sua devoção e de seu nome e ao anjo de sua guarda que
intercedessem por sua alma. De acordo com os rituais fúnebres católicos determinavam
que fossem realizados sufrágios em favor de sua alma e de outrem, instituíam legados
pios como celebração de missas, distribuição de esmolas aos pobres como forma de
demonstrar arrependimento pelas faltas e pecados que acreditavam ter cometidos em
vida, para saldarem suas dividas 19.
A preocupação com a preparação para uma “boa morte”, fez com que
muitos negros libertos africanos e crioulos, mesmo os que não possuíam bens, fizessem
seu testamento para deixar ali registrado as suas últimas vontades, tais como: o local de
sepultamento, a escolha da mortalha, encomendação e acompanhamento, número de
sufrágios em forma missas, esmolas e obras pias era uma preocupação recorrente entre
todos. De acordo com Claudia Rodrigues, podemos identificar nesses testamentos
vestígios do passado escravista quando estes fazem menção de sua origem africana ou
aos ex-senhores.
Além de permitir conhecer as últimas vontades do falecido os testamentos
revelam que os pretos forros, africanos e crioulos que conseguiram juntar algum pecúlio
e acumular um patrimônio, mesmo que modesto deixavam sempre uma parte para uma
ou varias irmandades dependo da projeção social alcançada pelo defunto. O que em vida
possivelmente tenha lhe garantido alguma influência e possibilitando-lhe ocupar algum
cargo na direção da irmandade. Para as irmandades, não só as esmolas e doações, mas
também a herança deixada pelos confrades era fundamental para a sobrevivência da
instituição garantido a manutenção do culto do orago e assistência aos irmãos.
18
Sheila de Castro Faria observou que em caso da morte de um dos cônjuges, a metade dos bens era do
cônjuge sobrevivente, a outra metade era dividida em três, duas para os “herdeiros necessários” e a
terceira parte, a “terça” o falecido poderia usar livremente em seu testamento. FARIA, op. cit., p. 257.
Cf: FRAGOSO, João. “Apontamentos para uma metodologia em História Social a partir de assentos
paroquiais (Rio de Janeiro, séculos XVII e XVIII)”. In: FRAGOSO, João; GUEDES, Roberto;
SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Arquivos Paroquiais e História Social na América Lusa, séculos
XVII e XVIII: métodos e técnicas de pesquisa na reinvenção de um corpus documental. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2014, p. 74.
19
RODRIGUES, op. cit., 2005. p. 38 e 50.
221
Conforme podemos ver o caso da preta forra Maria do Rosário, que faleceu
em 29 de janeiro de 1747 com todos os sacramentos, foi sepultada na Igreja da Sé
Catedral (Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos), era
filiada à irmandade de Nossa Senhora Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, em
seu testamento diz: “peço aos irmãos de minha irmandade Nossa Senhora do Rosário
acompanharem meu corpo na sua tumba como é de costume.” Declarou que tinha três
escravas, sendo uma fugida e um rapaz que alforriou. Relacionou varias jóias de ouro, a
maioria cordões. E uma cruz com sete diamantes, que disse ter empenhado. E o restante
conforme afirmou estaria na “mão de seu senhor”, provavelmente o antigo proprietário.
Menciona ainda estar devendo 18 patacas da compra de uma baeta. Determinou aos seus
testamenteiros que depois de pagas todas as suas dívidas dessem vinte mil réis de
esmola a sua irmandade Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos.
Depois de cumpridos todos os seus legados o que restasse seria de sua alma, sua
herdeira 20.
Outro caso bastante interessante é o de Cristina de Almeida, preta forra,
natural da Costa da Mina, que faleceu em 05 de julho de 1751. Era afiliada à irmandade
de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos a qual deixou de
esmola a quantia de dez mil réis. Deixou também esmolas para mais duas irmandades às
quais provavelmente era afiliada: Vinte mil réis para as obras de Nossa Senhora da
[ilegível] do Caminho de Nossa Senhora da Gloria e dez mil réis a Nossa Senhora da
Conceição do Hospício e Boa Morte, também para ajudar nas obras. Sem dúvida, o caso
de Cristina é de uma preta forra que prosperou 21. Voltaremos a falar dela mais a frente.
Bastante interessante também é o caso do preto forro Gracia José Manoel, que faleceu
em 30 de outubro de 1799, declarou ser natural do gentio da Guiné, foi batizado no
reino de Angola. Foi amortalhado em habito de Santo Antônio, encomendado pelo
Reverendo pároco e seis sacerdotes, conduzido processionalmente para a Capela de São
Domingos, onde foi sepultado a qual declarou ser indigno irmão. Pediu para ser
acompanhado por seus irmãos e pelos meninos órfãos de São Joaquim, a qual “se lhe
dará esmola competente, e serei conduzido em caixão da Santa Casa da misericórdia, a
quem também se dará a esmola competente”. Pediu ainda ao irmão juiz de sua
irmandade que mandasse “dizer às missas que são obrigados, para o que se pagará os
20
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Livro de testamentos e Óbitos da freguesia da Sé
AP0155 (1746-1758). TESTAMENTO DE Maria do Rosário, p. 30.
21
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0155 (1746-1758). Testamento de Cristina
de Almeida, p. 207 verso.
222
anuais que eu dever” Era casado com a preta forra Ignácia Antonia Ferreira, a qual
instituiu como sua universal herdeira e sua primeira testamenteira. Em seu testamento
fez a seguinte declaração:
Pode-se perceber que Gracia José Manoel não era um preto comum e que
acumulou algum pecúlio e conquistou prestigio entre os irmãos. Declarou que possuía
cinco escravos, mas não fez relação de bens, pois alegou que sua esposa os conhecia
bem. Declarou ser também irmão da Irmandade de São Felipe Santiago, porém seus
irmãos de irmandade não fizeram caso dele, não sabia por que razão, contudo como
tinha devoção ao santo instruiu seu testamenteiro a dar quatro mil réis de esmola para a
dita irmandade e declarou ainda: ”se meus irmãos quiserem mandar fazer por mim
algum sufrágio “obrigado agradeci este beneficio” 23.
Bastante interessante é o caso do preto forro Ignácio Gonçalves do Monte,
que faleceu em 27 dezembro de 1783, com todos os sacramentos, foi amortalhado em
habito de São Francisco e sepultado na Capela de Santa Efigênia, acompanhado pelo
reverendo pároco e dez sacerdotes o que já demonstra a pompa de seu funeral, pois não
é qualquer um que podia dispor de recurso para tal aparato, ainda mais sendo um preto
africano. Seu testamento é riquíssimo em informações que merece uma maior atenção.
Ignácio era um barbeiro sangrador, proprietário de uma “oficina de babeiro”, era uma
22
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0158 (1797-1812). Testamento de Gracia
José Manoel, p. 52-4
23
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0158 (1797-1812). Testamento de Gracia
José Manoel, p. 52-54.
223
importante liderança negra na cidade 24, membro da irmandade de Santo Elesbão e Santa
Efigênia, fazia parte de um dos grupos de procedência da Costa da Mina denominado
Maki. Grupo este que por causa de diversos conflitos entre os diferentes grupos no
interior irmandade, juntamente com os “Angolin, Zano, Sabaru saíram do julgo de
Dagmé, [...]. Procuram fazer seu rei com efeito na pessoa do capitão Ignácio Gonçalves
do Monte no ano de 1762. por ser verdadeiro Makino, este foi o primeiro que fez termo
e endireitou e aumentou essa Congregação” 25.
Durante o reinando de Ignácio (1762-1783), novos conflitos vão surgir,
agora no interior da Congregação Maki, o que fizeram com que os angolin e savalu se
retirassem da congregação para constituírem suas próprias folias elegendo seus próprios
reis 26. Em 1786 os Makis sob a liderança do regente Francisco Alves de Souza fazem os
Estatutos da Congregação dos “Pretos Minas do Reino Maki”, com o objetivo de
sufragar as almas dos seus irmãos nacionais 27. A partir da leitura de seu testamento é
possível conhecermos um pouco de sua história. Declarou que era natural da Costa da
Mina, casado com Vitória Correa da Conceição a qual instituiu sua primeira
testamenteira e herdeira depois que cumprissem os seus legados, pois não tinha nenhum
herdeiro. Sua mulher era sua parenta, filha de seu avô “Eseú Agoa, bem conhecido rei
que foi entre os gentios daquela Costa do Reino de ‘Maý ou Maqui’” 28 e devido a este
parentesco, para se casarem foi necessário que o bispo lhes desse uma autorização.
Ignácio era escravo de Domingos Gonçalves do Monte (de quem ao que tudo indica
recebeu o sobrenome de batismo) e comprou sua carta de alforria por 350$000 réis.
Esses dados confirmam que Ignácio não era um africano forro qualquer, que tinha
24
RODRIGUES, op. cit., 2005. 106.
25
Regra ou estatutos por modo de um dialogo onde se dá noticias das caridades e sufragações das Almas,
que usam os pretos Mina, com seus nacionais no Estado do Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, por
onde se há de regerem, e governarem, fora de todo o abuso gentílico, e supersticioso; com posto por
Francisco Alves de Souza, preto e natural do Reino Maki, um dos mais excelentes e potentados daquela
oriunda Costa da Mina. Biblioteca Nacional: Seção de Manuscritos, Códice 9,3,11, p. 22. Cf. também
SOARES, Mariza de Carvalho (Org.). Diálogos Makii de Francisco Alves de Sousa: Manuscrito de uma
Congregação católica de Africanos Mina, 1786. São Paulo: Cão Editora, 2019.
26
SOARES, Mariza de Carvalho. Histórias cruzadas: os mahi setecentistas no Brasil e no Daomé. in
FLORENTINO, Manolo (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro , séculos XVII – XIX. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 143.
27
Regra ou estatutos por modo de um dialogo onde se dá noticias das caridades e sufragações das Almas,
que usam os pretos Mina, com seus nacionais no Estado do Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, por
onde se há de regerem, e governarem, fora de todo o abuso gentílico, e supersticioso; com posto por
Francisco Alves de Souza, preto e natural do Reino Maki, um dos mais excelentes e potentados daquela
oriunda Costa da Mina. Biblioteca Nacional: Seção de Manuscritos, Códice 9,3,11, p. 37. Cf. também
SOARES, Mariza de Carvalho (Org.). Diálogos Makis... 2019.
28
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0156 (1776-1784). Testamento de Ignácio
Gonçalves do Monte, p. 442 verso.
224
prosperado e conquistado uma projeção política econômica e social dentro e fora de sua
comunidade mina, pois seu oficio de barbeiro sangrador lhe possibilitava estabelecer
relações sociais e comerciais com diferentes indivíduos na cidade, além do seu grupo
social. Alguns desses indivíduos tinham nele total confiança, pois podia comprar com
os mesmos tanto “levando dinheiro para compra a vista ou não”. Como fica explicito
em seu testamento:
A grande influência que Ignácio adquiriu junto a seus patrícios que garantiu
sua projeção no interior da comunidade mina alcançando o posto de capitão e titulo de
rei podem ser justificados pela sua ascendência real sobre os membros do grupo étnico –
maki – ao qual pertencia, pois conforme afirmou era neto de “Eseú Agoa, um bem
conhecido rei” do reino dos makis na Costa da Mina. A lembrança de sua origem
africana guardada na memória associada à lembrança do nome africano de seu avô
sugere a existência de uma identidade africana, que embora distante manteve-se viva no
cativeiro 30. Assim, o capitão Ignácio, um rei africano entre os negros de procedência
mina de etnia maki, gozava de certo poder e prestígio entre os seus patrícios que lhe
garantiu a atribuição de pode guardar as esmolas da congregação e ter controle sobre
elas, além de ter a confiança de patrícios e amigos para guardar seus dinheiros, o que
são indícios de que o capitão Ignácio era também usurário, pois fazia empréstimos a
varias pessoas, conforme declarou em seu testamento:
29
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0156 (1776-1784). Testamento de Ignácio
Gonçalves do Monte, p. 444.
30
RODRIGUES, op. cit., 2005, pp. 107-8.
225
31
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0156 (1776-1784). Testamento de Ignácio
Gonçalves do Monte, p. 443-4.
32
Não há nenhuma explicação em seu testamento por que Ignácio também era chamado de capitão,
improvável que seja associado ao Regimento dos Pretos então existente na cidade. De acordo com Mariza
Soares o mais provável ser algum título honorifico no interior da folia da irmandade. O Manuscrito Maki
designa ainda Gonçalo Cordeiro como alferes, Luiz Roiz Silva e José da Silva como generais. BN (MA)
9,3,11, p. 25. Cf. SOARES, op. cit., 2005, p. 163.
33
Idem, p. 131.
34
BRAVO, Milra Nascimento. Hierarquias na morte. 2014, pp. 72-3.
35
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0156 (1776-1784). Testamento de Ignácio
Gonçalves do Monte, p. 444; RODRIGUES, op. cit., 2005, p. 106-7.
226
além da conta que sempre tinha com os dois senhores André Correa Brandão e José
Duarte de Almeida, mas declarou que na ocasião de sua morte houvesse pessoa que
dissesse que lhe ficara devendo sendo pessoa sincera que se pagasse sem contenda na
justiça. Declarou ainda que o senhor Davi de Magalhães Coelho da região de Minas de
Pitangui lhe devia a quantia de setenta e um mil e duzentos e trinta e cinco réis, resto da
venda de um moleque. Seus testamenteiros deveriam ver no livro que tinha em sua
barbearia as pessoas que o estava devendo para lhe cobrar a divida. Determinou que
seus testamenteiros pagassem os anuais que estivesse devendo a sua irmandade de
Santo Elesbão e Santa Efigênia, para que no dia do seu falecimento seus irmãos
fizessem por sua alma os sufrágios necessários. Determinou o pagamento de seis mil e
quatrocentos réis de esmola aos meninos órfãos de São Joaquim. Deixou estipulado que
rezassem vinte missas de corpo presente pela sua alma, de quatrocentos réis cada uma, a
serem ditas, dez na igreja de sua freguesia e dez na igreja de sua irmandade. Deixou de
sufrágios pela sua alma: duas capelas de missa (ou seja, cem missas), de esmola de
trezentos e vinte réis cada uma. Determinou que seus testamenteiros mandassem dizer
seis missas pela alma do seu antigo senhor, quatro pela alma de sua madrinha, quatro
pela alma do Reverendo Padre Tomás de Abreu Maciel e seis pelas almas dos seus
“parceiros defuntos”, de esmola de trezentos e vinte réis cada uma. Deixou quatro
patacas de esmolas para os pobres. Legou de esmola seis mil e quatrocentos réis para os
santos de sua irmandade. Deixou vinte mil réis aos seus testamenteiros de prêmio por
seu trabalho.
Outro aspecto pode ser observado nos testamentos dos negros africanos e
crioulos libertos a exemplo no testamento de Ignácio Gonçalves do Monte e de Gracia
Manoel, era o seu significado soteriológico, ou seja, um grande temor da morte e a
preocupação com a salvação da alma, o que era bastante recorrente na época entre todos
aqueles que redigiam seus testamentos e declaravam suas últimas vontades, entre os
diferentes segmentos sociais, de acordo com a doutrina da Igreja católica, mas que se
manifestava de forma mais intensa nos testamentos dos africanos libertos e de seus
descendentes. Assim diz Ignácio do Monte em seu testamento:
36
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0156 (1776-1784). Testamento de Ignácio
Gonçalves do Monte, p. 442 verso.
37
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0158 (1797-1812). Testamento de Gracia
José Manoel, p. 52-4.
228
38
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0157 (1790-1797). Testamento de José
Alvares Salvador, p. 268 verso.
229
39
RODRIGUES, op. cit., 2005, p. 99.
230
40
RODRIGUES, Claudia. Apropriações da morte católica por africanos e seus descendentes no Rio de
Janeiro setecentista. Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria.v. 10, n.18, jul. - dez. 2007, p. 428-9.
41
RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 436.
42
VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, feitas, e ordenadas pelo
ilustríssimo e reverendíssimo senhor Sebastião Monteiro da Vide, arcebispo do dito arcebispado, e do
232
Conselho de Sua Majestade, propostas e aceitas no sínodo diocesano, que o dito senhor celebrou em 12 de
junho de 1707. Lisboa, 1719, Coimbra, 1720. Livro 3º. Titulo XXXII, pp. 219-222.
43
RODRIGUES, Claudia. Experiências sociais da morte no Rio de Janeiro colonial... 2017, p. 111-17.
44
Cf. VAINFAS, Ronaldo. Ideologia & Escravidão: os letrados e a sociedade escravista colonial.
Petrópolis: Vozes 1986; OLIVEIRA, op. cit., 2008; RODRIGUES, op. cit., 2005.
45
RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 437.
46
VAINFAS, op. cit., 1986, pp. 93-100; RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 437.
47
Varia História. Revista do Departamento de História. Pós-Graduação em História, Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais .Vol. 4, n. 7, setembro de 1988, p.
53.
48
BENCI, JORGE. Economia Cristã dos senhores no governo dos escravos. Roma, Oficina de Antonio de
Foffi, Praça de Ceri, 1705, p. 1e 2; VAINFAS, Ronaldo. Ideologia & Escravidão... 1986, pp. 94-96.
49
Gn. 9, 18-25: “Os filhos de Noé que saíram da arca eram Sem, Cam e Jafé (Cam é antepassado de
Canaã). São esses os três filhos de Noé se propagaram por toda a terra. Noé que era lavrador, foi o
primeiro que plantou uma vinha. bebeu vinho, embriagou-se e ficou nu dentro de sua tenda. Cam
(antepassado de Canaã) viu a nudez de seu pai e saiu para contá-lo a seus irmãos. Sem e Jafé pegaram
uma capa, jogaram-na sobre os ombros e, caminhando de costas, cobriram a nudez de seu pai. De costas,
não viram a nudez de seu pai. Quando passou a embriaguez de Noé, e ele tomou conhecimento do que
fizera o seu filho menor, disse: Maldito Canaã! Seja servo dos servos de seus irmãos.” De acordo com
José Rivair Macedo a afirmação de que os negros eram filhos de cam teve forte presença nos manuais
religiosos cristãos até pelo menos o século XIX, “abrindo um campo fértil aos defensores da inferioridade
233
amaldiçoados por seu pai, que os condenou a escravidão eterna com o consentimento de
Deus. Portanto, estariam os negros africanos naturalmente condenados à escravidão por
serem descendentes de Cam 50.
Este texto de Benci foi publicado com autorização de seus superiores, o que
de certa forma pode significar que teve aval da Companhia de Jesus e da Igreja Católica.
Tendo em vista que esse texto de Benci influenciou, além de outras obras, as
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, que regeram toda a vida religiosa na
colônia, até o Concílio Plenário Latino Americano, de 1899. O que pode demonstrar a
forte influência que os jesuítas tiveram nesse processo 51. Pois detinham a primazia da
educação 52 na colônia até o século XVIII, quando as reformas pombalinas lhes
subtraíram esse direito e foram expulsos dos domínios coloniais portugueses. 53.
O Padre Antônio Vieira considerava os “pretos” ou “etíopes” naturalmente
escravos, pois eram “filhos de Coré” que significa calvário, através do sofrimento a eles
imposto pelo trabalho árduo, alcançariam a salvação após a morte 54. Compara o martírio
dos negros no cativeiro com o martírio de Cristo, os escravizados são compreendidos
dos negros”. MACEDO, José Rivair. Os filhos de Cam: a África e o saber enciclopédico medieval.
Signum: Revista da Associação Brasileira de Estudos Medievais, São Paulo, v. 3, p. 101-132, 2001,
pp,112-13. Cf. DAVIS, David Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental Rio de Janeiro
Civilização Brasileira, 2001, pp. 79-109; BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia
das Letras, 1992, pp. 246-261.
50
BENCI, JORGE. Economia Cristã dos senhores no governo dos escravos. Roma, Oficina de Antonio de
Foffi, Praça de Ceri, 1705, p. 28 VAINFAS, op. cit., pp. 95-96; RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 437.
51
Dos dezenove examinadores sinodais nomeados para a sua elaboração, seis eram jesuítas, dois eram
beneditinos, dois eram carmelitas, dois franciscanos, um agostiniano e um era carmelita descalço. Os
cinco restantes eram padres seculares de altas dignidades eclesiástica. VIDE Sebastião Monteiro de.
Constituições Primeiras ... 1853, p521-22.
52
Não estou querendo afirmar que os escravizados estavam inseridos no projeto de educação formal,
instituído pela Igreja e/ou pelo Estado, pois sabemos que estes juntamente com os negros alforriados e
mestiços estavam excluídos. Apenas gostaríamos de frisar que “as ideias morais e teológicas de Benci e
dos seus coetâneos, advindas da Patrística e da Escolástica, influenciaram, sobremaneira, na elaboração
das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, promulgadas em 1707 pelo Arcebispo D. Sebastião
Monteiro da Vide, e, por uns dois séculos, forneceram as diretrizes jurídicas, ideológicas, religiosas e
pedagógicas para confirmar e legitimar o sistema de poder imposto pelo Estado Absolutista e pela Igreja.”
Cf. CASIMIRO, A. P. B. S. Igreja, Educação e Escravidão no Brasil Colonial. Politeia - História e
Sociedade, [S. l.], v. 7, n. 1, 2010, p 96. Disponível em:
https://periodicos2.uesb.br/index.php/politeia/article/view/3879. Acesso em: 4 nov. 2021.
53
BEOZZO, J. O. A Igreja frente aos Estados Liberais: 1880-1930. In DUSSEL, E. História liberationis:
500 anos de História da Igreja na América Latina. São Paulo: paulinas, 1992, P. 195; CASIMIRO, Ana
Paula Bittencourt Santos. Quatros visões do escravismo colonial: Jorge Benci, Antônio Vieira, Manoel
Bernardes e João Antônio Andreoni. Politeia: Hist. E Soc. Vitória da Conquista. V.1 2001, p.142.
54
OLIVEIRA, Amanda Melissa Bariano de. EDUCAÇÃO E RELIGIÃO NO BRASIL DO SÉCULO
XVII: PADRE ANTONIO VIEIRA E A ESCRAVIDÃO. 98 f. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Universidade Estadual de Maringá. Orientador: Célio Juvenal Costa. Maringá, 2012, p.80.
234
como eleitos por Deus e feitos à semelhança de Cristo para salvar a humanidade através
de seu sacrifício 55. Nas palavras do padre Antônio Vieira:
55
LITERATURA BRASILEIRATextos literários em meio eletrônicoSermão XIV (1633), de Padre
António Vieira. Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, p. 7. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000032pdf.pdf. Acesso em 16/10/2020; VAINFAS,
op. cit., pp. 96-7; RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 437.
56
LITERATURA BRASILEIRATextos literários em meio eletrônicoSermão XIV (1633), de Padre
António Vieira. Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, p. 7. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000032pdf.pdf. Acesso em 16/10/2020.
57
VAINFAS, op. cit., pp. 97.
58
Idem, pp. 97.
59
LITERATURA BRASILEIRA Textos literários em meio eletrônico Sermão XIV (1633), de Padre
António Vieira. Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, p.29 . Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000032pdf.pdf. Acesso em 16/10/2020
60
RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 437.
235
Só citou uma única vez o que se passava no Céu, mas apresentava o inferno
como um local terrível e assustador para qualquer cristão, local onde o fogo não se
apagava nunca, assim sendo, o destino das almas de mau coração seria terrível, pois a
punição era eterna, enquanto a almas boas iam para junto de Deus no Céu e lá viveriam
para sempre. Instruía-os para fazer a confissão, para lavar a alma dos pecados, e em tom
ameaçador dizia que aqueles que escondessem os seus pecados teriam como destino
após a morte o inferno. O pecado matava alma, que somente voltaria a viver através da
confissão, pois ela era o caminho para comunhão que garantia a reconciliação com Deus
e a salvação da alma.
Outro aspecto que reforçava a associação entre escravidão e pecado estava
relacionado ao discurso em torno da cor preta de alguns santos católicos conforme
vimos no capitulo três. Tal discurso no século XVIII, de acordo com a interpretação de
Anderson Oliveira, não traduzia perspectiva racial e /ou racista entendida à luz do
61
VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, 1720, c. 579, p. 220.
236
campo discursivo das teorias científico-raciais do século XIX 62. Na tradição medieval,
tanto em Portugal, quanto no restante de toda Europa preto ou negro eram cores vistas
como castigos impostos aos pecadores. O negro era sinônimo de “desgraçado”, ou seja,
desprovido de graça divina, em oposição a cor branca, que era a cor dos bons e dos
recompensados por Deus. 63 Assim, a catequese dos africanos e seus descendentes era
uma tarefa extremamente importante para Igreja, e “a promoção de santos negros fazia
parte das estratégias para a catequese dos negros. Carmelitas e franciscanos lançaram-se
deliberadamente na promoção de santos que tivessem aceitação entre os africanos e seus
descendentes”. No discurso carmelita produzido por Frei José Pereira de Santana,
Elesbão e Efigênia eram pretos, mas apesar desse “acidente” não estavam inferiorizados
na corte celeste porque se destacavam pelos seus procedimentos e suas virtudes. Nesse
sentido, a cor preta como acidente poderia ser superado pelas virtudes e pelos dogmas
religiosos. 64 Utilizando-se do mesmo procedimento Frei Apolinário da Conceição
escrevendo sobre a vida de São Benedito afirmava que apesar de ser preto, ele foi
beatificado e canonizado primeiro que outros franciscanos também virtuosos. Era
importante que os africanos e seus descendentes entendessem, sem qualquer sombra de
dúvida, que os santos eram negros. A cor preta representava um castigo, mas que este
poderia ser superado com uma vida virtuosa de acordo com os preceitos da fé. Santo
Elesbão e Santa Efigênia eram pretos e africanos, aqueles que tinham a mesma origem
ou fossem da mesma cor, a exemplo dos santos, poderiam também ser virtuosos 65.
Associação que permite compreender porque a presença tão forte da
expressão de culpa nos testamentos dos negros africanos libertos e seus descendentes, o
que intensificou o temor já existente nas representações católicas sobre a morte e o
morrer 66. A presença de tal conteúdo de forma especifica nos testamentos de africanos
libertos e seus descendentes preconizava a possibilidade de convivência entre as
representações católicas e africanas com relação às vivências da morte e do morrer.
Afinal, uma parcela destes indivíduos se apropriou de elementos da doutrina católica,
62
OLIVEIRA, op. cit., pp. 185. De acordo com Horta “A contraposição branco/negro de sentidos
respectivamente positivo e negativo não representa em si qualquer preconceito de tipo racial, mas é tão-só
o resultado do sistema de cores próprio do código cultural.” HORTA, José da Silva. A imagem do
Africano pelos portugueses antes dos contactos. In FERRONHA, Antônio Luís (coord.). O confronto do
olhar: o encontro dos povos na época das Navegações portuguesas. Séculos XV e XVI. Portugal, África,
Ásia, América. Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Caminho, coleção universitária, s/d. p.
45.
63
HORTA, op. cit., s/d, p. 45; OLIVEIRA, op. cit., pp. 185; RODRIGUES, ,op. cit., 2007 p. 442.
64
OLIVEIRA, op. cit., pp. 186; RODRIGUES, op. cit., 2007 p. 442.
65
OLIVEIRA, op. cit., pp. 181-191.
66
RODRIGUES, op. cit., 2007 p. 443; 2010, p. 41.
237
67
RODRIGUES, op. cit., 2007 p. 443; 2010, p. 41.
68
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0157 (1790-1797). Testamento de José
Alvares Salvador, p. 268 verso.
69
Regra ou estatutos por modo de um dialogo onde se dá noticias das caridades e sufragações das Almas,
que usam os pretos Mina, com seus nacionais no Estado do Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, por
onde se há de regerem, e governarem, fora de todo o abuso gentílico, e supersticioso; com posto por
Francisco Alves de Souza, preto e natural do Reino Maki, um dos mais excelentes e potentados daquela
oriunda Costa da Mina. Biblioteca Nacional: Seção de Manuscritos, Códice 9,3,11, p. 31. Cf. SOARES,
Diálogos Makii ... 2019.
70
SOARES, op. cit., 200, pp. 213-230.
71
RODRIGUES, op. cit., 2007 p. 444; 2010, p. 43.
72
Cortejos fúnebres de africanos com cantos africanos, palmas, toques de tambor, bombas e rojões que
ocorriam pela cidade, e foram registrados nos relatos de vários viajantes. Embora seja da primeira metade
do século XIX tem uma estreita relação com a fala do regente da Congregação dos Pretos Minas Maki,
no final do século XVIII. Essa questão já foi analisada por Claudia Rodrigues. RODRIGUES, op. cit.,
1996, pp. 158-163; 2007 p. 450; 2010, p. 43-4. Cf. também. REIS, op. cit., 1991, pp. 159-163.
238
73
Regra ou estatutos por modo de um dialogo onde se dá noticias das caridades e sufragações das Almas,
que usam os pretos Mina, com seus nacionais no Estado do Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, por
onde se há de regerem, e governarem, fora de todo o abuso gentílico, e supersticioso; com posto por
Francisco Alves de Souza, preto e natural do Reino Maki, um dos mais excelentes e potentados daquela
oriunda Costa da Mina. Biblioteca Nacional: Seção de Manuscritos, Códice 9,3,11, p. 22; SOARES,. op.
cit., 2019, pp. 20 e 40.
74
RODRIGUES, op. cit., 2010, p. 43-4.
75
Estatutos da Congregação dos Pretos Minas Maki no Rio de Janeiro. Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro – BNRJ. BN/MA – 9, 3, 11. Capitulo 4º.
239
recomendado pela Igreja que este seria o dial ideal para se celebrar missas e rezar pelos
mortos 76. Percebe-se a grande preocupação que esse grupo de negros africanos da Costa
da Mina tinha com as necessidades de seus irmãos nacionais vivos e mortos, pois além
do exposto acima em relação às missas e orações dedicadas aos irmãos falecidos, de
acordo com os estatutos da devoção das almas do purgatório este adjunto teria sido
criado para fazer caridade aos seus irmãos nacionais conforme o estabelecido no
capitulo quinto.
Ao detalhar a assistência que deveria ser feita pelos vivos aos irmãos mortos
com acompanhamento, missas e esmolas colocava a morte e ancestralidade como
elemento central da identidade maki. Ao mesmo tempo, segundo Rodrigues, mantinham
a identidade mina. A leitura dos estatutos da Congregação revela que eles buscavam
estabelecer a hegemonia maki, no interior da comunidade mina; buscando-se excluir os
Angolas, identificados como “gentios”, pelo uso de canções consideradas gentílicas e
supersticiosas pelos makis. 78 As determinações estabelecidas nos estatutos da
Congregação dos Pretos Minas Maki evidenciam a grande importância atribuída por
este grupo com os sufrágios dos mortos, numa estreita relação com as doutrinas
escatológicas do catolicismo. Que contribuíram de forma imprescindível para a
construção indenitária do grupo 79. Conforme já foi dito por Mariza Soares e Claudia
76
SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo Companhia das
Letras. 1999. p. 197; RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 454-5; 2010, p. 44-5; CAMPOS, Adalgisa Arantes.
As irmandades de São Miguel e as Almas do Purgatório: culto e iconografia no setecentos mineiro. Belo
Horizonte: C/Arte, 2013, p. 98.
77
Estatutos da Congregação dos Pretos Minas Maki no Rio de Janeiro. Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro – BNRJ. BN/MA – 9, 3, 11. Capitulo 5º, p. 32.
78
RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 454-5; 2010, p. 44-5.
79
RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 455; 2010, p. 45.
240
Rodrigues por traz da regulamentação dos Estatutos da Congregação dos Pretos Minas
de Reino de Maki, para devoção das almas do Purgatório, Francisco Alves de Souza
procurava apresentar os makis como verdadeiros católicos. A preocupação com os
“gentilismos” e as “superstições” ao que tudo indica teria sido uma inovação da
Congregação orquestrada pelo próprio regente Souza, com o apoio do secretário
Cordeiro que demonstrava interesse pessoal na conversão dos makis ao catolicismo,80
apresentando-os como tementes a Deus, “briosos que nunca usam de superstições, fiéis
aos senhores e grandes católicos” 81.
A partir da leitura dos estatutos da Congregação é possível perceber como o
regente Souza e o secretário Cordeiro buscavam demonstrar enfaticamente sua fé,
procurando falar “catolicamente” 82, utilizando-se de citações bíblicas em latim. Além de
temente a Deus, Souza colocava-se como obediente ao “que mandava Santa Madre
Igreja Católica de Roma”. Em diálogo com o secretario Gonçalo Cordeiro afirmava que
a “vaidade era a causa de muitos irem para o Inferno”. Nesse sentido reiterava ser
cristão desde a infância pela graça de Deus não por seus merecimentos, por isso
declarava-se um “miserável pecador”. Assim, fica clara a aproximação da fala de
Francisco de Souza com os elementos da escatologia católica presente nos testamentos
de negros analisados 83.
Não há dúvidas que a regulamentação da devoção às almas do Purgatório se
constituiu em meio de afirmação do catolicismo entre os makis na cidade do Rio de
Janeiro a partir das últimas décadas do século XVIII. Ou seja, através das atitudes diante
da morte, esse grupo de africanos buscava converter ao catolicismo os seus irmãos
nacionais. Francisco Alves de Souza “inventa”, inclusive uma tradição ou memória
africana, ao narrar à história de um grande“Reino Maki”, “cristão” na Costa da Mina.
De acordo com Mariza Soares e Claudia Rodrigues, ao narrarem à história da origem
dos makis o regente e seu secretário procuram estabelecer uma linha ininterrupta de
continuidade entre o grande reino Maki na Costa da Mina e eles próprios, identificando-
80
SOARES, op. cit., 2000, pp. 215-19; RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 455; 2010, p. 45.
81
Regra ou estatutos por modo de um dialogo onde se dá noticias das caridades e sufragações das Almas,
que usam os pretos Mina, com seus nacionais no Estado do Brasil, especialmente no Rio de Janeiro...
Biblioteca Nacional: Seção de Manuscritos, Códice 9,3,11, p. 7.
82
Regra ou estatutos por modo de um dialogo onde se dá noticias das caridades e sufragações das Almas,
que usam os pretos Mina, com seus nacionais no Estado do Brasil, especialmente no Rio de Janeiro...
Biblioteca Nacional: Seção de Manuscritos, Códice 9,3,11, p. 8.
83
Regra ou estatutos por modo de um dialogo onde se dá noticias das caridades e sufragações das Almas,
que usam os pretos Mina, com seus nacionais no Estado do Brasil, especialmente no Rio de Janeiro...
Biblioteca Nacional: Seção de Manuscritos, Códice 9,3,11, p. 8.
241
se como os herdeiros legítimos de seus ancestrais, aos quais eles rezavam com devoção
para que salvassem suas almas. Procuravam, assim, mostrar a presença cristã na África,
combatendo. Também lá, as práticas gentílicas dos daomeanos, que também eram
membros da irmandade 84.
Ao construírem uma imagem de um grande “Reino Maki” “cristão” na
Costa da Mina estavam evocando uma longa tradição católica que havia começado na
África com seus ancestrais e que com entrada dos makis tráfico Atlântico tal tradição
continuou no Brasil em especial na cidade do Rio de janeiro, sendo eles e irmãos
nacionais os seus legítimos herdeiros. Tal questão coloca em evidencia o significado da
identidade de um grupo de africanos que buscava construir uma congregação
majoritariamente constituída por africanos com um caráter evidentemente católico.
Concordando com Mariza Soares e Claudia Rodrigues, é possível afirmar que, se num
primeiro momento a recusa de certas práticas culturais africana poderia nos levar a
acreditar que os congregados makis estavam renegando sua identidade étnica, uma
análise detida de outros indícios demonstra que isso não ocorreu 85.
Rodrigues demonstra como, nos estatutos da Congregação dos Pretos Minas
Makis, é possível perceber de forma recorrente ao longo do texto o uso de expressões
como “parentes” e “nacionais” para se referir aos demais africanos do grupo de
procedência, o vinculo com os ancestrais através da devoção às almas, além do uso da
“língua geral da Mina”, que aparece em dois momentos pelo menos. O primeiro ocorre
no terceiro capítulo ao se referirem que as pessoas que quisessem entrar no adjunto ou
congregação deveriam ser “examinados pelo secretário deste adjunto, e Oggãn 86, que é
o mesmo que procurador geral”, deveriam se certificar que não fossem “pretos ou
pretas, que usem de abusos e gentilismos ou superstição”, neste caso os angolas estavam
excluídos. O segundo momento quando Francisco de Souza nomeou os membros da
congregação em seus cargos e títulos.
A José Antônio dos Santos para jacolûduttoqquêm, que é o
mesmo que cá duque. É o primeiro-conselheiro com as chaves
do cofre. Alexandre de Carvalho para Euçûm, que é como cá
duque, segundo do conselho, com a segunda chave do cofre. A
Marçal Soares, Alolû Belppôn Lissoto,que é como cá duque, e
terceiro do conselho, com a terceira chave do cofre. [...] A
Boaventura Fernandes Braga, Aeolû Cocoti de Daçá, que é
84
SOARES, op. cit., 2000, pp. 226-9; RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 457; 2010, p. 46.
85
SOARES, op. cit., 2000, pp. 226-9; RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 458; 2010, p. 46.
86
De acordo com João Reis Ogan é o termo jeje, língua fon, que define postos masculinos na hierarquia
dos atuais candomblés, mas originalmente significava chefe. REIS, op. cit., 1997, p. 11.
242
87
Regra ou estatutos por modo de um dialogo onde se dá noticias das caridades e sufragações das Almas,
que usam os pretos Mina, com seus nacionais no Estado do Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, por
onde se há de regerem, e governarem, fora de todo o abuso gentílico, e supersticioso; com posto por
Francisco Alves de Souza, preto e natural do Reino Maki, um dos mais excelentes e potentados daquela
oriunda Costa da Mina. Biblioteca Nacional: Seção de Manuscritos, Códice 9,3,11, p. 25. Cf. SOARES,
op. cit., 2019, p. 45.
88
SOARES, op. cit., 2000, pp. 29-30; RODRIGUES, op. cit., 2007, p. 458-9; 2010, p. 46.
89
SOARES, Mariza de Carvalho. O Império de Santo Elesbão na cidade do Rio de Janeiro. Topoi, Rio de
Janeiro: Programa de Pós-Graduação em História da UFRJ/7 Letras, vol.4, 2002, p. 75; RODRIGUES,
op. cit., 2007, p. 459; 2010, p. 47.
243
da língua geral mina para definir os cargos e títulos dos irmãos nos leva a concordar
com João Reis que a Congregação dos Pretos Minas Makis era uma organização mais
densamente africana que as irmandades em geral, na qual as identidades
especificamente africanas faziam-se representar com mais intensidade 90.
Tais aspectos nos coloca a questão da relação que estes e outros grupos de
africanos da cidade do Rio de Janeiro construíam com o mundo dos mortos, para além
das aproximações com as concepções e práticas católicas. Nesse sentido, observamos
que a Congregação dos Pretos Minas Makis era muito parecida com a “Nobre Nação de
Benguela”, instituída no interior da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São
João del Rei, por escravizados e forros procedentes da região de Benguela, na África
Centro-Ocidental, dedicada a sufragação das almas do purgatório e prestar caridade aos
irmãos compatriotas. A qual teve adesão de outros grupos de origem centro-africana,
como os angolas, morumbas, ganguelas e seus descendentes em solidariedade às almas
de seus irmãos compatriotas que um dia serviram como vassalos da “Nobre Nação de
91
Benguela” . Que foi estudada por Silvia Brügger e Anderson Oliveira, e mais
recentemente por Leonara Delfino.
Assim, os irmãos benguelas reunidos em um reinado de cunho étnico
religioso decidem aumentar o número de sufrágios para a salvação das almas do
Purgatório além do oferecido pela devoção do Rosário com o objetivo de potencializar a
liturgia da morte aumentando o número de missas fúnebres, entre a última década do
século XVIII até a segunda metade do século XIX 92. Prova da dedicação dos irmãos
benguelas em cultuar seus mortos e prestar a caridade aos seus “parentes” 93. Nesse
sentido fica evidente a construção de um parentesco ritual mais coeso em relação ao
próprio parentesco confraternal ou familiar consanguíneo 94. A partir do pertencimento
90
REIS, op. cit., 1997, p. 10 e 11.
91
BRÜGGER, Silvia e OLIVEIRA. Anderson de. Os Benguelas de São João Del Rei... 2009, p. 187-189;
DELFINO, Leonara Lacerda. O culto dos mortos da nobre nação de benguela na experiência devocional
do rosário dos homens pretos são João Del-Rei, MG (1793-1850). Afro-Ásia, 58 (2018), p.11.
92
“Embora datado de 1803, as anotações ao longo do livro permitem que se perceba que a congregação
havia sido criada, pelo menos, desde a última década do século XVIII, já que se encontra um recibo de
1793, passado pelo Padre Luís Pereira Gonzaga, dando conta de duas missas rezadas pelas almas de Ana
e Mariana Lopes, mandadas dizer por João Ladino. Embora não existisse uma regularidade nas certidões
a indícios de que a congregação existiu até a segunda metade do século XIX, pois consta no livro uma
certidão de uma missa celebrada pela alma de João da Cunha Preto, em 1871”. BRÜGGER e OLIVEIRA,
op. cit., p. 187-188.
93
DELFINO, Leonara Lacerda. O culto dos mortos da nobre nação de benguela na experiência
devocional do rosário dos homens pretos são João Del-Rei, MG (1793-1850). Afro-Ásia, 58 (2018), pp.
9-11.
94
REIS, op. cit., 1991, p. 55; DELFINO, Leonara Lacerda. O culto dos mortos da nobre nação de
benguela... Afro-Ásia, 58 (2018), p.11.
244
95
DELFINO, op. cit., p.12.
96
BRÜGGER e OLIVEIRA, op. cit., p.189.
97
“A praia localizava-se às margens do Córrego do Lenheiro ou do Tejuco que cortava a Vila de São
João, portanto, um lugar central e de grande visibilidade. Área vulgarmente denominada de Prainha pelos
memorialistas. Onde se situava o oratório dedicada às almas Milagrosas do Purgatório” . Cf. BRÜGGER
e OLIVEIRA, op. cit., p. 188; DELFINO, op. cit.,, p.13.
98
Idem., p.13.
99
Ibidem., p.16.
245
100
DELFINO, op. cit., p.14.
101
Para ver o significado e diferentes formas de uso do termo casa confira: FARIA, op. cit., p. 370; REIS,
João José “Magia Jeje na Bahia: a invasão do calundu do Pasto de Cachoeira, 1785”, Revista Brasileira de
História, São Paulo, ANPUH/Marco Zero, v. 8, n. 16, 1988, p. 67-72; ALGRANTI, Leila Mezan O feitor
ausente: estudos sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro – 1808-1822, Petrópolis, Vozes, 1988, p.
147; SOARES, Carlos Eugênio Líbano Zungú: rumor de muitas vozes, Rio de Janeiro, Arquivo Público
do Estado do Rio de Janeiro, 1998, p. 26-30.
SOUZA, Laura de Mello e O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil
colonial, São Paulo, Cia. das Letras, 1989, p. 291; 352-353.
102
BRÜGGER e OLIVEIRA, op. cit., p.198.
103
Idem., p.199.
246
calundus, estava também associada aos batuques e a alimentação – como, por exemplo,
o consumo de Angu nas Casas de Zungú 104 ou Angu do Rio de Janeiro que era também
uma tradição centro-africana 105.
De acordo com Silvia Brügger e Anderson Oliveira “Comer em grupo
assume caraterísticas rituais importantes. Partindo da ideia de que a morte reintegra ao
convívio dos ancestrais é motivo de alegria, de dança, de comer; fato que,
provavelmente, os benguelas conservaram em sua memória. Chamamos a atenção, no
entanto, para o fato de que a casa por eles adquirida poderia também ser um espaço para
106
estas manifestações” . Para os adeptos das religiões afro-brasileiras comer em grupo
na casa do santo tem um forte valor simbólico, portanto, fazer a alimentação em grupo é
um importante elemento identitário, que vai além de um ato meramente biológico;
constituindo-se uma prática sociocultural 107. O banquete de confraternização era uma
prática comum nas irmandades, como vimos no capitulo anterior, e a Igreja tentou
controlar os seus excessos por meio das Constituições Primeiras, numa tentativa de
evitar que estas fizessem gastos dispendiosos com elementos profanos e se ocupassem
mais com questões ordinárias e licitas. Ligadas ao sagrado para o bom funcionamento
da confraria 108. Nesse sentido a casa se constituía em um espaço de ritual, de encontro,
de louvor aos ancestrais, de reforço às identidades baseadas nas recordações readaptadas
ao novo cenário funcionando como um espaço de “abastecimento cultural” 109.
104
De acordo com Sheila de Castro Faria uma primeira denominação para essas casas era de casa de
quilombo, pois serviam de rota de fuga para escravizados. Segundo Carlos Eugenio Líbano Soares, essas
casas eram de propriedade, administradas ou servidas por mulheres, esmagadoramente oriundas da Costa
da Mina. FARIA, op. cit., 2004, p. 151; SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Zungú: rumor de muitas
vozes, Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998, p. 26-30.
105
Descrição da cidade de São Felipe de Benguela em que o narrador fala do consumo de angu no local.
“Estes negros são todos criadores de gados vacum e ovelhum, e se sustentam de leite, que lhe tiram, e
deixam coalhar para lhe tirarem a manteiga, de que se servem para comer, e tratar os seus engrenhados
cabelos, e lhe chamam à tal manteiga ingunde, e a coalhada, a que eles chamam mabele, é seu sustento
com seu infunde (o qual é feito do farinha de milho, e outro mais miúdo chamado massambala e outro
ainda mais miúdo, e muito mau chamado massango, que é o que comem os passarinhos). Estes os moem
entre duas pedras, e depois fazem ao lume uma massa a que chamam Infunde, ou quita, e nós os
Portugueses, Angu”. LACERDA, Paulo Martins Pinheiro de. Notícia da Cidade de S. Filipe de Benguela,
e dos costumes dos gentios habitantes daquele sertão, 1797, p. 2. (Transcrito dos Annaes Marítimos e
Coloniaes (Parte não Oficial), Série n.º 5 (12), 1845, pags. 486-491). Disponível em: https://arlindo-
correia.com/100109.html. Acesso em 10 de fevereiro de 2022. Tomei conhecimento deste texto através da
leitura do artigo de BRÜGGER e OLIVEIRA, op. cit., p.200.
106
BRÜGGER e OLIVEIRA, op. cit., p.201.
107
Raul Lody, Santo também come, Rio de Janeiro, Pallas, 1998, p. 23-30. Apud. BRÜGGER e
OLIVEIRA, op. cit., p.201.
108
Cf. Constituições Primeiras...Titulo LXII, p.306; OLIVEIRA, Anderson José Machado de. A Festa da
Glória. Festas, irmandades e resistência cultural no Rio de Janeiro Imperial. HISTÓRIA SOCIAL
Campinas - SP Nº pp. 7 19-48, 2000. pp. 37-37; BRÜGGER e OLIVEIRA, op. cit., p.202.
109
Idem., p.202.
247
110
BALANDIER,Georges. La vie quotidienne au Royaume de Kongo du XVIe au XVIIIe siècle, Paris,
Hachette, 1965, p. 137-139. Apud. BRÜGGER e OLIVEIRA, op. cit., p.202. Cf. DELFINO, op. cit.,
p.15.
111
Idem., p.15.
248
112
BRÜGGER e OLIVEIRA, op. cit., p.203-4; DELFINOop. Cit., pp.26-7; SOARES, op. cit., 2005, p.
151.
113
BRÜGGER e OLIVEIRA, op. cit., p.204.
114
DELFINO, op. cit., pp. 33-4.
115
Art. 6º do Código Civil Brasileiro. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm . Acesso em 05/10/2020
249
do ser humano, em Direto denominado Pessoa de modo total e irreversível.” 116 A vida e
morte são conceitos centrais para a compreensão das concepções de pessoa e estão
presentes em diferentes culturas. Os modos de administração do início e finitude da vida
são diversificados e dependem das crenças compartilhadas, e elaboradas por cada grupo
social.
A morte é um evento natural e cultural que consiste em duas modalidades de
comportamento social frente à finitude do ser. A primeira de natureza biológica é a
cessação de todos os sentidos do indivíduo, de forma irreversível e imediata estabelece
o reconhecimento de que o ser feneceu biologicamente 117. Portanto, morte natural é
aquela que resulta de um processo esperado e previsível, ainda que não desejado, é a
mais aceitável por envolver essencialmente o envelhecimento natural, com o
esgotamento progressivo das funções orgânicas, ou o avanço de uma doença interna,
aguda crônica, transcorrido sem a intervenção de qualquer fator externo ou exógeno. 118
Fábio Leite, ao estudar as sociedades africanas iorubá, agni e senufo, no
final da década de 1970 e inicio de 1980 119 observou que para elas a morte de um idoso
é mais aceitável, pois este já preencheu alguns critérios socialmente aceitáveis, como
iniciação formação de família numerosa permitindo descendência, ou seja, existência de
herdeiros legais, comportamento ético apropriado, dedicação ao trabalho, conhecimento,
respeitado na comunidade, a posse de certos bens materiais etc. Uma pessoa nessas
condições é considerada mais “forte”, menos suscetível de ser atingida pela morte em
virtude de ações mágicas de homens ou divindades, ancestrais ou outras forças
irredutíveis da natureza.
Entre os senufo, por exemplo, os idosos recebem menos “sacrifícios”
voltados para proteção, devido ao fato de estarem mais próximos das fontes sagradas de
energia e do espaço ancestral, onde deverá ocupar o seu lugar em breve. Entre eles os
ancestrais são considerados uma espécie de elo entre os homens e o sagrado, e os idosos
116
FRANÇA, Rubens Limongi. O conceito de morte, diante do Direito ao transplante e do Direito
hereditário, in: Revista dos Tribunais, S. Paulo, 84 (717): jul. 1995, p. 59, 60; SANTOS, Maria Celeste
Cordeiro Leite dos. Conceito médico-forense de morte. Revista da Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo, São Paulo, v. 92, n. ja/dez. 1997, p. 341-380, 1997. DOI: 10.11606/issn.2318-
8235.v92i0p347-8.
117
CAMPOS, Adalgisa Arantes. Notas Sobre os Rituais de Morte na Sociedade Escravista. In: Revista do
Departamento de História da FAFICH/UFMAG. VI (1988) p. 109.
118
SANTOS, op. cit., p. 359
119
O autor realizou seu trabalho de campo nas regiões da Costa do Marfim, Gana, Togo, Benin e Nigéria
a qual estudou os Iourubá do Benin (reino de Ketu) e da (Nigéria (reinos de Ifé e Oyo), os Agni-Akan
(reinos Ndenie, samwy e Morofoé, da Costa do Marfim) e os Senufo também da Costa do Marfim (África
do Oeste).
250
por sua vez constituem-se em elos eficazes entre as pessoas e os ancestrais. Isso explica
porque a maior parte das funções relacionadas a essa comunicação sejam ocupadas
pelos mais velhos. Neste sentido, de acordo com Leite o “velho sábio africano” é quase
um ancestral vivendo na comunidade. Desta forma, é compreensível o acesso mais
eficaz dos idosos ao sagrado e grande respeito a eles devotado legitimando o poder
gerontocrático 120. O que demonstra de que modo à proximidade com a morte se investe
de sentido cultural, passível de ritualizações.
A morte cultural 121 é aquela através da qual os vivos confirmam socialmente
a morte biológica, e constroem o status ontológico espiritual do morto. Nesse sentido, o
que se leva em conta aqui é a consciência que se tem da morte 122. A cultura é a forma
como estão encadeadas as ideias, argumentos, ações, emoções, palavras, num conjunto
organizado num determinado contexto social que revela a dimensão histórica do ser.
Através dela os processos naturais de hominização são transformados em processos
intencionais e conscientes de humanização, que podem ser definidos como processos
sociais e históricos com base nas relações humanas 123. Antropologicamente, a morte foi
explicada por vários estudiosos como um rito de passagem 124, um momento de transição
entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, um trajeto de provações e incertezas
que só termina com o fim da celebração dos rituais fúnebres. Exatamente por isso ela é
reconhecida como a passagem de uma forma social de vida a outra; de modo que ela
não representa o fim da existência, mas a início de uma nova vida 125.
Na América portuguesa e no Império do Brasil, mais precisamente no Rio
de Janeiro, os ritos fúnebres faziam parte do cotidiano dos indivíduos, dos mais ricos
aos escravizados, havia a crença de que a morte não era o fim da vida, e sim uma
passagem da alma de uma vida para a outra no além-túmulo. Assim, o processo de
incorporação do morto ao mundo dos mortos por meio de cerimônias fúnebres era
fundamental para que o morto fizesse a passagem e fosse bem recebido na nova morada
120
LEITE, Fábio. A questão ancestral. São Paulo, Palas Athena, 2008, p. 96.
121
O Conceito de cultura ao qual nos referendamos nesta pesquisa esta baseado em Glifford Geertz: “ele
denota padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de
concepções herdadas e expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam,
perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em ralação avida”. GEERTZ, Glifford. A
interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC - Livros Técnicos e Científicos Editora S.A. GEN –
Grupo Editorial Nacional. 2008, p.66.
122
BATAILLE, George. O erotismo. Porto Alegre: L&pm, 1987, p. 29; CAMPOS, op. ci., p. 109
123
Cf. CAMPOS, op. cit., p. 109.
124
GENNEP. Arnold Van. Os ritos de passagem. Petrópolis: Editora Vozes, 2011.
125
RODRIGUES, José Carlos. Tabu da Morte. Rio de Janeiro: Edições Achiamé, 1983, p. 46;
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 149.
251
por aqueles que partiram antes dele 126. Envolto em dramatizações, a morte era marcada
por rituais que se diferenciam de acordo com cada cultura 127.
Em muitas sociedades onde existe uma visão religiosa do mundo, a
realização dos rituais funerários adequados é fundamental para a segurança dos mortos e
dos vivos, pois a morte vai além de um momento instantâneo, uma mera destruição, mas
um processo de transição em que o morto precisa seguir o seu destino 128. Sua integração
ao “outro mundo” somente é reconhecida como acontecida após a realização dos rituais
fúnebres. Ou quando a alma ou o espirito do indivíduo tiver sido ritualmente conduzida
a uma nova morada, no além-túmulo, e lá for aceita pela comunidade dos mortos 129.
Nesse sentido, os ritos funerários que agregam o morto ao mundo dos mortos são os
mais elaborados e aqueles aos quais se atribui a maior importância. Assim, é
fundamental o papel desempenhado pelos vivos nesse processo cuidando para munir os
mortos de todos os objetos materiais necessários (roupas, alimentos, armas, utensílios)
ou mágicos religiosos (amuletos, signos e senhas, etc.), que lhes garantirão, como se
fosse um viajante vivo, a jornada ou travessia e depois o acolhimento auspicioso no
além-túmulo 130.
Van Gennep observa que, por um lado, dificuldades são criadas quando o
morto não consegue seguir seu destino. Devido à ausência de ritual funerário, esses
mortos são condenados a uma existência deplorável, não podem jamais ingressar no
mundo dos mortos ou se incorporar à sociedade aí constituída. São os mortos mais
perigosos, pois desejam reintegra-se ao mundo dos vivos, mas como não podem fazê-lo
tornam-se estrangeiros hostis. Não possuindo meios de subsistência que os outros
mortos têm a seu dispor em seu próprio mundo, e, por conseguinte, tentam obtê-lo a
custas dos vivos. Além do mais, estes mortos sem lugar onde habitar sentem com
frequência um profundo desejo de vingança 131. Destarte, os ritos mortuários são ao
mesmo tempo ritos utilitários de grande abrangência, que ajudam a livrar os
sobreviventes de inimigos eternos. Tal classe de mortos poderia ser encontrada entre os
diferentes povos. Além dos indivíduos citados, nela também figuravam os sem família,
os suicidas, os mortos em viagem, por raio, pela violação de algum tabu, etc. Isto em
126
REIS, op. cit.,, 1991, p. 89; SILVA, Michele Helena Peixoto da. Morte, escravidão e hierarquias na
freguesia de Irajá: um estudo sobre os funerais e sepultamentos dos escravos (1730-1808). Dissertação de
Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, 2017, p. 130.
127
SILVA, op. Cit., p. 130
128
REIS, op. cit., 1991, p. 89.
129
RODIGUES, op. cit., 1996, p. 149.
130
GENNEP. Op. cit., p.133.
131
Idem., p.138.
252
teoria geral, pois o mesmo ato pode não ter as mesmas consequências em diferentes
sociedades 132. Por outro lado, Gennep argumenta que se o morto recebeu os rituais
condignamente, passa ao outro mundo “plenamente feliz”, e se junta aos ancestrais,
podendo interceder pelos vivos juntos aos deuses, inclusive facilitando-lhes a futura
incorporação à comunidade dos mortos. Nesse sentido, tem os vivos todo o interesse em
cuidar bem dos seus mortos, assim como da própria morte. 133
De acordo com Arnold Van Gennep, os ritos funerários podem ser divididos
três momentos distintos: os ritos separação ou “preliminares”, momento simbólico de
desligamento do morto do mundo visível dos vivos para que ele possa ingressar no
mundo invisível dos ancestrais. Entre os ritos de separação estariam os “procedimentos
de transporte do morto para fora, a queima dos utensílios da casa, das joias, das riquezas
do morto, a morte das mulheres, de seus escravos, de seus animais favoritos, lavagens,
unções em geral, ritos de purificação, tabus de toda espécie”, etc., além desses existiam
os “procedimentos materiais de separação como fosso, caixão, cemitério”, etc., que
eram “construídos ou utilizados ritualmente, terminando frequentemente com
fechamento do caixão ou da tumba o rito inteiro, de forma particularmente solene”.
Nesta categoria estariam ainda incluídos os ritos coletivos como as cerimonias de
expulsão das almas para fora da casa, da aldeia, do território, da tribo. O “rapto” da
noiva corresponderia à luta pelo corpo do morto tão difundo na África. Neste caso o
grupo que sofreu com a perda de um de seus membros, é obrigado a admitir a
diminuição do seu poder social. Quanto mais elevada fosse à posição do morto na
sociedade mais violentas eram essas lutas 134.
Ritos de margem ou “liminaridade”, estágio intermediário em que o morto
empreende sua viagem e que nem bem deixou o mundo dos vivos, nem bem passou a
pertencer ao mundo dos mortos. Segundo Van Gennep, esses ritos funerários
caracterizam-se em primeiro lugar, materialmente, pelo tempo mais ou menos longo em
que o corpo ou o caixão permanece na câmara mortuária (velório), no vestíbulo da casa,
etc 135., mas esta é apenas uma etapa de uma série inteira de ritos. Depois de certo
tempo novas exéquias são feitas e termina-se de cumprir o que é devido ao morto com
novos deveres fúnebres 136.
132
GENNEP. Op. cit., p.138.
133
REIS, op. cit., 1991, p. 89, 90.
134
GENNEP, op. cit., p.140-141.
135
Cf. BRAVO, op. cit., p. 99.
136
GENNEP, op. cit., p.130.
253
137
Idem., p.128-142; RODRIGUES, José Carlos. Tabu da Morte. Rio de Janeiro: Edições Achiamé, 1983,
p. 46.
138
Cf. BRAVO, op. cit., p. 99.
139
Os Anianjas ou Nianjas (Wanianjas), População que vive na região Norte de Moçambique nas
proximidades do Lago Niassa. A região Norte de Moçambique é habitada por povos com uma grande
diversidade linguística e grande riqueza cultural. Praticam diversos tipos de danças tradicionais, além de
outras expressões artísticas baseadas nas tradições de povos autóctones. Cf. MEDEIROS, Eduardo. A
actual província do Niassa e o vale do rio Chire na 2.ª metade do séc. XIX. Contextos africanos e
imperiais e as expedições de Serpa Pinto nesta região. In AFRICANA STUDIA Revista Internacional de
Estudos Africanos International Journal of African Studies. Centro de Estudos Africanos da Universidade
do Porto. N.º 17 ‑ 2.º semestre ‑ 2011, p. 114. JAMBE, José Fernando Saide. A habitação como expressão
cultural nas zonas rurais da província do Niassa – Moçambique. Revista África(s). In Revista do
Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos e Representações da África (UNEB DEDC II), e do
Grupo de Pesquisas África do Século XX (UNEB/UNILAB).Vol.07. Nº. 14. Ano 2020, p. 140.
140
GENNEP, op. cit., p.141.
254
141
BRAVO, op. cit., p. 100.
142
GENNEP, op. cit., p.129.
143
Idem., p.129.
255
144
LEITE, op. cit., p. 108.
145
TURNER, Victor. Floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Niterói, Rio de Janeiro: Editora
da Universidade Federal Fluminense – EDUFF, 2005, pp. 37-8.
146
Para uma análise detalhada das etapas do ritual fúnebre católico na proposição de Van Gennep veja.
BRAVO, op. cit., pp. 98-104.
256
147
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 176.
148
Cf. BRAVO, op. cit., p. 100.
149
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 176; cf. BRAGA, Vitor Cabral. Lugares para “bem morrer” no
Recôncavo da Guanabara/RJ: Irmandades, Ritos e tensões na geografia da morte (c.1720 a c. 1800).
Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de janeiro/UNIRIO,
2015, P. 118; SILVA, op. cit., 2017, p. 131.
150
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... Liv. Primeiro. Títulos, 23, 30, 47, pp. 35,
50,81.
151
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 176.
257
152
Idem., p. 176-177.
153
GENNEP, op. cit., 2011, p.128.
154
Pierre Bourdieu critica a teoria de Van Gennep sobre os ritos de passagem argumentado que esta não
contempla as funções sociais do ritual e os significados sociais da linha que demarcaria a passagem de um
estado a outro. Assim Bourdieu argumenta que a teoria de Van Gennep confere ênfase apenas na
passagem temporal, o que poderia mascarar os efeitos essências do rito que seria separação daqueles que
já passaram por ele, daqueles que ainda não passaram e ainda aqueles que não poderão nunca passar por
um determinado tipo de rito. Assim, para Bourdieu o rito de instituição marcaria esse limite entre aqueles
que passaram pelo rito daqueles que ainda não passaram ou ainda daqueles que nunca poderão participar
do rito. Para Bourdieu o rito consagra e legítima uma determinada diferença, considerando legitimo um
limite que é arbitrário, criando uma linha de separação entre os limites constitutivos da ordem social154.
Assim, de acordo com a teoria dos “ritos de instituição”, “qualquer rito tende a legitimar”. Portanto a
diferença básica entre Van Gennep e Bourdieu, consiste na questão de que enquanto o rito de passagem
privilegiaria a passagem em si pura e simplesmente, o rito de instituição teria como elemento chave a
linha que demarcaria o antes e o depois, além do estabelecimento da divisão social entre o grupo dos que
teria ou não passado pela mudança instituída pelo rito. Nesse sentido os ritos de instituição teriam uma
eficácia simbólica: “o poder que lhes é próprio de agir sobre o real ao agir sobre a representação do real”.
Observo que apesar da diferença entre as teorias de ambos os ritos instituídos pelos dois autores, elas não
se excluem ao contrário se complementam, portanto é possível fazer uso de ambas as teorias no estudo da
morte, e do morre, dos mortos e das representações das práticas fúnebres. BOURDIEU, Pierre. A
economia das trocas linguísticas: o que falar que dizer. São Paula: Editora da Universidade de são Paulo,
1996, pp. 97-100. Para uma abordagem mais detalhada sobre os ritos de instituição cf. BRAVO, Milra
Nascimento. Hierarquias na Morte... 2015, pp.101 e 102. Veja também. BRAGA, op. cit., p. 116.
155
BOURDIEU, PIERRE. Cf. PAIXÃO, Anne Elise Reis da. Morrer na “Banda d’ Além”: as práticas
fúnebres nas paróquias de São Gonçalo de Amarante e São Sebastião de Itaipu no século XVIII.
Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015, p. 95; BRAGA,
op. cit., p. 119.
156
PERREIRA, José Carlos. Os ritos de passagem no catolicismo: cerimonias de inclusão e sociabilidade.
Rio de Janeiro: Mauad X, 2012, p. 159.
157
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro I. 3ª ed. Brasilia: INL/MEC, 1972, p.
573.
258
158
PERREIRA, op. cit., p, 12-13; BRAVO, op. cit., 2015, p. 106; BRAGA, op. cit., p. 119.
159
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... Título XXXIII c. 123, p. 54
160
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 176-177.
161
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... Título XXXIII c. 160, p. 68.
259
162
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720, artigos 160/161, pp. 68-9.
163
RODRIGUES, op. cit., 2005, pp. 121-2.
164
Idem., pp. 122.
260
barbeiros, para que em primeiro lugar se buscasse a cura dos males da alma antes dos
cuidados dos males do corpo 165.
No pensamento médico da época vigia a crença de que nos processos de
cura devia-se recorrer à magia e ao sobrenatural, principalmente quando não se
encontrava soluções pelo caminho do natural 166. Nesse sentido, pode-se entender o fato
de os médicos recorrerem à medicina da alma como aliada da medicina do corpo.
Assim, medicina e religião eram campos indissociáveis dentro do pensamento médico
do século XVIII. De acordo com Márcia Moisés Ribeiro, embora pareça contraditório, a
concepção que se tinha de doença na época comportava tranquilamente os princípios
religiosos. Era perfeitamente possível a existência de uma aliança entre medicina e
catolicismo que estava plenamente de acordo com o momento que se pregava a
necessidade do progresso e a utilidade de uma ciência experimental 167.
Em Portugal as transformações ocorridas na arte médica eram mais visíveis
no âmbito do discurso, ao passo que na colônia havia muitos obstáculos que impediam o
progresso intelectual e científico, eram pouquíssimos os indivíduos que tinham
condições que lhes permitiam o acesso à leitura. Portanto, no âmbito colonial mesmo no
campo do discurso observasse com pouquíssima nitidez um progresso no discurso
médico, pois a produção literária cientifica foi muito escassa entre o final do setecentos
e o início do século XIX 168. Foi somente com a instituição das escolas médico-
cirúrgicas da Bahia e do Rio de Janeiro, que o saber médico se desenvolveu dando
origem à concepção médica que procurava explicar as doenças através de princípios
fisiológicos e de alteração dos órgãos. Assim, é perfeitamente compreensível esta
concepção de doença do corpo como consequência da doença da alma associada aos
sacramentos, às orações e curas dos enfermos existente no século XVIII e boa parte do
século XIX, como resultado de causas sobrenaturais e a importância a ela atribuída em
termos de preparação para a morte 169.
Nessa etapa da preparação para morte, de acordo com as Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia a penitência tinha um papel fundamental, pois era
um sacramento necessário para todos aqueles, que haviam cometido pecado mortal após
165
RIBEIRO, Marcia Moisés. A ciência dos trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII. São Paulo:
Hucitec, 1997, p. 80-1; RODRIGUES, op. cit., 2005, pp. 122.
166
RIBEIRO, op. cit., p. 127.
167
Idem., 1997, p. 139-140; RODRIGUES, op. cit., 2005, pp. 123.
168
RIBEIRO, op. cit. p. 141.
169
RODRIGUES, op. cit., 2005, pp. 121-3.
261
170
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720. Título XXXIII. Artigo 128 p. 55.
171
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720. Título XXXIV. Artigo 130 p. 56
172
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720. Título XXXIII. Artigo 131 p. 56
173
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720. Título XXXIII. Artigo 132 p. 57.
262
parte da cura e do coadjutor, estes deveriam ser por ele castigados. Quando a culpa pela
falta da confissão fosse por parte daqueles que tinham a obrigação de curar o enfermo
ou dos seus familiares que não avisaram o pároco a tempo, estes também seriam
castigados, de acordo com a qualidade de suas culpas 174. Tal situação além de revelar o
caráter punitivo e repressivo da lei eclesiástica, também demonstra importância do papel
deste sacramento na preparação da boa morte. Mas devido à escassez de párocos
principalmente em épocas de epidemias muitos fregueses partiram para o mundo do
além sem receber os últimos sacramentos 175.
Na sequência do ritual de preparação para a boa morte o sacerdote deveria
administrar a eucaristia ou a comunhão, que desde os primórdios a Igreja exortava os
fiéis que estivessem em perigo de vida, na iminência da morte, impossibilitados de sair
de casa fossem “reconfortados” com a comunhão em forma de viático. Era uma espécie
de provisão indispensável para a “viagem”, justificada pela ideia de que a eucaristia agia
como um alimento espiritual para a alma. Assim, como todos os demais sacramentos
deveria ser ministrada no momento em que o moribundo ainda estivesse em plena
consciência de seus atos, para entregar-se a cristo, na passagem para Deus, na morte
assumida. Por esse motivo os menores de sete anos não recebiam este sacramento por
serem considerados ainda inocentes, não tendo ainda consciência de seus atos 176. José
Carlos Pereira em seu estudo sobre os ritos de passagem no catolicismo descreve a
eucaristia em forma de viático como provisão espiritual par a eternidade. Nas palavras
do autor:
Juntamente com a unção é levada ao doente, se ainda estiver
lucido e em condições de ingerir algum alimento, a eucaristia.
Nesse caso, ela recebe o nome de viático, que quer dizer
sacramento da comunhão ministrado em casa aos enfermos
impossibilitados de sair ou os moribundos. A razão desse nome
é devido ao fato de a comunhão fazer parte de um conjunto de
provisões espirituais levadas até os doentes, das quais a unção
também faz parte. Um tipo de viagem com dois significados:
primeiro o da comunhão que sai de seu lugar de origem, o
sacrário, a Igreja, e é conduzida até o enfermo, fazendo, assim,
uma espécie de viagem até o local onde está o doente. O outro
aspecto é a comunhão como abastecimento espiritual que
prepara o fiel para a viagem para a eternidade 177.
174
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720. Título XXXIII. Artigo 158 p. 67-8.
175
Cf. RODRIGUES, op. cit., 1996, 181.
176
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720. Título XXIII. c. 83 pp. 36, 46-7;
RODRIGUES, op. cit, 1996, p. 178.
177
PEREIRA, op.cit., p. 165.
263
178
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720. Título XLVII. c. 191, 193, 194, 195 pp.
81-82; REIS, op.cit., 1991 p. 103; RODRIGUES, op. cit., 1996, pp.178-9; PEREIRA, op.cit., p147-8.
179
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720. Título XLVII. c. 196, 197 pp. 82-83;
RODRIGUES, op. cit., 1996, pp.179.
180
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720. Título XXIX. c. 102, pp. 46-47.
264
181
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras... 1720. Título XLVIII. c. 198, 199, 200 pp. 83-
84; REIS, op. cit., 1991 p. 103-106.
265
irmãos, precedendo o padre, que caminhava sob o pálio quadrado, sustentado por braço
de ferro recurvado, preso a uma vara carregada por um irmão, marchando
imediatamente atrás do eclesiástico (sacerdote); este tipo de cortejo era acompanhado
por uma ou duas pessoas. O segundo tipo de cortejo era um pouco mais nobre, diferia
do primeiro apenas quanto ao pálio, que era maior e de veludo carmesim com franjas de
ouro. O terceiro tinha uma maior demonstração de luxo, o pálio era sustentado por seis
varas, com a presença de músicos negros e uma retaguarda militar 182.
182
DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. São Paulo: Tradução cedida para o
Circulo do Livro por cortesia da Livraria Martins Fontes Editora, s/d. volume II p. 516.
266
183
VIDE, op. cit., 1720. Título XLVIII. c. 193, p. 81; REIS, op. cit., 1991 p. 103;
184
PEREIRA, op. cit., p. 159.
185
DEBRET, op. cit., s/d. volume II p. 516-17.
186
REIS, op. cit., 1991 p.107; RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 190.
267
187
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 191.
188
Idem., p. 191.
268
189
VIDE, op. cit., Titulo XXIX, c. 105, p.48
190
MORAES FILHO, Mello. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho
Editorial, 2002, p. 265.
191
EDMUNDO, LUIZ. O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis, 1763-1808. Brasília: Senado Federal,
Conselho Editorial, 2000, p. 46.
269
valer-se desse barulho bárbaro para persuadir o moribundo de que já o céu se abre para
recebê-lo e os anjos o anunciam com seu concerto harmonioso”. Mas segundo ele isso
não passava de uma doce ilusão que embalava a credulidade de alguns cristãos 192.
Segundo João Reis a morte como motivo de festa tinha adeptos em varias
sociedades. O barulho estava presente em ritos fúnebres em diversas sociedades. Pois
era visto como facilitador da comunicação entre o homem e o sobrenatural. Entre os
africanos, por exemplo, a morte silenciosa era considerada uma má morte. 193 De acordo
com Louis Vincent Thomas, em África o barulho estava relacionado à diversão, uma
estratégia que assumia uma importância excepcional e tinha o objetivo de compartilhar
a morte com o silêncio, o grito dos enlutados, o toque dos tambores representava a
exaltação da vida diante da morte. O silêncio era necessário diante de uma “morte
ruim”, estéril. Representava a morte final, em que os indivíduos estariam “duplamente
mortos” perdidos para sempre, pois não tinha esperança de sobrevivência. Mas podemos
constatar que nem sempre esses funerais ocorriam em total silêncio, isso dependia muito
do povo da cultura e da região. Entre os Dogon no Mali, por exemplo, o funeral de uma
mulher grávida acontecia à meia-noite, sem o conhecimento de todos. No máximo ao
som abafado de um tambor e de pedaços de cerâmica batidos uns contra os outros dando
ritmo a marcha. Não eram permitidas lamentações nem lagrimas. Entre os Kisi na
Guiné, a morte de uma mulher gravida desencadeava os gritos das outras mulheres
tocadas pela morte, geralmente as estéreis e aquelas que em que todos os seus filhos já
haviam morrido 194.
Assim, como havia funerais de “boa morte” em muitos momentos que essas
manifestações não eram apropriadas, Louis Vincent Thomas observou que em certos
grupos étnicos eram as mulheres mais velhas da vizinhança que assumiam o papel do
luto, elas podiam dar gritos extremamente comoventes em momentos específicos
durante o funeral ou nos dias subsequentes a ele. Proferiam gritos lamentosos, perto de
soluços, redobrando o zelo quando se transportava o morto ou quando chegava um
ilustre convidado. Em outros grupos todas as mulheres participavam das lamentações,
entoando canções ao ritmo dos tambores. O barulho era a característica mais espetacular
dos grandes funerais africanos. Batendo palmas ao som de trombetas, tiros, tambores,
sinos e castanholas acompanhadas por canções, gritos e grande alvoroço. Se o morto
192
DEBRETop. Cit., s/d. volume II p. 517.
193
REIS, op. cit., 1991, p.105.
194
THOMAS, Louis Vincent. La Mort Africaine. Idéologie funéraire em Afrique Noire. Paris: Payot,
Boulevard Saint-German, 1982, p. 164.
270
fosse mais velho e mais influente, o barulho era mais forte e mais intenso ao ritmo
frenético dos tambores, libações de vinho de palma ajudavam a criar uma atmosfera de
algazarra. Todo esse transbordamento pode ser interpretado como uma liberação
coletiva dos membros do grupo diante da morte, mas para as culturas africanas eles são
a expressão da vida e como tal deviam desafiar efetivamente os mortos. Barulho e
agitação simbolizavam a fertilidade e renascimento, pois o morto poderia se regenerar
dos ancestrais e reencarnar no ventre de uma mulher. Por isso ele devia ter um funeral
estrondoso, evocativo de seu renascimento.
Com base na tabela 16, segundo a origem dos mortos na freguesia da Sé,
podemos observar que um número significativo de crioulos, 53,4%, recorreu aos
sacramentos recebendo todos ou pelo menos um, enquanto 42,6% dos africanos também
o fizeram com o objetivo de garantir uma “boa morte”. Entre aqueles que receberam
todos os sacramentos mantem-se a distância entre os dois grupos: 35% dos crioulos e
19,4% africanos receberam todos os sacramentos. É possível perceber também que entre
aqueles que receberam mais de um sacramento predominou a combinação entre
penitência e extrema-unção, sendo recebida por 10,7% dos africanos e 7,3% dos
crioulos respectivamente e entre aqueles que receberam apenas um sacramento houve
um predomínio da extrema-unção que foi administrado para 8,9% dos africanos contra
7,2% dos crioulos. Esses menores índices dos crioulos se justificam pelo fato de a maior
parte ter recebido todos os sacramentos, como mencionado.
Percebe-se também que entre aqueles que partiram para o outro mundo sem
receber nenhum sacramento houve um predomínio dos africanos com 7,8% contra 7,3%
dos crioulos. Como era de se esperar os crioulos, por terem nascidos no Brasil teriam
por conta disso uma maior proximidade da religião católica e, portanto, recorreriam com
mais frequência o recurso aos sacramentos em busca de uma boa morte; ao passo que os
africanos, devido a constante renovação pelo tráfico atlântico, estivessem mais apegados
às suas crenças de origem e possivelmente recorreriam com menos frequência ao
recurso dos sacramentos.
271
195
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 180 e 189.
272
últimos sacramentos estivessem relacionados a outros fatores que não a recusa dos
sinais sagrados. Mas a demora em entrar em contato com o sacerdote a tempo, diante de
uma morte repentina, acidental, pela dificuldade deste ser encontrado, ou ainda a
dificuldade de chegar à casa do moribundo a tempo, por negligencia por parte de
familiares e amigos do morto, dos senhores quando se tratasse de escravos ou ainda
descaso por parte do sacerdote. Mas é bom lembrar como já mencionamos neste
trabalho que as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia terminavam que o
pároco atendesse a todos os fiéis que recorressem aos sacramentos sendo estes livres ou
escravizados e exortava aos senhores que cuidassem da catequese de seus cativos e
consequentemente os acudissem na hora da morte com um enterro cristão conforme
ordenava a Santa Madre Igreja.
africanos que redigiram testamentos, assim como, também não aparecem nos
compromissos das irmandades por nós analisados. Em relação aos livros de matricula
das irmandades de negros, não tivemos acesso a essa documentação, portanto, não
temos informação se eles se filiaram as irmandades de negros no Rio de Janeiro como
ocorreu em Minas Gerais, por exemplo, que aparecem nos testamentos e na organização
das irmandades, o que se pode constatar através dos trabalhos de Silvia Brugger e
Anderson oliveira 196.
O fato de não termos essa informação não significa que eles não
participaram das irmandades, pois entre os 92 testamentos 197 por mim analisados apenas
um pertencente à Catharina do Espirito Santo, preta forra de nação benguela que
faleceu em 1804, era irmã da irmandade de São domingos. Anderson Oliveira ao
analisar os livros de registros de irmãos da irmandade de Santo Elesbão e Santa
Efigênia no período 1843-1930 observou a presença de 10 benguelas, contra 88 minas,
14 cabindas, 14 congos, e 11 angolas, 9 moçambiques, 7 calabares. Embora nos dados
apresentado por Anderson de Oliveira eles apareçam em número menor que os outros
grupos, sendo superiores apenas aos moçambiques e calabares, não temos como saber se
sempre foram membros dessa irmandade e se sua quantidade foi sempre inferior aos
outros grupos. De acordo com o compromisso de 1740, essa irmandade foi fundada por
africanos oriundos da Costa da Mina, Cabo Verde, Ilha de São Tomé e Moçambique e
era controlada pelos negros minas. Portanto, eles e os outros grupos estavam
praticamente excluídos da administração da mesma. Mas pelo menos para o século XIX
é possível afirmar que havia benguelas nas irmandades do Rio de janeiro e
possivelmente no século XVIII também.
196
BRÜGGER e OLIVEIRA, op. cit., pp. 177-204.
197
Agradeço a professora Claudia Rodrigues por ter me cedido gentilmente esses testamentos.
274
Com base nos dados da tabela 18, podemos perceber que 52,4% de todos os
moribundos receberam todos ou pelo menos um sacramento, 38,1% recebeu todos os
sacramentos. Levando-se em conta que 38,6% não tiveram referência se receberam ao
menos um sacramento, podemos supor que entre estes alguns poderiam ter recebido ao
menos um sacramento e por algum motivo não foi registrado pelo padre coadjutor,
como por exemplo, por falta da informação. Esse número possivelmente poderia ser
maior. Tal situação indica que havia uma grande preocupação com a preparação para
morte entre os segmentos livres, forros e escravizados na freguesia da Sé no período
estudado. Essa tendência já foi percebida por Milra Bravo 198 ao analisar as hierarquias
da morte no Rio de Janeiro entre 1720 e 1808. A autora identificou que 66,5% dos
moribundos receberam todos os sacramentos e que 80% receberam ao menos um.
Embora nossos dados sejam em menor proporção evidenciam a permanência de uma
forte preocupação com a preparação para uma boa morte entre os três segmentos
sociais.
Ao analisarmos os dados da tabela de forma mais detalhada percebemos que
tal tendência fica mais evidente, pois 51,8% dos livres receberam todos ou pelo menos
um sacramento, entre os forros o percentual é ainda maior, 66,9%, entre os escravizados
o percentual é menor, mas não menos importante, 43,2%. Em relação ausência de
referência aos sacramentos temos: 39,8% entre os livres, 34,9% entre os forros e 46%
entre os escravizados. Dentre aqueles que receberam alguns sacramentos houve o
predomino da combinação penitência e extrema-unção, sendo recebido por 10,9% dos
escravizados, 8,8% dos forros e 2,4% dos livres. Dentre aqueles que receberam apenas
um sacramento a extrema-unção foi o sacramento mais administrado, sendo recebido
por 9% dos escravizados, 7,3% dos forros e 2,5% dos livres. Tal situação evidencia uma
maior dificuldade dos cativos em receber todos os sacramentos e foram aqueles que
mais os receberam no leito de morte.
198
BRAVO, op. cit., p. 114.
277
Subtraídos os 389, 166 e 808 inocentes, que não receberam os sacramentos por serem
menores de sete anos.
FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de
Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de Janeiro (1701-1843).
278
199
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 184. Os anos analisados pela autora foram: 1812, 1816, 1820, 1824,
1828, 1835, 1845, 1850, 1855, 1860, 1865, 1870, 1875, 1880 e 1885.
200
Idem., p. 185.
201
Situação semelhante foi encontrada por Claudia Rodrigues ao considerar um total de 5848 registros de
óbitos analisados pela autora, em 58% não foram registrados a sua condição social do morto. 18% foram
declarados como escravizados, 8,1% foram declarados como forros e apenas 16,1% como livres. Os
dados demográficos da freguesia do santíssimo sacramento para a década de 1840 apontavam para um
maior número de livres que de forros, em concordância com o maior número de livres entre a população
como um todo. Assim, esses dados confirmavam que grande parte dos livres não teve referenciada a sua
condição social no assento de óbito. Dos 58% de registros sem referência à condição, a sua grande
maioria poderia ser de livres. Tal situação permite explicar porquê os índices dos livres teriam se
aproximado dos índices dos escravizados. Cf. RODRIGUES, Claudia. Ibidem., p. 186.
202
BRAVO, op. cit., p. 29.
203
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 186.
279
204
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 186.
280
CAPÍTULO – 5 –
A morte e seus ritos
1
PAIXÃO, Anne Elise Reis da. Morrer na “banda d’além”: as praticas fúnebres nas paroquias de São
Gonçalo de Amarante e São Sebastião de Itaipu no século XVIII. Rio de Janeiro: Universidade Federal do
Rio de Janeiro, 2015, p. 107.
2
BRAGA, Vitor Cabral. Lugares do “bem morrer” no Recôncavo da Guanabara/RJ: Irmandades, Ritos e
tensões na geografia da morte (c.1720 a c. 1800). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade
Federal do Estado do Rio de janeiro/UNIRIO, 2015, p. 134.
3
REIS, op. cit., 1991, p. 114.
282
4
THOMAS, Louis-Vincent. La Mort Afrcaine: idéologie funéraire em Afrique noire. Paris: Payot.
Boulevard Saint-Germain, 1982, pp. 213-4.
283
Após o banho, o morto deveria ser vestido de forma conveniente para dar
continuidade ao ritual. Entre os moradores da cidade do Rio de Janeiro havia uma
grande preocupação com as roupas para vestir o morto, conforme observou o viajante
americano Thomas Ewbank. Da mesma forma como os brasileiros preocupavam-se com
suas roupas enquanto estavam vivos, ao morrer eram enterrados em seus melhores
trajes, salvo quando os trajes religiosos eram preferidos. “formalistas ao máximo impõe
etiqueta mesmo aos mortos. Estes deveriam seguir para o outro mundo em atitudes e
trajes convenientes” 5. Segundo Cláudia Rodrigues o costume de amortalhar o morto
estava relacionado à crença de que na “passagem” para o além o morto deveria estar
convenientemente vestido. A representação simbólica dos trajes fúnebres estava
presente, tanto no universo das crenças cristãs quanto das crenças africanas 6. João Reis
observou que, tanto os nagôs quanto os iorubas acreditavam que a falta dessa cerimonia
impedia o morto de encontrar seus ancestrais, tornando-se um espirito errante, um
isekú 7. Rodrigues observou que seu uso era uma das formas de garantir uma “boa
morte”, uma espécie de salvo-conduto 8 que permitia o morto fazer a passagem para o
outro mundo. Para os cristãos tinha o objetivo de garantir a salvação, enquanto que para
os africanos fazia parte do ritual de preparação para o encontro com os ancestrais e para
que sua alma não ficasse vagando aqui na terra. 9
Segundo a autora, a cor e o tipo de mortalha tinham uma grande
importância, tanto para os cristãos, como para os africanos, pois sua função era integrar
o morto no outro mundo. Assim, as vestimentas fúnebres faziam parte dos ritos de
agregação do morto ao mundo dos mortos, de acordo com a concepção de Van Gennep.
Se por um lado, de acordo com a crença cristã, o uso da cor errada poderia impedir o
desprendimento da alma, criando obstáculos para sua entrada no Além, por outro o uso
da cor correta funcionava como uma espécie de passaporte para a salvação 10. Vestir o
cadáver com a indumentária fúnebre certa podia não ser suficiente, pois outras etapas do
ritual de sepultamento ainda tinham de ser cumpridas, mas com certeza era necessário
para alcançar a salvação. Para os africanos, o sentido de salvação poderia ser o encontro
com os ancestrais. Nos registros de óbitos da Freguesia da Sé do Rio de Janeiro entre
1700 e 1850 em relação ao uso das mortalhas encontramos os seguintes dados:
5
EWBANK, Thomas. A vida no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1976, p.58.
6
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 196.
7
REIS, op. cit., 1991, p. 114.
8
Cf. REIS, op. cit., 1991, p. 124.
9
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 196.
10
Idem., p. 196.
284
De acordo com tabela 20, com base na origem dos mortos, é possível
perceber que entre os crioulos predominou o uso das mortalhas dos santos com 47,9%.
Destaque para o hábito de Nossa Senhora da Conceição, com 21,2%; seguido do hábito
de menino do coro, com 11,9%. O uso desses dos tipos de mortalhas entre os crioulos se
justifica por que entre eles havia maior equilíbrio entre os sexos e consequentemente um
considerável número de crianças. O hábito de Nossa Senhora da Conceição era o
preferido entre as mulheres, pois além de buscarem sua intercessão para alcançar a
graça divina, seu uso também se justificava pela relação da santa com a procriação.
Assim, não só as mulheres adultas, mas muitas meninas eram amortalhadas de Nossa
Senhora da Conceição. Enterrar uma menina com essa mortalha representava um tipo de
rito de fertilidade, para que os outros filhos não viessem a falecer. A perda de uma filha
significava perder uma vida que na fase adulta poderia gerar outras vidas. Nossa
Senhora era o modelo cristão de mãe. O uso de sua mortalha evocava sua qualidade de
conceber e gerar vida. A Senhora da conceição era uma espécie de deusa brasileira da
fecundidade 11. O vocábulo “conceição” é sinônimo de “concepção”. De acordo o
dogma católico da imaculada conceição Maria, mãe de Jesus, foi preservada imune da
mancha do pecado original, isto é, de forma pura 12. Enquanto devoção popular, seu
caráter de “imaculada” quase não era lembrado, o que a humanizava 13 e a aproxima
11
REIS, op. cit., 1991, p. 120-1.
12
O dogma da Imaculada Conceição foi promulgado por Pio IX, na bula Ineffabilis Deus, em 1854 na
qual declarou que Maria, mãe de Jesus, foi preservada imune do pecado original. O dogma da imaculada
conceição é fruto de um longo processo histórico dentro da Igreja, inicia-se na Baixa idade media, com a
reforma Protestante, período em que a Igreja teve uma grande perda de influencia, principalmente porque
o pensamento reformista buscava a libertação da hierarquia romana, uma independência do pontificado e
uma dependência cada vez mais forte em relação à sociedade civil. A tentativa de renovação da Igreja
veio com a contrarreforma, que culminou com Concilio de Trento (1545-1563). Tal situação atinge seu
auge no século XVIII com o iluminismo, século das luzes que buscava resolver os problemas da
humanidade a luz da razão, opondo-se ao obscurantismo religioso propondo uma religião natural reduzida
ao deísmo. Essa busca pela liberdade seria a base da Revolução Francesa que assumiu uma posição
anticlerical. A razão contra todo tipo de revelação divina, contra toda forma de dogmatismo absolutista
em prol de um ideal de liberdade humana, embora desconfiasse de qualquer tipo de autoridade
instrucional acreditava na capacidade do homem de dominar o mundo através da ciência. Em meio a toda
essa turbulência social, politica e eclesial, os pontífices desdobraram-se para fazer frente às mudanças que
ia tornado a sociedade menos cristã e cada vez mais laica. Nesse contexto destaca-se o pontificado de Pio
IX que lutou com todas as armas contra as ideias modernistas, entre elas a proclamação do dogma a
Imaculada Conceição. A bula apresenta dois textos para fundamentar o dogma; um é o Gênesis 3:15, no
qual se fala que a descendência da mulher esmagara a cabeça da serpente, e outro, retirado do evangelho
de Lucas 1,28, na saudação do anjo, no qual se vê que Maria é especialmente agraciada por Deus e,
depois, Lucas 1.42, no qual Isabel chama Maria de bendita entre as mulheres. LANDGRAF, Robert D. A
experiência religiosa presente no dogma da Imaculada Conceição. Dissertação de Mestrado. Campinas:
Pontifícia Universidade Católica de Capinas. PUC-Campinas, 2018, p. 9-11.
13
Anderson Oliveira observou que “a relação com os santos era mediada segundo a critérios mundanos.
Os santos eram vistos com protetores particulares das pessoas, das corporações e das cidades. Além do
que a relação estabelecida com eles era de grande intimidade. O culto aos santos superava em importância
a doutrina e prática sacramental. OLIVEIRA. Anderson José Machado de. Devoção e caridade:
285
ainda mais dos problemas de concepção de suas devotas. Ela regia simbolicamente o
nascimento e morte das crianças 14.
Entre as mortalhas de santos, a terceira opção foi a de Santo Antônio, 9,7%;
em quarto lugar ficou a mortalha de São domingos com 5,7%. Ao usar as mortalhas de
santos, a intenção dos indivíduos era obter através de sua intercessão, a graça de Deus.
Essas mortalhas “antecipavam de alguma forma, a fantasia de reunião à corte celeste.
Ao mesmo tempo em que protegia, com a força do santo que invocava, elas serviam de
salvo-conduto na viagem rumo ao paraíso” 15. João Reis observou que normalmente os
homens escolhiam as mortalhas de santos e as mulheres escolhiam mortalhas de santas,
mas havia mortalhas que eram usadas por todos, como as franciscanas, as de Nossa
Senhora do Carmo e as de São Domingos, pois além do fato de haver pessoas de
ambos os sexos nas ordens terceiras, tal fato pode estar ligado a crença no poder de
intercessão que estes santos tinham junto ao criador 16.
Quanto ao uso das mortalhas de cor entre os crioulos, a branca foi a mais
procurada, 14,3%, ocupando o segundo lugar na preferencia dos crioulos entre os tipos
de mortalha, seguida bem de perto pela mortalha preta com 12,2%, representando
terceiro lugar na preferência entre os tipos de mortalhas.
irmandades religiosas no Rio de Janeiro Imperial (1840-1889). Niterói: Universidade Federal Fluminense.
UFF, 1995, P. 39.
14
REIS, op. cit., 1991, p. 121.
15
Idem., p. 124.
16
Ibidem., p. 120.
286
Entre as mulheres, a cor preta era mais difundida como cor funerária devido
à tradição colonial que as mulheres casadas deveriam usar o preto na hora da morte,
enquanto o branco era a cor da pureza virginal e a cor que para a mulher marcava o
importante ritual do casamento, ritual de despedida da virgindade e início do ciclo da
procriação 17. Assim sendo, as mulheres podiam ser mais motivadas a usar o preto.
Thomas Ewbank observou que o preto era a cor das mulheres casadas enquanto o
branco era cor das solteiras 18. Conforme vimos no capitulo dois, entre os crioulos, as
mulheres eram em maior número. Provavelmente por isso, a mortalha preta foi à
terceira opção na ordem de preferência geral entre os mesmos.
Entre os africanos prevaleceu o uso das mortalhas de cor, 62,6%, sendo a
mortalha branca a mais procurada com 37,2%, seguida da mortalha preta com um
percentual relativamente expressivo, 25%. Já entre as mortalhas de santos a maior
procura pelos mortos africanos foi do hábito de Santo Antônio que ficou em terceiro
lugar na preferência geral com 10,5%. Uma quantidade bastante significativa de
africanos utilizou como indumentária fúnebre o lençol, 7,5%, quase o dobro do número
de crioulos, 4,1%. O uso de forma expressiva dessa mortalha entre os escravizados pode
estar ligado ao seu preço, pois muito escravizados não possuíam recursos suficientes
para utilizar as mortalhas mais caras. João Reis observou que em salvador o branco foi
muito mais utilizado apresentando uma enorme distância em relação ao uso do preto.
Assim sendo, a mortalha branca foi utilizada por 73,5% dos africanos e, apenas 12,2%
dos indivíduos deste segmento fez uso da mortalha preta. Enquanto 54,5% dos crioulos
fez uso do branco como cor de mortalha, 18,5% usou o preto. Em nossa amostragem, ao
contrario de Salvador, as mortalhas pretas tiveram uma grande procura tanto por parte
dos africanos quanto pelos crioulos. Entre os africanos, o branco foi utilizado por 37,2%
dos indivíduos e o preto por 25% dos indivíduos. 14% dos crioulos usaram o branco e
17
REIS, op. cit., 1991, p. 120.
18
EWBANK, Thomas. A vida no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1976, p.58.
287
12,2% usou o preto. Situação semelhante foi encontrada por Claudia Rodrigues para o
Rio de Janeiro no século XIX em que o índice de uso das mortalhas pretas era muito
próximo ao uso das mortalhas brancas. De acordo com os dados, o índice de uso das
mortalhas brancas foi de 54,1% e das pretas de 42,8%, sendo que a partir ano de 1845 o
uso da mortalha preta superou a branca. De acordo com a autora em 1850 a menção as
cores desaparece dificultando a confirmação da substituição da mortalha branca pela
preta na preferência dos habitantes da cidade 19.
A alta procura pela mortalha branca pode ser explicada, tanto pelo universo
cultural cristão, quanto africano. Entre os cristãos o branco era motivo de alegria, pois
simboliza a esperança na vida eterna, prometida através da ressurreição, expressava uma
relação mais direta com o Santo Sudário pano branco que envolveu o corpo de Jesus
Cristo e com o qual ele ressuscitou e ascendeu ao Céu 20. Ainda dentro universo cristão e
africano, o branco também representava tanto a morte como o (re)nascimento, sendo
associado a ressureição pelos cristãos e, para os africanos ao nascimento para uma nova
vida 21. Voltaremos a esta questão do uso do branco entre os africanos mais a frente ao
analisarmos a tabela 20. A Mortalha de Nossa Senhora da Conceição teve uma procura
baixíssima entre os africanos, 1,6%, confirmando a lógica do tráfico, em que o padrão
demográfico apresenta um enorme desequilíbrio sexual e etário, ou seja, uma maior
quantidade de homens, atingindo o índice de três a quatro homens para uma mulher.
Quanto às crianças, o padrão era parecido havia sempre mais meninos que meninas 22.
O quadro 3 confirma que, entre os grupos de procedência africana, as
mortalhas de cor foram mais utilizadas, sendo a branca a mais procurada seguida muito
próxima pela preta. Entre os grupos de procedência africana, aqueles que mais
escolheram essas mortalhas foram os benguelas que em números absoluto utilizaram
19
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 199-200.
20
REIS, op. cit., 1991, p. 118; RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 201
21
Idem., 1996, p. 201
22
KLEIN, Herbert S. The trade in African slave to Rio de Janeiro, 1795-1811: “Estmates of Motality and
Patterns of Voyages.” The Journal of African History, vol. 10 nº 4, 1969, pp. 533-549 disponível em
JSTOR, www.jstor.org/stable/179897; KLEIN, Herbert S. The Portuese Slave Trade Angola in the
Eighteenth Century The Journal of History, 32. 894918.10.1017/S0022050700071199. 1972; KLEIN,
Herbert S. o tráfico de escravos africanos para o porto do Rio de Janeiro, 1825-1830. Anais de História,
Assis, São Paulo, 1973; KLEIN, Herbert S. A demografia do tráfico Atlântico de escravos para o Brasil.
São Paulo: Estudos Econômicos. Instituto de Pesquisas Econômicas. USP. Vol. 17, nº 2, 1987; KLEIN,
Herbert S. novas interpretações do tráfico de escravos do atlântico. Revista de História. 120. p. 3-25,
jan/jul. 1989; KLEIN, Herbert S. O comércio atlântico de escravos: quatro séculos de comércio
esclavagista. Lisboa: Editora Replicação, 2002; KARASCH, op. cit., 2000. FLORENTINO, Manolo. Em
costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997. Ed. 2002; CAMPBELL, Gwyn; MIERS, Suzanne; Miller, Joseph C. (Org.)
Children in slavery through the ages. Ohio University Press. 2009; CAMPBELL, Gwyn; MIERS,
Suzanne; Miller, Joseph C.(Org.) Child slaves in the modern world . Ohio University Press. 2011.
288
116 mortalhas brancas; seguidos pelos congos que utilizaram 73 mortalhas brancas; em
terceiro lugar os minas com 66; em quarto lugar os cabindas com 63; em quinto lugar
moçambiques com 51; em sexto lugar os angolas com 43 e em sétimo lugar os rebolos
40. Em relação às mortalhas pretas, novamente os benguelas foram os que mais
utilizaram com 85; em segundo lugar os minas com 58; seguidos pelos cabindas com
52; em quarto lugar os congos com 44; em quinto lugar os rebolos 36; em sexto
moçambiques com 31 e sétimo os angolas com 28. O grupo de procedência africana
que mais utilizou mortalhas de santos foi o dos minas, com 64 mortalhas de Santo
Antônio e 15 de São Francisco; seguidos pelos benguelas com 23 mortalhas de Santo
Antônio e 7 de Nossa Senhora da Conceição; em terceiro os cabindas com 18 mortalhas
de Santo Antônio; os congos e os angolas ficaram em quarto lugar com 16 mortalhas de
Santo Antônio cada um. Com exceção dos benguelas e dos africanos denominados “de
nação”, que usaram 7 e 8 mortalhas de Nossa Senhora da Conceição respectivamente, a
maioria dos africanos não fez uso dessa mortalha, assim como, do hábito de menino do
coro, comprovando os índices do tráfico de um número reduzido de mulheres e crianças
entre os grupos traficados. A amostragem também evidencia que, entre os crioulos,
tanto o uso das mortalhas de cor como das mortalhas de santos foi bastante expressivo,.
No caso das mortalhas de cor o branco foi mais utilizado, com 318, seguido do preto
com 271. Entre as mortalhas de santos a mais utilizada foi a de Nossa Senhora da
Conceição, com 476, Santo Antônio, 217 e São domingos, 129. Destaque para o habito
de menino do coro com 266.
Observamos que o uso dessas mortalhas seguia a lógica do tráfico atlântico,
pois seu uso em maior escala foi justamente pelos grupos que se fizeram presentes de
forma majoritária na cidade entre o século XVIII e XIX e que atuaram de forma
marcante no processo de instituição das irmandades e igrejas de negros. O que lhes
possibilitou a construção de espaços de sociabilidade e solidariedade e permitiu
reelaboração de suas identidades individuais e de grupo, conforme já vimos nos
capítulos 1, 2 e 3. Nesse sentido, é possível afirmar que essas escolhas foram feitas
tendo como base os universos culturais e religiosos cristão e africano presentes na
colônia e império de forma multifacetada, demonstrando que os africanos não
abandonaram suas crenças e tradições de origem, assim como, também se apropriaram
das crenças e tradições cristãs. O que pode ser exemplificado pelo uso considerável das
mortalhas de santos, especialmente entre os minas que no “Estatuto da Congregação dos
pretos minas Maki” se declaravam verdadeiros católicos. Esse documento será
289
analisado mais a frente. Tal hipótese pode ser estendida aos descendentes de africanos,
pois entre os crioulos foi grande o uso de mortalhas brancas e pretas, assim como as de
santos. Assim, pode-se se dizer que ao homenagear seus mortos e buscar a salvação da
alma, africanos e seus descontentes estavam também cultuando os seus ancestrais. Este
assunto será aprofundado no último tópico deste capítulo.
A partir dos dados da tabela 21, de acordo com a condição social dos
mortos, podemos perceber que as mortalhas de santos tiveram uma procura bastante
acentuada entre os três segmentos, sendo que o maior índice de uso dessas mortalhas
ocorreu entre os livres, com 49,9%, entre os forros o índice foi de 43,% e entre os
escravizados, 19,6%. Analisando de forma individual o uso dessas mortalhas,
percebemos que entre os livres a mortalha de santo mais utilizada foi o hábito de Santo
Antônio, com 23,1%; seguido do habito de São Francisco, com 12,8%; e em terceiro
lugar na preferência dos livres foi o hábito de Nossa Senhora do Carmo com 5,6%.
Entre os forros, a ordem de preferência foi bem próxima a dos livres. O hábito de Santo
Antônio foi também o mais procurado pelos forros, com 24%; seguido do hábito de São
Francisco, com 6%. Em terceiro lugar na preferência por mortalhas de santos entre os
forros, ficou o habito de Nossa Senhora da Conceição, com 5,7%. Já entre os
escravizados, a mortalha de santo que teve o maior índice de preferência foi o hábito de
Nossa Senhora da Conceição, com 8,2%; curiosamente superando os livres e os forros.
Questão curiosa e intrigante, pois era de se esperar que o maior índice de uso dessas
mortalhas fosse entre os livres, pelo fato de essas mortalhas serem mais utilizadas pelas
pessoas do sexo feminino, principalmente pelas meninas 23. Entre os escravizados, a taxa
de masculinidade era maior de acordo com o padrão geral do tráfico, conforme já vimos
nesse estudo. Assim, havia mais homens do que mulheres e mais meninos do que
meninas. Como explicar então esse maior índice de uso de mortalhas de Nossa Senhora
da Conceição entre os Escravizados? Tal explicação talvez esteja no alto índice de
ausência de referência ao uso de mortalhas entre os livres, somados ao também elevado
índice de ausência de informação sobre a condição social de livre ao qual já citamos
anteriormente.
Em segundo lugar na preferência dos escravizados por mortalhas de santos,
ficou a mortalha de Santo Antônio, com 5,2% e em terceiro lugar o hábito de menino do
coro, com 4,7%, ficando dentro do padrão demográfico do número de crianças entre os
23
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 202-3.
290
24
Idem., pp. 202-5.
25
BRAVO, op. cit., p. 120.
291
Janeiro, esse comércio era mantido pelos religiosos do convento de Santo Antônio 26. De
acordo com William de Souza Martins “os frades mendicantes fluminenses tinha
desenvolvido um prospero comércio de mortalhas, semelhante ao que era realizado
pelos religiosos franciscanos da Bahia. Os preços variavam entre quatro mil e dezesseis
mil reis, sendo a primeira quantia correspondente ao valor unitário dos hábitos
comprados pela ordem terceira franciscana para amortalhar os irmãos pobres e constava
nas despesas do Convento. Já os hábitos de dezesseis mil reis eram adquiridos pelos
diversos membros da associação carmelita juntos aos religiosos respectivos, cujo preço
mais elevado se justificava pela capa que acompanhava tais vestimentas” 27
Constatamos em nossa amostragem que uma parcela dos escravizados,
embora em número menor que os livres e forros, fez uso dos hábitos de santos e, entre
estes, o mais utilizado foi o hábito de Nossa Senhora da Conceição, seguido do hábito
de Santo Antônio. O hábito de São Francisco foi menos utilizado, juntamente com
outros santos, como São Domingos, São Bento, Nossa Senhora do Carmo, Santa
Efigênia entre outros. O que demonstra que o preço do hábito não impediu que uma
parcela dos escravizados tivesse acesso às mortalhas de santos, pois sabemos que havia
outras formas de acesso a essas mortalhas mais caras.
Muitos cativos na urbe carioca realizavam o trabalho de escravo ao ganho,
que lhes proporcionava uma determinada autonomia em relação à vigilância imposta
pelo mundo do cativeiro. De acordo com Leila Mezan Algranti, diferente do mundo
rural, na cidade o controle do senhor sobre o escravo era menor, o que possibilitava ao
cativo uma “mobilidade vertical e horizontal” em termos de “estratificação social”. Por
conseguinte, lhe permitia uma maior “mobilidade física e um maior contato com outros
grupos sociais” 28, além de lhe possibilitar maiores chances de acumular um pecúlio que
poderia servir para compra de sua mortalha ou poderia filiar-se a uma irmandade para
ter acesso a um funeral condigno. O que em muitos casos poderia dar a eles o acesso às
mortalhas de santos, entre elas a de Santo Antônio e São Francisco, embora em menor
quantidade. Afinal, era esse o principal motivo que levou muitos cativos a se filiarem às
irmandades: terem um funeral condigno e poder fazer uma boa passagem para o além-
26
REIS, op. cit., 1991, p. 118, 231-4; DEBRET, op. cit., s/d, p. 566.
27
MARTINS, William de Sousa. Membros do corpo místico: ordens terceiras no Rio de Janeiro (c. 1700
– 1822). São Paulo: editora Universidade de São Paulo, 2009, p. 398.
28
ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de janeiro.
Petrópolis: Vozes, 1988, pp. 65-6. Sobre o trabalho do escravo ao ganho no Rio de janeiro veja também.
SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Negro Na Rua. A Nova Face da Escravidão. São Paulo, Hucitec,
1988. SOARES, Luiz Carlos. O “povo de Cam” na capital do Brasil: a escravidão urbana no Rio de
Janeiro do século XIX, Rio de Janeiro: FAPERJ/7 LETRAS, 2007.
292
túmulo. Alguns eram membros de duas ou três irmandades ou mais. Portanto, mais que
a grande difusão do comércio e o alto preço das mortalhas de santos, foi a devoção o
fator determinante para o seu uso, principalmente entre os escravizados.
Os hábitos de santos mais procurados entre livres e forros foram o de Santo
Antônio e o de São Francisco, que inclusive podem ser somados (35,9%), pois se refere
ao mesmo tipo de hábito, neste caso o de São Francisco, pois em determinado momento
de sua vida Santo Antônio tornou-se franciscano. De acordo com João Reis, a razão pela
preferência desse tipo de mortalha segundo os costumes funerários brasileiros está
ligada à herança ibérica, que remonta a Idade Média, pois era costume das pessoas em
Portugal pedirem em testamento que seus corpos fossem amortalhados com hábito de
São Francisco. De acordo com a iconografia franciscana, esse santo teria um lugar de
destaque na escatologia cristã, pois é retratado nas imagens resgatando as almas do
purgatório, que visitava periodicamente com essa finalidade. Uma pintura no teto da
catacumba no convento São Francisco na cidade da Bahia e um quadro do século XVIII,
na parede do consistório da igreja do mesmo convento retratam o santo resgatando
almas no purgatório e as almas tentando se salvar agarrando-se no cordão do hábito do
santo, pois de acordo com a tradição “sertaneja” o cordão “afastava o inimigo e serve
aos anjos para puxarem o finado” 29.
São Francisco era filho de um rico comerciante. Deixou uma vida luxuosa,
rejeitando qualquer tipo de acumulo material e confortos sensuais, em troca de uma vida
na pobreza. Sua mortalha representava a simplicidade cristã, atitude que ajudava a
conquistar a morte serenamente 30. Estando já moribundo ele compôs o Cântico das
Criaturas, também conhecido como Cântico ao Irmão Sol. Esse cântico é um hino de
ação de graças e louvor ao Criador, agradecendo-o por todas as criações. Nos versos 28
e 29 ele acolhe a irmã morte: “Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa, a morte
corporal, da qual nenhum homem vivente pode escapar”. Ai daqueles que morrerem em
pecado mortal: bem-aventurados os que ela encontrar na tua santíssima vontade, porque
a morte segunda não lhes fará mal!”. Enquanto advertia àqueles que morressem em
pecado mortal, ele confortava aqueles que morressem na presença de Deus. Nestes
versos, o santo dava boas-vindas a própria morte. Não se trata aqui de uma elevação
espiritual ou de uma exortação sobre o tema da morte em geral. Estes versos exprimem
um encontro existencial do santo com sua própria morte. Memorável e definitivo
29
REIS, op. cit., 1991, p. 117.
30
Idem., 1991, p. 117.
293
31
SOUZA, Vilma K. Barreto de. São Francisco de Assis, uma tradição e a análise temática do “Cântico
Delle Creature”. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
(FFLCH). Língua e Literatura. V. 15. 1986, pp. 199-213; O Cântico das criaturas: da origem à sua
originalidade. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/37870/37870_5.PDF. Acesso em 30
de dezembro de 2020. Cf. AGUIAR, Veronica Aparecida Silveira. Considerações sobre o Cântico do
Irmão Sol: a língua vernácula na poesia franciscana. Universidade Federal de Rondônia. Centro
Interdisciplinar de Estudo e Pesquisa do Imaginário Social. Revista Labirinto, ano XVIII. Volume 28
(Jan-Jun), 2018, pp. 324-341; O Cântico das Criaturas. São Francisco de Assis. Site Franciscanos.
Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil – OFM disponível em:
https://franciscanos.org.br/carisma/simbolos/o-cantico-das-criaturas#gsc.tab=0. Acesso em 30 de
dezembro de 2020.
294
S.
N.
H. S. J.
S.
H. N. S.
H. N. S.
H. N. S.
M.
H. S. ANT
H. S. FRA
H. S. F. P.
DOMING
MERCES
BRANCA
H.S.EFIG
S.DORES
LENÇOL
S/REFER
OUTRAS
OUTRAS
Grupo de
SANTOS
CARMO
TOTAL
OTROS
BENTO
CORES
PRETA
CORO
CONC
procedência
EVAN
H.
H.
H.
H.
Angola 1 1 16 3 1 1 - - - - - - 43 28 3 36 - 27 160
Ambaca 2 2 4
Benguela 4 - 23 7 1 7 - - 1 1 - - 116 85 1 6 50 27 329
Baca 1 1 2
Cabo Verde - - - - - - - - - - - - 1 - - - - 4 5
Cabinda 2 - 18 4 - 2 - - - - 1 - 63 52 - - 17 3 162
Cabundá - - - - - - - - - - - - 1 - - - - - 1
Calabar - - 6 - - 2 - - - - - - 12 8 - - 3 - 31
Camundongo - - - - - - - - - - - - 8 1 - - - - 9
Cassange 1 5 1 2 14 14 6 2 45
Cobu - - - - - - - - - - - - - - - - - 1 1
Congo 2 16 1 1 2 1 73 44 27 7 174
Courana - - - - - - - - - - - - 1 - - - - - 1
De nação 13 1 64 8 14 - - - - - 1 220 128 - - 31 16 496
Ganguela - - 2 - 1 - - - - - - - 14 1 1 - 5 7 31
Guiné - - 1 - - - - - - - - - 4 - - 1 7 20 33
Inhambane - - 1 - - - - - - - - - 3 5 - - 1 - 10
Loango - - - - - - - - - - - - - - - - - 2 2
Luanda - - - - - - - - - - - - - 1 - - - - 1
Mapinda - - 1 - - - - - - - - - - - - - - - 1
Marimba - - 1 - - - - - - - - - - 1 - - - - 2
Mina 15 64 4 1 1 - - - 1 - 1 66 58 - 5 28 35 279
Moçambique 1 1 3 4 - 2 - - - - - - 51 31 2 - 10 3 108
295
Moange - - - - - - - - - - - - - 2 - - - - 2
Mocoso - - - - - - - - - - - - - 1 - - - - - 1
Mofumbe 1 - 1 - - - - - - - - - 1 11 2 - - 4 - 20
Monjolo 1 - 4 - - 2 - - - - - - - 21 20 - - 3 3 54
Mugungo - - 1 - - - - - - - - - - - - - - - - 1
Nagô - - - - - - - - - - - - - 1 1 - - - - 2
Quilimane - - 2 - - - - - - - - - - 2 - 1 - 1 - 6
Quissama - - 6 - - - - - - - - - 1 9 4 1 - 2 - 23
Rebolo - 1 11 - 1 4 - - - - - - 2 40 36 - 3 14 5 117
São Tomé - - - - - - - - - - - - - 1 1 - - 1 - 3
Songo 1 - - - - - - - - - - - - 4 1 - - - - 6
Crioulos 46 14 217 476 24 129 63 33 29 21 5 266 25 318 271 76 16 92 124 2245
TOTAL 88 18 463 508 30 168 63 34 30 21 7 267 31 1101 795 85 68 304 286 4367
FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
296
FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
298
Para a Bahia no século XIX, João Reis a princípio atribuiu o maior uso de
mortalhas brancas pelos escravizados devido ao fato de essas mortalhas serem mais
baratas. No entanto, segundo Rodrigues, havia mortalhas brancas que tinham tecido de
alto valor, como as de cetim, veludo e tafetá 32. Não estou querendo com isso afirmar
que boa parte dos escravizados pudessem ter usado essas mortalhas brancas mais caras,
pois a maioria deve ter usado com certeza os tecidos mais baratos, como algodão. Mas
não podemos esquecer que uma parcela dos escravizados fez uso de mortalhas de santos
que eram as mais caras. Um número significativo de escravizados utilizou as mortalhas
pretas que eram mais caras que as brancas. Como vimos anteriormente muitos cativos
realizavam o trabalho ao ganho e tinham chance de acumular um pecúlio. Neste sentido,
a questão socioeconômica parece não ter sido um fator determinante para utilização de
mortalhas brancas pelos cativos na cidade do Rio de janeiro 33. Outra questão constatada
pelo autor foi que, quanto maior era a taxa de Africanidade, maior era o uso do branco.
Considerando todos os africanos juntos, escravizados e libertos, o uso do branco ainda
permanecia alto. Assim, o autor concluiu que proporções tão altas poderiam significar
também adesão a valores culturais preservados através da herança africana 34. Para o Rio
de Janeiro no século XIX, Claudia Rodrigues observou que o uso das mortalhas brancas
pelos africanos e seus descendentes livres, foros e escravizados, ia além da aproximação
com o universo da escravidão, significava a manutenção de uma identidade africana, no
sentido que seu uso reiterava práticas ancestrais 35.
32
RODRIGUES op. cit., 1996, p. 206.
33
Sobre essa questão do uso das mortalhas brancas pelos cativos veja RODRIGUES, op. cit., 1996, p.
206-7.
34
REIS, op. cit., 1991, p. 126.
35
RODRIGUES, op. cit., 1996, p. 205.
36
REIS, op. cit., 1991, p. 118.
299
presente em vários rituais africanos. 37 A água de argila branca, por exemplo, era
utilizada para banhar os recém-nascidos, no tratamento de doenças, contra os
infortúnios, especialmente em cerimonias de súplica durante as quais borrifava-se os
campos já semeados. Essa solução de água e argila era preparada por uma sociedade de
iniciados, o que evidencia o seu alto poder curativo. Em muitos ritos de passagem o
branco era a cor da primeira fase, a da luta contra a morte, mas também representava
renascimento. Entre os Bapende, no Zaire, sacerdotes iniciadores do rito mugongo eram
pintados de branco com o “pemba” 38. As viúvas ndiki, em Camarões do Sul, pintavam
as pernas de branco; os fali, em Camarões do Norte, envolviam o cadáver, exceto os pés
e as mãos com fitas de algodão branco; no norte do Togo aqueles que estão de luto
traçam uma linha branca na testa. Todos esses procedimentos com a argila branca são
feitos para marcar o morto e delimitar sua condição de morte, sendo assim, o contágio
da morte é duplamente contido. Por essa razão, a mensagem de renascimento presente
na argila branca tem sentido ambivalente, pois significa ao mesmo tempo morte e vida.
Em outras palavras, isso ajudava e dava apoio ao morto que precisava partir. Essa
situação permitiria aos poderes do além integrá-lo em seu lugar de direito, mas também
definia sua localização que, neste mundo, o situava em relação aos vivos 39.
O branco era também cor dos espíritos dos antepassados reencarnados.
Entre alguns grupos de procedência bantos, o branco era a cor dos mortos. Louis-
Vincent Thomas observou que os primeiros europeus que chegaram à região do Zaire
foram honrados em nome de heróis tribais que haviam recentemente desaparecido. Um
cadáver que caía na água voltava embranquecido, por esse motivo o branco europeu foi
frequentemente assimilado com um espirito aquático. Entre os benguelas do Zaire, seu
deus ibanza vivia na água. Por estes motivos é compreensível que no imaginário local se
associasse os brancos (europeus) que vinham da água (oceano) com certos atributos da
divindade. Assim sendo, os europeus eram considerados como espíritos dos
antepassados reencarnados. Por diferentes grupos africanos, o que ajuda a explicar a
37
Parte do que analiso a seguir tem como base RODRIGUES, Claudia. Op. cit., 1996. p. 205-206.
38
Bastão grosso, cônico, de giz colorido misturado com cola, com que se riscam os pontos ('conjunto de
sinais mágicos') que identificam cada entidade, segundo um código de cores. Em angola era usado pelo
curandeiro para riscar ou marcar o que pretende proteger dos maus espíritos. Utilizado nas religiões de
matriz africana. Cf. PINTO Altair. (Org.). Dicionário da Umbanda. Rio de Janeiro: Editora Eco, s/d. p.
142-3.
39
THOMAS, Louis-Vincent. La Mort Africanine: ideologie funéraire em Afrique noire. Paris: Payot.
Boulevard Saint-Germain, 1982. P.215; THOMAS, Louis-Vincent. Antropologia de la muerte. Mexico:
Fondo de cultura Economica, 1983, p.523.
300
associação que estes grupos faziam entre a América, terra dos brancos com a terra dos
mortos. Portanto atravessar o oceano, a Kalunga, era uma travessia para a morte 40.
Na cosmogonia bacongo, a cor branca representava a morte, assim como os
europeus eram tidos por mortos, comedores de negros, ou seja, de vivos 41. De acordo
com James Sweet, os portugueses eram vistos pelos povos da África Central como
feiticeiros comedores de negros, ou seja, para os centro-africanos, a travessia da
Kalunga (o Oceano Atlântico) a bordo dos navios negreiros significava uma morte
prematura na mão dos feiticeiros que se alimentavam de seus corpos 42. Aspecto esse
que também foi comentado por Marina de Mello e Souza, quando afirmou que o
“mundo do além é habitado por ancestrais e espíritos diversos, que afetam a vida das
pessoas desse mundo, diretamente ou por intermédio de algum líder religioso” 43. Ainda
sobre estas representações simbólicas sobre a associação entre a morte e a cor branca, é
importante mencionar a relação que existe entre estes componentes e a água do
mar/oceano. Entre os africanos de matriz banto, o mar que banhava a costa ocidental da
África era visto como um local de travessia para o mundo do além, ou, como na língua
banto, a “kalunga”, porque, para os kimbundos e umbundos, o sentido era basicamente
o mesmo: a linha divisória ou superfície que separava o mundo dos vivos daquele dos
mortos; portanto atravessar a Kalunga – simbolicamente representada pelas aguas do rio
ou do mar, ou mais genericamente por qualquer tipo de água ou por uma superfície
refletiva, como a de um espelho – significava “morrer”, se a pessoa vinha da vida, ou
renascer se o movimento fosse no outro sentido 44. Ela, a Kalunga, era como um portal
de passagem para o mundo espiritual habitado pelos mortos. Portanto, cria-se que se o
africano fosse transladado para a terra dos mortos, poderia retornar à África, desde que
40
THOMAS, Louis-Vincent. Antropologia de la muerte. Mexico: Fondo de cultura Economica, 1983,
p.524; RODRIGUES, Claudia. Os lugares dos mortos na cidade dos vivos... 1996, p. 205.
41
Segundo Blackburns, “em algumas culturas africanas os brancos eram considerados espíritos dos
mortos, que precisavam dos vivos para seus próprios fins obscuros e apavorantes”. BLACKBURNS,
Robin. A construção do escravismo no Novo Mundo, 1492-1800. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 476. É
o que observa Mary Karash quando traz um relato de um exemplo de “crença do canibalismo, presenciada
pelo francês Dabadie, um escravo novo gritava aterrorizado e escondendo-se embaixo da cama em um
hotel. Espantado com os gritos o francês indaga aos presentes o motivo do acontecido e, de pronto,
recebeu as explicações de um garçom que lhe afirmara que era comum os africanos recém-chegados a
ideia de que seriam literalmente devorados pelos brancos”; KARASCH, Mary. A vida dos escravos no
Rio de Janeiro. 2000, p. 78.
42
SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro- português (1441-
1770). Lisboa: Edições 70, 2007, p. 192.
43
SOUZA, Marina de Mello. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação do Rei do
Congo. Belo Horizonte: editora UFMG, 2002, p. 63.
44
SLENES, Robert W. “Malungu, Ngoma Vem!” África coberta e descoberta no Brasil. Revista USP. 12
– dez/jan/fev. 1991-1992, pp. 53,54.
301
45
De acordo com Ki-Zerbo: “O culto dos defuntos, tão característico da religião dos africanos, para quem
os mortos não vivem, mas existem mais fortes do que neste mundo, tomou neste contexto um significado
comovente até sublime: acreditava-se que os mortos agora libertados do látego do patrão-tirano, iam fazer
em sentido inverso a infernal travessia do Atlântico. Voando sem entraves para o continente bem-amado,
iam juntar-se à assembleia venerada dos antepassados, lá longe, do outro lado da ‘grande água’, no ‘pai
da Guiné’. KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra 2ª ed. Trad. Américo de Carvalho. Lisboa:
publicações Europa-América. 1972: p. 287.
302
homens seu índice de uso foi de 23,4%. Tal situação sugere uma aproximação das
mulheres africanas com as crioulas na preferência pelo preto, pois entre as africanas
possivelmente já estivesse difundida a tradição colonial de o preto ser a cor funerária
para as mulheres.
303
FONTE: Banco de dados de óbitos e testamentos da Freguesia da Sé, 1700-1850, feito a partir do Livro de óbitos e testamentos da Freguesia da
Sé (AP0400: 1701 – 1710; AP0406: 1737 – 1740; AP0155: 1746 – 1758; AP0156: 1776 – 1784) e Livro de óbitos e testamentos da Freguesia do
304
Santíssimo Sacramento da Antiga Sé: (AP0157: 1799 – 1797; AP0158: 1797 – 1811; AP0159: 1812 – 1819; AP0160: 1819 – 1824; AP0161:
1824 – 1828; AP0161: 1824 – 1828; AP0162: 1828 – 1830; AP0163: 1830 – 1833; AP0164: 1833 – 1837; AP0165: 1837 – 1840; AP0166: 1840
– 1843; AP0167: 1843 - 1861).
305
N % N % N % N % N % N % N %
Háb. de S. Francisco 430 13,1 399 12,3 102 6,5 44 5,3 27 1,3 15 0,8 1017 7,9
Háb. de S. Francisco de Paula 84 2,6 95 3,0 13 0,8 8 0,9 5 0,3 9 0,5 214 1,7
Háb. de S. Antônio 789 24,1 709 22,0 394 25,0 185 22,0 108 5,4 97 4,9 2282 17,6
Háb. de N. Sra. Do Carmo 198 6,0 167 5,2 13 0,8 2 0,2 12 0,6 7 0,4 399 3,1
Háb. de N. Sra. Da Conceição 143 4,4 29 0,9 131 8,3 8 0,9 286 14,3 39 2,0 639 4,9
Háb. de São Bento 37 1,1 28 0,8 10 0,6 5 0,6 4 0,2 - - 84 0,7
Háb. de S. Domingos 3 0,0 6 0,2 45 2,8 35 4 18 0,9 61 3,1 168 1,3
Háb. de N. Sra. das Dores 25 0,8 - - 20 1,3 1 0,1 39 1,9 4 0,2 89 0,7
Hábito de S. Teresa 22 0,7 2 0,0 - - - - 4 0,2 - - 28 0,2
Háb. de N. Sra. das Mercês 6 0,2 1 0,0 24 1,5 7 0,8 2 0,1 4 0,2 44 0,3
Háb. de S. João Evangelista - - 8 0,2 - - 12 1,4 3 0,3 15 0,8 38 0,3
Háb. de Sta. Efigênia - - - - 3 0,1 5 0,6 - - 1 0,0 9 0,0
Háb. de menino do coro - - 12 0,4 2 0,1 36 4,3 11 0,5 178 8,9 239 1,8
Háb. de outros santos 32 1,0 30 0,9 5 0,3 - - 9 0,4 9 0,5 85 0,7
Háb. da O. S. F. Penitência 18 0,5 34 1,0 - - 3 0,4 - - - - 55 0,4
Háb.da O. T. de N. Sra. do Carmo 6 0,2 14 0,4 - - - - - - - - 20 0,2
Háb. da O. Terc. de S. Antônio 1 0,0 4 0,1 - - - - - - - - 5 0,0
Háb. da O. S. Francisco de Paula 3 0,0 1 0,0 - - - - - - - - 4 0,0
Háb. da O. T. da Conc. E B. Morte - - - - 2 0,1 - - - - - - 2 0,0
Háb. da O. T. de S. Domingos - - - - 4 0,3 2 0,2 - - 1 0,0 7 0,0
Vestes sacerdotais - - 93 3,0 - - - - - - - - 93 0,8
Vestes militares - - 20 0,6 - - - - - - - - 20 0,2
307
Branca 131 4,0 98 3,0 208 13,3 160 19,0 536 26,8 634 31,9 1767 13,7
Preta 137 4,2 50 1,5 287 18,3 151 18,0 410 20,5 337 16,9 1372 10,6
Lençol 140 4,3 146 4,6 108 6,8 78 9,4 181 9,0 250 12,5 903 7,0
Hábito de cavaleiro - - 51 1,6 - - - - - - - - 78 0,6
Outras cores 35 1,1 11 0,3 8 0,5 2 0,2 45 2,2 34 1,7 101 0,8
Outras 16 0,5 35 1,0 10 0,6 15 1,8 14 0,7 26 1,3 117 0,9
Sem referência 1021 31,2 1200 37,0 188 12,0 84 9,9 288 14,4 268 13,4 3049 23,6
TOTAL 3277 100,0 3243 100,0 1577 100,0 843 100,0 2002 100,0 1988 100,0 12930 100,0
FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
308
TABELA – 25 MORTALHAS PELOS INOCENTES DE ACORDO COM A CONDIÇÃO SOCIAL POR SEXO
COND. SOCIAL SEXO LIVRES FORROS ESCRAVOS TOTAL
MORTALHAS FEMININO MASCULINO FEMININO MASCULINO FEMININO MASCULINO
N % N % N % N % N % N % N %
Háb. de S. Francisco de Paula - - - - - - 1 1,3 - - 3 0,7 4 0,0
Háb. de S. Antônio 1 0,5 2 0,8 1 1,1 1 1,3 2 0,5 - - 7 0,5
Háb. de N. Sra. Do Carmo - - 2 0,8 - - - - 5 1,2 3 0,7 10 0,8
Háb. de N. Sra. Da Conceição 164 76,3 20 8,6 61 62,2 5 6,6 218 51,6 28 6,5 495 33,6
Háb. de São Bento - - - - - - - - 1 0,3 - - 1 0,0
Háb. de S. Domingos - - 1 0,4 - - 7 9,2 5 1,2 35 8,2 48 3,3
Háb. de N. Sra. das Dores 30 13,9 - - 17 18,0 1 1,3 29 6,8 4 0,9 81 5,5
Hábito de S. Teresa - - - - - - - - 1 0,3 - 1 0,0
Háb. de N. Sra. das Mercês - - 2 2,3 - - - - 4 0,9 6 0,4
Háb. de S. João Evangelista - - 29 12,4 - - 10 13,2 3 0,7 13 3,0 55 3,7
Háb. de São João - - 66 28,1 66 4,5
Háb. de Sta. Efigênia - - - - 1 1,1 5 6,6 - - - - 6 0,4
Háb. de menino do coro - - 92 39,2 2 2,3 34 44,7 8 1,9 162 37,7 298 20,2
Háb. de outros santos 6 2,7 6 2,6 1 1,1 - - 3 0,7 7 1,6 23 1,6
Háb. da O. T de S. F. Paula 1 0,5 - - - - - - - - - - 1 0,0
Branca 6 2,7 9 3,8 4 1,1 6 7,9 59 13,9 51 11,9 135 9,2
Preta 3 1,4 1 0,4 - - 1 1,3 11 2,6 31 7,2 47 3,2
Lençol - - - - 1 1,1 - - 1 0,3 2 0,5 4 0,3
Outras cores 1 0,5 4 1,7 2 2,3 1 1,3 29 6,9 32 7,4 69 4,7
Outras 1 0,5 2 0,8 - - - - 5 1,2 3 0,7 11 0,7
Sem referência 2 1,0 1 0,4 7 7,4 4 5,3 42 9,9 52 12,1 108 7,4
TOTAL 215 100,0 235 100,0 99 100,0 76 100,0 422 100,0 430 100,0 1477 100,0
312
FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
313
amarelo. Conforme observado por Claudia Rodrigues, uso de mortalhas coloridas entre
as crianças talvez por serem consideradas inocentes pela Igreja e já consideradas em
estado de graça, o uso de mortalhas coloridas representasse um estado de contentamento
pela certeza da salvação 46.
46
RODRIGUES, op. cit., p.196.
47
LEITE, Fábio. A questão ancestral. São Paulo, Palas Athena, 2008, p. 104.
48
DEL PRIORE, Mary. Passagens, rituais e práticas funerárias entre ancestrais africanos: outra lógica
sobre a finitude. REDE-A: vol.1, nº1, jan.-jun. 2011, p. 127. Disponível em
http://revista.universo.edu.br/index.php?journal=4revistaafroamericanas4&page=article&op=view&path
%5B%5D=459. Acesso em 24/10/20
49
João Julião da Silva nasceu em 1769, em Macau, era filho de pais emigrados do Porto. Chegou a
Moçambique em 1790, passou a morar na Vila de Sofala, foi escrivão interino da Feitoria Nacional, onde
entrou em contato com vários documentos antigos que versavam sobre os costumes africanos. Foi tenente
coronel de Milicias do território de Bandire. fugiu da fortificação em 1832, por isto o Conselho de Guerra
o culpou de traição, mas foi reabilitado e recompensado pelo governo em 1842, quando a pedido do
governador de Moçambique, resolveu escrever suas memórias sobre a região de Sofala. Era casado com a
filha do governador Manuel Antônio Baptista Monteiro. Exerceu também a atividade de comerciante.
315
Para estes povos, a morte não era simplesmente o fim, mas a passagem de
um ciclo para outro, à volta ao mundo dos espíritos. Mesmo concebida como uma
passagem de um ciclo para o outro, a morte é encarada por eles como uma ruptura, e
como tal gerava dor e sofrimento e deixa saudade do familiar querido que partiu.
Todavia, esse sofrimento poderia ser agravado quando a morte era provocada por causas
que fugiam a concepção de mundo desses povos à harmonia era quebrada, pois na
maioria das vezes eles entendiam a morte como resultado de ações mágicas causadas
por algum feiticeiro, que normalmente era morto após a cerimonia de ganga. De acordo
com James Sweet, durante os séculos XVII e XVIII, havia uma grande comunicação
entre o mundo dos vivos e o mundo dos espíritos. Os adivinhos efetuavam uma série de
rituais para invocar os espíritos e saber das suas intenções para com os vivos. Ao
estabelecer uma ponte entre os dois mundos, o adivinho podia prever eventos passados
e futuros, descobrir a culpa ou inocência de criminosos suspeitos e determinar a causa
de uma doença e outros infortúnios 51.
Em seu estudo sobre Angola, Roquinaldo Ferreira observou que a cerimonia
de ganga era amplamente disseminada entre os diferentes estratos sociais na sociedade
angolana, que tinha como objetivo invocar os espíritos dos ancestrais a fim de descobrir
os males que afligiam os vivos. O ganga (adivinho) era a autoridade religiosa que
presidia a cerimonia e impunha respeito e poder pela sua capacidade de conectar o
mundo dos mortos e dos vivos. As obrigações cerimoniais e rituais realizadas pelos
gangas estavam relacionadas à crença de que a alma do falecido, zumbi (aparição)
poderia influenciar os vivos. Para os africanos desta região, aquele que via um zumbi
50
SILVA, João Julião da; SILVA, Zacarias Herculano da e SILVA, Guilherme Hermenegildo da.
Memória de Sofala. Etnografia e História das Identidades e da Violência entre os Diferentes poderes no
Centro de Moçambique, séculos XVIII e XIX. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1998, p. 113.
51
SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro- português (1441-
1770). Lisboa: Edições 70,2007, p. 145.
316
iria morrer em breve. Outra forma de saber o que a alma do antepassado precisava era
através dos sonhos. Mas os gangas eram os principais condutas para o mundo
sobrenatural e ajudavam os africanos a identificar o zumbi responsável por suas aflições
de saúde. Significativamente, muitas cerimonias organizadas pelos gangas eram
realizadas no próprio túmulo do parente falecido 52.
No momento em que desaparecia um membro do grupo, era necessário
“compensar a perda dos mortos e reorganizar as relações sociais de sexo, parentesco,
idade, propriedade, direitos e obrigações”. 53 Para tanto, se procedia ao inventário dos
bens deixados pelo morto. O gangueiro, aquele que presidia esta cerimônia, recolhia
todos os bens do defunto e neste momento todos os parentes presentes ficavam
conhecendo-os e decidiam o destino a lhes ser dado 54. De acordo com Sebastião Xavier
Botelho, o Ganga era uma espécie de devassa 55 ou inquirição, feita com a autorização
do Inhamasango. O gangueiro geralmente deveria ser proveniente de uma aldeia
vizinha, para se evitar suspeitas. O objetivo dessa cerimônia era encontrar aquele que os
membros da família queriam que fosse o feiticeiro, encontrando-o se fosse membro da
aldeia, “como esteja presente, agarrão-o e prendem-o a hum cepo, quando he que logo
ahi mesmo o não Matão” se estivesse ausente e fosse membro da aldeia, “fica em reféns
o filho e a filha na falta delles o parente mais chegado”, se fosse estrangeiro iam buscá-
lo onde residia, “convidando com presentes o Inhamasango para que lho entreguem”. O
feiticeiro ou a feiticeira (podiam ser de ambos os sexos) recorria ao Inhamasango,
queixando-se de ter sido acusado injustamente por falso testemunho, e queriam provar
publicamente sua inocência 56.
Para provar sua inocência, os acusados eram obrigados perante o público a
ingerir uma planta venenosa chamada moavi. A planta era colhida por um dos parentes
do falecido que, antes do amanhecer entregava-a ao mestre que o estava esperando no
campo. Este a amassava no pilão, dando-lhe a forma de três bolas do tamanho de um
limão. Os acusados e os co-réus (suspeitos de terem participado do crime) estavam de
custódia desde o dia anterior para evitar que comessem alguma coisa. Eram levados ao
local da execução na presença de todos da aldeia, e seus arredores, ficando frente a
52
FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil
during the era of Slave Trade. Cambridge University Press, 2012, pp. 177-180; 195-198.
53
RODRIGUES, José Carlos. Tabu da morte. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983, p. 75
54
SILVA, op. cit., p.113.
55
Cf. Idem., p.114
56
BOTELHO, Sebastião Xavier. Memória estatística sobre os domínios portugueses na África Oriental.
Lisboa, Tipografia de José Baptista Morando, 1835. Este relato refere-se ao modo como os Cafres
praticam as gangas. pp. 220-222.
317
57
Sebastião Xavier Botelho grande do reino, comendador da ordem de Cristo, freire da ordem de São
Tiago da Espada, desempenhou sucessivamente os seguintes cargos: provedor dos resíduos e cativos, juiz
dos direitos reais da Casa de Bragança, desembargador da Relação do porto, inspetor-geral dos
transportes de mar e terra para o exercito, juiz privativo do comissariado britânico durante a Guerra
Peninsular, inspetor dos teatros, desembargador da Casa de Suplicação do Rio de Janeiro, deputado fiscal
da Junta dos Arsenais, Fabricas e fundições do Brasil, diretor do Liceu Nacional em 1822, capitão general
da ilha da Madeira em 1820; nomeado pelo mesmo cargo para Moçambique em 23 de junho de 1824,
tomando posse em 20 de janeiro de 1825.
58
BOTELHO, op. cit., pp. 222-223. Este relato refere-se ao modo como os Cafres praticam as gangas. Cf
também SILVA, op. cit., p p. 114-119.
59
ALTUNA, Raul Ruiz de Azús. A cultura tradicional banto. Luanda: Secretariado Arquidiocesano de
Pastoral 1985, p.445.
60
PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. A Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de
Janeiro: Garamond: IPHAN, 2007, P. 166.
318
61
SILVA, op. cit., p. 113
62
LEITE, op. cit., p. 128.
63
Sacerdote espanhol, chegou em Angola com o primeiro grupo de padres diocesanos das Missões
Diocesanas Bascas, em 1959. Em 1960, fundou a Missão de Brito Godins, no distrito de Malange. Passou
a trabalhar na arquidiocese de Luanda em 1965 e escreveu sobre a cultura banto.
319
durante um mês 64. Segundo Fábio Leite, a família do morto ainda recebia uma série de
doações, dos aliados e amigos, constituídos de tecidos, alguns de vários metros de
comprimento, bebidas, perfumes, além de doações em dinheiro e alimentos que seriam
utilizados no banquete ritual em homenagem ao falecido. Assim, estabelecia-se um
princípio de reciprocidade em que a família do morto deveria proceder da mesma forma
caso o óbito ocorresse na família ofertante. Parte dessas doações era colocada no ataúde
do morto e o acompanhava na condição de símbolos de sua posição social, prestigio e
estima desfrutados na comunidade. Constituíam a bagagem com a qual ele entraria no
mundo dos ancestrais e tomaria lugar junto a seus pares após o termino dos funerais 65.
Mary Del Priore diz que em toda a África Atlântica, “os panos ou tecidos do
morto” eram de vital importância. Tais lençóis e mortalhas tinham por objetivo sugerir à
passagem, a regeneração, a vida contida na morte e pela morte; não sendo mera
decoração. Eram, sim, valores de troca fundamentais, que na maior parte das vezes
intervinham nas transações e nas oferendas coletivas feitas pelos africanos aos seus
mortos. O ato de enrolar os mortos em tecidos consolidava a coesão e o entendimento
entre o grupo e seus antepassados. Ao envelopar o corpo do defunto, os africanos
estavam reconstituindo as redes de alianças sociais, em particular, os familiares e
clânicas, que permitiam que o morto fosse reconhecido e recebido pelos ancestrais.
Quanto aos vivos, a generosidade de seus presentes seria retribuído com boas graças
pelo morto. Desta forma, a oferenda do tecido mantinha a continuidade entre o passado
e o presente. Pois, entre os panos que cobriam o morto, se encontravam os que
pertenciam ao seu pai. Os panos que cobriam a tenda do rei falecido podiam servir de
mortalhas para seus herdeiros. Entre muitos grupos congoleses, o movimento de enrolar
o pano à volta do corpo, significava o movimento em espiral da vida 66.
Após analisar elementos das cosmologias africanas com relação à passagem
da vida para a morte e a concepção sobre os mortos em diferentes reinos, avançaremos
para as noções relacionadas à escatologia católica sobre a passagem da vida para a
morte.
De acordo com a escatologia católica o destino da alma, até os séculos XII-
XIII, esteve circunscrito ao Céu ou ao Inferno. O purgatório surgiu no século XII e
64
ALTUNA, op. cit., p. 446; LEITE, op. cit., p. 104; GENNEP, op. cit., p. 129; SILVA, op. cit., p. 111.
65
LEITE, op. cit., p. 106.
66
DEL PRIORE, Mary. Passagens, rituais e praticas funerárias entre ancestrais africanos: outra lógica
sobre a finitude. 2011, pp. 128-9
320
67
Denominação dada por Lutero ao Purgatório. Esse além “inventado” não estava nas Escrituras. LE
GOFF, Jacques. O nascimento do purgatório. Lisboa, Portugal: Editorial Estampa, 2ª edição, 1995, p. 15.
68
REIS, op. cit., 1991. p. 203.
69
LE GOFF, op. cit., 1995, p. 18-19; RODRIQUES, op. cit., 1995. pp. 150-151; ______. 2007, p. 444;
______. 2010, p. 42; BRAGA, op.cit., p. 96.
70
REIS, op. cit., 1991. p. 203; RODRIGUES, op. cit., 2005. p. 46.
71
GOFF, op. cit., 1995, p. 19.
72
Idem., p. 164.
73
RODRIQUES, op. cit., pp.151-152.
74
Idem., 95. pp.151.
321
75
LE GOFF, op. cit., 1995. p. 268.
76
Ídem., 1993. p. 343.
77
RODRIGUES, op. cit., 2005, p.44.
78
Idem., 2005. p. 48.
79
Idem., 2005. p. 50.
80
Ibidem., 2005. p. 48; ARAÚJO, Manoela Vieira Alves de. A importância do reforço da doutrina do
Purgatório por Trento para o desenvolvimento da atuação dos leigos na busca pela salvação.
Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016). p. 184.
322
Purgatório, pois estas logo que estivessem no Paraíso rezariam por aqueles que as
tiraram do Purgatório 81.
Surge um grande interesse por parte dos vivos em rezar, especialmente pelas
as almas de parentes e amigos, pois estes não seriam ingratos e se tornariam seus
intercessores no Paraíso celeste 82. Le Goff observou que a devoção que se exprimia
“pelos altares e pelos ex-votos às almas do Purgatório mostrava que dai em diante não
só essas almas adquiriam méritos, mas poderiam também dirigi-los aos vivos,
restituindo-lhes a assistência” 83. Assim, a devoção às almas do Purgatório tornou-se
“uma cadeia circular sem fim, uma corrente de reciprocidade perfeita” que garantiu à
solidariedade entre os vivos e os mortos 84. Através desta solidariedade estendida ao
além, foram reforçados os laços familiares, corporativos e confraternais. Estes últimos
manifestaram-se, principalmente a partir do século XIII, com o surgimento das
confrarias, pois estas tinham como uma das suas principais funções a realização dos
sufrágios em intenção das almas de seus confrades 85.
Ao mesmo tempo em que adotava uma pedagogia da morte baseada no
medo, a Igreja também oferecia aos fiéis a esperança, a segurança, por meio das
garantias de proteção proporcionadas por ritos tranquilizadores. A igreja soube
manipular “as sensações de angustia e insegurança coletivas, transformando-as em
medos religiosos”. Assim como, a partir da ideia de culpabilização, buscou, por um lado
difundir o ideal de penitência, e por outro, ela ofereceu aos fiéis a tranquilização,
através das orações, procissões, culto aos santos, sufrágios e intercessores entre outros.
Diante de uma forte representação de culpabilização ela ofereceu a imagem de um Deus
misericordioso para aqueles que confessassem e se arrependessem de seus pecados e se
preparassem com antecedência para a morte, fazendo testamento, buscando os
sacramentos, instituindo legados pios e sufrágios 86.
Ao disseminar uma pedagogia do medo, um dos recursos de tranquilização
aos fiéis que a Igreja católica lhes ofereceu foi o culto aos santos, que eram
81
LE GOFF, op. cit., 1995. p. 373.
82
Idem., 1995. p. 373, 248.
83
Idem., 1995. p. 425.
84
Ibidem., 1995. p. 50; 164-5; 373; 425-6; A importância do reforço da doutrina do Purgatório por Trento
para o desenvolvimento da atuação dos leigos na busca pela salvação. Temporalidades – Revista de
História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016). p. 185.
85
LE GOFF. Op. cit., 1993. p. 275; 347-8; RODRIGUES, op. cit., 2005. p. 48; ARAÚJO, Manoela Vieira
Alves de. A importância do reforço da doutrina do Purgatório por Trento para o desenvolvimento da
atuação dos leigos na busca pela salvação. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150,
Edição 22, V. 8, N. 3 (set./dez. 2016). p. 184.
86
RODRIGUES, op. cit., 2005. p. 52.
323
87
RODRIGUES, op. cit., 2005. p. 52; DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800.
Uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras. 2009; ARAÚJO. Manoela Vieira Alves de. A
importância do reforço da doutrina do Purgatório por Trento para o desenvolvimento da atuação dos
leigos na busca pela salvação. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 22, V. 8,
N. 3 (set./dez. 2016)
88
VIDE, op. cit., Título VII, c. 21, p. 9.
89
RODRIGUES, op. cit.,... 2005. p. 52.
324
90
RODRIGUES, op. cit., 1996, p.214.
91
REIS, op. cit., 1991, p. 128.
92
EWBANK, op. cit., p. 58.
93
REIS, op. cit., 1991, p. 128.
94
Sobre os valores que se gastavam na armação da casa para o velório cf. BRAVO, op. cit., p. 125.
95
EWBANK, op. cit., p. 58; REIS, op. cit., 1991, p. 128.
96
REIS, op. cit., 1991, p. 129-130.
325
97
EWBANK, op. cit., p. 58-59.
98
REIS, op. cit., 1991, p. 130.
99
CASCUDO, Luís da Câmara. Anúbis e outros ensaios: mitologia e folclores. Rio de Janeiro:
FUNARTE/INF: Achiamé; Natal: UFRN, 1983, p. 15; REIS, João José. A morte é uma festa... 1991, p.
130.
326
auxilio dos amigos, muitas vezes vendiam os móveis ou roupas que podiam dispor com
propósito de honrar os seus mortos 100.
As mãos do defunto não podiam ir livres, eram amarradas com rosários. As
cores dependiam da condição social do morto, sendo o preto usado nos homens e
mulheres casadas, azul nas virgens, branco nas crianças que já haviam feito à primeira
comunhão e roxo nas viúvas. Colocava-se uma vela acesa entre as mãos para iluminar
os caminhos que levavam as bem-aventuranças. Aqueles que chegavam para se despedir
do morto, saudava-o com água benta, costume herdado de Portugal que tinha como
função espantar os demônios que pudessem atormentar o morto. Até a saída do enterro
o morto ficava completamente encharcado devido à umidade das flores e os pingos de
água benta que todos que entravam, obrigatoriamente deviam lhe aspergir 101.
As mulheres presentes no velório faziam diversas orações pelo defunto,
rezavam padre nossos, ave-marias, credos, rosários e ladainhas, cantavam incelências ou
excelências, cantigas de guarda, cantigas de sentinela e benditos de defuntos eram
pronunciadas em homenagem ao morto, reforçando os ritos de separação. Assim como,
as carpideiras, “velhas devotas de lágrima fácil e gestos teatrais que abraçavam
convulsivamente os parentes do morto, fazendo exclamações trágicas, com suspiros de
sugestiva extensão dirigindo orações com voz plangente, tentando, por todos os meios
lícitos atrair as atenções”, choravam com eloquência para afastar a alma do defunto do
mundo dos vivos. Elas gritavam de forma estridente ao longo do velório, na saída do
defunto de casa e durante o sepultamento, essas gritadeiras mantinham-se acesas.
Mesmo com todo o alvoroço que faziam, não impediam que o morto ouvisse os recados
dos vivos para aqueles que já haviam morrido. Pedidos que tinham como objetivo curar
doenças e solução de outros infortúnios, e até pedidos de vingança celeste contra os
desafetos entres os vivos 102.
Os familiares e amigos não recusavam esmolas, enquanto o cadáver
permanecia exposto. Parentes e amigos passavam a noite velando o morto. O
comportamento alegre e divertido sem faltar com o respeito era bem vindo, pois “era
sinal de que o morto não queria tristezas”. Não faltava comida e bebida, apesar dos
viajantes não falarem nada sobre esta etapa do ritual ela existia 103. Ewbank chegou a
100
EWBANK, op. cit., p. 59-60.
101
VIANNA, Hidegardes. A Bahia já foi assim: crônicas de costume. Salvador, Bahia: Editora Itapuã,
1973, pp. 65; CASCUDO, op. cit., P. 16; REIS, op. cit., 1991, p. 130.
102
CASCUDO, op. cit., p. 18; REIS, op. cit., p. 130-131.
103
VIANNA, op. cit., pp. 56,60 e 65; CASCUDO, op. cit., p. 16-7; REIS, op. cit., p. 131.
327
dizer que não se ofereciam jamais comida e bebida nos funerais. Tal afirmação é
contrária nossa memória coletiva sobre esse costume herdado de Portugal e da África
que possivelmente ainda exista em regiões rurais do Brasil 104.
De acordo com as Ordenações Manuelinas, o banquete mortuário era
permitido, exceto no interior das igrejas 105. Hidelgardes Vianna afirma que “defunto
sozinho era presa fácil para o demônio” 106. Portanto, era tarefa dos vivos zelar pelos
seus mortos para que os maus espíritos não se aproximassem deles no momento
derradeiro. Tinham o dever de fortalecer sua alma através de orações. A família tinha
obrigação de cuidar para que parentes, amigos e vizinhos não esmorecessem,
encorajando-os para que enfrentassem a noite de espírito elevado, por isso a importância
da distribuição de comes e bebes, especialmente da bebida espirituosa 107. De acordo
com Câmara Cascudo servir comidas e bebidas em velório é um costume que teve início
no antigo Egito. A partir de então os banquetes fúnebres espalharam-se pelo mundo,
chegando até Portugal. Assim sendo, passaram a fazer parte das obrigações domesticas
de diversos povos. Esses alimentos eram servidos aos vivos e aos mortos, aos quais
eram oferecidas bebidas, doces, pão, carne, deixando-os no túmulo ou jogando-os para
dentro do mesmo. Nas camadas populares, o velório era agitado, barulhento e
abundante: bebia-se em grande quantidade, falava-se alto e os gestos eram menos
contidos 108.
Adalgisa Campos observou que em visita pastoral a Capitania de Minas
Gerais em 1726 o Bispo D. Frei Antônio de Guadalupe ao constatar que alguns
escravizados, principalmente os da Costa da Mina faziam ajuntamentos à noite “com
vozes e instrumentos em sufrágios de seus falecidos” reuniam-se “em algumas vendas,
onde compravam varias bebidas e comidas, e depois de comerem lançavam os restos
nas sepulturas”. O bispo recomendou aos reverendos vigários das freguesias em que
isso ocorria que combatessem tal costume, que fizessem “desterrar estes abusos,
condenando em três oitavas para a Fabrica aos que receberem em sua casa e ajudarem
estas superstições” 109.
104
EWBANK, op. cit., p.59; REIS, op. cit. 1991, p. 131.
105
Ordenações Manuelinas. Livro V, Titulo 33, parágrafo 7, p. 96.
106
VIANNA, op. cit., pp. 58
107
REIS, op. cit., 1991, p. 131.
108
CASCUDO, op. cit., p. 16-7.
109
CAMPOS, Adalgisa Arantes. Considerações sobre a pompa fúnebre na Capitania das Minas – no
século XVIII. Revista do Departamento de História da UFMG, n. 4, 1987, p.16.
328
110
BONOMO, Juliana Resende. Alimentando o luto: uma pesquisa sobre as comidas servidas nos
velórios de Entre Rios de Minas e Belo Horizonte. REVISTA M. Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, jul./dez. 2018,
p. 448.
111
MUTEKA, Faustino Tchimbundo. Consumo de Álcool em Angola: estudo com militares e civis.
Departamento de Psicologia. Instituto Superior de Ciências da Saúde – Norte. (ISCS-N), 2012, p. 15;
BARBOSA, Francisco José. Nas fronteiras da liberdade: colonização, descolonização e fitos fúnebres na
Angola contemporânea. São Paulo: pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, 2015, p.
178; BONOMO, Juliana Resende. Alimentando o luto: uma pesquisa sobre as comidas servidas nos
velórios de Entre Rios de Minas e Belo Horizonte. REVISTA M. Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, jul./dez. 2018,
p. 448.
112
De acordo com o Dicionário de Rafael Bluteau pompa significa acompanhamento por cortejo, em
triunfos, ou enterros; Pompa fúnebre. Pomposo, pompa, acompanhado de muita gente Esplendido,
magnífico; estilo pomposo. BLUTEAU, Rafael. Dicionário da Língua Portuguesa, reformado e
acrescentado por Antonio de Moraes Silva. Tomo segundo. Lisboa: na Officina de Simão Thaddeo
Ferreira, 1789, p. 215; Adalgisa Campos observou que o sentido original da palavra “pompa”. De origem
grega “pompê" detinha o sentido de procissão. Em latim continuou traduzindo essa ideia de cortejo e
séquito. Significou também exterioridade ou aparência e ainda, luxo e gala. Nas descrições de cerimônias
fúnebres do século XVIII, o termo foi bastante utilizado, tendo assumido muitas vezes o sentido de
séquito e ou luxo da aparência, ou ainda, foi usado para enfatizar a hierarquia presente no
acompanhamento fúnebre. A pompa podia faltar durante a vida, mas era muito essencial no último
momento da existência. CAMPOS, op. cit., 1987, p. 5.
113
REIS op. cit., 1991, p. 132; RODRIGUES, op. cit., 1996, p.214.
329
114
PEREIRA, op. cit., pp. 172-3.
115
VIDE, op. cit., Titulo XLV, c. 812,813 e 814, pp. 287-288.
116
BRAVO, op.cit., p. 128. De acordo com Câmara Cascudo a presença do padre era fundamental, pois se
não houvesse o acompanhamento de um sacerdote até o momento do enterro a alma do morto poderia se
330
perder, não acompanhado o corpo, e ficar vagando na terra dando trabalho aos vivos. CASCUDO, op. cit.,
1983, p. 18
331
Fica evidente que entre a maioria dos crioulos e africanos ocorreu uma
encomendação simples, sem pompa. Curiosamente, a maior pompa ocorreu entre os
africanos e não entre os crioulos. Mas no total geral, foram os crioulos que mais
receberam o rito de encomendação, com o total de 1.746, enquanto entre os africanos
foram 1.637; contudo, a distância entre os dois segmentos foi muito pequena. A
proporção entre crioulos e africanos encomendados por apenas um sacerdote foi muito
próxima. Sendo a encomendação uma cerimônia de direto paroquial, pela qual o
sacerdote recebia esmolas para realizá-la, tudo leva a crer que esse elemento do ritual
era acessível aos diferentes segmentos sociais; muito embora nem todos aqueles que
332
117
BRAVO, op. cit., p. 129.
118
ACMRJ. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé, AP0 160 (1819-1824), p. 31.
119
ACMRJ. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé, AP0 160 (1819-1824), p. 57v.
120
ACMRJ. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé, AP0158, 1797-1812. Testamento de Ana
Luiza, pp.1.
333
simples “sem maior solenidade alguma”. No entanto, foi amortalhada em hábito de São
Santo Antônio, que estava entre os mais caros e foi acompanhada por cinco padres, que
também tinha um custo considerável 121, além de participar de duas irmandades. O que
sugere que tinha algum pecúlio acumulado, pois uma negra pobre não poderia arcar com
tais despesas. Mas infelizmente ela não fez a relação de bens declarando que seu
primeiro testamenteiro e universal herdeiro tinha total conhecimento dos mesmos. É
possível que tenha conquistado uma posição social de relativa importância, questão que
é reforçada com a escolha dos testamenteiros, benfeitores e administradores de seus
bens, conforme podemos ver: em primeiro lugar ela optou por João Gonçalves Santiago,
seu universal herdeiro, que era anspeçada 122 do Primeiro Regimento de Linha da Praça
da cidade do Rio de Janeiro; em segundo pelo quartel-mestre 123 do mesmo regimento,
Domingos Alves e, em terceiro, pelo tenente de milícias João Rodrigues Botelho, aos
quais ela delegou plenos poderes constituindo-os seus procuradores, o que sugere ter
tido uma relação mais íntima com os mesmos 124.
Entre os africanos, temos três casos bem interessantes. O primeiro caso é o
de Antônio Luiz Soares, preto forro, nação Mina, casado. Faleceu em 27 de janeiro
de1755, foi encomendado pelo reverendo cura e doze padres e foi amortalhado em um
lençol. Fato este que chama a atenção, pois não se trata de um caso em que o morto não
tinha condições, mas ao contrário poderia ter feito uso de uma mortalha mais cara e
luxuosa. Portanto, a opção pelo lençol pode ser para expressar uma tentativa de
demonstrar humildade. Embora o corpo tenha sido conduzido em uma rede, foi
depositado no esquife da irmandade de São Domingos, além da presença dos treze
padres para encomendação pedia a presença de todos os irmãos de suas irmandades com
todas suas cruzes. Embora não tenha dito quantas irmandades, tal afirmativa é suficiente
para percebemos à pompa empregada no rito. Lembrava aos juízes e mais irmãos da
mesa que encomendassem sua alma “a Deus Nosso Senhor” e que cada uma de suas
irmandades como de costume mandassem fazer “todos os sufrágios costumados que
fazem aos irmãos ao falecerem”. Nota-se que Antônio não era um preto qualquer, pois
tinha prestígio e se destacava entre os irmãos. E não era para menos, pois além de ter
121
Para conhecer maiores detalhes sobre o preço das encomendações cf. BRAVO, op. cit., 4, p. 135.
122
Posto militar da classe das praças, existente nas forças armadas de diversos países do mundo, bem
como em forças de segurança e outras organizações militares ou paramilitares.
123
Oficial responsável pelo alojamento das tropas, recepção e distribuição de fundos pelos corpos,
supervisionado por um conselho administrativo militar.
124
ACMRJ. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé, AP0158, 1797-1812. Testamento de Ana
Luiza, pp.1.
334
sido juiz e procurado tinha servido em todos os cargos da irmandade do patriarca São
Domingos. O que nos leva a supor que o morto devia gozar de uma boa reputação, além
da posição de liderança entre os irmãos. Assim, rogava ao irmão juiz e mais irmãos da
mesa que lhe dessem sepultura e cumprissem com todos os sufrágios necessários.
O segundo caso é o de Joanna Pinta, preta forra de nação Benguela, que
faleceu em 1802, recebeu o sacramento da extrema-unção por não poder falar por causa
da doença, foi amortalhada com o hábito de Santo Antônio e encomendada por vinte
sacerdotes. Infelizmente o registro de óbito não trazia a informação do local onde foi
sepultada, mas pelo fato ter “conduzida processionalmente com os mesmo para esta
freguesia”. Possivelmente tenha sido enterrada na matriz, que nessa época era a igreja
de Nossa Senhora do Rosário, pois era comum os registros de óbitos virem com a
expressão “sepultada nesta freguesia” o que indicava a igreja matriz. O que me leva
suspeitar que talvez fizesse parte da irmandade do Rosário. Seu caso nos ajuda a
entender que possivelmente outros benguelas tenham feito testamento e conquistaram
certa distinção social. Era casada com o Alferes do Regimento de Milícias dos pretos,
que poderia lhe possibilitar uma posição de destaque em relação aos demais os pretos. O
fato de ter usado habito de Santo Antônio, encomendada e acompanhada e procissão por
vinte sacerdotes, que lembra os cortejos festivos citados por João Reis 125, demonstra
que não era uma negra comum e que tinha certa representatividade social. Devido a
todo esse aparato fúnebre, é provável que possuísse bens e tivesse algum pecúlio
acumulado. No registro de óbito consta que ela redigiu testamento, mas não se
encontrava no livro de registros dos mesmos. Assim sendo, não há como saber se
Joanna realmente foi sepultada na Igreja do Rosário, se teria sido filiada a irmandade do
mesmo nome ou em qualquer outra. No entanto, não há dúvida que com todo esse
aparato este é um caso de pompa fúnebre que a distingue dos demais pretos africanos
forros 126.
A já citada Cristina de Almeida, preta forra, nação Mina, casada, faleceu em
5 de julho de 1751, recebeu apenas o sacramento da extrema-unção por morrer de
repente. Fez testamento, o que permite que conheçamos um pouco melhor sua trajetória.
Entre os seus testamenteiros, benfeitores e procuradores estavam os irmãos de sua
irmandade Nossa Senhora do Rosário. Declarou que de seu casamento com Domingos
Fernandes, teve um filho, que já havia falecido, assim como, seu marido. Mas teve outro
125
REIS, op. cit., 1991, p. 137-170.
126
ACMRJ. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé, AP0158, 1797-1812.
335
“filho chamado João Garcia do Lago, que se encontrava em Goa, na Índia, que instituiu
como seu legitimo herdeiro. Fez questão de frisar que o filho era pardo; o que o
distanciava do passado escravista. Em seu testamento declarou que possuía 4 moradas
de casas térreas, 3 escravos, 6 cordões de ouro, 2 pares de brinco, 4 pares de botões e 10
botões de colete, todos de ouro, 1 imagem de N. Sra. da Conceição e 1 fio de contas,
alguns colares de ouro que não especificou quantidade, “e mais uma volta de cordão de
ouro” que deixou para seu primeiro testamenteiro, mais nove dobras, que somavam a
quantia de 115 mil réis para pagar saldar um empréstimo que tinha feito com ele. Tinha
dividas com outras pessoas que ordenou que se pagasse. Deixou quantias em dinheiro,
joias e outros bens para diversas pessoas. Como irmã de N. Sra. do Rosário, pediu 400
missas pela sua alma, 50 missas de corpo presente e 10 missas pela alma de seus
escravos falecidos. Solicitou que seu corpo fosse encomendado e acompanhado pelo
pároco com 30 padres juntamente com seus irmãos da Irmandade do Rosário, em cuja
igreja foi enterrada, usando a mortalha de São Francisco. Pediu 31 sacerdotes em sua
encomendação, mas só teve de fato, 23. Não sabemos por qual motivo, mas é possível
que fosse esse o número de sacerdotes disponíveis no momento. Mas o que queremos
demonstrar aqui é a pompa com que se deu seu funeral.
Este é mais um caso de uma preta forra que prosperou e alcançou distinção
entre pretos africanos em geral. De acordo com Sheila de Castro Faria essas pretas
forras de origem mina em geral eram aquelas que conseguiam depois dos homens
“brancos” conquistarem as maiores fortunas. Construíam suas fortunas através de suas
próprias agências, indústrias e trabalhos, formavam a primeira classe das quitandeiras e
dominavam o comércio de retalho. Essas “damas mercadoras” construíram uma riqueza
fabulosa, possuíam vários bens, joias, casas. Sua escravaria era 95% feminina.
Deixavam sua herança para suas ex-escravas, suas crias, para suas irmandades ou para
salvação de suas almas 127. Com base na tabela 28, observa-se que de acordo com a
condição social do morto entre os livres ocorreu a maior quantidade de encomendações:
16,3%, contra 11,3% entre os forros e 3,5% entre os escravizados. Entre os livres 4,6%
foi encomendado em casa, 0,1% em casa e na igreja e 11,6% na igreja. Entre os forros,
4,6% foi encomendado em casa, 6,7% na igreja e apenas um indivíduo foi encomenda
em outra freguesia. Entre os escravizados, 0,1% foi encomendado em casa e 3,4% na
igreja e um indivíduo foi encomendado no cemitério. O índice de ausências de
127
Cf. FARIA, op. cit., 2004.
336
128
RODRIGUES, Claudia. Morte e rituais fúnebres. In SCHWARCS. Lilia Moritz e GOMES, Flavio dos
Santos. (orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 325.
Para o conceito de “elite das senzalas” veja FRAGOSO, João. Elite das senzalas e nobreza da terra numa
sociedade rural do Antigo Regime nos trópicos: Campo Grande (Rio de Janeiro), 1704-1741. In
337
FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima. O Brasil colonial 1720-182. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, volume 3, 2014. pp. 241-305.
338
atividade o trabalho ao ganho, o que lhes permitia bancar um funeral mais pomposo,
mas no caso de uma menina doze anos de idade seria improvável que tivesse um pecúlio
acumulado para tamanha pompa. Já o caso de Thereza, o fato de ter sido encomendada
na igreja de Santa Efigenia é possível que seja filiada à irmandade do mesmo nome ou
ainda a de Nossa Senhora dos Remédios que tinha como uma das suas principais
funções prestar assistências aos seus irmãos. O terceiro caso é o de Francisco de
Chagas, escravo do capitão Silvestre Moreira Claro, que faleceu em 16 de janeiro de
1822. Foi amortalhado em hábito de São Antônio, encomendado por onze sacerdotes e
acompanhado pelos mesmos para igreja de São Domingos onde foi sepultado. É
possível que Francisco fosse irmão da irmandade de São Domingos e a mesma tenha
providenciado o seu funeral, pois no registro de óbito não havia informação se tinha
pais, esposa ou outros parentes que pudessem tomar tais providências. Ou seu funeral
pode ter sido providenciado também pelo senhor, pois ter seus escravizados inumados
com esplendor dava status e poder aos senhores 129.
Com toda certeza estes foram casos de escravizados que se diferenciaram na
hierarquia social entre os demais cativos da cidade. A diferença entre ter a participação
de um ou vários sacerdotes na encomendação e acompanhamento dependia da condição
social do morto. Indivíduos livres e pertencentes à elite colonial tinham maiores
condições econômicas para garantir um maior número de sacerdotes em suas
cerimônias, os forros que conseguiam ascensão econômica e social almejavam obter
rituais faustosos aproximar do mundo do livres, afastando-se do mundo do cativeiro,
pois este era objetivo da sociedade, mas vimos que seria possível aos escravizados
obterem funerais suntuosos, pois na morte de uma forma geral todos buscavam alguma
pompa.
129
Veja BRAVO, op. cit., pp. 125-136.
339
340
TABELA 29 – ÍNDICE DO NÚMERO DE PADRES NAS ENCOMENDAÇÕES DOS CORPOS CONDIÇÃO SOCIAL
ECOMENDADO POR LIVRES FORROS ESCRAVOS TOTAL
N % N % N % N %
Coadjutor/cônego cura 1426 21,8 1519 62,9 3096 77,6 6041 46,7
Coadjutor/cônego cura mais 2 a 5 sacerdotes 132 2,0 40 1,8 8 0,2 180 1,4
Coadjutor/cônego cura mais 6 a 10 sacerdotes 691 10,6 174 7,3 21 0,5 886 6,9
Coadjutor/cônego cura mais 11 a 15sacerdotes 279 4,3 19 0,7 3 0,0 301 2,4
Coadjutor/cônego cura mais 16 a 20sacerdotes 41 0,7 1 0,0 - - 42 0,3
Coadjutor/cônego cura mais 21 a 25 sacerdotes 42 0,7 1 0,0 - - 43 0,3
Coadjutor/cônego cura mais 26 a 31 sacerdotes 5 0,0 - - - - 5 0,0
Coadjutor/cônego cura mais 39 a 50 sacerdotes 3 0,0 - - - - 3 0,0
Coadjutor/cônego cura e vários sacerdotes 38 0,6 2 0,0 1 0,0 41 0,3
Capelão da Misericórdia - - - - 1 0,0 1 0,0
Sem referência 3877 59,3 661 27,3 864 21,7 5402 41,7
TOTAL 6534 100,0 2417 100,0 3994 100,0 12945 100,0
FONTE: Grupo de Pesquisa Imagens da Morte/CNPq-UNIRIO: Banco de Dados de Óbitos da Freguesia da Sé/ Santíssimo Sacramento do Rio de
Janeiro (1701-1843).
341
130
BRAVO, op. cit., p. 131; BRAGA, op. cit., p. 155.
131
DENIS, Fedinand. O Brasil... Apud 131 REIS, op. cit., 1991, p. 139.
132
REIS, op.cit., 1991, p. 138.
133
Idem., 1991, p. 144.
342
“falecendo um irmão desta irmandade, sua esposa ou seus filhos” deveriam se juntar
todos os irmãos para saírem acompanhado o corpo do defunto, juntamente com o padre
capelão, o juiz com sua vara, e na falta deste o escrivão tesoureiro ou o procurador “e
assim farão os irmãos suas alas mui compostas e depois de enterrado o defunto se
recolherão na mesma forma para a Igreja”. 134
A irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens
Pretos em seu compromisso de 1759 dedicou dezessete parágrafos ao tema, o que
demonstra como a confraria levava a sério obrigação de acompanhar e dar enterro
solene aos irmãos falecidos e a seus parentes. No capítulo oito, parágrafo vinte seis,
estabelecia que a irmandade tinha obrigação de acompanhar e dar sepultamento para os
irmãos falecidos, sua esposa e seus filhos legítimos, estando estes debaixo de seu pátrio
poder e sendo filhos naturais, só lhes daria sepultura 135. No capítulo doze, parágrafo 34,
determinava que todos os irmãos eram obrigados a comparecer em todas as procissões,
festividades e enterros dos irmãos, conforme texto.
134
Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Efigênia do Rio de Janeiro. Museu do Negro. Capitulo
13.
135
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos do Rio
de Janeiro. Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa – AHU/CU. Códice 1950. Capitulo 8 parágrafo 26.
136
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos do Rio
de Janeiro. Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa – AHU/CU. Códice 1950. Capitulo 12, parágrafo
34.
137
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios (1788). Arquivo Histórico Ultramarino
de Lisboa – AHU/CU. Códice 1300, p. 2.
343
os irmãos não faltassem a tão piedoso ato. Mas, aquele que faltasse sem uma causa
legítima seria multado em 120 réis para as despesas da irmandade. Tais atitudes por
partes das confrarias de pretos africanos e seus descendentes para prestar assistência aos
irmãos e seus familiares reforçam a ideia de que estas confrarias ao praticar a caridade
aos irmãos nacionais estavam também reforçando os laços de sociabilidade e
solidariedade entre seus membros que garantia que os irmãos fossem bem assistidos no
processo de preparação do bem morrer.
Fazia parte também das responsabilidades das irmandades estabelecidas em
seus compromissos arcar com despesas de missas de corpo presente e pela alma dos
irmãos falecidos, que estavam no Purgatório. As Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia estabeleciam que as irmandades mandassem regularmente rezar
missas pelas almas dos irmãos vivos e falecidos, conforme os recursos que cada uma
delas possuísse. As confrarias não só acataram as recomendações, mas foram além, pois
sem exceção mandavam rezar missas pela alma de cada um dos seus membros
falecidos. Embora não tivessem tantos recursos quantos as confrarias de brancos da
elite, as confrarias de negros africanos e seus descendentes não deixaram a alma de seus
confrades desamparada.
O capitulo 19 parágrafo 45 do compromisso da irmandade de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos de 1759, estabelecia a
obrigatoriedade desta confraria mandar rezar missas pela alma dos confrades falecidos e
estabelecia uma hierarquia dos sufrágios fúnebres que gozariam os irmãos de acordo
com o cargo exercido: aos reis e rainhas 26 missas, os juízes e juízas de Nossa Senhora
e São Benedito 24 missas, escrivão tesoureiro, procurador e juízas de ramalhete 16
missas, aos irmãos da mesa 12 missas e aos irmãos que não haviam exercido nenhum
cargo 10 missas. Os irmãos gozariam ainda de uma missa rezada aos sábados de todos
os anos com ladainha a Nossa Senhora, e outra aos domingos dedicada a São Benedito,
rezada pelos capelães da irmandade no altar de Nossa Senhora do Rosário. A irmandade
devia mandar rezar outras missas nos dias de Nossa Senhora da Conceição, da
Purificação, da Anunciação, de São Domingos, de Nossa Senhora da Assunção, da
Natividade, do Rosário. No dia de Natal mandariam rezar três missas, a qual os irmãos
deveriam assistir vestidos com suas opas brancas com tochas acesas nas mãos.
344
Recomendava aos juízes que dessem assistências a estas missas, principalmente os que
fossem da mesa, e gozariam do beneficio de uma indulgência na hora da morte 138.
O compromisso da irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia de 1767,
estabelecia que quando falecesse um irmão o procurador e o tesoureiro seriam avisados
para mandarem rezar as missas de corpo presente e pela alma dos irmãos defuntos da
seguinte forma: aos juízes 20 missas, às juízas de ramalhete, ao escrivão tesoureiro e ao
procurador 18 missas, aos membros da mesa 16 missas, ao andador 12 missas e àqueles
que não possuíam cargo 10 missas. A irmandade manifestava o desejo de aumentar os
sufrágios dos irmãos defuntos caso houvesse mais dinheiro de esmolas dos irmãos
vivos 139.
Já a irmandade de Nossa Senhora dos Remédios estabelecia um número
mínimo de 10 missas para cada irmão falecido, por não saber ao certo quanto cada
irmão devoto contribuiria cada vez que fossem pedidas esmolas para os sufrágios. Mas
estabelecia que sempre que houvesse acréscimo deveria se recolher ao cofre. Ao final de
cada semestre deveria ser feito um balanço e se o capital excedesse mais que o dobro de
três capelas de missas, se mandaria rezá-las aos irmãos vivos e defuntos na Capela de
Santa Efigênia, onde haveria na sacristia uma pauta para que os reverendos sacerdotes
assinassem cada vez que fossem celebrar para prestação de contas do procurador 140.
O compromisso da irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa também
estabelecia mínimo de 10 missas pela alma de cada irmão falecido que não tivesse
exercido nenhum cargo. Sendo que juiz ou juíza teria direito a 20 missas por sua alma.
Ao provedor, tesoureiro e escrivão 18 missas, aos irmãos da mesa dezesseis missas e se
alguns destes tiverem servido à confraria em algum cargo receberia 20 missas por sua
alma. A irmandade também se obrigava a rezar todos “os sábados uma missa pelos
irmãos vivos e defuntos e outra todos os meses pelos irmãos benfeitores desta
irmandade as quais missas assistirão dois ou quatro irmãos com suas opas todos
pagando a esmola costumada” 141. Era unânime entre todas as confrarias que as missas
fossem rezadas o mais breve possível para que a alma do morto não padecesse por falta
138
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos do Rio
de Janeiro. Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa – AHU/CU. Códice 1950. Capitulo 19, parágrafo
45.
139
Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Efigênia do Rio de Janeiro. Museu do Negro. Capitulo
13.
140
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios. Arquivo Histórico Ultramarino de
Lisboa – AHU/CU. Códice 1300. Capitulo 16.
141
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa. Arquivo da Torre do Tombo,
Chancelaria da Ordem de Cristo. Livro 291. Capitulo 11.
345
142
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa. Arquivo da Torre do Tombo,
Chancelaria da Ordem de Cristo. Livro 291. Capitulo 11.
143
Compromisso da Irmandade do Glorioso Santo Antonio da Mouraria dos Homens Pretos, ereta na
Igreja da Senhora do Rosário. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro – ANRJ. Códice 825. Capitulo 19,
parágrafos 1º, 2º, 3º, 4º e 5º.
346
suficientes para resgatar as almas do Purgatório, além do mais havia aqueles que não
eram membros de nenhuma irmandade 144.
Este foi o caso do preto forro Pedro Francisco de Araújo, “nação congo”,
viúvo, morador da rua do Cano, faleceu em 23 de março de 1808, recebeu todos os
sacramentos. Foi encomendado pelo reverendo coadjutor e sepultado na igreja da
Lampadosa. Em seu testamento declarou que não tinha irmandade e por isso seria
sepultado na igreja de escolha de seu testamenteiro, que seu corpo fosse envolto em um
lençol e conduzido em uma rede. Determinou que no dia do seu falecimento ou no dia
seguinte fossem ditas 6 missas de corpo presente de esmola de um cruzado 145 cada uma;
que fosse distribuída a quantia de 12$800 réis em missas por sua alma no valor de $320
réis cada uma, celebradas na igreja que seu testamenteiro achasse melhor; o que dava
um total de 40 missas. Determinou ainda que seu testamenteiro mandasse dizer uma
capela de missas por sua alma e a de sua esposa. Embora ele não tenha declarado o
valor da capela de missas (que continha cinquenta missas). Supondo que o valor de cada
missa tenha sido $320 réis teremos um valor de 16$000 réis, que somados aos 2$880
réis mais os 12$800 réis, Pedro Francisco teria gasto um valor de 31$680 réis em missas
pela salvação sua alma. Não era qualquer um que podia fazer esse investimento. A partir
de sua declaração de bens, podemos perceber que Pedro Francisco era um liberto que
prosperou. Declarou que tinha um sítio na freguesia do Pilar, com uma casa coberta com
capim, plantação de arroz e cafezais e “mais arboredos”, pelo qual pagava foro de
3$200 réis ao ano, e que deles nada devia. Declarou que possuía uma escrava que
deixava quartada em uma dobla e que tal quantia deveria ser aplicada em missas pela
salvação sua alma e de sua mulher. Como não tinha herdeiro, Pedro Francisco declarou
que era lícito dispor de sua herança como bem quisesse, portanto, investiu na sua
salvação e na de sua esposa 146.
Assim, era através do testamento, uma das recomendações da Igreja na
preparação da boa morte, que muitos indivíduos em muitos casos a beira da morte
deixavam registradas as suas últimas vontades. Mas seria somente por intermédio das
ações dos vivos que as últimas vontades dos mortos poderiam ser realizadas. Muitos
144
REIS, op. cit., 1991, p. 209.
145
Um cruzado português era igual a $480 réis. Dinheiro do Brasil. Banco Central do Brasil 2ª ed.
Brasília: BCB, 2004, p. 24; AMATO, Claudio; NEVES, Irlei S; RUSSO, Arnaldo. Livro das moedas do
Brasil. São Paulo: s/e, 11ª ed. 2004, p. 106.
146
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0158 (1797-1812). Testamento de Pedro
Francisco de Araújo, p. 269.
347
147
REIS, op. cit., 1991, p. 210.
148
Idem., 1991, p. 219.
149
Ibidem., 1991, p. 210.
150
VIDE, op. cit., Titulo L c. 834, p. 293.
348
março de 1752, com todos os sacramentos. Seu corpo foi amortalhado em um pano de
linho, encomendo pelo reverendo pároco e sepultado na igreja da Sé 151, de acordo com
o seu registro de óbito. Em seu testamento declarou: “pagas as dívidas do casal, meu
marido e testamenteiro mandará dizer pela minha alma oitocentos missas da esmola de
trezentos e vinte réis” 152. Portanto, para que suas últimas vontades fossem cumpridas
seria necessário uma elevada quantia no valor de 256$000 réis. Não foi possível saber o
valor do seu patrimônio, pois em sua declaração de bens disse apenas que os bens que
possuía eram de uma herança deixada por seu filho de quem era testamenteira, cujos
bens estavam em litígio. Mas podemos presumir que deveria ser uma quantia
considerável, pois deveria pagar as dívidas do casal que eram 34 patacas 153, mais 8$000
réis de um par de brincos empenhado que somariam um total de 18$880 réis, tinha duas
filhas que eram suas herdeiras. Ela declarou que após serem pagas todas as dívidas e
satisfeitos os seus legados, do remanescente de sua terça, instituía seu marido com
herdeiro. O que nos leva a supor que a herança deixada por seu filho era de um valor
considerável 154. Tal situação esta relacionada à crença de quanto maior o número de
missas rezadas na terra pelas almas do Purgatório mais rápido purgariam suas penas e
entrariam no paraíso celeste.
As Constituições Primeiras exortava aos herdeiros e testamenteiros
daqueles que não fizessem pedidos de missas e ofícios por suas almas, que estes o
fizessem corrigindo a falta do morto pelo bem de sua alma. Esta situação se aplicava
principalmente para aqueles que morressem sem fazer testamento. Recomendava aos
párocos que haviam cuidado da alma de seus fregueses em vida, que cuidassem delas
também na morte. Morrendo alguma pessoa ab intestato que pressionasse a família
desse defunto que mandassem rezar pelo menos missas de corpo presente, de mês e de
ano, considerando a qualidade da pessoa, possibilidade da fazenda, e número de
151
A Igreja da nesse período até 1808 era a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos
Homes Pretos, conforme vimos no capítulo 3.
152
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0155 (1746-1758). Testamento de
Antonia Mendes, p. 220.
153
A pataca era uma moeda de prata, com o valor de 320 réis que foi emitida pelo governo português até o
século XIX. As patacas foram às moedas que por mais tempo circularam no país – de 1695 a 1834. A
série era composta por moedas de 20, 40, 80, 160, 320 e 640 réis. O valor de 320 réis – pataca – deu
nome à série. Pesava 8,96 gramas (em média) com teor de prata de 917 por mil. De 1810 a 1834, foi
também cunhada uma outra moeda de prata, que valia 960 réis ou 3 patacas – o chamado patacão. Já a
moeda de 160 réis está na origem da expressão popular de meia-pataca, que designa alguma coisa de
pouco valor ou de má qualidade. A série chegou a ser cunhada no Brasil até 1821, nas casas da moeda de
Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais. AMATO, Claudio; NEVES, Irlei S; RUSSO,
Arnaldo. Livro das moedas do Brasil. São Paulo: s/e, 11ª ed. 2004, p. 106.
154
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0155 (1746-1758). Testamento de
Antonia Mendes, p. 220
349
herdeiros, obrigando-os que assim o cumpram 155. De acordo com João José Reis, era
considerado perigoso deixar os mortos sem missas. A ausência de sufrágios,
principalmente as missas poderiam fazer surgir almas penadas para atormentar os vivos.
Podiam exigir varias coisas dos vivos, mas seus pedidos concentravam-se em: sepultura,
confissão, orações e principalmente missas. Assim, a tradição popular estava em
consenso com a doutrina da Igreja, que instituía o sacrifício da missa como o recurso
mais adequado ao resgate das almas do purgatório 156. Adalgisa Arantes Campos
observou que no catolicismo barroco em geral a missa era vista como instrumento de
salvação 157. Isso pode explicar o porquê dos pedidos de uma imensa quantidade de
missas por parte dos testadores em nosso caso particularmente entre os testadores
africanos e seus descendentes, como no caso de Antonia Mendes.
A partir da leitura dos testamentos podemos perceber que raramente alguém
se esquecia de estabelecer a quantidade de missas fúnebres em favor de sua alma e de
outras pessoas do seu convivo. Entre os 92 testamentos por mim analisados apenas 3
não apresentaram solicitação de missas. O que demonstra uma grande preocupação por
parte dos testadores africanos e crioulos forros com a salvação da alma. Embora a
maioria não tenha estabelecido uma quantidade elevadíssima de missas, como a já
citada Antonia Mendes, sem dúvida apresentam uma quantidade bastante significativa
tratando-se de negros africanos e crioulos forros, atestando caráter soteriológico de tais
testamentos, atendendo as exigências da legislação eclesiástica.
Dois casos já aqui citados são bastante emblemáticos nesse sentido. O
primeiro é o da preta forra natural da Costa da Mina, Cristina de Almeida, que
estabeleceu em seu testamento que fossem ditas por sua alma 460 missas de esmola de
$320 réis cada, dentre as quais 10 pela alma de seus escravizados já falecidos. A preta
Cristina de Almeida investiu na salvação de sua alma e de seus escravizados um valor
considerável de 144$000 réis. Conforme já vimos, um valor que só poderia ser pago por
alguém de posses. O segundo caso é o do Capitão Ignácio Gonçalves do Monte, rei dos
makis. Deixou estabelecido em seu testamento um total de 140 missas a serem rezadas
em prol de sua alma e da de várias pessoas, no valor de 46$400. Vejamos outros casos.
A crioula forra, Mariana Francisca da Conceição, faleceu em 20 de agosto
de 1756. Em seu testamento deixou estabelecido que no dia do se falecimento se
155
VIDE, op. cit., Titulo L c. 835 e 836, p. 293.
156
REIS op. cit., 1991, p. 204.
157
CAMPOS, Adalgisa Arantes. As irmandades de São Miguel e as almas do Purgatório: culto e
iconografia no Setecentos mineiro. Belo Horizonte. M.G. Editora C/Arte, 2013, p. 82.
350
dissesse por sua alma 30 missas de corpo presente a serem ditas: 10 na igreja da Sé, 10
na igreja do Hospício dos pardos onde deveria ser enterrada e 10 na igreja da
Candelária. Deixou também 20 missas pela alma de seu pai e de seu marido, que fossem
ditas na igreja onde ela fosse sepultada de uma pataca cada uma. Deixou também mais
duas missas “da mesma esmola” por uma intenção particular que devia, mas se caso esta
já estivesse satisfeita que fossem aplicadas em favor de sua alma. Embora o número de
missas pedido por Mariana Francisca seja menor em relação aos casos vistos até aqui.
Seu caso é interessante porque tem uma riqueza de detalhes. Declarou que não tinha
herdeiros ascendentes ou descendentes e por isso instituiu sua alma por universal
herdeira, pediu para seu corpo ser amortalhado no habito de São Francisco e sepultado
na igreja de Nossa Senhora da Conceição do Hospício dos Pardos em sepultura mais
próxima a porta principal, levada à sepultura em esquife e acompanhada pela mesma
irmandade a qual deixava a esmola de 25$600 réis. Que seu “corpo fosse encomendado
pelo reverendo pároco da freguesia da Sé, onde ela residia, e por ele fosse acompanhado
com mais 20 sacerdotes para a sepultura e que se desse a esmola costumada com vela de
meia libra”. Pediu ainda que seu corpo fosse “acompanhado pelos Meninos Órfãos do
Colégio de São Pedro a quem se desse a esmola costumada, e a cada um uma vela de
quarta”. Deixou a “Senhora Santana duas velas de libra na mesma Capela do Hospício
dos Pardos”. A partir desses dados, percebe-se que ela havia prosperado
financeiramente. Mas afirmou que sua declaração de bens seria feita em juízo e não
especificou o motivo. Depois de realizado seu funeral, pagas suas dívidas, o que
restasse de seus bens seu testamenteiro converteria em missas em prol de sua alma 158.
A crioula forra, Marcelina Penha, solteira, natural da cidade da Bahia,
faleceu em 23 de outubro de 1756, era filiada na irmandade de Nossa Senhora das
Mercês e Nossa Senhora da Lampadosa, em sua disposições testamentárias estabeleceu
o seguinte: no dia do seu falecimento lhe seriam ditas 10 missas de corpo presente no
valor de $400 réis cada, sendo 5 na freguesia da Sé e as outras 5 na igreja de Nossa
Senhora do Parto, onde pediu para ser sepultada. Declarou que por sua alma seu
testamenteiro mandaria dizer 4 capelas de missas a saber: “em Santo Antônio uma
158
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0155 (1746-1758). Testamento de
Mariana Francisca da Conceição, p. 346 verso
351
159
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0155 (1746-1758). Testamento de
Marcelina da Penha, p. 353 verso.
160
REIS, op. cit., 1991, p, 211.
161
Cf. SOARES DE SOUSA, op. cit., 2009, pp. 85-134.
162
REIS, op. cit., 1991, p, 213.
163
VIDE, op. cit., Titulo L c. 838, p. 294
352
164
REIS, op. cit., 1991, p. 210.
165
CAMPOS, op. cit., 2013, p. 93.
166
REIS, op. cit., 1991, p. 211.
167
Idem., 1991, p. 209 e 217.
353
168
CAMPOS, op. cit., 2013, p. 96
169
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0156 (1776-1784). Testamento de
Francisca Maria Tereza, p. 238.
354
detalhada dos seus bens. Declarou apenas que possuía uma morada de casas e que seu
testamenteiro as venderia para pagar suas dívidas e cumprir seus legados 170.
Agostinho da Mota, pardo forro, casado com Luiza Maria da Conceição,
natural da Comarca de Sabará. Determinou a seus testamenteiros que no dia de seu
falecimento se diria 4 missas de corpo presente e mais 50 missas por sua alma na
freguesias de seu nascimento de esmola costumada. Determinou que seu corpo fosse
amortalhado em um lençol e enterrado na igreja da Sé em uma cova da irmandade de
Nossa Senhora do Rosário e São Bendito dos Pretos “dado por seu reverendo pároco
sem pompa alguma pagando tudo a esmola e despesa necessárias”. Embora seu funeral
tenha sido mais modesto que o de José Rodrigues, observa-se que as 54 missas -
supondo que foram a $320 réis cada uma - geraria uma despesa significativa no valor de
17$280. O que nos leva a pensar que mesmo optando por um funeral sem pompa os
indivíduos não abriam mão de uma quantidade significativa de missas para que seu
tempo no Purgatório fosse abreviado. Agostinho da Mota era uma pessoa de posses. Seu
testamento é rico em detalhes e por isso vamos dedicar a ele uma maior atenção. Era
proprietário de uma fazenda no distrito de Sabará com lavouras, engenho de pilões,
minas de ouro e engenho de secar pedras. Declarou que possuía outras terras na mesma
comarca num lugar chamado Brumado com lavouras e minas de ouro, além de possuir
nove escravos, mais “outros três moveis e roupas, várias moradas de casas no mesmo
arraial”. Declarou que seus bens tinham sido sequestrados pelo Juízo da Ouvidoria
daquela Comarca por requerimento de Luís da Mota, por sentença de fiança, que se
habilitou como filho de seu pai, a fim de obter partilha de bens. Talvez seja esse o
motivo de ter pedido um enterro sem pompa. Declarou ainda que várias pessoas tinham
dívidas com ele e que seus testamenteiros deveriam cobrá-las. Tinha contas com o
Coronel Julião e que o mesmo lhe devia seiscentos mil réis. Tinha oito filhos que foram
instituídos como herdeiros das duas partes de seus bens. Depois de cumpridos seus
legados instituía sua esposa com herdeira dos remanescentes de sua terça 171.
A preta Forra Josefa Correia Barbosa, natural da Costa da Mina, casada com
Joaquim Botelho, faleceu em 18 de janeiro de 1801. Em seu testamento pediu que se
rezasse 30 missas de corpo presente de esmola de $400 réis cada e mais um capela de
missas a $320 réis. Pediu para ser amortalhada em habito de São Francisco,
170
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0157 (1790-1797). Testamento de José
Rodrigues dos Santos, p. 296 verso.
171
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0158 (1797-1812). Testamento de
Agostinho da Mota, p. 17 verso.
355
encomendada pelo reverendo pároco mais oito sacerdotes e conduzida pelos mesmos,
juntamente com os irmãos da irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia da qual era
filiada e onde foi enterrada. Deixou de esmola para ser distribuída aos pobres no dia do
seu falecimento a quantia de três mil e duzentos réis, sendo dois vinténs para cada um.
Seus gastos em missas chegariam a 28$000 réis 172.
Vitória de Jesus, preta forra viúva, moradora na rua do piolho, faleceu em
29 de outubro de 1801. Em suas disposições testamentárias determinou que no dia do se
falecimento seu testamenteiro mandasse dizer 10 missas de corpo presente a $400 réis
cada. Assim, declarou: “meu corpo será amortalhado em hábito de Santo Antônio,
depois de encomendado pelo reverendo pároco será conduzido pelo modo que meu
testamenteiro parecer, sem pompa alguma, para a Igreja de Nossa Senhora do Parto,
para ali em uma das sepulturas da irmandade de Nossa Senhora das Mercês, de que sou
irmã se dá sepultura”. Deixou a cargo de seu testamenteiro os sufrágios por sua alma,
assim como o encargo de seu funeral e toda a despesa do seu funeral seria “despendida
da demanda que tinha com o padre Bento Soares de Carvalho, como herdeiros dos
falecidos seus pais e avos, cuja pende no Juízo da Ouvidoria Geral do Civil”. Depois de
pagas todas as suas dívidas determinou a seu testamenteiro que do líquido que existisse
mandasse dizer por sua alma uma capela de missas, mais um pela alma de seu marido,
mais um pela alma de seu pai e sua mãe, a esmola de $320 réis cada uma e nas igrejas
que melhor lhe parecer. Curiosamente este é mais um caso em que o testador alega que
quer um funeral sem pompa, mas as despesas realizadas sugerem o contrario. Seus
gastos com missas chegaram à significativa quantia de 52$000 réis 173.
Em 21 de junho de 1803 faleceu a preta forra de Rosária Maria, “nação”
mina, era filiada a irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, foi amortalhada em
habito de Santo Antônio, encomendada pelo reverendo pároco e seis sacerdotes na
igreja de São José, “em sepultura pertencente à irmandade do mesmo santo”. Pediu
licença para ser acompanhada pelos irmãos da irmandade de Santo Elesbão e Santa
Efigênia a qual pertencia. Determinou que seu testamenteiro providenciasse a esmola
necessária para sua sepultura e que pagasse os anuais que estivesse devendo para que se
fizesse por sua alma os sufrágios o que costumavam fazer para os irmãos falecidos.
Determinou que no dia do seu falecimento se dissesse 25 missas de corpo presente,
172
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0158 (1797-1812). Testamento de Josefa
Correia Barbosa, p. 74 verso.
173
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0158 (1797-1812). Testamento de Vitória
de Jesus, p. 98 verso.
356
174
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0158 (1797-1812). Testamento de Rosária
Maria, p. 152.
175
Um cruzado português era igual a $480 réis. Dinheiro do Brasil. Banco Central do Brasil 2ª ed.
Brasília: BCB, 2004, p. 24.
176
ACMR. Livro de óbitos e testamentos da freguesia da Sé. AP0158 (1797-1812). Testamento de Afonso
Alves, p. 255.
357
CAPÍTULO – 6 –
1
FAZENDA, José Vieira. Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Tomo 86. v. 140. 1919, p. 348.
2
FAZENDA, op. Cit., p. 349.
3
Idem., pp. 349-50.
4
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Carta de Lei de Marquês do Lavradio. Codice 70. v. 7, p. 231.
358
primeira lei antitráfico. No local hoje funciona o Instituto de Pesquisa e Memoria Pretos
Novos 5.
Em 1623, foi criado o cemitério da Santa Casa da Misericórdia. Em
cumprimento da ordem régia 6 de 23 de janeiro de 1694 e estimulado por uma “terrível”
epidemia de varíola. Em 03 de junho deste mesmo ano o governador Antonio Paes de
Sande realizou o primeiro acordo com a Santa Casa da Misericórdia, a respeito do
enterramento dos escravos. Por ele, ficava estabelecido que a Santa Casa forneceria um
esquife com seu pano, mandaria buscar o cadáver do escravo, encomendá-lo e
acompanhá-lo por um dos capelães. Por cada escravo sepultado os senhores pagariam a
quantia de 960 reis para custear as despesas com duas missas da alma, no valor de 320
réis e os 640 réis restantes seriam destinados “para a esmola do clérigo e para os negros
que carregassem o esquife”, ficando a Santa Casa da Misericórdia com a obrigação de
enterrar os cativos dos senhores pobres que não tinham recursos para arcar com aquela
quantia. 7 Essa questão não seria exclusiva aos senhores pobres do Rio de Janeiro, pois a
caridade era uma prerrogativa do serviço funerário prestado pela Misericórdia a todos os
pobres e constava em seu estatuto que mantinha uma tradição de funerais coorporativos
existentes nas irmandades da Europa desde o início do Império Romano 8. O Conselho
Ultramarino não aprovou tal valor, achando-o exorbitante, alegando que a Santa Casa da
Misericórdia da Bahia havia feito semelhante acordo por 400 réis sem a obrigação de
celebrar as duas missas. Ponderou que não se podia obrigar os senhores a pagar missas
pela alma de seus negros, uma vez que eles não eram obrigados a mandar rezá-las nem
para os próprios filhos, além do que “nem os senhores podiam ou deviam ser
constrangidos pelos capítulos de visitação eclesiástica” 9. Em janeiro de 1695 o rei
ordenou ao governador que fizesse um novo acordo com a Misericórdia com base na
taxa cobrada na Bahia. Em 17 de maio de 1695 foi celebrado novo acordo entre o
governador Sebastião de Castro Caldas e a Santa Casa da Misericórdia pelo qual esta
ficava isenta da obrigação de mandar celebrar as duas missas dispensava a presença do
5
Cf. PEREIRA, Júlio Cesar Medeiros da Silva. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2ª edição, 2014; HONORATO, Claudio de Paula. Valongo: o
mercado de escravos do Rio de Janeiro, 1758 a 1831. Dissertação de mestrado, Niterói: UFF, 2008.
6
RUSSEL-WOOD, Anthony John R. Fidalgos e Filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia,
1550-1755. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981, p.153, 176.
7
FAZENDA, op. cit., p. 347.
8
RUSSELL-WOOD, op. cit., p.153, 175.
9
FAZENDA, op. cit.,. p. 348
359
clérigo e aceita receber 400 réis por cada cativo sepultado em seu cemitério 10. Russell-
Wood observa que é possível que a Mesa da Misericórdia tenha sido tocada por
sentimentos piedosos para assim tratar o sepultamento dos cativos, mas é muito
provável que a Misericórdia tenha sofrido uma pressão oficial para enterrar os escravos,
pois se não obedecesse corria o risco de perder o monopólio sobre a posse de esquifes.
A instituição de uma liteira para o enterro de cativos pela Misericórdia do Rio de
Janeiro em maio de 1694 estaria relacionada a essa pressão 11.
De acordo com Vieira Fazenda “os corpos dos cativos que pertenciam a
uma irmandade religiosa, podiam ser inumados nos interior ou no adro de suas
respectivas igrejas e capelas. Algumas dessas irmandades conquistaram o direito de
possuir seu esquife próprio”. Privilégio concedido pela Santa Casa da Misericórdia, que
detinha o controle desse serviço 12. Este foi o caso da irmandade de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, que em 1687, recebeu uma licença especial
para possuir esquife. No ano seguinte o mesmo privilégio foi conquistado pela
irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte dos Homens Pardos e, em 1699, também
seria conquistado pela irmandade de São Domingos. Em contrapartida assumiam o
compromisso de pagar à Misericordia um cruzado por cada sepultamento 13. Assim, os
africanos e seus descendentes conseguiriam realizar um funeral mais barato e ao mesmo
tempo escapar dos enterramentos coletivos nas covas rasas do cemitério da Santa Casa
da Misericórdia, onde eram enterrados aqueles que não tinham condições de arcar com
os custos de seu funeral. A Santa Casa da Misericórdia por sua vez também era
beneficiada, pois cuidava dos enterramentos mais lucrativos e isentava-se de cuidar dos
mais onerosos que passaram a ser realizados pelas irmandades de africanos e seus
descendentes, que com isso desobrigava a Santa Casa de arcar com uma parte dos
funerais gratuitos 14.
Ao analisar a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, Russell-Wood percebeu
que ao conceder tal privilégio às irmandades de negros africanos e seus descendentes, a
Misericórdia se livrava da responsabilidade moral de enterrar todos os escravos, tarefa
evidentemente impossível. A Misericórdia concedia tal privilégio com a condição de
que essas irmandades somente enterrassem os irmãos cativos. Estabelecia que os negros
10
FAZENDA, op. cit., p. 348; COARACY, Vivaldo, Memórias da cidade do Rio de Janeiro. Vol. 3,
Livraria José Olympio Editora, 1965, p. 296-297; RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 176.
11
RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 176.
12
FAZENDA, op. cit., p. 348; RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 175.
13
FAZENDA, op. cit., p. 348.
14
SOARES, op. cit., 2000, p. 143.
360
15
RUSSELL-WOOD, op. cit., p. 174-5.
16
RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos. Tradições e transformação fúnebres
no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de
Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997, p. 224; BRAVO, op. Cit., p.140
361
corpo. Ser enterrado no interior de uma igreja representava a garantia de salvação, uma
vez que estando próximo aos santos e mártires se conseguiria maior intercessão do santo
pela alma do que ali fosse sepultado, além de serem beneficiados pelas orações a eles
destinadas pelos passantes. Dessa preferência pela inumação dos corpos junto aos
santos e mártires deu-se início aos chamados sepultamentos ad sanctos apud eclesiam.
Prática que teve início na Época Medieval e atravessou a Época Moderna, chegando à
América lusa. Foi adotada amplamente nas igrejas, capelas e nos terrenos pertencentes a
elas enquanto característica marcante de uma sociedade predominantemente católica.
Tal característica se constituiu em prática comum na cidade do Rio de Janeiro durante o
período colonial e imperial até cerca e 1850 17. Enquanto vigorou o sepultamento no
interior e no entorno das igrejas, os negros africanos e seus descendentes, escravizados e
libertos também o adotaram, associando-o a elementos de suas tradições culturais.
Uma das principais justificativas para a construção das irmandades de pretos
africanos e seus descendentes, além de prestar culto em homenagem ao santo padroeiro
era dar um enterro considerado digno aos confrades. Tal informação está presente em
todos os compromissos das irmandades, estabelecendo regras e punições aos confrades
que sem justificativa não comparecessem ao sepultamento de um irmão falecido. O
Estatuto da Congregação dos pretos minas Makis estabelecia que:
17
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989 (v. 1), pp. 37 - 43;
RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformação fúnebres no
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e
Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997, pp. 217-225; BRAVO, op. cit. pp., 3 a 7.
18
Estatuto da Congregação dos pretos minas Makis no Rio de Janeiro. Capitulo decimo primeiro. BNRJ.
BN/MA – 9,3,11.
362
corpos para lugares ermos, pântanos e outros faziam sepultá-los em covas rasas que cães
e outros animais descobriam 19. Em 1688, o rei D. Pedro II ordenou ao governador do
Rio de Janeiro que investigasse todas as denúncias de crueldades praticadas pelos
senhores contra seus escravos, e que adotasse medidas judiciais se essas acusações
fossem verdadeiras 20. Em 1693, escreveu ao cabido da Sé do Rio de Janeiro ordenando
que fossem garantidos a todos os cativos moribundos os últimos sacramentos, pois era
de seu conhecimento que isso não acontecia, fosse porque de um lado os padres
cobravam taxas exorbitantes, fosse porque os senhores se recusavam a chamar os padres
para assistir os cativos moribundos 21. De acordo com Russell-Wood, as cartas do rei aos
governadores e arcebispos na prática raramente surtiam efeito, além de demonstrar a
grande preocupação do monarca com as condições de vida dos escravizados no Brasil 22.
Além do abandono dos corpos de cativos por parte dos senhores, havia outras formas de
abandono de cadáveres, possivelmente por famílias pobres que não tinham acesso a uma
irmandade e abandonavam o corpo de seu defunto na porta de uma igreja para serem
enterrados por caridade 23. Um relato de Vieira Fazenda ilustra bem essa situação. Em
uma noite três homens de braços dados aproximaram-se da porta da igreja de Santa Rita
e se ajoelharam. Passado algum tempo, dois deles se retiram e um permaneceu de
joelhos. Passadas algumas horas, um soldado aproximou-se do homem, bateu em seu
ombro e ordenou que se levantasse, mas o mesmo permaneceu de joelhos sem
responder. Bateu novamente no ombro do homem ordenando que se levantasse, mas
este caiu no chão. Ao examina-lo o soldado constatou “que tinha diante de si um
cadáver” 24. Mariza Soares observou que abandono dos cadáveres não era praticado
apenas pelos senhores, mas também pelas irmandades pobres que não tinham recursos e
abandonavam seus mortos na porta de uma Igreja ou de um comerciante na esperança
de que fossem sepultados “pelo amor de Deus” 25, por alguma alma caridosa 26.
De acordo com as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia era
“costume pio, antigo, e louvável na Igreja Católica, enterrarem-se os corpos dos fiéis
19
COARACY, op. cit., p. 296; QUINTÃO. Op. Cit. 2002, p. 156.
20
Documentos históricos, vol. 79, pp. 397-88. Apud. RUSSEL WOOD, op. cit., p. 175.
21
Carta de 17 de março de 1693. ANRJ, Códice 952, vol. 6, fl. 225. Apud. RUSSEL WOOD, op. cit., p.
176.
22
RUSSEL WOOD, op. cit., p. 176.
23
BRAVO, op. cit., p, 154.
24
FAZENDA, op. cit., Tomo 86 – vol. 140, 1919. p. 350
25
Cf. CAMPOS, Adalgisa Arantes. “A ideia do Barroco e os desígnios de uma nova mentalidade: a
misericórdia através dos sepultamentos pelo amor de Deus na Paróquia do Pilar de Vila Rica (1712-
1750)” IN: Revista Barroco. Belo Horizonte, 18 (2.000): 45-68, p. 2.
26
SOARES, op. cit., 2000, p, 144, 152 e 15.
363
cristãos nas igrejas, e cemitérios delas, porque como são lugares, onde todos os fiéis
frequentam para ouvir, e assistir às missas, ofícios divinos e orações, tendo à vista as
sepulturas, se lembrarão de encomendar a Deus nosso Senhor às almas dos ditos
defuntos, especialmente dos seus, para que, mais cedo, sejam livres das penas do
purgatório. E não se esqueçam da morte”. Segundo esta legislação eclesiástica, seria
“aos vivos mui proveitoso ter memória dela nas sepulturas. Portanto ordenamos e,
mandamos, que todos os fiéis que nesse bispado falecerem, sejam enterrados nas igrejas
ou cemitérios, e não em lugares não sagrados” 27. Assim, a Igreja promovia a
aproximação entre os vivos e os mortos com base na doutrina do purgatório, destino da
maioria dos cristãos que enfrentavam o julgamento individual, logo após a morte 28 e
aguardava o juízo final.
De acordo com as normas eclesiásticas todo cristão tinha o direito de
escolher o local de sua sepultura, se no interior da igreja ou no adro, onde melhor “lhe
parecer, conforme sua vontade, e devoção”. Se o individuo não tivesse deixado
indicado o local de sua preferência em vida, ao morrer seria “sepultado com seus avós, e
antepassados, caso a família tivesse jazigo próprio, não possuindo seria enterrado em
sua igreja paroquial, as mulheres casadas que não tivessem sepulturas próprias, nem as
elegessem, seriam enterradas na de seus maridos e na do último, se fossem casadas duas
ou mais vezes” 29.
Em relação aos escravizados da mesma forma que as Constituições
Primeiras exortavam orientações sobre sua vida, também faziam em relação à morte.
No primeiro caso, determinavam que os senhores eram responsáveis por sua instrução
religiosa 30 e pelo ensino da doutrina, estabelecendo que deveriam permitir-lhes
assistirem às missas e preocuparem-se em batizá-los. Determinava aos párocos que
mandassem fazer cópias do breve catecismo para distribuir aos seus fregueses para
instruírem os seus escravizados nos mistério da fé e doutrina cristã 31. No segundo caso,
diante da morte, deveriam lhes proporcionar um enterramento condigno, como podemos
constatar no fragmento que afirma que “E porque é alheio da razão e piedade cristã, que
os senhores, que se serviram de seus escravos em vida, se esqueçam deles em sua morte,
[...] sejam obrigados a mandar dizer por cada um escravo ou escrava que lhe morrer”,
27
VIDE, op. cit., Titulo 53, c. 843, p. 295.
28
REIS, op. cit., 1991, p. 172.
29
VIDE, op. cit., Titulo 53, c. 845, p. 296
30
Idem., Títulos 2 e 3, c. 3 a 8, p. 2 a 4.
31
Ibidem., Titulo, 32, c. 577 e 578, p. 218-19.
364
sendo maior de quatorze anos, mandar rezar “missa de corpo presente, pela qual se dará
a esmola costumada”. 32 Proibia que os senhores enterrassem seus escravos no “campo, e
mato” como se fossem brutos animais, sob pena de excomunhão e pagamento de
cinquenta cruzados ao aljube, pois tal atitude era falta de humanidade, “que nenhuma
pessoa de qualquer estado, condição, e qualidade que seja, enterrado, ou mande enterrar
fora do sagrado defunto algum, sendo cristão batizado, ao qual conforme a direito se
deve dar sepultura Eclesiástica”. Determinava “aos párocos e os visitadores que com
particular cuidado inquiram do sobredito” 33.
Segundo João Reis, uma “das formas mais temidas de morte era a morte
sem sepultura. E os mortos sem sepultura eram os mais temidos, pois morrer sem
sepultura significava virar alma penada” 34. Mircea Eliade afirma que “para certos
povos, só o sepultamento ritual confirma a morte: aquele que não é enterrado segundo o
costume não está morto. Além disso, a morte de uma pessoa só é considerada valida
após a realização dos rituais fúnebres, ou quando a alma do morto foi ritualmente
conduzida a nova morada no além, e lá foi aceita pela comunidade dos mortos 35. Para
os cristãos ter um enterro decente e ser enterrado em um lugar sagrado era muito
importante. De acordo com as Constituições Primeiras esse lugar era a igreja ou os seus
cemitérios contíguos. Mas o enterramento dentro da igreja era o mais almejado devido a
sacralidade de seu solo, pois a igreja era a casa de Deus e da corte de seus santos e
anjos, e nela os mortos deveriam habitar aguardando a ressureição no fim dos tempos 36.
João Reis observou que “os irmãos de Santa Efigênia do convento de São Francisco
reivindicavam enterros decentes em nome da imortalidade de suas almas e da futura
ressureição de seus corpos. Pois se o corpo ressuscitaria, ele devia estar espiritualmente
integro, embora fisicamente estivesse decomposto. Essa integridade dependia do local
da sepultura” 37.
Neste sentido, os indivíduos que ainda em vida haviam se filiado a uma
irmandade ou confraria teriam a garantia de um enterro digno em um lugar santo. Este
era um importante meio que os escravos tinham para evitar que seus corpos fossem
sepultados em cemitérios onde estariam sujeitos a profanações. Neste sentido, a filiação
a uma irmandade ou confraria era uma garantia de morte digna dentro dos padrões
32
VIDE, op. cit., Titulo, 51, c. 838.
33
Idem., Título, 51, c. 844.
34
REIS, op. cit., 1991, p. 171.
35
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 89.
36
REIS, op. cit., 1991, p. 171; RODRIGUES, op. cit., 1996, 234.
37
REIS, op. cit., 1991, pp. 148 e 172.
365
A Igreja também abria suas sepulturas para aqueles que não conseguiram
em vida garantir o recurso necessário para a passagem ao mundo dos mortos e
dependiam da ajuda de parentes e amigos. Muitas vezes esses recorriam aos pedidos de
esmolas para conseguir um funeral digno.
Na tabela 30 podemos observar que entre o início do século XVIII e a
primeira metade do século XIX houve uma maior procura para sepultamentos nas
igrejas das principais irmandades de negros africanos e seus descendentes na cidade do
Rio de Janeiro. Estas igrejas receberam 55,2% do total de sepultamentos do período,
sendo a igreja de N. S. da Conceição e Boa Morte a mais procurada, com 10,2%,
seguida pela igreja do Senhor Bom Jesus do Calvário e N. S. da Lampadosa, ambas em
38
Compromisso da Irmandade Santo Antônio da Mouraria dos Homens Pretos. Arquivo Nacional do Rio
de janeiro. ANRJ. Códice 825. Capitulo 19º. Paragrafo. 12º, p. 20.
39
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos. Arquivo
Histórico Ultramarino de Lisboa – AHU/CU. Códice 1950. Capitulo 8º, paragrafo 26.
40
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios. Arquivo Histórico Ultramarino de
Lisboa – AHU/CU. Códice 1300.
366
Através da tabela 31a, condição social por igrejas, é possível perceber que
as igrejas de negros no total geral foram as que mais receberam corpos no período
368
estudado, com 66,% dos enterramentos, sendo a igreja de São Domingos a mais
procurada, com 17,9%, seguida da igreja de Nossa Senhora do Rosário, com 14,3%;
Nossa Senhora da Lampadosa em terceiro lugar, com 13,6%; Santo Elesbão e Santa
Efigênia em quarto lugar, com 7,6%; Nossa Senhora da Conceição e Boas Morte,
Ordem Terceira do Senhor Bom Jesus e São Gonçalo Garcia e São Jorge ficaram em
quinto, sexto e sétimo lugares, com 5,3%, 5,1% e 2,2% respectivamente. Destaque
também para igreja Matriz, com 18,8% do total de enterramentos. Observa-se que tanto
no total geral, como se somarmos os enterramentos apenas nas Igrejas de irmandades de
negros africanos e seus descendentes há um predomínio no sepultamento de
escravizados. O que nos leva a pensar que tal resultado possa ser reflexo do tráfico
atlântico. Apenas 0,6% foram inumados nos cemitérios de São Domingos e da Santa
Casa e 2,3% na Santa Casa e São Domingos sem especificar se era igreja ou cemitério.
Esta situação reforça a ideia que os indivíduos buscavam fugir das covas rasas dos
cemitérios da cidade. Ficando os cemitérios para os mais pobres, principalmente o da
Santa Casa que recebia os indigentes, os escravizados e os justiçados. Mas mesmo os
mais pobres buscavam fugir desses espaços de enterramentos, conforme veremos na
ilustração de Debret, imagem 4, enterro de uma negra pobre. Embora esses cemitérios
fossem considerados campos santos, as cerimonias religiosas eram precárias ou
inexistentes. Freireyss 43, cita que havia um “velho com vestes de padre, lendo um livro
de rezas pelas almas dos infelizes” no Cemitério dos Pretos Novos no Valongo. Em
geral em todos eles os corpos eram jogados em valas superficiais, “a flor da terra”,
ficando a mercê de animais famintos. De acordo com os relatos dos viajantes não havia
nenhum tipo de cuidado com os corpos ai enterrados. John Luccok afirmou que nesses
cemitérios se assistiam “cenas repugnantes, os corpos eram atirados sem cerimonia em
uma espécie de pilhas uns sobre os outros pés com cabeça até encher a cova quase por
inteiro, em seguida cobriam com terra a cima do nível” 44. Robert Walsh diz que os
corpos eram depositados num estrado em uma casinha no meio do terreno, até que
houvesse um número suficiente de corpos para serem enterrados 45. Situação semelhante
foi presenciada por Freireyss quando visitou o Cemitério dos Pretos Novos no Valongo.
Que nos dá a informação que neste cemitério os corpos eram queimados, possivelmente
43
FREIREYSS, G. W. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/ São Paulo: EDUSP, 1982,
p. 132-134.
44
LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e parte meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1975, p. 39.
45
WALSH, Robert. Notícias do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 1985, p. 170.
369
para diminuir o volume e facilitar o trabalho do negro coveiro 46. O viajante alemão
Karl Seider dizia que suas lembranças sobre o cemitério da Misericórdia o
“arrepiavam”, segundo ele o corpo era atirado como um cão morto, cobriam-no com
pouca terra em uma cova de pouca profundidade, se alguma parte do corpo ficasse
descoberto, socavam com pesados tocos de madeira, que em suas palavras formava “um
horrível mingau de terra, sangue e excrementos” 47 Tais relatos demonstram que esse
tipo de enterramento contrariava todos os ditames do que seria uma “boa morte” de
acordo com os princípios cristãos 48.
46
FREIREYSS, G. W. Viagem ao interior do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/ São Paulo: EDUSP, 1982,
p. 132-134.
47
SEIDER, Karl. Dez anos no Brasil. São Paulo, Martins; Brasília, Instituto Nacional do Livro. INL,
1976, pp. 312-13.
48
Sobre os cemitérios no Rio de Janeiro veja. RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos
vivos... 1995; RODRIGUES, Claudia. Funerais sincréticos: Praticas fúnebres na sociedade escravista.
Cativeiro e Liberdade, Revista Interdisciplinar em História Social, ano II, vol. 3. 1996; RODRIGUES,
Claudia. “A morte como elemento de afirmação da cultura africana no Rio de Janeiro escravista: o caso
do cemitério dos “pretos novos” in Estudos de História. Franca, v.10, n.1, 2003; PEREIRA, Júlio César
Medeiros da Silva. À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Garamond: IPHAN, 2007; BAVO, Milra. Hierarquias na morte... 2017.
370
49
Cf. BRAVO, op. cit., 2014.
50
REIS, op. cit., 1991, p. 171; RODRIGUES, op. cit., 1995, p. 234.
373
Domingos, com 23,3%; em seguida foi escolhida a igreja de Nossa Senhora do Rosário
e São Benedito dos Pretos, com 19%; em terceiro lugar foi escolhida a Igreja de Nossa
Senhora da Lampadosa, com 14,1%; em quarto lugar em escolha para sepultamento
pelos forros viria a Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia, com 11,8%; a Igreja
Matriz com 7,9% viria em quinto lugar, em sexto viria a Igreja de Nossa Senhora da
conceição e Boa Morte, com 7,1%. Entre as outras igrejas temos Nossa Senhora do
Parto, em oitavo lugar, com 4,2% e Igreja do Senhor Bom Jesus e São Gonçalo Garcia e
São Jorge, ambas em nono lugar, com 2,2% respectivamente. Assim, de acordo com os
dados obtidos da tabela, 87,6% dos forros foram sepultados nas igrejas de negros
africanos e seus descendentes e na matriz. Essa maior procura dos forros por sepultura
nas igrejas das irmandades de negros está relacionada à questão de seriam eles mais que
os escravizados que teriam recursos para se filiarem a uma irmandade.
374
51
RODRIGUES, op. cit. 1996, p. 224.
376
que os indivíduos forros e escravizados teriam menos recursos para pagar o translado
para outra freguesia, levando-se em conta que a freguesia da Sé concentrava
majoritariamente as igrejas das irmandades de negros africanos e seus descendentes,
mantendo-se a tendência observada por Milra Bravo para o período de 1720 a 1808 52.
52
BRAVO, op. cit. p. 149.
377
século XIX.
De acordo com o padre Raul Ruiz de Asúa Altuna muitos grupos bantu da
região de Angola enterravam seus mortos perto de suas casas ou dentro delas e as
destruíam quando terminava o luto. Era mais comum sepultá-los próximo às aldeias e à
380
beira dos caminhos para que os vivos lhe prestassem homenagem, todas as vezes que
passassem, inclinando a cabeça, aguardando silêncio ou depositando oferendas no
tumulo. Havia os cemitérios familiares em paragens solitárias e bem defendidas nas
florestas, normalmente cada aldeia tinha um cemitério comunitário 53. De certa forma,
este relato pode ser aproximado àquela determinação das Constituições Primeiras
mencionada anteriormente que justificava a necessidade de sepultura nos templos como
uma forma de os vivos manterem o contato com seus mortos, encomendando-lhe
orações.
Ainda segundo o padre Altuna, os pastores enterravam o chefe da família
normalmente no curral dos bois ou no lugar em que se acendia a fogueira. Os feiticeiros,
caçadores e guerreiros, quando eram pessoas de notória reputação, eram sepultados a
beira dos caminhos bem frequentados, ou nas encruzilhadas, sempre próximos a uma
arvore, onde seus instrumentos de trabalho, armas e troféus eram pendurados.
Buscavam agradar ao falecido colocando seu corpo em lugares familiares e rodeado de
seus objetos e bens, ao mesmo tempo que fortaleciam com a sua presença a
solidariedade. Os Quibalas de Angola depositavam os chefes sobre rochas e cobriam-
nos com pedras bem trabalhadas, formando um sarcófago retangular 54.
Henri Junod ao analisar os rituais de morte e sepultamento entre os Rhonga
de Moçambique, observou que quando morre um chefe, os homens da aldeia cavavam o
túmulo em um lugar atraz da palhota do morto ou mais longe, na pequena floresta que
em geral rodeia a aldeia, ou então no ntimu, bosque sagrado, e se o morto fosse um dos
guardas da floresta, se pertencia ao ramo primogênito da família, os coveiros buscam
um local próximo a uma arvore para cavar o túmulo, para que alguns objetos que
pertenciam ao morto fossem pendurados para serem conservados e purificados. A cova
em geral media cerca de seis pés de cumprimento, quatro de largura, dois e meio de
profundidade. Num dos lados abriam uma segunda cova mais ou menos circular com as
paredes bem aplanadas. Alguns grupos tinham o costume de rebocar as paredes com
lama tirada do rio. Colocavam ao lado do corpo um caniço e espalham no fundo do
túmulo erva que tinha crescido na agua, assim, o túmulo é, de certo modo, um duplo.
Apresenta dois níveis: o primeiro é o lugar público (huvu) do morto; o segundo é sua
palhota (yindlu ou xinyatu). O morto habita na palhota, mas sai para sentar-se na praça
subterrânea, exatamente como costumava fazer quando vivia na aldeia.
53
ALTUNA, Raul Ruiz de Asúa. A Cultura tradicional bantu. Prior Velho Portugal: Paulinas, 2014, p. p.
443.
54
ALTUNA, op. cit., 14, p. p. 443-44.
381
55
JUNOD, HENRI. Usos e Costumes Bantu. Campinas, SP: UNICAMP, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, 2009, pp. 136-7.
56
CAVAZZI DE MONTECÚCCOLO, Pe. João António. Descrição histórica dos três reinos do Congo,
Matamba e Angola. Tradução, notas e índices do Pe. Graciano Maria de Leguzzano. Lisboa: Junta de
Investigações do Ultramar, 1965, v.1, p. 124-6.
382
denominada mugamo, onde havia duas grutas naturais abertas na rocha, dentro das quais
eram depositados os ruessos, ou seja, ossos dos reis falecidos 57. Depositavam na
sepultura alguns objetos, como: uma cabeça de boi, uma cabaça ou garrafa com água,
mel, aguardente, alimentos, copo, taça, prato, instrumentos de trabalho, os troféus de
caça 58. Se o morto fosse nobre, colocavam uma cadeira, o arco, as setas, o chifre, a taça
e os outros utensílios por ele usados em vida. Observa-se que esses objetos eram
depositados no túmulo de acordo com a condição social do morto. Os indivíduos de
condição inferior tinham como insígnia da sua arte: caveira de feras para os caçadores;
cítaras, tambores e castanholas para os tocadores; cestos cheios de facas, emplastros,
raízes e ervas para os curandeiros. Os serralheiros, porém, tinham incontestável
superioridade sobre os demais, por ser a sua arte dos primeiros reis do Congo. Sobre os
seus túmulos eram depositados martelo, foles e bigornas com uma coroa por cima,
privilégio especial desta arte tão nobre e tão respeitada 59.
Os butongas besuntavam o cadáver com almagre (argila avermelhada – ocre
vermelho) e manteiga dobravam seu corpo como um feto no ventre da mãe, o
colocavam em um saco de cascas de certas arvores que tiravam também para outros
usos; amarravam bem a boca; faziam cova no formato de um poço redondo; e
colocavam o defunto sentado dentro do saco. Enterravam com morto carne, tabaco etc.,
pois acreditam que os espíritos dos mortos tinham necessidades semelhantes as dos
vivos, tais como comer, beber, fumar, etc 60.” De acordo com Sebastião Xavier Botelho,
os Cafres “enterram com o defunto todas as suas armas, arco e flechas, e azagaias;
dentro da cova lançam milho, arroz, feijões, e outros legumes; em cima depositam o
leito em que dormia, e as tripeças em que se assentava, e depois tapavam a cova” 61. Os
alimentos e bebidas eram depositados com certa periodicidade, pois acreditavam que os
mesmos ajudavam o morto a realizar a viagem para a nova morada, ao mesmo tempo
era uma forma de estabelecer entre os mortos e os vivos uma corrente vital 62.
Ao analisar os cerimoniais angolanas de sepultamento, conhecidos por
entambes (itambi), Arthur Ramos observou, que era motivo de festa para alguns e choro
e lamentações para outros “chora-se dão-se tiros em sinal de tristeza, e ao mesmo tempo
dançam, jogam, brincam, comem e embriagam-se”. Esta cerimonia durava oito dias, ao
final o dono do “itambi”, ou seja o parente mais próximo do morto oferece o banquete
57
SILVA, op. cit., p. 79;111 e 169; cf. BOTELHO, op. cit., p. 167 e 216.
58
ALTUNA, op. cit., p. 444.
59
CAVAZZI DE MONTECÚCCOLO, op. cit., p. 127.
60
SILVA, op. cit., pp. 112-3.
61
BOTELHO, op. cit., p. 216.
62
ALTUNA, op. cit., p. 444-5.
383
63
RAMOS, Arthur. O Negro Brasileiro: etnografia religiosa e psicanalise. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1934, pp. 211-212.
64
Construção rústica africana, geralmente coberta de ramos ou palha. tambem conhecida como palhoça
ou palhote. In Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021,
https://dicionario.priberam.org/palhota [consultado em 23-11-2021].
65
CAVAZZI DE MONTECÚCCOLO, op. cit., p. 128-9.
384
66
HEYWOOD, Linda M. De português a africano: a origem centro-africana das culturas atlânticas
crioulas no século XVIII. In HEYWOOD. Linda M. (org). Diáspora negra no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2008, p.109.
67
HEYWOOD, op. cit., 2008, p. 110; DELFINO, op. cit., 2017, p. 337.
68
Bando em que o governador Dom Francsico Inocencio de Souza coutinho proibe os estambes e varios
indignos abusos em Angola. Angola, Cx. 49 doc. 4. Agradeço ao professor Roberto Guedes por ter me
cedido esse documento.
69
DEL PRIORE, op. cit., p. 133.
385
70
HEYWOOD, op.cit., p. 109.
71
Idem., p.110.
72
Morte por feitiço, era aquela causado por um feiticeiro através de ritos mágicos com drogas maléficas,
ervas venenosas, raíszes, casca de determinadas arvores, ossos, pelos, sangue de animais e humanos etc.
Morte por espirito, geralmente era causada pelo espirito de um antepassado como forma de castigar
aqueles que haviam falhado com suas obrigações familiares não lhes homenageando com rituais
condignos (SWEET, P. 129)
73
BASTOS, Augusto. Traços gerais sobre etnografia do Distrito de Benguela, Lisboa: Tipografia
Universal, 1909, pp. 53-5. Apud. DELFINO, op. cit., 2017, pp. 339-40.
386
74
ALTUNA, op. cit., pp. 443-46.
387
75
CASTRI, Sílvia Regina Lorenso Castri. A cosmovisão africana sobre a morte nas telas de Jean Baptiste
Debret. University of Texas at Austin. XXIX Annual ILASSA Student Conference. p. 10. Disponível
em: http://lanic.utexas.edu/project/etext/llilas/ilassa/2009/loreno.pdf. acesso em 27/06/2021.
76
REIS, João José. A morte é uma festa... p.160.
77
DEBRET, Jean-Baptiste.Voyage pittoresque et historique au Brésil. Paris, Frimin Didot Frères,
Imprimeurs de L’institut de france, Libraires, 1839. Tome troisième. p. 152.
388
79
DEBRET, Jean-Baptiste.Voyage pittoresque et historique au Brésil. Paris, Frimin Didot Frères,
Imprimeurs de L’institut de france, Libraires, 1839. Tome troisième. p. 153.
390
86
Aquele que faz números de magica, ilusionista que tem grande agilidade com as mãos.
87
CAVAZZI DE MONTECÚCCOLO, op. cit., p. 93.
88
SWEET, op. cit., pp. 170-1.
89
Idem., pp. 170-1.
392
90
DESCH OBI, Maduka T. J. Angola e o Jogo de Capoeira. ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 24, p. 102-
124, 1. sem. 2008, pp. 113-118. Cf. também. DESCH-OBI, Thomas J. Engolo: combat traditions in
African and African diasporic history. Tese (Doutorado em História), Universidade da California. Los
Angeles, 2000; DESCH-OBI, Thomas J. Fighting for honor: the history of African martial art traditions in
the Atlantic World. Columbia: South Carolina Press, 2008; DESCH-OBI, Thomas J. The jogo de capoeira
and the fallacy of “creole” cultural forms. African and Black Diaspora: An International Journal. v. 5, n.
2, p. 211-228, 2012.
91
ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. Engolo e capoeira. Jogos de combate étnicos e diaspóricos no Atlântico
Sul. Tempo. Niterói. Vol. 26 nº3. Set/Dez. 2020. pp. 523-526.
393
haviam adquirido. Incorporar um espirito ancestral era visto por este grupo como uma
necessidade para curar doenças. A possessão pelo espirito do ancestral deve ser seguida
de uma iniciação ritual (oktonkheka), que é sempre feita pelo mais velho que ensinou o
engolo. “É unânime entre os engolistas que há sempre um vinculo com o parente que
também jogou o engolo e que nutre um carinho especial pelo descendente que está
sendo possuído. Pois o espirito só incorpora na pessoa que gosta mais. Um filho ou um
sobrinho” 92.
O viajante Daniel P. Kidder, que esteve no Rio de Janeiro no final da década
de 1830, assim como Debret, presenciou diversos funerais dos quais fez descrições com
grande riqueza de detalhes. Sobre os enterros no Rio de Janeiro afirma que de um modo
geral eram muito parecidos pelas suas exterioridades e ostentações, mas no entanto
variavam em muito de acordo com a idade e condição social do morto. Quanto aos
enterros dos africanos e seus descendentes, o autor os classificou como “costumes
pagãos”. Num domingo, sua atenção foi “atraída por gritos intermináveis” que vinham
da rua. Ao olhar pela janela viu “um negro com uma bandeja de madeira na cabeça, a
qual levava o cadáver de uma criança, coberto com um pano branco enfeitado de flores,
com um ramalhete atado à mãozinha.” Atrás do negro seguiam umas vinte negras e uma
quantidade numerosa de crianças, adornadas com fitas de tecido vermelho, branco e
amarelo, em passos lentos cadenciados entoavam um canto em língua africana. “O
negro que levava o corpo da criança parava frequentemente e girava sobre os pés como
se dançasse”. Entre os que iam na frente sobressaia a mãe da criança, pela “exagerada
gesticulação, a qual não se podia, pela mímica, determinar com exatidão, se era de
alegria ou de tristeza os sentimentos que a empolgavam”. Ao chegar à igreja entregaram
o corpo ao padre e o cortejo retornou cantando e dançando com mais intensidade. De
acordo com o autor, essa cena se repetiu várias vezes durante a sua estadia no Engenho
Velho 93.
Podemos perceber que nos relatos de João Julião da Silva e Sebastião
Xavier Botelho sobre os sepultamentos entre os cafres na região de Moçambique há
muitos aspectos semelhantes aos relatos de Debret e Kidder, O que confirma a presença
de elementos da herança cultural africana na vivência da morte e do morrer entre os
africanos e seus descendentes no Rio de Janeiro. Sobre o funeral de reis e príncipes, que
intitulou de “Funeral e Enterro dos Reis e Príncipes do Quiteve”, João Julião da Silva
92
ASSUNÇÃO, op. cit., pp. 545-549.
93
KIDDER, Daniel P. Reminiscências de viagens e permanências no Brasil: Rio de Janeiro e Província
São Paulo. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2001, p. 155.
394
fez a seguinte descrição: “Logo após a morte de um rei, ou príncipe poderoso, todas as
mulheres se juntam dentro de casa, enquanto os homens do lado de fora fazem grandes
prantos acompanhando com o próprio toque de tambor”, ao qual participam todos
daquela terra, “bem entendido homens, e vem gritando e carpindo logo que avistam a
povoação do falecido. O cadáver é lavado em água morna, e depois estendido em um
leito de varinhas suspenso sobre quatro estacas da altura de três palmos, e o cobrem com
um pano, por baixo colocam algumas gamelas grandes para receberem toda a matéria
que do cadáver sair em sua putrefação;” enquanto isso, “dentro da casa em que está o
cadáver estão efetivamente alguns grandes e não o desamparam um só instante, para que
os feiticeiros não venham aproveita-se de qualquer coisa do cadáver para suas
feitiçarias, pois creem que qualquer membro, ou carne dos falecidos Reis e Príncipes
tem grande virtudes para fazerem chuvas, secas etc.”
Diariamente, do amanhecer ao pôr do sol, “todos os cafres daquela
povoação com seus tambores andam a chorar em volta da casa em que está o cadáver, as
mulheres tocando seus chocalhos em ritmo compassado carpem o falecido; estas tiram
todos os enfeites, até mesmo as manilhas que trazem nas pernas, em seu lugar fazem
linhas brancas com cascas de arvores, como também a enrolam a cabeça e penduram ao
pescoço”. Enfeitam-se também com folhas de uma planta trançada, que eles chamam de
“maxevo, que enrolam nas pernas e nos pulsos”. Entre estes povos o luto tem a duração
de um ano e todos são obrigados raspar a cabeça. Aquele que não o fizer é dado como o
“reputado feiticeiro” que causou aquela morte. Após ter extraído toda a materia do
cadáver e esta recolhida em gamelas bem tampadas, “fica conservada a ossada da
mesma maneira como o puseram até que tenha sido escolhido um sucessor 94, a quem as
Rainhas, e Tate (mordomo mór cabeça de todos os grandes do reino) tenham feito a
mercê de levar aquela ossadura para o Maóe ou Mávue, jazigo das ossaduras dos ditos
Reis”, que também é conhecido pelo nome de “Mugomo”, que é uma grande rocha
situada na Província de Hanganhe. Nela há uma enorme gruta com pequenas tarimbas
armadas sobre quatro forquilhas na altura de dois ou três palmos sobre a qual depositam
a ossadas dos reis. Uma povoação próxima fornece os guardas daquele lugar sagrado 95.
“O sucessor autorizado para a condução daquela ossada, que eles chamam
de ruesso”, manda avisar aos príncipes e régulos das terras onde sua comitiva passaria.
94
Sobre o papel das rainhas no processo de sucessão do soberano em Moçambique ver. RODRIGUES,
Eugenia. Rainhas, princesas e donas. Formas de poder político das mulheres na África Oriental nos
séculos XVI a XVIII. Cadernos Pagu, nº 49, 2017. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/cpa/i/2017.n49/. Acesso em 03 de julho de 2021.
95
SILVA, op. cit., pp. 79-81;167-168.
395
Apresenta-se com sua comitiva armada na povoação do rei falecido e “pede conta aos
guardas do cadáver de todos os ossos, dentes e unhas, que não pode faltar à mínima
coisa daquela ossada, sobe pena de morte”. Estando a ossada completa e enrolada em
um pano de samater 96, enviado de Sofala, mata um boi preto e embrulha com sua pele
aquela ossada, que é costurada com o próprio couro a qual fazem uma forte alça e
colocam um pau para que dois homens a conduza. É dada a ordem de marcha, segue a
frente um grupo armado, “segue-os o ruesso e logo atrás as mulheres do falecido
levando as gamelas com toda a matéria apurada e bem tampada”. Tanto os dois que
carregam a ossada do rei, quanto às mulheres que levam as “gorguletas”, devem
marchar com muita atenção, pois se tropeçarem ou derem uma topada “são
imediatamente mortos a facadas como feiticeiro que mataram o proprietário daqueles
ossos”. Chegando próximo ao Maóe, o tate juntamente com os outros grandes do reino e
os emissários das rainhas que o acompanham dirigem-se para a povoação próxima, que
fornece os guardas do Mugomo, enquanto o sucessor vai para gruta revistar os antigos
ruessos, e aqueles que estiverem “arruinados ele os faz renovar com samater, e pele de
boi que leva para esse fim”. Feito isto, coloca as gorguletas aos pé da entrada da gruta e
“sacrifica algumas das mais estimadas mulheres do finado e escravos”, para que sirvam
o falecido no além-túmulo 97.
Nos sepultamentos dos príncipes sobernos chefes de grandes famílias
ocorriam as mesmas cerimonias, com a diferença de não serem depositados no
Mugomo, e sim em jazigos diferentes de seus antepassados 98. Como no relato a seguir
que menciona que, ao falecer qualquer pessoa entre os cafres, a família se junta para
chorar. “As mulheres dentro de casa e os homens do lado de fora, os vizinhos logo
aparecem para participarem da mesma choradeira”, imediatamente mandam avisar a
todos os parentes. O cadáver é lavado, num costume praticado tanto com homem quanto
com mulher. O corpo é “amortalhado em pano e enrolado em uma esteira feita de
varinhas” interligadas, sendo “bem amarado a um pau longo que serve para que dois
homens o carreguem para a sepultura”. Para obter a sepultura a família envia “um pano
ou valor a ele equivalente, ao Inhamaçango, ou o Regulo daquela terra. Este envia uma
pessoa sua para mostra no mato próximo um lugar para sepultura. Fazem uma cova
funda e escavão para o lado onde o cadáver é depositado de lado junto com o pau que o
carregaram” Somente os parentes acompanham o enterro. Após o sepultamento, antes
96
Um pano branco que vem do norte da Ásia. Cf. BOTELHO, op. cit., pp. 150.
97
SILVA, op.cit., pp. 79-81;167-169.
98
Idem., p.169.
396
99
SILVA, op. cit., pp. 169 e 170.
100
BOTELHO, op. cit., pp. 164-6
397
tomam aos ombros o ‘ruesso’, ossada do rei, e reiniciam a marcha com firmeza, pois
aqueles que tropeçarem, são imediatamente mortos a facadas como se fossem os
feiticeiros que causaram aquela morte. Da mesma forma, toda pessoa estranha àquela
comitiva que se deparar com ela será morta 101. Ao chegar ao “Mugamo, o príncipe
examina todos os ruessos ali depositados e troca as peles que se acham corrompidas e
deposita o ruesso do rei falecido no lugar que lhe é de direito” 102. Em outro relato que o
autor intitulou de “Enterros ordinários dos Cafres” percebe-se a mesma riqueza de
detalhes. “É costume dos cafres quando morre alguém entre eles, sair de casa, um dos
parentes mais próximos do defunto, e começa em altas vozes a pranteá-lo. A estas vozes
acode toda a aldeia, homens e mulheres dando grandes gritos, e principiam um pranto
mui sentido em vozes entoadas. Um dos principais parentes é que entoa o pranto, e a
este respondem os outros com refrém, cadenciado”. Se o falecido é um maioral
poderoso, acompanham o choro com toque de tambores que chamam de –
xembuximué” –. Ao fim da cerimonia, as mulheres, filhos, e parentes do falecido
despem todos os ornamentos, tirando até as manilhas dos braços, e pernas, e dão o aviso
da morte aos parentes, e amigos ausentes. Amortalham o defunto em um pano branco e
o enrolam depois em uma esteira, que cobrem com outra de um tecido de varinhas, “á
feição de fios de piteira, e bem acondicionado, e amarrado tudo com um ‘leame’ da
mesma matéria, lhe atravessam por cima um pau, e carregam aos ombros”. Comunicam
ao inhamançango da terra, presenteando-o com meio pano, uma espécie de “oblata 103”,
para que este conceda um lugar para a sepultura, que pode ser dentro da povoação, ou
em campo aberto, que para os cafres é maior honra funeral. Neste caso, pagam doze
panos ao senhorio da terra. Geralmente, quando a sepultura é feita no mato, são
consideradas exéquias menores usadas apenas pelos cafres muito pobres. Neste caso, o
inhamaçango envia um escravo para o local indicado, onde deve fazer a cova e enterrar
o cadáver sem receber por isso nenhum pagamento 104.
Somente os homens acompanham o enterro, que sai da casa do morto em
direção ao local concedido pelo inhamaçango, abrem uma cova bem larga e funda, que
segundo a crença é para dar espaço ao espirito do defunto quando este se dilatar.
“Enterram com ele suas ferramentas de trabalho, suas armas, lançam dentro da cova
milho, arroz, feijão e outros legumes, em cima colocam a cama em que dormia e o
banco que sentava, depois tampam a cova. Continuam com o pranto até que as mulheres
101
Veja também, SILVA, op. cit., pp. 168.
102
BOTELHO, op. cit., pp. 164-6.
103
Oferenda feita a Deus ou aos santos; oblação. Pode ser também oferta de uma vitima a uma divindade.
104
BOTELHO, op. cit., pp. 214-6.
398
cheguem com cântaros de agua que despejam sobre a cova alagando a terra. Socam com
pilões de madeira até que fique seca e lisa, com aspecto brilhoso. Encerrada a
cerimonia, voltam para a aldeia, e na entrada comem uma papa cozida com diversos
ingredientes que os livram de o espirito do morto entrar em seus corpos”. Vão até a casa
do morto em pranto redobrado, “queimam a casa dele com todos os moveis, pois não
podem ter nenhuma coisa sua ou toca-la, e caso alguém toque, antes de entrar em casa
tem que ir se banhar no mar ou no rio”, pois tudo que tocar antes de se lavar precisa ser
queimado. As cinzas da casa e os paus que não queimaram totalmente colocam em cima
da sepultura do morto. Choram pelo morto durante oito dias. O primeiro pranto é
entoado pelo parente mais próximo que é seguido pelos outros nas lamentações, que
chamam de “matanga” 105.
Os cafres de Quiteve ajuntam-se na casa do falecido do amanhecer ao
anoitecer e continuam a pranteá-lo durante três meses seguidos, tocando os tambores em
todas essas lamentações. A forma de carpir os mortos varia de acordo com cada grupo.
No reino de Quiteve é costume cada mulher acompanhar as lamentações, tocando seu
chocalho; e os homens de mãos dadas, com os tambores no centro, dançam em volta da
roda com “gemidos”, e cantigas “lastimosas”. Os de Mambone e Muxanga, enquanto
derramam pranto, dão “saltos e quedas no chão, fazem trejeitos e caretas , e no
momento do enterro matam uma vaca, e jogam metade na cova do defunto e divide a
outra metade com a comitiva” 106.
Os cafres de Butanga também dão saltos no chão, e matam uma vaca nos
sepultamentos, mas não fazem uso de mortalhas em seus funerais. Entre eles, quando
morre alguém, untam-no dos pés a cabeça com “almagre” 107 e manteiga e, encolhendo-
lhe as pernas, metem-no dentro de um saco feito da casca de certas arvores. Abrem uma
cova no mato no formato de um poço redondo, colocam o cadáver de cima para baixo,
com cuidado para não tocar em nenhuma parte da sepultura, depois a tapam de maneira,
que fique todo o terreno com uma aparência uniforme, não deixando vestígios da
sepultura. Enquanto existir alguma família de luto, os de fora não entram na aldeia sem
que de longe comecem a entoar lamentos fúnebres que os de dentro respondem com o
mesmo clamor com o toque de tambores. Esses cafres levam tão a sério esses rituais que
indagam antes de entrarem na aldeia se há pessoas de luto, porque o menor descuido a
este respeito pode custar a vida 108.
105
BOTELHO, op. cit., pp. 216-7.
106
Idem., pp. 218.
107
Argila avermelhada, ocre vermelho.
108
BOTELHO, op. cit., pp. 218-9.
399
Nossos antepassados africanos sabiam que deveriam morrer para que sua
alma e espirito pudesse iniciar uma nova jornada que os levaria ao mundo dos
ancestrais. Nesse sentido a morte era apenas uma passagem para o outro lado da
Kalunga.Tal perspectiva se encaixou perfeitamente a cosmologia do cristianismo em
que a morte não era o fim da vida, e sim uma passagem da alma de um vida para outra
no além-túmulo.
sistema religioso africano não teria sido capaz de se manter intacto no novo
cenário que se apresentava a ele no Novo Mundo, muito embora fosse capaz de
manter algumas continuidades da cultura africana, isso foi mais exceção do que
regra 109.
Para Thornton, esta argumentação dos dois antropólogos baseia-se na
ideia de que o comércio de escravizados e a escravidão teriam impedido a
transmissão da cultura africana para o Novo Mundo; de que a cultura africana
não seria homogênea devido às várias culturas africanas e também de que o
comércio de escravizados teria provocado a sua dispersão ao reunir indivíduos de
diversas etnias em um mesmo grupo, ao contrário da cultura europeia em que a
imigração geralmente manteve os indivíduos de um mesmo grupo juntos 110.
Thornton questiona tais argumentos, duvidando sobre até que ponto os africanos
seriam culturalmente heterogêneos em solo do Novo Mundo, até que ponto eles
seriam bem sucedidos ou não ao partilharem sua cultura, e se perguntando quais
as dinâmicas do desenvolvimento cultural e do processo de mudança por que
passaram as diversas culturas africanas para forjar a cultura afro-americana
afirmada por Mintz e Price 111. Para Thornton, o comércio de escravizados não
provocou um processo de dispersão dos africanos, obrigando-os a reconstituir do
zero a sua cultura no Novo Mundo, pois apesar das dificuldades impostas pelo
tráfico, os africanos ao chegar às Américas tiveram com quem conversar na sua
língua, partilhar seus costumes, sobretudo nas grandes propriedades agrícolas e
nas áreas urbanas 112. Segundo ele, apesar da diversidade de origem dos africanos,
eles não possuíam uma cultura inteiramente diferente entre si, existindo traços
comuns mesmo entre povos de uma área razoavelmente grande. Contrariando a
tese da dispersão de Mintz e Price, ele afirma que os africanos eram embarcados
em um ou dois portos e desembarcados em grandes lotes no Novo Mundo e em
geral muitos proprietários buscavam conseguir o maior número possível de
escravizados da mesma nação, incentivando casamentos, objetivando a
109
MINTZ, Sidney W. e PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva
antropológica. Rio de Janeiro: Pallas: Universidade Candido Mendes, 2003, pp. 83-6; THORNTON,
John. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico. Rio de Janeiro, Elsevier/Campos, 2004, p.
253.
110
THORNTON, op. cit., p. 253-4.
111
Idem., p. 254.
112
Ibidem., p. 277-8.
401
113
THORNTON, op. cit., p. 263-9.
114
Idem., p.277.
115
Ibidem., p.312-3.
116
SWEET, op. cit., p. 16.
117
BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil. São Paulo: Livraria Pioneira Editora. Editora da
Universidade de São Paulo, 1971, pp.157-179.
402
118
BROWN, Vicent. The Reaper’s Garden: death and power in the world of Atlantic slavery. First
Harvard University Press paperback edition, 2010.
119
FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil
during the era of Slave Trade. Cambridge University Press, 2012, pp. 180-186; 189-201.
120
THORNTON, John K. Religião e vida cerimonial no Congo e áreas Umbundo, de 1500 a 1700. In
HEYWOOD. Linda M. (org). Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, pp. 94.
403
121
THORNTON, op. cit., 2008, pp. 97-8.
122
THORNTON, op.cit., 2004, p. 335.
123
HEYWOOD, op cit., 2008, p. 109.
404
124
CORRÊA, Elias Alexandre da Silva. História se Angola. série E – Império Africano. Coleção
Classicos da Expansão Portuguesa no Mundo. Vol. 1. Lisboa, 1937 p.93.
125
THORNTON, op.cit., 2004, pp. 313-314; RODRIGUES, op. cit., 2010, p. 48.
126
Idem., pp. 325-335; RODRIGUES, op. cit., 2010, 48.
405
127
THORNTON, op. cit., 2004, pp. 343-346; RODRIGUES, op. cit., 2010, 48.
128
REIS, op. cit., 1996, p. 10.
406
CONCLUSÃO
1
SOARES, op. cit., 2005 p. 151; BRÜGGER e OLIVEIRA, op. cit., 2009, p.204.
2
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