Untitled

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 320

Encruzilhadas entre história

e educação na diáspora
REITOR
Fábio Josué Souza dos Santos
VICE-REITOR
José Pereira Mascarenhas Bisneto
SUPERINTENDENTE
Rosineide Pereira Mubarack Garcia
CONSELHO EDITORIAL
Ana Lúcia Moreno Amor
Josival Santos Souza
Luiz Carlos Soares de Carvalho Júnior
Maurício Ferreira da Silva
Paulo Romero Guimarães Serrano de Andrade
Robério Marcelo Rodrigues Ribeiro
Rosineide Pereira Mubarack Garcia (presidente)
Sirlara Donato Assunção Wandenkolk Alves
Walter Emanuel de Carvalho Mariano
SUPLENTES
Carlos Alfredo Lopes de Carvalho
Marcílio Delan Baliza Fernandes
Wilson Rogério Penteado Júnior

COMITÊ CIENTÍFICO
(Referente ao Edital nº. 002/2020 EDUFRB – Edital de
apoio à publicaçãode livros eletrônicos)
Leandro Antonio de Almeida
Rita de Cassia Dias P. Alves
Emanoel Luis Roque Soares
Rosy de Oliveira
Antonio Liberac C. Simoes Pires
Juvenal de Carvalho Conceição

EDITORA FILIADA À
Emanoel Luís Roque Soares
Juvenal de Carvalho Conceição
Rosy de Oliveira
Leandro Antônio de Almeida
(Orgs.)

Encruzilhadas entre história


e educação na diáspora

Cruz das Almas - Bahia - 2020


Copyright©2020 Emanoel Luís Roque Soares, Juvenal de Carvalho
Conceição, Rosy Oliveira, Leandro Antônio de Almeida
Direitos para esta edição cedidos à EDUFRB.
Projeto gráfico, capa e editoração eletrônica:
Antonio Vagno Santana Cardoso
A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio,
seja total ou parcial, constitui violação da Lei nº 9.610/98.

E56 Encruzilhadas entre história e educação na diáspora /


Organizadores: Juvenal de Carvalho Conceição [et al.]._
Cruz das Almas, BA: EDUFRB, 2020.
320 p.; il. . – (Coleção Pesquisas e Inovações
Tecnológicas na Pós-Graduação da UFRB; volume 5).

ISBN: 978-65-87743-39-4.

1.História – Recôncavo (BA). 2.Negros – Aspectos


sociais. 3.Índios – Vida e costumes sociais. I.Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia. II.Conceição, Juvenal de
Carvalho. III.Oliveira, Rosy de. IV.Almeida, Leandro
Antônio de. V. Soares, Emanoel Luís Roque. VI.Título.

CDD: 981

Ficha elaborada pela Biblioteca Central de Cruz das Almas - UFRB.


Responsável pela Elaboração - Antonio Marcos Sarmento das Chagas (Bibliotecário - CRB5 /
1615) eNeubler Nilo Ribeiro da Cunha (Bibliotecário - CRB5/1578)
(os dados para catalogação foram enviados pelo usuário via formulário eletrônico)

Rua Rui Barbosa, 710 – Centro


44380-000 Cruz das Almas – BA
Tel.: (75) 3621-7672
editora@reitoria.ufrb.edu.br
www.ufrb.edu.br/editora
www.facebook.com/editoraufrb
Sumário
Prefácio
Antônio Liberac Cardoso Simões Pires..................................................................... 9
Apresentação: um quilombo acadêmico no Recôncavo...................... 11
PARTE I - IDENTIDADES

Ideais femininos no terreiro Ylê Axé Alaketu Ajunsun Zitozan


Marilene Martins dos Santos, Emanoel Luís Roque Soares........................ 17
Emergência étnica e povos indígenas do nordeste
Tamires Santos Teles, Fabricio Lyrio Santos....................................................... 33
Nação Grúncis nos contos de mestre Didi
Antônio Marcos dos Santos Cajé, Antônio Liberac Cardoso
Simões Pires...................................................................................................................... 49
Estudantes palop da UNILAB: encantos e desencantos além mar
Leodinéia da Costa Reis, Emanoel Luís Roque Soares.................................. 63
PARTE II - QUILOMBOS

Histórias da matinha dos pretos: do quilombo ao cruzeiro


Railma dos Santos Souza, Rosy de Oliveira....................................................... 79
Cartografia social de um remanescente de quilombo
Lilian Soares da Silva, Rosy de Oliveira............................................................... 95
A abordagem do conceito de quilombo na escola
Girlandio Gomes Bomfim, Emanoel Roque Luís Soares............................. 113
Lucinda: minhas escolhas me fizeram retornar ao quilombo
Andrea de Carvalho Moreira, Emanoel Luís Roque Soares.................... 129

PARTE III - EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA

A experiência: aqui é África – teatro do negro na educação


Frederico da Luz Santana Filho, Cláudio Orlando C. do Nascimento,
Rita de Cássia Dias Pereira de Jesus................................................................... 145
Jogos educativos de origem Africana e afro-brasileira
João de Deus Fonseca Junior, Rita de Cássia Dias P. de Jesus................ 155
Adinkra: cultura africana no ensino fundamental
Eliane Fátima Boa Morte do Carmo,
Rita de Cássia Dias Pereira de Jesus................................................................... 169
Educação antirracista nas prisões baianas
Franklim da Silva Peixinho, Solyane Silveira Lima....................................... 181
Transformando teoria em pratica em Amargosa
Jardelina Garcia Santana, Emanoel Luís Roque Soares............................. 195
Clube de história: a cultura afro-brasileira na escola
Delmaci Ribeiro de Jesus, Emanoel Luís Roque Soares.............................. 211

PARTE IV - TRAJETÓRIAS E LUTAS

João de Deus: o rebelde cachoeirano de 1798


Flávio Márcio Cerqueira do Sacramento,
Walter da Silva Fraga Filho ................................................................................... 229
Memórias da Independência do Brasil em Cachoeira
Tamires Conceição Costa, Rita de Cássia Dias Pereira de Jesus........... 245
“Um candomblé incomodativo”e o jornal a tarde
Bárbara Santana Nogueira,
Antônio Liberac Cardoso Simões Pires.............................................................. 259
O exercício da prostituição em Feira de Santana (1940-1960)
Thaia Conceição Porto, Luciana Da Cruz Brito.............................................. 269
Negros militantes: movimento negro baiano (1970-1980)
Andersen Kubnhavn Figueirêdo,
Antônio Liberac Cardoso Simões Pires.............................................................. 285
Professores formados pelo programa UNIAFRO - UFRB
Danilo Fé Silva, Antônio Liberac Cardoso Simões Pires............................ 301
Sobre os autores........................................................................................................... 313
Prefácio

Antônio Liberac Cardoso Simões Pires1

O mestrado profissional em História da África, da Diáspora Afri-


cana e dos Povos Indígenas é fruto do compromisso da Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) em promover, conforme seu
projeto político-pedagógico, uma educação superior levando em con-
sideração a história, a memória, as tradições e inovações que compõem
e instituem a vida na Região o que implica em mergulhar nas histórias,
culturas e as tradições africanas, afro-brasileiras e indígenas.
Neste cenário, passo fundamental a criação do Grupo de Pes-
quisa, Núcleo de Estudos Afro-brasileiros do Recôncavo, NEAB/UFRB,
registrado no CNPq com as linhas de pesquisas: a) Escravidão e o Pós-
-Abolição; b) Comunidades Negras Rurais; c) Educação Para as Rela-
ções Étnico Raciais; d) Gênero e Raça; e) Saúde da População Negra; f)
História da África; g) Culturas Negras e, posteriormente, com a linha de
pesquisa em Arqueologia das Populações Negras e Indígenas;
O NEAB propiciou a organização e aprovação do PROJETO UNIA-
FRO/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Inclusão So-
cial - SECADI-MEC destinado à formação continuada de professores da
Educação Básica na Região compreendendo 36 escolas dos seguintes
municípios baianos: Cachoeira, Santo Amaro, São Felix, Muritiba, Cruz
das Almas, Santo Antônio de Jesus, Maragogipe, Governador Manga-
beira, Amargosa, Mutuípe e Brejões em turmas organizadas nos Cen-
tros de Artes Humanidades e Letras (CAHL - Cachoeira) e no Centro de
Formação de Professores (CFP - Amargosa). O resultado desta ação foi
a certificação de duzentos e dez (210) professores no Curso de Espe-
cialização em História da África da Cultura Africana, conforme previsto
para os períodos de 2012/2013; 2014/2015; 2016/2017.
Essas experiências vinculadas à área de História, relacionada ao
ensino, a pesquisa e a formação na educação básica e no ensino superior

1  - Professor Titular, Líder do NEAB-UFRB e Coordenador do MPHADPI.


10 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

impulsionaram a criação e dão sustentação à implantação do Mestrado


Profissional em História da África na UFRB, que iniciou suas atividades
letivas em março de 2014. As experiências realizadas, desde o NEAB até
o PPMPHADPI, têm contribuído para a transformação do ensino de His-
tória, sobretudo por meio da produção bibliográfica, de livros, de ma-
teriais didáticos, de inovações curriculares associadas às propostas de
formação de professores da Educação Básica na Região.
A presente obra, “Encruzilhadas entre História e Educação na Di-
áspora”, é parte deste processo e expressa o trabalho desenvolvido por
docentes, mestrandos, técnicos e colaboradores atuantes no NEAB e
no programa. Trata-se de mais um instrumento de apoio e de troca de
experiências entre profissionais comprometidos/as com uma educação
antirracista.
Apresentação: um quilombo
acadêmico no Recôncavo

Emanoel Luís Roque Soares


Leandro Antônio de Almeida
Juvenal de Carvalho Conceição
Rita de Cássia Dias Pereira
Rosy de Oliveira

Aquilombamento acadêmico é a melhor definição para este livro,


por valorizar os conhecimentos das culturas africanas, afrodescenden-
te e indígenas, sempre vistos como menores e menos importantes no
meio acadêmico brasileiro. É fruto do trabalho acadêmico-militante de
docentes (orientadores/as e coautores/as) e mestrandos/as (autores/as)
do Mestrado Profissional em História da África, da Diáspora e dos Povos
Indígenas (PPGMPHADI) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
(UFRB). Assemelha-se a um quilombo quando reúne, em uma só célula,
os saberes diaspóricos, afro-brasileiros, africanos e indígenas no Brasil,
narrando, descrevendo e ensinando através de produtos acadêmicos e
pedagógicos, os quais necessariamente não obedecem a uma epistemo-
logia do Ocidente.
Tal perspectiva surge da necessidade de atender a Lei nº 10.639
de 2003 e sua atualização na lei 11.645 de 2008, dispositivos que torna-
ram obrigatório o ensino da cultura afro-brasileira, africana e indígena
nas escolas da educação básica. Resultantes das lutas e conquistas dos
movimentos negros e dos movimentos dos povos indígenas no Brasil,
as leis até hoje desafiam e convidam o meio acadêmico e educacional
a realizar importantes e urgentes reformulações. A mais premente e
ainda necessária é a inserção de temáticas sobre sujeitos, grupos e
processos cruciais para a formação do país, mas que foram margi-
nalizados e silenciados por uma tradição eurocêntrica da escola e da
universidade, na maior parte das disciplinas e campos de pesquisa.
12 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Trata-se de repensar temas, metodologias e as formas de ex-


posição dos resultados das pesquisas de modo a formar docentes
dispostos e preparados para promover uma profunda mudança no
ensino de História. Motivados por esse objetivo é que um conjunto de
docentes da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia se lançaram
no desafio de constituir um Mestrado profissional em História da Áfri-
ca, da Diáspora africana e dos povos Indígenas.
Ao abrir o leque de formatos de trabalho final de curso, a moda-
lidade profissional de pós-graduação strictu sensu favorece a pesquisa
acadêmica pensada para suprir diretamente os anseios da sociedade.
Os Mestrados Profissionais representam uma grande novidade na área
de pesquisa e pós-graduação em História da última década no Brasil.
Até 2011, o único e pioneiro Mestrado nessa modalidade era oferecido
pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Atualmente, há dez programas
de pós-graduação ofertando, para centenas de mestrandos, cursos em
instituições de todas as regiões do País. Com a expansão ocorrida entre
2013 e 2014, atualmente já existe uma significativa quantidade de Tra-
balhos Finais de Curso (TFCs), apresentados em variados formatos, nas
áreas de concentração Ensino de História e Patrimônio. Nesse ínterim,
em 2017 uma portaria do Ministério da Educação abriu perspectivas de
criação de doutorados profissionais, sendo três deles aprovados pela
capes para funcionamento ainda em 2020.
Parte dessa expansão inovadora, o Programa de Mestrado Profis-
sional em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas foi apro-
vado pela Capes em 2013 e funciona desde 2014. Suas pesquisas são de-
senvolvidas no âmbito da sua área de concentração em História da África,
da Cultura Negra e dos Povos Indígenas, tendo como elemento de unida-
de o Projeto de Ensino da História delineado pelas diretrizes operacionais
relacionadas às Leis 10.639/2003 e 11.645/2008. O Programa destina-se a
ampliação e qualificação da reflexão crítica na produção de material didá-
tico, das pesquisas especializadas e do alargamento das políticas públicas
relacionadas à área. Nesse particular, tem se constituído num verdadeiro
laboratório voltado à experimentação de formatos e linguagens.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 13

O programa atua em duas linhas de pesquisas inter-relacionadas.


A primeira é Ensino de História, Diversidade e Movimentos Sociais. Nes-
ta linha, a pesquisa compreende teorias, políticas e práticas relativas à
formação de professores/as, implicada com as temáticas das Populações
Negras e das Relações de Gênero; das Comunidades negras rurais e das
Religiosidades Afro-brasileiras; dos Movimentos Negros e das Políticas
Curriculares; dos Projetos Educacionais e da Educação das Relações étni-
co raciais e das Políticas Indigenistas no Brasil. Já a segunda linha é His-
tória da África, da Diáspora Negra e dos Índios nas Américas, que aborda
a formação de professores/as e todas as variáveis relativas às temáticas:
História Geral da África; Cultura nas Américas; Negros no Pós-abolição
no Brasil e História Indígena.
Todas essas temáticas envolvem objetivos práticos voltados para
o conhecimento cientifico aplicado. Os pesquisadores/as egressos des-
se Programa são profissionais da educação básica, ensino fundamental
I e II; doutorandos; escritores; técnicos nas instituições públicas munici-
pais, estaduais e federais ávidos em nos provocar a começar a entender
algo, seja uma pessoa, um jogo, um território de coletividade negra,
afro-indígena ou um evento histórico reflexo da colonialidade nos ce-
nários das sociedades contemporâneas.
Em sete anos de atividades do PPMPHADPI, os temas “África”,
“Diáspora, “Povos Indígenas”, “Recôncavo”, “Bahia” se materializaram
em livros didáticos informativos, livros didáticos ficcionais, livros in-
fantis, paradidáticos, dissertações, recomendações a docentes, jogos
de tabuleiro, jogos de RoleplayingGame, catálogos, documentários,
vídeos biográficos, relatórios avaliativos, laudos antropológicos e ou-
tros tantos formatos. Esta obra se propõe a socializar alguns resulta-
dos desse processo através dos seus vinte capítulos, organizados em
quatro conjuntos temáticos.
No primeiro conjunto, intitulado “Identidades”, as experiências
de vida e exercício da liberdade são tratadas como elementos identi-
tários, a partir de enfoques sobre povos africanos e indígenas e suas
14 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

demandas, assim como de estudantes africanos de língua portuguesa


na Diáspora e de mulheres de terreiro, as quais tem na vivência da es-
piritualidade e da vida comunal seus referentes constitutivos.
“Quilombos”, parte 2 desse livro, aborda com registros biográfi-
cos e historiográficos que tratam das especificidades dos quilombos,
desde a sua conceituação, cartografia social, à identificação das lutas
pelo reconhecimento, às iniciativas de formação emancipatória pela via
da educação quilombola.
A terceira parte do livro destaca a “Educação Antirracista”, atra-
vés de experiências de implementação da lei 10.639/08 como o teatro
negro, os jogos educativos de matriz africana e afro-brasileira, a abor-
dagem interdisciplinar com símbolos africanos e com a utilização de
literatura, tanto na educação formal em escolas, quanto em ambientes
não escolares de formação e socialização, dando uma dimensão das
possibilidades de utilização e metodologias das propostas educacio-
nais antirracistas.
“Trajetórias e Lutas”, quarta sessão desta obra, reúne, em um rico
mosaico, experiências de vida e liberdade do povo negro. De persona-
lidades como João de Deus, um revolucionário negro, aos militantes do
movimento negro baiano, de meados do século XX, passando pela via
do ativismo religioso do candomblé, das memórias de luta pela inde-
pendência e pela sobrevivência, às margens de uma formação social e
racialmente excludente até a ação formadora do coletivo de docentes
negras e negros que integram o Núcleo de Estudos afro-brasileiros da
UFRB, o NEAB- Recôncavo. Registram-se nos textos as alternativas e a
relevante e expressiva presença do povo negro para a garantia de uma
sociedade mais igualitária em nossos tempos.
O livro “Encruzilhadas entre História e Educação na Diáspora” apre-
senta, portanto, as atualizações do devir negro e indígena, a partir das con-
tribuições de intelectuais implicados/as, que estabelecem fortes elos entre
a auto formação e o compromisso social promotores de justiça social e
igualdade, e que fazem da vida acadêmica a sua seara de luta e libertação.
PARTE I
IDENTIDADES
Ideais femininos no terreiro Ylê Axé Alaketu
Ajunsun Zitozan

Marilene Martins dos Santos


Emanoel Luís Roque Soares

O lócus do estudo é o terreiro de candomblé, Reinado Congo


de Ouro, na cidade de Nazaré, na Bahia, onde a presença feminina é
significativa, habitando o espaço religioso. Foi necessário um estudo
preliminar, isto é, uma sondagem de campo, primeiro na cidade onde
reside a pesquisadora, o que não foi possível. Uma característica muito
rara, família extensa morando em terreiros de candomblé. Na cidade,
o único encontrado, constando ao mesmo tempo, liderança feminina
e número significativo mulheres morando no mesmo espaço do culto.
Chegando até lá com o auxílio da Mametu Nkise Zunkuê, a popular Reizi-
nha de Angorô, proprietária e líder do Terreiro Inzo N’Gunzo Zunkuê, localiza-
do no Loteamento Jardim Imperial, s/n, atrás da CEASA – Santo Antônio de
Jesus/Bahia, atual coordenadora da FENACAB da região.
Foram tomados como objetos de análise textos escritos (mensa-
gens expostas em diversos suportes, físicos – camisas, paredes ou virtu-
ais – sites, blogs) orais (entrevistas, depoimentos, relatos, fotos, filma-
gens, etc.) mensagens que se reelaboram no interior feminino dentro
do candomblé, mais precisamente no Ylê Axé Alaketu Ajunsun Zitozan,
conhecido popularmente Terreiro Reinado Congo de Ouro. O núcleo
da pesquisa focou o discurso e a presença feminina no candomblé. E
assim, objetivou compreender o discurso da mulher negra de santo no
seu contexto religioso – o Candomblé, em que a sua representatividade
é significativa – mais precisamente, no Ilê Axé Alaketu Ajunsun Zitozan
– popular Reinado Congo de Ouro. Além do seu primeiro objetivo, bus-
cou formar bases sólidas para discussões, inferências e reflexões sobre
a presença da referida mulher, no âmbito do município de Nazaré das
18 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Farinhas; adquirir embasamento teórico e empírico, na expectativa de


potencialização de participações e contribuições significativas na cons-
trução de políticas públicas em prol da figura feminina negra de santo,
que promovam mais visibilidade e melhoria de vida - as mais urgentes,
em particular, para as que habitam o campo dessa pesquisa. Tudo isso,
a partir do trânsito entre as fronteiras da oralidade e da escrita, atra-
vés de análises de conteúdos orais: comportamentos, representações
simbólicas, e narrativas, com intuito de obter elementos a serem com-
parados e/ou analisados, juntamente com conteúdo de documentos
escritos, consoante a um estudo contextualizado e da investigação de
seu cotidiano, de vivências: suas variadas formas de comportamento,
do que lhe traz satisfação, contentamento, anseios, seus ideais, como
também, de suas angústias, frustrações, dificuldades, carência, pers-
pectiva para o futuro, de como se porta frente às diversas manifesta-
ções de racismo como a discriminação, o preconceito e a opressão, no
dia-a-dia, no seio da sociedade da referida cidade e dos mecanismos
operantes na sua contínua resistência na defesa de sua família, seus
valores, seus costumes, sua religião, sua cultura.
Frisamos que para a discussão sobre a teoria da análise do dis-
curso, tomamos de empréstimo alguns dos postulados de estudos
de seguidores da Teoria da Análise do Discurso da Escola Francesa, a
exemplo de Michel Foucault e Michel Pêcheux - abordagens presentes
tanto em estudos tradicionais quanto nos mais recentes, embora não
atenda totalmente às peculiaridades culturais e ideológicas do presen-
te estudo. Destacamos que sentimos a falta de teorias de AD mais es-
pecíficas para embasamento das pesquisas de populações tradicionais
em geral, especialmente, para este estudo específico. Além disso, la-
mentamos a ausência dos estudos do médico psiquiatra Juliano Morei-
ra (1873-1933), baiano de Salvador, o primeiro professor universitário
brasileiro a citar e incorporar a teoria psicanalítica no ensino da medici-
na. Caso suas obras não fossem ignoradas no passado, principalmente,
seus estudos sobre psiquiatria iniciados, no Brasil, em 1881, hoje pes-
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 19

quisadoras e pesquisadores negras/os não estariam vivendo um atraso


com relação às concepções e conceitos sobre relação de poder, pois,
o mesmo desmistificou muitas delas formuladas dentro do ponto de
vista eurocêntrico. Todavia, reforçamos que, mesmo considerando os
conceitos de discurso que somam corpo, linguagem, sociedade, inte-
ração e cultura, ainda assim, suas acepções não contemplam satisfa-
toriamente os estudos que se deseja fundamentar, pois, todas essas
teorias estão embasadas em conceitos de comunicação, funções da
linguagem, divisões e relações sociais eurocêntricos.
Na antiguidade, a base de transmissão de conhecimento em
muitos países africanos era a oralidade, a escrita é usada em situações
de menor importância, lembrando também que o sentido desta, para
os povos africanos, difere bastante da concepção europeia sobre a
mesma. O princípio das relações entre humanos é o de coletividade,
comunidade e não de sociedade moderna, nem todas as relações de
poder são estabelecidas a partir do patriarcalismo. Os gêneros textuais
são, em sua maioria, orais e, ainda, vale ressaltar que os conhecimen-
tos prévios de África e da diáspora ao longo da história foram silen-
ciados, reprimidos, diminuídos, sabotados, desbotados, apropriados,
patenteados em nome do colonizador, enfim, desvalorizados. Colo-
camos isso, visto que os estudos eurocêntricos sobre o discurso têm
raízes antigas também. Entendemos, igualmente, que o discurso do
povo de santo, especialmente, das mulheres, não se resume apenas
na oralidade (fala) e escrita, é para, além disto, o seu corpo fala, suas
vestes em geral, suas ocupações e seus rituais cotidianos. Por isso,
também, a religião foi umas das manifestações da diáspora que mais
sofreu repressão e, ao mesmo tempo, a que mais resistiu, em meio de
uma cultura ocidental, europeizada, em que a referência de gênero era
e ainda é o sexo masculino.
A significativa influência da civilização africana nas Américas e,
em particular no Brasil, no que diz respeito à formação do patrimô-
nio sócio-econômico-cultural da sociedade, atribuímos a vários fatores
20 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

como: o número expressivo da entrada de negros escravizados trazidos


para o Brasil, adicionando ao total de seus descendentes de várias ge-
rações, levando-se em conta as nações de três diferentes regiões e, so-
bretudo, a resistência das populações negras. Cientes disto, entende-
mos como um crime contra a história da humanidade, toda e qualquer
manifestação de indiferença, negligência ou tentativa de silenciamento
da voz deste povo, ao mesmo tempo que acreditamos ser um dever
desta nação “pagar” esta dívida, com políticas de reparação histórica
e compensação (CUNHA JÚNIOR, et al., 2008 ), ou seja, recontar a his-
tória do ponto de vista da diáspora, a desconstrução da “verdade” que
nos foi imposta e corrigir, estreitar as desigualdades socioeconômicas
e culturais acumuladas durante séculos. Para trilharmos o caminho ide-
ológico acima anunciado, apoiamo-nos, principalmente, nos estudos
de Narcimária Correia, Helena Theodoro, Lélia Gonzáles, Ângela Devis,
Fernanda Carneiro, Rosália Lemos’Ana, Emanuella Oliveira, Bell Hooks,
Rita de Cássia Dias, Hampâté Bâ, Stuart Hall, Jan Vansina, Muniz Sodré,
Édson Carneiro, Júlio Braga, Henrique Cunha Júnior, Emanoel Soares,
Lisa Castilho, dentre outras e outros. Veremos abaixo a contribuição de
algumas dessas e alguns desses.
Seguindo os princípios de (VANZINA,1982, p.138) a tradição oral
afro-brasileira foi e é tomada como um campo específico de conheci-
mento - produtor de memórias, histórias, ações, discursos/textos, orais
e ou escritos sobre a diáspora. Nesse contexto, a tradição oral afro-bra-
sileira revela-se num lugar complexo e plural, portadora de significados
múltiplos, de tessitura híbrida de relações conflituosas, porém, dialó-
gicas com outros saberes, signos e emblemas, nem sempre revelados
ou decifráveis para todos. Auxiliou-nos também, no posicionamento
perante as fontes, relativo ao tratamento dispensado às duas modali-
dades: oral e escrita, e reafirma-nos a importância e a força da palavra
falada nas civilizações africanas e a descreve como portadora do poder
de criação, “A oralidade é uma atitude diante de uma realidade e não
uma ausência de uma habilidade” (VANZINA, 1982, p.140).
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 21

Hall (1998) chamou de traço da pós-modernidade - grande ca-


pacidade de deslocamento da identidade, não no sentido literal de
mudança, mas no que diz respeito à reelaboração e reorganização das
estruturas tradicionais, seus costumes, idiomas, organizações socioe-
conômicas, políticas, religiosas, etc., a forma essa como projetou e se
reestabeleceu a diáspora africana escravizada no Brasil, resistindo, ao
tempo que ressignificava tudo que o identificava como filhas e filhos
de uma nação, de seu extenso continente - considerando a diversida-
de dos grupos étnicos de cada uma. Desta forma, o candomblé é um
exemplo vivo e forte dessa resistência.
No que se refere às fortes reações de resistência, logo no alvo-
recer do século XX por parte da sociedade contra as tentativas das
populações negras de projetarem-se na condição de sujeito da forma-
ção de valores permanentes que hoje melhor singularizam e definem a
sociedade e as culturas baianas, fundamentamo-nos em (BRAGA, 2014)
o qual afirma que a diáspora se viu obrigada a estabelecer estratégias
que permitissem, e permitiram, a conquista do espaço o qual, no seu
interior, desenvolvia-se, dentre outras ações, relativas aos aspectos psi-
cológicos e sociais, e observa que incorre-se num erro e é até mesmo
preconceituoso imaginar que, do sistema social vigente e da classe do-
minante, as populações negras foram apenas vítima. Esta concepção,
disseminada por alguns estudiosos, contribuiu apenas para esconder
ou mascarar muitas ações dessas populações para defender-se da so-
ciedade, que insistia, nem sempre com sucesso, em empurrá-las para
uma posição de inferioridade social.
Com os ensinamentos de (SODRÉ, 2002) destacamos nos estu-
dos os estragos com o rompimento dos vínculos familiares e sociais
de origem causados à diáspora africana, o afastamento de sua con-
dição de um ser pessoal e social, isolando-a no novo mundo, um dos
mais perversos efeitos do tráfico intercontinental e seus mecanismos
de recolocação como sujeito no novo continente. Conforme o autor,
22 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

na Bahia, a maioria dos povos africanos foi forçada a refazer todas as


suas relações por meio da comunidade “parentes de nação”, logo nas
primeiras horas de cativeiro, ou mesmo antes, até à sua condição atu-
al na Bahia, possibilitando, no meio dos seus, a preservação de uma
identidade, sentimento de pertencimento a uma família, e de integra-
ção a uma história. E com seu estudo multidisciplinar contribuiu com
dois significativos elementos para este estudo: força e espaço. Trata
das mudanças de conceitos dos mesmos através da evolução histórica
e a relação intrínseca deste binômio na tradição africana. E ainda, suas
discussões em (SODRÉ, 1983) auxiliou-nos na abordagem sobre o di-
namismo masculino e feminino no candomblé e o princípio do poder
dentro da religião.
Os estudos de Castilho (2005), colaboraram com a discussão so-
bre os discursos que circulam no interior dos espaços-terreiros e fora
deles relacionados aos candomblés, especialmente, referentes à orali-
dade versus escrita e ao segredo. Declara haver uma preocupação com
os discursos, escritos e visuais, os primeiros, pelo motivo de que eles
transgredem os espaços discursivos de um corpo de conhecimento,
cuja circulação está restrita a níveis hierárquicos dentro do mesmo. E
acrescenta também, existir uma atenção maior para a fotografia, a for-
ma visual do discurso, pois, ela pode ultrapassar o raciocínio verbal/
analítico, provocando reações negativas quando visualizada por pes-
soas estranhas ao culto.
Com base nas pesquisas de Carneiro,(2002) fizemos a descrição
étnica dos povos africanos trazidos para o Brasil para trabalharem em
condição de escravos, organizando por nações e grupos linguísticos.
Conforme o autor, foram divididos em dois grandes grupos conforme
a procedência: negros bantos (sul da África), os sudaneses (da zona
do Níger, na África Ocidental). O segundo grupo, após introduzido na
Bahia, foi espalhado pelo Recôncavo Baiano, utilizado nas lavouras. Os
negros sudaneses eram os nagôs (iorubas), os jêjes (ewes), as minas
(tshi e gás), os galinhas (grúncis), os tapas, os bornus. Para a Bahia tam-
bém trouxeram negras e negros fulas e mandês (mandingas), carrega-
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 23

dos de forte influência muçulmanas etc. Trouxe-nos aporte ainda, sobre


a multiplicidade de práticas existentes dentro do Candomblé, divisões
e os estados em que em que se propagou e firmou. Carneiro (2002),
afirma que a Bahia é o Estado onde o candomblé mais se fortaleceu.
Entretanto o candomblé teve historicamente casas importantes no Rio
Grande do Sul, Rio de Janeiro, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Ma-
ranhão. A população atual de Salvador é de 2.857.329 milhões (IBGE,
2018). De acordo com o Centro de Estudos Afro-Orientais da Univer-
sidade Federal da Bahia (CEAO/UFBA), em 2016 havia 1.165 terreiros
cadastrados na capital.
E no reportar o olhar para o processo de desumanização sofrido
pelas populações negras, o filósofo, cientista social e revolucionário, o
argeliano Frantz Fanon, através de sua obra Pele Negra Máscaras Bran-
cas (2008), foi um grande parceiro para as reflexões. Fala que o lugar
para negras e negros foi condicionado, tendo por base a cor da pele.
E ainda, em que estas/es tornaram-se em decorrência de séculos de
escravidão: prisioneiro de si próprio, da necessidade de libertação do
olhar do colonizador, que não enxerga no negro uma pessoa, mas uma
cor, mas para isso, deve, antes, libertar-se de si próprio, desse lugar ou
entre lugares no qual encontra-se aprisionado. Adiciona que a cor é
determinante para “salvar”, tanto para condenar: “Quando me amam,
dizem que é apesar da cor da minha pele. Quando me detestam, se jus-
tificam dizendo que não é pela cor da pele. Em uma ou outra situação,
sou prisioneiro de um círculo infernal” (FANON, F. 2008, p. 34).

Metodologia
Alinhamos aos norteamentos teórico-metodológicos de Cunha
Júnior (2008, 2019, 2020) às considerações para elaboração do méto-
do de Soares (2016) que constam do primeiro capítulo - O Método: A
fenomenologia e a genealogia como métodos de pesquisa, desenvolvido
na sua tese As vinte e uma faces de Exu na Filosofia Afrodescendente
da Educação (2008), trouxe-nos uma possibilidade de definirmos me-
24 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

lhor uma prática metodológica que atendesse, e atendeu, às intenções


desta pesquisa e de descrevermos o caminho que foi percorrido du-
rante sua execução. Ofereceu-nos um condicionamento metodológico
ao explicar os métodos utilizados na sua pesquisa - a fenomenologia e
a genealogia. Sobre o primeiro, interpretando as palavras de Edmund
Husserl (1859-1938), autor da obra Ideia de Fenomenologia (1990), na
qual afirma ser a fenomenologia o método crítico do conhecimento
universal das essências, ele desenvolve. A aplicação que fez do método
fenomenológico interpretado por Husserl (1859-1938) no seu estudo
sobre Exu, o qual na tradição africana é a divindade comunicação, do
relacionamento, do cruzamento de caminhos, por isso possui múltiplas
personalidades, representando as várias identidades humanas, mos-
trado a sua eficiência para o estudo das múltiplas personalidades da
divindade, adequou-se coerentemente ao estudo do comportamento
e identidade humana, principalmente, para as populações que viveram
a condição de diáspora e seus descendentes, particularmente, a diás-
pora africana e afrodescendente no Brasil. E a agregação ao segundo, a
genealogia - metodologia de cunho filosófico que se dedica a estudar
a origem, ascendência, procedência, casta, etc. dos seres humanos -,
outro caminho escolhido por Soares (2008), fundamentado nos concei-
tos nietzschiano e apoiando-se na compreensão de relação de poder
de Foucault, para contemplar outros ângulos de seu referido estudo,
permitiu-nos discutir a relação de poder de todos os segmentos sociais
e ideológicos abordados nesta pesquisa, principalmente de gênero.

Olhar militante e intelectual feminino


No caminho por um olhar feminino sobre as discussões mencio-
nadas anteriormente e outras igualmente relevantes asseguramo-nos
na intelectualidade e militância de Lélia Gonzáles, Helena Theodoro
Lopes, Jurema Pinto Werneck, Luiza Helena de Bairros, Mãe Stella de
Oxóssi, Beatriz Moreira Costa, Mãe Beata de Iemanjá, Narcimária Luz,
dentre outras.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 25

Quanto à disseminação da concepção moderna da escrita, a sua


supervalorização e seus usos no controle das populações negras exer-
cidos nas ex-colônias europeias, particularmente, no Brasil, a tese da
escritora brasileira, doutora em Educação, Narcimária Luz - ABEBE: A
Criação de Novas Perspectivas Epistemológicas em Educação (1997)
foi importantíssima para análise crítica do panorama histórico da edu-
cação brasileira, principalmente, para entendermos os estratagemas
da ideologia da escrita que sempre visou a promoção do recalque, a
discriminação da alteridade e repressão da continuidade da civilização
africana no país pelas populações negras, concepções implantadas no
sistema educacional, extensivas, dentre outros, ao sistema carcerário,
em nome do cristianismo e do “progresso ou civilização”, bem como,
para a exploração das questões referentes à conexão entre dois mun-
dos, contextos distintos - diálogo entre as comunidades-terreiros e as
sociedades oficial e civil.
Lélia Gonzáles, historiadora e filósofa; Helena Theodoro, profes-
sora e filósofa; Luiza Bairros, doutora em Sociologia foi Ministra de Es-
tado Chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial;
e Jurema Pinto Werneck, médica e doutora em Comunicação, além de
outros temas, auxiliou-nos na discussão sobre gênero. As quatro retra-
tam a trajetória de enfretamentos da mulher negra.
A primeira, desta a luta pela liberdade e a resistência à pressão
social, através do movimento negro. Além disso, Gonzáles (1982) refor-
ça o nosso pensar sobre as teorias do discurso que tradicionais e mes-
mo as dita modernas, a partir de suas denúncias que faz sobre o que
reza a teoria da psicanálise freudiana e seus aliados, em relação à nossa
linguagem, os quais alegam que não sabemos nos expressar: “não sa-
ber o que diz, dizer outra coisa que não o que se diz”, concepção que
nos retrata como uma besta.
A segunda, evidencia o domínio ideológico da moral cristã sobre
todas as outras religiões, contexto no qual não há espaço para a mulher
negra pensar-se gente e, ainda, Theodoro (1996) aprofundada o deba-
te sobre as consequências do sexíssimo – a discriminação pelo gênero
26 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

e pela cor -, como elemento determinante para a condição em que se


encontra a mulher negra hoje, numa posição de total exploração social.
A terceira alerta-nos para o perigo de alimentarmos certas ideias
ou reproduzirmos sem uma análise crítica sobre o que está por trás do
que “literalmente” dito no discurso, um deles é a ideia de que a discri-
minação é mais pela classe social do que pela cor. Bairros (2011) ,aler-
ta-nos da necessidade de estarmos sempre vigilantes, pois, esse tipo de
discurso reforça outro discurso, o da incapacidade do povo negro para
corresponder aos estímulos que a sociedade ofereceu às pessoas pobres
ao longo dos séculos e que somos pobres porque somos inferiores.
E a quarta, trouxe-nos aportes para falarmos sobre os reflexos,
“efeitos colaterais”, da discriminação, condições de trabalho e opressão
social à qual o corpo negro é submetido, com destaque para o corpo
negro feminino, que no contexto de sexíssimo fica exposto à violência
de toda natureza, salientando a necessidade urgente de cura. Werne-
ck (2016), em Racismo institucional e saúde da população negra fala
da falta assistência para as enfermidades da genética negra, há outros
transtornos físicos e emocionais de que sofrem as mulheres negras.

Resultados
As mulheres de santo da comunidade em questão enfrentam dis-
criminação de gênero, mesmo que implicitamente, em alguns casos.
Adiantamos que, com exceção de uma, todas elas possuem compa-
nheiros negros. Dentro do terreiro há um patriarcado instalado que
interfere na visibilidade feminina, principalmente, a liderança atual, que
por mais que se esforce e se dedique ao terreiro e à comunidade é
sempre comparada com a figura masculina que antecedeu, as quali-
dades deste são apresentadas como alguém inigualáveis e inatingíveis
por outro (a) liderança. As suas ações e atitudes são sempre confron-
tadas com as do outro. Esta visão é, predominantemente, dos homens.
Os homens são muitos saudosos de um modo austero, inflexível, con-
servador de conduzir. As imperfeições da figura masculina são vistas
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 27

como necessárias ou compensadas por outras faculdades, qualidades,


virtudes, aptidões e grandezas do imaginário masculino. A boa notícia
é que estas mulheres, não são subordinadas aos seus companheiros,
no seu particular, não admitem transgressões destes, quando se vê em
desvantagem, as mais velhas rompem com as intimidades de um ca-
sal e as mais novas separam-se ou terminam o namoro e continuam
a vida como outro companheiro; a grande maioria não tem medo de
recomeçar. Outras, em contextos diferentes deste, continuam com os
companheiros, mas transgredem as suas regras, não aceitam ou permi-
tem que os mesmos determinem ou as impeçam de realizar coisas im-
portantes em suas vidas, principalmente, sociais e religiosas. A maioria
absoluta não se submete aos ditames do patriarcado, aos poucos elas
vão quebrando as barreiras desse, pelo menos, nos seus lares. É mais
difícil quebrar o muro do esquecimento social, da invisibilidade consti-
tuída num passado, em que os valores eram muito mais injustos com a
parte feminina, no contexto desta comunidade e, igualmente, na cida-
de, a qual possui mais de 300 anos de história marcada pela escravidão,
chefiada pelo senhor dono engenho, que tratava de forma desumana
a diáspora, privando-a toda dignidade e essa violação, para a mulher,
foi muito mais agressiva, que os bloqueios do presente, do cotidiano.
Em geral, o sistema educacional dessa cidade, para as referidas
mulheres, ainda opera do ponto de vista apenas da classe dominante.
Os conteúdos dos livros didáticos e as atividades escolares são, priori-
tariamente, eurocêntricos. Apesar de seus líderes não se manifestarem,
explicitamente, contra a religião, impera a omissão quando isso ocorre
no contexto escolar.
A multifocalidade da mulher negra é, expressivamente, presente
na comunidade. Elas não esperam pelos seus companheiros para a
defesa de sua família. Além do fazer religioso, dos fazeres domésticos,
desempenham mais uma ou duas atividades, mesmo aquelas que pos-
suem um emprego fixo, não se contentam com só coisa, quando isto é
o meio encontrado para alimentar sua família.
28 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Essas mulheres, também, acreditam que o espaço físico influi no


relacionamento dentro da família, e que a disputa por lugar, a busca
por privacidade, fruto da particularidade de cada um e suas necessi-
dades dentro de uma coletividade, é motivação de certos desentendi-
mentos Sentem falta de um atendimento mais humano e menos parcial
nesses espaços, porém, destacam que a falta de médicos, as enormes
filas no atendimento e a demora na marcação de consultas e resultados
dos exames, são os mais críticos.
Uma minoria destas mulheres entrou para religião por força de
grande motivação externa, pela necessidade de solucionar um proble-
ma na sua vida, entretendo conforme a grande maioria, principalmente,
para as que já nasceram mergulhadas no Sagrado desta comunidade,
estar foi uma circunstância da vida, porém, confirmar, iniciar-se e per-
manecer é, simplesmente, pelo amor ao Sagrado, ao seu Orixá e tudo
de bom que a religião proporciona-lhe e representa na sua vida, es-
pecialmente, a família e a memória do principal responsável por tudo.
Nos seus discursos, as mulheres consideram e deram provas, que a
religião é uma forte aliada para a solução de problemas no dia a dia, dos
mais variados, é o apoio médico, legal, financeiro; As mulheres apresen-
tam dificuldade em reconhecer o racismo estrutural, aquele que não só
determina o modo pensar e agir das pessoas, como também, as coloca
numa condição desfavorável em todos os setores da sociedade em rela-
ção a outro grupo étnico, que se torna hegemônico., judicial, moral etc.,
contudo, admitem que isto não pode ser motivo de acomodação.
O candomblé é um dos fortes exemplos que ilustra o heroísmo
da mulher negra, por ser uma religião que, em sua maioria, é comanda-
do por mulheres, sacerdotisas, e, também, por isso são mais persegui-
das e discriminadas. As mulheres de santo desta comunidade enfren-
tam injustiças externas e internas. Somado a classe social ao racismo
religioso, na sociedade, elas ainda enfrentam a tentativa de dominação
do gênero masculino por parte de seus companheiros que se utilizam
da orientação religiosa dessas mulheres como motivo para controlá-las
e dominá-las, apesar de pouco sucesso com a maioria
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 29

As mulheres acreditam que os estudos ainda é o melhor caminho


para mobilidade social, do mesmo modo, entendem que não dá para
esperar o título chegar em suas mãos para comprar o pão, o sustento.
Reivindicam melhores condições para continuar os estudos ou retor-
nar, sem ter que abrir mão deles para fazer um bico ali ou acolá como
condição de não ver a sua família passar de forme.
Salvar o próximo que todo dia chega na porta é o que mais im-
porta, principalmente, para a líder desta comunidade. Esta é, também,
a principal necessidade de outras lideranças da cidade também. Pensa-
mos que o melhor caminho para esta comunidade a longo prazo, é for-
mar parcerias com outras comunidades-terreiros, com o apoio de uma
Secretaria ou empresas privadas para a implantação de uma coopera-
tiva, possa gerar emprego e renda para todos. O incentivo é valer-se
da pregnância que a mulher negra possui, a sua multifocalidade, e ca-
nalizar essa força de vontade, sabedoria, a atitude de buscar soluções,
dá providência, uma iniciativa/ação individual, para uma ação coletiva,
que só pode surgir e, somente faz sentido, meio a uma necessidade
comum e de força maior.
Embora o racismo religioso seja também preocupante, essas mu-
lheres, indiretamente, chamam a atenção para a necessidade de afir-
marmos nossas concepções, origens e aprendizados; de reconhecer-
mos, valorizarmos e apoiarmos aquelas/es que nos representam, tanto
na religião como na política; confirmarmos que somos uma realidade,
mesmo a contragosto dessa/e outra/o; de tomarmos a nossa história
como parâmetro, caminho a seguir, sem com isto perder de vista nosso
presente, o contexto atual, mas, principalmente, não se deixar iludir
seguindo no caminho da/o outra/o.

Considerações finais
Concluímos que as mulheres de santo possuem mecanismos
potentes, construídos em bases sólidas, durante sua história de vida,
como: condição feminina, religião e família, num só espaço comunida-
30 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

de-terreiro, que têm funcionado muito bem para solucionar ou, pelo
menos, se defender de confrontos provenientes de racismo, dentre ou-
tras formas, o religioso.

Referências
BÂ, Hampâté. A tradição viva. In: KI-ZERBO. J. História Geral Da
África: metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática, Paris:
UNESCO, 2010.

BAIRROS. Luísa. IPEA. Desafios do Desenvolvimento. 2011. Ano 8.


Edição 70. Disponível em: < https://www.ipea.gov.br/desafios/index.
php?option=com_content&view=article&id=2675:catid=28&Ite-
mid=23 >. Acesso em: 05/07/2018.

BRAGA, J. Candomblé da Bahia: a cidade das Mulheres e dos ho-


mens. Feira de Santana. UEFS Editora, 2014.

_________. Na gamela do feitiço: candomblé e resistência à repres-


são. Salvador: EDUFBA. 1995.

CARNEIRO, E. Candomblé na Bahia. 9ª ed., Rio de Janeiro: Civiliza-


ção Brasileira. 2002.

_________, Religiões Negras e Bantos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civiliza-


ção Brasileira. 1991.

CASTILLO, Lisa Earl. Entre a oralidade e a escrita: a etnografia nos


candomblés da Bahia. Salvador: EDUFBA. 2008.

CUNHA JUNIOR, Henrique. A Espacialidade Urbana das Popula-


ções Negras: conceitos para o patrimônio cultural. In: SANTOS, P.
Marlene et al., Afro patrimônio cultural. Fortaleza: Editora Fi. 2019.

________, Henrique. et al. Metodologia Afrodescendente em Pes-


quisa. Ethnos Brasil, SÃO PAULO: v.6, nº242, p.14-29, junho.2008.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 31

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA. 2008.

GONZALEZ, Lélia. HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Ja-


neiro, editora Marco Zero, 1982 [Coleção Dois Pontos].

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janei-


ro: DPS, 1998.

LUZ, Narcimária C.P. ABEBE: a criação de novas perspectivas epis-


temológicas em educação. Salvador, 1997. Tese de Doutorado em
Educação FACED – UFBA.

PÊCHEUX, M. Discurso e ideologia. In: PÊCHEUX, M. Semântica e


discurso - uma afirmação do óbvio. 3. ed. Campinas, SP: UNICAMP,
1997. Disponível em: < https://issuu.com/editoraunicamp/docs/1330
>. Acesso em: 26 de julho de 2018.

PINTO, Valdina. O. Família de Santo e Educação. Antigo mood-


le /UFBA. Disponível em: <http://www.antigomoodle.ufba.br/file.
php/10399/valdina_pinto_textos/valdina_pinto_familia_educacao.
pdf> Acesso em 31 de maio de 2018.

_______. Saberes e Viveres de mulher negra. Revista Palmares. Por


Ubiratan Castro de Araújo. Disponível em: < http://www.palmares.
gov.br/sites/000/2/download/revista2/revista2-i75.pdf >. Acesso em
28 de maio 2018.

SOARES, Emanoel Luís Roque. As vinte e uma faces de Exu na filo-


sofia afrodescendente da educação. Cruz das Almas. EDURFB. Belo
Horizonte. Fino Traço. 2016.

SODRÉ, M. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira.


Salvador. Imago Ed.2002.
32 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

THEODORO, H. Mito e Espiritualidade: mulheres negras. Rio de


Janeiro. Editora Pallas.1996.

VANSINA, J. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, Joseph


(Org.) História geral da África: metodologia e pré-história na África.
Volume 1- São Paulo: Ática; [Paris]: UNESCO. 1982.

WHITE, Evelyn; WERNECK, Jurema e MENDONÇA, Maisa. O livro da


saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe. São Pau-
lo: Pallas. Editora, 2002.
Emergência étnica e povos
indígenas do nordeste

Tamires Santos Teles


Fabricio Lyrio Santos

Introdução
Nas últimas décadas observa-se um crescente número de produ-
ções historiográficas voltadas à História Indígena, reflexo da demanda
criada pela Lei 11.645/2008 e das mudanças no campo da História, da
Antropologia e de outras áreas de conhecimento, além do fenômeno
crescente da etnogênese, que se fortalece entre diversas populações
originárias de diferentes espaços do atual território brasileiro. Neste
cenário, povos da região Nordeste assumem uma trajetória histórica
peculiar, sobretudo a partir da segunda metade do século XX.
Em pouco menos de duzentos anos, a partir do assentamento
colonial litorâneo, diversas terras foram incorporadas pelos portugue-
ses para o desenvolvimento da sua dinâmica econômica e social. Os
contornos que são conhecidos atualmente por serem da região nor-
deste foram explorados como parte do projeto empreendedor colo-
nial e consolidados durante a emergência da nacionalidade brasileira
a partir do século XIX, marcados por um processo histórico de margi-
nalização que se inicia com a descoberta das minas em terras que hoje
integram as regiões Sudeste e Centro Oeste. De acordo com Dantas,
Sampaio e Carvalho (1992) “marginal”, assim como “residual”, foram
categorias escolhidas para classificar e polarizar os povos indígenas
sul-americanos e, entre estes, em particular, aqueles pertencentes à re-
gião Nordeste.
Este capítulo se debruça sobre os campos da História e da Antro-
pologia para evocar as perspectivas da luta de três grupos indígenas
do Nordeste do Brasil, Fulni-ô, Kariri-Xocó e Fulkaxó dos estados de
34 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Por meio da leitura de estudos et-


nográficos, pesquisa de campo e entrevistas, foi possível perceber a
importância do fenômeno da emergência étnica, tanto no contexto das
experiências destas populações, como para corroborar a existência de
diferentes estratégias identitárias e de resistência entre os povos indí-
genas na atualidade.
A pesquisa nasceu do interesse em ampliar as discussões sobre
música, cultura e identidade no contexto indígena, tendo em vista as
questões que permeiam a aplicação da Lei 11.645/2008 e o ensino de
história, visando a criação de um material audiovisual elaborado como
produto final do Mestrado em História da África, Diáspora e dos Povos
Indígenas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Partindo da
análise das estratégias de catequese adotadas pelos jesuítas no período
colonial fomos ao encontro da musicalidade indígena contemporânea
enquanto um dos principais elementos de afirmação política e identi-
tária. Chegamos até o músico, líder e educador indígena Wakay Cícero
Pontes da Cruz, que, no início da pesquisa, residia na reserva indígena
Thá-Fene em Lauro de Freitas – BA, retornando posteriormente com
sua família para o território Kariri-Xocó em Porto Real do Colégio – AL.
Para entendermos e traçarmos a trajetória de Wakay foi neces-
sário enveredarmos pelas raízes e ramas da etnia Fulkaxó, oriunda dos
grupos indígenas Fulni-ô de Águas Belas (PE) e Kariri-Xocó, de Porto
Real do Colégio (AL), retomando desde o empreendimento colonial e
passando pelo processo de negação identitária, vivenciado no decor-
rer do século XIX, a fim de evidenciar alguns dos principais processos
relacionados às populações indígenas do Nordeste brasileiro, itinerário
que resultou na produção do vídeo documentário “Wakay: Uma se-
mente, um mundo” (TELES, 2019) 2.
2  - Além da revisão histórica e etnográfica, o trabalho final foi baseado em entrevis-
tas realizadas com Wakay na reserva indígena Thá-Fene, em Lauro de Freitas, Bahia, e
na aldeia em Porto Real do Colégio, Alagoas, onde também foram feitas as filmagens
para o documentário. Além disso, mantivemos contato com ele durante todo o pe-
ríodo da pesquisa.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 35

Neste trajeto, evocamos os esforços e estratégias presentes no


fenômeno da emergência étnica, os quais vêm sendo vivenciados por
esses grupos num contexto de fortalecimento identitário e de luta pela
sobrevivência de suas culturas e ancestralidade. Para a fundamentação
historiográfica, buscamos dialogar com pesquisas que oferecem con-
teúdos e possibilidades para a história indígena, tanto no intuito de
caracterizar as diferentes fases da colonização (HOLLER, 2006; LEITE,
2006; WITTMAN, 2011) como as décadas mais recentes (ARRUTI, 1995;
MONTEIRO, 1999; ALMEIDA, 2010; OLIVEIRA, 2016).

Uma contextualização histórica necessária


Quando as terras do que hoje se entende por Brasil passaram
a fazer parte da chamada “América Portuguesa”, os diversos povos
indígenas aqui existentes, caracterizados por uma ampla diversidade
étnica, linguística e cultural, foram agrupados genericamente em dois
grandes grupos identificados como “mansos” e “bravos”, “amigos” e
“inimigos”, “tupis” e “tapuias” (MONTEIRO, 2001).
Desde finais do século XVI os indígenas que viviam no sertão, ou
seja, no interior do que é hoje a região Nordeste, foram chamados de
“Tapuias” numa distinção que associava todos aqueles grupos como
inimigos. Esta designação servia para diferenciá-los dos indígenas fa-
lantes da “língua geral”, ocupantes das áreas litorâneas. A atribuída di-
ferenciação feita para os referidos grupos, habitantes, muitas vezes, de
territórios ainda inexplorados pelos europeus, logo se fez sob uma vi-
são de impedimento ao progresso do empreendimento colonial, dada
a selvageria que lhes era associada, diferentemente da apreciável “do-
cilidade” Tupi (POMPA, 2003).
Na história dos povos indígenas - na qual a colonização, atrelada
ao imaginário da conquista absoluta, foi erguida - é possível compre-
ender como se arrolou o cenário que assolou (e ainda assola) a constru-
ção identitária de grupos indígenas, principalmente os que habitam o
Nordeste. O pensamento da extinção destes grupos é responsável por
fazer sombra na construção do curso do seu reconhecimento quanto
36 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

parte da história brasileira – tanto no passado quanto no presente (OLI-


VEIRA, 2016).
Sendo o Nordeste a região com mais tempo de presença eu-
ropeia desde o século XVI pela divisão do seu litoral em capitanias, o
século seguinte foi favorável à expansão de novas ocupações, sendo
possível uma nova penetração no seu território ante um novo ponto, a
partir do desbravamento dos sertões, concentrada nas margens do rio
São Francisco e seus afluentes (DANTAS et. al., 1992; PUNTONI, 2002).
Os jesuítas, em contraposição (ou complemento) às guerras jus-
tas, foram responsáveis pela estratégia de conquista de terras e po-
pulações por meio da catequese. Foram os primeiros religiosos a fixar
as populações indígenas nos chamados aldeamentos, desde o século
XVI, num movimento que se estendeu das capitanias litorâneas para a
região amazônica, bem como nas bacias dos rios Paraguai, Uruguai e
Paraná, já sob o impulso das missões enviadas pela coroa espanhola.
O modelo de aldeamento preconizava que se mantivessem os índios
afastados dos centros coloniais para que fosse evitado o fracasso da
missão (SANTOS, 2014).

Emergência étnica e resistência


Do ponto de vista teórico, é válido salientar que as identidades
de grupos indígenas são consequência de suas coletividades e dinâmi-
cas culturais, que fazem pontes afetivas e intelectuais entre o passado
e o presente. O reconhecimento desses valores ancestrais alcança tanto
aqueles indivíduos que sempre fizeram parte de uma unidade social
anterior às terras e postos indígenas, quanto os que nasceram nas re-
servas e aldeias, ou que descendem dos indígenas coloniais, em dife-
rentes situações de miscigenação ou aproximação à cultura colonial ou
nacional (OLIVEIRA, 2016, p.183).
Arruti considera que o termo “emergência étnica” deve ser en-
tendido no âmbito do conceito mais amplo de etnogênese, que seria o
contrário do etnocídio:
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 37

Se o etnocídio é o extermínio sistemático de um


estilo de vida, a etnogênese, em oposição a ele,
é a construção de uma autoconsciência e de uma
identidade coletiva contra uma ação de desrespei-
to (em geral produzida pelo Estado nacional), com
vistas ao reconhecimento e à conquista de objeti-
vos coletivos3.

A emergência étnica, entendida como expressão de uma etno-


gênese, pode ser definida como um processo pelo qual um grupo in-
dígena que teve sua identidade negada durante um certo período de
tempo – sendo até classifica do como não-indígena – reafirma a sua
identidade, seja por meio de uma diferenciação cultural (língua, reli-
gião, modo de vida), seja por meio de um condicionamento histórico
(anterioridade da presença no território, aldeamento por missionários
etc.) – critérios estes considerados necessários para o reconhecimento
externo por parte da sociedade nacional e do indigenismo oficial. Este
conceito vem desempenhando um papel fundamental em meio à reno-
vação do campo da história indígena nas últimas décadas (SILVA, 2003;
ALMEIDA, 2010).
Muitos grupos surgidos desde os anos 1980 intencionaram, para
além de uma identidade própria, afirmar também sua individualidade
política, buscando o resgate de ligações ancestrais com os “troncos ve-
lhos”, que atendem como uma reserva de memória, tradição, religiosi-
dade e cultura, seja no seu passado vivido, seja no imaginário, tornado
parte do presente, não apenas uma vaga lembrança, mas uma memória
organizada, justificada e informada. Os troncos velhos, ante a ideia de
ramificação ancestral, são como a herança original dos antepassados
(ARRUTI, 1995, p.77).
Em contraposição, mas na mesma cadeia de ramificação, estão
as “pontas de rama”, que simbolizam o distanciamento entre os grupos
indígenas tidos como índios puros – antepassados – e os mais novos,
no que se refere tanto não somente às tradições, mas também à apa-
rência física. A ponta de rama foi a classificação criada por eles como
3  - Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Etnogêneses_indígenas. Acesso
em: 28/05/2020.
38 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

fenômeno identitário para tratar a mistura, “a expropriação simbólica e


a perda de sinais diacríticos evidentes” (ARRUTI, 1995, p.77).
O sentido de coletividade pode ser colocado pelos povos indíge-
nas em dimensões várias, seja para definir grupos menores, com rela-
ções mais próximas de parentesco, seja para representar os laços entre
uma aldeia inteira. Ou seja, “cada grupo étnico repensa a ‘mistura’ e se
afirma como uma coletividade precisamente quando se apropria dela
segundo os interesses e crenças priorizados” (OLIVEIRA, 2016, p. 226).
O sentido de parentesco pode estar associado mesmo entre
grupos distintos, política ou territorialmente, por meio de ancestrais
em comum, ou até de modo mais extenso, sendo considerado o pa-
rentesco entre todos os povos indígenas, em oposição ao mundo dos
brancos. Também, nesta direção, há o elemento “enxame”, que se liga a
ideia dos troncos velhos e pontas de rama somando sobrenomes, dan-
do mobilidade a todas as metáforas relacionadas à emergência étnica.
Estando o sentido de “enxame” aliado ao mundo animal, toda a sua
compreensão gira em torno da ideia de movimento, divisão e expansão
para a formação de novas unidades. O que remete de maneira direta
aos aspectos territoriais dessas emergências (ARRUTI, 1995, p.80).
Segundo Arruti (1995, p. 76), os indígenas consideram a emer-
gência étnica como um movimento que se dá em função de pequenos
desdobramentos ocorridos no próprio seio das comunidades ao buscar
a renovação e a continuidade de suas tradições e espiritualidade, como
um “reencantamento do mundo”. O simbolismo e as emergências étni-
cas de tantos povos carregam suas especificidades e, por isso, deve-se
compreendê-las na diversidade e unicidade que as caracterizam, ainda
reconhecendo os pontos em comum que as tornam interligadas com
as outras. Logo, o sucesso e manutenção das novas gerações indígenas
depende do modo como elas assumem o comprometimento político e
cultural contido na emergência (ARRUTI, 1995, p. 84).
Similarmente, num quadro estratégico de sobrevivência, diversos
grupos indígenas foram reunidos no passado em um mesmo território,
o que faz pensar hoje, que com a mesma finalidade, diversos grupos
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 39

puderam/podem se unir, dando origem a outros para que se multipli-


quem, assim como os seus territórios (ARRUTI, 1995, p. 80).
A partir dessas considerações, falaremos a seguir sobre os Ful-
ni-ô, os Kariri-Xocó e a união dos dois grupos dando origem ao povo
Fulkaxó, grupos com os quais se identifica nosso protagonista, Wakay.
A emergência étnica como um fenômeno de desdobramentos e signi-
ficados vários para os povos indígenas do Nordeste é a chave para a
compreensão de suas engenhosidades, da representação de parte das
suas lutas e dos esforços convertidos em estratégias para alçar reco-
nhecimento.

Políticas de ocultamento
José Maurício Arruti (1995) sinaliza que o avanço colonial, por
seus desdobramentos, propagou na história dos povos indígenas do
Nordeste a visão de sua extinção total, sendo esta tida como encerrada,
partilhando-se da ideia de que tais grupos teriam sido exterminados de
forma física ou incorporados à sociedade local num processo de assi-
milação social que os fizeram conhecidos como os típicos sertanejos e
caboclos.
Na primeira metade do século XX, entre os anos de 1920 e 1950,
o Estado brasileiro, por meio do recém criado Serviço de Proteção ao
Índio (SPI)4, inicia a tessitura de diversas estruturas de promoção à in-
clusão e integração do indígena à sociedade nacional no intuito de
encobrir os contrastes culturais através da imposição dominante das
instituições oficiais estatais e de uma suposta “cultura nacional”. O uso
da tutela como estratégia cresce em paralelo com a luta política de di-
reitos manifesta pelos próprios indígenas (OLIVEIRA, 2016).
O SPI estabeleceu um novo modelo de colonização entre as regi-
ões Norte e Centro-Oeste, tornando como espaços nacionais os territó-
rios ainda não alcançados pelos processos de colonização dos séculos
anteriores. Quando da gênese de sua criação, o órgão, que atendeu pri-

4  - Extinto em 1967, deu lugar à Fundação Nacional do índio (FUNAI).


40 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

meiro pela sigla SPILTN5, vinculava-se ao Ministério da Agricultura, Indús-


tria e Comércio, e estava responsável pelos interesses nacionais de duas
formas: na captação de mão-de-obra indígena para o setor agrário e na
homogeneização da população brasileira a fim de interromper a ideia de
presença “selvagem” em sua composição, como apregoava em fins do
século XIX o militar Couto de Magalhães (MAGALHÃES, 1940, p. 106).
A tutela serviria como uma forma disciplinadora que, além de
criar maneiras de desenvolvimento econômico dentro do mercado de
trabalho, mediava a relação entre índios e as demais populações que
já estavam na área. Naquele período, os índios do Nordeste se carac-
terizavam sem muita diferenciação em relação às demais populações
pobres da região. Eram sertanejos, vivendo da agricultura, sem acesso
à posse da terra. Por serem desprovidos de uma forte diferenciação
cultural e identitária, o órgão indigenista oficial atuava com mínima
frequência nas localidades, suprindo apenas as demandas mais graves,
e, ainda assim, sob severas justificativas ao Estado, para que fosse ates-
tada a realização do trabalho com “índios verdadeiros” e não apenas
“resíduos populacionais sobreviventes” (OLIVEIRA, 2016, p. 197).
A partir de 1973, com a aprovação do Estatuto do Índio (Lei nº
6.001, de 19 de dezembro de 1973), torna-se possível compreender de
que forma materializada foi apresentada a existência de populações
indígenas no Brasil, deixadas à exterioridade depurada de uma vida em
isolamento, ou na mais completa inserção assimilada em sociedade.
Ambos os caracteres fundados nos séculos antecessores, firmaram a
concepção do índio assimilado que, somada à mestiçagem, fortificou
como marca característica da sociedade brasileira. A mistura como um
atributo dos indígenas ditos integrados tinha por objetivo transformá-
-los em “cidadãos brasileiros”. Os que antes eram vistos como empeci-
lho ao desenvolvimento nacional seriam agora considerados trabalha-
dores nacionais livres (OLIVEIRA, 2016, p. 310).
Em contraste com este processo, a partir dos anos 1970, em algumas
capitais do país, universidades públicas – com destaque da Universidade
5  - Serviço de Proteção ao índio e Localização de Trabalhadores Nacionais.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 41

Federal de Pernambuco e da Universidade Federal da Bahia – desenvolve-


ram grupos de pesquisas voltados às populações indígenas do Nordeste.
Como resultado da mobilização dessas frentes de trabalho foram criados,
por exemplo, o Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas do Nor-
deste Brasileiro (PINEB) e a seção baiana da Associação Nacional de Ação
Indigenista (ANAÍ/BA), que através das produções acadêmicas e coleta de
dados, puderam desenvolver argumentos que se mostraram favoráveis às
reivindicações de diferentes povos indígenas e também atender às diver-
sas demandas existentes (OLIVEIRA, 2016, p.198).
Este novo contexto foi o pontapé inicial para que fosse dado o
impulso à caracterização dos povos indígenas do Nordeste numa uni-
dade diferente da que costumavam descrever outros povos, na qual
os aspectos regionais de habitantes do sertão nordestino formavam o
sentido principal, como um conjunto de povos caracterizados a partir
dos contatos coloniais e catequéticos, em que a “mistura” associada
a esses grupos não fosse tratada como uma negação da sua história
(DANTAS et al., 1992; OLIVEIRA, 2016).

Os Fulni-ô, Kariri-Xocó e Fulkaxó


O padre Alfredo Pinto Dâmaso foi uma das figuras centrais na
luta indígena no sertão nordestino enquanto agente externo mobili-
zado junto aos povos Fulni-ô e Kariri-Xocó nos anos cruciais que mar-
caram o início do seu reconhecimento pelo órgão indigenista oficial
como povos indígenas, a partir da década de 1920, ainda sob a tutela
do SPI. Os Carnijós, que se autodenominavam Fulni-ô, habitavam parte
da área de Pernambuco no território de Águas Belas e foram “o primei-
ro povo indígena no Nordeste a conquistar o reconhecimento oficial
no século XX” (BEZERRA, 2018, p.22). Os Fulni-ô também o único povo
indígena da região que manteve preservada a sua língua de origem, o
Ia-tê6. Mais adiante, em 1944, ocorreu a fixação pelo SPI de um pos-

6  - Povos Indígenas no Brasil: Fulni-ô. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/


pt/Povo:Fulni-ô. Acesso em: 28/05/2020.
42 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

to indígena em Porto Real do Colégio, Alagoas, reunindo no território


o povo Kariri-Xocó (ARRUTI, 1995, p. 73), num fenômeno caracteriza-
do por João Pacheco de Oliveira como movimento de territorialização
(OLIVEIRA, 2016, p. 203-206).
Em contrapartida, os indígenas desenvolveram estrategicamente
mecanismos de diálogo para lidar com o SPI e a forma que o órgão, sob
controle do Estado, organizava a tutela e as suas funções. Neste con-
texto, a emergência étnica se afirma enquanto fenômeno de resistência,
fazendo parte deste processo de organização indígena, onde o período
compreendido entre as décadas de 1920 e de 1960 teve forte impacto.
No Nordeste, o SPI manteve uma tímida atuação, como já foi
lembrando, tornando-se evidente o distanciamento acentuado entre o
órgão e a região. Durante a gestão do SPI no Nordeste, entre os anos
de 1924 e 1967, ou seja, ao longo de pouco mais de 4 décadas, apenas
12 grupos indígenas conseguiram iniciar movimentações para garantia
do seu estatuto legal e demarcação das terras a serem reservadas. A
maioria alcançou reconhecimento oficial, efetivando suas demarcações
entre os anos 1930 e 1940, em terras pertencentes aos locais dos anti-
gos aldeamentos (ARRUTI, 1995, p. 71).
A denominação Kariri-Xocó surgiu a partir da fusão das etnias
Kariri e Xocó, no século XIX, através de casamentos inter-étnicos,
decorrentes da expulsão de parte dos Xocó do seu território. Estes,
que habitavam no estado de Sergipe, na ilha fluvial de São Pedro, em
Porto da Folha, passaram por um processo de expropriação violenta,
migrando para perto dos Kiriri (também conhecidos como Kariri). Os
Kariri, sendo parte integrante do percurso das missões catequéticas a
partir da criação de aldeamentos no sertão nordestino, como povos
indígenas originários da região, se caracterizam pela antiguidade da
ocupação e pela presença de numerosos registros escritos na corres-
pondência missionária no século XVII. Já a origem dos Xocó (ou Ciocó)
é identificada a partir o século XVIII.
Em 1944 foi estabelecido o posto indígena em Porto Real do Co-
légio, por intermédio do padre Dâmaso, reunindo ali os dois grupos
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 43

que mais tarde viriam a adotar o etnônimo Kariri-Xocó. Eles reivindi-


cavam terras de um aldeamento de índios Kariri que havia se estabe-
lecido no século XVIII a partir de uma missão jesuítica. Na versão da
memória tribal, as terras teriam sido concedidas ao grupo pelo impe-
rador d. Pedro II, em pessoa, durante sua viagem à cachoeira de Paulo
Afonso, em 1859. A demarcação de suas terras ocorre cinco anos após
o reconhecimento oficial, em 1949 (ARRUTI, 1995, p.73).
É possível perceber, a começar pelos Kariri-Xocó, constituídos
pela junção de dois povos, o processo da emergência que virá anos
mais tarde pela associação aos Fulni-ô. Isso aponta para uma tendência
na formação de vínculos, justificada pela necessidade que se frutificou
ao longo de todos esses séculos. Assim, a auto atribuição do nome
Fulkaxó tem no seu significado algo que vai muito além da junção dos
nomes dos povos Fulni-ô, de Pernambuco, com Kariri e Xocó, de Alago-
as. A união dos três etnônimos concebe o seu sentido numa caminhada
de resistência e afirmação dos valores simbólicos, onde cultura, tradi-
ção, religiosidade e conquista do território se fortalecem.
Inicialmente, os Fulkaxó habitaram o território Kariri-Xocó, em
Porto Real do Colégio, onde, juntos, os dois grupos reuniam em torno
de 80 famílias, formando um contingente de aproximadamente 2.500
indígenas. A questão da terra para os Fulkaxó, assim como para os de-
mais povos indígenas do Brasil, remonta ao período da expansão mer-
cantilista, numa disputa contínua na busca de ocupação territorial e re-
afirmação de suas posses, furtadas e despojadas desde a colonização.
De acordo com Nhenety Kariri-Xoxó e Ulysses Fernandes (2013),
o movimento Fulkaxó, além do que o próprio nome permite compre-
ender, tem origem no interior da Família Cruz (Kariri- Xocó) – da qual
faz parte o protagonista da nossa pesquisa – criado no intuito de con-
templar a todas as etnias que faziam parte da aldeia em Porto Real do
Colégio. A estratégia de dissolução de povos, bem como a incorpora-
ção a outros, é hoje uma característica muito peculiar de muitos grupos
indígenas, assim como os Kariri-Xocó. A fusão de diferentes grupos
marcados através de um mesmo nome é uma estratégia de sobrevivên-
44 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

cia que refletiu na construção de uma rede de saberes e cosmologias


características de sua diversidade.
O fortalecimento dos Fulkaxó enquanto povo se ergue a partir
de um sistema de estruturas hibridas e de intensa transmissão de sa-
beres sagrados que fazem surgir questionamentos que envolvem plu-
ralidade, pertencimento, identidade, representação e reconhecimento
de um patrimônio cultural. Mas, é importante perceber, atentando para
o sentido de suas estruturas internas, que os aspectos de interação
e conflitos entre as lideranças, somado à necessidade de preservação
e coletividade, impulsionaram os Fulkaxó para a busca do reconheci-
mento pela terra em outra região, apenas como Fulkaxó e não como
Kariri-Xocó-Fulkaxó.
No ano de 2007, mediante solicitação feita ao Ministério Público
Federal na Procuradoria da República de Sergipe, os Fulkaxó, na quali-
dade somente de Fulkaxó, pediram que lhes fosse concedido o direito à
terra própria, distante do território de Alagoas e dos grupos Kariri-Xocó
e Fulni-ô, que com eles partilhavam a terra. Frente a tal solicitação, um
novo grupo étnico indígena se auto afirmava, proporcionando a luta
por um novo território e a resolução de inúmeros conflitos existentes.
De acordo com a manifestação do representante indígena Fulkaxó, já
não era possível a convivência entre os grupos. Junto ao pedido, os
Fulkaxó manifestaram interesse em terras na região de Pacatuba, no
estado de Sergipe, numa Fazenda de nome Cadoz7.
Uma década mais tarde, em 20 de maio de 2017, com o apoio da
prefeitura do município de Pacatuba, os Fulkaxó tomaram posse da ter-
ra, ocupando o território desde então. Vale ressaltar que, mesmo diante
dessa fragmentação ou recomposição étnica entre Kariri-Xocó, Fulni-ô
e Fulkaxó, rituais sagrados como o Ouricuri ainda são feitos em con-
junto. Nosso protagonista, Wakay, se auto identifica como Kariri-Xocó,

7  - Cf. Ministério Público Federal (MPF). Procuradoria da República em Sergipe.


Ação Civil Pública do dia 27 de junho de 2012. PR/SE. Disponível em: http://www.
mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/dados-da-atuacao/acao-civil-publiva-1/acoes-ci-
vis-publicas-1/terra-1/acao-civil-publica-do-dia-27-de-junho-de-2012-pr-se/view.
Acesso em: 28/05/2020.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 45

mas também se considera Fulni-ô e Fulkaxó em função das relações de


parentesco com esses povos.

Considerações finais
A experiência histórica dos grupos Fulni-ô, Kariri-Xocó e Fulkaxó
demonstra que aqueles povos indígenas tomados como inimigos e
silenciados na documentação não foram completamente subjugados
nem desapareceram por completa ao longo da colonização portugue-
sa ou pela ação do estado brasileiro a partir do século XIX. Esses povos
não apenas sobreviveram como também se reinventaram e se reorga-
nizaram para dar origem a novos grupos indígenas que, a despeito das
semelhanças, passaram a ter identidades próprias.
Desde que a Lei n. 11.645, de 10 de março de 2008, estabeleceu
como obrigatório o Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Indí-
gena, um dos maiores desafios dos sistemas de ensino têm sido a capa-
citação de docentes para a abordagem desta temática. No entanto, este
desafio não se apresenta apenas na dimensão dos conteúdos a serem
aprendidos e ensinados em sala de aula. Trata-se também de fomentar
e promover uma completa mudança de perspectiva e de atitude em
relação aos povos indígenas e africanos que possibilite uma tomada de
posição em relação ao racismo. O professor e a professora que preten-
dem abordar a temática sem assumir uma postura abertamente antirra-
cista estarão sendo, no mínimo, coniventes com o racismo.
Por isso, como afirmou em outro contexto o historiador John
Monteiro (1999, p. 239), não basta “preencher um vazio na historiogra-
fia” relativo ao pouco conhecimento histórico que ainda se tem acerca
do papel decisivo desempenhado pelos povos indígenas na formação
brasileira e mundial; trata-se também de “desconstruir as imagens e
os pressupostos que se tornaram lugar-comum nas representações do
passado brasileiro”, ou seja, questionar valores e atitudes fundadas em
preconceitos sobre o ser e o não ser indígena, repensar a própria ideia
de identidade nacional, ancorada em uma narrativa que historicamente
46 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

omitiu a participação da maioria explorada e das minorias excluídas


dos processos de decisão. Como afirma a ativista e intelectual negra
norte-americana Angela Davis, “numa sociedade racista, não basta não
ser racista. É necessário ser antirracista”.

Referências

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Bra-


sil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.

ARRUTI, José Maurício. Etnogêneses indígenas. Disponível em: ht-


tps://pib.socioambiental.org/pt/Etnogêneses_indígenas. Acesso em:
28/05/2020.

ARRUTI, José Maurício. Morte e Vida do Nordeste Indígena: a emer-


gência étnica como fenômeno histórico regional. Estudos Históri-
cos, vol. 8, n. 15, p. 57-94, 1995.

BEZERRA, Deisiane da Silva. A atuação do Padre Alfredo Dâmaso


e suas contribuições para o reconhecimento étnico dos Fulni-ô e
as mobilizações indígenas no Nordeste contemporâneo. Disserta-
ção (Mestrado em História). Campina Grande: Universidade Federal
de Campina Grande, Centro de Humanidades, 2018.

DANTAS, Beatriz G., SAMPAIO, José A. L., CARVALHO, Maria Rosário


G. de. Os povos indígenas no Nordeste brasileiro: um esboço his-
tórico. In: CUNHA, Manuela Carneiro (org.). História dos índios do
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

FERNANDES, Ulysses (org.). Fulkaxó: ser e viver Kariri-Xocó. São


Paulo: Edições SESC-SP, 2013.

HOLLER, Marcos Tadeu. Uma história de cantares de Sion na terra


dos Brasis: a música na atuação dos Jesuítas na América Portuguesa
(1549-1759). Tese (doutorado). Campinas: UNICAMP, 2006.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 47

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Edição


Fac-Símile comemorativa. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006.

MAGALHÃES, Couto de. O selvagem. São Paulo: Companhia Editora


Nacional, 1940.

MONTEIRO, John. Armas e armadilhas. História e resistência dos ín-


dios. In: NOVAES, Adauto (org.). A outra margem do Ocidente. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.

MONTEIRO, John. Tupis, Tapuias e Historiadores: Estudos de His-


tória Indígena e do Indigenismo. Tese (Livre-docência). Campinas:
UNICAMP, 2001.

OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros en-


saios. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.

PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: Povos indígenas e a co-


lonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. 1ª ed. São Paulo.
HUCITEC; EDUSP; FAPESP, 2002.

SANTOS, Fabricio Lyrio. Da catequese à civilização: Colonização e


povos indígenas na Bahia. Cruz das Almas: Editora da UFRB, 2014.

SILVA, Edson. Povos indígenas no Nordeste: contribuição à reflexão


histórica sobre o processo de emergência étnica. Mneme - revista
de humanidades, v. 4, n. 7, p. 39-46, fev./mar. 2003.

TELES, Tamires Santos. Arte e musicalidade indígena Kariri-Xocó e


Fulni-Ô na atuação pedagógica e social de uma liderança indíge-
na do Nordeste: relatório para a produção do documentário “Wa-
kay: uma semente, um mundo”. Dissertação (mestrado profissional).
Cachoeira: Programa de Pós-Graduação em História da África, da
Diáspora e dos Povos Indígenas, Universidade Federal do Recôncavo
da Bahia, 2019.
48 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

WITTMANN, Luisa Tombini. Flautas e Maracás: música nas aldeias


jesuíticas da América Portuguesa (séculos XVI e XVII). Tese (doutora-
do). Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universida-
de Estadual de Campinas, 2011.
Nação Grúncis nos contos de mestre Didi

Antônio Marcos dos Santos Cajé


Antônio Liberac Cardoso Simões Pires

Introdução
A nação Grúncis, é uma nação hoje localizada no país de Gana.
Este artigo surgiu no processo epistemológico de pesquisa do Progra-
ma de Mestrado Profissional em HISTÓRIA DA ÁFRICA, DA DIÁSPO-
RA E DOS POVOS INDÍGENAS – PPGMPH (Stricto sensu), através desta
pesquisa podemos compreender aspectos culturais da nação Grúncis,
elevando sua contribuição na formação da cultural afro-brasileira. A
pesquisa, de abordagem qualitativa e com vistas a uma melhor expli-
citação do referencial epistemológico, refletindo sobre os elementos
encontrados nos contos, tendo como referência comparativa a inter-
pretação em torno dos contos da nação Grúncis escrito por Deoscó-
redes Maximiliano dos Santos, como forma de memória da história da
ancestralidade e da cultura. Partindo destas considerações a pesqui-
sa busca diante da literatura, compreensões da historicidade do povo
Grúncis, tratando de elementos que engloba a diversidade cultural e a
diáspora transatlântica.
Mestre Didi conheceu a nação Grúncis por intermédio da conhe-
cida Iyá Obá Biyi, a Mãe Aninha, que mesmo sendo da nação Grúncis,
foi Iyalorixá de um terreiro de nação keto, o Ilê Axé Opô Afonjá. Fun-
dado em 1936, um ano depois ocorreu o II Congresso Afro-brasileiro
(1937) realizado em Salvador, o terreiro abriu suas portas para festejar
este congresso que fortalecia a luta pela resistência e pelo fortaleci-
mento da cultura e das religiões de matrizes africanas. O Ilê Axé Opô
Afonjá, liderado por Mãe Aninha, possuía uma participação para além
das fronteiras da religiosidade. Existia nessa grande mulher concepções
políticas de igualdade de raça e direitos civis do povo negro. Partin-
50 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

do do que Gramsci chama de intelectual orgânico, a Iyalorixá possuía


um conhecimento político capaz de articular o consenso entre alianças
políticas na sua época. A exemplo disso, podemos citar Santos (1994)
que diz: “No final de 1937, o escritor e etnográfico Edison Carneiro,
perseguindo pelo Estado Novo, veio refugiar-se no terreiro, sob o asi-
lo de Mãe Aninha”. Nesse período, Carneiro ficou sob os cuidados de
Senhora (Maria Bibiana dos Santos, mãe de Mestre Didi). Foi através
da grande Iyá Obá Biyi que Mestre Didi passou a conhecer a Nação
Grúncis e suas origens.
Deoscóredes Maximiliano dos Santos, o Mestre Didi, nasceu
em 02 de dezembro de 1917, filho carnal de Maria Bibiana do Espírito
Santo, a Mãe Senhora do Ilê Axé Opô Afonjá. Mestre Didi, após cinco
gerações, deu continuidade à linhagem dos Axipá, uma das sete famí-
lias fundadora da cidade de Ketu na Nigéria, descendente de Rei e de
grandes caçadores e desbravadores das nações de Oió e Ketu. A partir
do que viu e ouviu em toda sua vida, e através da força da oralidade,
Mestre Didi escreveu seus livros de contos sobre Orixás, sobre cultura
nagô. Além da escrita, foi também um grande artista plástico. Seu axé
estava em suas mãos; exímio artista construiu magníficas obras de arte
que retrata a religiosidade e a essência cultural da nação nagô.
Como sacerdote Alapini supremo, em 1980 fundou o Ilê Axipá, a
comunidade de terreiro que reúne eguns das linhagens dos Axipá. O
Ilê Axipá foi fundado por três famílias: ancestrais de Mestre de Didi, da
família de Theodoro Pimentel, através de Marcos e Arsênio, e respec-
tivamente, e os zeladores pelos descendentes de Miguel Sant’Ana, Ojé
Orepê. Ao longo de sua vida, aprofundou com dignidade e sabedoria a
intrínseca relação entre a ancestralidade e a cultura.
Mestre Didi é “Omo bibi”, que na língua ioruba significa “bem
nascido”. Sua mãe, Maria Bibiana do Espírito Santo, Mãe Senhora, foi
a sucessora de Eugênia Anna dos Santos, Mãe Aninha – Iyá Obá n’ilê
Opô Afonjá. Mestre Didi viveu sua infância entre a Ilha de Itaparica e
o Pelourinho na casa da “Avó” de consideração, Mãe Aninha. Na sua
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 51

adolescência um fato que marcou bastante as histórias de Mestre Didi


foi o surgimento do Pai Burokô, um toco que era utilizado para suas
brincadeiras e protetor do grupo de amigos que deram o nome de
Abê, indicado pela yalorixá.

Os contos Grúncis
É através dos contos de Mestre Didi que podemos conceber a
hermenêutica através das narrativas literárias, que preservam a memó-
ria deste povo que foi trazido, escravizado, mas concedeu para a Bahia
suas histórias carregadas de símbolos e signos que proporcionaram o
conhecimento desta nação.
No processo desumano da escravidão, a nação Grúncis, assim
como outras nações do continente africano, trouxe consigo as suas
histórias e culturas. É importante ressaltar que a palavra “nação”, muito
mais do que a palavra etnia serve para melhor descrever os grúncis ou
até outros povos, que foram trazidos para o Brasil. A ideia de nação, vai
muito além da percepção do senso comum de compreendê-la como
modelo de um povo, contido, isolado, pessoas que pensam em vias
restritas. O professor Juvenal Carvalho a respeito de nação diz:
A princípio a afirmação pode parecer estranha,
se não pensarmos a respeito do conceito de Na-
ção. O senso comum entende Nação como uma
espécie de essência, um jeito de ser intrínseco a
um determinado povo, produto de uma entidade
sobrenatural que se aloja nos seres e independe
das práticas humanas. Considero as nações como
construções históricas, diretamente condicionadas
às estratégias de formação e de consolidação das
estruturas de poder de um determinado Estado
(CARVALHO, 2016, p. 62).

A ideia de Nação pode ser compreendida como estruturalmen-


te social com baseamento político, na qual valores da ancestralidade
são elementos de identidade, que possibilita, promover as sabedorias
e os fazeres dos indivíduos como processo ativo e dinâmico, dentro da
nação. Podemos perceber que este conceito está ligado, claramente,
52 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

a concepção de nação como comunidade dotada de uma singulari-


dade que a identifica perante as demais. É importante informar, que
os africanos se olham não como um povo étnico, mas sim como uma
comunidade, com sentimento de povo, pois o “termo etnicidade só irá
realmente impor-se nas ciências sociais americanas a partir da década
de 1970, e irá conhecer deste então o sucesso crescente, comprovado
pela criação de uma revista especializada (Ethnicity, criada em 1974)”,
(POUTIGNAT e STREIF-FENART,1997).
Isso demonstra que o papel da etnicidade deve ser visto como
processo universal humano dentro das suas relações, não somente
como um mecanismo fechado de seus caracteres grupais, ou seja, os
costumes e os hábitos estão em constante movimento e hoje estes gru-
pos étnicos estão em contato com outras culturas, havendo assim, inter-
locuções múltiplas. A exemplo disso podemos citar Manuela Carneiro:
A construção da identidade étnica extrai assim, da
chamada tradição, elementos culturais que, sob a
aparência de serem idênticos a si mesmos, ocul-
tam o fato essencial de que, fora do todo em que
foram criados, seu sentido se alterou. Em outras
palavras, a etnicidade faz da tradição ideológi-
ca, ao fazer passar o outro pelo mesmo; e faz da
tradição um ao fazer mito na medida em que os
elementos culturais que tornaram “outros”, pelo
rearranjo e simplificação a que foram submetidos,
precisamente para se tornarem diacríticos, se en-
contram por isso mesmo sobrecarregados de sen-
tido (CUNHA, 1986, p. 101).

Nessa perspectiva, o que podemos pensar diante da ideia de et-


nicidade, é seu papel como propulsora da cultura, ou seja, temos a
compreensão de que a cultura diante das etnias é como movimen-
to, deixando de ser algo estático, fornecendo a qualquer grupo étnico
possiblidades, que já existem de firmar como motor da interação dos
demais que participam, ou daqueles que observam e estudam culturas
dos grupos étnicos ou da nação. Afirmando nossa ideia de cultura étni-
ca não ser estática, podemos transcrever a teoria de Poutignat e Streif-
-Fenart que diz: “Os grupos étnicos, afirma ele, formavam-se e transfor-
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 53

mavam-se sob o efeito das migrações, do comércio e da conquista, e as


identidades de grupo eram relativas e mutantes” (1997, p. 31).
Naturalmente, o que podemos observar é que a diáspora africa-
na transmitiu para o mundo variados objetos de suas raízes, fazendo
assim surgir novas variantes culturais, contribuindo para novos para-
digmas sociais e tradicionais. Como o artigo busca informar a história
da nação Grúncis, principalmente através dos contos de Mestre Didi,
para com isso compreendermos suas trajetórias diaspóricas, convém
reconhecer a importância dessa nação na construção da comunidade
religiosa do candomblé baiano, especificamente, do Ilê Axé Opô Afon-
já. Esse terreiro muito contribuiu com as ações políticas de combate a
intolerância religiosa e divulgação da cultura do povo negro. Dito isso,
trago um dos contos de Mestre Didi que além de informar a história,
transmite uma literatura fantástica:
Iyá Omin, Mãe –d’água (conto da terra de Grúncis)
Existia, numa cidade em residiam os africanos da
nação de Grúncis, uma senhora que tinha duas
filhas muito bonitas e por isso orgulhosas. Cria-
va também uma moça, desprovida dos encantos
das outras, porém de muito bom coração. Esta
era muito maltratada pela velha e por suas filhas.
Como dizem que o sofrimento purifica a alma, ela
era dotada de uma força sobrenatural, pois tudo o
que desejava conseguia. Bastava para isso concen-
trar-se e pedir a Olorun e ao Deus do lugar, e era
logo atendida.
Certa vez, houve uma grande seca nesta cidade,
o que todos atribuíam a castigos dos céus. O rei
da cidade decretou que daria parte da riqueza a
quem fizesse chover.
Apareceram vários candidatos, no entanto ne-
nhum foi bem sucedido. Sabendo o rei que, na
casa da referida senhora havia alguém com tal po-
der, mandou chamá-la com toda a família.
Ela foi levando somente as duas filhas. Chegando
lá, o rei mandou armar um coreto, a fim de que
as mesmas mostrassem seus poderes. Dizendo ser
filha de Odô, subiu a primeira uma linda moça ri-
camente trajada, e cantou:
54 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Da ki jéje omon Odô


Oru pa mi a ki é orô oru pa mi
Emi ta si kó
Oru pa omi a ki é orô oru pa mi
Ebi pa mi
Aru Baiyani aiye ajô aru Baiyani
(Com humildade estamos implorando a filha dos
Rios
O calor está me matando
Estou cantando
O calor está me matando
A fome está me matando
Baiyani mande chuva para todo mundo.)
(A filha de Odô é quem lhe salva Baiyani, da li-
nhagem de Xangô, e lhe pede para fazer chover.
O que este povo tem passado é o bastante para
aprenderem.)
Não obstante o resultado desejado, levou uma
grande vaia. Subiu então a segunda, que cantou
ainda com mais orgulho, o que não adiantou de
nada sendo ambas detidas e executadas por pen-
sar o rei que estavam a zombar dele. Sabendo por
um de seus servos que ainda faltavam alguém da
casa que não compareceu mandou o rei que fos-
sem buscar. Quando o servo lá chegou, encontrou
uma pobre moça entregue aos afazeres domésti-
cos e levou-a com trajes em que ela estava.
Chegando humildemente, fez um Iká (modo das
mulheres saudarem: deitam-se no chão, virando à
direita e à esquerda, cruzando os braços) saudan-
do o rei, todas as autoridades e todos em geral, e
começou a cantar com toda a naturalidade e sim-
plicidade: Da ki jejé omon Odô etc.
A certa altura, viu-se logo uma grande transfor-
mação na atmosfera. Quando estava no meio do
cântico, começou a chover e, até chegar ao fim,
toda a cidade estava embaixo do maior aguaceiro
visto naqueles tempos.
A moça desceu do coreto, sob aplausos, foi levada
e carregada ao palácio, onde recebeu do rei uma
grande parte da riqueza. Desta data em diante, fi-
cou sendo conhecido o seu grande poder e o seu
nome Iyá Omin (DIDI, 2003, p. 21).
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 55

O que há de revelador no conto da nação Grúncis de Mestre Didi,


são as construções sociais de classes e poder, da fé e dos mistérios, a
falha moral de três mulheres com posições sociais iguais e uma terceira
humilde, mas que carregava consigo um poder muito além do poder
social de uma sociedade monárquica. Vemos também nesse conto a
busca pela sobrevivência, neste caso, a necessidade da água para todos
os seres daquela comunidade. Absorvemos na narrativa de Mestre Didi
um processo sobre a ideia da ancestralidade, portadora constitutiva de
teias de conhecimento passado de geração em geração, que mantêm
os alicerces elementais da ética e da moral.
Esses alicerces compõem um legado de saberes da memória
coletiva, que expandem a cosmovisão e principalmente os símbolos
inseridos no contexto social. Nesse sentido, o conto, enquanto texto
literário, é formador e multiplicador da história oral, sustentando e via-
bilizando as tradições do povo negro, dentro das questões políticas e
dos valores que elas agregam; é fortalecedor das afirmativas do princí-
pio da linguagem para o território, valorizando assim o imaginário fan-
tástico, e o imaginário social com realidades simbólicas, sustentando
as narrativas hermenêuticas existenciais de uma comunidade, enrique-
cendo o processo histórico do povo negro.
A concepção composta acima é um mecanismo de saberes, se-
jam míticos, simbólicos e orais, que aproximam campos axiológicos de
variadas áreas: como filosofia, história, geografia, literatura, da imagé-
tica, etc. São possibilidades que fazem viver. Ancestralidade é o conhe-
cimento que educa, explica e conduz as ações dos homens e mulheres
em suas comunidades; são os mais antigos sendo valorizados e res-
peitados; é um mundo que se cria diante de novas epistemologias, é
o absorver dos símbolos como a água que sustenta a vida, que cultiva
plantas, mata a sede, renova esperanças.
A relação entre literatura e história pode ser compreendida de
variadas maneiras. No entanto, podemos destacar duas: em primeiro
lugar, a mais simples e necessária, que é o embasamento historicamen-
te do texto, diante disso podemos obter várias compreensões caracte-
56 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

rísticas seja morfológica, cultural e socialmente. Uma segunda maneira,


são os caminhos ficcionais de suas narrativas, assim como foi descrito
acima no conto de Mestre Didi.
Partindo do pressuposto de que a história é o conhecimento
do passado mediante fontes, sejam documentais, materiais, podemos
incluir as fontes orais, como os contos populares afro-brasileiros que
muito explicam e nos fazem refletir sobre as relações teóricas e meto-
dológicas entre literatura e história. Com isso, podemos penetrar no
conhecimento da nação Grúncis pela literatura e pesquisar traços, re-
lações sociais, bem como, podemos pela história apreender suas geo-
grafias, seus hábitos, suas políticas e sua economia.
Essa junção da literatura e da história, contribui para sabermos
mais sobre a nação Grúncis, Mestre Didi publicou cinco contos de pro-
cedência da Nação Grúncis dois contos no livro Contos negros da Bahia
(2003); O cachorro e boa menina; A vendedora de Acaçás que ficou rica;
e três no livro contos Nagô (1963), Omi Xum, Água de Oxun; Iya Omi
Okúm; Xangô Oba N’lia, Xangô, o grande Rei todos estes contos foram
narrados para Mestre Didi por Mãe Aninha, pela força da oralidade,
essa transmissão foram feitas para romper o silenciamento, fazendo
assim chegar aos ouvidos do coletivo, faz se necessário ler a citação de
Roger Chartier:
Para evitar qualquer tentação de uma leitura et-
nocêntrica, devemos nos lembrar quão numerosos
são os textos antigos que não pressupunham de
modo algum, como destinatário, o leitor solitário
e silencioso à procura de um sentido. Compostos
apara serem falados ou para serem lidos em voz
alta e compartilhados com um público ouvinte,
investidos de funções rituais, pensados como má-
quinas para produzir efeitos, os textos obedecem
à leis próprias à transmissão oral ou comunitária
(CHARTIER, 2002, p. 13).

Chartier no entanto deixa claro para o historiador se atear com


regras e com cuidado na transmissão da oralidade, como o ambiente,
à época, relatos sociais, no entanto podemos compreender que remete
a circunstancias diversas, importante ressaltar que essa análise, cabe
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 57

a qualquer, indivíduo que estude sobre a oralidade, esse é exercício é


relevante, pois melhor compreenderemos um povo rico socialmente
capaz de elevar sua história para além do continente africano, chegan-
do a Bahia e sendo conhecido através da religiosidade do candomblé,
pela oralidade conhecendo está nação. Em tempos atuais os Grúncis
encontram-se situado no país de Gana8.

Fugindo do padrão
Os Grúncis, fogem do padrão político e econômico dos olhares e
das teorias sociais do ocidente. Tendo um governo descentralizado, os
Grúncis formam uma sociedade muito ligada a realeza sagrada, como
vimos no conto acima. A sociedade Grúncis, possui uma autonomia
cultural, e economicamente é agrícola, autônoma, independente das
influências estatais de seus vizinhos (Os Mossi, Haussa).
Na Bahia, a nação Grúncis ficou conhecida também como gali-
nhas, muito por suas danças com braços para traz e o tórax envergado
para frente, essa descrição era muito usada pelo senso comum. No
entanto, nas palavras de Nina Rodrigues podemos descrever mais fac-
tualmente sobre os Grúncis: “Estes negros, que se revelaram sempre
intrépidos guerreiros, ocupam as margens do rio Galinha e o vale de
Man. Mas desta suposição veio dissuadir-me a declaração explicita por
parte de todos eles, de que a sua terra muito central demora a grande
distância do mar” (RODRIGUES, 2010).
Para melhor compreendermos essa Nação, que com sua cora-
gem enfrentou os portugueses e todo um comércio negreiro, mencio-
no esta breve citação de Nina Rodrigues
Os primeiros carregamentos de negros da sua
terra, sucedeu escaparem e fugirem alguns dos
8  - Gana foi um dos maiores impérios formados no continente africano que se
desenvolveu para fora das regiões litorâneas ou da África muçulmana. Sua área cor-
respondia às atuais regiões de Mali e da Mauritânia, fazendo divisa com o imenso
deserto do Saara. Desde já, percebemos a instigante história de um reino que pros-
perou mesmo não possuindo saídas para o mar e estando próximo a uma região
considerada economicamente inviável. Informação encontra-se no site: http://histo-
riadomundo.uol.com.br/idade-media/reino-de-gana.htm
58 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

negros novos que se precipitaram de elevada ja-


nela. Isto fez dizer ao comprador que não queria
daqueles negros que voavam como galinhas. No
entanto o que parece mais provável é que tenha
vindo esta denominação de ter sido do Rio das Ga-
linhas a procedência africana dada nos manifestos
aos navios negreiros que os conduziram à Bahia.
Já vimos que os portugueses tiveram em tempo
um forte ou presídio na foz do Rio das Galinhas. E
sabemos que da procedência dos navios negreiros
é que se ficaram chamando Minas os negros das
mais diferentes nações africanas que embarcaram
em São Jorge de Mina; assim como se chamaram
Moçambique os que eram conduzidos em navios
desta procedência (RODRIGUES, 2010, p. 119).

Os Grúncis muitas vezes foram confundidos como nagô, isso se


deduz por serem um dos últimos povos a serem traficados junto com
os iorubas no século XIX. Ainda segundo Nina Rodrigues,
E tudo leva a crer que os Grúnxis baianos sejam
os Guruncis, visitados e descritos pelo capitão
Binger. A grande semelhança do nome do país,
Grúnxi ou Grúncis e Gurunci; a vizinhança, e es-
treitas relações com os Haussás que ainda no
tempo da expedição Binger assolavam os terri-
tórios guruncis; os gilvases que, a partir das co-
missuras labiais, sulcam de cada lado as faces dos
nossos Grúnxis, idênticos aos dos Guruncis de
Lamá, observados por Binger; as relações com os
Ashantis que capturaram e venderam aos negrei-
ros os nossos Grúnxis; tudo justifica este modo
dever (RODRIGUES, 2010, p. 120).

A nação Grúncis, como povo livre na África, habitava suas regiões


com grande desenvoltura, mesmo com a falta de um Estado centraliza-
do (como conhecemos a ideia de estado ocidental), os Grúncis percor-
riam seus comércios, suas atividades para além de Gana. Vale ressaltar,
que esse povo, mesmo sem uma sociedade centralizada, o que não
corresponde à desorganização e falta de domínio político, possuíam
uma estrutura social diferente da compreensão dos colonizadores, que
violentamente entraram em seus sítios, destruindo e aniquilando ho-
mens e mulheres e sua cultura.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 59

Interessante como a citação abaixo do livro “História da África”


descreve os gurunsi
Os gurunsi e os bwaba que povoavam esta re-
gião desenvolveram, apesar da ausência de Es-
tado centralizado, uma personalidade muito for-
te. Os gurunsi, cujos principais centros eram Pô,
Leo, Sapouy e Rep, ultrapassaram o Gana atual.
Vivendo em famílias em cabanas de arquitetura
notável, eles eram ferozmente opostos a toda
forma de hierarquia política complexa. Frequen-
temente, o sacerdote da terra ou as sociedades
de máscara constituíam um elo entre famílias.
Rumo ao leste, entretanto, havia uma estrutura
mais organizada, dirigida por um chefe de can-
tão cercado por corte e por um conselheiro re-
ligioso preposto ao culto de seu kwara (símbolo
magico) (BETHWELL, 2010, p. 421).

Um aspecto essencial sobre a nação Grúncis é sua base social


muito bem organizada, baseada em linhagem. Sendo assim, uma es-
pécie de família alargada, grande e extensa, possuidora de uma pros-
pecção que além da matéria física compreende também o espiritual, o
encontro com os ancestrais. Dessa forma, a linhagem poderia retornar
à sua origem, sendo um princípio cíclico da vida, a força da ancestra-
lidade, neste caso, a concepção da ancestralidade. Sobre isso Eduardo
Oliveira escreve:
A cultura é o movimento da ancestralidade, e a
ancestralidade é como um tecido produzido no
tear africano: na trama do tear está o horizonte
do espaço; na urdidura do tecido está a verticali-
dade do tempo. Entrelaçando os fios do tempo e
do espaço cria-se o tecido do mundo que articula
a trama e a urdidura da existência. A ancestra-
lidade é um tempo difuso e um espaço diluído.
Evanescente, contém dobras. Labirintos desdo-
bram-se no seu interior e os corredores se abrem
para o grande vão da memória. A memória é pre-
cisamente os fios que compõem a estampa da
existência (OLIVEIRA, 2007, p.245).
A cultura ancestral da nação Grúncis está presente na história,
na literatura, na arte, bem como na arquitetura. Sobre a arquitetura
60 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Grúncis, na construção de suas casas a ideia de materialidade da casa é


uma extensão para além do abrigo, suas casas são ornamentadas, sim-
bolicamente, com desenhos e cores que indicam cada família com sua
posição social na comunidade e abrangendo para sua vida espiritual.
Nesse aspecto, a casa possui a compreensão da dilatação da ma-
téria corporal para a elaboração da matéria inorgânica, sendo assim, a
integração do corpo com sua morada. Podemos analisar que as “casas
decoradas”, demonstram variadas possibilidades de suas ações na comu-
nidade, para eles a casa habita o corpo. Outra curiosidade da arquitetura
dos Grúncis é que elas são semissubterrâneas, o que podemos inferir,
que a casa os protege e, ao mesmo tempo, os fazem parte da natureza,
proporcionando ligação intrínseca com a terra, e o seu fortalecimento.
Essas casas, decoradas pelas mulheres, criam uma beleza semi-
ótica repleta de expressão, com simbologias variadas, que traduzem
o elo do material à natureza e ao espiritual, retratando suas crenças e
aproximando os homens e as mulheres dos seus deuses e sua criação.
Com isso, nada é mais impressionante para o indivíduo isento
de preconcepções, do que a extraordinária diversidade dos povos da
África e suas culturas. É perante essa busca pela diversidade humana
que este artigo se propôs a pesquisar uma nação que foi brutalmente
afetada pelo colonialismo europeu, povos escravizados, tradições con-
sideradas como primitivas. Mas, o que aprendemos com essa nação
são visões sociais distintas das “nossas”, uma nação possuidora de arte,
de literatura e que a história retrata sejam pelas narrativas fantásticas
de Mestre Didi ou pelos escritos de Nina Rodrigues. É fácil ver como
a história pode tornar-nos, mais dignos através da cultura do outro e
perceber que etnicamente todos nós estamos ligados.

Considerações finais
Os Grúncis, como nação no continente africano eram um povo
culturalmente ativos, onde seus povos desenvolviam as artes deste o
ambiente físico corporal a ao ambiente material (suas casas), foi um
povo assim como os Bantos, Iorubas, Mossi, sofreram com o tráfico de
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 61

escravos, e “comércio” ganhou amplitude sobretudo com o impulso do


tráfico na costa da Guine. No entanto as mazelas, não acabaram com as
tradições culturais do povo Grúncis, suas famílias criaram e criam casas
de arquitetura notáveis, possuíam uma política não muito complexa,
eram divididos por uma hierarquia familiar que transitavam nas estru-
turas sociais e na espiritual, ou seja, o chefe da nação também eram
sacerdote religioso.
A história da nação Grúncis foi de inteira importância para a
construção religiosa no cenário da Bahia no século XX, pois foi através
da Mãe Aninha que um dos maiores candomblé da Bahia surgiu, com
força e resistência de luta, na vanguarda do povo negro, defendendo
direitos religiosos e sociais de homens e mulheres de cor. A referência
desta nação para a comunidade acadêmica, a comunidade religiosa é
inteiramente relevante, pois é uma nação com história e que transmitiu,
suas histórias populares, que acabaram sendo reescrita nos livros de
Mestre Didi, diante disto é fundamental, compreender está etnia ou
essa nação através dos contos fantástico de Mestres Didi.

Referências
CARVALHO, Juvenal. Reflexões sobre a África contemporânea.
Cruz das Almas: EDUFRB; Belo Horizonte: Fino Traço, 2016.

CHARTIER, Roger. Do palco à página. Rio de Janeiro: Editora casa da


palavra, 2002.

CUNHA, Manuela Carneiro. Antropologia do Brasil: mito, história,


etnicidade. São Paulo: editora brasiliense, 1986.

BETHWELL, Allan Ogot. História geral da África, V: África do século


XVIII. Brasília: UNESCO, 2010.

DIDI, Mestre. Contos crioulos da Bahia: Creole Tales of Bahia:


ÁkójopòÍtànÁtenudénuÍran Omo OdùduwàniIlè Bahia (Brasil). Salva-
dor: Núcleo Cultural Níger Okàn, 2004.
62 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

______. Contos negros da Bahia e contos de Nagô. Salvador: Corru-


pio, 2003.

______. História de um terreiro Nagô. São Paulo: Carthago & Forte,


1994.

______. Ancestralidade Africana no Brasil, Mestre Didi: 80 anos,


organizado por Juana Elbein dos Santos, SECNEB, Salvador, Bahia,
1997, CD-ROM - Ancestralidade Africana no Brasil.

OLIVEIRA, Eduardo David. Filosofia da ancestralidade: corpo de


mito na filosofia da educação brasileira. Curitiba: editora Gráfica
Popular, 2007

POUTIGNAT, Phillippe; STREIF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnici-


dade. São Paulo: Unesp, 1997.

RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil. Rio de Janei-


ro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Epistemolo-


gias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
Estudantes PALOP da UNILAB:
encantos e desencantos além mar

Leodinéia da Costa Reis


Emanoel Luís Roque Soares

Introdução
Esta pesquisa teve por objetivo analisar as experiências vividas
pelos/as estudantes dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa -
PALOP, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
-Brasileira - UNILAB, no período de formação acadêmica de 2014-2019.
O estudo pretende, numa síntese, revelar as aproximações, os choques,
os conflitos e as contradições presentes nas relações desses estudan-
tes com o contexto social e político brasileiro que, a despeito de uma
legislação antirracista, Lei nº 7.716/1989, é estruturado pelo racismo “a
brasileiro”, pela invisibilização da África e igualmente pelo apagamento
da herança africana nos espaços oficiais e imaginários nacional. O que
comprova que a Lei antirracista não combate o racismo, ela foi criada
para combater os comportamentos racistas. Só se combate racismo
com a educação! Por esta razão é que foram criadas as Leis Federais:
Lei nº 10. 639/20039 e mais tarde a Lei nº 11.645/200810.
Apesar dos programas de intercâmbios e acordos de Coopera-
ção Internacional Brasil-África, os estudantes negros e negras, espe-
cialmente os/as provenientes do continente Africano, têm enfrentado
desafios com o racismo, preconceito racial, machismo, sexismo, miso-
ginia e xenofobia ainda existentes na sociedade brasileira. Relatos dos
9  - Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases
da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade
da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências (BRASIL, 2018).
10  - Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639,
de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “His-
tória e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” (BRASIL, 2018).
64 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

estudantes, principalmente os cabo-verdianos, aos quais dedico o re-


corte deste trabalho, farão compreender, mais adiante, tais experiên-
cias vivenciadas pelos/as primeiros/as que chegaram à cidade de São
Francisco do Conde, localizada no estado da Bahia, em 2014. Tais situ-
ações dificultam sobremaneira a integração desse público no ambiente
onde passa a viver e no meio acadêmico, como lembra o Prof. Alfa
Oumar Diallo, em ocasião de um encontro na UNILAB para falar sobre
a Nova Lei de Imigração: “Quando se integra um estudante estrangeiro,
ele consegue estudar”. E ressalta: “O estrangeiro precisa sentir-se inte-
grado e acolhido” (DIALLO, 2018).
No que concerne ao espaço ou lugar onde foi realizada a pesqui-
sa, considerou-se também a cidade na qual a UNILAB está sediada na
Bahia, em São Francisco do Conde, no que tange à realidade brasileira,
o Recôncavo da Bahia e Salvador, a capital do estado, são as portas
ou os portais para as relações dialógicas de africanos com o contexto
negro-diaspórico, como quadro de vida, presente na UNILAB e Região.
No entanto, é importante evidenciar as experiências das/os estudan-
tes PALOP, ao chegarem a São Francisco do Conde e se depararem
com espaço geográfico, cultura, idioma11, identidade diferente, além
do desconhecimento das regras burocráticas e pedagógicas da univer-
sidade brasileira, assim como a adaptação e integração ao meio social
e acadêmico.
O trabalho ora apresentado realizou escutas sensíveis dos es-
tudantes PALOP da UNILAB, com ênfase aos cabo-verdianos, desde a
sua motivação para sair do seu território, até a chegada e instalação na
cidade de São Francisco do Conde, Bahia, bem como a inserção destes
na sociedade baiana. Tratou-se, portanto, de uma pesquisa de cunho
qualitativo, que pôde ser utilizada como técnica a observação partici-
pante, com base no etnométodo. Mergulhei no campo de pesquisa,
convivendo com alguns dos estudantes, a exemplo as noites que dormi

11  - Muitos estudantes relatam a dificuldade de compreender o português falado


pelos brasileiros.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 65

na casa da estudante, cabo-verdiana, Dairini e ela na minha casa, mo-


mentos que oportunizaram entrevistas não planejadas. Explica Roberto
Sidnei Macedo: “Comumente com uma estrutura aberta e flexível, a
entrevista pode começar numa situação de total imprevisibilidade, em
meio a uma observação ou em contatos fortuitos com participantes”
(MACEDO, 2004 p. 164).
Contudo, a pesquisa foi realizada, através de um estudo de caso,
no qual foram aplicados questionários semiestruturados, na coleta de
dados e entrevistas para a construção do material informativo, valori-
zando a fonte oral, considerando a multiplicidade cultural de cada es-
tudante. Para tanto, a ocasião do tirocínio realizado, dentro do campo
de pesquisa, com uma turma de Bacharelado em Humanidades – BHU
proporcionou-me observações de uma linguagem para além da orali-
dade. Nesse contexto baseio-me no autor Macedo: “Há toda uma gama
de gestos e expressões densas de conteúdos indexais importantes para
a compreensão das práticas cotidianas” (MACEDO, 20014 p. 164).
Ao realizar uma escuta com alguns jovens, estudantes, oriundas/
os dos PALOP, revelaram-se percepções diferentes de estigmas e es-
tereótipos nas relações com homens brasileiros e mulheres brasilei-
ras. Através dos depoimentos orais, foi possível perceber as diversas
reações e relações, de um/a guineense, angolano/a, moçambicano/a,
cabo-verdiano/a, são-tomense, considerando também a diversidade
cultural de cada país e suas tradições, para entender como cada estu-
dante lida com as experiências encontradas, a partir da especificidade
de cada um/uma para não caímos, como de costume, na generalização.
Como ressalta o mestre da tradição oral africana, Amadou Hampâté
Bâ, em seu livro O menino Fula: “Quando se fala da “tradição africa-
na”, nunca se deve generalizar. Não há uma África, não há um homem
africano, não há uma tradição africana válida para todas as regiões e
todas as etnias [...]” (BÂ, 2003). Contudo, o historiador, antropólogo,
físico e político senegalês Cheikh Anta Diop ao estudar as origens da
raça humana e cultura africana pré-colonial, defendeu que havia uma
66 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

continuidade cultural partilhada entre os povos africanos que era mais


importante do que o desenvolvimento variado de diferentes grupos
étnicos demonstrado pelas diferenças entre línguas e culturas ao longo
do tempo. O pensamento diopiano, foi a base para o pensamento afro-
cêntrico12, liderado por Molefi Kete Asante e Ama Mazama.
As principais referências teóricas utilizadas para embasar este
trabalho foram do sociólogo argelino Abdelmalek Sayad – traz a dis-
tinção de “estrangeiro” e “imigrante”, a partir da relação de dominação
que foi estabelecida entre sistemas socioeconômicos diferentes: “Se
o estrangeiro é a definição jurídica de um estatuto, imigrante é antes
de tudo uma condição social” (SAYAD, 1998, p. 243); do antropólogo
congolês professor Dr. Kabengele Munanga – para tratar do conceito
de cooperação, a história da política externa brasileira, relação Brasil-
-África, ruptura e aproximação, o conceito de cooperação sul-sul, coo-
peração internacional Brasil-África e principalmente as relações raciais
no Brasil; o escritor malinês Amadou Hampâté Bâ, considerado mestre
da tradição oral africana – para falar de memória e história oral, um
dos métodos utilizados na pesquisa; a escritora moçambicana Paulina
Chiziane – que fala como lidar com a emissão de mensagens a partir da
oralidade; a professora e escritora burkinabê Sobonfu Somé – que en-
sina formas de superar a dor, a partir da manutenção da tradição afri-
cana, aplicável às situações dolorosas vivenciadas pelos/as estudantes
africanos/as, no Brasil; o historiador, antropólogo, físico e político se-
negalês Cheikh Anta Diop que tentou mostrar através das suas obras,
entre elas, The African Origino of Civilization, que as distinções entre
as pessoas pode estar ligada às convicções culturais; o sociólogo con-
golês Bas’Ilele Malomalo que fala sobre os entraves na cooperação
internacional, na UNILAB, e o racismo institucional.

12  - O conceito de afrocentricidade foi cunhado e elaborado por Molefi Kete Asante
(1980) e desenvolvido como paradigma de trabalho acadêmico no final do século XX
(NASCIMENTO, 2009). “[...] Comecemos com a visão de que a afrocentricidade é um
tipo de pensamento, prática e perspectiva que percebe os africanos como sujeitos e
agentes de fenômenos atuantes sobre a sua própria imagem cultura e de acordo com
seus próprios interesses humanos (ASANTE).
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 67

Relatos de experiências
Os relatos aqui apresentados serão, a rigor, um instrumento para
a construção de uma teoria, a respeito do problema que é dado pelo
racismo a brasileira que se apresenta como uma profunda rejeição que
está internalizada no imaginário do consciente brasileiro, sobre a África
e os africanos, rejeição que perpassa pela nossa própria condição de
negros e negras. Esses relatos são reflexos de toda problemática viven-
ciada pelos/as africanos/as e ao mesmo tempo, é uma demonstração
de como se define e funciona o racismo no Brasil, que é a rejeição por
negros e negras e a rejeição aos valores imateriais, em permitir um
apagamento da África e de uma herança civilizatória, filosófica, cultural,
que revela a África que há em nós.
Estudantes PALOP revelaram experiências desafiadoras para po-
der realizar o sonho de fazer a graduação no Brasil. A exemplo, a falta
de preparação da comunidade de São Francisco do Conde para receber
os/as estudantes PALOP.
[...] rumores de que os africanos fediam, essas coi-
sas, cheiram a catinga, uma coisa tipo uma gene-
ralização... e a prefeitura chegou a fazer um ato,
que eu não vi com bons olhos né? Agente não es-
tava percebendo o que significava aquilo, mas só
foi perceber depois. A prefeitura comprou um kit
higiênico e deu para agente, para todos os alunos.
Agente aceito, porque a gente não sabia de nada,
só depois a gente ficou sabendo porque estava ro-
lando rumores no whatsapp: que agente fedia, que
a gente não tomava banho, que não escovamos
os dentes [...] fizemos uma reunião, mas tivemos
nenhuma atitude drástica em relação a prefeitura
e nem a comunidade. Sempre tentamos por meio
de diálogo...conversar com o pessoal, explicar de
onde viemos, quem somos e o que que queremos,
né? E aos poucos acho que esses estereótipos fo-
ram sendo desconstruídos, mas teve um proces-
so muito lento e tivemos que ter muita paciência
mesmo [...] (Ent. 3, 2019).

As estudantes africanas, além de enfrentarem as mesmas dificul-


dades dos estudantes africanos do sexo masculino, que são oriundas
68 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

de um forte choque cultural e identitário ao se deparar com o racis-


mo, preconceito, discriminação racial e xenofobia, também enfrentam
o machismo e sexismo existente na sociedade brasileira, o que dificulta,
sobremaneira, a adaptação e permanência simbólica de tais jovens no
cotidiano de uma pequena cidade do Recôncavo da Bahia, onde está
instalado o Campus do Malês, mais recente da UNILAB. O protago-
nismo feminino e as iniciativas feministas vêm tomando força nas dis-
cussões e ações sociais, sobretudo no que se refere à violência contra
as mulheres e a representação política, o que favorece e incentiva as
mulheres africanas quando chegam ao Brasil.
Amadu Hampâté Bâ, em seu livro intitulado Amkoullel, O Menino
Fula, atribui relevante importância a mulher, que é valorizada em vá-
rios sentidos, da família a política, liberta da visão equivocada de mera
reprodutora. Visão esta que ainda se faz presente na mentalidade dos
homens brasileiros, baianos, que reproduz quando se confronta com
as estudantes PALOP da UNILAB, gerando a necessidade de se criar um
Coletivo de Mulheres Africanas - CMA, para se protegerem e realiza-
rem atividades que as possibilitem levar conhecimento sobre as suas
culturas de origem para a sociedade local, através de intervenções em
escolas, trocas com grupos de mulheres da região, seminários e encon-
tros dentro da própria universidade. Antes do surgimento do CMA, na
UNILAB da Bahia, Campus do Malês, houve a primeira fase da criação
em 16 de outubro de 2015, para formar um grupo de mulheres africa-
nas e brasileiras negras da diáspora, a partir do seguinte pensamento,
A gente pensava assim: os problemas que a gen-
te passa, as meninas brasileiras negras passam, a
gente tem as nossas especificidades, tipo a gente
sofre como sendo mulheres e como sendo mulhe-
res negras e as mulheres negras aqui na diáspora
sofrem a mesma coisa. Então, vai algumas diferen-
ças por que a gente vem de várias lutas, da nos-
sa tradição, desenvolvimento, sistema colonial... e
tem outros contextos que são específicos do fe-
minismo africano, agente tem vários pontos em
comuns, então vamos fazer um espaço onde tem
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 69

mulheres negras brasileiras e mulheres africanas,


a gente vai se dialogando, vai se falando e vamos
fazendo uma espécie de troca de experiência [...]
(Ent 1. 2018).

Entretanto, elas perceberam que existiam muitas formas diferen-


tes de pensar entre as mulheres negras da diáspora e as mulheres afri-
canas, também a necessidade de acolhimento das mulheres africanas
que engravidam após chegar ao Brasil, outras que deixam seus filhos
em seus países para vir estudar e poder oferecer melhores condições
para eles, ao retornarem. Assim surge o Coletivo de Mulheres Africanas,
em 2016 para discutir, entre outras coisas, o conceito de feminismo na
perspectiva da mulher africanas dos PALOP, devido à dificuldade de
entendimento entre brasileiras e africanas sobre vivências de gênero,
que perpassa inclusive a discussão do feminismo.
Algumas estudantes da UNILAB, do Campus do Malês, relataram
ofensivos tratamentos por parte dos homens da cidade, ao dizerem:
[...] O que eu sofro mais dos homens daqui, dessa
cidade, é assédio. Eu morava na Baixa Fria, perto
da faculdade, quando eu saia todos os dias para ir
para faculdade tinha grupos de homens que fica-
vam sempre no mesmo local, quando eu passava
começavam comentários de assedio: “nossa que
africana gostosa, eu queria provar para saber se é
igual a mulher brasileira...eu queria casar com você,
eu vou lá na África para casar com uma mulher
africana”. Então são esses tipos de comentários
que não me deixam a vontade, entendeu? Quando
você for perguntar vão dizer é um elogio, mas para
mim não é um elogio. Vocês têm que entender que
a realidade daqui do Brasil e lá é diferente...não
mas tipo, ele gostou de você... quando você gosta
de uma menina você chama ela de gostosa? Você
não pode me chamar de gostosa, você nunca foi
para cama comigo, só quem pode me chamar de
gostosa é a pessoa que já foi para cama comigo,
ele sim sabe se eu sou gostosa ou não, entendeu?
Então para mim chamar alguém de gostosa reflete
isso, entendeu? [...] (Ent. 2, 2018).

Entre as atividades promovidas pelo CMA, são priorizados os en-


contros entre elas, para se fortalecerem e se apoiarem, mantendo tra-
70 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

dições, como exemplo, a tradição trazida pela escritora, moçambicana,


Paulina Chiziane: “Venho de uma tradição africana bantu, que tem uma
forma de lidar com a emissão de mensagens a partir da oralidade”, afir-
ma ela, cuja primeira escola de arte foram as rodas de fogueira em sua
casa (CHIZIANE, 2017). Também a escritora Sobonfu Somé, cujo nome já
significa “a mantenedora do ritual”, reforça a importância de uma cura
compartilhada, ao dizer: “Chorar em comunidade oferece algo que não
podemos conseguir quando choramos sozinhas. Através da validação,
reconhecimentos e testemunho, o lamento comum nos permite experi-
mentar um nível mais profundo de cura e libertação” (SOMÉ, 2012).
Todavia, a situação vivenciada pelo preto e pela preta estrangeira
no Brasil decorre da deformação da mentalidade da sociedade brasilei-
ra, empenhada em manter o negro e os afrodescendentes em posições
de inferioridade, tendo em vista que o ensino nas instituições brasileiras
é acentuadamente eurocêntrico e marcado pelo desconhecimento so-
bre a África. Observa-se que os acordos de cooperação Brasil-África e a
integração dos pretos africanos em São Francisco do Conde, na Bahia,
devem ir além de uma bolsa de estudo e da garantia de vagas nas uni-
versidades brasileiras, por não se tratar apenas de questões econômicas
e políticas, mas, sobretudo, de uma análise sócio antropológica.
Para falar sobre a UNILAB, como instrumento de cooperação in-
ternacional Brasil-África, me apoiei no prof. Kabengele Munanga, para
explicar sobre o princípio de cooperação solidária, baseado no conhe-
cimento mútuo entre brasileiros e africanos.
Como estabelecer relações diplomáticas e de cooperação com
países que o Brasil não conhece ou mal conhece através da imprensa
ocidental? Daí a necessidade de se desenvolverem no Brasil os estudos
sobre a África, principalmente a África subsaariana, de onde foram de-
portados os antepassados dos afrodescendentes. Munanga ressalta que
é a partir do século XXI, com as reivindicações das entidades e organiza-
ções do Movimento Negro, que o Brasil promulga a Lei nº 10.639/2003 e
mais tarde a Lei nº 11.645/2008, que torna obrigatório o ensino da Histó-
ria e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nos ensinos fundamental e médio.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 71

A UNILAB no Recôncavo

A Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-


-Brasileira - UNILAB é fruto de um programa de cooperação inter-
nacional acadêmica, entre o Brasil e os países CPLP, parte da política
externa brasileira, durante o governo de Luís Inácio Lula da Silva. Em
2010, foi inaugurada a primeira sede, na cidade de Redenção, no Cea-
rá; em 2014, o Campus dos Malês, em São Francisco do Conde, cidade
localizada no histórico Recôncavo da Bahia. O Recôncavo é a região
geográfica em formato de um arco que contorna a Baia de Todos os
Santos, onde se constituiu um sistema geo-histórico. Hoje, constituída
por uma população pluriétnica e pluricultural, a região é rica também
em diversidade de recursos naturais. Historicamente, o Recôncavo é a
soma das regiões da cana, fumo, mandioca, pequena pecuária leiteira
e de produção de lenha, em torno da Baía de Todos os Santos e muito
dependente de Salvador (SANTANA, 2011).
A universidade é uma autarquia vinculada ao Ministério da Edu-
cação da República Federativa do Brasil. No Campus dos Malês são
oferecidos os cursos de graduação presencial: Bacharelado em Hu-
manidades – BHU; Letras – Língua Portuguesa; Bacharelado em Rela-
ções Internacionais; Licenciatura em Ciências Sociais; Licenciatura em
História; Licenciatura em Pedagogia; curso Graduação (Modalidade a
Distância): Administração Pública (Bacharelado); Cursos de Pós-Gradu-
ação Lato Sensu Especialização (Modalidade a Distância) Gestão Pú-
blica; Gestão Pública Municipal; Gestão em Saúde; Especialização em
Gestão de Recursos Hídricos, Ambientais e Energéticos, Especialização
em Saúde da Família (UNILAB, 2019).

Cabo Verde
A partir de um olhar in loco em Cabo Verde, é possível notar se-
melhanças e diferenças entre o Brasil e este país. Esta relação entre os
72 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

dois países reflete na forma como os/as estudantes cabo-verdianos/


as da UNILAB, lidam com as experiências encontradas na cidade, onde
está localizado o Campus dos Malês.
Após conquistar a independência os cabo-verdianos são impe-
lidos a aderir à cultura dominante, como requisito básico para a sua
inclusão sociopolítica, o que chamamos de assimilacionismo, contri-
buindo para a discriminação e incentivando a autonegação. Como ex-
plica Gabriel, o comportamento assimilacionista tende a posicionar-se
entre aquilo que conhece, e de que se lhe impõe livrar, e aquilo com
que se lhe acena como alternativa; ou seja, entre o seu, mas subjugado,
mundo e um mundo alheio, mas valorado e promissor.
O conceito de colonialidade desenvolvido por Aníbal Quijano,
explica o que vai além das particularidades do colonialismo histórico e
que não desaparece com a independência ou descolonização. Contu-
do, o sociólogo cabo-verdiano Gabriel Fernandes (2006, p. 33) explica
que o pertencimento da nação se presume imune a quaisquer oscila-
ções conjunturais, neles a nação simboliza tanto uma aquisição quan-
to uma negação, já que o que se lhes reconhece, enquanto supostos
membros da nação, é-lhes retirado enquanto colonizados.
Iva Cabral analisa este fato ao dizer,
Cabo Verde é uma sociedade escravocrata — ser-
viu de entreposto de escravos a partir do século
XV — “que nasce racista”, diz Iva Cabral. E o in-
consciente de uma sociedade escravocrata “é
muito pesado”; ainda está presente o “problema
de sermos africanos ou não”, justamente porque
“quando se fala em África fala-se em escravidão e
é todo o peso da escravidão que ainda existe no
nosso subconsciente” (Acervo Público, 2016).

O sociólogo Gabriel Fernandes ao analisar a busca dos ca-


bo-verdiano pela sua nação, salienta: “O colonizado desconfia do pas-
sado de quem lhe estende a mão; o colonizador confia no seu passado
para estender a mão e não permitir que se lhe tome o braço” (FERNAN-
DES, 2006, p. 51).
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 73

Resultados da pesquisa
A pesquisa levantou alguns pontos de fragilidade e de fortaleza
com relação ao programa de cooperação internacional acadêmico, por
meio da UNILAB. Com relação as fragilidades, foi possível notar: a falta
de um professor ou técnico de nacionalidade de cada país, parceiro,
na comissão de avaliação do processo seletivo; o sistema de formulá-
rio eletrônico não atendia a linguagem de um sistema educacional de
alguns países. A falta de docentes e TEAs africanos/as inibe a dinâmica
de construção de uma universidade de integração em termos efetivos
(MALOMALO, 2018). Vale ressaltar também fraca ação diplomática com
as Embaixadas e órgãos governamentais nestes países, bem como a
falta de relações também com as organizações não governamentais -
ONG, instaladas principalmente nos interiores de cada país, através da
própria representação brasileira que normalmente está localizada na ca-
pital, para facilitar o acesso dos estudantes das regiões mais afastadas.
Outro ponto evidenciado foi no quesito das informações obtidas
pelos/as candidatos/as. Para tanto foram ouvidos relatos das experi-
ências dos/as estudantes PALOP – desde a candidatura até as suas ins-
talações na cidade de São Francisco do Conde, através das conversas
fortuitas, com estudantes guineenses, angolanos, moçambicano, são-
-tomense, bem como as entrevistas sistematizadas com o público alvo
da pesquisa que foram os estudantes cabo-verdianos. As minhas entre-
vistas também se estenderam foram o corpo técnicos da universidade,
professores e para a Pró-Reitoria de Relações Institucionais, na pessoa
do Pró-Reitor Prof. Dr. Max César de Araújo, para saber sobre a redução
de estudantes africanos selecionados nos últimos anos (2018 – 2019).
A maioria desses estudantes toma conhecimento da UNILAB por
meio de parentes e/ou amigos/as que já estudam nessa universidade
e que os informam do período de abertura do Edital para o processo
seletivo. Eles têm em média um mês para fazer a inscrição online, ane-
xando os documentos solicitados, conforme Edital, histórico escolar,
entre outros documentos requisitados.
74 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Durante a pesquisa foram evidenciados entraves quanto ao pre-


enchimento no sistema eletrônico para efetivar a inscrição, que é a pri-
meira fase de avaliação dos estudantes. Por exemplo, os cabo-verdia-
nos têm como critério de avaliação de desempenho: Insuficiente (INS):
0 – 9,5; Suficiente (SUF): 9,5 – 14,99; Bom: 15 – 16,99; Muito Bom: 17
– 20. Contudo, este problema já foi solucionado para a seleção de 2020.

Considerações finais

Nessa perspectiva, o produto escolhido para a conclusão do


mestrado, o livro informativo: “Modi Ki é Studa na Brazil?”, que significa
em português “Como é estudar no Brasil?”, voltado para estudantes do
Ensino Médio trará informações prévias, tanto na língua Krioula quanto
em Português. Esse material servirá para todos os PALOP, porém o ob-
jetivo neste momento é disponibilizá-lo nas escolas de Ensino Médio
em Cabo Verde, bem como na Embaixada Brasileira e Centro Cultural
Brasil - Cabo Verde. Para tanto, será necessário contar com o apoio
financeiro do governo local, através do Ministério de Educação para a
distribuição do material impresso. A pretensão é também de criar um
documentário a partir de todas as falas escutadas e registradas duran-
tes os 15 dias em Cabo Verde.
A escolha em delimitar o material para os cabo-verdianos foi
movida pela oportunidade de ter conhecido, até o momento, somente
o país Cabo Verde, entre os PALOP e haver entrevistado as famílias de
alguns dos sujeitos da pesquisa, os estudantes cabo-verdianos da UNI-
LAB. Contudo, trata-se de um “projeto piloto”, para que seja distribuído
nas escolas de Ensino Médio de todos os membros PALOP. Mas que
inicialmente poderá ir diretamente para as escolas, principalmente das
zonas rurais e interiores das ilhas de Cabo Verde.
Dessa forma, a construção de um material informativo para con-
tribuir com os instrumentos que facilitem o acolhimento e a integração
dos estudantes na universidade e na sociedade brasileira possibilitará
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 75

informações prévias, para os/as estudantes que ainda estão em seus


países de origem e pretendem vir ao Brasil para estudar. O produto con-
tém roteiro para regularização da documentação, relatos de experiên-
cias. A ferramenta teve a contribuições dos/as estudantes e candidatos,
antes da sua edição final e distribuição, inicialmente em Cabo Verde. O
livro traz relatos de estudantes do período de 2014 a 2019, contendo
informações das experiências vividas pelos primeiros estudantes PALOP
da UNILAB/Bahia. O informativo traz reflexões dos/as estudantes dos
países lusófonos africanos/as, como meio de informação e orientação
antes e durante a vivência desses/as em São Francisco do Conde, na
Bahia. Esse material oriundo de uma pesquisa tem a função de ser co-
laborativo e de acolhimento, contendo as informações necessárias para
apoiar os estudantes, antes mesmo de suas candidaturas à seleção para
obtenção da vaga em um dos cursos oferecidos pela UNILAB.

Referências

BÂ, Amadou Hampâté. Amkoullel, o Menino Fula. São Paulo: Palas


Athena: Casa das Áfricas, 2013.

ENTREVISTA 1, 27 anos, da cidade Bissau, Guiné-Bissau. Arquivo mp3


(52 min). Entrevista concedida a Leodinéia C. Reis, no campus dos
Malês da UNILAB, São Francisco do Conde/BA, em 2018.

ENTREVISTA 2, 27 anos, da cidade Bissau, Guiné-Bissau. Arquivo mp3


(41 min). Entrevista concedida a Leodinéia C. Reis, no campus dos
Malês da UNILAB, São Francisco do Conde/BA, em 2018.

ENTREVISTA 3, 25 anos, da Ilha de Santiago – Cabo Verde. Arquivo


mp3 (01h45min31) Entrevista concedida a Leodinéia C. Reis, no cam-
pus dos Malês da UNILAB. São Francisco do Conde/BA, 08/02/2019.

MALOMALO. Bas’Ilele. Desafios de gestão multicultural numa uni-


versidade internacional: caso UNILAB. Revista Tensões Mundiais,
76 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Fortaleza, v. 14 n. 26 p. 75 -100, 2018. Disponível em: https://revis-


tas.uece.br/index.php/tensoesmundiais/article/view/886/774. Acesso
em 04/02/2020.

MUNANGA, Kabengele. Relações África-Brasil: O que seria? Revis-


ta do PPGCS – UFRB – Novos Olhares Sociais | Vol.1 - n.1 – 2018, p.
6-25.

NASCIMENTO, Elisa Larkin (org.). Afrocentricidade: uma abordagem


epistemológica inovadora. São Paulo, Selo Negro, 2009. Disponível
em: https://afrocentricidade.files.wordpress.com/2016/04/afrocen-
tricidade-uma-abordagem-epistemolc3b3gica-inovadora-sankofa-4.
pdf. Acesso em 30/05/2020.

SANSONE, Lívio. Desigualdades duráveis, relações raciais e mo-


dernidade no Recôncavo: o caso de São Francisco do Conde. Revis-
ta USP, São Paulo, n. 68, p. 234-251, dezembro/fevereiro 2005-2006.
Disponível em: <file:///C:/Users/leodi/Downloads/13495-Texto%20
do%20artigo-16469-1-10-20120517.pdf>. Acesso em: 31/05/2020.
PARTE II
QUILOMBOS
Histórias da matinha dos pretos:
do quilombo ao cruzeiro

Railma dos Santos Souza


Rosy de Oliveira

Introdução
O presente texto é composto a partir de aspectos abordados na
dissertação de mestrado intitulada: Memórias e História Quilombola:
experiência negra em Matinha dos Pretos e Candeal, Feira de Santana/
BA (SOUZA, 2016). Com base nos resultados dos dados abordados nos
capítulos dois e três da referida dissertação, o principal objetivo deste
texto é apresentar os aspectos da alteridade da memória da Comuni-
dade local. O texto aborda o processo de formação territorial da Co-
munidade Remanescente de Quilombos de Matinha dos Pretos, sede
do distrito13 de Matinha, pertencente ao município de Feira de Santana,
localizado no agreste da Bahia, a cerca de 116 km de Salvador. Trata-se
da análise da história do território e das territorialidades dessa Comu-
nidade certificada pela Fundação Cultural Palmares, enquanto comuni-
dade remanescente de quilombos, no ano de 2014.14
13  - Tratamos aqui da concepção de distrito utilizada no Brasil, enquanto unidade
administrativa pertencente um município, a este completamente subordinada, sem
autonomia polwítica. Os distritos de Feira de Santana, são as divisões estabelecidas
para as áreas rurais do município, que possui oito distritos. Para uma discussão sobre o
que é um distrito e os elementos que costumam caracteriza-lo no caso do Brasil, com
base na dualidade urbano x rural ver: SILVA, Márcia Alves Soares da. Distritos Munici-
pais: Entre a modernidade da cidade e a tradição do campo. Anais do XV Seminário
Estadual de Estudos Territoriais. II Jornada de Pesquisadores sobre a questão agrária
no Paraná. Ponta Grossa, Paraná, 2014. Uma análise sobre o processo de consolidação
da Matinha enquanto distrito foi realizado na dissertação, no capítulo 1, Matinha: um
distrito quilombola, SOUZA, Railma dos Santos. Memória e História Quilombola: ex-
periência negra em Matinha dos Pretos e Candeal (Feira de Santana/BA). Dissertação
(Mestrado em História), UFRB, Cachoeira, 2016, p. 23-53.
14  - Este texto corresponde a trechos revisados dos capítulos 2, de título A Fazenda Can-
deal e o Quilombo Matinha dos Pretos e 3, titulado de Organização Social e Luta por Direitos
na Matinha dos Pretos e Candeal, da dissertação de mestrado. (SOUZA, 2016, p. 65-88).
80 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

A memória local relaciona a origem da comunidade de Matinha


dos Pretos à fazenda Candeal, território escravista do século XIX. São
comuns, nas narrativas de moradores/as, os relatos sobre as formas
de resistência cotidiana de escravizados/as da fazenda Candeal.15 Tais
como colocar cobras dentro das botas; sob colchoes e cobertas de seus
senhores; ou fugindo e se escondendo em uma área de mata cerrada,
conforme a matinha. Isso explica a provável origem do nome da Mati-
nha dos Pretos (NASCIMENTO, 1997, p.87). Assim, conforme a memó-
ria coletiva local, foi formado um quilombo na localidade, denominado
à época de “matinha dos pretos” por estar localizado em uma área de
mata densa, porém pequena. Desse modo, segundo a tradição oral da
região, a formação da comunidade de Matinha dos Pretos remonta ao
período da escravidão e à sua resistência.
Entre os marcos da memória da comunidade, destaca-se o finca-
mento de um cruzeiro e a construção de uma capela em homenagem
à São Roque, no contexto da epidemia da peste bubônica, ocorrida na
região de Feira de Santana no ano de 1922. Conforme afirma a memó-
ria coletiva local, Dona Antônia da Matinha, como é identificada a mo-
radora, fez uma promessa ao santo, se a doença não chegasse à locali-
dade de Matinha mandaria fincar um cruzeiro em homenagem a este.
Assim ela o fez, pois segundo moradores/as da região, a doença que
fez muitas vítimas fatais na localidade vizinha, conhecida por Jacú, não
chegou a localidade da Matinha, sendo assim a promessa foi cumprida.
O cruzeiro, em homenagem a São Roque, foi fincado em uma porção
de terras doadas pela moradora juntamente com outro morador da re-
gião, conhecido por Macário. No local também foi erguida uma capela,
em homenagem a São Roque.
A seguir analisaremos a importância do quilombo e do fincamen-
to do cruzeiro para a formação da atual Comunidade Quilombola de

15  - A noção de formas cotidianas de resistência aqui apresentada, está presente


em SCOTT, James C., Formas Cotidianas de Resistência Camponesa. Tradução: Marilda
A. de Menezes e Lemuel Guerra. In: Raízes, Campina Grande, vol. 21, nº 01, p. 10-31,
jan. /jun. 2002.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 81

Matinha dos Pretos. A importância desse quilombo e seus marcadores


bem como o fincamento do cruzeiro constituem a estrutura da memó-
ria da formação atual Comunidade Quilombola de Matinha dos Pretos.
Conforme a análise dos dados levantados nas entrevistas realizadas
com moradores/as da região, documentação jurídica e eclesiástica so-
bre a fazenda Candeal e fontes impressas – Jornal Folha do Norte. Nes-
se importante periódico do município de Feira de Santana, na primeira
metade do século XX, encontra-se dados e debate sobre a epidemia da
peste bubônica e sua abrangência na região, em 1922.

Resistência na fazenda Candeal


Embora ainda não tenhamos encontrado documentos oficiais
do século XIX que tratem da existência de quilombos na região,16 não
podemos desconsiderar esta hipótese, afinal a memória local sobre o
quilombo Matinha dos Pretos é muito forte e a fuga, ainda que tempo-
rária, era uma das formas de resistência à escravidão mais emblemáti-
cas naquele contexto.
A relação entre memória e história tem sido objeto de análise de
muitos historiadores contemporâneos. Como é o caso de Jacques Le
Goff na sua clássica obra História e Memória, na qual o autor define me-
mória da seguinte forma: “A memória, como propriedade de conservar
certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de
funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões
ou informações passadas ou que ele representa como passadas” (LE
GOFF, 2013, p. 387). O autor afirma ainda que a memória é construto
essencial da identidade, individual ou coletiva, dos indivíduos e socie-
dades atuais. Ressalta ainda o papel da mesma enquanto um objeto de
poder, enfatizando que “são as sociedades cuja memória social é, so-
bretudo, oral, ou que estão em vias de constituir uma memória coletiva
escrita, aquelas que melhor permitem compreender esta luta pela do-
16  - Atualmente desenvolvo pesquisa de doutorado, no programa de pós graduação
em História, da UFBA, sobre as experiências de escravidão e expectativas de liberdade
na fazenda Candeal, na segunda metade do século XIX.
82 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

minação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória”


(LE GOFF, 2013, p. 435).
O relato, abaixo transcrito, da Sr. ª Maria das Virgens, conhecida
por Dona Ninha, moradora da comunidade de Matinha dos Pretos, so-
bre a importância do nome Matinha dos Pretos e sobre a história do
possível quilombo de Matinha dos Pretos é um demonstrativo do que
afirma Le Goff sobre a busca pela construção de uma memória coletiva
nas sociedades predominantemente orais.
A História da Matinha, até onde eu sei... até o por-
quê mesmo do nome Matinha.... Eu não sei se você
sabe, mas... Candeal. Aí é a História da Fazenda
Candeal. Candeal era... engenho... tinha engenho
de escravos. Entendeu?! Tinha o senhor de enge-
nho, que era da família dos... aí do Candeal e tinha
engenho, tinha senzalas, tinha escravos nascidos,
escravos comprados. Entendeu? Porque, você sabe
que nós aqui somos descendentes dos escravos,
a nossa pele negra, nós somos negros, descentes
dos escravos que vieram da África mesmo! Eu te-
nho orgulho disso, eu não tenho vergonha de falar
isso não! E.… eles lá, tinham os engenhos, os do-
nos de engenho, as senzalas e tal. E, aqui é Mati-
nha... é porque era uma mata. Essa é a história do
nome Matinha, por isso que a gente não abre mão
desse nome, porque para a gente esse nome é his-
tórico. Matinha! Porque era uma mata, não uma
mata grande, era uma mata pequena, mas quando
os negros foram se rebelando contra o senhor de
engenho, aí do Candeal, eles colocavam a cobra
na bota do patrão e colocava a coral, a jararaca
debaixo da cama das madames, debaixo do lençol,
da cama das madames. Revoltados com a situação
em que eles estavam vivendo, eles corriam... para
se refugiar em algum lugar e eles corriam para
este lugar aqui chamado Matinha. A Matinha aqui
é quilombo! (ALMEIDA, 2016).17

As declarações da Senhora Ninha nos mostram a importância


da memória coletiva na comunidade quilombola e, as possibilidades
de interpretação das especificidades desse agrupamento de rema-

17  - D. Ninha foi militante do Sindicato dos Trabalhadores Rurais desde a década de
1980, onde atuou na diretoria por alguns anos, sendo presidente do mesmo.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 83

nescentes. Isso é, o relato acima realça três possibilidades interpreta-


tivas da origem da Comunidade, oriunda de quilombos de senzalas;
de rota de fugas, nesse caso a Matinha aparece como o marcador,
espaço de fuga de homens e de mulheres que foram escravizadas na
fazenda Candeal; ou comunidade formada a partir das terras abando-
nadas por senhores de engenhos. Os relatos das formas de resistência
a escravidão na Matinha dos Pretos são demonstrativos de como a
relação entre história e memória é fundamental para compreender as
complexidades que envolvem as comunidades negras contemporâ-
neas, conforme trata Hebe Mattos:
Em vez da antiga oposição entre memória e his-
tória, uma das principais dimensões da interação
entre estas duas dimensões de apropriação do
passado está em abordar historicamente o pró-
prio processo de produção da memória. A reflexão
crescente sobre a história da memória como cam-
po de pesquisa tem evidenciado que as lógicas de
produção de memórias e da historiografia não são
assim tão diferenciadas. As questões formuladas
pela historiografia para compreensão da escravi-
dão negra nas Américas foram sempre determi-
nadas por injunções sociais e políticas do mundo
contemporâneo. De forma paralela, a construção
de memórias coletivas se faz, necessariamente,
como função de questões políticas e identitárias
vividas no tempo presente (MATTOS, 2005, p. 43).
A afirmação de Hebe Mattos demostra que nas comunidades
quilombolas contemporâneas, como é o caso da Matinha, a construção
de memórias coletivas, neste caso a consolidada memória da existência
do quilombo de Matinha dos Pretos e a recorrência constante a esta
para justificar o acesso à categoria de remanescentes de quilombos,
demonstram o processo de instrumentalização da identidade18 prota-
gonizado pelos quilombolas de Matinha dos Pretos.
A fazenda Candeal, ao longo do século XIX, foi uma fazenda de
policultura escravista. Entre 1854 e 1882 esta teve diferentes proprie-
18  - A noção de instrumentalização da identidade, com a qual trabalhamos no pre-
sente texto, está presente em OLIVEIRA, Rosy de. O Barulho da Terra: Nem Kalunga
Nem Camponês. Editora Progressiva, Curitiba, 2010.
84 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

tários, inicialmente José Vitorino de Oliveira, que faleceu em 1854, dei-


xando a propriedade para sua esposa Maria Alvina de Jesus, que casou-
-se novamente no ano seguinte, com João Justiniano Ferreira Bastos,
com quem teve dois filhos, o proeminente jurista Filinto Bastos e Elvira
Bastos, esta casou-se com Antonio Alves de Freitas Borja, que por ser o
mais recente proprietário, é o mais presente na memória local, relatado
por moradores e moradoras como um temido coronel.
A propriedade possuía em 1854, 25 escravizados/as, entre ho-
mens, mulheres e crianças. Já em 1882, contava apenas com 7 cativos,
sendo 4 do sexo masculino e 3 do sexo feminino (SOUZA, 2016, p. 67-
77). Ainda não foi possível rastrear em documentos oficiais, a trajetória
desses escravizados que desaparecem da propriedade nesse período.
O decréscimo no número de escravizados entre o primeiro e o
terceiro inventário, pode ter sido ocasionado pela partilha da herança
entre os herdeiros, ou mesmo pela formação do quilombo ao qual se
referem os/as moradores/as da região. Investigamos em registros de
compra e venda de escravizados/as os nomes dos escravizados da Fa-
zenda Candeal em todo o período e não identificamos nenhum, o que
fortalece a hipótese da existência do quilombo. Esta diminuição pode
ser associada, ainda, a inúmeros fatores como: as constantes secas en-
frentadas pela região; o tráfico interprovincial ou mesmo às leis eman-
cipacionistas, que passam a abrir possibilidades de liberdade pelas vias
oficiais aos escravizados/as.
Mesmo que as pesquisas ainda sejam inconclusivas no que tange
à existência ou não de um quilombo, chamado Matinha dos Pretos, a
memória da região aponta este como um dos marcos de surgimento
da comunidade, sendo este um dos instrumentos para a consolidação
da identidade da Matinha dos Pretos enquanto uma comunidade qui-
lombola contemporânea. Conforme explicita Lima:
Inicialmente, uma pequena mata fechada, uma
“matinha” afastada do território da fazenda da
casa grande. Depois, instrumento de resistência
dos sujeitos que fugiam do regime escravista de
trabalho. Nesta pequena mata, a resistência ao
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 85

modelo social do Estado que estava posto no Bra-


sil em seus períodos colonial e imperial ganhou
corpo, pois estas organizações seguiam em con-
tradição ao que era imposto pelos valores sociais e
econômicos da sociedade hegemônica. Assim ela
não é apenas uma ‘matinha’, é a Matinha dos Pre-
tos (LIMA, 2015, p. 09).

Peste do Jacú
A formação da comunidade de Matinha dos Pretos é creditada
ora ao quilombo histórico existente nas terras da fazenda Candeal, ora
ao fincamento do cruzeiro, ponto de partida para a construção da igre-
ja em torno da qual se formou posteriormente o pequeno vilarejo que
atualmente é a sede do distrito.
Sobre a formação da Matinha, ao analisar um arrolamento no
qual o tenente-coronel Antônio Alves vende, no ano de 1913, par-
te da sua propriedade19 a Adolfo Ferreira da Silva, propriedade que
recebeu o nome de Matinha e que, conforme trecho do documento
transcrito, limitava-se ao sul com a Fazenda Candeal. Sento Sé afirma
que: “[...]a divisão da Fazenda Candeal entre seus herdeiros, e sua
fragmentação em lotes menores, seja como herança, seja para venda
[...], provavelmente, teria sido a forma como a Matinha moderna sur-
giria” (SENTO SÉ, 2009, p. 20).
As memórias dos/as moradores/as remetem ao período da es-
cravidão, quando teria existido o quilombo da Matinha, esta seria a
origem do nome da localidade, Matinha dos Pretos. Já a memória da
formação territorial da região em que fica a praça da comunidade re-
mete ao “fincamento” do Cruzeiro, que segundo os moradores, resulta
de uma promessa por parte de uma moradora da localidade de Mati-
nha a São Roque, quando da epidemia de peste bubônica ocorrida no
povoado de Jacú.
19  - A fazenda Candeal era uma propriedade com cerca de 4 mil tarefas de terra.
Esta informação é proveniente de uma ação de usucapião analisada no capítulo 2 da
dissertação. (SOUZA, 2016, p. 77-81).
86 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

D. Antônia, segundo os/as moradores/as, prometeu a São Roque,


que se a epidemia não se alastrasse até a comunidade, esta mandaria
fazer um cruzeiro em sua homenagem. Não chegando a epidemia até
a localidade, a moradora cumpriu com a sua promessa, o que levou
à sequente fundação da capela da Matinha e à construção de casas
aos redores, dando origem à atual comunidade de Matinha dos Pretos,
sede do distrito de mesmo nome.
São Roque é considerado pelo catolicismo, como santo protetor
contra pestes e doenças físicas, mentais e espirituais, pois teria dedica-
do toda a sua vida a cuidar destes, além da fama de que por onde pas-
sava, a peste desaparecia como que a correr dele (SANTOS, 2010). Do
ponto de vista do sincretismo religioso, o santo é associado ao orixá do
candomblé e umbanda Omulu, que ainda é identificado por Obaluaê,
Xapanã ou Sapatá.20 No caso da escolha do santo, a quem foi feita a
promessa pela moradora da localidade, esta é associada à São Roque,
os/as moradores/as não fazem qualquer tipo de referência a elementos
de sincretismo religioso ou mesmo pertencimento oculto ao candom-
blé e a umbanda.21
A peste bubônica chegou ao Brasil, em fins do século XIX, pelo
porto de Santos, em outubro de 1899, depois no Rio de Janeiro, em
1900. Sobre a transmissão e principais sintomas da doença, nos infor-
ma Dilene Nascimento:
Causada pela bactéria Pasteurella pestis, a peste é
transmitida ao homem pela picada de pulgas in-
20  - Em seu livro Mitologia dos Orixás, Reginaldo Prandi apresenta cerca de
doze contos sobre o orixá em que este é identificado com os nomes de Oba-
luê, Omulu, Xapanã e Sapatá. Nestes contos Omulu/ Obaluê aparece como o
portador da peste, neste caso a varíola, e Xapanã e Sapatá como o detentor
do segredo da varíola. Há ainda um conto em que, ao curar pessoas da va-
ríola, Omulu se transforma em Xapanã. Comumente as pessoas referem-se
a Omulu para tratar da sua condição jovem e Xapanã da sua condição mais
velha. Ver: PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. Ilustrações de Pedro
Rafael, - São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 202 -221.
21  - São Roque é o padroeiro da comunidade, sendo realizadas anualmente
festas em sua homenagem, na igreja católica da comunidade, sempre nas
proximidades do dia 16 de agosto, data em que teria sido sua morte, no ano
de 1327.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 87

fectadas pelo sangue de ratos pestosos. Oswaldo


Cruz, ao distinguir os principais sintomas da do-
ença, corrobora a descrição feita por Boccaccio,
em 1348: febre alta, sede intensa e cansaço; após
alguns dias, há o aparecimento do bubão, gera-
do pela inflamação dos gânglios linfáticos, sendo
essa a principal característica da doença. Sem tra-
tamento, na maioria das vezes, o bubão rompe,
levando o paciente à morte. Em alguns casos, a
doença evolui para a forma pneumônica ou a for-
ma septicêmica, mais letal e mais facilmente trans-
missível (NASCIMENTO, 2011, p. 4).

A doença teve seus primeiros eventos na Europa, no século XIV,


quando dizimou cerca de um terço de toda a população do continente.
A peste, embora velha conhecida na Europa, provocou intensos deba-
tes entre as autoridades sanitárias do Rio de Janeiro, no final do sé-
culo XIX, quando o médico Nuno de Andrade, Diretor Geral de Saúde
Pública do país, foi telegrafado de Portugal, com a grave notícia de
que a cidade do Porto estava assolada pela peste. Ao que rapidamente
adotou inúmeras medidas, como como a sujeição de todos os navios
aportados no Rio, vindos de portos portugueses, à quarentena de 20
dias, além da declaração de que todos os portos portugueses e alguns
espanhóis, eram considerados infectos e da proibição da entrada de di-
versos gêneros de produtos vindos destes portos, como couros, peles,
mobília, vestuário, dentre outros.
As medidas adotadas por Nuno de Andrade, geraram insatisfa-
ção por parte do também médico Jorge Alberto Leite Pinto, diretor de
Higiene e Assistência Pública do Estado do Rio de Janeiro, o que mo-
tivou intensos debates que tiveram como palco as edições do Jornal
do Commercio, do período entre agosto e setembro de 1899. Nuno de
Andrade defendia as medidas por ele implementadas, enquanto Jorge
Pinto afirmava que estas medidas eram exageradas e que prejudica-
riam o comércio entre Brasil e Portugal e que as ações do estado não
deveriam intervir na economia, posto que a peste já era uma doença
que poderia ser facilmente dominada, pois já existiam inúmeros trata-
mentos para combater a mesma (NASCIMENTO, 2013).
88 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Enquanto as duas autoridades debatiam sobre a eficácia das me-


didas adotadas, a doença aportou em Santos, naquele mesmo ano. Fo-
ram adotadas inúmeras medidas como o fechamento de outros portos
brasileiros para as embarcações vindas do porto de Santos, pelo Mi-
nistério da Justiça e Negócios Interiores, bem como a implementação
de uma caça aos ratos, com o apoio popular, na região. Houve ainda o
apoio do médico Oswaldo Cruz na realização de estudos com os doen-
tes da cidade. Esse processo resultou na criação do Instituto Soroterá-
pico do Rio de Janeiro, chefiado por Oswaldo Cruz e do Instituto Soro-
terápico de São Paulo, chefiado por Vital Brazil. Por meio dos estudos
realizados, os dois conseguiram o que parecia ser uma estratégia para
consolidar, no país, a medicina experimental, baseada na bacteriologia
(NASCIMENTO, 2011).
A despeito de todos os estudos e políticas de combate à peste
bubônica, a epidemia chegou à Bahia em 1904, pela capital Salvador,
tendo assolado a cidade por repetidas vezes nas três primeiras décadas
do século XX. A inexistência de condições sanitárias adequadas nas
cidades, principalmente as portuárias, da época, foi determinante para
que a doença se alastrasse pela capital e em seguida, na década de
1920, pelo interior do estado, chegando à região de Feira de Santana.22
O jornal Folha do Norte de 192223 traz matérias sobre a peste bu-
bônica que afetou a população do arraial de Jacú, pertencente então à
freguesia de São José das Itapororocas, aquela atualmente pertencente
ao distrito de Matinha. O jornal traz algumas notícias sobre “casos sus-
peitos” e sobre a atuação do governo no combate à doença na cidade.
Conforme notícia veiculada no jornal do dia 09 de fevereiro de 1922:
Peste Bubônica?
Tendo aparecido casos suspeitos da peste bobônica
[sic] nos arraiais de Jacú e s. Vicente, deste municí-
22  - A doença esteve em diferentes partes do interior da Bahia durante a década de
1920. Sobre a epidemia em Vitória da Conquista, ver: CHAVES, Cleide de Lima. Epi-
demias no Sertão da Bahia: poder e práticas sociais no alvorecer do século XX. Anais do
Congresso Nacional de Práticas Educativas (COPRECIS). V. 1, 2017, ISSN 2594-7885.
Paraíba, setembro, 2017.
23  - Disponível na BSMG/ Museu Casa do Sertão - UEFS. Os trechos do jornal que
serão abaixo transcritos terão a sua grafia original mantidas. Todas as edições citadas
nesse texto, foram consultadas em acervo digital do museu.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 89

pio, o Sr.Cel. Intendente municipal telegrafou on-


tem ao governo do Estado pedindo providências.

Em edição inicial do mês de março – 04 de março de 1922 –


o jornal traz informações sobre o decréscimo da peste no arraial do
Jacú “Graças ao esforço inteligente e bem orientado da comissão que
o governo estadual incumbiu de combater, no arraial do Jacú, a peste
bubônica, vai ela decrescendo ali.”. O jornal traz, em edições dos meses
seguintes, instruções sobre como combater a doença e sobre o seu
enfrentamento pelo governo.
A edição de 05 de agosto do mesmo ano apresenta como ma-
téria de capa do jornal, na coluna de título “Commentarios”, o texto
intitulado “Sobre a peste negra”. Neste artigo são apresentadas infor-
mações sobre a ocorrência da doença em diversos locais do país, do
estado e nas localidades da vizinhança:
Agora pesa accentuadamente o enfortunio sobre o
municipio de Feira de Sant’Anna, graças à irrupção
do mal leva no lugarejo denominado Jacú, a cer-
ta distância da formosa cidade sertaneja. Além da
Feira, lugares outros de grande importância agrí-
cola, pecuária e commercial, estão ameaçadas pela
tremenda desgraça. São elles: São Vicente, Santa
Barbara, Tanquinho, Almas, Bonfim, para citar ape-
nas os de maior valor no referido município. Isso,
sem esquecer que em pontos dos convizinhos mu-
nicípios de Riachão e Serrinha, simultaneamente,
varios casos de peste se tem verificado. Destarte,
prevê-se a provavel descida do mal ao Reconcavo
e sua ascenção aos sertões, de que a Feira é um
dos pórticos.

A notícia parece ter a intenção de distanciar a epidemia da cida-


de de Feira de Santana, então em processo de urbanização emergen-
te, quando se refere ao povoado de Jacú como “lugarejo denominado
Jacú, a certa distância da formosa cidade sertaneja”, denotando assim
o compromisso político do jornal com a civilização do município, co-
locando a epidemia enquanto problema típico da zona rural, embora
ao citar outras localidades vítimas da epidemia tenta mostrar que não
apenas Feira de Santana fora vítima de tamanha desgraça.
90 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Ainda a edição de 05 de agosto do Jornal Folha do Norte mostra


a importância da Igreja enquanto responsável e/ou parceira no “sa-
neamento rural”, ao afirmar que “o bom padre, para o nosso caipira
está acima do médico, da polícia, da lei: é creatura sagrada”. Ao mes-
mo tempo, o jornal, através da veiculação dessas informações, tenta
construir uma imagem da cidade enquanto local de pessoas civiliza-
das e que já não direcionam suas ações a partir da Igreja, ao contrário
do morador da zona rural, que precisa da Igreja, ou do citadino para
instruí-lo sobre as práticas de higienização. O jornal denota isso ao
afirmar que o citadino deve instruir o “matuto” e ainda que o citadino,
neste caso, o padre, deve realizar essa instrução por meio verbal, pois
esse é o único meio possível, criticando assim o analfabetismo dos mo-
radores do campo.
Na edição de 07 de outubro, o Dr. Pedro Américo, traz a primeira
de uma série de reportagens sobre a peste. Na capa do jornal a repor-
tagem de título “A peste – I” trazia informações à população sobre a
doença. Série da qual foram encontradas apenas duas edições, as de
número I e III. Nessas reportagens era explicado o modo de contágio,
como fora descoberta a doença e as formas de evitar o contágio da
peste, que segundo o jornal não se transmitia apenas por ratos, mas
gatos, preás, mocos e urubus. Informando:
Determinada por um microbio, em forma de ba-
cilo, que em 1894 Yersiu e Kitasato descobriram
em Hong-Kong, a peste é uma moléstia infectuo-
sa que se caracteriza pela inflammação dos glau-
glions lymphaticos, constituindo bubões por ab-
cessos, por symptomas pneumônicos e algumas
vezes por hemorrhagias.

Segundo o jornal, o primeiro caso da doença na Bahia foi detec-


tado em 1903, pelo Dr. João Américo Garcez Fróes. Na terceira edição
da série, o Dr. Pedro Américo concluiu dizendo:
Com este assumpto damos aos nossos leitores
uma noção scientifica da peste e esperamos que
cada qual empregue os meios prophylaticos já di-
vulgados, afim de que se evite o mal que nos ame-
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 91

aça. Guerra aos animais vehiculadores dos insetos


e guerra aos insetos portadores e transmissores
do microbio.

Em edição de 28 de agosto, o jornal traz uma carta do chefe do


serviço sanitário do município, informando sobre a melhora nas con-
dições sanitárias “em toda zona pestosa”, sem que tivessem sido re-
gistrados casos nos dias antecedentes. Assim, pode-se perceber que
as ideias higienizadoras propagandeadas em Feira de Santana tinham
como alvo preferencial o pobre e neste caso, morador da zona rural.
Sobre a epidemia e o fincamento do cruzeiro, nos informa a en-
trevistada Daria Lima:
O cruzeiro da Matinha, eu me lembro que foi uma
promessa que finada Antonia fez, ela fez uma pro-
messa de que se[...] Se a doença não passasse do
riacho pra cá que ela plantava um cruzeiro e fi-
cava celebrando uma missa todo ano de agosto,
pra São Roque. Então Deus ajudou que a doença
não passou do riacho pra cá ela mandou[...] Esse
cruzeiro veio de lá daquela serra, tu num vê aquela
serra de lá (gesto em direção à sua esquerda). [...]
Aquela[...] Esse cruzeiro veio de lá, num carro de
boi, me lembro, veio num carro de boi, assenta-
ram... E a primeira missa que ela celebrou foi den-
tro de casa, numa casa grande que ela tinha ali
do lado, desse lado ali, desse lado assim que é do
povo do finado Anísio, tu sabe? A casa dela era ali,
ela celebrou uma missa ali, dentro do[...] Dentro de
casa e aí Deus ajudou que fez um cruzeiro, ficou
celebrando missa ali, botava esteira pra fazer uma
coberta assim e ficou celebrando missa, depois o
povo de finada Mônica mais os meninos de fina-
do Pedro Nolasco, os povos mais velhos juntaram,
reuniram tudo e[...] E fez a capela né. E construiu
a capela ali naquele lugar, aquela capela foi cons-
truída assim. Depois trocaram a imagem de São
Roque, botou dentro da capela (LIMA, 2010).

Sento Sé (2009) considera a epidemia e a fundação do cruzeiro


como um dos marcos históricos da memória da fundação da comuni-
dade de Matinha dos Pretos, sede do atual distrito de Matinha. Pode-
mos perceber através dos depoimentos analisados que, na memória
92 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

dos moradores da região, a formação da atual comunidade é nitida-


mente vinculada à fundação do cruzeiro. Um episódio religioso que
demonstra a fé da moradora da localidade que inclusive, para esse fim,
fez uma doação de terras, propiciando a posterior construção da igreja
por ter a sua promessa a São Roque atendida. Enquanto o quilombo é
enfatizado como algo estanque em tempos passados, e que não tem
qualquer vínculo com a maioria dos moradores entrevistados.

Considerações finais

Aqui foram apresentados alguns aspectos do debate, integral-


mente apresentado na dissertação de mestrado, sobre a construção da
identidade quilombola de Matinha dos Pretos, e os episódios que são
considerados pelos moradores e moradoras da localidade, enquanto
marcos históricos para a consolidação do território em que habitam.
Foi possível perceber as complexidades em torno da formação
da memória da comunidade de Matinha dos Pretos que tem diferentes
marcos históricos fundamentais para a sua formação. Assim, infere-se
que a comunidade da Matinha dos Pretos contemporânea pode não
ter vínculo com o quilombo histórico, o que não significa dizer que não
possa ser vista como uma comunidade quilombola em sua conceitua-
ção atual. Mas, que as evidentes disputas em torno da memória da lo-
calidade denotam a maneira como se dá a apropriação do passado da
comunidade por parte dos/as moradores/as a partir de variantes como
faixa etária, relação com a propriedade da terra, identidade religiosa,
dentre outros aspectos. Assim, neste trabalho, buscamos percorrer -
através de diferentes tipologias documentais e guiadas pela memória
de moradores/as da região - os diversos caminhos que levaram à for-
mação da atual comunidade de Matinha dos Pretos, e à construção da
sua identidade enquanto comunidade remanescente de quilombos.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 93

Referências

ALMEIDA, Maria das Virgens. Entrevista cedida à Railma dos San-


tos Souza. Matinha dos Pretos, 01/2016.

CHAVES, Cleide de Lima. Epidemias no Sertão da Bahia: poder e práti-


cas sociais no alvorecer do século XX. Anais do Congresso Nacional
de Práticas Educativas (COPRECIS). V. 1, 2017, ISSN 2594-7885.
Paraíba, setembro, 2017. Disponível em: https://www.editorarealize.
com.br/revistas/coprecis/trabalhos/TRABALHO_EV077_MD1_SA10_
ID695_14082017102516.pdf. Acesso em 30/05/2020.

LE GOFF, Jacques. História & Memória. Tradução Bernardo Leitão. – 7ª


edição revista – Campinas, SP: Editora Unicamp, 2013.

LIMA, Daria. Entrevista cedida à Railma dos Santos Souza. Candeal II,
02/2010.

LIMA, Laís Fonseca. Entre Desafios, Adequações e Descobertas: A Edu-


cação Quilombola Na Comunidade Da Matinha Dos Pretos. TCC do Curso
de Licenciatura em Pedagogia, UEFS, Feira de Santana, 2015.

MATTOS, Hebe Maria. Memórias do Cativeiro: narrativa e identida-


de negra no antigo Sudeste cafeeiro. In: RIOS, Ana Lugão; MATTOS,
Hebe Maria. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania
no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

NASCIMENTO, Dilene Raimundo do; SILVA, Matheus Alves Duarte


da. “Não é meu intuito estabelecer polêmica”: a chegada da peste ao
Brasil, análise de uma controvérsia, 1899. História, Ciências, Saúde
– Manguinhos, Rio de Janeiro, v.20, supl., nov. 2013, p.1271- 1285.
Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/hcsm/v20s1/0104-5970-h-
csm-20-s-1271.pdf.

NASCIMENTO, Dilene Raimundo. Quando a peste aportou no Brasil


no ano de 1899. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História –
ANPUH. São Paulo, julho 2011, p. 4.
94 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

NASCIMENTO, Maria Ângela Alves do. As práticas populares de


cura no povoado de Matinha dos Pretos-BA. Tese de Doutorado, USP,
Ribeirão Preto/ São Paulo, 1997, p. 87.

OLIVEIRA, Rosy de. O Barulho da Terra: Nem Kalunga Nem Campo-


nês. Editora Progressiva, Curitiba, 2010.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. Ilustrações de Pedro


Rafael, - São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe Maria. Memórias do cativeiro:


família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civili-
zação Brasileira, 2005.

SANTOS, Joaquim Silveira. São Roque de outrora. Editado por De-


métrio Vecchioli. 1ª edição. São Roque, Merlot Comunicação, 2010.

SCOTT, James C., Formas Cotidianas de Resistência Camponesa. Tradução:


Marilda A. de Menezes e Lemuel Guerra. In: Raízes, Campina Grande, vol.
21, nº 01, p. 10-31, jan. /jun. 2002.

SENTO SÉ, Frederico Nascimento. Memórias da Matinha. TCC em Licencia-


tura em História. UEFS, Feira de Santana/ BA, 2009.

SILVA, Márcia Alves Soares da. Distritos Municipais: Entre a moder-


nidade da cidade e a tradição do campo. Anais do XV Seminário Es-
tadual de Estudos Territoriais. II Jornada de Pesquisadores sobre a
questão agrária no Paraná. Ponta Grossa, Paraná, 2014. Disponível
em: http://www3.uepg.br/seet/wp-content/uploads/sites/5/2014/08/
DISTRITOS-MUNICIPAIS-ENTRE-A-MODERNIDADE-DA-CIDADE-E-A-
-TRADI%C3%87%C3%83O-DO-CAMPO.pdf.

SOUZA, Railma dos Santos. Memória e História Quilombola: expe-


riência negra em Matinha dos Pretos e Candeal (Feira de Santana/
BA). Dissertação (Mestrado em História), UFRB, Cachoeira, 2016.
Disponível em: https://ufrb.edu.br/mphistoria/images/Disserta%-
C3%A7%C3%B5es/Turma_2014/Railma_dos_Santos_Souza_-_disser-
ta%C3%A7%C3%A3o.pdf. Acesso em 31/05/2020.
Cartografia social de um
remanescente de quilombo

Lilian Soares da Silva


Rosy de Oliveira

Introdução
A Comunidade Remanescente do Quilombo de Cordoaria, lo-
calizada na região metropolitana de Salvador/BA, às margens do rio
Joanes e à beira da Estrada do Coco, em um território quilombola, ne-
gro e indígena datado há mais de 300 anos. Nesta perspectiva, objeti-
vou-se a compreensão do território, dos laços de parentesco, das tra-
dições e das práticas culturais, da educação, bem como, o significado
de identidade quilombola. Para tal, o trabalho acadêmico é extraído da
Dissertação do Mestrado em História da África, da Diáspora e dos Po-
vos Indígenas na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB),
com base na metodologia teórica epistemológica de trabalho de cam-
po, entrevista, investigação acadêmica, documental e etnográfica no
território com cruzamento de fontes orais e escritas. Assim sendo, os
dados coletados e o georreferenciamento sobre a região tem o objeti-
vo de analisar a permanência e a alteração da espacialidade descrita na
comunidade, por meio das modificações da localidade e do ambiente.
O território localiza-se no estado da Bahia, pertencente ao mu-
nicípio de Camaçari e inserida no subdistrito de Abrantes. Subdistrito
este já considerado como marco do aldeamento indígena e jesuítico
da “Aldeia do Divino Espírito Santo” comandado por Tomé de Souza
e Garcia Dias D'Ávila. Neste território é possível encontrar evidências
do povoamento indígena e da população negra, através de vestígios
arqueológicos há mais de 20 (vinte) anos encontradas pelos morado-
res, como peças de cerâmicas e artefatos indígenas, que na época não
foram atribuídos a sua relevância histórica e ancestral dos materiais.
Ressaltando que, os indícios historiográficos da presença negra no ter-
96 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

ritório são constatados com a instalação de 3 (três) Engenhos de cana


de açúcar e 1 (uma) Olaria, rememorados às margens do rio Joanes e
na Estrada do Coco, ademais o pertencimento identitário com a agri-
cultura de subsistência, a produção de farinha de mandioca, a fabrica-
ção de beiju, a ocupação familiar nas propriedades e circunvizinhanças,
o laço de união entre membros da comunidade e a genealogia das
famílias que se entrecruzam por toda a parte do território quilombola.
Mapa 1: Território da Comunidade Remanescente de Quilombo de Cordoaria e seus
agrupamentos étnicos.

Fonte: Silva 2019.

O mapa é uma construção ilustrativa e territorial elaborada pela


pesquisadora para demarcar o trabalho de campo e os agrupamentos
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 97

étnicos que constituem o território da Comunidade Remanescente do


Quilombo de Cordoaria, sendo eles, Sucupira, Cordoaria, Morcego, Ilha
e Terra Maior. Territórios estes, compondo uma paisagem peculiar, um
modo de vida, uma cultura de existência e reexistências distintas, das
quais cada morador e cada família adaptou-se a sua região e localida-
de, expandindo-se para as terras e adjacências vizinhas com os laços de
parentesco, com o cultivo da terra, na lida com a agricultura e o traba-
lho, assim as famílias e as novas gerações estão em permanente cons-
trução, reconstrução e luta pelo seu direito a terra e qualidade de vida.

Processo metodológico
O estudo de campo originou-se de uma pesquisa in loco, ob-
servação participante em períodos distintos de festividades, reuniões
ou eventos comemorativos entre agosto de 2017 e março de 2019,
mediados por entrevistas, conversas informais e registros escritos, áu-
dios e fotografias, para posteriormente a coleta de dados históricos,
documentais e escritos, assim como referenciais em livros, teses, dis-
sertações e publicações online. Bem como, a coleta de dados solicita-
dos aos interlocutores a participação na pesquisa com um questionário
socioeconômico e outras perguntas semiestruturadas/abertas com o
intuito de compreender a dinâmica e as relações criadas e elaboradas
pelos interlocutores internos e externos do território quilombola.
Sob a óptica metodológica, o arcabouço teórico epistemológico
apresenta a lógica analítica do cruzamento de fontes orais e escritas,
com a narrativa e estórias dos interlocutores, a pesquisa de documentos
históricos e do levantamento de referências bibliográficas. Na primeira
etapa foram realizadas visitas de campo, estabelecendo uma relação
de interlocução com as pessoas da Comunidade, que compartilhavam
elementos da memória, das suas experiências e de seus antepassados
sobre a ocupação do território e da territorialidade hoje classificada
como “Comunidade Remanescente do Quilombo de Cordoaria”. Desse
modo, a pesquisa acadêmica foi percorrida e elaborada, sempre em
uma constante movimentação de idas e vindas a comunidade, a mora-
98 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

dia temporária e a observação participante, as quais tornam-se a me-


todologia de trabalho.
À vista disso, para tal trabalho acadêmico e auxílio no registro
da Comunidade é pautado na linha de pesquisa sobre o estudo de Co-
munidades Negras Rurais, bem como, a representação da estrutura, os
laços de parentesco e outras singularidades no território quilombola.
Recorrendo ao aporte teórico epistemológico de pesquisadores e et-
nógrafos, nos clássicos da Antropologia como Evans Pritchard e Lévi-S-
trauss, na Sociologia Funcionalista por Pierre Bourdieu com o conceito
de Habitus e na Micro História com Carlo Ginzburg. Tais estudos são
importantes para entender o contexto de formação das comunidades
quilombolas no Brasil, oriundo no uso da terra coletivo e de seus recur-
sos hídricos, vegetais e minerais.
Para finalizar, o trabalho a ser apresentado estrutura-se em um
contexto histórico da ocupação territorial advindo desde o processo da
escravatura da comunidade a ser descrita com o georreferenciamento
do território e seus agrupamentos étnicos e, por fim, os laços de paren-
tesco, transformando-os em uma comunidade de parentes. Parentes
esses que, são ressaltados e valorizados no texto, por intermédio das
narrativas, estórias e memórias do território indígena, negro e quilom-
bola. Concluindo-se que, o resultado final é o entendimento que o co-
nhecimento não ocupa espaço nos bancos escolares da comunidade,
mas nas atividades cotidianas, na lida com a roça, na casa e nas áreas
de convivência social, isso porque, o aprendizado e a aquisição de sa-
beres e de fazeres dar-se-á pela oralidade, a observação e o convívio
em sociedade.

Histórico da comunidade
A etimologia da palavra Cordoaria origina-se das práticas, habi-
lidades com o manuseio das cordas utilizadas desde seus antepassa-
dos na produção de esteiras para dormir e para os “caçoas” - balaios
– dos animais de cargas usados na época. Naquela época, as mulheres
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 99

usavam a palha do Licuri como matéria-prima, extraiam nas matas da


região, a desfiavam com a ponta de uma faca e em seguida, com finas
tramas desse produto teciam e entrelaçavam para formar as esteiras
que, seriam semelhantes às de palha natural existente na contempo-
raneidade. Atualmente, a cultura das esteiras não é mais fabricada na
comunidade, mas os balaios e os caçoas permanecem no uso cotidiano
da roça e do transporte dos produtos para comercialização nas feiras
urbanas.
No processo de Reconhecimento do Território da Comunidade Re-
manescente de Quilombo de Cordoaria:
Aos dez dias do mês de novembro de dois mil
e dez, às dezenove horas na sede da Sociedade
Beneficente Senhora Santana de Cordoaria, dis-
trito de Vila de Abrantes, município de Camaça-
ri – Bahia, os moradores reuniram-se pela última
vez para tomada de decisão. […]. Em primeiro de
março de dois mil e quatro, a comunidade foi cer-
tificada sob o registro no livro de cadastro geral
nº 005 […] que é remanescente das Comunidades
Quilombolas. […]. Após a discussão o do assunto,
a mesma decide que o atual presidente da Asso-
ciação, José Angelino de Santana dos Santos, rea-
lizasse a entrada na documentação da Regulariza-
ção Fundiária das Terras. Sendo lavrada a presente
ata pela secretária, Maria Cristina de Santana dos
Santos […], lida e aprovada vai assinada por todos
os presentes. Camaçari, 10 de novembro de 2010
(ATA DE ASSEMBLEIA, 10/11/2010).24

A obtenção da certificação com a Fundação Cultural Palmares é


concedida em 01 de março de 2004, concomitante a isso, o processo
de demarcação do território da Comunidade no Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA) iniciou em 2010. No entanto,
a etapa subsequente dos procedimentos processuais, a elaboração do
Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), ainda não foi
realizada pela Equipe constitutiva do INCRA/BA. Após este procedi-
mento, caberá a mesma Instituição prosseguir com os ritos processu-

24  - Ata de Assembleia Geral Extraordinária de aceitação da regularização fundiária


das terras da Comunidade Quilombola de Cordoaria.
100 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

ais das expropriações fundiárias para que o Título Coletivo Definitivo


seja emitido para a Associação Quilombola demandada no Processo.
Tal certificação é entregue a população na Paróquia do Divino Espírito
Santo em Vila de Abrantes, conforme periódico local da época com a
participação do Sr. André e Sra. Roxa (in memoriam) e Sr. Florisvaldo
(principal interlocutor da pesquisa com sua família).
Ressalto a Família Matos Ferreira25 como principal interlocutora
do trabalho de campo, desde a acolhida no território, a abertura de
sua casa e de suas vidas para a construção da pesquisa acadêmica,
com seus conhecimentos, saberes e fazeres transmitidos de pai/mãe
para filhos/filhas, de filhos/filhas para netos/netas e um neto/uma neta
a caminho, demonstrando assim a genealogia da Família Matos e a
permanência na localidade datada de mais de 100 anos no território
quilombola.
Figura 1: Árvore genealógica da Família Matos Ferreira elaborada e atualizada pela
pesquisadora

Fonte: Silva, 2019.

25  - A Árvore genealógica da Família Matos Ferreira foi construída pela pesquisadora
durante o trabalho de campo, bem como, a atualização em agosto/2020, haja vista, a
ampliação da família com mais um neto ou uma neta que está a caminho.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 101

Corroborando com o exposto, na Família Matos um dos moradores


mais antigos tem 108 (cento e oito) anos de idade completados no ano
de 2020, em entrevista realizada na varanda de sua residência no ano de
2017 e, posteriormente em 2018 com o registro audiovisual, relata que
trabalhou no Engenho do Sr. Miguel no processo de moagem da cana-de-
-açúcar e na produção do melaço, isso por volta dos 16 (dezesseis) anos
de idade, época em que chega a Comunidade de Cordoaria. Descreveu a
memória do trabalho no processo de montagem da cana-de-açúcar, na
produção do melaço no Engenho do Sr. Miguel, da carpintaria e a fabri-
cação dos caixões funerários de madeira, necessários para o enterro dos
moradores e estes, carregados nos braços até ao Cemitério de Vila de
Abrantes, trajeto esse hoje realizado de carro, mas a comunidade de Areia
Branca ainda tem a tradição de conduzir os seus falecidos em procissões e
caminhada com cortejo até o cemitério da mesma localidade.

Georreferenciamento do território
Primeiramente, no estudo de trabalho de campo no território da
Comunidade de Cordoaria e da Sucupira teremos alguns locais a serem
destacados na configuração territorial atual, como o rio Joanes – na
região da propriedade da Ilha –, o brejo – na estrada de interligação da
Comunidade com a estrada do Coco – plantações de mandioca, aipim,
frutíferas e de produção para subsistência e excedentes agrícolas e, as
terras brancas, podem ser as dunas em Abrantes e Jauá.
Em segundo lugar, há que se destacar, o objetivo dos mapas e da-
dos coletados para analisar a permanência e alteração da espacialidade na
comunidade, por meio das modificações da localidade e do ambiente, no
qual, este espaço hoje é caracterizado com uma rede de asfalto substituin-
do as vias de terras, as casas de alvenarias anteriormente de placas e de
taipa ou tapa de barro, a produção dos próprios alimentos em detrimento
ao consumo nos mercados e centros urbanos, o transporte das mercado-
rias e das pessoas em animais e agora por ônibus coletivo e veículos pró-
prios e, entre outras modificações que são a via ou uma das vias possíveis
para alcançarmos essa herança do passado (como é e o que permanece)
102 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

relatado nas contribuições dos interlocutores da pesquisa que são a Fa-


mília Matos Ferreira, a Família Santana dos Santos, a Família dos Reis e
demais moradores e moradoras), por meio dos quais pretende-se como
pergunta central da Dissertação, revelar a história do “passado” que está
incutida no presente. Significando ou deveria significar um novo processo
ou encaminhamento das Políticas Públicas, todavia as melhorias – que po-
dem ser vistas – a olho nu seria o calçamento das vias principais (apenas
alguns trechos e ladeiras) e a inserção do transporte escolar regular para
os estudantes da Comunidade. Em contrapartida, os serviços principais e
considerados como básicos e das políticas essenciais não existem na loca-
lidade, desde o Abastecimento de Água ao Saneamento Básico, do Posto
de Saúde ao Transporte Regular de ônibus – e não com horários estipula-
dos às 05h00, 07h00, 14h00 e 17h00, sendo que aos domingos e feriados
circulando apenas as 08h00 e 17h00 - e outros serviços destinados às po-
pulações com maior escassez de bens e serviços ou vulnerabilidade social.
Mapa 2: Delimitação do território quilombola de Cordoaria contado pela memória,
estórias e a oralidade dos moradores.

Fonte: Silva, 2019.


Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 103

Laços familiares e parentesco


Nas áreas rurais a subdivisão do território ou da terra também
ocorrem entre as famílias – sejam elas consanguíneas, formações de
uniões ou casamentos, da qual o terreno é desmembrado entre os fi-
lhos, que constroem suas casas e delimitam o seu espaço de moradia.
Moradia essa, que abrigará a “sua Família”, quando coloco entre aspas,
destaco que esta família é a formada por um núcleo familiar, porque
nas outras moradias da área existem as outras famílias da primeira, se-
gunda ou terceira geração, que permanecem na comunidade.
Prova e exemplo disso, é a Família Matos Ferreira – família do Sr.
Florisvaldo e Sra. Maria do Carmo –, onde os 3 (três) dos 8 (oito) filhos
residem no mesmo terreno dos pais, cada um construiu a sua residên-
cia em uma área próxima da Casa Central (Casa dos Pais) e convivem
cotidianamente com o trabalho externo na comunidade ou nos afa-
zeres da roça. Os demais filhos residem na cidade de Camaçari e Dias
D’Ávila, mas 2 (dois) deles já estão finalizando a construção de suas
casas no terreno para também ocupar o seu território e constituição
familiar, semelhante à de seus pais, bisavôs e ancestrais.
Em 1869, o jornal O Alabama denunciou o que
acontecia na vizinha Rua do Sodré: É matéria ve-
lha, porém que cada dia toma maiores propor-
ções. Quero falar de uma Infinidade de casas, que
há nessa rua [do Sodré], as quais, sendo ocupa-
das somente por africanos de ambos os sexos,
são uns verdadeiros quilombos. Os proprietários
dessas casas, tendo somente em vista o provento
dos aluguéis, pouco se importam que suas pro-
priedades fiquem estragadas, e que a vizinhança
seja incomodada. Um africano aluga uma casa, e
é preferido a qualquer nacional, que a pretende;
reduz as salas, quartos e cozinha a pequenos cubí-
culos, divididos por taboas, esteiras, e até mesmo
por cobertas, e da noite para o dia estão todos es-
ses casebres ocupados. O negro que aluga a casa,
além de lucrar cento por cento na especulação, se
constituiu chefe de quilombo (REIS, 2006, p. 241).
104 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Se compararmos as moradias dos “escravos africanos” e os “afri-


canos libertos” na Bahia Oitocentista teremos que, estes indivíduos se
reuniam em casas ou moradias coletivas, conhecidas atualmente como
cortiços, pensões ou invasões urbanas. Locais estes que abrigam mais
de uma família em um único imóvel, distribuídos em quartos ou es-
paços subdivididos por tapumes, cortinas ou paredes improvisadas,
visando aglomerar um maior quantitativo de pessoas. Nas cidades
metropolitanas e grandes centros urbanos a incidência dessas mora-
dias coletivas é frequente, localizando-se em áreas centrais ou de fá-
cil acesso aos transportes públicos ou regiões de comércio, das quais
constam prédios e imóveis abandonados, casas em situações precárias
de infraestrutura e entre outros, espaços que são sublocados para as
famílias com menor poder aquisitivo e condições financeiras de arcar
com aluguéis ou moradias próprias.
Na casa de Taipa, a chave estava nas mãos dos ou-
tros, era só enfiar a mão na porta e tirar a madeira
de trava. O telhado era de Palmeira e aguentava
2 ou 3 anos. E as pessoas antigamente era unido
(Sr. REIS, 57 anos, 07/01/2018.).
A casa de palha quando colocava uma porta de
tábua, dava 3 pulos para cima, depois o telhado
substitui a Telha Sergipe. Comprava de segunda
mão em Olarias velhas. O centro de Camaçari era
só de tábua. A cama era de forquilha de vara de
Tapororoca, com apoio de X, com 4 forquilhas, de-
pois a vara (estrado) e a esteira de Licuri. O cam-
bito era 8 pedacinhos de pau para tecer a esteira
com folha de Licuri, 20 a 30 esteiras por semana, o
cambito de Peri era colhido no brejo. O lençol era
de pano de saco de açúcar, no colchão colocava
folhas de bananeira, até amaciar fazia muito baru-
lho (Sr. REIS, 71 anos, 07/01/2018).
A construção das casas de placa, o Padre João vi-
nha, faziam os materiais aqui na comunidade e a
própria família construía as próprias casas. Tinha
cinco anos, nem todo mundo aceitou essa ideia,
e muitos achavam que ele era comunista. A luz só
chegou em 1986, particular com a Coelba. A água
do chafariz com bomba para casa e a água bebia
direto da torneira (Sr. JESUS, 40 anos, 07/01/2018.).
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 105

Neste ponto, ressalto essa ancestralidade como formadora das


famílias supracitadas26, da ocupação territorial, do terreno de moradia
coletiva e da vida em comunidade, que advém desde o período da
escravidão, no qual as senzalas eram destinadas aos “escravos” e com-
punham espaços coletivos de sobrevivência, de convívio, de resistência,
de comunidade, de comunhão de crenças, saberes e fazeres.
Diante disso, tal situação habitacional reproduziu-se com o Pós
Abolição e a Alforria dos “escravos libertos”, que eram libertados ou
alforriados nos centros urbanos ou áreas rurais, sem condições de arcar
com moradia, alimentação ou o necessário para sua própria subsis-
tência ou de sua família, por isso residiam conforme afirma João José
Reis no texto Domingos Pereira Sodré: um sacerdote africano na Bahia
Oitocentista para Vivaldo da Costa Lima, quando menciona:
O uso do termo quilombo para definir esses corti-
ços sugere um entendimento contemporâneo de
seu papel como espaço de resistência africana, in-
clusive resistência a uma concepção burguesa de
organização urbana preconizada por uma parcela
dos homens ilustrados da Bahia. Mas não se tra-
tava de um entendimento generalizado. Os me-
nos ilustrados proprietários daqueles imóveis, por
exemplo, se satisfaziam com a pontualidade dos
inquilinos africanos, honestos que eram no paga-
mento de seus aluguéis. Que estes fossem morar
juntos, ali ou em outros endereços, resultava tanto
do desejo de “viver entre os seus”, quanto da dis-
criminação que sofriam como “negros estrangei-
ros” que eram (REIS, 2006, p. 241).

Tal situação permanece no cotidiano do brasileiro, quando se


analisam as construções antigas ou abandonadas, os imóveis em de-
gradação do tempo ou condenados, as casas sem infraestrutura ou
precárias e assim sucessivamente em vários centros urbanos e perife-
rias brasileiras com populações em situação de vulnerabilidade social.
26 - Salienta-se que, os interlocutores Sr. V. dos REIS (07/01/2018), Sr. W. F. dos REIS
(07/01/2018) e Sr. R. R. de JESUS (07/01/2018) foram entrevistados no trabalho de
campo desenvolvido pela pesquisadora (SILVA, 2019) entre os anos de 2017 a 2019
no território da Comunidade Remanescente de Quilombo de Cordoaria.
106 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Conforme afirma Souza:


Observamos as perspectivas de mudança dos
‘ventos’ ou dos tempos, em que o escravo já não
está só, mas sua dor é de multidão e a escravidão
já não se dá tão somente na fazenda, mas na cida-
de, com “grades” e, sobretudo, quando a “semente
de outra história que já se repetiu” começa a ser
percebida pelos escravos como farsa e eles pas-
sam a se organizar em mocambos, depois também
chamados de quilombos (SOUZA, 2012, p.12).

De acordo com Oliveira (2010, p.30), “nós, pesquisadores, aju-


damos na construção do discurso a partir da classificação ‘quilombo’,
incorporada aos grupos de comunidades negras rurais e/ou urbanas
traduzidas no Artigo 68 como remanescente de Quilombos”. Corro-
borando com esse pensamento, Silva (2016, p.60), “o reconhecimento
das comunidades remanescentes de quilombos como categoria, bem
como o direito à terra, a manter seus saberes, costumes como patrimô-
nio brasileiro”, continua a explanar que “segundo Ratts e Damascena,
para melhor compreender a participação do segmento negro na for-
mação brasileira, três dimensões são de fundamental importância: a
histórica, a memória e as práticas” (SILVA, 2016, p.60).
Em contrapartida, O’Dwyer:
Julgo ao contrário, se deveria trabalhar o con-
ceito de quilombo considerando o que ele é no
presente. Em outras palavras, tem que haver um
deslocamento. Não é discutir o que foi, e sim dis-
cutir o que é e como essa autonomia foi sendo
construída historicamente. Aqui haveria um corte
nos instrumentos conceituais necessários para se
pensar a questão do quilombo, porquanto não se
pode continuar a trabalhar com uma categoria his-
tórica acrítica nem com a definição de 1740. Faz-se
mister trabalhar com os deslocamentos ocorridos
nessa definição e com o que fato é, incluindo-se
nesse aspecto objetivo a representação dos agen-
tes sociais envolvidos (2002, p.53).

Prova disso, é a demarcação do território e da memória consta-


tada quando a Srta. Danielly (neta do Sr. Florisvaldo) informa que per-
mitiria que eu construísse uma casa no terreno ao lado da sua, dizendo:
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 107

“pode derrubar essa árvore, porque minha mãe já derrubou a dela para
fazer a nossa casa e, cada um tinha uma” (Sra. DANIELLY, 20/02/2018)27.
Tal ação remete a um marcador de propriedade, transmissão de he-
rança e de patrimônio para os filhos, dos quais situam-se no terreno
cientes de que, cada um tem e terá o seu território demarcado por sua
árvore. Árvore estas que são Jaqueira, Mangueira e Cajueiro, não se
tem uma origem específica para a plantação de cada árvore ou a de-
marcação do território até então esclarecida e/ou evidenciada.
Durante a pesquisa de campo, seja ela na imersão na Comuni-
dade ou nas visitações esporádicas e eventuais, pode-se constatar os
laços de parentesco entre os membros da região, independentemen-
te do agrupamento Sucupira ou Cordoaria. Os laços são evidenciados
quando se têm as casas construídas no mesmo terreno ou proprieda-
de familiar, mas, por outro lado, também ocorrem as construções em
áreas vizinhas e espalhadas por toda a comunidade. Assim sendo, uma
família pode ter um parente de primeiro grau residindo em Sucupira,
outro em Cordoaria e os demais em Terra Maior ou Morcego, como
é o caso da Família Santana dos Santos, onde majoritariamente resi-
dem na Comunidade de Cordoaria – ao lado da Escola Municipal Nossa
Senhora Santana, mas uma parte da família mora na Comunidade do
Morcego. Esse agrupamento étnico é composto de 6 a 10 casas, um
comércio (Bar) e principalmente de área verde preservada, onde au-
mentou consideravelmente o índice de assalto às casas e residenciais,
haja vista, a distância entre elas ou o afastamento das vias principais da
região e a ausência de iluminação. Prova disso, foram duas incidências
de assaltos, entre 2017 e 2018, a casa da Família em menos de um ano.
Retomando ao território de Cordoaria, os principais interlocuto-
res da pesquisa - Família Matos Ferreira - residem majoritariamente na
Comunidade de Sucupira com o agrupamento das casas em núcleos

27  - Danielly, 20/02/2018. Despedida da Família Matos Ferreira, quando a neta so-
licita a permanência e a moradia na comunidade, em um terreno que é coletivo da
família, onde cada membro detinha uma árvore plantada pelo pai (Sr. Florisvaldo)
com espécies e locais diferentes na área do sítio. Atualmente, a única árvore que
permanece é a Jaqueira, ao lado da Casa de Farinha.
108 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

familiares (Sr. Florisvaldo, Sra. Maria do Carmo e Sr. Edelvan; Sra. Lucie-
ne e as filhas Maria Clara, Danielly e Marina; Sr. Esivaldo, Sra. Jociene,
o filho Lucas e um bebê em gestação; Sra. Maria Antônia e Sr. Jorge)
e outras duas casas em processo de construção. Bem como, uma das
filhas no agrupamento étnico de Cordoaria (Sra. Lígia, Sr. Rogério e os
filhos Emanuel e Joaquim) e os demais residem em Camaçari (Sr. Flávio
– esposa Sra. Edvalda e a filha Ana Flávia; Sr. Antônio e a esposa Sra.
Yasmin) e no município de Dias D'Ávila (Sr. Alberto, a esposa Sra. Sheila
e filha Isis). Por outro lado, os laços de parentesco expandem-se entre
Vila de Abrantes, Parafuso, Jauá e Salvador, por outro lado, têm-se os
diferentes graus de hierarquias consanguíneas ou uniões afetivas.
Por conseguinte, se analisarmos a Comunidade e os relatos de
outras famílias28 teremos as seguintes constatações:
Muito grande, Cordoaria inteira (Sr. REIS, 55 anos,
31/12/2017).
Família. União. Família é tudo, se não tiver famí-
lia, não tem união. É a base de tudo a família (Sra.
SANTOS, 74 anos, 13/10/2018).
Cordoaria em peso (Sr. JESUS, 45 anos, 31/12/2017).
Geralmente todo mundo (Sr. FREITAS, 60 anos,
31/12/2017).
Tudo é parente, é primo, tio, sobrinho (Sr. CON-
CEIÇÃO, 47 anos, 31/12/2017).
Lá é todo mundo (Sra. REIS, 45 anos, 04/01/2018).

Diante disso, um outro indício e confirmação da ancestralidade


negra e quilombola da região é a permanência dos laços de parentesco,
dos casamentos no território e com parentes próximos – alguns primos
e primas –, a construção de casas no mesmo terreno ou propriedade
familiar, à semelhança de sobrenomes e entre outras hipóteses relacio-
28  - As famílias e interlocutores Sr. E. C. dos Reis (31/12/2017), Sra E. F. dos Santos
(13/10/2018), Sr. R. R. de Jesus (31/12/2017), Sr. B. Freitas (31/12/2017), Sr. N. F. N.
da Conceição (31/12/2017) e Sra. B. L. dos Reis (04/01/2018) foram entrevistados no
trabalho de campo desenvolvido pela pesquisadora (SILVA, 2019) entre os anos de
2017 a 2019 no território da Comunidade Remanescente de Quilombo de Cordoaria.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 109

nais da história e das Comunidades Remanescentes Contemporâneas.


Para finalizar, muitas outras árvores genealógicas poderiam ser
construídas ou explicitadas no trabalho de dissertação, todavia, os la-
ços continuariam em dado momento ou uniões voltariam a se entre-
cruzar e, ocasionar uma junção ou interligação do parentesco, seja com
o casamento ou grau de parentesco consanguíneo.

Considerações finais
O Mestrado não é um trabalho individual, ele foi construído a
muitas mãos, que ajudaram – dentro de suas possibilidades – a cons-
truir este roteiro, sumário e contexto geral da Dissertação, por intermé-
dio do trabalho de campo, das entrevistas, das vivências e das experi-
ências construídas ao longo de dois anos de pesquisa in loco. Pesquisa
acadêmica que, desenhou-se e ganhou estrutura com a Comunidade,
ancorada em uma base teórico metodológica da Antropologia, da Et-
nografia e da Cartografia Social.
Saliento na pesquisa, a interpretação das fontes levantadas nas
entrevistas com as interlocutoras e interlocutores totalizando 177
(cento e setenta e sete) questionários identitários que apontam os re-
sultados descritos no trabalho acadêmico. Acrescentando-se que, as
entrevistas foram e serão a base para o desenvolvimento dos dados
estatísticos, dos parâmetros da comunidade, dos pensamentos e vi-
sões dos moradores, dos conceitos importantes ou irrelevantes no seu
cotidiano, na identidade negra e quilombola – se ela existe ou está em
processo de construção –, na vida que é difícil, mas não se reclama ou
anda-se murmurando e reclamando, pelo contrário, fazendo menção
de que poderia melhorar a Saúde com um Posto Médico, o transporte,
mas mesmo assim não sairia da Comunidade. Portanto, as narrativas, as
estórias, as citações e as falas descritas durante todo este trabalho tem
um rosto, uma história de vida, um sentimento e uma força que carrego
no coração e em cada palavra escrita neste trabalho, quando lembro
da pessoa e da situação na qual transcorreu-se a entrevista. Ressalto
110 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

novamente, da importância desse rosto, rosto que tem nome e sobre-


nome, uma idade e uma estória que neste trabalho procurou valorizar
e apresentar um pouquinho – bem pouco – de tudo e de todos.
O objetivo geral do trabalho era a identificação do território, até
então entendido como uma comunidade negra rural, mas com o de-
senvolver das pesquisas e do trabalho de campo, apresentou-se com
origem étnica indígena Tupinambá, denominado como aldeamento in-
dígena e jesuítico da “Aldeia do Divino Espírito Santo” comandado por
Tomé de Souza e Garcia Dias D'Ávila. Subsequente, a memória dos mais
velhos, das narrativas e entrevistas realizadas no trabalho de campo é
um dos resultados alcançados.
Por conseguinte, a genealogia da Família Matos Ferreira e da Fa-
mília Santana dos Santos foi um produto resultante da pesquisa, que
exerce papel fundamental na construção da memória e da comunidade,
sem a qual não seria possível compreender o significado das práticas e
técnicas de produção que sustentam o nome da Comunidade de Cor-
doaria. Na qual, a árvore genealógica da Família Matos Ferreira é um dos
indícios da remanescência negra e quilombola na região do município
de Abrantes há mais de cem anos. Prova disso, é o morador mais velho
com 108 anos - completados em 2020 –, e suas memórias do tempo de
trabalho no Engenho, na fabricação dos caixões, o trajeto para o sepul-
tamento dos corpos pelas estradas de terra e carregado pelos homens,
a paisagem local, os moradores e as famílias mais antigas.
Isto posto, almejo que esta Cartografia Social contribua para a
peça antropológica do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação
(RTID) do Território da Comunidade Quilombola de Cordoaria, assim
como um retorno da Dissertação de Mestrado para mais valia e benes-
ses de toda a Comunidade.
Contudo, o resultado na Dissertação de Mestrado é a constru-
ção da Cartografia Social na Comunidade com o documento da terra,
da memória e da genealogia das famílias supracitadas. Assim como, a
partir do levantamento dos dados, constitui-se um elemento fundan-
te do propósito inicial da Cartografia Social dos Grupos no território.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 111

Território esse, constituído de vários grupos e elementos culturais do


que é denominado como grupo, porque a partir disso a comunidade
é tratada como um conjunto de pessoas – interrelacionando e consti-
tuindo determinados grupos específicos – que levará para os diferentes
grupos que compõem a comunidade.

Referências
O'DWYER, Eliane Cantarino. Quilombos: identidade étnica e territo-
rialidade. Rio de Janeiro,RJ: Editora FGV, 2002.

OLIVEIRA, Rosy de. O barulho da terra: Nem Kalunga Nem Campo-


neses. Curitiba, PR: Editora Progressiva, 2010.

REIS, João José. Domingos Pereira Sodré: um sacerdote africano na


Bahia Oitocentista. Revista Afro-Ásia, n. 34, 2006. p.237-313.

SILVA, Givânia Maria da. Educação e luta política no quilombo de


conceição das crioulas. 1 ed. Curitiba, PR: Appris, 2016.

SILVA, Lilian Soares da. Quem disse que um quilombo é só de ne-


gros? Um território indígena, negro e quilombola (1919-2019):
subsídios técnicos para a elaboração do laudo antropológico da
comunidade. 2019. 261p. Dissertação de Mestrado (Mestrado Pro-
fissional em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas) -
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Cachoeira: UFRB, 2019.

___________________ (2017). Educação Escolar Quilombola: um


conceito a ser apreendido na Historiografia da educação Brasileira.
Revista África e Africanidades, 2017.

SOUZA, Laura Olivieri Carneiro de. Quilombos: identidade e história.


1 ed. Rio de Janeiro (RJ): Nova Fronteira, 2012.
A abordagem do conceito de
quilombo na escola

Girlandio Gomes Bomfim


Emanoel Roque Luís Soares

O presente trabalho decorre das indagações a respeito do fazer


pedagógico de professores e professoras que atuam em unidades es-
colares presentes em comunidades remanescentes de quilombo. Neste
sentido, a junção entre a militância no movimento social quilombola,
formação acadêmica no âmbito da educação e o desenvolvimento da
pesquisa, a partir da formação de docentes que por sua vez atuam em
localidades remanescentes de quilombo possibilitou, o conhecimento
mínimo a respeito do panorama da educação referente a aplicabilidade
da Lei 10.639/03 e seu desdobramento verificado nas Diretrizes Curri-
culares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola.
As discussões no campo da escolarização a respeito da temática
alusiva ao conceito de quilombo e mais recentemente, às chamadas co-
munidades remanescentes de quilombolas situam sua abordagem na
prática docente e no currículo que por vezes, hora enfatizam o uso concei-
tual circunscrito ao ensino da história, ou ainda o situa no viés palmarino
com limitada convergência na formação de saberes nas demais discipli-
nas. Compreender como tais lacunas ainda permeiam a formação escolar
e sua necessária superação, a partir do surgimento da Lei 10.639/03 e
seu desdobramento verificado nas Diretrizes Nacionais para a Educação
Escolar Quilombola constitui, a reflexão central deste trabalho.
Há algum tempo nos momentos de recordação a respeito de nos-
sa presença na escola, rememorar a abordagem da luta da população
escravizada no Brasil a partir do conceito de quilombo, era alusão limi-
tada apenas a responsabilidade do/da docente da disciplina História. A
ênfase dada ao quilombo de Palmares e as repetidas fugas dos escravi-
zados para locais em que tais sujeitos permaneciam isolados constituía,
114 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

a essência do recorte didático que por sua vez orientou objetivamente, o


conteúdo histórico retratado no viés único e irrestrito da ruptura com o
sistema escravista e a conquista da liberdade por parte dos cativos.
Outras formas de resistência da população negra não foram en-
focadas e a figura do herói Zumbi dos Palmares, apesar de ser uma
referência importante considerada preliminarmente, às diversas moda-
lidades de resistência no Brasil, foi por vezes transformado num marco
único, resumo das lutas de homens e mulheres negras que conquista-
ram sua liberdade, cuja culminância é verificada na data comemorativa
escolar que quase sempre nos remete ao treze de maio.
A diluição dos fatos e a própria representação do negro no livro
didático envolveu nas diversas elaborações de materiais educativos e
produção da prática docente, a consolidação de mitos e concepções
pedagógicas que buscaram por vezes resumir o fato da contribuição
afrodescendente na formação do povo brasileiro, a partir da hegemo-
nia da identidade nacional.
O entendimento de que tal conteúdo escolar sempre esteve vin-
culado à historiografia e que o processo de luta resultava na fuga e
isolamento de tal população, permeou nosso imaginário durante anos,
sobretudo, na ausência da abordagem pedagógica empreendida pe-
los docentes, suficientemente capaz de provocar a percepção de que
outras formas de ações por parte do/da negro(a) visava garantir sua
liberdade por vias diversas, imperaram no país e são absolutamente
passíveis de serem consideradas no campo interdisciplinar do currículo:
Os cativos estabeleciam relações com escravos e
libertos de engenhos vizinhos, criavam redes de
amizade e comércio com gente da cidade e com
marinheiros dos portos que transportavam os pro-
dutos da roça para os mercados urbanos. Essas
relações poderiam ser acionadas no momento em
que decidissem fugir do domínio dos senhores,
para questionar a legitimidade de sua escravidão
(FILHO, 2006, p. 43).

Longe de ser o único recurso para a conquista da liberdade, a


fuga constituía por vezes, o desdobramento de uma intricada relação
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 115

que permeava o intuito maior do cativo. Modalidades distintivas de


resistência à ordem escrava e a busca por brechas dentro do próprio
sistema possibilitaram a estes sujeitos consolidar, perspectivas de liber-
dade que em nada faz alusão à compreensão palmarina de quilombo,
ou ainda o considera no campo de uma terminologia policial. Assim,
ao se conjugar na dimensão histórica a possibilidade pedagógica na
consideração de tal conceito na escolarização práticas, fazeres e sabe-
res estão inexoravelmente imbricados e são plenamente passíveis de
serem considerados nos diversos campos do currículo.
Se indagarmos a respeito do distanciamento do conceito de qui-
lombo produzido e introduzido na escola dos anos 80 e a alusão dada
no conjunto da legislação educacional em vigor atualmente, a dificul-
dade em considerar tal conteúdo em consonância com os parâmetros
de ensino vigentes, fundamentalmente decorre do nosso conhecimen-
to acumulado a respeito do assunto tratado, ao longo da nossa cami-
nhada formativa construída.
Assim, empreender no conjunto da prática docente a temática
quilombola implica necessariamente considerar, as lacunas da aborda-
gem disciplinar vinculada apenas ao ensino de história, para superá-la
na construção de saberes que contemplem tal conhecimento passível
de ser abordado em outras instâncias da sociedade e na escola. Nes-
ta perspectiva, produzir novos sentidos que enfatizam a proeminência
do homem e da mulher negra na relação social, em sua conflitualida-
de que objetiva a construção da liberdade requer a percepção do viés
conceitual, onde o quilombo não foi apenas uma comunidade de fugi-
tivos isolada dentro da instituição escravista.
O quilombo aqui considerado supera, a abordagem marginal im-
posta pelas autoridades da época e evolui pelo prisma das formas de
luta no decorrer do tempo, portanto, constitui a ação que integra uma
variedade de saberes necessários à própria consecução da vida. Por
conseguinte, não é possível abordá-lo na sala de aula de forma estan-
que como conjunto de sujeitos segregados, mas, processo de contra-
posição a uma ordem imposta com capilaridade suficiente de identifi-
116 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

car e produzir entre as brechas de uma sociedade excludente, sentidos


de resistência e liberdade que evoluíram no decorrer do tempo:
Os quilombos sempre povoaram o imaginário
da nação brasileira, sendo evocados, em distin-
tos contextos históricos, tanto para desqualificar
e reprimir modalidades alternativas de gestão do
espaço e da vida como para inspirar e simbolizar
mobilizações políticas. No Brasil contemporâneo,
isso não é diferente (MELLO, 2012, p. 33).

A abordagem a respeito do quilombo parte da perspectiva histó-


rica, mas também a situa no plano do ensino da língua materna, na ge-
ografia, matemática dentre outros campos do currículo. O seu entendi-
mento na instituição escolar é plenamente passível de ser considerado
de forma interdisciplinar e decorre do fato como o pertencimento a
uma determinada construção territorial é percebida pelos educadores,
na produção de sentidos que a todo o momento ecoa das vozes dos
educandos, ao demandarem sucintamente o desenvolvimento de ou-
tra prática pedagógica.
Neste prisma, evolução da categoria quilombola enquanto aborda-
gem coercitiva emanada do Estado é retomada e reconsiderada no decor-
rer do tempo, a partir da reivindicação do movimento negro que consi-
dera nos aspectos constitutivos da sua territorialidade, o fomento da vida.
O debate em torno das lutas do movimento social descrito e a
própria interação de outras instâncias acadêmicas como a Associação
Brasileira de Antropologia consolidaram na abordagem temática, a ter-
minologia comunidades remanescentes de quilombo.
O entendimento em torno da condição de remanescentes cons-
titui um amplo debate que se aprofundou após a redemocratização do
Brasil, a partir da interlocução entre o movimento negro e pesquisado-
res do campo da antropologia que buscaram empreender uma análise
a respeito das até então chamadas comunidades negra-rurais. Asso-
ciado a isso, a própria implementação do direito ao território previsto
na constituição brasileira significou o êxito em torno da ruptura com
o viés conceitual palmarino, o que elevou a condição de quilombolas
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 117

ao estatuto legal que visa a garantia de políticas públicas e o direito ao


território.
Assim, podemos afirmar que entre o quilombo e a condição de
remanescentes, os distintos significados, abordagens ideológicas e for-
mativas externaliza a sua evolução ao longo do tempo, de acordo a
intencionalidade dos seus respectivos usos e sentidos em nossa socie-
dade. Portanto, a gradativa modificação de seu uso, se encontra direta-
mente associada às diversas intencionalidades que culminam nos dias
atuais, pela consolidação dos direitos que tem na garantia do território
o ponto de partida do contínuo processo de luta.
Se considerarmos que a perspectiva da evolução conceitual em
torno dos quilombolas igualmente interfere nas demandas em torno
do direito à educação, a abordagem em torno de tal temática, não se
encontra circunscrita ao campo da história e passa a ser considerada
nos diversos contextos do saber abordados na escolarização. Dessa
forma, o desdobramento em torno do uso e evolução da condição de
quilombolas repercute no segmento educacional, a partir da premissa
da garantia de direitos em torno de um processo formativo que tome
como referência básica, o lugar social dos sujeitos.
Em virtude disso e, a partir do processo de redemocratização do
país, a definição do estatuto legal alusivo à Constituição Federal que
em seu Artigo 168 na sessão Ato das Disposições Constitucionais Tran-
sitórias considera a condição de remanescentes, a partir do acesso ao
território. Neste ínterim, podemos mencionar a relação entre escola e
territorialidade quilombola situada na construção cultural verificada no
aprender e a prática pedagógica do/da professor (a), no pressuposto
de que ambos os sujeitos envolvidos neste processo compreendem e
interagem na produção contínua da síntese da matriz social e cultural
de um povo.
A condição de remanescentes atualmente considerada pelo Es-
tado no âmbito da educação consiste, na consolidação da bandeira de
luta em torno do papel da população afrodescendente na construção
do país, em consonância com a reivindicação do direito a inserção das
118 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

matrizes culturais no campo do currículo. Os desdobramentos prove-


nientes deste contexto passaram a ser verificados na modificação da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/96 que estabele-
ceu, o ensino da história e cultura afro-brasileira, o que possibilitou a
implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Escolar Quilombola publicada em 2012.
O fato de a educação em seus aspectos normativos passar a in-
corporar no campo da diversidade a abordagem dos afrodescendentes
requer dos professores e dos sistemas de ensino, a interação com o en-
torno das comunidades remanescentes de quilombo a que a escola se
encontra presente. Dessa maneira, a necessidade em atrelar à prática
docente a dinâmica social das comunidades, para além do caráter demo-
crático e participativo dos diversos agentes na escola, busca desconstruir
o juízo de que apenas a instituição formal é o local da produção de sabe-
res que são de forma generalizada validados pela sociedade:
Assim, o significado social e culturalmente constru-
ído não se torna resto diurno esquecido na conclu-
são de uma pesquisa, ele é trazido para o cenário
ativo da construção do saber com tudo aquilo que
lhe é próprio: contradições, paradoxos, ambigui-
dades ambivalências, assincronias, insuficiências,
transgressões, traições etc. Aliás, esta atitude de
pesquisa tem uma consequência democrática radi-
cal para o campo das pesquisas antropossociais e
em ciências da educação mais precisamente: trazer
para a investigação vozes e segmentos sociais opri-
midos e alijados, calados pelos estudos normativos
e prescritivos, legitimadores da voz da racionalida-
de descontextualizada (MACEDO, 2004, p. 31).

Em outras palavras, a ênfase conceitual a respeito do quilombo


ontem e hoje, nos trazem distintos paradigmas referentes à própria
produção do conhecimento, enquanto lócus promotor da ecologia de
saberes, cuja cultura do desafio se consolida no desenvolvimento da
prática pedagógica.
Um exemplo típico a esse respeito corresponde, ao fato dos mo-
radores de uma determinada comunidade remanescente de quilombo,
não apresentarem formalmente uma definição objetiva do que vem a
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 119

ser sua condição histórica. Contudo, se indagarmos sobre a memória


coletiva ou ainda, no plano das representações sociais como a cultura
se vincula ao campo do trabalho, permiti-nos identificar nos relatos e
nas práticas simbólicas como o pertencimento é construído e dá sen-
tido à vida.
Quando tais relações se imbricam de forma indis-
sociável, o sentimento de pertencimento a uma
determinada coletividade conjuga-se ao senti-
mento de pertencimento a um território especí-
fico. É então necessário procurar, nas represen-
tações espaciais, o modo como a coletividade se
apresenta como especial, parcialmente idêntica
a algumas e diferente de outras, bem como de
que forma ela investiu num território próprio,
diferente do território de outras coletividades
(D’ADESKY, p. 54, 2001).

Se considerarmos que os remanescentes constroem o conjun-


to destes elementos simbólicos na sua sociabilidade, as possibilidades
educativas de inserção de tais atributos no currículo enfatizam estas
práticas, nas diversas instâncias formativas empreendidas na escola.
Assim, dada a possibilidade de interação com os conteúdos, a aborda-
gem conceitual a respeito da dimensão remanescente de quilombolas
ganha forma e corpo, ao ser também considerada no ensino da língua
materna ou ainda no campo da matemática, o que por si só, já aponta
a superação com o viés folclórico de um suposto saber produzido pela
historiografia hegemônica.
Dada as diversas possibilidades na formação em conformidade
com a perspectiva da educação escolar quilombola aqui tratada, as es-
truturas culturais e como estas se manifestam na realidade tornam-se
um campo fértil, para a construção de uma pedagogia que contempla,
a ação dos diversos agentes que usufruem e transformam constante-
mente os aspectos simbólicos correspondentes a cultura quilombola.
Neste ínterim, a capacidade de reconhecer nas minúcias da rotina ou
num diálogo informal, as características que integram um conjunto de
criações simbólicas historicamente delineadas é que possibilita no de-
120 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

senvolvimento da relação dialógica com o contexto escolar, a inserção


da história coletiva de um povo no currículo:
A história do negro brasileiro, em particular do ne-
gro que se fez camponês, demanda a compreen-
são de um tempo de existência que diz respeito ao
grupo, mas diz respeito também ao seu passado,
a sua origem, que nos é contada por fragmentos,
Fragmentos prenhes de vida, repletos de histó-
rias, partes integrantes da memória e da tradição.
Quais significados comportam? Que sentidos se
fazem contidos por eles e por que existem como
lembrança? (GUSMÃO, 2007, p. 144).

A reflexão a respeito do espaço escolar, seu entorno e o parâ-


metro conceitual que os/as docentes apresentam a respeito do fazer
pedagógico condizente com a perspectiva remanescente de quilombo,
compreende outra possibilidade de partida no empreendimento for-
mativo. Há que se constatar que a escola não é um espaço físico sem
sentido ou ainda os sujeitos que nela atuam, se encontram ali para
lecionar e aprender apenas a produção de um saber compartimentado
no currículo.
Se considerarmos que toda formação pedagógica decorre do
ato intencional que se fundamenta numa dimensão parcial do educar,
a indagação a respeito da referência dada ao conceito de quilombo
na educação formal decorre de sua evolução no decorrer do contexto
histórico. Neste sentido, os múltiplos sentidos imputados no ensino
de história no decorrer da nossa formação situaram, a abordagem a
respeito da resistência negra no Brasil escravista, de acordo a dois pa-
râmetros definidos na ênfase culturalista e marxista em contraposição,
ao entendimento do movimento negro a respeito do assunto.
O viés culturalista assentado na idealização e continuidade das
reminiscências africanas no processo das fugas externalizou a percep-
ção de um quilombo isolado, fruto da resistência negra que não dialo-
gava com o entorno da sociedade à época. Base territorial estanque e
autossuficiente, o convívio de negros e negras fugitivos nesta perspec-
tiva permeia o imaginário e ainda hoje pode ser verificado na idealiza-
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 121

ção de uma aproximação conceitual que se afasta absolutamente do


pressuposto da condição de remanescentes retratados na legislação
educacional que contempla tal assunto.
A tônica de que os escravizados, não são sujeitos de sua histó-
ria norteia a compreensão culturalista, ao enfatizar nas alternativas de
sobrevivência dentro do sistema escravocrata, a fuga ou a integração
via processo de aculturação. Tal dualidade não considera que, à alter-
nativa irrestrita da fuga, outras possibilidades de convivência dentro
do sistema opressor também eram utilizadas por estes sujeitos que ao
contrário de empreender uma construção identitária circunscrita à Áfri-
ca, desenvolveram estratégias diversas que combinaram o arcabouço
cultural africano ao cotidiano nas terras brasileiras:
Na verdade, os quilombos, ao longo da história,
no período escravista-colonial-genocida da socie-
dade oficial, foram os grandes responsáveis pela
expansão do povo negro no Brasil e nas Américas.
Foi a forma mais evidente da titânica luta do negro
por sua afirmação sócio existencial e contra a es-
cravidão e o genocídio (LUZ, 2013, p. 293).

Se o educador e a educadora rememorar como o ensino na sua


formação básica a respeito da temática considerou, o viés culturalista
na ação pedagógica que situou a cristalização desta abordagem no
reforço do papel do negro limitado à ideia do folclore, por vezes recor-
damos da contribuição desta população veiculada pela escola alusiva
apenas, ao desenvolvimento da sociedade brasileira através da dança,
do acarajé ou da capoeira.
A construção de uma ação pedagógica suficientemente capaz
de superar a abordagem culturalista na alusão do conceito de quilom-
bo na educação demanda de nós professores, o entendimento que a
dinâmica social no decorrer da história brasileira impôs a definição de
pretensos recortes, cuja temporalidade é condizente com determina-
da ideologia ou manifestação do poder. Indagar a respeito de como
estes pressupostos reiteram o etnocentrismo na educação, ao situar o
lugar do negro a partir de determinada representação social implica,
122 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

por exemplo, ler passivamente a obra de Monteiro Lobato “O Sítio do


Pica-Pau Amarelo”, sem considerar o seu contexto de produção e as
intencionalidades ali contidas
A contraposição ao viés culturalista na configuração do conceito
de quilombo, avançou no decorrer do desenvolvimento de estudos que
situou o negro, não ajustado ao paternalismo dos senhores e no condi-
cionamento da aculturação. O princípio de que as lutas contra o regime
se verificavam na fuga como objetivo único dos sujeitos para a constru-
ção da liberdade nesta análise, não conseguiu abarcar o dinamismo em
que africanos e seus descendentes produziram, para paulatinamente se
sobreporem ao regime. Portanto, não foram apenas vítimas do sistema
opressor, elaboraram a partir de suas respectivas realidades sentidos e
modos de existências num contexto social excludente.
À consideração materialista a respeito do quilombo, o Movimento
Negro em sua trajetória buscou possibilitar a superação das lacunas, ao
tomar como referência a discriminação racial como produto da exclu-
são. O quilombo neste prisma decorre da construção identitária, cuja
ênfase na afirmação da cultura africana e sua consequente adaptação ao
contexto brasileiro demanda a superação do racismo em curso, ou seja,
podemos considerar no bojo do debate da escolarização que a produ-
ção do conhecimento, não advêm de uma única via, ou ainda assimetri-
camente pode definir o que é ou não saber, na produção de sentidos.
As formas de luta e o empreendimento de uma territorialidade em
que o espaço deriva da interação de diversos agentes na produção de
saberes são considerados, a partir da elaboração conceitual de um novo
sentido ao quilombo, no diálogo promovido pelo movimento negro.
Nesta dimensão educadores (as), a terminologia quilombo nos
impõe indagar a respeito de nossa prática, ao enveredar na própria
forma como os conhecimentos são sistematizados e considerados na
unidade escolar, quando confrontados com outras realidades oriundas
da produção de saberes em que o coletivo, o cotidiano, as práticas de
trabalho nos espaços de celebração da cultura forjam, o lugar social
como ponto de partida para compreender o mundo.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 123

Questionar como podemos transversalizar no currículo o quilom-


bo conceitualmente reconsiderado compreende, uma pergunta radical
cujo impacto interfere em nossa própria formação e de qual modo lida-
mos com a construção deste objeto que diversifica, o saber no espaço
de ensino.
Tomemos como ponto de partida o lugar que não é apenas o es-
paço geográfico ocupado por uma determinada povoação. O lugar social
dos sujeitos, ambiente de produção simbólica e material, cuja historicida-
de permeia o cotidiano na formação de saberes e que a escola por sua vez,
se encontra imersa numa realidade polissêmica repleta de implicações.
O currículo e os discentes oriundos da comunidade quilombola
constituem em si, pontos por vezes destoantes de uma prática de ensino
assentada na abordagem pedagógica empreendida na escola. Indagar
como podemos desenvolver nossa prática de ensino assentada no en-
tendimento do que vem a ser comunidade remanescente de quilombo
impõe o reconhecimento da lacuna existente que externaliza por vezes,
o distanciamento do saber escolar da realidade social dos discentes.
Conhecer o entorno da localidade em que se situa a escola, suas
características e dia-a-dia compreende o primeiro passo para conjugar
no trabalho formativo, a perspectiva da educação quilombola. Neste
ínterim, tal abordagem converge para a análise a respeito da territoria-
lidade e nos permite adentrar no campo da associação entre os com-
ponentes curriculares e a representação social dos educandos, condi-
zente com as respectivas percepções a respeito do lugar em que estes
sujeitos residem e qual compreensão possuem referentes, ao que vem
a ser território remanescente de quilombo.
É comum que os moradores quilombolas não apresentarem um
conceito aproximadamente formal a respeito da sua condição social.
Contudo, os elementos como memória coletiva, espaços de sociabi-
lidade, templos ou áreas de celebração da cultura constituem partes
integrantes do território que por sua vez é fundamental, para a com-
preensão de como o exercício da territorialidade se manifesta.
A condição de quilombolas e seu conceito por extensão, consi-
dera o lugar como ponto de partida para o empreendimento da abor-
124 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

dagem curricular por parte dos/das docentes, tendo em vista que a


cosmovisão e a referência social dela decorrente por parte dos dis-
centes toma, o vínculo com a terra e o sentimento de pertencimento
enquanto referencial para a produção de saberes. Neste ínterim, ser
quilombola não corresponde unicamente ao acesso a uma determina-
da política pública, por exemplo. Integra em si, a natureza ideológica
do termo vinculada ao pertencimento simbólico cuja reconfiguração
conceitual passa a ser considerada, enquanto um projeto de afirmação
do direito à diferença.
Ou seja, formas de ser e estar no mundo que rompem com a pa-
dronização dos conhecimentos abordados na escola e desta demanda,
a elaboração de um novo fazer pedagógico como ponto de partida
para o aprendizado.
Assim, educadores (as), é preciso considerar que na evolução con-
ceitual do quilombo ao longo do tempo, a ênfase dada na atualidade ao
direito à territorialidade possui desdobramentos que requer da nossa
prática de ensino, a ruptura com as diversas abordagens de natureza es-
tanque que compreendem o uso de tal terminologia na dualidade social
com implicações no próprio processo de ensino e aprendizagem.
No conjunto das relações entre o saber escolar e o saber local,
as diferenças se sustentam naquilo que deve ser considerado no pla-
no de um processo de aprendizagem. Ou seja, o entendimento dos
sujeitos na produção de sua territorialidade. Portanto, expressar nas
práticas culturais distintas possibilidades de apreensão/produção do
objeto cognoscível implica considerar, a própria educação no contex-
to do campo das relações étnico-raciais, numa base epistemológica
oposta ao caráter meramente utilitário vinculado ao mundo do traba-
lho assalariado.

Considerações finais
A comunidade quilombola nesta dimensão da abordagem pe-
dagógica que aqui tratamos, não restringe tal condição social prevista
em lei, à ênfase dada a continuidade dos resquícios do passado que
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 125

necessariamente devem perdurar no decorrer do tempo. Neste senti-


do, ao acompanhar um conflito de luta pela terra em uma localidade
quilombola no sul da Bahia, a afirmação por parte de um dos atores
envolvidos na consideração a respeito do que vem a ser o quilombo
foi dimensionada, ao vínculo irrestrito da fuga e ainda presença de ce-
mitérios de ex-escravizados numa determinada área. Neste exemplo,
vale ressaltar que os fragmentos do passado, ou melhor, a cristalização
dele para explicação no presente, a respeito do que vem a ser de fato o
quilombo, por vezes define no imaginário, as intencionalidades de uma
determinada concepção a respeito do termo.
Tomando-se por base que a nossa referência a respeito do as-
sunto parte da ruptura com o viés conceitual do quilombo de Palmares,
para compreender posteriormente a modificação do seu uso ao longo
do tempo no ambiente pedagógico, as percepções e fazeres compre-
endem implicações outras que enfatizam o educar na perspectiva do
território. Compreender como isso se manifesta em nossa rotina de
trabalho no espaço educativo corresponde, ao exercício contínuo da
nossa práxis, ao nos defrontarmos com a gama de significados que
se encontram no entorno da escola e estão repletos de possibilidades
formativas que podem ser perfeitamente abordadas pela escola.
A condição de quilombola ganha fôlego, à medida que os ele-
mentos da cultura local são relacionados com o saber escolar. Com
isso, a possibilidade de considerarmos na dimensão do educar no es-
paço formal, a gama de saberes e fazeres continuamente elaborados
numa localidade quilombola diversifica, as possibilidades formativas ao
tomar o lugar social em si, ou seja, o quilombo, de maneira distinta a
pretensa abordagem uniformizadora da identidade nacional, prescriti-
va das datas comemorativas abordadas em sala.
Na verdade, não queremos negar a necessidade do saber escolar
bem como o aprendizado da matriz formativa comum contidos no cur-
rículo oficial. Porém, enfatizamos mais uma vez que o ponto de partida
para a compreensão da prática pedagógica deve considerar nos cur-
rículos, o lugar social dos discentes repleto de significações e saberes
que devem ser correlacionados no campo formal do ensino.
126 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Se a formação de professores no âmbito da Educação Escolar


Quilombola compreendeu uma via de mão dupla em que, os embates
travados ao longo do tempo e a reivindicação de direitos e afirma-
ção na posse da terra conduzem a educação e, por extensão a prática
docente, ao desenvolvimento da ação pedagógica que seja capaz de
apresentar capilaridade suficiente, para compreender tais processos e
suas lacunas, em prol de uma escolarização absolutamente pautada no
campo da diversidade.
A abordagem a respeito da educação quilombola compreende
em si a própria ecologia de saberes. Desse modo, para além de susci-
tarmos a própria trajetória do conceito de quilombo e suas readequa-
ções ao longo do tempo, é preciso compreender que toda e qualquer
análise ou empreendimento formativo neste mister, não está dissocia-
do da abordagem do território.

Referências
D’ADESKY, Jacques. Pluralismo étnico e multiculturalismo: racis-
mos e anti-racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.

BRASIL. Lei 10.639/03. Disponível em: http://www.planalto.gov.br.


Acesso em: 25 Ago 2016.

________. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Esco-


lar Quilombola na Educação Básica. Disponível em: http://www.
seppir.gov.br. Acesso em 25 Ago 2016.

________. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das


Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana. Disponível em: http://www.acaoeducati-
va.org.br. Acesso em: 25 Ago 2016.

FILHO, Walter Fraga. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escra-


vos e libertos na Bahia 1870-1910. São Paulo: Editora da UNICAMP,
2006.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 127

GUSMÃO, Neusa Maria Mendes. Herança Quilombola: negros, terras


e direitos. In: BARCELAR, Jeferson & CAROSO, Carlos (Orgs.). Brasil:
um país de negros? 2ª Ed. Rio de Janeiro: Pallas; Salvador, BA: CEAO,
2007.

LUZ, Marco Aurélio. Agadá: dinâmica da civilização africano-brasilei-


ra. 2ª Ed. Salvador: EDUFBA, 2013.

MACEDO, Roberto Sidnei. A etnopesquisa crítica e multirrefe-


rencial nas ciências humanas e na educação. 2ª ed. Salvador, BA:
EDUFBA, 2004.

MELLO, Macedo Moura. Reminiscências dos quilombos: territórios


da memória em uma comunidade negra rural. São Paulo: Editora
Terceiro Nome, 2012.
Lucinda: minhas escolhas me fizeram
retornar ao quilombo

Andrea de Carvalho Moreira


Emanoel Luís Roque Soares

Introdução

Este artigo aborda a pesquisa de mestrado que deu origem ao pa-


radidático intitulado “Lucinda: minhas escolhas me fizeram retornar ao
quilombo”. O livro destina-se aos professores do Ensino Fundamental
II, pouco familiarizados com o estudo das relações étnico-raciais, possi-
bilitando-os utilizar a trajetória de vida de mulheres quilombolas como
recurso pedagógico nos Anos Finais do Ensino Fundamental (6º ao 9º
Ano), da Educação Básica. Ao estudar as histórias de vidas das mulheres
quilombolas a partir da etnopesquisa, pretende-se traçar a descrição e
reflexão concisa das vivências do sujeito, possibilitando a interpretação
das palavras, ideias e pensamentos, de forma a melhor compreender a
suas experiências vividas cotidianamente (GUERRA, 2012).
No entanto, apesar dos avanços significativos nas produções
acadêmicas ao longo dos anos referentes às discussões sobre relações
étnico-raciais na escola, evidenciam-se ainda algumas lacunas, princi-
palmente, no que tange a materialização nas unidades escolares brasi-
leiras, mais precisamente no município de Cruz das Almas-Ba, de uma
educação antirracista, que priorize a história dos quilombos e seus re-
manescentes dentro de uma perspectiva da história local.
Nesse contexto, observou-se que as discussões voltadas para as
relações raciais no currículo oficial, do Ensino Fundamental II, nas es-
colas municipais de Cruz das Almas têm ocorrido de forma superficial,
estando restritas aos 20 de novembro, dia alusivo as comemorações da
Consciência Negra.
130 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

E foi, precisamente, a forma como o projeto de consciência negra


era trabalhado na escola que me inquietava. As fatídicas semanas de rea-
lização do projeto eram caracterizadas por uma exacerbada teatralidade
da condição de escravizados dos negros e as meninas negras apresen-
tavam-se trajadas de escravas, mucamas ou mesmo representando as
negras de tabuleiro, onde a condição de subalternidade acabava preva-
lecendo no contexto das comemorações. Isso me angustiava muito!
Nesse contexto, meu olhar como professora de história impul-
sionou a aprofundar mais os conhecimentos acerca do estudo das re-
lações étnico-raciais na escola, com vistas a contribuir para minimiza-
ção de estereótipos sobre a cultura afro-brasileira, bem como a forma
como os afrodescendentes ainda são percebidos nas práticas escola-
res. Assim, conforme prevê as Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana (2005):
Reconhecer exige que se questionem relações
étnico-raciais baseadas em preconceitos que
desqualificam os negros e salientam estereóti-
pos depreciativos, palavras e atitudes que, vela-
da ou explicitamente violentas, expressam senti-
mentos de superioridade em relação aos negros
(BRASIL, 2005, p.12).

A oportunidade em ingressar no Programa de Mestrado em


História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas possibilitou uma
maior reflexão das questões que me inquietavam na trajetória profis-
sional e a definir melhor o recorte dessa pesquisa. Criava-se assim o
cenário fecundo que despertou o interesse e promoveu a possibilidade
de contribuir com a realidade da escola onde atuo, apontando novos
direcionamentos a partir das discussões que permeiam a cultura afro-
-brasileira e africana nas práticas pedagógicas da escola.
É nessa perspectiva que o paradidático, resultado das pesqui-
sas com as narrativas das mulheres quilombolas através da valorização
da história oral, foi criado, para dar significado às comunidades rema-
nescentes de quilombos existentes no município de Cruz das Almas-Ba
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 131

como lugares de memória e de história. Nesse contexto, Pollak (1989)


enfatiza que, “ao privilegiar a análise dos excluídos, [...], a história oral
ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, [...], opõem-se
à “memória oficial”. (Grifo do autor)”.

Lócus da pesquisa
A comunidade negra rural da Baixa da Linha, certificada pela Fun-
dação Palmares como comunidade remanescente de quilombo em 27
de setembro de 2010, situada em áreas próximas à Universidade Fede-
ral do Recôncavo da Bahia, está localizada no município de Cruz das
Almas-Ba, no Território de Identidade do Recôncavo Baiano.
[...] De acordo com o Decreto 4.887/2003, os qui-
lombos são: grupos étnico-raciais segundo crité-
rios de auto atribuição, com trajetória histórica
própria, dotados de relações territoriais específi-
cas, com presunção de ancestralidade negra re-
lacionada com a resistência à opressão histórica
sofrida (Art. 2º do Decreto 4887, de 20/11/2003),
(BRASIL, 2011, p. 9).

A comunidade estudada na pesquisa é um quilombo contempo-


râneo, designação recente, segundo Souza, (2012), datando da última
Constituição de 1988 a formulação dos direitos quilombolas. A comu-
nidade da Linha compreende aquilo que a historiadora Moura (2008),
denominou de quilombos contemporâneos:
[...] as comunidades negras rurais habitadas por
descendentes de africanos escravizados, que man-
têm laços de parentesco e vivem, em sua maio-
ria, de culturas de subsistência, em terra doada,
comprada ou ocupada secularmente pelo grupo
(MOURA, 2008, p. 10).

Assim, a designação como remanescentes de quilombos atende


o previsto no art. 1º da Lei nº. 7.668 de 22 de agosto de 1988, art. 2,
§§1º e 2º; art. 3, §4º do Decreto nº. 4.887 de 20 de novembro de 2003.
Segundo a legislação, regulamenta-se o procedimento para identifica-
ção, reconhecimento, delimitação e demarcação das terras ocupadas
132 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o


art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e art. 216
I a V, §§1º e 5º da Constituição Federal de 1988, Convenção nº. 169,
ratificada pelo Decreto nº. 5.051 de 19 de abril de 2004, o qual conce-
de titulação de remanescente à comunidade da Baixa da Linha, dando
novo significado ao termo “quilombo” e acerca dessa ressemantização
do termo “quilombo”, podemos dizer que:
[...] O termo “remanescente” introduz um diferen-
cial importante com relação ao outro uso do termo
“quilombo”, presente na Constituição Brasileira de
1988. Nele, o que está em jogo não são mais as
“reminiscências” de antigos quilombos (documen-
tos, restos de senzalas, locais emblemáticos como
a Serra da Barriga etc.) do artigo 215 (Seção II “Da
Cultura”), mas “comunidades”, isto é, organizações
sociais, grupos de pessoas que “estejam ocupando
suas terras” como diz o “artigo 68”. Mais do que
isso, diz respeito, na prática, aos grupos que es-
tejam se organizando politicamente para garantir
esses direitos e, por isso, reivindicando tal nomina-
ção por parte do Estado. Portanto, o que está em
jogo em qualquer esforço coletivo pelo reconheci-
mento oficial como comunidade remanescente de
quilombos são sempre (até o momento) os confli-
tos fundiários em que tais comunidades estão en-
volvidas, e não qualquer desejo memorialístico de
se afirmar como continuidade daquelas metáforas
da resistência escrava e do “mundo africano entre
nós”, que foram os quilombos históricos (ARRUTI,
2006, p.81).

Nessas comunidades, a luta pela permanência na terra, apesar


de ser direito assegurado por lei, desdobra-se em rivalidades que en-
volvem interesses políticos e econômicos ligados ao agronegócio, bem
como à resistência de grandes proprietários de terras residentes em
áreas próximas às comunidades quilombolas na atualidade. Dessa for-
ma, a história da comunidade da Baixa da Linha assemelha-se à das
demais comunidades quilombolas existentes no Brasil, que lutam por
reconhecimento em meio à questão fundiária. Portanto, a certificação
possibilitou a garantia da posse da terra a diversas famílias da comuni-
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 133

dade da Baixa da Linha, que viviam a incerteza de continuar ocupando


suas terras com a iminente ameaça de desocupação. Pontua-se tam-
bém o fato de que a comunidade, embora esteja legalmente reconhe-
cida, ainda não possuí o registro legal de posse da terra, fato vivencia-
do por diversas comunidades quilombolas no Brasil.
Sobre a relação das comunidades quilombolas com a terra, Carril
assinala que:
As comunidades de quilombolas atuais, herdei-
ras das terras de seus antepassados, realizaram
essa inserção no campesinato brasileiro. A or-
ganização da economia familiar está estrutura-
da na agricultura de excedentes, no extrativis-
mo, na caça e na pesca. A terra é fundamental
para a reprodução de sua vida, sendo base para
sua sobrevivência tanto física quanto cultural.
Mas é chave também para compreender a di-
nâmica do pertencimento a um grupo e a um
espaço territorial (CARRIL, 2006, p. 223).

Dessa forma, o território onde vivem essas comunidades tem


uma importância sócio-histórica muito grande, haja vista que nele sua
história é construída e suas identidades individuais e coletivas vão se
configurando e reconfigurando ao longo do tempo, fortalecendo laços
afetivos que acabam por desenvolver um sentimento de pertencimen-
to muito forte ao local de origem.

Comunidades remanescentes de quilombo


As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Afri-
cana tratam da política curricular, o que impulsiona um repensar nas
concepções de currículo apontando uma ruptura na forma de organizar
os conhecimentos escolares que muitas vezes ainda não conseguiram
se desprender das tradições vinculadas ao eurocentrismo. Assim, as
discussões raciais ainda sofrem restrições nos currículos escolares, em
virtude das concepções de currículos adotadas em algumas escolas no
Brasil, principalmente em algumas escolas quilombolas, em que os dife-
134 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

rentes sujeitos e suas experiências sociais ainda encontram-se alijados


das propostas pedagógicas, as quais estão arraigadas em processos co-
lonizadores e hierarquizantes de construção do conhecimento, menos-
prezando a cultura de povos africanos, indígenas, latino-americanos e o
próprio conhecimento advindo do senso comum, em favorecimento de
uma visão histórica imposta secularmente pelos colonizadores.
É nesse contexto que as concepções sobre currículos adotadas
em algumas escolas constituem fator importante a ser considerado nas
propostas pedagógicas, a fim de que as questões raciais não sejam
tratadas de forma superficiais. Assim, o currículo precisa dar conta de
mover das margens para os centros das discussões escolares as ques-
tões que envolvem as práticas sociais dos diferentes sujeitos que fazem
parte dos processos de formação e da sociedade brasileira.
Coadunando com Silva (1999), o currículo oficial a ser traba-
lhado nas escolas envolvem discussões sobre territórios, relações de
poder, percursos, autobiografias, discursos e identidades, apresentan-
do-se assim, como possibilidade de inserção dos diferentes sujeitos
e das suas experiências sociais nas práticas escolares. É dentro dessa
perspectiva que se compreende que o currículo escolar oficial necessita
estabelecer uma interconexão entre os saberes escolares e os saberes
construídos socialmente a partir das interações dos diferentes agentes
sociais nas ações cotidianas, fora do espaço oficial da escola, conheci-
mentos que emergem do senso comum e que podem ser discutidos no
espaço da escola, dentro dos diversos componentes curriculares.
Sobre a forma de se conceber o currículo, Ferraço e Carvalho
assinalam que:
[...] o currículo não pode ser pensado unicamente
como texto prescrito e/ou rol de objetivos, con-
teúdos, metodologias e avaliação. O currículo se
expressa como práticas políticas de expressividade
(conversações e narratividade), pois, por meio das
experiências que povoam a paisagem da escola,
podem-se constituir círculos ampliados e diálogos
em torno de temáticas que nos passam em suas
múltiplas e diversas dimensões (FERRAÇO E CAR-
VALHO, 2012, p.7).
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 135

Ao considerar as práticas sociais como parte dos processos cons-


titutivos do currículo, os educadores e gestores envolvidos na elabo-
ração da proposta curricular passam a valorizar os diferentes agentes
sociais que contribuíram com o processo histórico da formação do
povo brasileiro de forma ampla, considerando as diferenças de gênero,
raça, geração, sexualidade, etc.; atuando assim, na construção de uma
proposta pedagógica fundada no respeito às diferenças. Portanto, as
experiências socioculturais de educadores e educandos apresentam-se
como possibilidades de diálogos no currículo, visto que é na realidade
mediatizadora, na consciência que dela tenhamos educadores e povo,
que emerge o conteúdo programático da educação (FREIRE, 1987).
Nessa perspectiva Arroyo assinala que:
[...] se assumimos como princípio epistemológi-
co que toda experiência social produz conheci-
mento e que todo conhecimento é produto de
experiências sociais teremos de aceitar que a
diversidade de experiências humanas é a fon-
te mais rica da diversidade de conhecimentos.
Temos de reconhecer que desperdiçar experiên-
cias, inclusive de alunos e mestres, é desperdiçar
conhecimentos. Quando os currículos, o mate-
rial didático ou nossas lições desperdiçam ou ig-
noram as experiências sociais se tornam pobres
em experiências e pobres em conhecimentos e
em significados (ARROYO, 2012, p.120).

Vale pontuar que o não reconhecimento do outro como sujei-


to ainda persiste nas práticas pedagógicas que se apresentam funda-
mentadas em teorias tradicionais e descontextualizadas sobre currículo
escolar, fato que implica em silenciamentos também dos diferentes
coletivos sociais dos diálogos na construção das propostas curricula-
res. Nessa perspectiva, Arroyo (2012), pontua que o ocultamento dos
sujeitos populares no território do currículo tem uma intencionalidade
política, segregando politicamente esses coletivos sociais, econômica e
culturalmente. Esse ocultamento se expande para o material didático, o
qual é manipulado pela indústria cultural, conforme os valores dos gru-
pos sociais no poder e se fortalece nas disciplinas escolares, por enten-
136 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

derem muitos educadores e gestores que, eles representam o próprio


currículo, um currículo naturalizado e que acaba por fortalecer o ideal
de sociedade racista e excludente que ainda se evidencia no Brasil.
Assim, ao levantar-se a possibilidade do estudo das narrativas
das mulheres da comunidade remanescentes de quilombo da Baixa da
Linha, no currículo escolar, pretendeu-se valorizar também a oralidade,
visto que o testemunho, seja escrito ou oral, no fim não é mais que
testemunho humano, e vale o que vale o homem (HAMPATÉ BÂ, 2010).
Além disso, as investigações sobre o lugar de vivência dessas mulheres
possibilitou também identificar, a partir das suas memórias, os proces-
sos de formação e transformação pelas quais a comunidade passou
no decorrer dos tempos, assinalando como essas transformações im-
pactaram nas posições hierárquicas por elas ocupadas na sociedade
local, bem como refletindo sobre a forma como o racismo e os diversos
marcadores sociais aparecem entrelaçados nas vidas dessas mulheres,
marcando significativamente seus papéis sociais desempenhados na
comunidade. Pontua-se também que esses fatores não estão restritos
as mulheres quilombolas, mas marcam a estrutura e a cultura da socie-
dade brasileira na contemporaneidade e não podem ser trabalhadas de
forma superficial no currículo escolar.

O produto pedagógico
O Mestrado Profissional em História da África, da Diáspora e dos
Povos Indígenas oportuniza ao professor da Educação Básica sanar, em
parte, suas inquietações sobre a insuficiência de materiais didáticos que
trate da História do Recôncavo e da História Local, de forma a aproximar
o currículo escolar do contexto em que os estudantes estão inseridos.
De qualquer forma, tais iniciativas dos Mestrados
Profissionais em História brasileiros procuram
responder aos desafios de realizar a formação
continuada e crítica na pós-graduação mediante
e em paralelo com a pesquisa aplicada em His-
tória. Ambas podem fundamentar uma guinada
relevante no campo da produção didática no país
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 137

ao subsidiar acadêmica e tecnicamente a elabo-


ração sistemática e contínua de materiais pelos
próprios professores. É uma maneira de fazer
emergir conteúdos e saberes locais/regionais,
compartilhados com a escola e com a comuni-
dade na qual o professor se insere e/ou atua [...]
(ALMEIDA 2016, p. 241).

Dessa forma, ao oportunizar como requisito para conclusão do


curso a apresentação de trabalhos em outras modalidades, além da dis-
sertação, permite aos educadores construírem seus materiais didáticos
mais condizentes com a realidade sócio-histórica das escolas que estão
inseridos de forma a minimizar as lacunas presentes nos livros didáticos,
manipulados, ainda, pelos grupos dominantes e pela indústria cultural.
A cerca dessa questão, Ferro (1983) pontua que o passado da
África negra foi manipulado pelo colonizador, moldando o conteúdo
da história de acordo com os interesses dos grupos dominantes, situ-
ação semelhante assistiu-se por séculos no Brasil e, infelizmente, en-
contramos grupos que insistem em promover uma desconstrução da
história dos negros e afrodescendentes no currículo escolar reduzindo-
-os as imagens dos sofrimentos da escravidão ou vitimando-os como
mecanismos de dominação intelectual.
No entanto, não se pretende, nas discussões levantadas na pes-
quisa, deixar de pontuar a importância do livro didático como um ins-
trumento no processo de ensino-aprendizagem, bem como a dimen-
são social e democratizante do Programa Nacional do Livro Didático,
mas o intuito é sinalizar para as limitações que o livro apresenta e que
pode constituir-se em elemento de disseminação de preconceitos, na
medida em que livros descontextualizados são utilizados por algumas
escolas quilombolas no Brasil, os quais não atentam para as questões
ligadas a diversidade cultural.
É nesse contexto que o paradidático intitulado “Lucinda: minhas
escolhas me fizeram retornar ao quilombo” foi projetado como suporte
pedagógico, apresentando as seguintes finalidades: motivar o profes-
sor a produzir seus próprios materiais didáticos; trabalhar o contexto
social em que a vida do estudante está inserida; produzir um material
138 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

didático que levantasse diversas questões sobre a história da África,


filosofias africanas, contexto do surgimento das comunidades rema-
nescentes de quilombo ou quilombos contemporâneos; condições so-
ciais e posições ocupadas pela mulher negra na sociedade, a influência
dos diferentes marcadores sociais na vida das mulheres negras, o pre-
conceito racial e todas as formas de discriminações. Essas discussões
e muitas outras a serem suscitadas perpassam pelas competências e
habilidades dos diversos componentes curriculares, haja vista que os
conteúdos escolares também podem emergir das relações cotidianas
de forma mais significativa, sistematizados e contextualizados dentro
dos currículos oficiais, de forma que educadores e educandos reflitam
sobre a forma como as sociedades são herdeiras de saberes tradicio-
nais que coexistem na contemporaneidade e não são valorizados nas
práticas curriculares de algumas escolas.
Assim, o paradidático está dividido em duas partes: na primei-
ra, a personagem principal vive fora do quilombo, na cidade de Salva-
dor e não se aceitava negra, nem quilombola. A personagem tem sua
vida movimentada por acontecimentos nacionais, como a Proposta de
Emenda Constitucional – PEC 215, conhecida como marco temporal, a
qual faz uma reviravolta na cabeça da personagem, Lucinda, fazendo-
-a regressar ao quilombo de forma a se reencontrar com seu passado,
dando um novo significado ao seu presente. A segunda parte assinala o
retorno de Lucinda ao quilombo e, em meio ao seu mergulho no passa-
do, a sua vida no quilombo vai se entrelaçando às narrativas biográficas
das mulheres quilombolas que foram objeto de estudo desta pesquisa.
A sensibilidade com a forma em que alguns aspectos da cultura
africana seriam abordados no decorrer do livro também foi algo cru-
cial que emanou um debruçar em pesquisas sobre filosofias de vidas
de diferentes povos africanos, pois o objetivo principal era fazer surgir
aspectos da cultura africana pouco abordada nos livros didáticos e que
despertassem a curiosidade do leitor na busca por mais informações
sobre o seu conteúdo. Além disso, a preocupação em dar ênfase à ma-
nifestação social contra a PEC tem por finalidade apontar a força dos
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 139

movimentos sociais e a atual conjuntura de ameaça aos direitos sociais


historicamente conquistados, algo que suscita maiores aprofundamen-
tos em sala de aula.

Considerações finais
Os processos de desenvolvimento desta pesquisa despertaram a
compreensão de que as práticas sociais também produzem um conhe-
cimento que precisa ser legitimado nos currículos escolares. Assim, no
decorrer dos estudos sobre as narrativas de vidas das mulheres quilom-
bolas, sujeitos desta pesquisa, identificou-se a importância dessas mu-
lheres para a preservação da tradição, cultura, história e da identidade da
comunidade da Baixa da Linha, bem como se evidenciaram também, as
riquezas na produção dos conhecimentos advindos das vivências coti-
dianas dessas mulheres como uma forma de saber a ser considerado nos
currículos oficiais das escolas do município de Cruz das Almas.
Nesse contexto, levantou-se com a pesquisa, que o município
de Cruz das Almas, embora possua duas comunidades remanescentes
de quilombos certificadas, não possuí uma proposta educacional ofi-
cial que valorize as relações raciais e nem muito menos uma educação
escolar quilombola. Portanto, as narrativas de mulheres quilombolas
apresentam-se como iniciativas possíveis de se inserir nas práticas pe-
dagógicas discussões que envolvam a educação para as relações étni-
co-raciais na escola, alinhadas nos diversos componentes curriculares,
haja vista que essas comunidades possibilitam um trabalho com prá-
ticas de linguagem diversificadas; os conhecimentos das vivências das
mulheres quilombolas possibilitarão ao educando, a partir do contexto
social, conhecimentos no campo da ciência da natureza, a partir da
compreensão dos aspectos mais complexos das relações dos agentes
sociais com a natureza, com as tecnologias e com o ambiente. Além
disso, no campo de estudos da área das ciências humanas, através da
exploração sistemática do contexto sócio-histórico da comunidade es-
tudada na pesquisa, os educandos compreenderão também os proces-
sos intrínsecos à formação do conceito de identidade, expressa entre
140 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

outros aspectos nas vivências das mulheres e da coletividade, nas suas


relações com os lugares construtores da memória social, valorizando as
ações dos diferentes sujeitos sociais.
Dessa forma, essa pesquisa constitui-se um importante passo
para minimizar as lacunas e omissões presentes no currículo do Ensi-
no Fundamental II, das escolas municipais de Cruz das Almas, abrindo
novas perspectivas para o desenvolvimento de outros trabalhos sobre
o tema, além de diversificar as produções didáticas, incentivando maio-
res discussões no âmbito acadêmico.

Referências
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Quilombolas e novas etnias.
Manaus: UEA Edições, 2011, 196p.

ALMEIDA, Leandro Antônio de. Produção de livros didáticos no


mestrado profissional de História: relato de experiência a partir de
uma disciplina da UFRB. Revista História Hoje, v.5, nº 9, p. 221-248 –
2016. Disponível em: https://rhhj.anpuh.org/RHHJ/article/view/228.
Acesso: 15 dez. 2018.

ARROYO, Miguel G. Currículo, território em disputa. 4. ed. Petró-


polis, RJ: Vozes, 2012.

ARRUTI, José Maurício Paiva Andion. Mocambo: antropologia e his-


tória do processo de formação quilombola. Bauru, SP: Edusc, 2006.

BÂ, A. Hampâté. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (Ed.). Metodo-


logia e pré-história da África - História Geral da África da Unesco,
2010, p. 168. Disponível em: http://www.casadasafricas.org.br/wp/
wp-content/uploads/2011/08/A-tradicao-viva.pdf. Acesso em: 15
dez. 2018.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 05 de outu-


bro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituição.htm>. Acesso em: 08 ago. 2018.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 141

______. Decreto nº 4887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta


o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das
comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Dis-
posições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil. Poder Executivo, Brasília, DF, 21 nov. 2003.
Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.
htm>. Acesso em: 06 ago. 2018.

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Re-


lações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
-Brasileira e Africana. Brasília: MEC, 2006. Disponível em: http://
www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp- content/uploads/2012/10/DCN-s-E-
ducacao- das-Relacoes-Etnico-Raciais.pdf

CARRIL, Lourdes. Quilombo, Favela e Periferia: a longa busca da


cidadania. São Paulo: Editora Annablume, FAPESP, 2006. p. 207-39.

FERRAÇO, Carlos Eduardo; CARVALHO, Janete MAGALHÃES. Currí-


culo, cotidiano e conversações. Revista e-curriculum, São Paulo, v.8
n.2 agosto 2012http://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum. Acesso
em 30 out. 2018.

FERRO, Marc. A manipulação da história no ensino e nos meios


de comunicação, 2 ed. São Paulo: IBRASA. 1999. 306 p.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1987.

GUERRA, Denise Moura de Jesus. Pesquisa-ação em educação: arti-


culações significativas com a práxis formativa. In: MACEDO. Currícu-
lo e processos formativos: experiências, saberes e culturas / Ro-
berto Sidnei Macedo ... [et al], organizadores; participação de Pierre
Dominicé ; prefácio, Álamo Pimentel. - Salvador: EDUFBA, 2012.
(Escritos formaceanos em perspectiva). 301 p.

MOURA, Glória. O direito à diferença. In: MUNANGA, Kabengele


(Org.). Superando o Racismo na Escola. 2. ed. Brasília: Ministério
142 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e


Diversidade, 2008. p. 69-82.

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Histó-


ricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. Disponível em: <http://
bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2278/1417>.
Acesso em: 29 ago. 2018.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdu-


ção às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. 154p.
PARTE III
EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA
A experiência: aqui é África-
teatro do negro na educação

Frederico da Luz Santana Filho


Cláudio Orlando Costa do Nascimento
Rita de Cássia Dias Pereira de Jesus

Introdução
Este trabalho apresenta os caminhos percorridos para a realização
da pesquisa intitulada “Aqui é África – Teatro do Negro na Educação”, re-
alizada no período de 2015 a 2017, vinculada ao Programa de Pós-gra-
duação do Mestrado Profissional de História da África, da Diáspora e dos
Povos Indígenas do Centro de Artes, Humanidades e Letras – CAHL da
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, na cidade de Cachoeira, des-
tacamos a importância do aprendizado, das orientações precisas, e das
palavras necessárias que qualificaram este estudo. Ólorum mo dupép!
A africanidade herdada pelos/as afro-brasileiros/as, ainda é para
a maioria, algo compreendido muito superficialmente. Há lacunas que
vão desde conhecimentos mais elementares sobre o continente africa-
no, até o reconhecimento do papel dessa identidade como constituinte
das realidades vividas cotidianamente, ainda permeadas pelo racismo
e pela exclusão que dele se origina. Por isso, “... precisamos dos nossos
parentes africanos, por que aqui também é África29”!
Essa compreensão de pertencimento e identidade causa uma
transformação imediata da visão sobre o que pensava a respeito da
África, e de qual seja o seu legado para nós, afro-brasileiros/as. Junto

29  - Esta potente frase é do professor Ubiratan Castro, então presidente da Funda-
ção Pedro Calmon, órgão vinculado, a Secretaria Estadual de Cultura do Estado da
Bahia, no evento do “Dia Mundial da África – África e Diáspora,” realizado pela Pre-
feitura de São Francisco do Conde, no dia 25 de maio de 2012, o evento que também
celebrava em solo baiano, a chegada da Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-Brasileira-UNILAB, através da implantação do Campus dos Malês na
cidade de São Francisco do Conde-Bahia.
146 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

com ela vêm as inquietações sobre o que é possível ser feito para con-
tribuir como ativistas afrodescendentes para uma mudança de para-
digma na educação, e na sociedade brasileira.
Descolonizar-se é uma necessidade. Não podemos deixar que
passem despercebidas as lutas travadas ao longo da história desse
país, como ações de enfrentamento à maior violência sofrida pelos po-
vos africanos e indígenas: a escravidão.
A pesquisa realizada centra-se na elaboração de um material di-
dático com foco na linguagem artística do teatro, na dramaturgia como
principal elemento explorado, para a mobilização em torno das tensões
geradas pelo debate racial no Brasil.
Essa escolha foi pautada pelo campo do vivido no movimento so-
cial, pela experimentado do ato cênico, trazendo o sentido das questões
raciais para a cena, perspectivando o teatro no fazer educativo e peda-
gógico, auxiliando professores/as com dificuldade de chamar para si,
a responsabilidade da discussão do impacto do racismo na sociedade.
A dramaturgia é possibilita a inclusão na pauta de temas rele-
vantes que refletem as histórias de vida dos/as discentes e docentes
que comumente, não são colocados como protagonistas nas questões
raciais. Temáticas como: pertencimento racial, religiosidade, imigração,
xenofobia, LGBTQI+, negritude, quilombismo, juventude negra, cultura
negra, sexualidade, cor, raça, gênero, ancestralidade, dentre outros que
envolvem o cotidiano da escola.
A metodologia para essa elaboração centrou-se em duas fren-
tes: a análise de materiais didáticos, mirando nas determinações que
dispõe o Plano Nacional do Livro Didático, focando na identificação da
equidade racial para efetivação das políticas de ações afirmativas pre-
vistas nas Leis Federais 10.639/2003 e 11.645/2008 que dispõem sobre
a obrigatoriedade do Ensino da História da África, dos Africanos e da
Cultura Afro-brasileira e Indígena na Educação Básica.
Ainda nesta etapa foi feito um denso aprofundamento teórico
acerca dos conceitos sobre o campo de conhecimento da educação,
da arte, da arte-educação e das questões raciais, que permitisse novas
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 147

compreensões referentes aos discursos produzidos na prática educati-


va dos educadores e educadoras no âmbito da escola. Podendo assim
ofertar alternativas para o debate coerente, democrático e principal-
mente, responsável sobre as questões étnico-raciais.
Foram analisados os livros didáticos utilizados em facilitação de
oficinas de teatro, em comunidades e escolas públicas parceiras, nos
projetos sociais vinculadas à CENPA BAHIA30. São eles: Manual de Cria-
tividade da autoria de Paulo Dourado e Maria Eugenia Millet, editado
em 1998; O Jovem Lê e Faz Teatro da autoria de Gabriela Rabelo, edi-
tado em 2007 e Jogos Teatrais para Sala de Aula: Atividades Globais de
Expressão da autoria de Olga Garcia Reverbel e ilustrações de Mariân-
gela Haddad, editado em 2009.
Ao examiná-los a partir de uma observação instituída com cri-
térios nos quais ponderava a qualidade estética, a abordagem dos
conteúdos e acesso do livro na unidade escolar, sem relação direta
com o seu enquadramento na Política Nacional do Livro Didático, cons-
truiu-se, um plano de trabalho contemplando a escrita das peças que
se constituiriam na elaboração do material didático, chamado “Aqui É
África – Teatro do Negro na Educação”, o produto final da pesquisa, um
conjunto de peças e esquetes teatrais para a abordagem das questões
étnico-raciais nas escolas.
Este material didático reúne reflexões pessoais, experiências no te-
atro, no movimento social, na educação e na escrita das peças propondo
a ampliação do debate, como sujeitos implicado no processo de pesqui-
sa, bem como, a compreensão do ato político nas implicações da forma-
ção de currículo, fazendo interface direta com a linha de pesquisa: Ensino
de História, Educação Inter-Étnica e Movimentos Sociais do programa.
Em seguida aos esforços empreendidos nas fases iniciais, uma
estratégia foi estabelecida: a apresentação das peças, a cinco educado-
ras sem formação em arte, objetivando receber suas impressões com
30  - Coordenação Especializada em Núcleos de Promoção a Arte, Comunicação,
Turismo, Educação, Saúde, Cultura e Cidadania – CENPA BAHIA, fundada em 1996, é
uma associação sem fins lucrativos, com sede no bairro de Pernambués, na cidade
Salvador - Bahia.
148 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

relação à dramaturgia, e à possibilidade de conexão das histórias com


as realidades dos/as estudantes das unidades escolares.
Saliento que outro grande desafio, após a escrita e as análises foi
a estruturação das circunstâncias propostas das peças com o aprofun-
damento teórico realizado, pois este processo requeria o rigor acadê-
mico necessário para a configuração de uma pesquisa científica desa-
fiadora que articulava dois campos muito amplos de análise/; as artes
e as questões étnico-raciais
O material didático produzido é uma oportunidade de trocas de
experiências, ao ser utilizado, sobretudo pelos/as educadores e educa-
doras que não têm formação em teatro, pois possibilita a promoção de
vivências das situações sobre as quais se debruçarão em reflexões pos-
teriores, no intuito de gerar ações antirracistas para a erradicação do
preconceito e da discriminação, acessando conhecimentos (sem medo
e sem constrangimento), relacionados a todos e todas, proporcionan-
do ações afirmativas, por meio de uma educação cidadã no universo
da escola.

O trajeto teórico
Nesse processo quatro grandes blocos de conhecimentos for-
mam o trajeto teórico-epistemológico: Educação; Teatro; Metodologias
e Relações Raciais. O estudo sobre a Educação refere-se às bases re-
gulamentadas na legislação brasileira a partir da LDB 93494/96, e as
Diretrizes Curriculares Nacionais para as Relações étnico-raciais (2004),
as contribuições de Freire (1996), consolidam o lugar do pensamento
crítico na práxis educativa, e a importância sobre diferença, igualdade e
garantia de direitos para o exercício da cidadania na Educação Básica.
Comprovando a importância do educador e da educadora como
enfatiza Paulo Freire (1996):
O educador democrático não pode negar-se o
dever de, na sua prática docente, reforçar a capa-
cidade crítica do educando, sua curiosidade, sua
insubmissão. Uma de suas tarefas primordiais é
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 149

trabalhar com os educandos a rigorosidade me-


tódica com que devem se “aproximar” dos objetos
cognoscíveis (p.26).

Compreensão que se configura a notória necessidade da edu-


cação problematizadora e política para formação de educadores e
educadoras.
O tema do Teatro se institui com as contribuições de autores/as
que dão sentido à compreensão da potência da arte como tecnologia
formativa, e elemento essencial de referência para o ato pedagógico
e a dimensão teórica, a partir do entendimento do domínio da técnica
do teatro clássico, a experimentação como teatro ritual, e a contribui-
ção histórica do Teatro Experimental do Negro, como concebido por
Abdias do Nascimento.
A metodologia da pesquisa se debruçou sobre as contribuições
de teóricos que legitimam o conceito de pesquisar as histórias de vida
e a experiência, como processo vivido do homem de teatro em atos
formativos sobre etnopesquisa, repercutindo na formação de currículo
cidadã, balizando a experiência como centro do estudo e demarcado
como processo pesquisado.
Nesta perspectiva, cabe o destaque sobre toda a abordagem me-
todológica que nos diz Macedo (2010):
Vinculada à tradição da história oral, a história
de vida é outro recurso metodológico pertinente
exercitado no âmbito da etnopesquisa. Não re-
presentam dados convencionais da ciência social,
nem é uma autobiografia, também não represen-
ta um exercício de ficção. Embora o trabalho seja
apresentado a partir do enfoque do pesquisador,
este enfatiza o valor da perspectiva do ator social
(p.111).

Revelando uma modalidade complexa que exige muito do/a pes-


quisador/a do pensamento sobre o ato político e a formação de currí-
culo no âmbito das experiências e das histórias de vidas.
No que concerne às Relações Étnico-raciais, as implicações em
Munanga (2001) favoreceram o panorama sobre as artes e diversidades
150 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

étnico-raciais, possibilitando a compreensão nas abordagens docen-


tes, utilizando a linguagem artística, as publicações dos órgãos oficiais,
adentrando de modo efetivo no universo da legislação 10.639-03 e
11.654/08, compreendendo o efeito da lei no campo prático da escola.
Nesse aspecto, o grande farol é o anúncio do professor Kabenge-
le Munanga, na obra Superando o Racismo na Escola (2001):
Os mesmos preconceitos permeiam também as
relações sociais de alunos entre si e de alunos com
professores no espaço escolar. No entanto, alguns
professores, por falta de preparo ou por precon-
ceitos neles introjetados, não sabem lançar mão
das situações flagrantes de discriminação no espa-
ço escolar e na sala como momento pedagógico
privilegiado para discutir a diversidade e conscien-
tizar seus alunos sobre a importância e a riqueza
que traz à nossa cultura e à nossa identidade na-
cional (MUNANGA, 2001, p.7).

Com isso podemos ampliar as descobertas que acontecem no


campo das relações raciais, relacionando-as com as histórias de vidas,
das experiências, da identidade, e extrapolando para a composição do
teatro experimental do negro e do quilombismo, assim como, pode-
mos realizar o reconhecimento de pensadores/as que se revelam atu-
ais, necessários e potentes para o debate da descolonização do pensa-
mento na atualidade.

Onde está a África em nós?


“Aqui é África – Teatro do Negro na Educação” consolidou-se
como material didático, um instrumento para os educadores e as edu-
cadoras, especialmente, os que não têm formação em arte e/ou lingua-
gem artística, mas que possam usufruir do conteúdo para a dinamiza-
ção das aulas, direcionadas para implementação da legislação vigente.
A questão central do ensino de Arte no Brasil diz
respeito a um enorme descompasso entre a pro-
dução teórica, que tem um trajeto de constantes
perguntas e formulações, e o acesso dos professo-
res a essa produção que é dificultado pela fragili-
dade de sua formação, pela pequena quantidade
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 151

de livros editados sobre o assunto, sem falar nas


inúmeras visões preconcebidas que reduzem a ati-
vidades artísticas na escola a um verniz de superfí-
cie, [...] (BRASIL, 1997, p.31).

Esse é o retrato de um país que dá pouca importância às Artes


como profissão, há muito que se discutir sobre a situação dos compo-
nentes de artes no currículo, nas escolas de educação básica, especial-
mente, as questões estruturantes como formação continuada, condi-
ções de aulas, materiais e espaço físico na escola.
O livro elaborado foi divido em três partes: a primeira parte é
composta por quatro textos: Questões Étnico-Raciais e a Escolas; Te-
atro do Negro na Educação; Orientações para a Encenação e Oficinas
Teatrais para a Sala de Aula, com dois introdutórios e dois funcionais,
respectivamente.
Os textos introdutórios dialogam com o universo da escola e as
relações entre educando/a e educador/a, permitindo maior aproxima-
ção com os componentes curriculares, servindo de sustentação para
encarar os desafios sociais e, ao mesmo tempo, garante uma centrali-
dade de possibilidades no desenvolvimento metodológico, para a am-
pliação do conhecimento na unidade escolar.
Ainda nessa parte os dois textos funcionais: Orientações para
Encenação e Oficinas de Teatro para Sala de Aula, permitirão aos edu-
cadores e as educadoras se familiarizarem com o universo do teatro,
dando entendimento sobre o universo cênico, usando o teatro como
uma importante tecnologia didático-metodológica.
A segunda parte é formada pelo conjunto das cinco peças, que
materializam todo o arcabouço teórico, com o qual os educadores/
as proporão debates ao longo do ano letivo. Encenadas em processo
coletivo de sala de aula, elas anunciam os dramas vividos pelas per-
sonagens sobre as questões raciais de maneira realista, transpondo o
universo ficcional e confrontado com a realidade vivida pelos/as estu-
dantes e educadores/as, imergindo suas histórias de vidas, o contato e
a consciência corporal, a criatividade, o divertimento e o mais impor-
tante, o fazer teatral.
152 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Contribuindo para a potencialização do uso dos marcos regu-


latórios no debate democrático no ambiente escolar, as peças têm as
seguintes temáticas centrais:
VENTRE NEGRO: descreve o lamento de uma mulher negra grávi-
da, angustiada em parir seu filho em uma sociedade injusta e cheia de
problemas sociais para o povo negro.
AQUI É ÁFRICA! Conta como tema central a imigração, o inter-
câmbio de jovens negros de países africanos, latinos e centro-america-
nos para o Brasil, provocando o debate sobre a legitimidade e direito,
equacionando com a situação real do país, que enfrenta conflitos inter-
nos da sociedade cada vez mais xenofóbica.
NEGRO ECO: narra a luta de um ativista que quer garantir a igual-
dade racial para seu povo, propondo a criação de novos modos de
organização social, tal como, o Quilombismo, uma referência histórica
direta à Abdias do Nascimento, a partir da luta por direitos, discutindo
ações afirmativas com suas contradições e avanços.
A CHAVE: a única fábula fora do território nacional, narra o coti-
diano de uma pequena civilização chamada de Nova Kush distante do
tempo e do espaço, herdeira de antiga civilização africana nas terras da
Etiópia, conhecida por Kush, tem várias heranças ancestrais de outros
reinados, sendo habitada por seres mitológicos, guerreiros e anciões.
MARCAS E MÁSCARAS: narra às aventuras de seis amigos de di-
ferentes personalidades que estão dispostos a encarar e falar de assun-
tos sérios, reconhecendo as marcas e máscaras que herdaram de uma
sociedade carregada de preconceito e discriminação racial, sexual, de
cor, de gênero, de desigualdades socioeconômicas, além do estilo e
comportamento que permeiam o cotidiano da juventude.
A dramaturgia é um intimo diálogo com autores/as que dão
legitimidade às circunstâncias propostas e as falas das personagens,
por meio dos diálogos que tensionam o discurso social e os diversos
pensamentos, estruturados em padrões que não cabem na sociedade
atual. A intencionalidade das peças permite o contato com as temáticas
abordadas, podendo ser transformadas e adaptadas para a realidade
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 153

de cada unidade escolar, os/as destinatários/as e receptores/as do ma-


terial podem e devem fazer isso, pois toda dramaturgia é adaptável.
A terceira e última parte compõe-se de um apêndice com um
glossário e anexos:
O glossário permitirá que os educadores e as educadoras, reco-
nheçam as palavras utilizadas no material; a preocupação não é fazer
uma tradução literal das palavras, mas garantir em primeiro momento,
ter uma resposta rápida sobre as palavras ou termos. Inclusive serve
como uma sugestão de atividade para os/as estudantes, durante o pro-
cesso de ensino, ensaio e produção das peças, possibilitando a intera-
ção e o envolvimento entre os/as mesmos.
Os anexos são compostos por cinco formulários que também
são uma sugestão para facilitar o monitoramento das aulas e da mon-
tagem das peças; os mesmos, não são instrumentos de avaliação, mas
podem oportunizar uma visão geral para o processo de acompanha-
mento da encenação.

Considerações finais
Sinalizamos que o livro “Aqui é África – Teatro do Negro na Edu-
cação” deve ser encarado como uma abordagem multirreferencial das
questões étnico-raciais, que congrega a um só tempo corporeidade,
ancestralidade, identidade com expressão e conteúdo.
A utilização das peças deve ser dialógica com a coordenação e
toda equipe gestora da escola, para assim ter uma melhor dinamização
e impacto nas discussões e nas práticas das políticas de ação afirmati-
vas implementadas pela escola.
Ao final, esta abordagem é a um só tempo metodológica e epis-
temológica, pois trata de um modo de construir conhecimento de for-
ma engajada e implicada com as realidades vividas pelos sujeitos do
processo de ensino e de aprendizagem.
A pesquisa e a prática da sua experimentação como uma ação
formativa concreta com estudantes e professores/as da escola públi-
154 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

ca, no Recôncavo da Bahia, sinaliza para a importância da consecução


de uma Dramaturgia Negra, potente e necessária como ferramenta de
fortalecimento pedagógico, colaborando com os/as nossos/as iguais,
projetando-os, como construtores/as de saberes das suas práticas no
processo formativo da educação básica brasileira. Assim como, saímos
autorizados/as deste ato político, consagrado em todo o percurso sim-
bólico e acadêmico vivido, lutando contra o racismo estrutural no Brasil.

Referências

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curricu-


lares nacionais: arte/Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília:
MEC/SEF, 1997.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prá-


tica educativa. – São Paulo: Paz e Terra, 1996.

MACEDO, Roberto Sidnei. Etnopesquisa crítica, etnopesquisa-for-


mação/ – Brasília: Liber Livro Editora, 2010.

____________. Pesquisar a experiência compreender/mediar sabe-


res experienciais/Roberto Sidnei Macedo. – Curitiba, PR: CRV, 2015.

MUNANGA, Kabengele org. Superando o Racismo na escola. 2ª


edição revisada. – [Brasília]: Ministério da Educação, Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2001.
Jogos educativos de origem
Africana e afro-brasileira

João de Deus Fonseca Junior


Rita de Cássia Dias Pereira de Jesus

Introdução

Este texto aborda a pesquisa de mestrado que deu origem ao


livro intitulado “Jogos Educativos de origem africana e afro-brasileira”,
que visa a oferecer suporte teórico para professoras/as, de modo a
viabilizar a utilização dos jogos educativos de origem africana e afro-
-brasileira como recurso pedagógico para o ensino nos Anos Iniciais do
Ensino Fundamental (1º ao 5º Ano), da Educação Básica.
Nossas experiências com a temática se entrecruzam nas vivências
negras no Recôncavo. Negro/a, oriundo de família da classe trabalha-
dora brasileira. A infância vivida em Cruz das Almas e Cachoeira foi
marcada por muita diversão, foram horas de prática de jogos e brinca-
deiras, nessa época aprendíamos as brincadeiras com os mais velhos
e com liberdade. Ao fim da adolescência decidi trilhar o caminho dos
estudos, no Curso de Educação Física, tive a oportunidade de conhecer
o universo da cultura corporal, e nela, encantei-me pela temática “dos
jogos e das brincadeiras”. Notamos a riqueza pedagógica dos jogos,
e decidimos aprofundar conhecimentos e práticas, como brincantes,
como praticantes e como educador/a, experiência que tivemos junto
ao Programa Esporte & Cidadania (Ministério dos Esportes/ Instituto
Esporte e Educação/ UFRB/ GUETTO), e na formação, no Programa de
Mestrado Profissional em História da África, da Diáspora e dos Povos
Indígenas, do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), na realização da pesquisa “Os
jogos educativos de origem africana e afro-brasileira”.
156 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Enfocamos assim, através de abordagens diferenciadas a cultura


e a diversidade cultural, e a presença da herança negra e afro-brasileira,
como um elemento formador, extensivo a escolarização formal, através
dos jogos vinculados a estas matrizes, reconhecendo suas implicações
para o ensino, e para a aprendizagem, em contextos socioculturais e ét-
nico-raciais plurais, como o brasileiro/baiano, servindo, portanto, como
um contributo para a educação das relações étnico-raciais e para a im-
plementação da lei Federal 10.639/03 que insere o ensino da História e
Cultura Africana e afro-brasileira na educação básica brasileira.

Os jogos e a cultura
O conceito de cultura no singular pode ser considerado impró-
prio tendo em vista as culturas humanas em sua mais ampla variedade.
Neste sentido, o antropólogo Roque Laraia (2001), afirma que:
Culturas são sistemas (de padrões de compor-
tamento socialmente transmitidos) que servem
para adaptar as comunidades humanas aos seus
embasamentos biológicos. Esse modo de vida
das comunidades inclui tecnologias e modos de
organização econômica, padrões de estabele-
cimento, de agrupamento social e organização
política, crenças, práticas religiosas, e assim por
diante (p.31).

Abordando a cultura e a educação física, o professor Jocimar Da-


olio (2004), afirma que o termo "cultura" parece definitivamente fazer
parte do campo da educação física. Depois do predomínio das ciências
biológicas nas explicações do corpo, da atividade física e do esporte,
hoje parece estar dividida com os conhecimentos provindos de outras
áreas, tais como a antropologia social, a sociologia, a história, a ciência
política e outras (DAOLIO, 2004). Muitos estudiosos da educação física
tentam compreender as manifestações corporais humanas consideran-
do a perspectiva cultural.
Para Daolio,
A “cultura" é o principal conceito para a educação
física, porque todas as manifestações corporais hu-
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 157

manas são geradas na dinâmica cultural, desde os


primórdios da evolução até hoje, expressando-se
diversificadamente e com significados próprios no
contexto de grupos culturais específicos (2004, p. 9).
Propondo os jogos como ação cultural e educativa, Kishimoto
(1993) afirma que os jogos têm diversas origens e culturas que são
transmitidas pelos diferentes jogos e formas de jogar, tendo a função
de construir e desenvolver uma convivência entre as crianças estabe-
lecendo regras, critérios e sentidos, possibilitando assim, um convívio
mais social e democrático, porque enquanto manifestação espontânea
da cultura popular, os jogos têm a função de perpetuar a cultura infan-
til e desenvolver formas de convivência social. A referida autora ainda
afirma que ao trabalhar com jogos e brincadeiras são apontadas distin-
tas possibilidades e finalidades: “1. Recreativa; 2. Ensino de conteúdos
escolares; 3. Diagnóstica, a fim de se ajustar o ensino às necessidades
infantis” (KISHIMOTO, 1994, p.118). No entanto, para que o jogo alcan-
ce ao máximo o seu potencial no desenvolvimento infantil, é necessário
que o/a professor/a planeje intencionalmente como forma de atender
às necessidades apresentadas pelas crianças.
Lima (2008) nos mostra que ao longo do tempo, foram criados
obstáculos com relação ao jogo e à brincadeira no processo educati-
vo. Contudo, defendemos que os jogos podem ser utilizados de forma
complementar, colaborando na superação da falsa dicotomia entre o
jogar e o aprender que se instalou nos ambientes escolares.
A proposta de utilizar de forma complementar
o jogo e as tarefas escolares exige do professor,
por meio do processo de formação e de estudo,
uma mudança de concepção, que o leve a aceitar a
criança como um ser interativo, imaginativo, ativo
e lúdico e descubra o potencial de desenvolvimen-
to que está por trás das brincadeiras e dos jogos
(LIMA, 2008, p.28).

Assim, seguimos o pressuposto que a aprendizagem por meio do


jogo que acontece em um contexto sociocultural, desta forma, busca-
-se referência na teoria vygotskyana do desenvolvimento humano para
apreender o sentido que ali é empreendido este conceito.
158 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Muitos tipos de atividades no período do desenvolvimento in-


fantil possuem seus motivos (aquilo que estimula a atividade) em si
mesmos, por assim dizer. Quando, por exemplo, uma criança constrói
com blocos, é claro que ela não age assim porque essa atividade leva a
um certo resultado que satisfaz a alguma de suas necessidades; o que
a motiva a agir, nesse caso aparentemente, é o conteúdo do processo
real da atividade dada (VYGOTSKY, 2010, p. 119). No mesmo sentido,
definir o jogo e a brincadeira como atividades prazerosas para crian-
ça, para Vygotsky é incorreto por duas razões: muitas atividades dão
à criança experiências de prazer muito mais intensas do que o brin-
quedo, e segundo, existem jogos e brincadeiras nos quais a própria
atividade não é agradável. Podemos observar uma partida de futebol
entre crianças, em que esta atividade se encerra com o placar de 10x0.
Essa atividade competitiva será prazerosa para quem perdeu? Será pra-
zerosa para uma criança que tenha dificuldade motora ou por algum
motivo não goste de praticar essa atividade específica, mesmo assim,
ser “obrigada” a praticar? Neste caso, a/o professor/a precisará criar
estratégias, para evitar que situações como estas venham ocorrer.
Tendo o objetivo de diversificar as atividades físicas de modo a
alcançar, de forma colaborativa e mutualista, a participação de todas as
crianças envolvidas, propusemos uma metodologia sociocultural que
se aproxima das experiências de vidas dos/as estudantes, as Rodas de
Saberes e Formação (JESUS e NASCIMENTO, 2012), por entender que
elas propiciam condições para que os participantes possam assumir-se
como seres históricos, culturais e pensantes, em horizontalidade.
Neste sentido, durante a realização dos jogos em ambientes es-
colares, as (RSF) devem ocorrer antes, e após a execução dos jogos,
com intuito de revisitar e reviver as vivências das ocorrências anterio-
res, e apresentar a proposta a ser realizada no dia, além de realizar
a avaliação no final da ocorrência. Esta sistemática se adéqua bem à
regularidade das aulas, e às práticas pedagógicas de planejamento e
avaliação continuada do ensino e da aprendizagem.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 159

Revisitando as epistemologias
Amaioria dos jogos africanos e afro-brasileiros são praticados em
grupos e exigem a capacidade de cooperação para que se tornem di-
vertidos (CUNHA, 2016, p. 23). Os jogos apresentados na abordagem
do material didático elaborado, mesmo quando envolvem a compe-
tição, permite a participação de muitas crianças jogando ao mesmo
tempo, meninos e meninas jogando juntos/as, competindo ou não em
equipe ou individualmente. Essa é característica que facilita a inclusão
desses jogos no ambiente escolar, pois fomentam a participação sem
definições de exclusividade de gênero/idade/tipo físico etc.
Os jogos apresentados baseiam-se em uma compreensão dos
processos educativos presentes na prática dos jogos africanos e afro-
-brasileiros, no contexto educacional, em uma abordagem multirrefe-
rencial, estabelecida pelas culturas de origem e pelos/as participantes
envolvidos/as nas vivências.
Busca-se realinhar na experiência educativa formal aspectos da
vida da criança, logo, corporeidade, ludicidade, constituindo uma “pe-
dagogia do brincar” (LUCKESI, 2014), do nosso ponto de vista, muito
presente nas vivências, nas experiências nos modos de educar das tra-
dições comunitárias de origem africana e afro-brasileira.
Desse lugar étnico-racial e socialmente referenciado professo-
res/as assumem um papel específico muito significativo, no contexto
da educação escolar, como mediador/a, organizador/a dos tempos e
das possibilidades da proposta pedagógica, que deve ser o instrumen-
to da liberdade de construção sociocognitiva das crianças. Isso implica
em uma demanda específica por autoconhecimento e por formação
específica, a formação lúdica deve possibilitar “ao futuro educador co-
nhecer-se como pessoa, saber de suas possibilidades e limitações, des-
bloquear suas resistências e ter uma visão clara do jogo e do brinquedo
para a vida da criança, do jovem e do adulto” (SANTOS, 1997, p.14).
Desenvolvemos nesta pesquisa que foi também um processo de
auto formação a experiência de vivências concretas com crianças em
160 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

ambientes escolares na Cidade de Cruz das Almas, a metodologia co-


adunou-se com a epistemologia utilizada, gerando assim adaptações,
(re)apropriações e (re)configurações dos jogos e brincadeiras, a partir
da experiência concreta com as crianças. Apresentaremos a seguir al-
gumas proposições de jogos e brincadeiras:
Terra e mar:(versão original / Origem- Moçambique)
Jogo das comunidades: (versão adaptada)
Início da atividade – Sugere-se que todos os jogos, sejam inicia-
dos por meio da Roda de Saberes e Formação (RSF), momento em que
o/a professor/a apresentará a atividade, introduzirá o conteúdo a ser
trabalhado, bem como esclarecererá possíveis dúvidas.
Descrição do jogo (versão adaptada) – Riscar ou marcar uma longa
reta no chão, um lado é a “Zona Urbana” e o outro lado “Zona Rural”,
no início todas as crianças podem ficar no lado da urbana. Ao ouvirem
do professor/a: rural! Todos pulam para o lado da zona rural. Aquele/a
participante que errar três vezes, sairá do jogo e passará a fiscalizar jun-
to com o/a professor para identificar o/a estudante que vier a errar.
Fazemos a seguinte observação, para que não tenhamos muito tempo
de espera, podemos dividir a turma em dois (02) ou três (03) grupos.
Ampliação do jogo - Para ampliar a atividade, pode-se acrescen-
tar o terceiro elemento, “Quilombo”, ao ouvirem: “Quilombo”, todos
pulam sem sair do lugar.
Número de participantes: Entre dez (10) e vinte (20) participantes,
caso a turma seja maior, sugere-se fazer dois (02) ou três (03) campos
de jogo.
Disciplinas e conteúdos envolvidos – Possibilita envolver os co-
nhecimentos das disciplinas de geografia (formação das cidades) e
história (historicidade do município), o/a professor/a poderá discutir
com os/as estudantes, a historicidade de um município, apresentando
a sua formação, enfatizando a contribuição das zonas rurais, urbanas
e quilombolas (se houver) na sua emancipação política; Ciências (meio
ambiente e agricultura) poderão discutir as questões do meio ambien-
te, enfatizando principalmente o campo (zona rural).
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 161

Outras possibilidades - Trabalhar as características das comunida-


des quilombolas, identificando recursos naturais presentes na comuni-
dade e suas modificações ao longo dos anos; montar painel com ima-
gens de animais terrestres e aquáticas da região; identificar os aspectos
diferenciados entre a zona rural e zona urbana, propor produção textu-
al, mapa geográfico do município; reconhecer e identificar, nas paisa-
gens, contribuições culturais de grupos de diferentes origens e outros.
Final da atividade – Sugere-se que todos os jogos, sejam final-
izados por meio da Roda de Saberes e Formação (RSF), momento em
que o/a professor/a discutirá os conteúdos apresentados, bem como a
realização da avaliação da aula.
Dica: Indicamos ao professor/a que utilize este livro como recur-
so pedagógico para auxiliar a sua prática. Contudo, os jogos deverão
ser adaptados para realidade de cada turma, interesse dos /as partici-
pantes, adaptações que desejem realizar.
Importante: Sugere-se que todos os jogos, sejam vivenciados por
meninos e meninas, em grupos mistos. Portanto, todos/as deverão
participar das atividades simultaneamente.

Foto: Jogo das Comunidades, estudantes da Escola Joaquim de Medeiros, 2018.


162 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

CORRE ONÇA: (Origem – Brasil)


Descrição – Delimita-se um espaço para acontecer o jogo, neste
serão demarcadas duas linhas, com aproximadamente 3 ou 4 metros
entre elas no centro do espaço demarcado. Em uma das linhas ficarão
as/os participantes “fugitivos/as”, na outra linha ficará um/a participante
pegador/a (onça). Ao comando do/a professor/a (corre onça), a onça
tentará pegar as crianças antes que cheguem ao final do local demarca-
do. As crianças que forem pegas, se tornarão onças. O jogo será encerra-
doquando a onça conseguir pegar todos os/as participantes “fugitivos”.
Número de participantes: Quarenta (40).
Ampliação do jogo –Para adaptar o jogo, nomeiam-se dois (02)
animais pegadores, a turma deverá ser dividida com igualdade de par-
ticipantes. De um lado a equipe das “onças” e do outro a equipe dos
“jacarés”, (Onça X Jacaré). Quando o/a professor/a falar, “corre jacaré”,
o mesmo tem que correr atrás das onças e vice-versa. Vence a equipe
que no final da atividade, tiver o maior número de participantes.
Disciplinas e conteúdos envolvidos – Possibilita envolver os conhe-
cimentos da disciplina de Ciências (animais silvestres, fauna de diversos
países, fauna marinha etc.); permite-se falar sobre a cadeia alimentar
no reino animal.
Outras possibilidades - Realizar pesquisa sobre animais selvagens;
aula expositiva sobre antecessor e sucessor, classificação dos animais etc.

Foto: Corre onça, estudantes da Escola Joaquim de Medeiros, 2018.


Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 163

MÃE DA RUA: (Origem – Brasil)


Descrição – Consiste num pega-pega, escolhe-se um/a partici-
pante para ser a mãe/pai da rua, os demais participantes deverão ser
divididos em duas equipes. Com um giz, o/a professor/a desenhará
duas linhas paralelas com uma distância aproximadamente de três me-
tros entre elas. O lado de dentro das riscas será a rua, e os lados de
fora, as calçadas. O objetivo é atravessar para o outro lado, sem ser
apanhado pela mãe/pai da rua, aquele/a que for apanhado, se tornará
pegador/a. Vencerá o jogo o/a último/a participante a ser pego, o pon-
to será efetuado para sua equipe.
Ampliação do jogo – O/a professor/a poderá nomear as calçadas
em (países, estados ou municípios) e a rua poderá ser a (fronteira). EX:
As calçadas seriam São Félix-BA e Cachoeira-BA e o Rio Paraguaçu seria
a fronteira.
Número de participantes – Trinta (30).
Disciplinas e conteúdos envolvidos – Possibilita envolver os conhe-
cimentos das disciplinas de Geografia (fronteiras), História (história local).
Outras Possibilidades – O/a professor/a poderá apresentar o mapa
da Bahia e mostrar aos estudantes/os onde estão situados os respectivos
municípios, e discutir com os/as estudantes, conteúdos como “as fron-
teiras, bem como, a historicidade, contando a história do país, estado ou
município, estudado na aula,
neste caso, a história dos
municípios de São Félix e
Cachoeira”. O/a professor/a
poderá solicitar que os/as
estudantes realizarem pes-
quisas sobre o município ou
bairro em que reside, aten-
tando-se para os seguintes
aspectos: Entrevistar mora-
dores mais antigos, artistas
populares, visitar a espaços
Foto: Mãe da rua, estudantes da Escola Joaquim
históricos, etc.
de Medeiros, 2018.
164 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

CACHORRO PEGA O OSSO: (Origem – Botswana).


Descrição – O/a professor/a deverá dividir a turma em dois (02)
grupos com o mesmo número de crianças. Inicialmente, cada criança
dos grupos receberá um número. Os números se repetirão no grupo 01
e grupo 02. Os grupos ficarão um de frente para o outro a aproximada-
mente oito (08) metros de distância. No centro, entre as equipes, será
colocada uma bola. Ao comando do/a professora/a, que deverá cha-
mar um número aleatório, distribuídos às crianças. Os/as estudantes
que possuem o número chamado deverão tentar pegar a bola. Quem
conseguir pegar a bola mais rapidamente marcará o ponto para o seu
grupo, ganhará a equipe que ao final do jogo somar mais pontos.
Ampliação do jogo – Para deixar o jogo mais desafiador o profes-
sor/a deverá colocar mais elementos, (outra bola, um cone etc.), desta
forma o jogo passará a conter dois ou mais elementos. Consequente-
mente o/a professor/a passará a chamar dois (02) ou mais números
de uma só vez, aumentando a complexidade do jogo. Outra variação
o/a professor/a poderá distribuir os números para os/as estudantes em
formas de unidades, dezenas, centenas e milhares.
Número de participantes – Trinta (30).
Disciplinas e conteúdos envolvidos - Possibilita envolver os conhe-
cimentos da disciplina de matemática (Ordem dos números, unidade,
dezena, centena e milhar).
Outras Possibilidades – O/a professor/a poderá apresentar fichas de
cartolina com números em unidades, dezenas, centenas e milhares, e
distribuir para os/as estudantes, podendo discutir os sistemas de nu-
meração (unidade, dezena, centena e milhar), para serem discutidos
durante a Roda de Saberes e Formação no final da aula.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 165

Foto: Cachorro pega o osso, estudantes da Escola Joaquim de Medeiros, 2018.

Considerações finais
No Brasil, são incontáveis os estudos que afirmam a presença de
elementos culturais africanos recriados em nosso contexto histórico e
sociocultural. Consideramos que os jogos são elementos fundantes e
indissociáveis da cultura brasileira, e que parte significativa dos jogos e
brincadeiras vivenciados no Recôncavo da Bahia, tem como origem no
entrecruzamento entre as matrizes africanas e afro-brasileiras.
Desta forma, propomos apresentar o jogo como uma proposta
sociocultural para o ensino, tornando-o assim, um momento de apren-
der-ensinar-aprender a respeitar, a conhecer, a reconhecer, a valorizar
as diferenças culturais do nosso povo tão diverso, e das identidades
singulares de cada pessoa participante do jogo/brincadeira.
Entendemos que na escola, o jogo deve integrar o processo edu-
cativo, não devendo ser dissociado da cultura geral do/a estudante,
166 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

como infelizmente tem ocorrido principalmente nas aulas de Educação


Física. No espaço educacional precisamos superar da falsa dicotomia
entre o jogar e o aprender, para isso, existe a necessidade do/a pro-
fessor/a compreender a utilização do jogo como proposta pedagógica
que integra a um só tempo a formação cultural e a educação cultural.
Por isso, ressaltamos a importância do/a professor/a no proces-
so educacional, pois exerce o papel de mediador/a para acriança no
processo educativo, e as suas intervenções são essenciais para que os/
as estudantes ampliem e diversifiquem os seus conhecimentos e suas
práticas socioculturais.
Portanto, consideramos que o jogo social e étnico-racialmente
referenciado é um tipo de atividade significativa, atrativa, que aten-
de às necessidades e às possibilidades de aprendizagem e desenvol-
vimento das crianças, além de contribuir para a formação cidadã, que
descoloniza conhecimentos, e atua para a promoção da igualdade ra-
cial pela via da educação.
Reforçamos que nós professores/as devemos possibilitar a for-
mação de crianças solidárias, criativas, que cooperam em mutualidade
e respeito, que os jogos e as brincadeiras de matriz africana e afro-bra-
sileira presentes no cotidiano cultural dos/as estudantes apresentam
diversas possibilidades para prática educacional, podendo ser ampla-
mente utilizados com finalidades pedagógicas, podendo gerar conhe-
cimento das mais variadas áreas do conhecimento, tornando-se um
importante recurso pedagógico para o ensino e para a aprendizagem
significativa em contextos multiculturais e multirreferenciais como o
brasileiro/baiano.

Referências

CUNHA, Débora Alfaia da. Brincadeiras africanas para a educação


cultural . Castanhal, PA: Edição do autor, 2016.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 167

DAOLIO, Jocimar. Educação Física e o conceito de cultura -Cam-


pinas, SP: Autores Associados, 2004. - (Coleção polémicas do nosso
tempo).

KISHIMOTO, T. M. (1994). O jogo e a educação infantil. Perspectiva.


Florianópolis, UFSC/CED, NUP, n. 22, p. 105-128.

JESUS, Rita de Cássia Dias Pereira de. NASCIMENTO, Cláudio Orlando


Costa do. Para fazer conexões: Universidade- ações afirmativas- di-
versidade. Cruz das Almas, Editora UFRB, 2012.

LARAIA, Roque de Barros,. Cultura: uni conceito antropológico.


14.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

LIMA, José Milton. O jogo como recurso pedagógico no contexto


educacional. – São Paulo: Cultura Acadêmica: Universidade Estadual
Paulista, Pró-Reitoria de Graduação, 2008, 157p.

LUCKESI, Cipriano Carlos Cipriano. Ludicidade e formação do educa-


dor. Revista entreideias, Salvador, v.3, n.2, p.13-23, jul./dez., 2014.

SANTOS, Santa Marli Pires (org.). O lúdico na formação do educa-


dor. Petrópolis. Vozes, 1997.

VYGOTSKY, L. S. Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem


/ Lev Semenovich Vigotskii, Alexander Romanovich Luria, Alex N.
Leontiev; tradução de: Maria da Pena Villalobos. -11a edição - São
Paulo: ícone, 2010.
Adinkra: cultura africana no
ensino fundamental
Eliane Fátima Boa Morte do Carmo
Rita de Cássia Dias Pereira de Jesus

Introdução
Com a promulgação da Lei nº 10.639/03 que altera a Lei de Dire-
trizes e Base da Educação Brasileira (Lei nº 9394/96) e torna a obrigatória
a inclusão no currículo a “História da África e dos Africanos” e da “cultu-
ra afro-brasileira” instaurou-se a necessidade de formação inicial e em
serviço dos/as profissionais da educação, e a elaboração de materiais
didáticos que auxiliassem os/as professores/as em sua implementação.
Houve uma profusão de ações para a implementação desta te-
mática preconizada na lei, bem como, a produção de um denso ma-
terial já disponível, contudo, ainda há uma lacuna no que se refere ao
aporte para a elaboração das atividades e planejamentos diários, ou
seja, a utilização desse acervo não figura como algo estruturante do/no
currículo escolar. Via de regra, surge como um apêndice, algo utilizado
em ocasiões específicas e circunstanciais. Em suma, a lei está em vigor
há 17 (dezessete) anos, é tema de vários debates e formações, mas não
se efetiva na sala de aula. Muitas vezes se concentra em atividades re-
alizadas em momentos pontuais sem que integre de forma transversal
o currículo, sendo tão somente materializada em eventos temáticos,
em festas e seminários que recaem, com raras exceções, em atividades
estereotipadas e folclorizadas.
Os currículos que orientam as práticas docentes, a seleção e ên-
fase dada a alguns conteúdos e materiais didáticos, fazendo-nos iden-
tificar a necessidade de priorizar pontos específicos na práxis docente,
em específico o que se refere à formação do/a educador/a, o currículo
escolar e o material didático de apoio.
170 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

A formação inicial de educadores/as ainda carece de conteúdos


específicos que possibilitem a construção de uma base sólida que possi-
bilite novas pesquisas, leituras e a construção de conhecimentos acerca
do currículo que contemple a história da África, dos africanos e da for-
mação da sociedade brasileira a partir dos povos negros trazidos para o
Brasil, assim como das consequências do racismo, e da necessidade de
práticas educacionais afirmativas e promotoras da igualdade racial.
É através do vínculo entre conhecimento, iden-
tidade e poder que os temas da raça e da etnia
ganham seu lugar na teoria curricular. O texto
curricular, entendido de forma ampla – o livro di-
dático e paradidático, as lições orais, as orienta-
ções curriculares oficiais, os rituais escolares, as
datas festivas e comemorativas – está recheado
de narrativas nacionais, étnicas e raciais. Em ge-
ral essas narrativas celebram os mitos da origem
nacional, confirmam o privilégio das identidades
dominante e tratam as identidades dominadas
como exóticas ou folclóricas. Em termos de re-
presentação racial, o texto curricular conserva,
de forma evidente, as marcas da herança colo-
nial. O currículo é, sem dúvida, entre outras coi-
sas, um texto racial. A questão da raça e da etnia
não é simplesmente um “tema transversal”: ela é
uma questão central de conhecimento, poder e
identidade” (SILVA, 2011, p.101-102).
A formação inicial e continuada dará ao/às educador/as maior
possibilidade de escolha para a reconstrução e reelaboração do cur-
rículo, tornando-o vivo e adequado às necessidades e realidades so-
cioculturais dos/as estudantes que nas escolas públicas são, em sua
maioria, estudantes por negros e negras.
Apresentamos, neste artigo, o processo de produção e elaboração
do material temático e de orientação didático-pedagógica em apoio à
prática de educadores/as dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, espe-
cificamente, do Ciclo de Alfabetização compreendido do 1º ao 3º ano de
escolaridade31. O livro “História e Cultura da África nos Anos Iniciais do En-
31  - O ciclo de alfabetização, quando foi instituído o ensino de nove anos e o Pacto
Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) compreendia do 1º ao 3º ano,
porém a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) reduziu o ciclo para o 1º e o 2º ano
de escolaridade dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, a partir de 2018.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 171

sino Fundamental: Os Adinkra” propõe a transversalidade da temática da


História da África e dos Africanos no cotidiano da escola, através de uma
metodologia que articula estes elementos com os direitos e objetivos da
aprendizagem e os conteúdos obrigatórios dos componentes curriculares
próprios a este período de escolaridade. A base principal é permitir que os
profissionais da educação planejem suas atividades, que introduzam no
cotidiano da escola o conteúdo ao qual se refere a lei 10.639/03.

O material didático
O educador após várias atividades de formação inicial e continu-
ada, as quais são oferecidas em profusão tanto na modalidade presen-
cial quando na modalidade a distância e também conjugando ambas,
se depara com a necessidade de aplicar tais conhecimentos adquiridos
no seu conteúdo específico em sala de aula. Porém se pergunta como
aplicar esta temática no ensino das disciplinas pré-estabelecidas e
como associá-las aos conteúdos dos livros didático adotado na escola.
Geralmente coloca a temática étnico-racial como um tema a mais a ser
ministrado o que o leva a equacionar e administrar tempo que precisa
ser reservado para esta temática, já que há tantos assuntos a serem
abordados. Por certo, estes são alguns dos muitos questionamentos
que dificultam a transposição do conteúdo adquirido nas diversas for-
mações para a realidade do cotidiano escolar.
Em face dessa realidade, identificamos a necessidade de apro-
fundar o debate sobre a formação docente na interface com a elabo-
ração de um material temático na busca de trazer à tona a discussão
étnico-racial para o centro da prática docente e do currículo escolar, ou
seja, para o cotidiano escolar.
No bojo desta discussão enfatizamos a necessidade da produ-
ção de um Material temático e de orientação didático-pedagógica em
apoio à prática do educador dos anos iniciais do Ensino Fundamental,
que a partir da lei nº 11.27432, passa a ser constituído de nove anos
32  - Lei nº 11.274 de 6 de fevereiro de 2006 que dispondo sobre a duração de 9
(nove) anos para o ensino fundamental, com matrícula obrigatória a partir dos 6 (seis)
anos de idade.
172 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

de duração. Optamos por elaborar um material que compreendesse


conteúdos com a ênfase aos três primeiros anos do Ensino fundamen-
tal que, através do parecer da Câmara de Educação Básica (CEB) do
Conselho Nacional de Educação (CNE) nº 4, de 10 de junho de 2008,
instituiu que nos três anos iniciais fossem voltados à alfabetização e ao
letramento. Nosso material de apoio a ação e prática docente destina-
-se, portanto, a este Ciclo de Alfabetização.
Buscamos assim, identificar e elencar os conteúdos étnicos-ra-
ciais que dialoguem diretamente com o cotidiano escolar, tendo como
lastro o debate sobre a garantia dos Direitos de Aprendizagem ao lon-
go dos três primeiros anos de escolarização do Ensino Fundamental.
Tal abordagem visa assegurar que os conteúdos da História da África e
dos Africanos deixem de ser meramente informativos e descontextuali-
zados, para ser um instrumento político de reflexões, questionamentos
e base da construção do conhecimento.
Desde modo, a abordagem pedagógica do livro didático e dos de-
mais materiais requer a transversalidade e a interdisciplinaridade, com
ênfase na implementação de sequências didáticas que articulem con-
teúdos e componentes curriculares de diversas áreas do conhecimento
e campos disciplinares, possibilitando assim, um processo de formação
das crianças com diferentes níveis de aquisição do Sistema de Escrita Al-
fabética (SEA), possibilitando um amplo repertório a ser adaptado pelo
educador segundo as nuances e heterogeneidade de cada turma.
Pelo exposto, define-se um novo desafio para os/as educadores/
as na reformulação de suas estratégias, planejamentos e prática pe-
dagógica que interfere além dos conteúdos conceituais, na formação
cultural mais ampla que associa novos conhecimentos que tem âncora
na diversidade das culturas do Continente Africano.
Além da ênfase no Ciclo de Alfabetização também fizemos um
recorte, para abordarmos o tema da História da África e dos Africanos,
presentes no amplo espectro de temas apresentando na lei 10.639/03,
apresentado no artigo 26-A inciso 1º que:
O conteúdo programático a que se refere
o caput deste artigo incluirá o estudo da História da
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 173

África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil,


a cultura negra brasileira e o negro na formação da
sociedade nacional, resgatando a contribuição do
povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinentes à História do Brasil” (BRASIL, 2003).
Do tema tão amplo, que remonta a história da própria humani-
dade, optou-se por escolher os símbolos Adinkra para a elaboração do
material citado.
Os Adinkra
Adinkra significa adeus, e as pessoas das etnias
acã usam o tecido estampado como Adinkra em
ocasiões fúnebres ou festivas de homenagem. São
mais de oitenta símbolos, destacados pelo conte-
údo que trazem como ideogramas. Não só os de-
senhos do Adinkra são estética e idiomaticamente
tradicionais, como, mais importante, incorporam,
preservam e transmitem aspectos da história, filo-
sofia, valores e normas socioculturais desses povos
de Gana (NASCIMENTO e GÁ, 2009, p.22).

A escolha de enfatizar os ideogramas do povo Ashanti, os Adinkra,


um elemento das Culturas do Continente Africano, em meio às opções
para a produção de um material didático de apoio e de orientação
didático-pedagógica em apoio à prática de educadores/as dos anos
iniciais do Ensino Fundamental, se deu a partir da orientação da banca
de qualificação da pesquisa.
A importância desta escolha é corroborada por Elisa Nascimento
e Luiz Carlos Gá (2009) quando nos dizem:
Os estudos africanos deixaram de ser exclusiva-
mente uma demanda do movimento social negro
para se tornarem uma necessidade de toda a so-
ciedade. Passou a ser matéria de lei a necessidade
de assumir o legado africano como uma pré-con-
dição essencial do aprender e do conhecer. Os
Adinkra e seus significados nos mostram a razão
dessa necessidade: as referências culturais africa-
nas dizem respeito à humanidade toda e ao Brasil
como nação (NASCIMENTO e GÁ, 2009, p. 14).

A busca pelos símbolos Adinkra feita em sites e livros se mostrou


pouco profícua, por isso a pesquisa foi centrada basicamente em três
174 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

materiais: Adinkra sabedoria em símbolos africanos organizado por Eli-


sa Larkin Nascimento e Luiz Carlos Gá, The Adinkra Dicionary de Bruce
W. Willis, e na dissertação intitulada Adinkra Symbols: As ideographic
writing system escrita por Jasmine Danzy.

Metodologia
O percurso teórico para elaboração do material temático e de orien-
tação didático-pedagógica em apoio à prática do/a educador/a dos anos
iniciais do Ensino Fundamental, teve como base duas grandes vertentes.
Inicialmente consideramos a legislação que institui a obrigatoriedade da
inclusão da temática étnico racial nos estabelecimentos de educação pú-
blica e particular no ensino fundamental e médio a Lei 10.639/08.
Esta leitura nos levou ao Parecer nº 3 do Conselho Nacional de
Educação, elaborado pela Petronilha Beatriz Gonçalves, que estabelece
as bases para as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Bra-
sileira e Africana, aprovado em 10 de março de 2004, e à Resolução n°1
de 17 de junho de 2004 que institui estas Diretrizes. Ainda com base
na legislação em vigor foi pertinente a leitura do Plano Nacional para a
implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
-Brasileira e Africana, bem como das Leis 11.274 de 06 de fevereiro de
2006, e do Parecer do Conselho Nacional de Educação nº 4 de 10 de
junho de 2008, que respectivamente, instituem o Ensino Fundamental
de Nove anos e que orienta sobre os três anos iniciais do Ensino Fun-
damental de nove anos, instituindo o ciclo de alfabetização.
Para compreender o que preconiza a base legal acerca do Ensino
Fundamental de nove anos foi fundamental o estudo da Resolução de
nº 7 de 14 de dezembro de 2010, da Câmara de Educação Básica do
Conselho Nacional de Educação, que fixa as Diretrizes Curriculares Na-
cionais para o Ensino Fundamental de Nove Anos. Foi utilizado como
base de apoio o documento que em 2015 encontrava-se ainda em dis-
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 175

cussão para a construção do currículo de base nacional para o ciclo de


alfabetização, que consta no texto de consulta popular, apresentado
no ano de 2012, pela Secretaria de Educação Básica do Ministério da
Educação, intitulado: Elementos conceituais e metodológicos para de-
finição dos Direitos de Aprendizagem e desenvolvimento do Ciclo de
Alfabetização (1º, 2º e 3º anos) do Ensino Fundamental, que faz uma
proposição acerca dos Fundamentos Gerais do Ciclo de Alfabetização,
bem como os Direitos e Objetivos por área do conhecimento. Finali-
zando a vertente da legislação educacional brasileira nos apoiamos,
também, no Plano Nacional da Educação Básica, PNE, lei 13.005 de 25
de junho de 2014.
Quanto ao amplo espectro de discussões lançado pelo currículo,
os recortes, a partir do lastro legal em marcos teóricos como: o ensi-
no de História no Ensino Fundamental, tendo como base as diretrizes
apresentadas nos Parâmetros Curriculares Nacional deste componen-
te curricular. A formação de professores dos anos iniciais do Ensino
Fundamental, que em sua maioria possuem graduação em Pedagogia,
o que faz inferir, que buscam seu aprimoramento acerca da temática
em cursos de pós-graduação para complementar e/ou aprofundar seus
conhecimentos.
Além de símbolos Adinkra, outros elementos serviram de base
para a elaboração do livro História e Cultura da África nos anos iniciais
do ensino fundamental: Os Adinkra.
São eles: o levantamento dos conteúdos trabalhados nas escolas
públicas na cidade de Cachoeira, no ano de 2015. De posse dessas in-
formações foi feita uma seleção de conteúdos do primeiro ao terceiro
ano de escolaridade dos componentes curriculares de Matemática, Lín-
gua Portuguesa, Educação Artística, História e Ciências. Vale ressaltar
que no componente curricular de História só havia datas comemorati-
vas a serem trabalhadas ao longo do ano.
Análise de todos os direitos de aprendizagens apresentados no
material intitulado Elementos conceituais e metodológicos para defini-
ção dos Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento do Ciclo de Alfa-
176 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

betização (1º, 2º e 3º anos) disponibilizado pela Secretaria de Educação


Básica do Ministério da Educação no ano de 2012.
Após esse levantamento e com base na perspectiva de transver-
salidade do tema da cultura africana, os Adinkra, os direitos de apren-
dizagem e os conteúdos obrigatórios deste ciclo de aprendizagem fo-
ram elaboradas as atividades didáticas. Cada capítulo é iniciado por um
texto que visa dar noções básicas acerca do continente africano e do
povo Akan do qual advém os ideogramas; os direitos de aprendizagem
relativos aos componentes curriculares e como estes se articulam com
as atividades apresentadas.
O livro está organizado da seguinte forma:
Introdução
1. África: reflexões sobre um continente
a. África ocidental – Povo Akan
b. Indicação de Direitos de Aprendizagem
c. Propostas de atividades
2. Adinkra: Valores e filosofia
a. Indicação de direitos de aprendizagem
b. Proposta de atividades
3. Adinkra: linguagens e tecnologia
a. Indicação de direitos de aprendizagem
b. Proposta de atividades
4. Informações finais
Na introdução consta uma visão global do livro, com a definição
objetiva do material, dos seus objetivos, justificativa, e de uma forma
próxima aos/às docentes, uma apresentação dos conceitos básicos
para a compreensão do material em questão.
Após esta parte introdutória há um diálogo entre os temas elenca-
dos e as proposições didático-pedagógicas para sua utilização no coti-
diano escolar. A cada tema seguirá um pequeno texto de suporte teórico
Capítulo 1. África: reflexões sobre um continente - Apresenta a
necessidade do estudo sobre o continente africano e noções sobre a
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 177

África Ocidental e o povo Akan (Acã ou Acãn). São apresentados os


direitos de aprendizagem específico, envolvendo os componentes cur-
riculares de Língua Portuguesa, Matemática, Ciências Humanas e Ciên-
cias da Natureza. São apresentadas 11 atividades que articulam o tema
de identidade étnico-racial.
Capítulo 2. Adinkra: Valores e filosofia – Apresenta a organiza-
ção social do povo Akan, o uso dos símbolos Adinkra, bem como uma
tabela com a representação gráfica de 84 (oitenta e quatro) símbolos
Adinkra e seus significados. Acompanha também uma tabela com os
direitos e objetivos de aprendizagem selecionados para este capítulo,
com os componentes curriculares de Língua Portuguesa, Matemática,
Ciências Humanas, Linguagem, Artes e Educação Física. São apresen-
tadas oito (8) atividades sob o tema Conhecendo os Símbolos Adinkra.
Capítulo 3. Adinkra: linguagens e tecnologia – Apresenta as ima-
gens dos símbolos enquanto linguagem, forma de comunicação e re-
gistro, além de iniciar uma reflexão acerca da tecnologia empregada
para a confecção de tecidos, carimbos, tinta e do processo de estampa
dos símbolos. Compõe este capítulo também uma tabela com os di-
reitos e objetivos de aprendizagem com os componentes curriculares
de Língua Portuguesa, Matemática, Ciências Humanas e Ciências da
Natureza. São apresentadas oito (8) atividades sob o título “Utilizando
os Símbolos Adinkra”.
Capítulo 4 – Informações Finais. Propõe outros arranjos de objeti-
vos e atividades e a adaptação dos mesmos à realidade de cada turma
além de indicação de leitura e fontes de pesquisa.
Nos anexos constam o texto da lei 10639/03, o mapa do conti-
nente africano, o modelo de dado para jogos, setenta e um ditos popu-
lares, cartas do jogo da memória com os símbolos Adinkra, cartas com
alfabeto e síntese de todos os Diretos e objetivos de aprendizagem.
As atividades propostas são: jogos, fichas de identificação, bingo,
jogo da memória, cartas enigmáticas, caça-palavras, palavras cruzadas,
faixas decorativas, elaboração de carimbos e pintura em tecidos etc.
178 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Considerações finais
O livro “História e Cultura da África nos anos iniciais do ensino
fundamental: Os Adinkra” oportuniza às/aos profissionais da educação
que atuam nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, principalmente
do Ciclo de Alfabetização, apresentando atividades com o propósito de
introduzir temas sobre História da África e dos Africanos no cotidiano
escolar sem abdicar dos conteúdos obrigatórios a serem ministrados,
tendo como foco os Direitos e os objetivos de aprendizagem próprios
para aqueles anos de escolaridade.
A proposta metodológica apresentada no livro indica possibili-
dades de elaboração de novos conteúdos, não sendo, pois, algo fecha-
do, pronto e acabado e, sim, uma indicação que pode apoiar os profis-
sionais da educação na reelaboração de planejamentos, de atividades,
na construção de sequências didáticas e em projetos no sentido de
efetivar a lei 10.639/03.
Vale ressaltar que este material foi elaborado antes da efetivação
da Base Nacional Comum Curricular, porém ao planejar, o/a educa-
dor/a poderá analisar e substituir os direitos de aprendizagem pelos
Objetos de conhecimento e habilidades preconizadas na BNCC.
Considero que os/as professores/as e estudantes ao se apropria-
rem dos conhecimentos produzidos pelos diversos povos africanos,
desde os anos iniciais de escolaridade, possibilitará o reconhecimento
do legado que o contente africano para a história e o desenvolvimento
da humanidade, e um estímulo às/aos profissionais na busca de novos
elementos sócio históricos e culturais para pesquisa, estudo, aprofun-
damento e de formação cultura com base nos componentes da matriz
africana e da diáspora negra.

Referências
BRASIL, Ministério da Educação Secretaria de Educação Básica.
Ensino fundamental de nove anos. Orientações para a inclusão da
criança de seis anos de idade Brasília 2007
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 179

BRASIL. Ministério da Educação – Secretaria da Educação Continua-


da, Alfabetização e Diversidade. Orientações e Ações para a Educa-
ção das Relações Étnico- Raciais, Brasília: SECAD, 2006

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Conselho Pleno. Diretrizes


Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Ra-
ciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Afri-
cana. Resolução nº 1/6/2004. Disponível em: http://portal.mec.gov.
br/cne/arquivos/pdf/res012004.pdf . Acesso em: 06/06/2020

BRASIL. Lei 10.639/2003, de 9 de janeiro de 2003. Diário Oficial da


União, Poder Executivo, Brasília,2003.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação


Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica.
Parecer nº 7de 7/4/2010. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/
index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=5367&tm-
pl=component&format=raw&Itemid=122. Acesso: 02/06/2020

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Bási-


ca. Orientação sobre os três anos iniciais do Ensino Fundamen-
tal de nove anos. Parecer nº 4 de 20/2/2008.Disponível em:http://
portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/2008/pceb004_08.pdf. Acesso
em:23/05/2020

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Bá-


sica. Parecer quanto à Abrangência das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Parecer
nº 2 de 31/1/2007. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.
php?catid=323:orgaos-vinculados&id=12988:pareceres-e-reso-
lucoes-sobre-educacao-das-relacoes-etnico-raciais&option=com_
content&view=article. Acesso em: 02/06/2020

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Conselho Pleno. Diretrizes


Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Ra-
ciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Afri-
cana. Resolução nº 1/6/2004. Disponível em: http://portal.mec.gov.
br/cne/arquivos/pdf/res012004.pdf . Acesso em: 02/06/2020
180 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Ele-


mentos conceituais e metodológicos para definição dos Direitos
de Aprendizagem e desenvolvimento do Ciclo de Alfabetização
(1º, 2º e 3º anos). Brasília. 2012.Disponível em:http://portal.mec.
gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gi-
d=12827&Itemid= Acesso em: 06/06/2020

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamen-


tal. Parâmetros Curriculares Nacionais de História e Geografia.
Brasília.1997. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/
pdf/livro051.pdf. Acesso em: 01/03/2015

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Bási-


ca. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental
de 9 (nove) anos. Resolução nº 7 de 14/12/2010. Brasília. Disponível
em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/rceb007_10.pdf Acesso
em:06/06/2020

NASCIMENTO, Elisa Larkin; GÁ, Luiz Carlos. Adinkra sabedoria em


símbolos africanos – Rio de Janeiro: Pallas, 2009

SILVA, Tomas Tadeu. Documentos de Identidade. Uma introdução


às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
Educação antirracista nas prisões baianas

Franklim da Silva Peixinho


Solyane Silveira Lima

Introdução
Este trabalho está incluído no conjunto de estudos e análises que
integram a pesquisa desenvolvida junto ao Programa de Pós-gradua-
ção em História da África da Diáspora e dos Povos Indígenas oferta-
do pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, e se direciona
a educação no sistema prisional baiano em História Afro-brasileira e
dos Povos Originários da Américas, tendo por objetivo geral abordar
o processo de elaboração de um produto paradidático, baseado nas
vivências do cárcere, mirando a aprendizagem significativa na Educa-
ção de Jovens e Adultos privados de liberdade, de acordo com as Leis
10.639/2003 e 11.645/2008.
Assim, propõe-se na construção do produto um estudo histórico
com caráter transversal e interdisciplinar, para a discussão das questões
relacionadas ao racismo estrutural, institucional e religioso. Nessa imer-
são epistemológica, inserem-se a digressão dos aspectos históricos da
prisão no Brasil, sobretudo em relação à educação ofertada, que subsi-
diam a construção do paradidático tencionado, em especifico uma no-
vela literária, cuja metodologia de estudo tem a leitura como proposta, a
partir da oralidade e da “contação” de histórias, resgatando a tradição da
história oral das comunidades tradicionais afro-brasileiras e indígenas.
A metodologia da observação participante foi combinada com
a revisão bibliográfica sobre História da África e dos Povos Indígenas,
metodologia da produção de livro didático, currículo, História da Edu-
cação e Criminologia que gravitaram em torno do objeto de estudo e
construção: um livro paradidático para os alunos em privação de liber-
dade. Desta forma, foram realizadas observações de campo na Colônia
182 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Penal de Simões Filho, estado da Bahia, especificamente, no tocante


as atividades pedagógicas realizadas na Escola Estadual Dr. Berlindo
Mamede de Oliveira, e livros didáticos disponíveis para os alunos, rela-
tadas em um diário de campo pelo período de seis meses do segundo
semestre do ano de 2018.
A educação na prisão assume peculiaridades, debatidas inclusi-
ve em termos de didática aplicável às pessoas privadas de liberdades
(SILVA, 2018), entre outras singularidades. Na obra “Didática no Cárcare
II”, organizada pelo professor Roberto da Silva do grupo USP/GEPÊ pri-
vação, se discute no contexto das prisões paulistas, a partir de dados
empíricos, a experimentação de ferramentas didáticas alternativas para
a educação de pessoas privadas de liberdade. Dessa forma, o espaço da
instituição prisional também é um fator importante a ser considerado
no planejamento pedagógico (KRAHN, 2014), como também o aluno
privado de liberdade. Porque o indivíduo tem os próprios esquemas de
assimilação, mecanismos internos para a apreensão dos sentidos, e esta
singularidade expressa a idiossincrasia de cada discente, que em contato
político, proporciona novas formulações do saber a partir da interação
social. A apreensão de tais conceitos pedagógicos, incluindo também a
perspectiva de Paulo Freire (1987), em que o aluno possui uma história
inscrita em si, é a tônica de construção da pesquisa proposta.
Também é parte indissociável na construção deste trabalho passar
em revista as conquistas do movimento negro e dos povos indígenas,
que impuseram uma total reformulação do fazer pedagógico em diver-
sos aspectos, principalmente, na concepção e na forma de como os liv-
ros didáticos de história retratam os povos africanos e originários das
Américas e seus atuais descendentes, que segue travando uma batalha
acadêmica e política contra o epistemicídio do colonizador que ainda
busca aniquilar a nossa identidade e historicidade (FIGUEREIDO, 2019;
CRUZ, 2005; SILVA, 2019; MACHADO, 2013; NASCIMENTO e DIAS, 2010).
Da relação entre raça, prisão e história que se arquiteta o pre-
sente artigo e o paradidático “Histórias da Casa Verde’: Cor, Cárcere e
Liberdade”.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 183

Educação intra-cárcere
A implantação da reforma prisional no Brasil no século XIX não
contemplou de início a necessidade de instrução de primeiras letras
daqueles que estavam encerrados nas modernas formas de punição
penal, isto por que a ideia principal era exportação de uma penologia
centrada na privação da liberdade, em substituição da formas degra-
dantes e mutiladoras que compunham o repertório de punições do
estado brasileiro. Contudo, em 1871 a “Eschola da Casa de Prisão”, ins-
talou-se na Casa de Prisão com Trabalho, inaugurada na Bahia, para
instrução elementar mesclada com elementos da teologia cristã, em
que o “[...]“ discurso penitenciário incluía, além do trabalho, da religião
e do isolamento do preso, a educação básica, chamadas de “primeiras
letras” (TRINDADE, 2012, p. 58).
“Embora, não houvesse uma determinação obrigatória da ofer-
ta do ensino formal nas prisões brasileiras, encontramos uma série de
ações, isoladas [...]” (SILVEIRA, 2009, p. 193).
Outras experiências se evidenciaram no Brasil imperial e repu-
blicano, de forma descentralizada e não uniforme, com relação à ins-
trução escolar nas prisões, tal como se deu na Casa de Correção em
São Paulo, em 1854, e a Casa de Detenção em Recife na passagem do
século XIX para o XX Maia (2001 apud SOUSA, 2005). No estado do
Paraná o estudo de Silveira (2009) tem por objeto a implantação da
escola prisional na Penitenciária do Ahú, instituição que repete a im-
portância dada ao caráter religioso no processo pedagógico com fito
na regeneração moral do indivíduo condenado.
Apesar das formas aparentemente isoladas de práticas educacio-
nais nas prisões brasileiras deste período, pode-se verificar a presença
do apelo ao conteúdo teológico do cristianismo na estrutura pedagó-
gica destes espaços. Contudo, no século XX tem-se a modificação na
concepção do ensino prisional, agora numa diretriz mais centralizada
a partir da Lei n°.3274 de 2 de outubro de 1957, que trata acerca das
184 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Normas Gerais do Regime Penitenciário, ao estabelecer que a finalida-


de das ações educacionais aos sentenciados está voltada a readaptação
social de acordo com a “sua vocação na escolha de uma profissão útil”
(art. 22), com a organização de programas “de modo que a educação
intelectual, artística, profissional e física se processem em equilíbrio no
desenvolvimento eugênico das faculdades mentais [...]”.
Em 1984, a assistência educacional passa a contempla um con-
junto de direitos do preso, com a previsão legal do ensino obrigatório
de primeiro grau e a implantação do ensino médio nas penitenciárias
com vista à universalização constitucional da educação33. Frisamos que
intenção formal do estado por meio de políticas públicas e normas não
são o suficiente para que um estado de coisas se altere, pois, quando
se fala de prisão, implica em um lugar que concentra os alvos prefe-
renciais que precisam ser contidos, esquecidos e aniquilados por uma
estrutura política e racista. É assim que se expressa o sistema punitivo
brasileiro, responsável por segregar uma grande maioria da população
preta e pobre, expressa no quantitativo da população carcerária atual.
Nos espaços das prisões baianas, os estudos de Natasha Krahn
(2014) na Escola Paulo Freire, na Penitenciária Lemos de Brito (PLB), e
deste trabalho também, na Escola Estadual Dr. Berlindo Mamede de
Oliveira34, que funciona na Colônia Penal de Simões Filho (CPSF), ambas
no Estado da Bahia, apresentam peculiaridades que emergem “da en-
grenagem cadeia”, a qual a instituição escolar deve conciliar para torna
o trabalho possível, como por exemplo, a “rotatividade dos internos e
as atividades como possibilidade de ocupar o tempo e a mente, mas
que ao mesmo tempo apertam a mente ” [grifos no original] (KRAHN,
2014, p. 172), ou seja o fluxo de presos entres transferências e a ne-
cessidade de ocupação do tempo ocioso com a atividade educacional.
A PLB custodia presos do regime fechado, o que a priori per-
mite uma relatividade rotatividade destes alunos, sejam pelas saídas

33  - Esta alteração se deu por meio da Lei de Execuções Penais de 1984.
34  - A unidade escolar está sediada no município de Simões Filho e possui um anexo
na Colônia Penal de Simões Filho.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 185

judiciais35, progressões de regime prisional36, e transferências para ou-


tras unidades. A frequência à escola é motivada pela “possibilidade de
aprender a ler e escrever, a possibilidade de fazer o ENEM e cursar uma
faculdade”, embora também outros internos com formação escolar e
inclusive superior, frequentem as aulas para ocupar seu tempo diante
da ociosidade do cárcere (KRAHN, 2014 p. 174).
Na CPSF, que é um estabelecimento prisional para o regime se-
miaberto37, encontra-se a Escola Estadual Dr. Berlindo Mamede de Oli-
veira, que possui um anexo na Colônia Penal de Simões Filho, apesar
de ser bem equipada estruturalmente, é parco o material didático na
biblioteca sobre História da África, Diáspora e Povos Tradicionais; a bai-
xa frequência e a alta rotatividade são características observadas no
trabalho de campo feito nesta unidade prisional.
O professor Roberto Silva sobre a construção das propostas pe-
dagógicas para atuação docente dos alunos em privação de liberdade
no Estado de São Paulo, atenta para a necessidade de adaptação dos
instrumentos de ensino e aprendizagem ao público específico da edu-
cação prisional.
A proposta considera pertinente a orientação cur-
ricular em torno do desenvolvimento de habilida-
des e competências, mas em respeito à especifi-
cidade do público que se tem em vista indaga-se
habilidades e competências escolares, de caráter
lógico, filosófico e lógico matemáticas são sufi-
cientes para superar o quadro geral de déficits his-
toricamente acumulados por pessoas em regimes
de privação de liberdade. Aqui nos sentimos com-
pelidos a ampliar o conceito de habilidades e com-
petências para considerar, de um lado, os fatores
que levaram estas pessoas à quebra das regras de
convivência social e à infração das leis estabeleci-
35  - Os presos que cumprem pena no regime semiaberto possuem o direito a saídas
judiciais, por prazo não superior a 7 (sete) dias, podendo ser renovada por mais 4
(quatro) vezes durante o ano.
36  - A progressão de regime consiste em um preso condenado poder ser transferido
de um regime mais severo para outro mais leve após o cumprimento de um período
da pena.
37  - O regime semiaberto permite a saída diurna do preso para trabalho externo e
recolhimento noturno.
186 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

das e, de outro, a necessidade que elas têm de re-


tornar ao convívio social como pessoas úteis, res-
ponsáveis e produtivas. Por esta razão recorremos
ao conceito de habilidade e competências sociais
como é empregado na área de Pedagogia Social
(SILVA, 2018, p. 31).

A Resolução nº 2, de 19 de maio de 2010, que dispõe sobre as


Diretrizes Nacionais para a oferta de educação para jovens e adultos
em situação de privação de liberdade nos estabelecimentos penais, as-
sentado nas razões do Parecer CEB/CNE nº 4/2010, constitui um impor-
tante documento democrático, que expões as razões da especificidade
da educação prisional, no tocante à precária infraestrutura, seletividade
racial do sistema penal brasileiro e o hiper encarceramento.
Estas notas distintivas se inscrevem em diversos aspectos, ecoló-
gicos, arquitetônicos, culturais que demanda um trabalho pedagógico
diferenciado e compromissado com a equidade e justiça social às pes-
soas encarceradas, elementos agregados na concepção do paradidáti-
co discutido neste artigo.

Educação étnico-racial
A presença da população indígena e africana nos materiais didá-
ticos brasileiros é uma pauta de enfretamento, porque busca uma nova
versão tanto da imagem destes povos, como também da reformulação
das versões historiográficas. As restrições à espaços ou limitações de
acesso à educação às populações marginalizadas nos períodos colo-
niais, império e republicano brasileiro, transcende seus efeitos até os
dias atuais. Fonseca (2016, p. 27) citando Primitivo Moacyr (1945, p.
431) aponta que no Rio Grande do Sul no século XIX “foram encontra-
dos indícios que sugerem que havia algum tipo de impedimento para
os negros frequentar escolas”. Em Minas Gerais, no período imperial,
havia a proibição de escravos de frequência às escolas, mas permitin-
do-se o acesso as pessoas livres, brancos, mestiços e negros. No Rio de
Janeiro, a Lei n. 1, de 1837, e o Decreto nº 15, de 1839, sobre Instrução
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 187

Primária, proibia “[...] as pessoas que padecerem molestias contagiosas,


[...] Os escravos, e os pretos Africanos, ainda que sejão livres ou liber-
tos” a frequência à escola pública.
Segundo Cynthia Greive (2008), a escola pública imperial era
destinada às populações denominadas “inferiores”, ou seja, crianças,
pobres, negras e mestiças. Em toada semelhante de Faria Filho (2000),
aborda a destinação de instrução, pelas instituições estatais brasileira
da época, à população infantil marginalizada38 (LIMA, 2015), já que a
elite brasileira optava pela educação particular, através da figura do
mestre-escola.
Em uma espécie de “capoeira” pedagógica a população negra
driblava as barreiras institucionais encontradas para o acesso à educa-
ção por diversas formas, principalmente através das estratégias cole-
tivas de resistência criadas no século XIX e pós-abolição, “[...] embora
não de forma massiva, camadas populacionais negras atingiram níveis
de instrução quando criavam suas próprias escolas; recebiam instru-
ção de pessoas escolarizadas” (CRUZ, 2005, p. 27). Petrônio Domingues
(2008, p. 517) reforça este caráter político do empoderamento negro
através da atuação da Frente Negra Brasileira (FNB) nos ano de 1931
a 1937, associação que pautava sua atuação no entendimento de que
“na educação [estaria], senão a solução, pelos menos um pré-requisi-
to indispensável para a resolução dos problemas da ‘gente de cor’ na
sociedade brasileira” [grifo nosso], outrossim, diversos veículos jorna-
lísticos deste período veiculavam a necessidade da instrução para o
enfretamento das questões em volta do racismo no Brasil republicano.
A década de 1990 constitui um marco, segundo a professora Ân-
gela Figueiredo (2019, p. 77), na medida em que se “se admite, oficial-
mente, a existência de preconceito e de discriminação raciais em nossa
sociedade”, a partir das militâncias políticas e acadêmicas que denun-
ciavam a falta de substrato fático-empírico da democracia racial bra-

38  - Tal discussão é tratada no trabalho da professora Solyane Lima, ‘‘Recrutá-los


jovens: a formação de aprendizes marinheiro em Sergipe (1856-1905)’’sobre a pro-
posta de educação para crianças e jovens pobres.
188 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

sileira, que pugnava pela convivência pacífica entre as raças no Brasil.


Nesse ponto que o estudo aqui neste espaço promovido debru-
ça-se sobre o aspecto da raça e da punição penal no sistema prisional
brasileiro, aliado a construção de estratégias pedagógicas e produtos
didáticos para o ensino de História da África, da Diáspora e dos Povos
Indígenas, concebendo as impressões ecológicas e sócio-antropológi-
cas para construção de um produto que possua ou almeje uma iden-
tidade com seus atores e revisite conteúdos ignorados pelos livros de
História, tendo em vista esta realidade nos livros didáticos de História,
destinados para sistema prisional baiano que carrega quando não os
vícios de invisibilidade preta e indígena, o traz de forma tímida.
Na análise dos três volumes de livro para Educação de Jovens e
Adultos para o ano de 2013, publicado pela Editora Moderna, e que
estavam disponíveis na Escola da Colônia Penal de Simões Filho, verifi-
cou-se que pouco se abordou sobre o papel das mulheres nas lutas e
resistências negras, tampouco se aborda o protagonismo indígena na
luta contra a dominação bélica e cultural portuguesa. A História da Áfri-
ca antiga, Diáspora e independência dos países africanos são omitidas
nas seções dedicadas as ciências humanas.
O público a que diretamente se destina o livro didático ou os
atores políticos, que em tese dialogam de pronto com o conteúdo des-
te material, não travam uma relação passiva no processo de leitura e
apreensão dos signos pedagógicos (FREIRE, 1987; NASCIMENTO e JE-
SUS, 2010; MACHADO, 2013).
No meio acadêmico a posição crítica as representações do negro
e do índio no livro didático, teve impacto nas reformulações das políti-
cas sobre educação das minorias étnicas, fortalecidas pelas alterações
da Lei 10.639/2003. Grupioni (1995, p. 490), fala sobre as sociedades
indígenas no Brasil retratadas nos livros didáticos, como um conjunto
de indivíduos traidores dos brasileiros em alguns episódios históricos
- nacionais que no caso seriam os portugueses colonizadores - repro-
duzindo a imagem do bom selvagem submisso, ora pacífico, ora domi-
nado pelos instintos.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 189

É esta lacuna que buscamos extirpa na construção do paradidá-


tico proposto.

Paradidático e o cárcere.

A obra “Histórias da Casa Verde: Cor, Cárcere e Liberdade” foi


concebida para uso didático e ensino de História da África, da Diáspora
e dos Povos Originários no espaço da prisão. Enquanto gênero literário
optou-se por escrever uma novela39 como produto ou um livro paradi-
dático, cujo enredo se passa na Penitenciária Lemos de Brito, e possui
os personagens Hollywood, Babalu, Gonçalves e Chico como protago-
nistas dos conflitos que se passam intracárcere. A trama envolve ques-
tões raciais, a partir de recortes históricos e reflexões sobre o processo
de encarceramento da população afrodescendente.
O processo metodológico de construção do paradidático se
ancorou na observação do espaço prisional como também em uma
literatura produzida sobre os cárceres na Bahia. Atente-se que as pe-
culiaridades da sociedade intramuros estão em constantes transforma-
ções, de acordo com seus ínsitos processos culturais. Assim, os estudos
sobre o sistema prisional, no campo da Educação, História, Políticas
Públicas e Sociologia, encetados, respectivamente, por Everaldo Car-
valho (2013), Claudia Trindade (2012), Franklim Peixinho (2014), Luiz
Lourenço e Odilza Nunes (2013), entre outros pesquisadores, utilizados
como referência, vão ter no espaço e no tempo diferenças, tênues ou
substanciais, na verificação da constituição antropológica e política das
formas sociais encontradas nas prisões baianas, expostas nas respecti-
vas investigações, o que, por outro lado, não evidenciam inconsistên-
cias e sim a afirmada alteração volátil do arquétipo cultural da socieda-
de carcerária, embora seja possível identificar pontos de contatos nas
análises históricas e etnográficas de cada estudo.

39  - Uma novela é o gênero literário que não tão extenso como romance, mas possui
as mesmas estruturas que este.
190 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Everaldo Carvalho (2013) em análise sobre a estrutura social dos


custodiados na Penitenciária Lemos de Brito traça hierarquias políticas
de acordo como o modelo construído naquele espaço, em que classes
sociais se organizam a partir de critérios de classificação baseados em
funções e poderes exercidos no cárcere. Em similares percepções so-
bre as hierarquias sociais do sistema prisional baiano, Peixinho (2014,
p. 82-83) em pesquisa feita na Colônia Penal de Simões Filho – CPSF
- identifica naquele cárcere a figura do “frente da cadeia”, “[...] aqueles
que fazem parte do comando da sociedade carcerária”, “A “frente da
cadeia” exerce o poder dentro do cárcere, estabelecendo as normas e
aplicando as sanções”; o “correio” ou “correria” tem a função de infor-
mar as demandas dos internos e realizar a entrega de medicamentos,
os presos evangélicos, chamado de “crença” e o couro de rato, que tal
como na PLB, é o preso sem status ou poder político.
Taysa Santos (2016) também descreve no mesmo espaço pesqui-
sado por Everaldo Carvalho tais formações sociais, ou seja, “a existência
dos linhas de frente e seus soldados” [grifos no original], quando anali-
sa as lideranças prisionais relacionadas com as facções criminosas que
atuam mercado ilegal do tráfico de drogas na região metropolitana e
no estado da Bahia.
Este recorte sócio-antropológico do sistema prisional constitui
uma matéria não estática, pois como local de intensos processos cultu-
rais, modificações e até sincretismos, delineia uma identidade própria,
e requer uma leitura qualitativa para qualquer relação em termos de
políticas públicas, sobretudo, na seara da educação prisional.
As impressões, sentidos e formas vividas no cotidiano de uma
unidade prisional, tal como numa espécie de alquimia epistemológi-
ca se constituiu no material paradidático combinados com elementos,
que tem a pretensão de contemplar a identidades dos atores políticos
e a necessidade da discussão crítica e reflexiva da raça a partir da histo-
ricidade, em que personagens, o enredo, o clímax se nutre das diversas
histórias que circulam no imaginário real e fictício da vida na prisão,
que está retratada nas histórias e personagens do paradidático.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 191

A extorsão, a violência, o amor e o senso de respeito coletivo pela


família, expresso no dizer “família é ouro do ladrão”, a figura do laranja,
a religiosidade, sexualidade, o poder do “frente” e o papel de muitas
mulheres em face dos seus companheiros e filhos que estão cumprindo
pena são elementos captados e relacionados com documentos40, ma-
teriais didáticos que se anexam a trama, construída sem o fluxo contí-
nuo no tempo narrativo, para manter a atenção do leitor.

Considerações finais
A historicidade das análises feita e que subsidiaram a escrita li-
terária e pedagógica do paradidático se inserta em uma das variadas
pesquisas no campo do ensino de história e da pedagogia na prisão,
e esta foi a proposta deste trabalho, diante de vários saberes acumu-
lados, sintetizados e direcionados para a compreensão de um material
didático que tende a refletir o cárcere em sua cor, tratamento racista e
privações.
Tem-se no histórico do sistema punição brasileiro uma seletivida-
de do tratamento legal e da execução da penal, voltado às populações
marginais ao reduto das elites política, econômica é étnica do Brasil.
A punição penal e o acesso a instrução escolar ao negro e escravo
era diferenciada em relação ao branco abastado, embora a escola de
primeiras letras fosse para as populações negras, pobres e mestiças,
esta não era de boa qualidade, ao contrário da escola republicana, cujo
contingente de alunos negros era escasso.
A luta pela emancipação e combate ao racismo, misoginia, lgb-
tfobia, machismo e demais formas de violência é mais eficaz pela edu-
cação, e nesse sentido este trabalho se traduz também em um ativismo
epistemológico necessário para ocupação de espaços nos meios aca-
dêmicos e instituição de lugares legítimos de fala.
40  - Documentos são materiais que incorporam finalidades didáticas, a partir de
adaptações de filmes, livros, peças ou qualquer outro suporte, retirados do contexto
artístico cultural de concepção e empregado em um sentido didático-pedagógico de
acordo com o conteúdo.
192 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Contudo, a implementação, embora com aceitação pelo público


discente da CPSF, esbarra na morosidade de políticas públicas - não só
em educação - voltadas para o espaço da prisão para que experiên-
cias como estas sejam ampliadas, como outros materiais e propostas
que valorizem a identidades ancestrais de muitos alunos, sua imagem
e auto- estima enquanto sujeitos históricos.

Referências
CARVALHO, Everaldo Jesus de. Escola Penitenciária: por uma gestão
da educação prisional focada na dimensão pedagógica da função do
agente penitenciário. (Dissertação de Mestrado). Salvador: GESTEC/
UNEB, 2013.

CRUZ, Marileia dos Santos. Uma abordagem sobre a educação dos


negros. In: ROMÃO, Jeruse (org.). História da educação do negro e
outras histórias. Brasília, DF: MEC, 2005.

DOMINGUES, Petrônio. Um "templo de luz": Frente Negra Brasileira


(1931-1937) e a questão da educação. Rev. Bras. Educ. [online]. 2008,
vol.13, n.39, p.517-534.

FARIA FILHO, Luciano Mendes. Instrução Elementar no século XIX. In:


LOPES, Eliane Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes; VEIGA,
Cynthia Greive (orgs.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Hori-
zonte: Autêntica, 2000, p. 135-138.

GRUPIONI, Luís Donizete Benzi. Livros didáticos e fontes de informa-


ções sobre as sociedades indígenas no Brasil. In: org. Aracy Lopes da
Silva e Luís Donizete Benzi Grupioni (Orgs.). A temática indígena na
escola: novos subsídios para professores de 1° e 2º graus. Brasília,
MEC/MARI/ UNESCO, 1995.

FIGUEIREDO, Ângela Figueiredo. Descolonização do conhecimento


no contexto afro-brasileiro. In: SANTIAGO, Ana Rita [et al]. 2. ed.
Descolonização do Conhecimento no Século XXI. Cruz das Almas/
BA: UFRB, 2019.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 193

FONSECA, Marcus Vinícius. A população negra no ensino e na pes-


quisa em História da Educação no Brasil. In: Marcus Vinícius Fonseca;
Surya Aaronovich Pombo de Barros (Orgs.). A história da educação
dos negros no Brasil. Niterói: EdUFF, 2016.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1987.

KRAHN, Natasha Maria Wangen. Ressocializando?: as percepções


sobre a implementação de políticas laborativas e educacionais em
uma unidade prisional. (Dissertação de Mestrado). Salvador: PPGCS,
FFCH-UFBA, 2014.

LIMA, Solyane Silveira. Recrutá-los jovens: a formação de aprendi-


zes marinheiro em Sergipe. Aracaju: EDISE, 2015.

LOURENÇO, Luiz Claudio; ALMEIDA, Odilza Lines de. Quem quer


manter a ordem, quem quer criar desordem - dinâmicas das
gangues prisionais no estado da Bahia. Tempo Social, revista de
sociologia da USP, v. 25, n.1, 2013.

MACHADO, Vanda. Pele da cor da noite. Salvador: EDUFBA, 2013.

NASCIMENTO, Claudio Orlando Costa do; JESUS, Rita de Cássia Dias


Pereira de Currículo e formação: diversidade e educação das rela-
ções étnicos-raciais. Curitiba: Progressiva, 2010.

PEIXINHO, Franklim da Silva. Drogas e sociedade carcerária no


sistema prisional baiano: Um estudo das condições para implanta-
ção do programa de redução de danos a partir da análise da Colônia
Penal de Simões Filho. (Dissertação de Mestrado). Cachoeira: MP-
GPPSS-UFRB, 2014.

SANTOS, Taysa Silva. Comando entre cadeias: do estado, dos fren-


tes e das famílias. (Dissertação de Mestrado). Cachoeira: PPGCS-U-
FRB, 2017.

SILVA, Roberto da (org.). Didática no Cárcere II: entender a natureza


para entender o ser humano e o seu mundo. São Paulo: Giostrini, 2008.
194 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

SILVEIRA, Maria Helena Pupo. Processo de normalização do com-


portamento social em Curitiba: Educação e trabalho na Peniten-
ciária do Ahú, primeira metade do século XX. (Tese de doutorado).
Curitiba: PPGE-UFPR, 2009.

SOUSA, Ione Celeste Jesus de. Escolas ao Povo: experiências de es-


colarização de pobres na Bahia - 1870 a 1890. Tese apresentada no
PEPG em História, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
2005.

TRINDADE, Claudia Moraes. Ser preso na Bahia no século XIX.


(Tese de doutorado). Salvador: PPGH, FFCH-UFBA, 2012.

VIEGA, Cynthia Greive. Escola pública para os negros e os pobres


no Brasil: uma invenção imperial. Revista Brasileira de Educação v.
13 n. 39 set./dez. 2008, p. 502-516.
Transformando teoria em
prática em Amargosa

Jardelina Garcia Santana


Emanoel Luís Roque Soares

Introdução
Este trabalho teve como objetivo analisar em que medida duas
escolas municipais de Amargosa-BA tem contribuído para a formação
da identidade ético-racial na perspectiva da lei 10.639/03. Para dar sur-
gimento a pesquisa partimos da necessidade de compreendermos as
políticas curriculares de desenvolvimento para profissionalização, nes-
se percurso, refletirmos que nos dias atuais ainda se é possível consta-
tarmos a ausência de um plano de educação que contemple a inclusão
seja ela de gênero, raça, social ou cultural, para efetivação de uma for-
mação alicerçada na diversidade.
A relevância deste trabalho consistiu em ter uma estatística pre-
cisa, a partir dos campos empíricos da pesquisas, de como se tem dado
a formação da identidade d@s alun@s negr@s41 de duas escolas mu-
nicipais de Amargosa-BA, sob a perspectiva da lei 10.639/03 e seus
desdobramentos nas questões étnico-raciais. Essa investigação foi
impulsionada pela visível necessidade de uma formação que não seja
simplesmente “abstrata”, ou seja, que tenha propostas excelentes no
papel, mas deixe a desejar nas aplicações.
Esta pesquisa teve abordagem qualitativa, porque essa técnica
se revela como um instrumento que traz grandes contribuições ao tra-
41  - Neste trabalho será utilizado em casos possíveis o símbolo @ (arroba) simbo-
lizando a contemplação de gêneros. Os movimentos feministas promovem o uso do
símbolo @ como substituto neutro preferência ao gênero masculino, nesse trabalho
o @ terá a função de contemplar os gêneros masculino e feminino para se referir a
grupos de gêneros mistos ou desconhecidos, em detrimento da forma padrão que
tradicionalmente dá preferência ao gênero masculino, nesse trabalho o @ terá a fun-
ção de contemplar os gêneros masculino e feminino.
196 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

balho, sobretudo, por expor uma junção de metodologias de cunho


racional e intuitivo capazes de contribuir para a melhor compreensão
dos fenômenos. De caráter exploratório a pesquisa qualitativa além de
estimular os entrevistados a pensarem livremente sobre algum tema,
objeto ou conceito, mostra aspectos subjetivos e atinge motivações
não explícitas, ou mesmo conscientes, de maneira espontânea. Por isso,
é utilizada quando se buscam percepções e entendimento sobre a na-
tureza geral de uma questão, abrindo espaço para a interpretação.
É uma pesquisa indutiva, isto é, o pesquisador desenvolve con-
ceitos, ideias e entendimentos a partir de padrões encontrados nos
dados, ao invés de coletar dados para comprovar teorias, hipóteses e
modelos pré-concebidos. A pesquisa qualitativa considera que há uma
relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, ou seja, um vínculo
indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito que
não pode ser traduzido em números. Com isso, a observação direta
se torna importante, porque a mesma permitir ver e ouvir, além de
examinar fatos ou fenômenos estudados, propiciando o encontro de
evidências a respeito de situações sobre as quais, os indivíduos não
têm consciência, mas orientam seus comportamentos.
Dentro da pesquisa qualitativa a entrevista semiestruturada nos
oferece a possibilidade de acessar uma grande riqueza informativa
(contextualizada e através das palavras dos autores e das suas pers-
pectivas). Por tanto, o trabalho com a semiestruturada oportuniza o/a
investigador/a esclarecer alguns aspectos no seguimento da entrevista,
em contrapartida, o que a entrevista mais estruturada ou questionário
não permitem. Diante da larga possibilidade de trabalho com a mes-
ma, fizemos uma interligação entre os instrumentos metodológicos e
a pesquisa supracitada, buscando embasamento para as nossas hipó-
teses, levando em consideração a dinamicidade do estudo proposto,
bem como, o surgimento de novas possibilidades.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 197

A 10.639/03 nos currículos


A lei 10.639/03 é a contextualização do processo de reconstru-
ção histórica do negro no Brasil. Infelizmente essa história por sécu-
los foi contada de forma destorcida, na qual os negros jamais foram
vistos como sujeitos da história, ocupando apenas os lugares subal-
ternos. A respectiva lei traz a obrigatoriedade do ensino de história
afro-brasileira nos anos inicias, preparando @s alun@s para romper
com o paradigma que colaborou para a interiorização do negro, e que
interfere diretamente na aplicabilidade de uma educação justa e igua-
litária. É importante que se tenha ensino que dê espaços as diferenças
que compõe o processo de formação da identidade nacional. Devemos
compreender a lei 10.639/03 como um repto que traz a proposta de
ressignificação da qualidade da educação brasileira, vislumbrando uma
educação justa e digna para tod@s.
Entende-se que a lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que altera
a LDB 9.394/96, "para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática História e Cultura afro-brasileira" e para
influenciar a elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e cul-
tura afro-brasileira e africana, foi sem dúvida um grande avanço. No
entanto, pouco se fez para materializar estas propostas. As condições
materiais das escolas e a formação dos professores ainda permanecem
falhas para proporcionar uma educação de qualidade acessível a to-
d@s, partindo desse entendimento faz-se necessário a valorização da
história, cultura e identidade dos descendentes e africanos.42
A proposta é garantir na área de educação, dentro da urgência
evidente aos afro- brasileiros, a aplicação de políticas de ações afirma-
tivas, ou seja, políticas que visem fazer reparações acerca da importân-
cia da história, cultura e identidade, “trata-se de políticas curriculares,
fundada em dimensões históricas, sociais e antropológicas oriundas da

42  - BRASIL, 1998.


198 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

realidade brasileira e busca combater o racismo e as discriminações


que atingem particularmente os negros.”43
Não há dúvida nenhuma da importância da inclusão do estudo
desta temática nos currículos da escola básica. É evidente que precisa-
mos ir além da escravidão nas aulas de História do Brasil (BRASIL, 2004,
p.633). No entanto, para que a lei 10.639/03 seja efetivamente em-
pregada, é preciso que, em primeiro lugar, haja uma qualificação dos
professores, e de toda a instituição escolar, bem como, a comunidade
escolar. A história do povo africano vem sendo trabalhada nas escolas
de maneira superficial, trazendo uma imagem d@ negr@ apenas como
@ escrav@, aculturad@ que foi “trazid@” ao Brasil e que não acres-
centou nada ao povo brasileiro. Devido a essa visão, fez-se necessário
a implantação da legislação que obrigasse, de fato a mudança na abor-
dagem desse tema em sala de aula.
O objetivo principal para a inserção da lei 10.639/03 é o de di-
vulgar e produzir conhecimentos, atitudes, posturas e valores que edu-
quem cidadãos quanto à pluralidade étnico-racial, garantindo respei-
to aos direitos legais e valorização de identidade cultural brasileira e
africana. É no §1º do artigo 1 que está a grande novidade a respeito
do ensino da cultura africana – @ negr@ deixa de ser visto como uma
figura passiva na formação da sociedade brasileira, passando a ser re-
presentado como sujeito de sua própria história.
[...] o estudo da História da África e dos Africanos,
a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasi-
leira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áre-
as social, econômica e política pertinentes à Histó-
ria do Brasil.

Apesar dos PCN’s preverem discussão da pluralidade cultural


brasileira – os/as professores/as ainda não sabem lidar com o tema.
Fazer com que os estudantes tenham respeito e valorizem as diferen-
tes características étnicas e culturais brasileiras, é uma das propostas
dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s). Segundo o documento

43  - BRASIL. 2004.


Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 199

redigido em 1996, a escola deve contribuir para a formação de indiví-


duos éticos e que entendam a diversidade como fator fundamental de
nossa sociedade. Mas essa diretriz ainda não saiu do papel. Portanto,
o caminho é conscientizar e dar ao professor as condições necessárias
para se atualizar, pois, o silêncio dado a essas ações contribui para a
sua permanência, como conforme declarou o Ministro da Educação e
do Desporto em (1997, p.4).
Sabemos que isto só será alcançado se oferecer-
mos à criança brasileira pleno acesso aos recur-
sos culturais relevantes para a conquista de sua
cidadania. Tais recursos incluem tanto os domínios
do saber tradicionalmente presentes no trabalho
escolar quanto às preocupações contemporâneas
com o meio ambiente, com a saúde, com a sexu-
alidade e com as questões éticas relativas à igual-
dade de direitos, à dignidade do ser humano e à
solidariedade.

Dessa forma, a escola necessita com urgência reformular seus


conteúdos e problematizar a questão d@ negr@ no contexto escolar,
possibilitando as crianças negras a conhecerem sobre a diversidade
cultural. Sabemos que as Leis sozinhas não bastam, nessa luta, o pa-
pel do docente é fundamental. O professor deve possuir informação,
formação, discernimento e sensibilidade sobre a situação da realidade
social e racial do país, para contribuir com a superação do preconceito
e discriminação.
Entendendo que a questão racial permeia toda a história social,
cultural e política brasileira, o que afeta a todos nós, independente-
mente do nosso pertencimento étnico- racial. O movimento negro
brasileiro tem feito reivindicações e construído práticas pedagógicas
alternativas, a fim de introduzir essa discussão nos currículos.
Quando relatamos que a escola é uma instituição social que car-
rega em si traços de conservação da desigualdade que legitima valores,
modos de vida e condutas específicos, podemos dizer que, no que se
refere à construção de identidades, essa instituição apresenta-se tam-
bém como um ambiente capaz de afirmar alguns “tipos ideais”, assim
200 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

como, negar outros. Conforme nos mostram os estudos de Bourdieu


(2007), embora se apresente como uma instituição democrática, capaz
de acolher os diversos tipos de sujeitos sociais, a escola carrega em si a
condição básica de estar voltada para um tipo específico de educação:
a da classe dominante.44
É através dos currículos que novas propostas são “postas em prá-
tica”, e criadas novas políticas que contemplem a precedência de vivên-
cias e necessidades de tod@s sem que haja prioridades. Dessa forma,
todas as raças e classes sociais auxiliam na elaboração das mesmas,
priorizando o desenvolvimento e o conhecimento, os quais influen-
ciarão diretamente numa sociedade justa e igualitária. “(...) face a face
em que negr@s e branc@s se espelham uns nos outros comunicam-se
sem que cada um deixe de ser o que é enquanto ser humano de iden-
tidade étnico-racial própria”, 45
Sendo assim, se refletirmos em torno da função do currículo na
educação, podemos compreender que o currículo é uma conjuntura de
ordem e determinações, no qual se elegem conteúdos a serem traba-
lhados dentro de uma proposta preestabelecida, ou seja, faz-se neces-
sário um processo de desconstrução que pode ser iniciada a partir das
propostas elaboradas nos currículos.

Escola e identidade negra


Entende-se que Identidade é um conceito que não possui uma
única significação. Sua constituição, também diz respeito à explanação
da realidade, uma vez que é um processo de representação simbólica.
Em linhas gerais, quando falamos em “identidade” ou “identidades”,
devemos sempre estar bastante atent@s, pois, se trata de um tema que
envolve comportamentos, sentimentos, o modo de ser, de viver e de
amar de cada um. Tudo isso “carregado” de uma história de vida, ocor-
rida dentro de um determinado contexto social, com laços familiares e
44  - Bourdieu, (2007).
45  - Silva, (2010, p.41).
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 201

afetivos específicos, recheada de crenças e valores peculiares.


A identidade é um processo mutável, que fazemos constante-
mente de acordo com os ambientes e influências sociais que sofre-
mos, por perpassar um processo histórico e não puramente biológico.
Seria fantasioso se conseguíssemos compreender a identidade como
algo pronto e acabado, pois de acordo com as formas significativas e
representativas elas culturalmente se graduam. Filtramos as composi-
ções que nos identificamos para esse processo de formação da nossa
suposta identidade.
Compreendemos que o processo de formação da identidade ne-
gra na sociedade em que vivemos não é um processo tão fácil, sobre-
tudo, porque desde sempre, nos é apresentada uma história distorcida,
que nos impulsiona a acreditar que essa formação precisa perpassar
pela autonegação, para, enfim, sobreviver. Esse é o grande desafio
constantemente enfrentado por nós negras no Brasil. Dessa forma, fa-
z-se necessário salientar que a identidade construída pela negra não é
pensada apenas em oposição ao branco, e sim pela negociação; pelo
conflito e pelo diálogo com esse, o que perpassa por uma complexa
trajetória, que nos deixa explícita a necessidade de conviver com as
diferenças, para a construção da identidade negra.
O/a professor/a deve possuir informação, formação, discerni-
mento e sensibilidade sobre a situação da realidade social e racial do
país, para assim, contribuir com a superação do preconceito e discri-
minação (PCN’s,1997). A sensibilidade que os PCN’s (1997) mencionam
é a mesma que Freire (1987) incita as pessoas a desenvolverem: “[...]
ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mes-
mo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”.
Enfim, sabemos que as escolas não têm dado a devida atenção no que
diz respeito à formação de professores para lidar com as questões ra-
ciais, o que traz grande preocupação para nós estudiosos das questões
étnico-raciais, que compreendemos a urgente necessidade de maiores
investimentos acerca do assunto em questão. Percebe-se as grandes
lutas dos movimentos negros, ativistas, porém, percebemos esses efei-
202 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

tos de “de fora pra dentro”, entretanto, a escola ainda permanece em


sua zona de conforto ou optando pelo silenciamento.
Gomes (2003), por sua vez nos apresenta a importância de pen-
sarmos a identidade através de um processo educativo estabelecido
entre cultura e educação, sendo possível pensar por “um caminho, in-
teressante para refletir sobre essa articulação, seria não pensar a iden-
tidade negra como a única possível de ser construída pelos sujeitos que
pertencem a esse grupo étnico/racial”.46 Partindo do entendimento de
que a formação da identidade é um processo singular, que transcorrem
dimensões sociais e pessoais, sendo construído através de seleções de
valores individuais e coletivos, formando assim, identidades que vão
além da identidade racial. Vislumbrando, desta maneira, a formação da
identidade como um processo de construção e reconstrução que fa-
zemos ao logo de toda nossa existência, independente dos ambientes
que frequentamos e trazem interferências para nossa vida.
A escola tem o papel preponderante na eliminação das discrimi-
nações e na emancipação dos grupos discriminados, por proporcionar
acesso aos conhecimentos científicos, aos registros culturais diferen-
ciados, à conquista de racionalidade. Esses fatores regem diretamente
as relações sociais e os conhecimentos avançados que se configuram
como indispensáveis para a consolidação e o conserto das nações
como espaço democrático e igualitário, conforme prevê a lei de Dire-
trizes e Base (LDB).
A escola é o espaço no qual uma nova estrutura de
sentimentos humanista antirracista e democrática
poderá se desenvolver e contribuir para a emanci-
pação tanto da população negra como também de
toda sociedade Brasileira (Lei de Diretrizes e Bases,
LDB, artigo 26-A).

A constatação do papel da escola na reprodução das desigual-


dades raciais revela a falácia da democracia racial e, ao mesmo tempo,
a inadequação da escola no tratamento da diversidade étnica cultural.
Em função dessa problemática, desencadeou-se um processo de rei-
vindicação por parte do movimento negro para que a escola incorpo-
46  - Gomes (2003, p.171).
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 203

rasse em seu currículo os valores culturais e históricos do negro. Nesse


aspecto, o movimento negro estabeleceu estratégias pontuais de rede-
finição da escola em seus elementos-chave.
O direito à educação, assim como prevê a Constituição Federal
de 1988,47 como um instrumento para o desenvolvimento humano, de-
veria considerar todos sem restrições étnicas, políticas ou religiosas,
entretanto, “as práticas educativas que se pretendem iguais para todos
acabam sendo as mais discriminatórias” (GOMES, 2001, p.86). Nessa
perspectiva, torna-se necessário repensar a estrutura educacional do
ponto de vista da prática docente e da escola como espaço de repro-
dução ou transformação, problematizando como essas relações são
transmitidas para as alunas negras.
A lei 10.639/03, alterada pela Lei 11.645/08,48 propõe novas di-
retrizes curriculares para o estudo da história e cultura afro-brasileira e
africana. Por exemplo, os professores devem ressaltar em sala de aula
a cultura afro-brasileira como constituinte e formadora da sociedade
brasileira, na qual os negros são considera dos sujeitos históricos. Dessa
forma, valorizando o pensamento e as ideias de importantes intelectu-
ais negros brasileiros; a cultura (música, culinária, dança) e as religiões
de matrizes africanas. Diante, dessa perspectiva, o movimento negro
assume a tarefa de superar a visão estereotipada do negro através de
resgate das raízes históricas desse grupo étnico. Para este movimento,
o eixo da atenção continua sendo a escola, onde se dá, em grande par-
te, a socialização dos indivíduos.

47  - Artigo 205 da Constituição Federal de 1988: “A educação, direito de todos e


dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da so-
ciedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício
da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”
48  - As Leis 10.639/03 e 11.645/08 é simbolicamente uma correção do esta-
do brasileiro pelo débito histórico em políticas públicas em especiais para a
população negra e indígena. Neste contexto, a publicação de livros didáticos
pertinentes a História da África, Cultura Afro-brasileira e indígena, para o En-
sino Fundamental I, torna-se uma alternativa eficaz para o ensino-aprendiza-
gem nas escolas públicas e particulares sobre o ensino das relações étnicos
e raciais. Visto que a docência tem questionado em órgãos públicos sobre a
carência de livros didáticos para a efetivação das leis supracitadas.
204 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Torna-se urgente desmontar as inverdades e omissões, para as-


sim, desnaturalizar os preconceitos e construir uma nação multirracial,
justa e democrática. Entretanto, apesar dos PCNs predizerem discussão
da pluralidade cultural brasileira – os/as professores/as ainda não sa-
bem lidar com o tema, por isso, fazer com que os estudantes tenham
respeito e valorizem as diferentes características étnicas e culturais bra-
sileiras, é uma das propostas dos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs). Segundo o documento redigido em 1996, a escola deve con-
tribuir para a formação de indivíduos éticos e que entendam a diver-
sidade como fator fundamental de nossa sociedade. Mas essa diretriz
ainda não saiu do papel.

Resultados alcançados no município


A busca pelo mestrado foi uma busca muito mais pessoal que
profissional, buscava encontrar resinificado para minha história quanto
mulher negra na sociedade brasileira. Na época da escrita no corrente
ano de 2015, ainda não exercia a função de licenciada na rede educa-
cional de ensino, hoje ocupo o meu espaço e sou fruto do meu próprio
produto, atuando na rede municipal de ensino como professora das
series finais do ensino fundamental I
(Re)construir uma identidade negra em uma sociedade racista
e desigual é um trabalho que exige para além de “achismo”, é preciso
uma fundamentação argumentativa e embasada, vislumbrando assim,
essa foi minha busca no Mestrado Profissional de História da África das
Diásporas e dos Povos Indígenas, encontrando esse preparo, me sentir
uma colaboradora apta, e com a missão de apresentar para tantos/
tantas alunos/alunas negros que não se vem representados no mundo
educacional levando para eles/elas uma outra versão da história conta-
da sobre o negro na sociedade atual .
Eu hoje estou atuando em uma turma de quarto ano, minha tur-
ma é composta por sua boa parte de crianças negras, que por sua vez,
não se reconhecem como tal. A história apresentada aos seus descen-
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 205

dentes se desdobra e pendura em suas vidas como a única e absoluta.


A função de professora me confere o direito e o dever de trabalhar
em prol da desconstrução dessa história descrita como “verdadeira”.
Muitos não se colocam em seus lugares, em suas posições, por não co-
nhecer seu valor histórico quanto negro. Apresentar uma nova história
requer muito mais que uma teoria, requer uma pratica diária que der
conta de apresentar essa história por meio das vivencias diárias.
Infelizmente muitos se atem apenas a estereótipos, acham que
se reconhecer-se, negro, está apenas atrelado a roupas e aparências.
Assumir-se negro, precisa estar imbricado no enfrentamento, nas suas
falas, em posicionamentos perante a sociedade, e também nas ações
corriqueiras. Fazer os alunos descontruir a partir dos pequenos deta-
lhes tem sido a minha luta, esse diálogo precisa estar presente na sala
de aula, e em todo âmbito escolar e social.
Representatividade é tudo. Tenho buscado mostrar o lado positivo
da história bem como a acessão de tantos negros que hoje ocupam os
seus espaços como forma de residência, para que eles compreendam
que o lugar do negro é onde ele queira está. O fato de a escola estar
localizada em um bairro periférico da cidade engrandece ainda mais o
meu trabalho o tornando “uma missão”, pois infelizmente a criminalida-
de é bastante marcante nessa localidade. Mostrar para um aluno/aluna
negro que cresceu vendo a criminalidade e seus pais, irmãos, amigos e
familiares sendo assassinados por rivalidade de gangues ou até mesmo
pela polícia, que ele pode ser o que ele quiser é uma luta árdua, muitos
já se vêm na vida do crime, para vingar seus familiares assassinados.
Alguns ainda se permitem, a um diálogo mais pessoal, uma apro-
ximação, outros acham que ser negros, e ser pobre é uma condenação,
é algo irreversível, e não existe possiblidade de viver uma vida diferen-
te. Tenho buscado de formas diversas mostra-lo que a sociedade racis-
ta deseja que eles sejam cativos a essa visão de inferioridade e a essa
condenação social, porém eles possuem toda condição e legalidade
possível de escolher ter uma realidade diferente, e não comungar com
o que a sociedade traz como como verdade absoluta.
206 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Um dos meios utilizados para que percebam a possibilidade dessa


mudança e conscientiza-los que o conhecimento é uma arma de trans-
formação, pois a parti do momento que se tem conhecimento ele se
torna um sujeito com juízo de valor, podendo se posicionar, e ganhan-
do o direito de escolher ter uma vida futura diferente, uma realidade
distinta ao do seu núcleo familiar. Esse é o papel da educação, tornar
sujeitos emancipados, reflexivos, que tenham voz ativa, ainda que essa
voz muitas vezes seja silenciada por muitos deforma sorrateira. Nas mi-
nhas aulas tenho utilizado muitos recursos áudios visuais, confrontado
“escritos do livro didático”, filmes com a visão que a sociedade aborda,
e filmes que contam fatos vivenciados pelo negro, sendo protagonista,
e colaborador efetivo da transformação da sociedade brasileira.
Às vezes é triste ver meus alunos no mundo do crime, mesmo
ainda sendo adolescente, sendo executado, por gangues, ou sendo
capa dos noticiários, nas redes sociais, a sensação muitas vezes é de
impotência, vêm o questionamento, “o que estou fazendo pelos meus
alunos”? Por tantas vidas que passaram no decorrer da minha vida pro-
fissional, na vida de tantos que eu tive a oportunidade de influenciar
de forma positiva? Reconheço que essa transformação não está ape-
nas atrelada a me, quanto profissional, ou quanto à escola, mas é com
missão social, da sociedade como um todo, e todos possuem papeis
importantes nessa transformação.
Logo chega a resposta, mostrar através da prática educativa e
profissional, a história que lhe foi negada, por toda sua vida, doar-se
como profissional, a busca constante do conhecimento/aperfeiçoa-
mento é o que me cabe, quanto professora, quanto profissional. E se
no final de tudo isso conseguir atingir de forma positiva os alunos
negr@s que se veem cativos a viver essa história distorcida, estarei gra-
ta, pois esses também serão influenciadores de tantos outros que no
decorrer da vida cruzará seus caminhos.
Amargosa é uma pequena cidade do interior da Bahia, localizada
no Vale do Jequiriça, O município conta com a grande colaboração do
Centro de Formação de Professores (CFP), porém tenho consciência da
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 207

não garantia total de uma desconstrução, pois se o profissional não se


profundar na temática em questão, a história sobre o negro perma-
necera sendo contada de forma rasa, deturpada ou simplesmente su-
perficial. Porém é muito importante salientar que, grande número dos
profissionais que atuam na rede municipal de ensino assim como eu,
são egressos do CFP, e tem feito a diferença na vida de tantos/tantas
alunas/alunos negros na construção de suas identidades.
Meu produto teve uma proposta de intervenção na pratica pe-
dagógica dos professores da rede municipal, partindo dos resultados
obtidos por meio da pesquisa de campo. Partido da identidade negra
como uma construção diária, que fazemos e refazemos durante toda
nossa vida, não podemos ater as discussões raciais apenas ao 20 de
novembro. A escola na qual tenho atuado sou resultado do meu próprio
produto. Tenho desenvolvido oficinas com os meus alunos, com o obje-
tivo de colaborar de forma positiva na construção de suas identidades.
Vejo diariamente a necessidade de confrontar os textos disponi-
bilizando no livro didático, onde a representação do negro está sempre
atrelada ao lugar de submissão. É preciso ir para além dos planos de
curso, e materiais didáticos, pois a construção dessa identidade é um
exercício diário, e não deve ser mencionado apenas nas aulas de história,
que são ministradas uma vez por semana. Essa desconstrução deveria
estar posta nos livros didáticos de uma forma geral, mostrando o outro
lado da história, não apenas nas capas. Embora seja importante, se ve-
rem representeados nessas ilustrações, esse é um dos pequenos ganhos
dos trabalhos e lutas travadas por uma sociedade justa e igualitária.
Os anos se passam e com eles vemos aos poucos os cenários
sendo transformado no município, ainda que sejam em passos lentos,
as paredes da escola do município já são representas por crianças ne-
gras, suas habilidades têm sido potencializadas sem distinção. As pro-
postas das oficinas aos poucos vêm ganhando visibilidade, pelos pro-
fessores municipais que tem esse compromisso social, e buscam e por
meio das suas práticas pedagógicas diárias a efetivação e cumprimento
da lei 10.639/09,
208 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Muitos professores do município já vêm adotando essa meto-


dologia seja de forma direta ou indiretamente, por se tratar de pro-
fissionais que comungam da importância das questões étnico racial e
compreendem os impactos que podem trazer para vida dessas crianças
quando isso lhe é negado durante o seu período escolar. Afinal so-
mos fruto dessa construção, que tivemos que desconstruir após sermos
despertados durante nosso percurso acadêmico e profissional.
Hoje me vejo autora e protagonista da minha história quanto
mulher negra, com uma função fundamental, colaborar na (re)cons-
trução e (re)significar da história do negro, potencializando seu papel
e importância na construção da sua própria história e história dos seus
descendentes. A qualificação do profissional da educação é o maior e
melhor investimento para a transformação do mundo e da sociedade,
conhecer suas origens e conhecer seu contexto histórico, é ter um lugar
de fala, em uma sociedade que tanto tenta nos silenciar.

Referências
BOURDIEU, P. A Escola conservadora: as desigualdades frente à
escola e à cultura. In: Escritos de educação. Organizadores BOUR-
DIE, P. ; NOGUEIRA et al. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das


Relações Étnico- Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC/ SEF, 2005.

BRASIL. Lei 9394 – 24 de dezembro de 1996. Lei de diretrizes e ba-


ses da educação nacional. Brasília: Ministério da Educação, 1996.

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Novas Diretrizes


Curriculares. Edital 04/MEC. Brasília, DF: Ministério da Educação, 10
dez. 1997.

GOMES, Nilma Lino. Educação e Identidade Negra. Minas Gerais.


2001. Disponível em:< http://www.letras.ufmg.br/poslit>. Acesso
novembro 2014.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 209

GOMES, Nilma Lino. Educação, identidade negra e formação de


professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1987.

SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves. Estudos Afro-brasileiros: africa-


nidades e cidadania. In: ABRAMOWICZ, Anete; GOMES, Nilma Lino
(orgs.). Educação e raça: perspectivas políticas, pedagógicas e esté-
ticas. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
Clube de história:
a cultura afro-brasileira na escola

Delmaci Ribeiro de Jesus


Emanoel Luís Roque Soares

Introdução
Nas próximas linhas irei relatar as etapas que constituíram o pro-
jeto de intervenção: Clube de História: estudo e pesquisa da história e
cultura afro-brasileira por estudantes da educação básica, no Colégio
Estadual Maria Isabel de Melo Góes, Catu/Ba. Tendo como ponto de
partida a observação do objeto de estudo (a escola pública e seus ato-
res principais, os estudantes), até o surgimento dos resultados.
As experiências vivenciadas no grupo de estudos e pesquisa
sobre a História do negro no município de Catu-Ba49 constituíram o
“Clube de História”, que teve como objetivo investigar e popularizar os
elementos que compõem a história e a cultura negra na cidade de Catu
e regiões circunvizinhas. Constituído por estudantes do Ensino Médio,
o grupo de pesquisa surgiu a partir de um problema relacionado a falta
de políticas públicas e/ou projetos escolares que se atentem para a
conservação de memórias sobre a cultura afro-brasileira no município.
A partir da problematização “De que forma os estudantes negros/ afro
descendentes, pertencentes à escola pública da cidade de Catu se perce-
bem enquanto atores de transformação da realidade na qual estão inse-
ridos?” O Clube de História desenvolveu atividades investigavas, relacio-
nadas a História do negro e seus descendentes em Catu-Ba e no Brasil.
A implementação do Clube de História no cotidiano das ativida-
des do Colégio Estadual Maria Isabel de Melo Góes pôde ser percebida
a partir do método dialético, que considera que os fatos não podem ser
49  - O município de Catu está situado a acerca de 78 km ao norte da capital baiana,
no litoral norte e agreste baiano.
212 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

analisados de forma descontextualizada dos aspectos social, cultural,


político e econômico. Os estudantes que participaram do Clube de His-
tória, a todo instante, eram convidados a relacionar os fatos históricos
mencionados no livro didático e nas fontes por eles analisadas, com a
História Local e com o cotidiano no qual estão inseridos.
As etapas que foram desenvolvidas para o desenvolvimento do
Clube de História ocorreram na seguinte ordem:
1. Reunião com a direção do Colégio Estadual Maria Isabel de
Melo Góes, e lançamento da proposta de inserção do Clube
de História nas atividades dos estudantes que demonstrem
desejo de participar;
2. Processo de seleção dos estudantes, através da divulgação
da proposta do Clube, entre os discentes do Ensino Médio;
3. Entrevista com os estudantes que manifestaram interesse em
ingressar no Clube;
4. Organização do cronograma de funcionamento do Clube de
História;

Como alternativa para a dificuldade de se reunir com os estudan-


tes foi criado um grupo em rede social que possibilitou acompanhar as
discussões, sugerir leituras e desenvolver as ações que favoreceram a
construção de projetos de pesquisa e posteriormente a apresentação
em Feiras de Ciências. A periodicidade das discussões virtuais era se-
manal e os encontros presenciais quinzenais, no turno oposto ao que
os alunos estudavam.
O roteiro de atividades do Clube, no que diz respeito as reuniões
com os estudantes, seguiu a sequência:
a. Apresentação da proposta, do projeto e estatuto do Clube
de História;
b. Explicação sobre o diário de bordo, sua importância e ne-
cessidade de acompanhar o estudante durante toda a sua
estadia no Clube de história;
c. Brainstorming, com o objetivo de provocar os estudantes
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 213

para pensar em possíveis temas de pesquisa que surgem a


partir da observação dos problemas da realidade na qual es-
tão inseridos;
d. Seleção de textos acadêmicos que possibilitem a reflexão
sobre a cultura afro-brasileira e os estudantes escolhem as
leituras que se sentirem mais atraídos a fazer;
e. Realização, pelos estudantes, de fichamentos e anotações so-
bre as leituras e levantamento de pontos para discussão. Es-
ses pontos são discutidos inicialmente em ambientes virtuais
e depois é realizado um debate presencial. Nesse momento
existe o desenvolvimento da capacidade de ler, analisar, in-
terpretar e se comunicar a partir de argumentos que buscam
validar uma ideia;
f. Nos encontros seguintes os estudantes são apresentados
a Plataforma Ápice Febrace (https://apice.febrace.org.br/)
onde realizam o curso online “Metodologia da Pesquisa e
Orientação de Projetos de Iniciação Científica”, ofertado pela
plataforma, que possibilita aprender mecanismos de pesqui-
sa, conceitos de plano de pesquisa, diário de bordo e outros
elementos fundamentais para o desenvolvimento de inicia-
ção científica Júnior;
g. A partir da discussão e formação teórica os estudantes foram
orientados na construção do plano de pesquisa e iniciaram a
pesquisa, seguindo a metodologia definida no plano. Nessa
etapa o professor orientador seguiu acompanhando o estu-
dante em atividades de campo, onde foram analisadas fontes
e realizado o levantamento de dados;
h. Por fim, foi feito o processamento dos dados obtidos, discu-
tindo no grupo de trabalho, compartilhando ideias, fazendo
registros no diário de bordo e fazendo reflexões sobre os ob-
jetivos que foram determinados e os resultados alcançados;
i. As etapas registradas no diário de bordo foram organizadas
em um artigo, que é compartilhado com outros estudantes
em oficinas, palestras e Feiras de Iniciação Científica.
214 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

1. Definição das reuniões do Clube de História, uma vez por semana,


para a leitura, discussão e produção textos sobre a História Local;
2. Orientação dos projetos de pesquisas dos estudantes, para sub-
missão em feiras de Ciências na cidade Catu e realização de pes-
quisa de campo;
3. Realização de Oficina sobre História Local, em parceria com os pro-
fessores, possibilitando aos estudantes do Clube de História, divul-
garem suas pesquisas;
4. Compartilhamento de aprendizagens, na qual todos envolvidos no
projeto foram convidados a fazer o diagnóstico dos possíveis be-
nefícios e/ou malefícios que a pesquisa e o conhecimento científi-
co podem proporcionar ao ensino de História.
5. Análise da efetividade desse projeto de intervenção, enquanto es-
tratégia pedagógica de ensino não formal de história, de práticas
de iniciação científica na educação básica e enquanto instrumento
de construção da cidadania do estudante.

Considerações teórico-epistemológicas
A origem do Clube de História encontra-se na inquietação, no
fazer pedagógico e se aproxima enquanto referência, da própria es-
cola, que em sua forma concreta de ser, pode ser entendida como um
objeto de análise e intervenção. Esse projeto pode ser compreendido e
desenvolvido como ação conjunta integrada por discentes e docentes,
partilhada com o coletivo da escola. Trata-se de uma possibilidade de
abordagem didática que, ao propor atividades investigavas, foi capaz
de potencializar a construção do conhecimento histórico e de identi-
dades dos sujeitos que o integram em seus múltiplos espaços de con-
vivência e ambientes educativos.
Trazer para a discussão aspectos teóricos que caracterizam a pes-
quisa como princípio educativo, a construção do conhecimento histó-
rico e a construção de identidade foram pressupostos teóricos que se
fizeram necessários para a compreensão do processo ensino apren-
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 215

dizagem que ocorreram nas atividades do Clube. Nele os estudantes


deixaram o papel de ouvintes e passaram a se posicionar enquanto
pesquisadores, construtores de conhecimento, capazes de identificar
problemas e buscar investiga-los, numa relação de diálogo com a rea-
lidade na qual fazem parte, uma oportunidade de transformação, que
ultrapassou os limites da escola e se materializou numa educação que
se evidencia como libertadora. Como afirma Paulo Freire em relação à
criação de uma pedagogia crítica-educativa. “Pedagogia que faça da
opressão e de suas causas objeto de reflexão dos oprimidos, de que
resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em
que está pedagogia se fará e refará” (FREIRE, 2005, p. 34).
Os temas de pesquisa que envolvem a história da cultura afro-
-brasileira trazem para o ambiente escolar o debate que é legitimado
pelas leis 10.639/03 e 11.645/08, mas que ainda não faz parte em sua
totalidade, das metodologias em exercício nas instituições de ensino
no Brasil. A lei 10.639, que instituiu o ensino de história e cultura da
África e afro-brasileira como conteúdo obrigatório na educação básica,
é resultado de lutas e movimentos sociais que reivindicam uma repa-
ração histórica, para atenuar as mazelas que foram e continuam sendo
praticadas contra a população negra que se estabeleceu no Brasil, des-
de o período Colonial.
Tendo como referência o cenário das escolas antes e depois da
Lei 10.639/03, fica evidente que mesmo com a obrigatoriedade do
ensino de História da África imposta por lei, não é capaz de tornar
possível uma mudança de comportamento curricular que possibilite
a inserção dos valores, da identidade, do reconhecimento e da valo-
rização da cultura afro-brasileira. No cotidiano das salas de aulas, a
mera transposição didática continua e não favorece a construção do
conhecimento numa perspectiva crítica e dialógica, nesse sentido é de
suma importância se repensar a metodologia do ensino de História,
sobretudo da História da Cultura afro-brasileira.
O ensino da História da África não é uma tarefa fácil, pois exis-
te uma imagem eurocêntrica que foi criada e recriada historicamente
216 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

sobre a inferioridade do continente africano. Desse modo entre a lei e


a efetivação de currículos escolares que venham a integrar o eixo das
discussões sobre a África, existe um caminho a ser percorrido e pen-
sar metodologias que sinalizem uma preocupação com a formação do
cidadão e o desenvolvimento de uma consciência histórica, são neces-
sidades que estão para além de cumprir sistematicamente com o que
está disposto na Lei 10.639/03.
Com o objetivo de ampliar as ações da Lei 10.639/03 e torna-la
mais efetiva em março de 2008 foi publicada a Lei 11.645/08, que além
da história da temática História e Cultura Afro-Brasileira, apresenta
como obrigatória o ensino de História indígena em todas as séries da
educação básica.
Para além de conhecer as leis que instituem a obrigatoriedade do
ensino de história da África no Brasil é preciso refletir porque elas fo-
ram criadas e qual o contexto em que se deu a proposição e aprovação
dessas leis. Segundo Ki-Zerbo (2010), não é possível viver sem memória
ou com a memória de outrem, ao menos que fosse feita uma escolha
pela inconsciência e alienação. Ainda segundo o autor, esse retorno a
si mesmo pode, aliás, revestir-se do valor de uma catarse libertadora,
como acontece com o processo de submersão em si próprio efetivado
pela psicanálise, que, ao revelar as bases dos entraves de nossa perso-
nalidade, desata de uma só vez os complexos que atrelam nossa cons-
ciência às raízes profundas do subconsciente. Nesse contexto é impres-
cindível propor um ensino que possibilite ao educando entender o seu
objeto de estudo e a si mesmo, numa perspectiva de libertação e [re]
construção. Nesse sentido a proposição de atividades investigativas re-
lacionadas a projetos de pesquisa apresentou-se como possibilidade
fecunda no processo formativo dos estudantes. Cabe destacar que esse
tipo de abordagem ainda é pouco difundida no ensino da História na
educação básica, sendo um pouco mais comum no campo do ensino
das ciências naturais. Esse é um dos motivos que tornam o Clube de
História inovador, pois as experiências trazidas pelo Clube demonstram
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 217

a contribuição que a pesquisa como princípio pedagógico pode trazer


também para o ensino das ciências humanas.
O ensino por investigação, tal como defende na Anna Maria
Pessoa de Carvalho, apresenta a ideia de que o processo de ensino e
aprendizagem inicia a partir de um problema. A autora afirma que:
Propor um problema para que os alunos possam
resolvê-lo, vai ser o divisor de águas entre o ensi-
no expositivo feito pelo professor e o ensino em
que proporciona condições para que o aluno pos-
sa raciocinar e construir o seu conhecimento. No
ensino expositivo toda a linha de raciocínio está
com o professor, o aluno só a segue e procura
entende-la, mas não é o agente do pensamento
(CARVALHO, 2013, p.2).

A proposição do ensino por investigação objetiva trazer uma re-


flexão sobre a busca por abordagens didáticas diferentes daquelas que
têm sido mais comuns nos diferentes espaços educativos, dentre elas,
por exemplo, o professor fazendo anotações no quadro, seguidas de
explicações e os estudantes anotando e ouvindo-o dissertar sobre um
determinado tópico de conteúdo. Uma expectativa que surge dessas
ideias é a possibilidade de que o gosto pela aprendizagem e cons-
trução do conhecimento histórico seja nutrido entre os estudantes ao
compreenderem que a História analisa as diferentes temporalidades
e espaços, como construções humanas, pautadas em crises, desafios,
inquietações que podem trazer mudanças para nossas vidas.
Nesse contexto o Clube de História caracterizou-se por ser uma
forma de trabalho cuja intenção é fazer com que estudantes se enga-
jem com as discussões, busquem a resolução de um problema, exerci-
tem práticas e raciocínios de comparação, análise e reflexão. De acordo
com Lúcia Helena Sasseron:
O ensino por investigação configura-se como
uma abordagem didática, podendo, portanto, es-
tar vinculado a qualquer recurso de ensino des-
de que o processo de investigação seja colocado
em prática e realizado pelos alunos a partir e por
meio das orientações do professor. Como aborda-
gem didática, o ensino por investigação demanda
218 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

que o professor coloque em prática habilidades


que ajudem os estudantes a resolver problemas
a eles apresentados, devendo interagir com seus
colegas, com os materiais à disposição, com os
conhecimentos já sistematizados e existentes
(SASSERON, 2015, p.58).

Nesse sentido o ensino por investigação caracteriza-se por ser


uma atividade orientada pelo professor. Porém as interações ocorridas
entre professor, alunos, materiais e informações é que de fato con-
cretizam o processo de ensino por investigação. A atitude dos estu-
dantes diante da proposição de não apenas ser um observador, mas
principalmente se engajar, possibilita o desenvolvimento de liberda-
de e autonomia intelectual, despertando nos indivíduos o desejo de
efetivamente aprender. Uma aprendizagem e reflexão sobre conceitos
a partir da identificação de problemas que estão postos, mas muitas
vezes passam despercebidos, visto que se vivencia em muitas escolas
a cultura burocrática da mera exposição de ideias que afasta os estu-
dantes do interesse pela aprendizagem.
Nessa perspectiva, não apenas conhecimentos curriculares po-
dem ser trabalhados, e desse modo o Clube de História, estimula tam-
bém o debate sobre questões morais e éticas relacionadas a cidadania
e inserção dos estudantes enquanto sujeitos que integram a sociedade.
Ao promover condições para que os alunos trabalhem ativa e conjun-
tamente na resolução de um problema, novas perguntas vão se cons-
truindo e possibilitando o estabelecimento de argumentação e debate
de ideias. O ensino por investigação exige que o docente valorize e
compreenda a importância de evidenciar as imprecisões dos estudan-
tes, com o objetivo de se produzir reflexões a partir de “erros”, conhe-
cimentos prévios e a experiência que a turma traz das suas diferentes
realidades. É um trabalho em parceria entre professor e estudantes.
Uma construção de entendimento com os aspectos históricos estuda-
dos e sobre os conceitos, modelos e teorias que o compõem; pode-se
afirmar que é uma construção de uma nova forma de vislumbrar os
conhecimentos históricos e o modo como estamos a eles relacionados.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 219

Resultados alcançados
Nessa seção, irei descrever os aspectos que corroboraram para
a consolidação da proposta do Clube de História. Iniciarei pontuando
as adversidades enfrentadas no decorrer das atividades vivenciadas no
Clube. Não tínhamos um espaço definido como nosso para realizar as
reuniões, a cada reunião estávamos sempre em busca de um espaço,
esse aspecto físico trouxe consigo a ausência de computadores, im-
pressoras e outros diferentes recursos que poderiam fazer das pesqui-
sas propostas mais relevantes.
Outro entrave que merece registro refere-se ao contratempo para
reunir os estudantes em um turno oposto ao do estudo regular o que
retrata os embaraços de ser professor e pesquisador na rede pública
estadual da Bahia, uma vez que os horários das reuniões precisavam ser
constantemente ajustados. Desde o início da proposta do projeto de in-
tervenção, Clube de História, foi sendo observado de que forma o grupo
de estudos, por mim descrito, podia envolver o maior número possível
de estudantes num processo contínuo de aprendizagem e reflexões re-
lativas à cultura afro-brasileira, mas que concomitantemente fomentasse
o desenvolvimento de habilidades de leitura e escrita dos estudantes.
Fazendo uso do conceito de avaliação tendo como referência a
definição abordada por Luckesi50 é possível observar que houve uma
evolução qualitativa no desempenho dos estudantes, que estiveram
participando ativamente do projeto de intervenção. No diagnóstico
inicial que ocorreu nos primeiros encontros do Clube de História, em
conversas com os estudantes foi possível perceber o quanto estavam
inseguros para falar, além de identificar um desinteresse pela leitura.
No primeiro ano de realização do projeto os estudantes tiveram difi-
culdades para identificar problemas e fazer reflexões a partir do obje-
to de estudo, nesse contexto participamos de duas feiras de Iniciação
Científica a Feira de Ciências das Escolas Estaduais de Catu e a Feira
de Ciências e Empreendedorismo da Bahia, nos dois eventos citados
50  - Segundo o professor Cipriano Carlos Luckesi, citado por Libâneo (1991; p196)
"a avaliação é uma apreciação qualitativa sobre dados relevantes do processo de en-
sino e aprendizagem que auxilia o professor a tomar decisões sobre o seu trabalho."
220 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

no ano de 2016, a desenvoltura dos estudantes foi marcada por ner-


vosismo e insegurança. Nesse período percebemos a necessidade de
se instituir uma cultura de se pesquisar que até então não era prática
comum, nem para os professores e nem para os estudantes do Colé-
gio Estadual Maria Isabel de Melo Góes. Era necessário, portanto, criar
possibilidades para que pouco a pouco a cultura científica pudesse se
inserir no cotidiano da Escola.
Ainda no ano de 2016, fizemos uma oficina na Escola Municipal
Professor Raimundo Mata. O convite foi feito para discutir questões re-
lacionadas a cultura afro-brasileira durante a as festividades da sema-
na da Consciência Negra. Na oportunidade os estudantes tiveram um
desempenho satisfatório, estavam mais espontâneos e puderam trazer
para a plateia de alunos do Ensino Fundamental II, importantes refle-
xões sobre a lei 10.639 no currículo das escolas da cidade de Catu, as
questões relacionadas ao Candomblé no Espaço Escolar, Preconceitos
e Tabus e a Beleza negra: valorização e identidade da cultura afro-bra-
sileira, no espaço escolar.
Nas conversas informais e/ou nos registros do diário de bordo,
bem como nas apresentações durante as Feiras de iniciação Científica,
foi possível visualizar o quanto os estudantes se desenvolveram, no
que diz respeito à articulação de ideias, a partir da leitura e escrita, o
Clube passou a instigar e sensibilizar toda comunidade escolar no que
diz respeito a necessidade de propor e discutir constantemente sobre
cultura afro-brasileira.
O grupo de estudos influenciou diretamente a criação do pro-
jeto interdisciplinar no Colégio Estadual Maria Isabel de Melo Góes,
“Cultura afro-brasileira no espaço escolar: descolonizando narrativas e
construindo saberes, ” o que possibilitou ampliar as discussões sobre
a cultura afro-brasileira no espaço escolar, e envolveu os estudantes
em oficinas de leitura, produção de textos, análise de documentários
e participação em palestras. Os textos, documentários e palestras par-
tiram de temas de um cenário local, a cidade de Catu e estimularam a
reflexão e a produção sobre a cultura afro-brasileira.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 221

Os resultados foram relevantes, uma vez que além de prêmios


obtidos em Feiras de Iniciação Científica Júnior, os estudantes do Clube
de História promoveram o início de uma reflexão necessária e contínua
no espaço escolar. O combate à intolerância, a desmistificação da de-
mocracia racial, valorização da identidade e cultura afro-brasileira são
elementos que passaram a fazer parte do projeto político e pedagógi-
co da escola, não apenas o conteúdo que é superficialmente analisado
no dia da “consciência negra”.
Ao longo do processo de desenvolvimento das ações do Clube,
foi possível verificar que é possível desmistificar a ideia presente entre
os alunos de que estudar História é prender-se ao passado e por tanto
algo desnecessário. O envolvimento dos estudantes em suas pesquisas
e a sensibilidade para observar problemas do seu cotidiano é extrema-
mente significativo, visto que o protagonismo dos estudantes precisa
ser cada vez mais estimulado.
Ao fomentar o ensino de História, num viés investigativo, os es-
tudantes foram incentivados a pensar o problema como promotor de
interações, seja individual ou coletiva, e como indutor do processo de
investigação no espaço escolar, um caminho que precisa ser percorrido
por alunos e professores para que haja a construção de novos saberes
que dialoguem com a realidade vivenciada.
Muitas vezes encarado como uma simples pergunta, o problema
traz associado a si todo um contexto no qual a situação problema-
tizada faz sentido, possibilitando que, em sala de aula, esta situação
seja analisada. É preciso pontuar que um problema escolar é diferente
de um problema científico. Na escola, o objetivo central é o contato
dos estudantes com um conhecimento que a eles ainda não é conhe-
cido, mas para o qual pode já haver certo consenso na comunidade
científica. A resolução de um problema é um processo complexo que
congrega ações de instâncias distintas desde aquelas mais ligadas a
ações manipulativas, desenvolvimento e envolvimento cognitivo, até
aspectos que demonstram uma construção teórica de conhecimento.
222 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

A ideia de investigação se relaciona com os processos por meio


dos quais novos conhecimentos são construídos apoiando-se em re-
sultados teóricos, dados empíricos, análise e confronto de perspectivas.
Num processo aberto, desencadeado e dependente de características
do próprio problema em análise, tendo forte relação com conhecimen-
tos já existentes (aprendizagem significativa) e já reconhecidos pelos
participantes do processo. Sob esta perspectiva, processos investiga-
tivos podem surgir como decorrência, desdobramento e continuidade
de investigações em curso ou já realizadas. Desse modo é importante
a continuidade das atividades de pesquisa e investigação em busca de
por novos resultados que deve sempre serem confrontados.
Considerando a sala de aula, a abordagem de conteúdos científi-
cos precisa cuidar para que os conceitos e outros elementos da cultura
científica não sejam apresentados como construções encerradas em
si mesmas, não passíveis de questionamento. Desse modo para Bar-
ca (2012) as pesquisas em Educação Histórica surgiram na tentativa
de se ligar a teoria com a prática, isto é, não apresentar apenas pro-
postas prescritivas não testadas em estudos empíricos, mas sim criar,
implementar e analisar situações de aprendizagem reais, em contextos
concretos, e disseminar resultados que possam ser ajustados a outros
ambientes educativos.
A possibilidade de desenvolver novas abordagens relacionadas
ao ensino de História que aproximem o objeto de estudo da realidade
ganha mais significado, quando as experiências educativas podem ser
adaptadas replicadas em outros contextos educativos. Por isso, o ensi-
no de História deve ter como fundamento o:
[...] desenvolvimento sustentado no conjunto de
competências de interpretação e compreensão do
passado que permite ler historicamente o mundo,
a partir de crianças e jovens, dado que a apren-
dizagem se for explorada de forma desafiante,
criativa e válida, apresenta fortes potencialidades
como contributo para o desenvolvimento de com-
petências cognitivas essenciais para a vida numa
Sociedade da Informação e de Desenvolvimento
(BARCA, 2012, p. 37).
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 223

Pensar o ensino de História no século XXI é uma tarefa complexa,


uma vez que em uma sociedade carregada de informações diversifica-
das, os indivíduos são confrontados com visões diferentes do mundo e
que por vezes elas são conflitantes entre si, como também com os seus
próprios conhecimentos.
O Clube de História tem alcançado seu objetivo, tanto é que foi
considerado pela Secretaria de Educação da Bahia como um dos desta-
ques no que tange aos projetos de intervenção desenvolvidos na rede
pública do estado. Os estudantes que o integram, mesmo com as di-
ficuldades, buscam fazer do Clube de História um caminho para que a
educação pública tenha uma melhor qualidade.
A proposta do Clube de promover a pesquisa para discutir a va-
lorização e o reconhecimento da cultura negra, nas suas diferentes re-
presentações, onde os estudantes são os protagonistas e sujeitos do
processo de ensino e aprendizagem, tem sido realizada com êxito. Os
problemas aqui relatados dificultaram as ações do projeto de interven-
ção, mas não foram obstáculos que impossibilitaram a sua realização.
Após o planejamento, a formação e consolidação do grupo de
estudos, foi gratificante testemunhar que os estudantes, membros do
Clube de História, iniciaram uma inquietação de propor uma nova
caminhada para o Clube. O surgimento de um projeto interdisciplinar
que tem perspectiva de integrar o projeto político pedagógico da
escola, é o legado que o Clube de História deixa para o Maria Isabel
de Melo Góes, além de evidenciar a capacidade e protagonismo dos
estudantes, como elementos que precisam ser insistentemente re-
lembrados e incentivados.
O grupo de pesquisa formado por estudantes da educação básica
teve como principal enfrentamento a adequação ao currículo vigente,
participar de um grupo de estudos exige disciplina e comprometimen-
to. É preciso ter sensibilidade para observar para além das necessida-
des curriculares que são impostas com “grades, ” intervir no processo
de ensino e aprendizagem é o caminho que se faz necessário para que
tenhamos um cenário favorável nas escolas públicas, a valorização de
224 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

estudantes e professores transforma um ambiente de caos em espe-


rança de dias melhores.
O projeto de intervenção apresentou para o Maria Isabel de Melo
Góes e para a comunidade situada em seu entorno o quanto é im-
portante mobilizar os estudantes para que tenhamos uma escola que
não se limite a transmissão de conteúdos que reforçam um discurso
elitizado e homogeneizador, cerceando direitos e reproduzindo a voz
do colonizador em contraposição ao silenciamento da nossa cultura
afro-brasileira.
É possível avançar e replicar a ideia do Clube de História em ou-
tros espaços educativos, nesse sentido o projeto foi reconhecido e se-
lecionado para ser divulgado para professores de todo o Brasil durante
o Missão Pedagógica no parlamento no ano de 201751 e o STEM TECH
CAMP Brasil52. A Missão Pedagógica no Parlamento demonstrou inte-
resse pelo projeto, pois compreendeu o quanto o Clube de História, ao
conceber o estudante enquanto pesquisador, favorece a emancipação
política e o exercício da cidadania, tendo como consequência o for-
talecimento de uma educação para a democracia, mesmo num cená-
rio político brasileiro que não favorece o desenvolvimento de políticas
educacionais democráticas. Por sua vez o programa STEM TECH CAMP
Brasil, que reuniu praticas pedagógicas inovadoras em Ciências, Enge-

51  - O programa Missão Pedagógica no Parlamento é uma formação para educa-


dores que acreditam ser a escola um espaço importante para a formação democrá-
tica cidadã democrática, trabalhando temáticas como cidadania, política, democra-
cia e poder legislativo em suas escolas. https://escolavirtualdecidadania.camara.leg.
br/site/850/missao-pedagogica-no-parlamento/ < Disponível em acesso em 10 de
agosto de 2018.>
52  - O Programa STEM TechCamp BRASIL é uma iniciativa da Embaixada dos EUA no
Brasil em parceria com o Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológico (LSI-TEC)
e apoio da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) e do Grupo
+Unidos.Este programa tem como objetivo estruturar uma rede de multiplicadores
formada por gestores das Secretarias Estaduais de Educação e professores líderes de
ações escolares em Ciências, Tecnologia, Engenharias e Matemática (STEM), com po-
tencial e liderança para articular e aprimorar ações existentes e elaborar e implantar
novas ações voltadas à aprendizagem ativa de STEM nas redes públicas de educação
básica do Brasil. https://febrace.org.br/stemtechcampbrasil/ < Disponível em acesso
em 10 de agosto de 2018 >
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 225

nharia e Matemática de todo o Brasil, trouxe para o Clube de História o


reconhecimento da sua aplicação, nas áreas das ciências humanas que
provoca o estudante para estudar a partir de problemas, discutindo a
realidade da sua comunidade e usando a pesquisa como um princípio
educativo, num movimento coletivo capaz de transformar e libertar.

Referências
BARBOSA, Joaquim Gonçalves; BATISTA MARTINS, João. Reflexões
em torno da abordagem multirreferencial. São Carlos: Editora da
UFSCar, 1998.

BARCA, Isabel. O pensamento histórico dos jovens: idéias dos ado-


lescentes acerca da provisoriedade da explicação histórica. Braga:
CEEP/Universidade do Minho, 2012.

BRASIL. Lei nº. 10.639 de 09 de janeiro de 2003. Inclui a obrigato-


riedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo
oficial da rede de ensino. Diário Oficial da União, Brasília, 2003.

______. Lei 11.645/08 de 10 de Março de 2008. Diário Oficial da


União, Poder Executivo, Brasília.

______. Secretaria de Educação Básica. Parâmetros Curriculares Na-


cionais para o Ensino Médio: Ciências Humanas e suas tecnologias.
Brasília: MEC, 2006.

CARVALHO, A. M. P. Ensino e aprendizagem de ciências: referenciais


teóricos e dados empíricos das sequências de ensino investigativas.
In: LONGHINI, M.D. O uno e o diverso na educação. Uberlândia:
EdUFU, 2013.

______. O ensino de Ciências e a proposição de sequências de ensino


investigativas. In: CARVALHO, A. M. P. (Org.). Ensino de Ciências por
investigação: condições para implementação em sala de aula. São
Paulo: Cengage Learning, 2013.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro; Paz e Terra, 2005.


226 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

LIBÂNEO, J. C. Didática. São Paulo: Cortez, 1991.

KI-ZERBO, Joseph. Introdução geral. In: KI-ZERBO, Joseph (Org.).


História geral da África I – metodologia e pré-história da África.
Brasília: UNESCO, 2010, p. XXXI-LVII.

SASSERON, Lúcia Helena. Alfabetización científica, enseñanza por


investigación y argumentación: relaciones entre las ciencias de la
naturaleza y la escuela. Ens. Pesqui. Educ. Ciênc. (Belo Horizonte)
[online]. 2015, vol.17, n.spe, p.49-67.
PARTE IV
TRAJETÓRIAS E LUTAS
João de Deus:
o rebelde cachoeirano de 1798

Flávio Márcio Cerqueira do Sacramento


Walter da Silva Fraga Filho

Introdução
Esse texto é fruto da dissertação defendida no programa de
Mestrado Profissional em História da África, da Diáspora e dos Povos
Indígenas pela UFRB, em 12 de abril de 2016, intitulada De Pardo Infa-
me a Herói Negro: o mestre alfaiate João de Deus do Nascimento, com
a orientação do Prof. Dr. Walter da Silva Fraga Filho e a co-orientação
do Prof. Dr. Leandro Antônio de Almeida (no qual elaboramos um pa-
radidático sobre a temática), onde buscamos analisar a construção da
memória deste sujeito histórico da Bahia setecentista, que foi um dos
principais personagens do movimento rebelde baiano de 1798, preso
em 26 de agosto do ano citado e condenado à morte na forca pelo cri-
me político de alta traição, chamado “Lesa Majestade de Primeira Ca-
beça”, sendo enforcado e esquartejado no dia 8 de novembro de 1799
na Praça da Piedade em Salvador, tendo o mesmo destino, o aprendiz
de alfaiate Manoel Faustino dos Santos Lira e os soldados Lucas Dantas
de Amorim Torres e Luís Gonzaga das Virgens e Veiga, todos conside-
rados infames para sempre.
A escolha de João de Deus do Nascimento como objeto de estu-
do partiu de um interesse por saber mais sobre este sujeito histórico,
originário da Vila de Cachoeira na segunda metade do século XVIII e
que figurava como um dos principais personagens da Conjuração Baia-
na de 1798, também chamada de Revolta dos Alfaiates e Revolta dos
Búzios. Porém, no desenvolvimento da pesquisa, percebemos que a
importância dele foi além de nossas expectativas, pois, conseguimos
levantar nos Autos da Devassa da Conspiração dos Alfaiates, principal
230 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

documento sobre o evento histórico, uma intensa participação deste


personagem, chegando a concluirmos que ele foi o preso mais inter-
rogado no processo que iremos descrever. Além disso, muitas teste-
munhas falaram do mestre alfaiate, incluindo as primeiras denúncias
públicas, que foram dadas contra ele, por aqueles aliciados por João de
Deus do Nascimento na convocação principal para o levante, gerando
algumas interpretações na historiografia, que até nomearam o episódio
de “A Conjuração de João de Deus” 53. Assim, o estudo foi ganhando
argumentos, a partir das fontes nos Autos, nos jornais e nos clássicos,
permitindo que trabalhássemos a construção da memória daquele que
foi considerado um “pardo infame” e posteriormente heroicizado (jun-
to com os outros) e destacado como “bravo guerreiro e herói negro”.
Para iluminarmos o caminho desse estudo sobre João de Deus
do Nascimento, pretendemos ilustrar o primeiro capítulo da disserta-
ção, onde utilizamos a luz da micro-história, colhendo dados biográfi-
cos e reconstruindo episódios da vida cotidiana de sujeitos históricos,
observando suas trajetórias. A partir desses rastros deixados nas linhas
e entrelinhas que a documentação pode nos proporcionar, analisamos
os habitus dos indivíduos (BOURDIEU, 2005, p. 186) e a construção do
espaço em que a história de vida estava inserida, a superfície social
(LEVI, 2005, p. 169), onde “o contexto serve para preencher as lacunas
documentais por meio de comparações com outras pessoas cuja vida
apresenta alguma analogia, por esse ou aquele motivo, com a do per-
sonagem estudado” (LEVI, 2005, p. 176). Em Carlo Ginzburg buscamos
a inspiração no tratar das fontes, olhando atentamente nas entrelinhas
dos Autos da Devassa da Conspiração dos Alfaiates, o mestre alfaiate
e suas redes de relações, revelando o modo de vida, em relatos que
53  - Encontramos o título “A Conjuração de João de Deus: narrativa dos tempos colo-
niais” na Revista Popular, num artigo de Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, tomo
8, 1860. Em seguida encontramos o título “A Conjuração de João de Deus” no livro de
Austricliano de Carvalho, Brasil-Colônia e Brasil-Império, tomo I, Rio de Janeiro, Tipo-
grafia do Jornal do Comércio, 1926; numa citação de Braz do Amaral, na RIHGB, v.
101, 1927, p.361; no livro de Ignácio Accioli de Cerqueira e Silva, Memórias Históricas
e Politicas da Província da Bahia, v. III. Imprensa Oficial do Estado, 1931, p. 131 e na
RIHGB, v.254, 1954, p.181.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 231

por vezes passam despercebidos, mas que trazem elementos precio-


sos dessa “cultura das classes subalternas” (GINZBURG, 1987, p. 16),
permitindo-nos entender melhor o ambiente por onde essa história se
passou. Dito isto, nas linhas seguintes, apresentamos um breve resul-
tado de nossa pesquisa.

A vida
O que sabemos inicialmente sobre as origens de João de Deus
do Nascimento, está referenciado no depoimento dado ao desembar-
gador Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto, no dia 10 de setem-
bro de 1798, onde o mestre alfaiate revelou que era natural da Vila da
Cachoeira, tendo a idade de 27 para 28 anos, sendo filho legítimo do
branco José de Araújo e da parda forra Francisca Maria da Conceição
(ADCA, 1998, p.449) 54. Por essa informação, calculamos que ele tenha
nascido por volta de 1771, sem podermos precisar o dia e o mês do
seu nascimento na antiga Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto
de Cachoeira, Recôncavo da Bahia.
Outra questão importante é o fato de João de Deus ter declarado
ser filho legítimo de um pai branco e a mãe parda forra. Em toda do-
cumentação analisada, não encontramos nenhum caso igual ao dele.
Quando achamos os filhos de relação entre brancos e pardos, sempre
eram filhos naturais. Isso nos chamou a atenção, pois, se ele era real-
mente filho legítimo, seus pais foram casados, afrontando e superando
um grave problema da época, que era legitimação da união entre pes-
soas de diferentes tonalidades de cor da pele.
A descrição física que temos de João de Deus do Nascimento foi
colhida na sua fase adulta, quando ele se encontrava preso na cadeia
pública, a partir de um termo de prisão, datado de 23 de fevereiro de
1799, onde o escrivão João Luís de Abreu o descreveu como:
Homem pardo claro de ordinária estatura, cheio
de corpo tem a cabeça redonda, e examinando-a
54  - Autos da Devassa da Conspiração dos Alfaiates (ADCA).
232 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

lhe não achei coroa, ou sinal dela, e sim o cabelo


que he preto, crescido por igual, tem orelhas pe-
quenas, rosto comprido, testa alta, olhos pretos,
e pequenos, naris afilado, boca pequena, e barba
serrada(ADCA, 1998, p. 1072).
A condição de João de Deus do Nascimento como pardo pode
ter sido um fator na sua inserção no oficio de alfaiate. Stuart B. Schwartz
analisou um censo parcial de seis paroquias da zona rural baiana, re-
alizado em 1788, mostrando uma tabela referente às paroquias de
Purificação e Rio Fundo, com a estrutura ocupacional segundo a cor,
indicando que os pardos eram predominantes nos ofícios de artesãos,
sendo os ofícios de carpinteiros, sapateiros e alfaiates, os que mais se
destacavam na presença destes. O autor nos diz que:
Os resultados desse censo indicam que, em fins do
século XVIII, a clássica divisão por cores nos en-
genhos já emergia: brancos como proprietários e
administradores, negros escravos, em maioria nos
campos, e pardos predominantemente no setor
intermediário dos trabalhadores especializados e
artesãos (SCHWARTZ, 1988, p. 278).

O estudo de Schwartz é extremamente valioso se percebermos


que a localidade onde foi realizado o censo de 1788, está situada no
Recôncavo, na região da atual cidade de Santo Amaro da Purificação,
vizinha a Cachoeira. Chamamos a atenção para o fato de João de Deus
do Nascimento supostamente ter aprendido o oficio de alfaiate na pró-
pria Vila de Cachoeira, onde possivelmente os pardos predominavam
na atuação desse oficio mecânico que ele vai se tornar mestre. Na épo-
ca do censo, João de Deus do Nascimento estava com 17 anos e não
seria absurdo pensarmos que ele já estivesse na fase do aprendizado
de algum oficio e por se tornar um mestre é provável que tenha apren-
dido desde cedo à profissão.
Outro desafio interessante diz respeito à mudança de João de
Deus para Salvador. Provavelmente ele saiu da Vila de Cachoeira sol-
teiro e na Cidade da Bahia conheceu sua futura esposa, Luiza Francisca
de Araújo. Não sabemos ao certo quando ele chegou a capital, mas
Gonçalo Gonçalves, pardo e alfaiate, em depoimento dado em 11 de
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 233

setembro de 1798, disse “que havera oito anos teve amizade com João
de Deus do Nascimento por causa de um divertimento de pássaros,
logo que o dito chegou da Vila de Cachoeira [...]” (ADCA, 1998, p. 556).
Por esse depoimento de Gonçalo Gonçalves percebemos que
João de Deus do Nascimento chegou a Salvador por volta de 1790, sen-
do essa data reforçada pelo depoimento de sua esposa, Luiza Francisca
de Araújo, que declarou, em 31 de agosto de 1798, “que tem cinco filhos,
o mais velho tem idade de oito anos [...]” (ADCA, 1998, p. 556). Assim, po-
demos sugerir que ele chegou realmente por volta de 1790, tornando-se
pai de família, ocasião que coincide com o nascimento de seu primeiro
filho, provavelmente, o Antônio Joaquim55 (ADCA, 1998, p.466).
A referência de endereço de João de Deus em Salvador é a sua
tenda ou loja de alfaiate, situada na Rua Direita do Palácio, onde traba-
lhava e residia junto com a esposa e os cinco filhos. Essa localização da
tenda estava de acordo com os espaços pré-estabelecidos pela Câmara
Municipal para os oficiais mecânicos organizarem seus estabelecimen-
tos. Por isso, a moradia na Rua Direita do Palácio, não deve ter sido
simplesmente uma escolha do mestre alfaiate e sim uma determinação
da Câmara (SOUSA, 2012, p. 245-246).
Conhecemos pouco sobre a sua família, o nome e o sexo dos fi-
lhos, a rotina dentro de casa, o temperamento e o relacionamento com
a esposa. Enfim, por vezes, as fontes não nos permitem avançar neste
sentido. Já sabemos, por exemplo, que João de Deus do Nascimento
tinha um filho chamado Antônio Joaquim e que seu filho mais velho
tinha 8 anos e “aprendia a ler na escola de Fulano da Motta de tras da
Capella de Nossa Senhora da Ajuda e agora esta escrevendo por sima
da letra branca e ainda não aprende a contar [...]”(ADCA, 1998, p. 401)
56
. Não sabemos se o filho mais velho que estudava era o mesmo An-
tônio Joaquim, mas pelo menos podemos deduzir que era um menino.

55  - O mestre alfaiate citou o nome de um dos seus filhos no seu depoimento, em
13 de setembro de 1798.
56  - Informação colhida no depoimento de Luiza Francisca em 31/8/1798. Ignácio da
Silva Pimentel reforçou essa informação. Ver: ADCA, 1998, p. 369.
234 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Luiza Francisca de Araújo era natural de Salvador, oriunda da


Freguesia do Paço, filha natural de um pai branco e uma mãe parda
forra, tendo declarado que tinha trinta anos, portanto mais velha que
João de Deus do Nascimento. Ela se declarou analfabeta, dizendo que
o marido sabia ler e escrever, mas tinha o curioso hábito de pedir ao
soldado e oficial de alfaiate, Ignácio da Silva Pimentel, que escrevesse
para ele. Revelou que estava sempre no interior da casa, aonde não
ia pessoa alguma da tenda. Quando alguém precisava de água para
beber, por exemplo, batia-se na porta e ela mandava trazer, ou seja,
não tinha acesso ao estabelecimento frequentado por homens (ADCA,
1998, p. 400). Ela também revelou a rotina do marido dizendo que ele
tinha o costume de sempre sair à noite, principalmente nas noites de
luar (ADCA, 1998, p. 402). Mas, pelo visto, ele saía sozinho, provavel-
mente indo encontrar os conhecidos para conversas sobre o projeto
revoltoso ou mesmo indo ao encontro de sua amante, Ana Romana
Lopes do Nascimento.
Antônio Bento Serqueira (ADCA, 1998, p. 332), dono de um
botequim defronte a Misericórdia, disse que João de Deus e Lucas Dan-
tas frequentava muitas vezes o seu estabelecimento. José Antônio dos
Santos (ADCA, 1998, p. 349), também dono de um botequim, disse que
o mestre alfaiate frequentava o seu bar, tinha o hábito de beber pon-
che e, pelo depoente, deixava a conta para pagar depois, de modo que,
após a prisão, João de Deus do Nascimento estava devendo a ele 800
réis, dívida que pelo visto não foi paga.
Além de frequentar uns botecos, João de Deus do Nascimento
frequentava outros lugares animados, como falou o depoente Nicolau
Andrade (ADCA, 1998, p. 802), que disse ter visto ele em uma casa de
dança, junto a Ordem Terceira de São Francisco. Não sabemos como
o mestre alfaiate se vestia para frequentar esses lugares à noite, pro-
vavelmente por ser alfaiate fazia suas próprias roupas. Porém, dois de-
poimentos falam justamente das vestes dele durante o dia, o que não
podemos afirmar que era da sua rotina, mas no mínimo merece desta-
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 235

que. O procurador Francisco Xavier de Almeida falou que numa manhã,


João de Deus do Nascimento, trazia “calçados huns chinelins com bico
muito comprido, e a entrada muito baixa, e calçoens tão apertados,
que vinha muito descomposto”, o que fez o depoente estranhar, des-
pertando prontamente a resposta do mestre alfaiate que havia lhe dito,
“calle a boca, este trajar he Francez, muito em breve verá Vossa mercê
tudo francez; fia-Se Vossa mercê, e os mais em feixar as portas de suas
cazas, dentro haverá quem as abra”, o que fez o depoente retrucar di-
zendo “Eu sou Portugues, e jamais serei Francez, vâ-se com os diabos”,
se retirando enquanto João de Deus ficou rindo (ADCA, 1998, p. 318).
Já o comerciante Manoel Cardoso Marques, disse que conhecia João
de Deus do Nascimento por “hir algumas vezes a sua loja, e pelo traje
ridículo, e abandalhado, de que uzava [...]” (ADCA, 1998, p. 336). Ao
que parece, o mestre alfaiate, além de ser bem-humorado e sarcástico,
vestia literalmente as roupas da revolução.
Roupas a parte, o mestre alfaiate esteve presente no batizado
da filha de Lucas Dantas, jantava com o tenente José Gomes e fre-
quentava a casa deles, mostrando ser uma pessoa conhecida e sociável,
porém com vários desafetos (ADCA, 1998, p. 518). Alguns desses desa-
fetos revelaram coisas da vida pessoal dele, como o seu envolvimento
amoroso com uma parda costureira de 17 anos, chamada Ana Romana
Lopes do Nascimento, insinuado por ele (ADCA, 1998, p. 451) e con-
firmado por ela (ADCA, 1998, p.324-325), num relacionamento bem
conturbado. Enfim, esse era João de Deus do Nascimento, um homem
de carne e osso, de personalidade forte, polêmico, que frequentava os
botequins, casas de danças e casas dos conhecidos, tinha atitude em
se vestir, gostava das noites de luar e gostava de mulheres. Mas, muita
gente não gostava dele.

A lida
O aprendiz de alfaiate, João de Nação Benguela (ADCA, 1998, p.
337), escravo de Dona Maria Jozefa de Sousa, viúva do governador da
236 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Fortaleza da Ribeira, foi um dos que aprenderam o oficio com João de


Deus do Nascimento, mostrando que os proprietários de escravizados
lhe confiavam essa tarefa. A demonstração que o mestre trabalhou para
a elite, ficou explícita quando ele foi convidado para fazer o vestido da
noiva de Joaquim Ignácio de Siqueira Bulcão, dona Joaquina, filha do
Secretário do Estado e Governo do Brasil, José Pires de Carvalho e Albu-
querque, ambos, proprietários de terras e escravizados pelo Recôncavo.
Além de fazer obras para a elite baiana, João de Deus do Nasci-
mento era o alfaiate dos militares, fazia e/ou concertava roupas para
oficiais, sargentos, soldados e milicianos. Nos depoimentos do sargento
Joaquim Antônio da Silva (ADCA, 1998, p. 504) e do tenente José Gomes
de Oliveira Borges (ADCA, 1998, p. 514), ambos disseram que o mestre
alfaiate frequentava a casa deles para tirar medidas, provar as roupas,
fazer vestir depois de prontas e receber o dinheiro do serviço, alegando
que ele sempre atrasava a entrega dos pedidos. Antônio Bento Serqueira
contou uma passagem em seu depoimento, dizendo que uma pessoa
reclamou sobre os serviços de João de Deus e ele respondeu “que não
nascera para alfaiate, e aspirava a couza maior” (ADCA, 1998, p. 332).
Além de alfaiate, João de Deus do Nascimento exercia também
o posto de cabo de esquadra do 2º Regimento de Milícias dos Homens
Pardos, caracterizando-se como um elemento que reunia a base mais
atuante no movimento de 1798: pardo, alfaiate e “militar”. Quando os
bens de João de Deus foram aprisionados, encontraram entre seus per-
tences “huma farda de Regimento Auxiliar de pano azul, forrada de
setim amarelo, com uso e huma espada velha e partida” (ADCA, 1998,
p. 1229), provavelmente era o seu fardamento e o seu armamento. Se-
gundo Luís dos Santos Vilhena, que viveu nos fins do século XVIII na
Bahia, os milicianos eram “[...] obrigados a fardar-se à sua custa logo
que assentão praça” (VILHENA, 1922, p. 46).
Uma das fortes bandeiras defendidas por João de Deus do Nas-
cimento era o aumento dos soldos dos militares, muitos dos quais con-
vivia. Manoel Feliz de Jesus, vizinho defronte a João de Deus, disse que
“não podia deixar de lhe ouvir dizer publicamente, e em vozes altas,
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 237

que era insollencia perceber hum Soldado cincoenta reis por dia de sol-
do, e hum Conego da Sé seiscentos e quarenta reis [...]”, (ADCA, 1998,
p. 349). Essa reivindicação do soldo aparece em sete boletins manuscri-
tos, dos onze encontrados e preservados, que foram colados em 12 de
agosto de 1798, indicando o valor de 200 reis ou dois tostões por dia
para cada soldado (MATTOSO, 1969, p. 148-159) 57. A comparação com
o cônego da Sé mostra também a insatisfação para os privilégios que
gozavam os membros do clero.
A personalidade forte e os questionamentos do mestre alfaiate
fizeram muitos de seus desafetos deporem contra ele, complicando
cada vez mais a sua situação com a justiça. O oficial de alfaiate Antônio
Ignácio Ramos, que era branco e já havia trabalhado com o mestre
alfaiate, disse “conhecer o João de Deos de péssima conduta, atrevido,
menosprezando os homens brancos [...]” e seguiu afirmando que ou-
vira ele dizer que “havia de ser nesta terra um homem muito grande”
(ADCA, 1998, p. 328). O tenente coronel Alexandre Teotônio de Souza,
que o prendeu, disse que tinha “hum caráter animozo insolente, e atre-
vido de que he dotado, sem respeitar a Religião nem as Leis, atreven-
do-se a insultar com desaforo de Pessoas de Graduação [...]”(ADCA,
1998, p. 301). Francisco Vicente Viana, ouvia dizer constantemente que
“João de Deos he de hum caráter insolente e desavergonhado, bem
capaz de entrar nesta diabólica empresa [...]”(ADCA, 1998, p. 305). An-
tônio Joaquim de Oliveira relatou que,
[...] vindo elle testemunha em uma cadeira de arru-
ar; por cauza da chuva, parando os pretos na porta
da loja do dito João de Deus, onde arrearão a ca-
deira a tempo que o mesmo João de Deos se re-
colhia de fora para a loja, disse a elle testemunha=
Vossa Merce não tem medo ao tempo, e porque
he rico, não tem quer moilhar os pes, =, do que
respondeu elle testemunha= São Merces do Ceo=
e ele tornou= Está feito, tempo virá, em que pos-
sa ser, que eu ande de cadeira, e vossa mercê de
pe= ao que nada respondeo elle testemunha [...]
(ADCA, 1998, p. 333).

57  - Ver os boletins manuscritos, nº 2, 4, 5, 7, 8, 9 e 10.


238 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Ricardo Bernardino Guedes relatou em seu depoimento que o


mestre alfaiate havia dito:
Grande couza he ter dinheiro, como vai aquelle
repimpado na sua cadeira, e eu que não tenho di-
nheiro ando a pe; e acazo haverá tempo que an-
dem a pe todoz, sem serem carregados por criatu-
ras? (ADCA, 1998, p. 345).

As atitudes questionadoras do mestre alfaiate perante a desi-


gualdade racial, a escravidão, a promoção social dos pardos e pretos,
o aumento de soldos, a religião e o modo em que encarrava de frente
os “homens de consideração” brancos de sua época, o condenaram a
morte. Para o desembargador Costa Pinto:
Este individuo, cuja vida, comportamento, e cara-
ter lhe tinhão ganhado entre o publico, o conceito
de petulante, altivo, soberbo, o orgulhozo, como
constantemente affirmão as testemunhas [...] da
devassa, cuja ideas, e sentimentos forão sempre
de huma extraordinária, e incomprehensivel ele-
vação, que se não compadece, nem com as suas
insignificantes possessoens, nem com a sua baixa,
e ínfima condição [...] (ADCA, 1998, p. 1127-1128).

A morte
João de Deus do Nascimento foi o preso mais interrogado em
depoimento formal58, um dos que mais participou de acareações59 e o
que, sem dúvida, deu mais trabalho ao desembargador Costa Pinto,
aos escrivães e aos carcereiros60. Segundo o relato do frei José de Mon-

58  - Entre setembro-outubro de 1798, João de Deus do Nascimento deu 8 depoi-


mentos formais e respondeu a 104 perguntas. Lucas Dantas foi o segundo mais inter-
rogado, respondendo a 100 perguntas e depondo oficialmente no mesmo período
cinco vezes. Contudo é importante dizer que, nos três primeiros depoimentos, João
de Deus se comportou como louco só dialogando de fato a partir da sétima pergunta.
59  - Lucas Dantas e João de Deus foram colocados diversas vezes frente a frente com
outros réus e testemunhas, sendo peças-chaves para o desenvolvimento do inquérito.
60  - Nos dias 4, 5 e 7 de setembro de 1798, João de Deus do Nascimento se com-
portou como louco e só falava “Muita gente” e “Minha mulher”, sendo examinado dia
8 de setembro pelos médicos que constataram ser fingimento. O soldado Caetano
Veloso disse que João de Deus ficava gritando na cela e na véspera da morte ele vol-
tou a se comportar como louco.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 239

te Carmelo, o mestre alfaiate pediu chorando, na véspera de sua morte,


a um dos religiosos que “[...] fosse a Cadea pedir perdão ao Carcereiro
de algumas impaciências, e raivas, q’ contra elle tivera no tempo da
prisão [...]” 61.
No dia 5 de novembro de 1799, João de Deus e Luís Gonzaga
passaram a se comportar como loucos dentro da cadeia da Relação,
onde “sendo condenados a pena última [...] se achão estes totalmente
dementes [...]”(ADCA, 1998, p. 1099). Essa foi à última tentativa deles
para escaparem da condenação a pena capital, sendo solicitado um
exame de sanidade mental que poderia ajudar na defesa final dos réus.
O exame foi concedido pelo desembargador Costa Pinto e realizado
no dia seguinte, onde os médicos constataram que sobre João de Deus
do Nascimento “[...] não se manifestava outra alguma moléstia ou in-
fermidade, alem daquela mesma a que por efeito de affectação, e fin-
gimento próprio do seo caráter, se contrahira tanto que foi prezo [...]”
(ADCA, 1998, p. 1101). Luís Gonzaga das Virgens e Veiga também fez o
exame onde os médicos constataram que não havia moléstia alguma,
não passando de “mera ficção” (ADCA, 1998, p. 1104) 62. Com isso eles
não conseguiram escapar da morte.
No dia 7 de novembro de 1799, o desembargador Costa Pinto,
em seu Termo de Conclusão, falou que os réus Luís Gonzaga das Virgens
e Veiga, Lucas Dantas de Amorim Torres, João de Deus do Nascimen-
to e Manoel Faustino dos Santos Lira, seriam enforcados na Praça da
Piedade, onde iriam passar pelas ruas públicas, sendo depois da forca,
esquartejados e “[...] posta a cabeça do reo João de Deus defronte a sua
caza, que lhe servia de morada, e os quartos nos caes de maior frequen-
cia, e comercio desta Cidade até que huns e outros sejam consumidos
pelo tempo, para assim patente a todos a enormidade do seu delicto e

61  - O Frei da Ordem dos Carmelitas Descalços foi testemunha ocular do dia de exe-
cução, 8 de novembro de 1799, relatando diversas passagens de João de Deus, pouco
antes de o mestre alfaiate ser enforcado. Ver: TAVARES, 1975, p. 135.
62  - Os exames em João de Deus do Nascimento e Luís Gonzaga das Virgens tiveram
o custo de 20$843 réis, ver nos ADCA, 1998, v. II, p. 1207.
240 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

a correspondente punição [...]”(ADCA, 1998, p. 1196) 63. Segundo o re-


lato do frei José D’ Monte Carmelo, testemunha ocular do episódio, na
manhã do dia 8 de novembro de 1799, o dia da execução, João de Deus
e Luís Gonzaga, voltaram a se comportar como loucos, logo que foram
levados ao Oratório para se confessar, obrigação que eles se recusaram
a fazer. Pelo comportamento descrito como insano, onde eles “não fa-
lavão palavra alguma, não davao asenos ao q’ pareciao uns verdadeiros
loucos” (TAVARES, 1975, p. 131), tiveram os braços e as pernas amarra-
dos por uma corda, parecendo machucá-los, pois o religioso falou que
“o rosto precipitava a fazer se roxo” (TAVARES, 1975, p. 132).
Por volta das nove horas da manhã o cortejo com os réus se diri-
giu do Oratório da Relação até a Praça da Piedade, onde estava a forca
nova. Pela atitude deseperadora, João de Deus e Luís Gonzaga, que
foram amarrados a grilhões presos aos encostos das cadeiras, seguiram
levados desta forma, até o local dos seus últimos suspiros. Já na locali-
dade onde estava o patíbulo, Luís pediu para se confessar, o que alte-
rou a ordem das execuções, concedido pelo Juiz de Fora, João da Costa
Carneiro de Oliveira (TAVARES, 1975, p.75), que presidia a execução, fi-
cando Manoel Faustino a ser o primeiro, seguido de Lucas Dantas, Luís
Gonzaga e João de Deus. O frei seguiu relatando que após a confissão
e morte de Luís, João de Deus do Nascimento “estava se desfalecendo
em lágrimas” e pediu para se confessar dizendo: “peço perdão a todos
q’’’ tenho ofendido, e escandalizado, aos meus companheiros e a to-
dos geralmente que me ouvem [...] não olhem com desgrado para uns
infelizes filhos que me ficao, pois elles não são cumplices das minhas
maldades [...]”, e seguiu pedindo “ao algoz que lhe desse uma boa mor-
te” e já na forca gritou por “JESUS Maria”, sendo as últimas palavras na
vida, “mizericordia, mizericordia” (TAVARES, 1975, p. 136).

63  - Os restos mortais de Luís Gonzaga ficaram na Praça da Piedade, a cabeça de


Lucas Dantas foi exposta no Dique do Desterro e a cabeça de Manoel Faustino foi
exposta no Largo do Cruzeiro de São Francisco.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 241

Considerações finais
A rebeldia exposta em 12 de agosto de 1798 na capital baiana,
com boletins manuscritos, fazendo alusão à França e a República, a liber-
dade de comércio, ao aumento de soldo dos militares e a convocação do
“Povo Bahiense” para o tempo feliz da liberdade, igualdade e fraternida-
de (MATTOSO, 1969, p. 148-157; TAVARES, 1975, p. 22-32), custou muito
caro em termos de severidade das punições para os réus condenados.
Especialmente para os quatro mortos e esquartejados, todos negros e
oriundos de ventre de mães forras que passaram em algum momento
de suas vidas, pelas infames garras da escravidão. Nessa história de fi-
nal trágico, recortamos o sujeito histórico cachoeirano, João de Deus do
Nascimento, personagem com uma rica história que nos ajudou a enxer-
gamos o que se passava na tensa Bahia dos fins do século XVIII.
Foi um desafio prazeroso historiar o mestre alfaiate no calor
dos acontecimentos, sobretudo por relatarmos e analisarmos um su-
jeito histórico inquieto, que sonhava em ser grande na vida, enfren-
tava a “gente [branca] de consideração”, questionando a escravidão,
ousando fazer política e sonhando em ver “extinta a diferença de cor”
(ADCA, 1998, p. 298). Aquilo que tinha como primeira motivação o le-
vantamento de estudo sobre um cachoeirano rebelde setecentista, foi
ganhando corpo com as aulas do programa, da qual destaco as ricas
e divertidas aulas de Teorias e Métodos da História, ministradas pelo
Prof. Dr. Antônio Liberac Simões Pires, assim como a coorientação nas
conversas iniciais e a orientação no decorrer, que apontaram dicas de
leituras e preciosas revisões dos textos que nas etapas íamos entregan-
do, num bom trabalho de construção, aliando a liberdade em pesqui-
sarmos e o rigor na correção e nos equívocos comuns num processo
de análise. Essa construção do conhecimento ganhou mais força com
as dicas preciosas da qualificação, dadas pela Profa. Dra. Patrícia Valim,
nos encorajando a fazer um trabalho criterioso sobre a temática, sendo
que todo esse processo nos conduziu a um crescimento intelectual e
um sentimento de realização de estar tornando-se um professor-pes-
242 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

quisador-historiador, onde buscamos mostrar a história como antídoto


poderoso contra o racismo, a partir de histórias de vida de protago-
nistas negros que agiram e sonharam há mais de duzentos anos, para
que fosse extinta a discriminação racial que estamos presenciando em
nossos tempos sombrios, encabeçada justamente por aqueles que des-
prezam o nosso passado de resistência.
Numa banca composta pelos professores, Walter Fraga Filho,
Antônio Liberac Simões Pires e Patrícia Valim, conseguimos a primeira
aprovação desse fundamental programa de mestrado, mostrando que
a luta de João de Deus do Nascimento não foi em vão, pois ela nos ins-
pira e nos alimenta para o enfrentamento do caos do nosso presente.

Referências
BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In: AMADO, Janaina e FERREI-
RA, Marieta M. (orgs). Usos e Abusos da História Oral. 7ª ed.- Rio
de Janeiro, Editora FGV, 2005.

FLEXOR, Maria Helena O. (Org.). Autos da Devassa da Conspira-


ção dos Alfaiates (ADCA). Salvador, APEB/ Secretaria de Cultura e
Turismo, 1998.

GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias


de um moleiro perseguido pela Inquisição. Tradução: Maria Betânia
Amoroso. São Paulo, Companhia das Letras, 1987.

LEVI, Giovanni. Usos da Biografia. In: AMADO, Janaina e FERREIRA,


Marieta M (orgs). Usos e Abusos da História Oral. 7ª ed.- Rio de
Janeiro, Editora FGV, 2005.

MATTOSO, Kátia M. de Queirós. A Presença Francesa no Movimen-


to Democrático Baiano de 1798, 1975, Ed. Itapuã, Bahia, 1969.

SACRAMENTO, Flávio Márcio Cerqueira do. De Pardo Infame a He-


rói Negro: o mestre alfaiate João de Deus do Nascimento. Disserta-
ção de Mestrado. Cachoeira-Ba, UFRB, 2016.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 243

SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na


sociedade colonial. Companhia das Letras, São Paulo, 1988.

SOUSA, Avanete Pereira. A Bahia no Século XVIII: poder político


local e atividades econômicas. São Paulo: Alameda, 2012.

TAVARES, Luís Henrique Dias. Da Sedição de 1798 à Revolta de


1824 na Bahia. Salvador: EDUFBA; São Paulo: UNESP, 2003.

TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Sedição Intentada na


Bahia em 1798: a conspiração dos alfaiates. Pioneira Editora, 1975.

VILHENA, Luís dos Santos. Cartas de Vilhena. Notícias soteropolita-


nas e brasílicas. Bahia, Imprensa Oficial do Estado, 1922.
Memórias da Independência
do Brasil em Cachoeira

Tamires Conceição Costa


Rita de Cássia Dias Pereira de Jesus

Introdução
A Historiografia brasileira já se debruçou em numerosa produção
acerca da temática da Independência do Brasil, tornando-se um dos
temas mais visitados e revisto, no entanto, observa-se que estas pro-
duções, em sua maioria, constroem argumentos e análises imbuídas de
visões limitadas, que supervalorizam questões econômicas, políticas e
sociais das camadas mais ricas e, em alguma medida, das influências
capitalista e necessidades externas ao Brasil.
Assim, o debate historiográfico privilegiou alguns aspectos, vis-
tos como legítimos ao processo e negligenciou outras interpretações
e outros atores sociais igualmente importantes para considerar o con-
texto. Conforme Guerra Filho (2004), para atender aos interesses socio-
políticos da elite, as interpretações historiográficas mais conservadoras
trabalharam com a ideia de harmonia, apresentando a Guerra da Inde-
pendência como um momento de consenso entre diferentes classes
sociais frente a um inimigo comum: o invasor português (GUERRA FI-
LHO, 2004, p. 45).
Este texto apresenta o produto final elaborado no Mestrado Pro-
fissional em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas, in-
titulado: Independência do Brasil na Bahia: Memória e Patrimônio no
Recôncavo, material paradidático elaborado para estudantes dos anos
finais do Fundamental II, acompanhado por um guia para o/a profes-
sor/a, ambos os materiais tem como centralidade enfocar a importân-
cia da valorização do ensino de história local e regional na educação
246 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

básica no Recôncavo, em especial, na cidade de Cachoeira, dando des-


taque ao patrimônio material relacionado às narrativas sobre as Lutas
pela Independência do Brasil na Bahia.
Desse modo, propusemos a elaboração de um livro paradidá-
tico contendo um mapeamento histórico dos “lugares de memória”
nos quais registra-se a ocorrência dos fatos marcantes do período em
que a província da Bahia participou da luta contra os portugueses, e o
Recôncavo assumiu um papel de destaque nos desdobramentos que
culminaram na expulsão das tropas portuguesas que estavam na Bahia,
constituindo o fato histórico da Independência da Bahia celebrada no
dia “2 de julho” (ALBUQUERQUE, 1999).
A pesquisa historiográfica que embasou a elaboração dos mate-
riais buscou estabelecer relação entre o passado e o presente, a partir
dos espaços físicos de memória, o patrimônio histórico material da Ci-
dade de Cachoeira, na margem esquerda do Paraguaçu, forma com a
cidade de São Félix (margem) um “só organismo urbano” reconhecido
pelo IPHAN, em 1971, como patrimônio cultural do Brasil, intitulada “a
Heróica”, Cachoeira teve por seu povo, um papel definidor nas lutas
pela Independência na Bahia, desse modo conecta-se a história o local,
a regional e a nacional, fazendo destes lugares públicos, ambientes for-
mativos, de construção e atualização de conhecimento geo-histórico,
sóciocultural e político.
O material paradidático elaborado é um suporte para as aulas,
destinadas às discussões sobre a Independência do Brasil na Bahia e a
contribuição das cidades do Recôncavo, especialmente Cachoeira, nas
lutas para a emancipação da província em 1823. Propõe uma abor-
dagem pedagógica que possibilita o ensino e a aprendizagem mais
próximo das realidades vividas, ligando a História social, a memória
coletiva, a educação patrimonial que promove o contato do passado
no presente, e entre ambos, em prospecção para o futuro, tornando o
conhecimento histórico, concreto e vivo o que contribuirá para um in-
teresse maior e consequentemente, um aprendizado mais efetivo dos/
as estudantes e uma educação promotora da cidadania.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 247

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa para o desen-


volvimento do paradidático que abordou a participação de Cachoeira
e o Recôncavo nas lutas pela emancipação na Bahia, percorrendo os
caminhos e fatos ocorridos durante os anos de 1821 e 1823, enfocando
os principais acontecimentos, os lugares constituídos como patrimô-
nios das memórias da independência, reunidas para produzir o conhe-
cimento sobre a Independência da Bahia na Cidade de Cachoeira.
A pesquisa se constituiu de uma revisão bibliográfica coletan-
do as principais produções acerca da temática sobre Independência
do Brasil na Bahia, e também sobre o ensino de História, memória,
patrimônio e história local, vislumbrando o conhecimento mais amplo
possível acerca da temática, e da sua relação na sala de aula e na cons-
trução do conhecimento local, social e etnicorracialmente referenciado.
Enveredamos, ainda por diferentes abordagens metodológicas,
tornando o estudo uma pesquisa-ação, levando para as experimenta-
ções e experiências. Foi desenvolvido um projeto intitulado: Caminha-
das Patrimoniais: Passos da Independência em Cachoeira, no ano de
2016, realizando aulas de campo com estudantes da s escola públicas
da cidade, mediadas por um/a professor/a, nos lugares de memória. O
projeto foi um primeiro momento de colocar em prática o roteiro so-
bre a participação de Cachoeira nas lutas pela emancipação na Bahia,
explorando os lugares históricos e os patrimônios que estiveram evol-
vidos no processo histórico.
O projeto possibilitou entender melhor os objetivos da pesqui-
sa, colocando os resultados alcançados como questões a serem explo-
radas no produto final. Embora tendo sido realizado apenas em uma
cidade do Recôncavo, conseguimos analisar a necessidade e a impor-
tância da pesquisa e do material para as escolas da região, assim como
para curiosos, que visitam frequentemente a cidade. Principalmente
pela falta desses conteúdos nos currículos escolares, são discussões e
práticas que não são explorados, tornando o projeto algo novo e dife-
rente para a realidade da grande maioria do público alvo.
248 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Epistemologia geo-histórica
A complexidade e as conexões estabelecidas a partir da temática
da pesquisa permite-nos dizer que há a necessidade de enveredarmo-
-nos e por outras questões, lugares e, principalmente, pelas camadas
populares, especialmente, da resistência do povo negro que também
foi parte importante do processo emancipatório no Brasil (REIS, 1989).
Sobre a necessidade de novos olhares e de outras narrativas que
sejam implicadas com a descolonização do conhecimento e com o dis-
curso positivo e emancipatório sobre o povo negro (JESUS, 2020), que
considera as particularidades regionais e suas especificidades de classe,
Jurandir Malerba, afirma que:
Parece, pois, faltar uma abordagem mais focada
na ação de indivíduos concretos, inseridos em
configurações específicas, mas guiados por op-
ções racionais indelevelmente orientadas com
respeito afins, como ensina Weber e mesmo as
mais recentes teorias da ação. Estamos falando
de agentes históricos de pessoas que pertenciam
a diferentes grupos, mas que tinham cambiantes
projetos e interesses de individuais e de grupo
(MALERBA, 2006, p.34).

Nesse sentido, a pesquisa segue trazendo a temática através de


uma perspectiva local, aflorando novos espaços e sujeitos. Essa abor-
dagem propõe construir a narrativa da guerra na Bahia, com ênfase nos
fatos que ocorreram em Cachoeira, centro de resistência da guerra, tra-
zendo à tona os aspectos locais, as nuances e os personagens regionais
que contribuíram para a luta, mas seguem ausentes do discurso oficial
sobre os acontecimentos.
A cidade em destaque é Cachoeira, local com acervo arquitetô-
nico e trajetória histórica muito relevante para a formação do Brasil,
consegue criar uma correlação entre a história e o patrimônio64 ma-

64  - Entende-se por patrimônio “Um conjunto de bens tomados individualmente


ou em conjunto, portadores de referência a identidade, à ação, à memória dos dife-
rentes grupos formadores da sociedade brasileira” (Constituição da República Fede-
rativa do Brasil, 2006)
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 249

terial e ainda o imaterial, a partir da memória coletiva produzida no


tempo. O patrimônio imaterial entra cena por meio principalmente das
experiências e memórias construídas através de fatos marcantes para
o contexto do Brasil, colocando e enfatizando a cidade e esses espaços
como lugares representativos da memória coletiva da cidade.
O patrimônio possui uma importante potencialidade de estimu-
lar a memória das pessoas historicamente ligadas a ele, ou seja, a po-
pulação em entorno tende a ligar os espaços à memória histórica que
cada um tem. De fato, é tratar o conhecimento histórico através do
presente, e por consequência com algo que apresente concretude do
que diz a história narrada, tanto da memória individual, quanto da co-
letiva. Faz do conhecimento gerado algo pertinente e muita mais fácil
aprendizagem. Por outro lado, o conhecimento destes espaços histó-
ricos gerará como resultado a valoração da riqueza local, e de algum
modo, a preservação como método.
Tratar de patrimônio e história necessariamente nos remete a
pensar em memória e identidade, fazendo deste aspecto um local
formativo e privilegiado para adquirir materialidades da história. De
acordo com Le Goff (1990), a memória, por conservar certas informa-
ções, contribui para que o passado não seja totalmente esquecido,
pois ela acaba por capacitar o homem a atualizar impressões ou in-
formações passadas, fazendo com que a história se eternize na cons-
ciência humana. Assim, como aponta Le Goff, a história torna-se viva
e presente através da conservação concreta da memória, por meio do
patrimônio imaterial.
É importante salientar que a constituição da memória está intima-
mente ligada à formação da identidade social ou coletiva, pois, a partir
dela, conseguimos reconhecer os fatos passados e assim conservá-los
como experiência para preservar no presente. Segundo Le Goff (1990), a
memória aponta por estabelecer um “vínculo” ou conexão entre as gera-
ções humanas e o “tempo histórico que as acompanha”. Essa relação que
se torna afetivo, autoriza que essa população passe a se enxergar como
“sujeitos da história”, participantes da história que o constitui.
250 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Neste sentido, a análise proposta tenta colaborar com a produ-


ção do conhecimento sobre a importância e potencialidade do patri-
mônio para a preservação da memória e fortalecimento da identidade
local. Fazendo destes lugares históricos espaços de memória viva e atu-
alizada, referência e materialidade importante na construção identitária
de sua população e da formação educacional do lugar.
O patrimônio, a memória e a identidade são substanciais para a
formação dos sujeitos históricos. Usá-los como abordagem de ensino,
faz do processo de aprendizagem na disciplina de história, um proce-
dimento muito mais interativo e sólido para os/as estudantes, e conse-
quentemente, algo viável para a formação escolar cidadã.
Assim, a metodologia do estudo meio, a abordagem experiencial,
a partir dos lugares e patrimônios locais, proporciona um aprendizado
para o exercício consciente da cidadania, fazendo destes/as estudantes
pesquisadores/as e disseminadores/as do conhecimento compartilha-
do e das experiências (re)vividas e (re)configuradas a partir de uma
intencionalidade que coloca os sujeitos do conhecimento no centro do
processo formativo.
O complexo arquitetônico e paisagístico composto pelas cidades
de Cachoeira e São Felix é um dos espaços históricos mais bem conser-
vados da Bahia e do Brasil. Seu acervo patrimonial representa um dife-
rencial, na sua paisagem arquitetônica mais de 700 imóveis tombados,
e uma dinâmica cultural, religiosa de matriz negra, são aspectos que
contribuem para a definição de sua pujança social, política e histórica
para todo o país. Em sendo assim, consideramos que é possível definir
este território como um lócus privilegiado de formação para a educa-
ção histórica e patrimonial para diferentes públicos.

Cachoeira na Independência da Bahia


Desde o período colonial, Cachoeira está presente na história do
Brasil, quando os portugueses iniciaram o processo de exploração e
instalação no Brasil. O Recôncavo foi uma das primeiras áreas a im-
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 251

plantar os engenhos de açúcar, que eram a principal fonte econômica,


mantida com mão-de-obra negra escravizada. Sua localização privile-
giada, com terras relativamente baixas junto à costa, entre duas regiões
importantes - o Recôncavo e o Sertão -, e banhada pelo Rio Paraguaçu,
rio navegável, em seu baixo curso, favoreceram o desenvolvimento da
população em função da rica economia açucareira e fumageira.
Junto ao seu crescimento econômico, o prestígio e importância
na política da província da Bahia, e a expansão dos engenhos, leva-
ram a transformação e desenvolvimento da Vila (1698), aumentando
expressivamente sua população e, por consequência, modificando em
toda a sua paisagem, principalmente com a construção de casarões e
igrejas de grande evidência para a época.
Não por acaso, a Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da
Cachoeira foi destaque no período das Lutas pela Independência na
Bahia. Devido à sua importância econômica e política, Cachoeira foi
palco de decisivos acontecimentos da guerra em 1822-1823, quando
assumiu o lugar de centro político da província que se rebelara contra
Madeira de Melo, instalado na capital baiana. Sendo, portanto, reco-
nhecida como cidade Heróica pela Lei Provincial nº 43, de 13 de março
de 1837, em homenagem à sua contribuição na história do Brasil, espe-
cialmente pela iniciativa e resistência de sua população na guerra pela
separação política entre Portugal e Brasil (MILTON, 1979).
No período da organização das lutas pela Independência da
Bahia (1822/1823), a então Vila sediou o governo Interino da Província
o que equivale hoje à capital do estado. Cachoeira assumiu o centro
das organizações e estruturação de todas as questões relacionadas à
Província da Bahia, assegurando a função de destaque e símbolo de
poder nos meses que durou a guerra (ARAÚJO, 2001).
A História de Cachoeira, sua importância política no período co-
lonial, bem como sua estrutura social e o ciclo de riqueza econômica
experimentado pela região até o final do século XIX, deixaram marcas
na estrutura física e, principalmente, na cultura da cidade, colocando-a,
mesmo após seu declínio e decadência econômica no século XX, em
252 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

um lugar de destaque, devido à sua importância histórica e de conser-


vação patrimonial no Brasil.
Na Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira, a
organização da guerra encontrou o lugar tornou um terreno fértil para
o aumento dos desejos de mudança e de liberdade de toda a província
da Bahia, para incrementar os movimentos até a luta armada, a partir
de meados dos anos de 1882.
Reuniões foram realizadas na Casa de Câmara e Cadeia, e em
casas de particulares e organizações civis, as deliberações aconteciam
em torno da aceitação da maioria pela aclamação de Dom Pedro como
Príncipe Regente do Brasil. Na madruga do dia 24 para 25 de junho
de 1822, na casa de número 23, na atual praça Dr. Milton, foi decida
a aprovação da aclamação do Príncipe Regente, levando os presentes
para a sessão na câmara da Vila, para oficializar a aprovação do início
da guerra de Independência.

“O primeiro passo para a Independência da Bahia” - Antonio Parreiras (1928)


Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 253

Na praça da Câmara e Cadeia, atual praça da Aclamação, reali-


zou-se a sessão na manhã do 25 de junho de 1822, que vai represen-
tar a definição do primeiro passo para a Independência da Bahia, em
Cachoeira. Consolidou-se como a Data Magna da Cidade, tendo sido
reconhecida pelo Estado da Bahia, através da Lei 10.695/07, que trans-
fere oficialmente a capital do Estado para a Cidade de Cachoeira, em
reconhecimento aos feitos em prol da Independência.
O “grito” de D. Pedro, em 1882 no Ipiranga, foi ouvido apenas em
2 de julho de 1823, com o fim da guerra pela Independência da Bahia,
em Salvador. Acorreram a Salvador batalhões do Recôncavo, do Sertão
e pessoas várias que faziam parte de diferentes realidades sociais, foi
um momento histórico que congregou pretos, pobres, senhores de en-
genhos, homens ricos e escravizados (TAVARES, 2005).
É fato que os interesses dos grandes proprietários de engenhos
do Recôncavo não eram os mesmo dos negros escravizados, cada grupo
desses, lutava em busca de seus objetivos e com desejos bem distintos.

O Tambor Soledade – recorte da obra “O primeiro passo para a Independência da


Bahia” - Antonio Parreiras (1928)

A Independência poderia significar liberdade para a maioria da


população negra do Recôncavo submetida ao sistema escravocrata,
muitos desses escravizados encontravam na participação da guerra o
254 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

fim da condição desumana em que viviam. Cachoeira junto com outras


vilas do Recôncavo como: Santo Amaro e Saubara, Maragogipe, São
Francisco e São Félix vai aumentar o número de soldados ajudando e
fortalecendo o movimento revolucionário durante toda a guerra.
A riqueza dessa história e a quantidade de monumentos na cida-
de demonstram sua expressiva importância e valor, com seus prédios
históricos, casarões e igrejas que contribuíram para configurar a Histó-
ria da cidade e de sua população, assim como em todo cenário nacio-
nal, mantidos até os dias atuais. Conhecer a cidade é viajar no passado
e na história da formação do país.
É importante considerar as características políticas, patrimoniais
e históricas da cidade, principalmente pela conservação dos lugares
que “testemunharam” parte da história e lutas do povo baiano, esse
aspecto deve ser explorado nas escolas e nos ambientes educacionais.
Acreditando na educação através do patrimônio e dos espaços
de memória da cidade como um caminho possível para conhecer e
produzir conhecimento, vamos usar a Cidade de Cachoeira, como um
exemplo dessa possibilidade. Considerando os lugares de memória
como um terreno carregado de sentidos, muito propício para o desen-
volvimento do conhecimento da história da cidade e de seu povo.
Um exemplo desse simbolismo é “O Hino da Cachoeira” executa-
do pela primeira vez na festa do centenário, (25 de junho de 1922), na
Praça da Aclamação. Naquela ocasião, os cachoeiranos, emocionados,
ouviam e aplaudiam a poesia exaltada de patriotismo do poeta Sabino
de Campos, autor da letra, e a música do Maestro Manuel Tranquilino
Bastos, autor que também compôs o dobrado para piano sobre a cida-
de com o título "As Glórias da Cachoeira", em que evoca e homenageia
o papel da cidade de Cachoeira e de seus filhos na guerra que consoli-
dou a Independência do Brasil, o 25 de Junho de 1822.
A memória coletiva de uma cidade pode ser revelada nos luga-
res e patrimônios históricos, fazendo da memória passada algo mais
concreto e próximo de quem a conhece. A utilização desses espaços
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 255

como caminho, percurso e método para a construção de conhecimen-


to, possibilita o contato com os fatos históricos, de forma interativa e
mais prospectiva.
Assim, é valido aproveitar as vantagens arquitetônicas da cidade
como meio de ensino, como também para conscientizar e incentivar
a relação de pertencimento ao lugar. Cachoeira consegue conciliar o
desenvolvimento de atividades de ensino, a herança arquitetônica e as
experiências históricas que são partes da história nacional.
O enfoque das caminhadas patrimoniais pela história da Inde-
pendência do Brasil, na Bahia e no Recôncavo visa dar a conhecer os
lugares que resistiram não só ao poder do tempo, mas também ao
processo degradante de uma história contada pelas elites, que alijou
dos seus registros, personagens populares, personalidades negras,
organizações sociais, mas que ainda hoje, fazem parte do patrimônio
imaterial da cidade, nas memórias implicadas, narradas de geração em
geração, e que se constituem como fontes históricas relevantes daque-
le momento marcante para o país.
Esses espaços provocam a curiosidade, a exaltação de sua beleza,
mas para além disso, nos incentivam a conhecer e refletir sua história e
seu valor para a população local e para o país.

Considerações finais
A pesquisa realizada resulta na elaboração de um livro paradi-
dático para utilização no ensino fundamental, é um suporte para es-
tudantes e professoras/es que desejam trabalhar com o conteúdo da
Independência, de uma forma vivencial e comprometida com a desco-
lonização do conhecimento, suprindo uma lacuna de materiais didáti-
cos mais diversos e democráticos nas escolas públicas do Brasil, sendo
portanto, uma contribuição relevante para a prática pedagógica que
visa também a implementação da lei Federal 10.639/03, uma vez que
destaca a participação do povo negro do Recôncavo na ocorrência dos
fatos históricos brasileiros.
256 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Neste sentido é que o paradidático: Independência do Brasil na


Bahia: Memória e Patrimônio no Recôncavo propõe uma análise mais
democrática, enfatizando sujeitos, lugares e regiões poucos trabalha-
das em livros didáticos e nos ambientes escolares, especialmente nos
lugares próximos, e que foram cenários das histórias do livro, levando
aos sujeitos percebe-se no processo.
Ao priorizarmos o conhecimento local, aquele mais próximo às
realidades dos/as estudantes e professores/as, podemos provocar in-
teresse e implicação, e por consequência, reconhecimento e valoriza-
ção de identidades antes subjugadas e desconsideradas nas narrativas
históricas e sociais.
Inserir conteúdos da história local nos currículos escolares, destacar
o protagonismo negro e propor alternativas metodológicas do ensino de
História, dando ênfase aos lugares e sujeitos ligados às realidades dos/
as estudantes, foram objetivos alcançados por este trabalho de pesquisa.
Por fim, destacamos que a pesquisa historiográfica elaborada, e o
projeto criado como prática da pesquisa deram suporte para a criação
de novos projetos de ensino, em curso, e para futuras pesquisas de
aprofundamento temático, além de conferirem visibilidade e projeção
dos resultados, que se estenderam em práticas escolas da educação
básica com o apoio das Secretarias Municipais de Educação e do Esta-
do da Bahia, conferindo a viabilidade e os resultados pedagógicos e de
formação cultural real na vida de muitos jovens do Recôncavo.

Referências
ALBURQUERQUE, Wlamyra R. de. Algazarra nas ruas: Comemora-
ções da independência na Bahia (1889-1923). Campinas: Ed. Uni-
camp, 1999.

ARAÚJO, Ubiratan Castro de. A Guerra da Bahia. Salvador: CEAO, 2001

GUERRA FILHO, Sérgio Armando Diniz. O povo e a Guerra: A parti-


cipação popular nas lutas pela Independência da Bahia. (Dissertação
de Mestrado). Salvador: UFBA, 2004.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 257

JESUS, Rita de Cássia Dias Pereira de. Narrativas implicadas sobre


memória, cultura e negritude no Recôncavo da Bahia. In.: FREITAS,
Joseânia Miranda, CUNHA, Marcelo Bernardo da (orgs.) Dossiê
Memórias, Narrativas e Patrimônios. Revista Brasileira de Pesquisa
(Auto) Biográfica, v. 5, n.14, mai-ago, 2020, p. 612-626.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Unicamp, 1990

MALERBA, Jurandir. Introdução –Esboço crítico da recente historio-


grafia sobre a independência do Brasil (c. 1980-2002). In: MALER-
BA, Jurandir (org.). A independência brasileira: novas dimensões.
Rio de Janeiro: FGV, 2006.

MILTON, Aristides. Efemérides Cachoeirana. Salvador: UFBA, 1979.

REIS, J. O jogo duro do dois de julho: o “partido negro” na indepen-


dência da Bahia. In.: SILVA, Eduardo, REIS, João José. Negociação e
conflito: a resistência negra no Brasil escravista: São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1989.

TAVARES, Luís Henrique Dias. Independência do Brasil na Bahia.


Salvador: EDUFBA, 2005.
“Um candomblé incomodativo”
e o jornal a tarde

Bárbara Santana Nogueira


Antônio Liberac Cardoso Simões Pires

Introdução
Muitos são os discursos e os motivos pelos quais o Candomblé sofreu
perseguições pelas mídias impressas na Bahia. Na sua maioria, carregados
de preconceitos, os jornais ditos imparciais, impuseram seus posicionamen-
tos e preferências religiosas, num país e numa Bahia onde a laicidade era
constitucional, em vias legais, eram permitidas todas as práticas religiosas.
Porém, na prática, o cenário era outro, pois alguns cultos eram subjugados
e criminalizados, em especial o Candomblé e seus adeptos.
Tal perseguição também era institucional por parte do Estado, que
se utilizava de um código penal que facilitava e dava brecha para que as
batidas policiais acontecessem por diversos motivos e em especial pelo
incômodo da vizinhança e pelo bem da moral e dos bons costumes. Haja
vista, que os mesmos motivos das batidas estavam presentes em notícias
dos mais diversos jornais que circulavam na cidade de Salvador, no to-
cante dessa pesquisa o Jornal A Tarde, quando a denúncia era a própria
notícia ou mesmo a ação policial em alguma casa de Candomblé.
Este artigo é fruto de um trabalho de pesquisa realizado no pro-
grama de Mestrado em História da África, da Diáspora e dos Povos
Indígenas na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e
teve como objetivo principal apresentar e analisar o posicionamento
do periódico soteropolitano A Tarde frente à repressão aos candomb-
lés, em Salvador, no período que compreende os anos de 1912 a 1937.
A partir da análise de conteúdo de edições do jornal e literatura que
versam sobre a perseguição e a prática religiosa de matriz africana na
cidade no período supracitado.
260 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Assim como na dissertação apresentado ao programa de Mestra-


do, este artigo busca, além de apresentar parte desse trabalho, respon-
der umas das principais perguntas: Seria o jornal um mero anunciador
ou um agente da perseguição? Para tanto se faz necessário uma breve
abordagem histórica da perseguição aos candomblés a partir de tra-
balhos já publicados sobre a temática, seguido da análise de algumas
notícias publicadas no A Tarde.

Perseguições aos candomblés


O Candomblé nasce e permanece numa sociedade cristã onde
suas práticas religiosas eram vistas com maus olhos, principalmente se
praticada por escravizados e ex-escravizados, que em fins do século
XIX representava uma quantidade relevante da sociedade e diante do
preconceito esse povo de fé, foi por muito tempo perseguido e infe-
riorizado, pois as “praticas de matriz africana eram ora silenciadas, ora
perseguidas e depreciadas porquanto identificadas com atraso e des-
vio dos modelos civilizatórios europeus” (SANTOS, 2008, p.13).
Do início do século XX aos dias atuais, diversos intelectuais se
debruçaram sobre a temática negra e sobre os candomblés. Suas con-
tribuições são inegáveis à ciência e à sociedade, na medida em que
colaboraram para desmistificar algumas crenças. Nina Rodrigues, Ed-
son Carneiro, Donald Pierson, Roger Bastide, Pierre Verger e Lisa Earl
Castillo são alguns dos quais se propõem a discutir o negro e sua reli-
giosidade. É bem verdade que o trabalho de Nina Rodrigues recebeu
diversas críticas de diversos intelectuais, dentre eles Edson Carneiro,
que dedicou grande parte do seu trabalho a esta causa (a causa negra).
Carneiro destaca o sincretismo muito presente no candomblé
desde suas origens, “Depois desse sincretismo assim dizer interno,
viria o sincretismo maior, da mitologia nagô com as religiões bran-
cas - o catolicismo e o espiritismo - com a mítica ameríndia” (CAR-
NEIRO, 1981, p.43). Nascida no seio da escravidão e cheia de hibri-
dismo, o candomblé sofreu desde seus primórdios com a repressão,
que se intensifica com a República e as perseguições policiais. Car-
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 261

neiro tenta entender o “Porque elas resistem apesar de tudo – ape-


sar da estupidez das batidas policiais, apesar dos sorrisos irônicos
dos balsés das avenidas. (CARNEIRO, 1981, p.32).
Resistir foi à única opção desde que homens e mulheres sub-
metidos à escravidão chegaram a esse continente. Nesse processo de
resiliência, muitas vezes foi necessário silenciar e agir com cautela e di-
plomacia, transmitindo seus conhecimentos a poucos e mesmo agindo
com maior discrição, não foi possível fugir às perseguições.

O discurso do jornal
Pensar sobre um jornal, seja ele qual for, é pensar no seu papel
e no seu “lugar-social”, enquanto comunicador e formador de opinião.
Para tanto, nesse trabalho, e, sobretudo no trabalho do historiador, ao
se deparar com uma fonte, é necessário questionar, identificar e anali-
sar esse lugar e compreender que “É em função deste lugar que se ins-
tauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que
os documentos e as questões, que lhes serão propostas, se organizam
” (CERTEAU, 1982, p.56). A fonte principal dessa pesquisa é o jornal A
Tarde, que tem a sua história marcada pela oscilação de posicionamen-
tos políticos, ora como um jornal da situação, ora como da oposição.
Deparamo-nos aqui com um periódico que muito provavelmente
seja mais que um comunicador ao noticiar sobre o Candomblé, tenha
por vezes o papel de algoz, de um agente da perseguição. E, ao produ-
zir uma análise sobre o mesmo, faz-se necessário um olhar atento para
o não dito, para aquilo que está implícito no discurso, seja na aborda-
gem como veremos ou mesmo no local onde as notícias aparecem no
meio do jornal e, na grande maioria, nas últimas páginas.
Ao analisarmos as notícias do A Tarde, podemos entender como
funcionavam as perseguições aos Candomblés em Salvador entre os anos
de 1912 a 1937. Analisamos 110 notícias distribuídas neste período, pois
restrinjo minha pesquisa a averiguar o conteúdo daquelas que aparecem
explicitamente o termo Candomblé. Abaixo uma tabela quantitativa:
262 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Gráfico 1 - Quantidade de Notícias do Jornal A Tarde.

São perceptíveis as mudanças em relação ao destaque dado ao


texto das matérias, pois, nos primeiros cinco anos do período estu-
dado, o espaço ocupado por denúncias ou reportagens sobre o povo
de santo é infinitamente menor aos utilizados nos anos seguintes, nos
quais se destacam 1930 e 1937 com um maior número de matérias
sobre os terreiros, ainda carregadas do discurso modernizador muito
utilizado no segundo mandato de J.J Seabra, que intensifica a persegui-
ção aos Candomblés, a fim de cumprir com seu ideal civilizador e mo-
dernista. Como podemos ver abaixo, foi na década de trinta que ficou
concentrada a maioria das notícias, sendo em 1937 ao todo 19 notícias.
Gráfico 2 - Porcentagem de Notícias do Jornal A Tarde.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 263

No geral, as notícias são decorrentes de uma denúncia de pesso-


as vizinhas ao terreiro de Candomblé. Pode-se perceber que a própria
denúncia pode ser a notícia. Percebe-se que o periódico traz um espa-
ço para as denúncias de insatisfação do povo, espaço que até 1925 tem
o título de “Queixas do Povo”. Em 1928, ela muda de nome para “Eu
venho me queixar”, ficando mais claro que o texto da coluna é fruto de
uma insatisfação do povo. Dois anos depois a coluna muda novamente
de nome para “Queixas e Reclamações”.
Figura 1 - Jornal A Trade de 12 de dezembro de 1930

Independente do nome e do ano, esta coluna sempre apresenta


a mesma estrutura. Traz a denúncia da população e muitas vezes sobre
um determinado terreiro que está incomodando a vizinhança, pedin-
do providências à polícia para resolver o impasse. Apresenta, ainda,
os espaços de culto aos Orixás como locais que, além de perturbar
a tranquilidade, estão cheios de ladrões e vagabundos que ficam até
altas horas da madrugada a produzirem batuques. O discurso acima é
influenciado pelas teorias cientificistas:
As teorias cientificistas europeias desenvolvidas na
Europa exerceram fortes influências sobre os es-
tudos brasileiros, que geralmente as adaptavam
à nossa realidade. Teóricos como Silvio Romero
e Euclides da Cunha, entre o final do século XIX
e início do XX, e Oliveira Viana, já na década de
20 deste século, adaptaram o Darwinismo Social,
264 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

acrescentando a teoria de Cesare Lombroso sobre


a relação entre raça e criminalidade aos seus estu-
dos sobre a criminalidade (REIS, 2001, p.35).

A coluna relata que diversas pessoas denunciaram, mas não es-


tão implícitas quantas, “Nas linhas e entrelinhas, buscam-se histórias
individuais e de grupos sociais. Perseguidores, defensores e persegui-
dos. Tensões e estratégias de resistência” (SANTOS, 2009, p.24). O que
se faz necessário à leitura atenta de cada notícia.
“Os Crimes de Morte da Bruxaria: “A Tarde” acompanhou a exhu-
manção do cadáver de Porphyria, em Itapoan”, esse era o titulo em pri-
meira página do dia 5 de fevereiro e 1916, no corpo da noticia elogios
ao delegado Cabral por ter conduzido a diligencia fúnebre ao cemité-
rio do arraial, “no caso da bruxaria curandeira e assassina”. Segundo a
notícia Porphyria foi explorada pela vagabundagem que se comunica
com poderes ocultos nos centros espíritas e nos esconderijos dos san-
tos dos terreiros de Candomblé (seria uma associação ingênua entre
espiritismo e candomblé, por desconhecimento, não se tratava de um
Candomblé e sim de uma casa de Umbanda).
O corpo foi exumado e levado para o Instituto Nina Rodrigues,
depois de diversas testemunhas reconhecerem a cova e com dificul-
dade o corpo. Já o autor do crime, o “Bruxo Daniel”, foi preso e em
sua casa, segundo a reportagem, foram encontradas provas de que o
mesmo trabalhava com o uso da medicina ilegal, e o desdobrar do caso
segue numa próxima reportagem que infelizmente não tivemos acesso.
No geral o discurso é pautado na criminalização da crença em torno
das práticas de cura e das tradições como veremos na próxima notícia.
“A indústria criminosa da Bruxaria: Nossa reportagem surpreen-
de a cura de um demônio – Os suplícios. ‘A Policia no esconderijo do
curandeiro’”, essa é a notícia de 16 de setembro de 1916. Em um trecho
se diz que: “A Bahia, com certeza é o centro em que é maior o numero
de vagabundos, de vadios que vivem a larga com os proventos da ex-
ploração, da ignorância fanatisada, da crendice em poderes occuts” (A
Tarde, 16/09/1916)
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 265

Definidos como aqueles que exercem a medicina das garrafa-


das e até mesmo tóxicos, citando o caso da Porphyria Maria, vítima
do curandeiro Daniel, que, segundo o jornal, o caso aconteceu por
falta de uma ação mais efetiva da polícia. O periódico deixa evidente
o seu posicionamento em favor da repressão e das perseguições às
práticas religiosas e culturais dos povos de matrizes africanas, ressal-
tando aqui como vagabundos enquadrando no Art. 399 e nos artigos
156, 157 e 158 por exercer a medicina ilegal de acordo com o Código
Penal, de 1889.
Num outro episódio o jornal teria recebido por três dias várias
denúncias de vizinhos e, diante das mesmas, o jornal A Tarde saiu em
busca da notícia e, como ele mesmo se intitula, assumindo o papel de
salvador, aquele que estava evitando mais uma morte, fazendo uma
crítica à ineficiência do Estado e da polícia.
Na localidade de Pirajá Antônio Francisco de Oliveira, mais co-
nhecido como Antônio Sapateiro, estava a curar um rapaz que, segun-
do ele, estava possesso. O repórter foi ao local e acompanhou nos mí-
nimos detalhes o procedimento de cura e, por fim, a polícia cerca a casa
e leva os envolvidos a prestar esclarecimento, o que se constituía numa
pratica comum quando as batidas eram realizadas.
Ao pesquisar sobre perseguição aos candomblés percebe-se que
este sofreu com a repressão desde seu princípio. Aqui foi analisado
somente uma de muitas formas de repressão ao povo de fé, tão cruel
quanto às outras, pois coloca sobre o sofrimento do outro um olhar
frio, dissemina ideias preconceituosas contra os terreiros, influenciando
e sofrendo influências.
O teor das notícias consiste basicamente em denunciar o culto
aos orixás, que acontecem durante a noite, na qual o barulho produzi-
do incomoda a vizinhança, que desconhece a importância do som para
o povo de santo. Como identifica Lima Barreto ao dizer que:
O som dos atabaques foi se constituindo num
chamado, foi se tornando uma senha para que se
agrupassem. Buscassem juntos o resgate de suas
identidades tribais, de seus costumes familiares
266 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

deixados para trás, de sua sabedoria milenar e da


ciência das folhas que curam e também podem
matar (2009, p.32).
As notícias contribuem e influenciam na criação de um discurso
no qual o Candomblé é visto como algo ruim e diabólico. “Enfim, can-
domblé equivalia a feitiçaria na mentalidade ajustada e na ideologia
hegemônica da época” (REIS, 2008, p. 106), imaginário que se propaga
e se sustenta na ignorância e no preconceito da sociedade baiana, mar-
cada pelas teorias modernistas e higienistas.
Pode-se perceber que a abordagem presente no jornal A Tarde é
influenciada pelas teorias raciais e ainda carregada de resquícios da es-
cravidão. E, também, que o culto afro era visto como algo incivilizado.

Considerações finais
O Jornal A Tarde e o Candomblé; enquanto um buscava meca-
nismos para se tornar um grande veículo de comunicação atento às
transformações dos primeiros anos da República, e para tanto perse-
guia o outro, o outro (o Candomblé) seguiu criando mecanismos de
negociação com uma sociedade que os marginalizava em virtude das
ideias higienistas e modernistas.
Perseguir os Candomblés foi um meio de se mostrar atento aos
problemas da cidade, desde os primeiros anos de vida do jornal A Tar-
de, que ao longo das três décadas aqui estudadas, foi encorpando seu
discurso acerca do mesmo, pesquisando, procurando entender e apre-
sentando um posicionamento diante das denúncias aos candomblés
que incomodavam e geravam as batidas policiais que reprimiam os
representantes desta religião.
No tocante as variações sutis no discurso do A Tarde dizem res-
peito ao seu posicionamento, de 1912 a 1937. O Brasil e a Bahia passa-
ram por diversas transformações, sobretudo na política, e na sua maio-
ria o jornal assumiu o lugar de um periódico de oposição.
Concluímos que o periódico fez o papel de um agente da per-
seguição em diversos momentos, onde ele se coloca contra a prática
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 267

da religião e defende a ação da polícia, saindo da posição de um mero


anunciador nos seus primeiros anos para um agente. E identificamos
que a década de 30, momento onde se acreditava que a repressão havia
amenizado, haja vista que a década de 20 é considerada por diversos
pesquisadores como o auge da perseguição, no entanto foi um momen-
to de grande repressão, mesmo que nesse período, as discussões acerca
da religião e da cultura negra eram de interesse de diversos cientistas.

Referências
BARRETO, José de Jesus. Candomblé da Bahia: Resistência e identi-
dade de um povo de fé. Salvador: Solisluna Design e Editora, 2009.

BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Com-


panhia das Letras, 2001.

BRAGA, Júlio. A cadeira de Ogã e outros ensaios. Rio de Janeiro:


Pallas, 2005.

CARNEIRO, E. Religiões Negras/Negros Bantos. 2ª ed., Rio de Ja-


neiro/Brasília, Civilização Brasileira/INL, 1981.

CASTILLO, Lisa Earl. Entre a oralidade e a escrita: a etnografia nos


candomblés da Bahia. Salvador: EDUFBA, 2010.

CERTAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 1. Artes de Fazer.


Tradução: Ephraim Ferreira Alves. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003.

PIERSON, Donald. Brancos e Pretos na Bahia: Estudos de Contacto


Racial. São Paulo: Editora Nacional. 1971.

REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: Escra-


vidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008.

REIS, Meire Lucia Alves dos. A cor da Notícia: discurso sobre o ne-
gro na imprensa baiana 1888 -1937. Salvador: UFBA, 2001.
268 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Rodrigues, Nina. Os Africanos no Brasil. 8. ed. Brasília: Editora Uni-


versidade de Brasília, 2004.

SANTOS, Edmar Ferreira. O poder dos candomblés: perseguição e


resistência no Recôncavo da Bahia. Salvador: EDUFBA, 2009.

SANTOS, Jocélio Teles dos (Coordenador). Mapeamento dos terrei-


ros de Salvador. Salvador: UFBA, Centro de Estudos Afro-Orientais,
2008.

VERGER, Pierre Fatumbi. Orixá: Deuses Iorubás na África e no


Novo Mundo. Salvador: Corrupio, 1997.
O exercício da prostituição em
Feira de Santana (1940-1960)

Thaia Conceição Porto


Luciana da Cruz Brito

Introdução

Os processos judiciais são uma ampla fonte histórica, capazes


de nos oferecer detalhadas descrições sobre uma época ou sobre um
grupo social. Foi, principalmente, através deles que pudemos encontrar
prostitutas em ruas, bares ou em suas casas na cidade de Feira de San-
tana, entre os anos de 1940 e 1960.
De acordo com Chalhoub (2012, pp. 41-42), a importância da uti-
lização de processos crimes, não está na necessidade da busca “do que
realmente se passou”, mas em permanecer atento aquilo que se repete
dentro dessas fontes.
A partir das nuances encontradas nos processos judiciais e nas
reportagens vinculadas pelos periódicos locais é possível observar que,
no período estudado, a cidade de Feira de Santana, passava por um en-
durecimento do projeto modernizador em busca de uma nova ordem
social, tendo seu alicerce em um movimento de segregação racial e
econômica, que buscava a construção de uma cidade civilizada e mora-
lizada. Nesse aspecto, as prostitutas eram um grupo social considerado
um empecilho para concretização do projeto de modernização almeja-
do por autoridades e elite local.

O exercício de prostituição
O historiador Alberto Heráclito (2003, p. 91) afirma que já em
1933, a cidade de Salvador concretizou uma proposta semelhante a
270 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

publicada pelo jornal feirense, e como consequência do combate ao


meretrício escandaloso, houve uma mudança em alguns dos territórios
ocupados pela prostituição na capital baiana. Da mesma forma, Feira
de Santana se empenhava em realizar deslocamento equivalente, reti-
rando as mundanas das ruas principais da cidade e concentrando-as
em locais mais afastados do centro. Das vinte e quatro meretrizes en-
contradas nos processos crimes do CEDOC/UEFS65, onze moravam na
Rua Sales Barbosa, também denominada Rua do Meio.
O jornal Gazeta do Povo publicou uma reportagem na década
de 1960, com o propósito de solicitar às autoridades que meretrizes
da Rua Sales Barbosa, fossem realocadas para outro espaço. Sobre o
meretrício a reportagem observava:
Ele tem sido objeto de preocupação de todas as
autoridades policiais, que procuram resolver o
problema afastando as pobres infelizes para local
mais distante do centro urbano.
Há pouco tempo em Salvador o Delegado de Cos-
tumes afastou da Rua Padre Vieira e imediações
todo o mulherio, considerando a má localização
e a presença de edifícios públicos nas imediações
[...] (JORNAL GAZETA DO POVO, 1960).

Além do incômodo que se gerava ao abalar o ideal moralizador


da cidade, o perfil das meretrizes também podia ser fonte incômodo. A
maioria delas tinha entre 20 e 30 anos, migrantes de regiões circunvizi-
nhas, sendo pobres e negras.

65  - Centro de Documentação e Pesquisa (CEDOC) da Universidade Estadual de Feira


de Santana.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 271

Tabela – Dados das meretrizes66


Entre 18 Condição eco- Nascida em Analfabe-
Total67 e 30 anos nômica pobre/ outro muni- ta/ Assina
de idade68 precária69 cípio70 o nome71
Branca/ Clara 2 2 1 2 1
Parda/ Mo-
0 9 6 7 9
rena
Preta/ Escura 8 6 8 3 6
Cor ignorada 4 1 1 1 0
Fonte: CEDOC/ UEFS. Elaborada pela autora.

Junto com o crescimento do número de das casas de prostituição,


surgiam reclamações acerca de estabelecimentos específicos por onde
circulavam meretrizes, como no caso do Café Oriente. Também localiza-
do na rua Sales Barbosa, o empreendimento era destacado na imprensa
como cenário de tiroteios, espancamentos e bebedeiras, frequentado
por prostitutas, malandros, desordeiros e ébrios. Possuindo um alto fa-
lante que tocava repetidas vezes as mesmas músicas “de acordo com
as posses, a paixão e a cachaça do freguês, que assim mandava, a qual-
quer esquálida e sifilítica messalina, as suas convincentes juras de amor”
(JORNAL FOLHA DO NORTE, 1957), o Café vinha perturbando o sossego
dos moradores das ruas Monsenhor Tertuliano, Senhor dos Passos e
Praças Fróes da Mota e Dom Pedro II. O texto finalizava exigindo a atu-
ação do poder público diante do espaço de imoralidades:

66  - Tabela construída a partir da coleta de dados vinte e um processos crimes entre
os anos de 1940 e 1963, onde foram encontradas vinte e quatro meretrizes.
67  - Nos documentos existem quatro prostitutas em que não há referência de cor.
68  - Nas fontes encontramos apenas duas meretrizes com mais de trinta anos de
idade e cinco com idade ignorada.
69  - Nos documentos não existe nenhuma classificação de condição econômica que
não seja pobre ou precária. O que há é a falta de informação sobre esse aspecto de
sete meretrizes.
70  - Nos processos crimes dez não há a informação do município de origem de dez
prostitutas.
71  - Nas fontes apenas uma meretriz foi declarada com instrução primaria, sendo
esta de cor branca; uma foi declarada alfabetizada, tendo sua cor ignorada; duas fo-
ram declaradas com instrução rudimentar, sendo uma parda e outra preta; e quatro
delas não possuem qualquer informação sobre sua instrução.
272 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Moradores das vias públicas acima referidas, alar-


mados com os rumos que os desregramentos do
“Café Oriente” estão tomando, vieram a esta re-
dação solicitar, por nosso intermédio, das autori-
dades públicas – a quem esta nota é endereçada
- enérgicas e imediatas providências contra as fa-
çanhas do perigoso açougue.
Todos os cabarets da cidade foram fechados. A
que se atribui, então, a extraordinária e despropo-
sitada vitalidade do “Café Oriente”, o pior, o mais
deplorável, o mais ruidoso de todos os antros
de prostituição desta terra? (JORNAL FOLHA DO
NORTE, 1957)72.

Fotografia – Rua Monsenhor Tertuliano

Fonte: GAMA, Raimundo Goncalves. Memória fotográfica de Feira de Santa-


na. Feira de Santana, Ba: Fundação Cultural de Feira de Santana, 1994.

No artigo, além da indignação perante a falta de ação da admi-


nistração pública da cidade, a matéria faz uma rara associação, no caso
de Feira de Santana, entre a prostituta e as doenças venéreas denomi-
nando-a como “esquálida e sifilítica messalina”.

72  - Jornal Folha do Norte, 13/04/1957. Número 2492, ano XLVII.


Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 273

Estudado a prostituição feminina em Salvador entre décadas


1900 e 1940, Nélia de Santana (1996, p. 75), aponta que apenas na se-
gunda metade do século XIX a correlação entre a sífilis e o exercício da
prostituição se intensificou. Percorrendo a história das pesquisas sobre
a sífilis, mostra que um dos fatores que contribuíram para uma nova
percepção e preocupação relacionada a doença venérea teria sido a
descoberta de que se tratava de uma enfermidade hereditária, poden-
do ocasionar abortos e crianças com má formação, consequências que
comprometiam a construção de uma sociedade saudável.
Assim, figuras como Lourdinha da Bahia “rameira da rua do meio”,
uma pessoa “sem modos e sem compostura”, exigiam mais atenção do
poder público, da imprensa e da população no sentido de defender
a honra das famílias e a ordem social. Frequentadora assídua do Afri-
cano Bar, Lourdinha ocupou diversas linhas do jornal Gazeta do Povo
no final do ano de 1959 e início de 1960. Durante as segundas-feiras,
dia mais movimentado da cidade, Lourdinha costumava beber naquele
bar junto com outros indivíduos. As queixas se referiam as arruaças e
o palavreado utilizado nos momentos em que famílias transitavam por
aquele local. Por ser um ponto de encontro de “meretrizes imundas,
verdadeiros farrapos humanos em promiscuidade com malandros e ca-
padócios da peior espécie”, as sociabilidades forjadas no Africano Bar,
eram consideradas pela imprensa como algo típico de um bar africano:
Um velho couto de ladrões e assassinos (...). A
sua clientela é recrutada entre esses elementos
tendo contra-peso as rameiras, tais como “Lour-
dinha da Bahia”, desordeira contumaz que tem
sido motivo de nossos comentários e queijados
(JORNAL GAZETA DO POVO, 1959c).

Nesse sentido, a escrita da reportagem não esconde a discrimi-


nação racial ao associar o negro e o africano ao que, na visão dominan-
te, seria a escória da sociedade. Para compreender melhor os cenários
e relações desenvolvidas no contexto da prostituição iremos avançar
para dentro das residências desses sujeitos.
274 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Habitação
Era uma quarta-feira, 18 de junho 1958, quando Altina M. S. rece-
beu uma intimação que lhe dava o prazo de dez dias para sair da casa
em que morava de aluguel na rua Leonardo Pereira Borges.73 Tratava-se
da sentença de uma ação de despejo na qual Renato Santos Silva, o
proprietário de uma casa alugada por Altina, reivindicava o pagamento
de três meses de aluguel atrasado:
[...] o Dr. Renato Santos Silva, médico, casado, re-
sidente nesta cidade, move a presente ação de
despejo contra Altina M. S., brasileira, solteira, do-
méstica aqui também residente sob a delegação
de que a Ré tendo alugado a êle acionante a casa
site à Rua Leonardo P. Borges, nesta cidade, n. 85,
acha-se em mora com o pagamento dos respecti-
vos aluguéis por 3 meses (PROCESSO CIVIL, 1958).

A partir da comparação entre os valores dos impostos prediais


das residências74, podemos sugerir que a casa alugada por Altina era
espaçosa, refletindo no valor do aluguel, lhe custando mensalmente a
importância de CR$ 1.500,00 (mil e quinhentos cruzeiros) o que pode
ter dificultado o cumprimento do acordo feito com o dono do imóvel.
Talvez a pretensão de Altina fosse dividir a casa com outras pessoas, o
que justificaria a escolha de uma casa maior. Também podemos ima-
ginar que a falta de pagamento do aluguel pode não ter sido a única
razão que fez com que Renato buscasse reaver sua propriedade. No
processo Altina aparece como doméstica, mas o que explicaria ter ela
conseguido nos meses anteriores pagar alta quantia do aluguel? Além
disso, o que representava para a reputação de um médico, em uma
cidade que tanto almejava a moralidade e o progresso, ter um imóvel
em seu nome ocupado por uma mulher como Altina?
De acordo com Caulfield, para os juristas do fim do século
XIX e início do século XX, “mulheres honestas não moravam em ca-
73  - Também conhecida como Beco do Ginásio.
74  - A casa possuía o imposto predial no valor venal de 180.000,00 cruzeiros, en-
quanto a maioria das casas da mesma rua o valor venal estava entre 18.000,00 e
60.000,00 cruzeiros. (Jornal Folha do Norte, 08/03/1958. Número 2539, ano XLVIII).
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 275

sas “imorais”, como os cortiços de estrutura precária e superlotados”


(CAULFIELD, 2000, p. 89). Esse perfil de moradia exposto pela autora
se aproximava aos das mulheres de “vida livre” feirenses. A imprensa
adjetivava suas habitações como “cortiços” onde as “mariposas”75 fica-
vam as portas e inibiam a passagem de senhoras e mocinhas (JORNAL
GAZETA DO POVO, 1959b).
Aqui encontramos Altina novamente, passados sete meses ela
já possuía outra morada, e agora um novo processo envolvendo o seu
nome era aberto. Dessa vez, na esfera criminal, fora impetrado um ha-
beas corpus preventivo que além de Altina continha os nomes de Alice
A. C., Maria de Lourdes S., Nilza A., Hilda Maria de J., Marilda A., Lourdes
B. M., Regina do N., Raimunda do N. e Mariente B. de C. que, de acordo
com o advogado das mesmas, vinham sofrendo coação ilegal que lhes
feria o direito de ir e vir. Alice e Altina eram locatárias das casas núme-
ros 62, 75 e 81 também localizadas na rua Leonardo Pereira Borges,
enquanto as demais seriam sublocatárias.
Dessa vez, o delegado regional teria dado o prazo de cinco dias
para que Altina e as outras pacientes abandonassem os prédios que
residiam sob pena de serem presas. Ao explicar a sua versão ao Juiz de
Direito da Vara Crime, o delegado afirmou:
[...] determinei que as mundanas residentes da Rua
Leonardo Pereira Borges, conhecida por “Beco do
Ginásio”, fossem dalí retiradas, para lograr já de-
signado pela polícia, em face de vários pedidos de
providências das famílias residentes nas Avenidas
Senhor dos Passos e Rua Visconde do Rio Bran-
co, secundado por várias comissões de ginasianas,
visto a falta de moral das referidas mundanas na-
quela artéria. [...] (PROCESSO CRIME, 1958a).

O delegado ainda acrescenta que não houve determinação para


a prisão das mundanas, mas a tomada de medidas para o bem da so-
ciedade já que aquela rua teria se transformado em um antro de pro-
miscuidade, um verdadeiro bacanal e em vias da inauguração do Cine

75  - Termo utilizado para se referir a mulheres exerciam a prostituição.


276 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Santanópolis, aquele local se tornaria passagem obrigatória para as


famílias feirenses.
Assim, três dias depois de receber as explicações do delegado, o
juiz João de Almeida Bulhões proferiu sua decisão. De acordo com o
seu parecer, por se tratar de uma autoridade, o delgado gozaria da pre-
sunção da verdade e, tendo ele afirmado que não havia determinado
o encarceramento de nenhuma daquelas mulheres, julgava o habeas
corpus improcedente.
O direito brasileiro tratou de enquadrar as prostitutas na legisla-
ção e desde 1890 o Código Penal no seu artigo 227 previa que o ato de
“excitar, favorecer, ou facilitar a prostituição de alguém para satisfazer
desejos desonestos ou paixões lascivas de outrem” acarretaria a pena
de prisão, sendo essa pena dobrada caso o crime fosse cometido por
tutor, curador, pessoa responsável pela guarda ou marido. De acordo
com Carolina Silva Cunha de Mendonça (2014, p. 60), o artigo seguin-
te do mesmo código poderia ser dividido em duas partes. A primeira
direcionada a figura dos caftens, em que se criminalizava a indução de
mulheres “quer abusando de sua fraqueza ou miséria, quer constran-
gendo-as por intimidações ou ameaças, a empregarem-se no tráfico da
prostituição” (BRASIL, 1890, art. 278). A segunda parte se referindo aos
proprietários de locais em que moravam e trabalhavam as prostitutas
com o seguinte texto: “prestar-lhes por conta própria ou de outrem,
sob sua ou alheia responsabilidade, assistência, habitação e auxílios
para auferir, direta ou indiretamente, lucros desta especulação” (BRA-
SIL, 1890, art. 278).
Na década de 1940, com a implantação do novo Código Penal,
as práticas relacionadas ao tráfico de mulheres e ao lenocínio foram
melhor detalhadas e criminalizadas (LEME, 2009, p. 139). Além disso, o
artigo 229 do código, definiu como crime de casa de prostituição, o ato
de manter por conta própria ou de terceiros, casa de prostituição ou
lugar destinado a encontros para fim libidinoso, haja, ou não, intuito de
lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente. A pena prevista
era de dois a cinco anos de reclusão e multa (BRASIL, 1940).
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 277

Apesar do caso de Altina e Alice se enquadrar no artigo do Có-


digo Penal que versava sobre casa de prostituição, as argumentações
do delegado regional não estavam baseadas no direito, mas no sa-
neamento moral que na visão das autoridades era fundamental para
a construção de uma urbe civilizada. Fica explícito que se tratava da
tentativa de retirar aquelas mulheres de uma rua de grande visibilidade
com o intuito de excluir daquele espaço figuras consideradas promis-
cuas e más influências para a “mocidade em formação”.
Como já foi visto anteriormente, a Sales Barbosa também era
uma rua de grande visibilidade e que possuía extrema importância no
contexto comercial da cidade. Ela foi o cenário de outro processo. Mais
um pedido de habeas corpus que igualmente questionava a lógica da
exclusão. De acordo com o advogado Divaldo Passos Rodrigues, as
proprietárias de pensões de mulheres de vida livre Laura A. dos S. e Jo-
ventina M. estavam sofrendo coação ilegal por parte da polícia que as
teria dado o prazo de dez dias para que acabassem com suas pensões.
No seu pronunciamento ao Juiz de Direito o delegado explica que:
[...] esta Delegacia não tem nenhuma preten-
são em mandar prender as pacientes, ambas
proprietárias de casas de tolerância à Rua Sales
Barbosa, e sim convidá-las a acabarem com as
casas de meretrício, passando para outro ramo
comercial, tendo em vista que, na referida arté-
ria, já funcionam parcialmente o comércio, po-
rém, as famílias são impedidas de ali transitarem
[...] (PROCESSO CRIME, 1963).

O delegado ainda destacava que, naquela rua, restavam mais ou


menos seis casas de mulheres de vida livre e acrescentava que as loca-
tárias poderiam permanecer nas casas, porém estavam impedidas de
exercerem o comércio de vida livre.
Para o juiz, caberia as impetrantes a apresentação de algum do-
cumento que provasse a coação sofrida, uma vez que deveria se con-
siderar a boa-fé da autoridade policial. Além do mais, cabia a polícia
a função de “fiscalizar o meretrício, impondo corretivos e medidas in-
dispensáveis, acautelando os bons costumes, vigiando o cometimento
278 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

de excessos” (PROCESSO CRIME, 1963), ideais que formaram sua base


argumentativa para indeferir o habeas corpus preventivo.
Apesar de ocorrerem em períodos diferentes e terem sido ava-
liados por juízes distintos os dois processos receberam pareceres bas-
tante semelhantes, o que indica uma normatização, pelo menos a nível
local, na avalição desse tipo de processo.
Assim, locais por onde passavam ou deveriam passar as “famílias
de bem”, também eram ocupados por moradores tidos como indeseja-
dos. Dessa forma, o argumento da rua do “Beco do Ginásio” como uma
via importante se apoiava na implantação de mais um símbolo da mo-
dernidade, o cinema. No caso da rua Sales Barbosa, o funcionamento do
comércio justificava a retirada ou o não exercício das atividades das mun-
danas naqueles espaços. Porém, se olharmos pela ótica das meretrizes
e do seu ofício, essas ruas eram justamente as que favoreciam a prática
da prostituição, com grande circulação de pessoas e locais atrativos que
chamavam a atenção dos forasteiros. Nesse sentido, havia um choque
de interesses que se alimentavam mutuamente. Ao passo que as classes
dominantes avançavam no caminho da modernização, também criavam
o ambiente mais propício para o exercício do comércio da vida livre.
O fato de buscarem um advogado para lhes assegurar o seu di-
reito à liberdade, antes mesmo da instauração oficial de um processo
de coerção, demonstra que não estavam à mercê da repressão do apa-
rato policial e que sua mobilização em busca do poder judiciário se
configurava como uma forma de resistência.
Em Feira de Santana, desde de 1950 podemos encontrar pro-
cessos referentes a pedidos de habeas corpus impetrados em favor de
mulheres que se viam impedidas de exercerem o seu direito de ir e vir.
No primeiro deles datado de dezembro de 1950, Iêda Rocha e Naza-
ré Barros declaradas maiores, domésticas e residentes na rua Sete de
Setembro, afirmavam estar na iminência de serem conduzidas à cadeia
pública pelo delegado de polícia.
A rua Sete de Setembro, também conhecida como Beco do
Mocó, era um espaço que há tempos chamava a atenção das autorida-
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 279

des públicas. Em 1956, uma reportagem fazia críticas a mulheres mora-


doras dessa rua e da Rua Leonardo Pereira Borges, o Beco do Ginásio,
que andavam “quase completamente nuas” (JORNAL O CORUJA, 1956)
ferindo a moral do povo feirense. A nota continuava o que se referia
como um apelo dos residentes das imediações dessas localidades em
que mundanas:
[...] promiscuindo menores inexperientes, com
seus desfiles da pouca vergonha, vêm por nosso
intermédio, pedis às autoridades competentes, as
devidas providências, a fim de acabar com esta
demasiada liberdade, impondo o respeito que são
obrigadas a manter mesmo contra as suas vonta-
des (JORNAL O CORUJA, 1956b).

Apesar dos olhares de vigilância e reprovação direcionados aque-


la rua e seus habitantes, o advogado exigia coerência na aplicação do
sistema jurídico. Assim, o pedido de habeas corpus detalhava que con-
tra as pacientes não havia flagrante ou qualquer mandado de prisão
que justificasse tal arbitrariedade. Ao receber o pedido, o juiz solicitou
informações mais precisas ao delegado, porém não obteve resposta
(PROCESSO CRIME, 1950).
Outro processo, na mesma década, em nome de Deraldina Vieira
Barbosa, Dulce Ferreira, Luiza Batista Souza, Leonia Alves Silva, Zorildes
dos Santos, Clarisse Carneiro Rios, Valdelice Vieira dos Santos e Maria
Pereira. Residentes na rua Leonardo Pereira Borges, alegavam terem
sido intimadas pelo delegado regional a deixarem a casa onde mora-
vam no prazo de quarenta e oito horas e, caso deixassem de cumprir,
seriam presas (PROCESSO CRIME, 1958b).
A crise habitacional já tinha sido noticiada desde 1956 pelo jornal
O Coruja e foi usada como argumento pelo advogado das impetrantes.
Naquele ano o periódico fez a seguinte colocação:
A quantidade de novos prédios parece não ser
relativo para a nossa população, pois os alugueis
desses e dos já existentes se tornam inabitáveis
por muita gente, que não tendo a sorte de ter uma
renda de milhares de cruzeiros, não os pode pagar
[...] (JORNAL O CORUJA, 1956a).
280 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Para o recém-formado advogado Hugo Navarro Silva, “Na im-


possibilidade de efetuarem uma mudança tão repentina, por força,
mesmo, da crise de habitação que assola a cidade” (PROCESSO CRIME,
1958), aquelas mulheres estariam a mercê do arbítrio policial. A partir
do pedido de habeas corpus o juiz expediu uma solicitação de informa-
ções ao delegado, mas não as obteve.
Os processos não nos fornecem mais informações sobre essas
mulheres além dos seus nomes e nem mostram quais crimes estavam
sendo imputados as impetrantes dos pedidos. Podemos sugerir que
seriam consequência das ações policiais efetuadas para afastar mere-
trizes do centro da cidade, já que se assemelham as exigências policiais
dos processos relacionados a casas de prostituição. Tais processos tam-
bém revelam padrões, tanto das autoridades quanto das pacientes. No
caso dos delegados, não houve cumprimento do rito processual ao não
repassarem as informações solicitadas pelas autoridades judiciais, além
disso buscavam agir informalmente e de maneira arbitrária no intuito
de controlar e disciplinar indivíduos que consideravam um atentado a
boa moral da cidade.
Os pedidos de habeas corpus, em alguns casos, eram assinados
por um advogado, em outros eram abertos apenas com as assinaturas
das interessadas. Geralmente eram impetrados em conjunto, o que nos
permite pensar em duas possibilidades: a primeira, que essas mulheres
entendiam que um grupo poderia ter mais força e efetividade diante
das autoridades policiais, e a segunda como uma estratégia para dividir
os custos com o advogado. Ou mesmo, as duas hipóteses em conjunto.
Além disso, os pedidos de habeas corpus deixam nítido a noção que
essas mulheres tinham dos seus direitos, e apesar de possuírem, na sua
maioria, uma baixa escolaridade e uma condição financeira desfavorá-
vel desenvolveram uma forma de proteção que coibia as autoridades
de exercerem uma repressão ilimitada.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 281

Considerações finais
No período estudado uma série de transformações fizeram com
que Feira de Santana galgasse o posto de “cidade comercial”. O empe-
nho em fazer com que os ideais de modernização, progresso e morali-
dade se tornassem uma realidade atravessou as ideias das autoridades
municipais e elite da cidade. Era necessário que a cidade parecesse
agradável os olhos daqueles que vinham realizar suas transações co-
merciais e para as famílias que exerciam seu poder de compra.
Assim, determinados grupos sociais ficaram sujeitos a maior vi-
gilância e controle, como no caso das prostitutas. A partir da leitura
dos periódicos e processos crimes, se percebe a insatisfação das auto-
ridades e elite locais com o exercício da prostituição nas ruas centrais
da cidade. Porém, no decorrer do trabalho é desmistificada a intenção
utópica do poder público feirense no extermínio do meretrício, já que
tal ideia não aparece nas fontes analisadas, sendo os esforços das au-
toridades voltados para o controle e afastamento da prostituição das
áreas centrais da cidade e relocação para onde os olhares dos visitantes
e negociantes não pudessem alcançar.
Também pudemos constatar que em Feira de Santana, a mulher
de vida livre possuía um perfil bem definido. Eram elas mulheres migran-
tes de regiões circunvizinhas, com menos de trinta anos, pobres, negras
e analfabetas descendentes de um processo histórico excludente que
produziu uma margem favorável as ações de coerção da polícia, das
elites e das autoridades municipais. Porém, apesar do cenário desfavo-
rável também foram capazes de se unir para criar formas de resistência.
A utilização da justiça, passou a ser uma ferramenta importante
para as prostitutas que se sentiam acuadas pelas diligências policiais.
As meretrizes se valiam do habeas corpus, geralmente impetrados por
um grupo de prostitutas, que acabavam denunciando arbitrariedades
praticadas por delegados de polícia.
Sofrendo repressão, vivendo conflitos, estabelecendo laços afe-
tivos, a meretriz se constituiu como um personagem complexo dentro
das novas exigências de civilidade da cidade de Feira de Santana. Dessa
282 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

forma, esse trabalho busca reconstituir algumas das vivências desen-


volvidas em meio ao exercício da prostituição. Procurando encontrar
os vestígios deixados na história para se pensar parte dessas experi-
ências, e que elas possam ser imaginadas e reimaginadas, construídas
e desconstruídas, seguindo rastros de mulheres que encontraram no
meretrício uma forma de sobrevivência.

Referências
BATISTA, Ricardo dos Santos. Como Se Saneia a Bahia: A Sífilis e um
Projeto Político Sanitário Nacional em Tempos de Federalismo. 2015.
232f. Tese (Doutorado em Filosofia e Ciências Humanas) – Universi-
dade Federal da Bahia, Salvador.

BRASIL. Código Penal dos Estados Unidos do Brazil. Decreto nº


847, 11 de outubro de 1890. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/D847.htm>. Acesso em: 18 dez.
2018.

CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade


e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). São Paulo: Ed. da UNICAMP:
UNICAMP, Centro de Pesquisas em História da Cultura, 2000.

CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos tra-


balhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 3ª Ed. Campinas, SP:
UNICAMP, 2012.

ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o


cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Epoque. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1989.

FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Quem pariu e bateu que ba-


lance!: mundos femininos, maternidade e pobreza: Salvador, 1890-
1940. Salvador: CEB, 2003.

LEME, Edson Holtz. Noites ilícitas: histórias e memorias da prostitui-


ção. 2. Ed Londrina, PR: Eduel, 2009.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 283

MENDONÇA, Carolina Silva Cunha de. Marias sem glória: retratos


da prostituição feminina na Salvador das primeiras décadas republi-
canas. 2014. 113f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Uni-
versidade Federal da Bahia, Salvador.

OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos. Feira de Santana em


tempo de modernidade: olhares, imagens e práticas do cotidiano
(1950-1960). 2008. 221f. Tese (Doutorado em História) – Universida-
de Federal de Pernambuco, Recife.

SANTANA, Nélia de. A prostituição feminina em Salvador (1900-


1940). 1996. 115f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal da Bahia, Salvador.

SCHETTINI, Cristiana. Que tenhas teu corpo: uma história social da


prostituição no Rio de Janeiro republicano. Rio de Janeiro: Ed. do
Arquivo Nacional, 2006.
Negros militantes:
movimento negro baiano(1970-1980)

Andersen Kubnhavn Figueirêdo


Antônio Liberac Cardoso Simões Pires

Introdução
Este capítulo tem como objetivo mostrar alguns aspectos dos
mecanismos de repressão adotados pelo regime militar, que resultaram
em perseguições, prisões, torturas e mortes de muitos integrantes de
partidos de esquerda e militantes negros. Tais reflexões são resultantes
da pesquisa de mestrado Ativismo Negro em Salvador no Período da
Ditadura Militar (1970-1980), realizada no Programa de Pós-Graduação
Mestrado Profissional em História da África da Diáspora e dos Povos
Indígenas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.
A base teórica que deu suporte a essa pesquisa foi a concepção
de hegemonia empregada pelo sociólogo italiano Antônio Gramsci
com o objetivo de explicar a dinâmica das relações raciais em Salvador
na década de 1970. Dialogando também com o historiador Petrônio
Domingues em consonância com o sociólogo jamaicano Stuart Hall,
quando frisa que não existem formas puras de culturas negras, todas
essas formas são sempre o produto de sincronização parcial, engaja-
mentos sociais que atravessam as fronteiras culturais, e, com influência
de mais de uma tradição cultural de negociações de entre posições
dominantes e subalternas, estratégias subterrâneas de recodificação,
de transcodificação e significação crítica e do ato de significar a partir
de materiais preexistentes.
Desta forma, a abordagem empregada foi na perspectiva da His-
tória Oral que proporcionou a elaboração de constructos a partir das es-
tratégias de resistência à Ditadura Militar, desenvolvidas pelos sujeitos
sociais, tanto na política quanto na cultura, para definirem uma agenda
286 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

de reivindicações e ações contra o racismo estrutural, eminente na so-


ciedade brasileira e, especificamente, em Salvador na década de 1970.
Tais fontes orais foram submetidas ao processo de problematiza-
ção, no sentido de criar um norte para a narrativa do presente objeto
de estudo. Também foram utilizadas fontes documentais impressas
como elemento complementar às narrativas dos entrevistados.
A intercorrência desse estudo revela que estratégias e táticas
realizadas pelo movimento negro, como forma de combater o racis-
mo estrutural, a discriminação, o preconceito e a desmistificação da
democracia racial, surtiram efeito na proposição de políticas públicas
afirmativas.

A década de 1970
Na década de 1970, o Brasil ainda vivia sob o comando da Dita-
dura Militar, que perdurou até 1985. Esse período foi caracterizado por
um regime forte, centralizador e repressor, e qualquer ato identificado
como subversivo era reprimido, e os seus atores eram sujeitos a pri-
sões, torturas e até a morte.
Nessa fase de autoritarismo, houve uma tentativa de silenciar os
movimentos sociais, incluindo o movimento negro. Houve um gran-
de vazio, e o medo tornou-se a chave da questão. Vários intelectuais
foram exilados, deixando, literalmente, o país. Muitas músicas foram
proibidas, a censura passou a vigorar de maneira expressiva. A tele-
visão só transmitia programas que não comprometessem o sistema
implantado. Era comum encontrarmos, nos jornais da época, receitas
de culinária, poemas clássicos, em substituição aos textos considera-
dos perigosos ao regime vigente. Frases, do tipo “Brasil, Ame-o ou
Deixo-o”, “Ninguém segura esse país”, “Brasil: conte comigo”, eram
comuns. O projeto econômico, conduzido pelo Ministro da Fazenda,
Delfim Neto denominado “Milagre Econômico” ou “Milagre Brasilei-
ro”, resultou na abertura maciça da economia ao capital estrangeiro,
acelerando a dívida externa e gerando uma crise inflacionária no país.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 287

Várias construções, denominadas de “obras faraônicas”, foram realiza-


das nessa época. Entre elas, a Rodovia Rio-Santos (1972), a Rodovia
Transamazônica (1974), a Ponte Rio - Niterói (1975), e as hidrelétricas
de Itaipu (1984) e Tucuruí (1984).
De acordo com o historiador Alessandro Moura de Amorim, em
sua dissertação de mestrado “MNU representa Zumbi (1970-2005): cul-
tura histórica, movimento negro e ensino de história”,
A grande proeza econômica da ditadura militar
foi o chamado “milagre econômico”. Caracteriza-
do, de um lado, pela entrada agressiva do capi-
tal estrangeiro no país, ampliação de seu parque
industrial, desnacionalização ou desaparecimento
de pequenas empresas, e invasão das corporações
multinacionais no campo, fazendo desaparecer
a pequena propriedade rural com o amparo do
governo militar. E por outro, via-se nitidamente a
exclusão das massas, incluindo-se o afro-brasilei-
ro, da partilha do “bolo” do milagre, com arrocho
salarial, desemprego e o deslocamento do traba-
lhador rural para a periferia das grandes cidades
(AMORIM, 2011, p. 82).

Devido ao abandono do governo no setor agrário, aconteceu


nesse período um grande êxodo rural, mais precisamente, na região
Nordeste, provocado pela fome. As multinacionais começaram a inva-
dir o setor industrial brasileiro, pois encontravam mão de obra abun-
dante e barata e incentivo do governo, oferecendo vantagens aos in-
vestidores estrangeiros.
Para Lélia Gonzales, [...] Graças a esse êxodo rural, as cidades não
cresceram, mas “incharam” com o aumento do número de favelas e o
surgimento desse novo personagem, o “bóia-fria”, no cenário da histó-
ria dos despossuídos deste país (HASENBALG; GONZALES, 1982, p. 21).
Durante a década de 1970, o Brasil teve três presidentes militares:
Emilio Garrastazu Médici (1969-1974); Ernesto Geisel (1974-1979); João
Batista Figueiredo (1979-1985). O governo do presidente Médici foi a
fase que apresentou a maior taxa de crescimento da economia brasi-
leira, assim como foi uma das fases mais repressoras do regime militar.
Vários líderes sindicais, professores, estudantes, funcionários públicos e
288 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

liberais, escritores, religiosos, militantes negros, foram duramente per-


seguidos, torturados, e muitos, até hoje, se encontram desaparecidos.

Perseguição aos militantes negros


Recentemente, foi descoberto o documento inédito sobre a re-
pressão imposta aos militantes negros, durante o regime militar. O do-
cumento foi publicado pela jornalista Marsílea Gombata, na Revista Car-
ta Capital, em 18/09/2015. O documento refere-se a palestras, reuniões
e simpósios, organizados pelos militantes do movimento negro. O rela-
tório dá ênfase às atividades desenvolvidas pelo movimento na cidade
de Salvador (BA), entre os quais estão a IV Semana de Debate sobre a
Problemática do Negro Brasileiro, realizado em abril de 1978, (entre os
temas das palestras, destaca-se “a tão falada democracia racial não pas-
sa de um mito”, proferida pela socióloga mineira Lélia Gonzales).
Esse relatório foi elaborado através da infiltração de informantes
vinculados ao DOPS, os chamados “arapongas”, durante os eventos
promovidos pelos militantes negros. Esse documento enfatiza também
a Segunda Assembleia Nacional do Movimento Negro Unificado, re-
alizado no dia 4 de novembro de 1978, em Salvador, o qual, resultou
na deflagração do 20 de novembro76 como o Dia da Consciência Ne-
gra, além de mencionar também o ciclo de palestras promovido pelo
Núcleo Cultural Afro – Brasileiro, realizado em Salvador em 1978. O
documento faz menção de várias entidades negras baianas, que se soli-
darizaram com o ato desencadeado nas escadarias do Teatro Municipal
de São Paulo, o qual originou o MUCDR – Movimento Unificado Contra
a Discriminação Racial. Dentre as entidades negras citadas, estão inclu-
ídas Ilê Aiyê, Malê, Zumbi e Cultural Afro – Brasileiro.

76  - O 20 de Novembro, Dia da Consciência Negra foi idealizado em 1971 pelo Grupo
Palmares do Rio Grande do Sul tendo como um dos líderes o militante negro Olivei-
ra Silveira (1941-2009) e aprovado durante a II Assembleia Nacional do Movimento
Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR), realizada no dia 4 de de-
zembro de 1978 em Salvador (BA). O entrevistado Gilberto Leal argumenta que para
a realização da Assembleia houve muita perseguição da Polícia Federal. Na época
estava em vigor o Ato Institucional nº 5, que qualificava o evento como subversivo
dentro da linha de pensamento político.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 289

Essa repressão aos militantes negros durante a ditadura militar


aparece na obra Orfeu e o poder, do cientista político estadunidense
Michael George Hanchard, no qual o autor assim coloca:
Entretanto, um alto funcionário do Serviço Nacio-
nal de Informações, o engenhoso braço estatal do
serviço secreto, confirmou, numa entrevista pes-
soal, que vários ativistas negros foram vigiados
de perto durante a década de 1970, em função da
crença do estado de que eles eram parafusos na
engrenagem sempre ativa da conspiração comu-
nista (HANCHARD, 2001, p. 139).
De acordo com o historiador Amílcar Araújo Pereira (2013); as
ações do movimento negro continuavam sendo observadas de perto,
pelos militares, durante o governo do Presidente Ernesto Geisel. Essa
informação está contida no CPDOC/FGV na “Apreciação Sumária” nº 25
de 3 a 9 de julho de 1978.
Entretanto, durante o período da ditadura, não só tiveram mili-
tantes dos movimentos negros presos, como outros negros envolvidos
com a defesa da democracia, do socialismo, de uma sociedade mais
justa e igualitária. Muitos desses negros desapareceram durante o re-
gime militar instaurado no país. Só recentemente é que organizações
afro-brasileiras começaram a fazer esse levantamento. O ativista77 ne-
gro Gilberto Leal se referindo aos assassinatos e as torturas desencade-
adas nesse período, informa em seu depoimento:
Imaginávamos que apenas brancos tinham sofrido
torturas e assassinatos né. Então, dentre os desa-
parecidos muitos negros. Posso citar um deles que
foi assassinado em praça pública, Santos Dias de
São Paulo né, negro militante contra a ditadura mi-
litar que foi assassinado [...].78
77  - Michael George Hanchard define ativista como [...] aqueles que dedicam pelo
menos dez horas semanais, sistematicamente, ao movimento negro. Suas atividades
incluem a liderança/participação em organizações comunitárias, instituições de pes-
quisa dedicadas a questões afro-brasileiras, partidos políticos, sindicatos e centros
educacionais. Embora seu grau de responsabilidade como líderes seja variável, o cri-
tério de inclusão foi seu engajamento em questões de impacto desproporcionalmen-
te grande para os afro-brasileiros (violência relacionada com a raça, discriminação no
emprego, educação comunitária, menores abandonados) (HANCHARD, 2001, p. 41).
78  - Entrevista realizada com o militante negro e Coordenador da Coordenação Na-
cional de Entidades Negras (CONEN), Gilberto Leal, Salvador, Bahia 17/10/2015.
290 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Até o início da década de 1970, os partidos de esquerda, enten-


didos como partidos comunistas viam o problema racial como tema se-
cundário no processo de luta dos explorados, dos oprimidos e dos tra-
balhadores contra o sistema hegemônico. A consequência disso é que
esses partidos negligenciavam, o tempo todo, a luta do povo negro.
De acordo com o historiador Petrônio Domingues,
Para a esquerda marxista tradicional, lutar contra
o racismo significava transformar radicalmente a
estrutura de classe da sociedade. O racismo é con-
cebido como reflexo dos conflitos de classe, uma
arma ideológica propagada pela classe dominante
visando à divisão da classe dominada para legiti-
mar a exploração e garantir a opressão.79

Compartilhando com a concepção de Petrônio Domingues, o


cientista político norte-americano, Hanchard, assim coloca: [...] Até o
fim da década de 1970, a versão bastante ossificada do marxismo-leni-
nismo brasileiro sustentou, sistematicamente, que “o problema social”
é da classe e do trabalho, e não da raça ou do sexo [...] (HANCHARD,
2001, p. 125).
No período pós-abolição, por mais incrível e paradoxal que pa-
reça, diversos militantes negros interagiram pelas circunstâncias do
momento às agremiações políticas da situação, no jogo das relações
de poder. Como exemplo, temos setores da Frente Negra Brasileira e
da União dos Homens de Cor (UHC) que participaram de vários pleitos
eleitorais na década de 1940 e 1950, ligados a grupos políticos domi-
nantes. O próprio militante Abdias do Nascimento que nessa época era
ligado à situação, justifica a sua relação por encontrar mais espaços,
mais oportunidade.
O militante Ivair Augusto Alves dos Santos diz, em relação à es-
querda do Brasil com a questão racial:
Para a esquerda, o “problema do negro”, sua mar-
ginalização, sua miséria, seu analfabetismo, sua
cidadania despojada, eram apenas parte ou con-
79  - Palestra proferida pelo historiador Petrônio Domingues no VII Fórum Pró Igual-
dade Racial e Inclusão Social – UFRB. Cachoeira, Bahia 21/11/2014.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 291

sequência de um problema maior, vale dizer, o


imperialismo, o subdesenvolvimento ou o capita-
lismo. A esquerda era incapaz de discutir politica-
mente a dimensão étnica da sociedade brasileira,
ou mesmo do proletariado. O negro não se podia
ver, não era identificado etnicamente, só era per-
cebido na sua comunidade e como classe traba-
lhadora (SANTOS, 2001, p. 33).

Na segunda metade do século XX, os grupos de “esquerda” in-


tensificam suas relações com os movimentos negros, a partir de 1978.
Com o surgimento do Movimento Negro Unificado. O MNU foi organi-
zado por um grupo ligado à esquerda marxista, leninista, trotskista. En-
tre seus fundadores, temos Hamilton Bernardes Cardoso80 e Lélia Gon-
zales, que militavam na corrente trotskista, e, por sinal, esses grupos
participaram da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), na década
de 1980. A partir desse momento, a esquerda percebe que existem
problemas específicos do negro no Brasil, que existe uma demanda es-
pecifica, e que há um movimento com potencial político e mobilizador
(DOMINGUES, 2014).
A descoberta dessa especificidade significa que grupos políti-
cos de esquerda abriram espaços para a discussão da temática racial.
O Partido dos Trabalhadores (PT), que é considerado um partido de
centro – esquerda, e que tem a maior projeção desse processo de de-
mocratização do país, construiu um projeto onde militantes do Movi-
mento Negro ocuparam espaço na organização do estado brasileiro,
assim surgiram diversas secretarias e ministérios como a Secretaria de
Políticas Públicas e Inclusão Racial (SEPPIR), sistemas de cotas e Pontos
de Cultura Negra.
Para o historiador Petrônio Domingues,
Em troca de cargos no governo algumas lideranças
do movimento negro são cooptados politicamen-
te e torna-se legitimadora do status quo. Assim,
80  - Hamilton Bernardes Cardoso (1953-1999) militante e jornalista da Convergência
Socialista, uma das correntes políticas que fundou o Partido dos Trabalhadores (PT).
Hamilton B. Cardoso era um grande mediador político que transitava em diferentes
espaços de engajamento fazendo conexões entre redes de ativismo.
292 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

essa é uma questão espinhosa, pois ao se atrelar


ao aparelho do Estado o movimento pode acabar
perdendo a sua autonomia e contribuindo no li-
mite para o amortecimento das tensões que existe
entre frações da população negra e os governos
em suas diversas esferas.81

Com relação ao movimento sindical, na década de 1970, muitos


operários negros não ficaram imunes frente às perseguições feitas pelo
regime militar. Muitos sindicalistas foram presos, reprimidos, e conse-
quentemente, demitidos do seu setor de trabalho. Época de comícios
no ABC paulista, reivindicando liberdade de expressão, melhoria sala-
rial e condições de trabalho.
No seu depoimento, o sindicalista Demosthenes Soares Oliveira,
conhecido como “Seu Demó” natural da cidade de São Félix (BA), con-
ta como eram desencadeadas as perseguições aos trabalhadores pelo
governo durante a ditadura militar.
Há em 70 [...] tava trabalhando na Fábrica de Livro
de Fumo CCC em Candeias. Ali, eu, o amigo, eu
tava já desempregado, enfrentando uma série de
problemas, perseguições políticas. O amigo mim
arranjou para eu ir trabalhar numa Construtora da
CETAL. Então, o amigo conseguiu para mim, eu fui
trabalhar lá. Naquela época, já tava fora de Mata-
ripe, já tava desempregado e com alguma dificul-
dade de sobreviver. O amigo mim arranjou. Fui lá
pra fazer andaime pra CETAL. Primeiro dia, eu já
via com tanta dificuldade para sobreviver. O amigo
botou na CETAL, botou o cartão para eu marcar
o ponto. Eu botei o cartão lá, oito horas do dia,
quando voltei uma hora, o cartão não ta mais no
ponto.
Tinha aquele indivíduo que só faz perseguição
ao trabalhador. Tiraram o meu cartão do ponto
e levou para o diretor da Fábrica, naquela época
chamava doutor Magalhães, que era realmente o
dono da unidade. Então, o cara chamava De Bam-
bão, foi delegado de polícia em Candeias. Chegou
lá, doutor Magalhães: aqui tem o agitador comu-
nista que não pode trabalhar aqui dentro [...] esse
81  - Palestra proferida pelo historiador Petrônio Domingues no VII Fórum Pró Igual-
dade Racial e Inclusão Social – UFRB/BA. Cachoeira, Bahia 21/11/2014.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 293

cara trabalhou lá, fiscal na área, criador de proble-


ma, ele jogava o diretor de uma empresa contra o
diretor de setor de comunicação [...] Aí quando eu
ia explicar as coisas ele tomava a frente e nunca
deixava explicar a doutor Magalhães.
[...]. Eu fugir para Cachoeira [...] vi pra aqui naquela
época escondido aqui, e a noite voltava pra Can-
deias. Eu morava em Mataripe, quando voltava de
Mataripe eu ficava dentro do mato escondido [...]
E assim foi vivendo [...].82

Demosthenes Soares Oliveira era na época carpinteiro na refina-


ria de Mataripe (BA), e foi eleito Vereador na cidade de Candeias (Ba).
Militante do PC do B, adepto da religião exotérica, nasceu em 21 de
novembro de 1923, filho do anarquista Alvino Emilio de Oliveira, na-
tural de São Félix (BA), e bisneto de Libanea de Carvalho, uma escrava
que carregava saco de sal nos navios, e que foi comprada por um padre
para tomar conta da Fazenda Nossa Senhora do Rosário, em Cachoeira
(BA). No seu depoimento, Demosthenes afirma que, na década de 1970
ou nas décadas anteriores, não havia preconceito, racismo e nem dis-
criminação racial com os trabalhadores negros.
[...] na minha época, não tinha preconceito con-
tra o homem negro não. O trabalhador negro, ele
tinha o seu valor, tinha liderança, fazia o máximo
possível, mesmo porque tinha o cidadão chamado
Osvaldo Marques, era uma liderança pesada. [...]
Osvaldo Marques era o negão forte, não tinha pre-
conceito não. Foi diretor nosso. Osvaldo Marques
era o tesoureiro nosso, era suplente de tesoureiro,
tudo isso aí. Sincero, honesto, tinha pulso, dizia
quero isso e era isso mesmo, não tinha nada disso,
preconceito não tinha não83 (Informação verbal).
Isso denota, nas palavras do depoente, que, para os sindicalistas,
o problema não era racial, mas de classe, demostrando a visão domi-
nante entre a maioria dos grupos marxistas na época. Desta forma, po-
de-se destacar também, nas palavras de seu “Demó”, a prevalência da
82  - Entrevista realizada com Demosthenes Soares Oliveira. Cachoeira, Bahia
24/1/2016.
83  - Entrevista realizada com Demosthenes Soares de Oliveira. Cachoeira, Bahia
24/1/2016.
294 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

ideologia da democracia racial como elemento fundamental para evitar


discussões e conflitos de cunho étnico racial, além de se constituir um
projeto da nação brasileira, sustentado pela miscigenação, e pelo “con-
vívio harmônico” entre brancos, negros e índios.
Apesar da impossibilidade de participar da vida política de seu
país, vários grupos de oposição passaram a se organizar de forma clan-
destina, através da luta armada. Assim, muitos opositores do regime rea-
lizaram ações, que iam desde sequestros até participação em guerrilhas,
planejamento de assaltos a bancos e pilhagens de armas. Essas estraté-
gias serviam como mecanismos desestabilizadores ao sistema operante.
Em Salvador (BA), os militantes do movimento negro se reuniam
em espaços de organizações que tinham certas afinidades ideológicas,
como, por exemplo, o Instituto dos Arquitetos do Brasil84. Mesmo assim,
sempre que os militantes saíam das reuniões, eram costumeiramente
vigiados e seguidos pelos agentes da Polícia. Esse foi um momento
muito tenso para quem militou entre todo o período da década 1970 e
início da década de 1980. Foram muitas perseguições, monitoramento,
fotografias feitas até mesmo, por negros e negras que os agentes da
Polícia utilizavam para se infiltrar em eventos organizados pelas en-
tidades afro. Esse monitoramento é referido concomitantemente no
depoimento de Gilberto Leal: “[...] quando a gente começou a fazer as
primeiras caminhadas é [...] da consciência negra, nós não consegui-
mos passar da Piedade porque muita violência, os cães da Polícia es-
tavam sempre colocados para evitar a nossa continuidade nas massas
e tal [...]85.
Geralmente, essas reuniões eram clandestinas, podendo ocorrer
em vários bairros da cidade, sem uma prévia convocação. Às vezes,
nem acontecia, em virtude da perseguição imposta aos militantes. Era
discutida, nas reuniões, a situação subumana do negro e a necessidade
de uma organização política forte, com o suporte para fazer o enfrenta-
84  - O Instituto dos Arquitetos da Bahia foi o terceiro Sindicato de Arquiteto a insta-
lar-se no Brasil. A sua primeira diretoria foi constituída em 17 de maio de 1973, tendo
como Presidente Pasqualino Magnavita.
85  - Entrevista realizada com Gilberto Leal. Salvador, Bahia 17/10/2015.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 295

mento direto ao Estado. Outra pauta das reuniões era como os negros
poderiam se inserir na sociedade e no processo político de retomada
da construção da democracia.
O fato do aprisionamento envolvendo os militantes negros da
cidade de Salvador (BA) ocorreu mediante uma ação contra a política
brasileira de apoio ao governo racista da África do Sul. Contrapondo a
uma agência de viagem, que queria implantar um pacote de turismo
para esse país, esses ativistas negros, dentre eles João Jorge Santos
Rodrigues86 e Gilberto Leal, foram até a empresa para, simbolicamente,
demonstrar seu repúdio, sendo reprimidos pela Polícia Federal. Gilber-
to Leal conta, em seu depoimento, esse episódio:
[...] e nesse momento nós fomos presos e tal e
colocaram o grupo dentro do ônibus e nos leva-
ram a Polícia Federal. Bom, ter ido lá, realmente
passamos por um constrangimento por uma sé-
rie de questionamentos, mas, não durou mais do
que vinte quatro horas essa prisão. Então, nós não
passamos por tortura física, passamos apenas por
torturas psicológicas [...].87

Esse fato demonstra que a ideologia da democracia racial era


preponderante no Brasil, e que fazia parte do projeto político da nação.
Mostrada para o mundo como um exemplo de convivência pacífica e
cordial, camuflando a existência do racismo.
Com relação à harmonia racial, o historiador Jacques d’Adesky
assim coloca:
Nesse contexto, o racismo torna-se um tema de
discussão pouco desenvolvido. E quando abor-
dado em conversas é geralmente, estigmatizado
por um conjunto de representações, ideias forma-
das pela convicção da unidade fundamental do
povo brasileiro e da história incruenta do Brasil
(D’ADESKY, 2009, p. 174-175).

86  - João Jorge Santos Rodrigues militante negro e um dos fundadores do MNUCDR/
BA. Atualmente é Presidente do Grupo Cultural Olodum fundado em 1979, com sede
própria na Rua Gregório de Matos, 22 – Pelourinho/Salvador – Bahia – Brasil.
87  - Entrevista realizada com Gilberto Leal. Salvador, Bahia 17/10/2015.
296 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Por conseguinte, no contexto internacional na década de 1970, o


mundo assistia a inúmeras transformações, tanto politicamente quanto
culturalmente. Época da Guerra Fria, conflito ideológico entre as duas
superpotências mundiais, Estados Unidos, capitalista e a União Sovié-
tica, socialista, iniciado após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945),
e que perdurou até 1991, com o fim da União Soviética. Verificou-se,
nessa fase, a descolonização dos países asiáticos e africanos. Na cul-
tura, o destaque é para os movimentos norte-americanos Black Soul88,
Black is Beautiful, Black Power, influenciando o surgimento de vários
bailes-soul no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Segundo o historiador Alessandro Moura de Amorim,
Essas referências, de acordo com a forma e a inten-
sidade de atuação dos movimentos sociais negros,
passam, cada vez mais, a fazer parte de uma gra-
mática identitária negra, onde possíveis diferenças
fenotípicas, psíquicas e comportamentais, caracteri-
zadoras dessa nova negritude emergente dos anos
70, são valorizadas (2011, p. 95).

Entretanto, o movimento negro brasileiro passa a utilizar ele-


mentos culturais como instrumento político de protesto contra o pre-
conceito e a discriminação racial, como esclarece Hanchard: “[...] usar
a prática e a produção cultural como princípios organizadores contra
a opressão racial e como instrumento para a construção e exercício de
identidades próprias [...]” (2001, p. 55).
Se o país vivenciava o período de repressão política, era necessá-
rio o meio que viabilizasse o protesto, as reivindicações do homem e da
mulher negra, e, evidentemente o caminho possível foi a construção da

88  - De acordo com Michael George Hanchard “na época em que recebeu cobertura da
mídia, no fim da década de 1970, o Black Soul foi criticado pelo governo militar – que
procurou invocar a ideologia cada vez mais falida da democracia racial – e pelas elites ci-
vis que se opunham à ditadura, mas que, apesar disso, acreditavam que os expoentes do
Black Soul estavam fomentando o ódio e o conflito raciais. Os dois setores viam o Black
Soul como um fenômeno que precisava ser controlado.
Por ser independente das definições da elite branca sobre a “brasilidade” nacional e a
prática cultural afro-brasileira, e também por resistir à apropriação pelas elites brancas, o
Black Soul foi objeto de críticas e, por fim, de repressão [...] (HANCHARD, 2001, p. 137).
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 297

cultura afro-brasileira, através da dança, da música, das indumentárias,


e de outros tipos de artífices criados e recriados na diáspora89. Segundo
o historiador Petrônio Domingues,
[...] essa tendência pode ser denominada de cele-
bração da negritude, uma afirmação racial e essen-
cialista, que se consolidou na última década. Uma
expressão emblemática dessa política é a postura
dos grupos afros da Bahia, procurando celebrar a
negritude não só pelo viés musical, mas, através
do corpo, estilo, comportamento, dança estética,
enfim, por símbolos artísticos e artefatos culturais.
Nessa visão a superação do racismo na sociedade
passa pelo reencontro do afro-brasileiro com sua
identidade étnica.90

Na Bahia, desenvolveu-se uma corrente política “culturalista”,


que apoiava mais uma proposta de ação, com base na formação de
uma entidade comunitária coletiva e difusão da cultura de matrizes
africanas, e também na construção de fontes de renda para tirar os ne-
gros da pobreza, do subemprego, através da atividade cultural. Estava
muito ligada ao turismo, colocando a música afro como símbolo do
povo. As relações dos membros das entidades culturais com as organi-
zações partidárias, revelam a complexa rede política e a dinâmica das
relações entre os grupos de cor, no Brasil.
Assim, ao mesmo tempo em que a cultura serviu como instru-
mento de visibilidade do negro brasileiro, também contribuiu para for-
mar uma consciência cidadã e racial junto ao Estado.

89  - De acordo com a historiadora Gabriela Cordeiro Buscácio “A música se torna,


portanto, um instrumento de uma cultura política negra e suas relações sociais, funda-
mentais na compreensão do mundo do Atlântico Negro. A especificidade da música
negra no contexto da diáspora é que ela conseguiu desde a escravidão representar um
universo de auto-afirmação étnica e de autenticidade racial que serviu como aglutina-
dora através da vinculação dos negros numa terra estranha, quanto para a manutenção
da própria existência (BUSCÁCIO 2005, p. 38). Ver também PIRES, Antonio Liberac C.
Simões. “Associações dos homens de cor”. Belo Horizonte, Daliana, 2006.
90  - Palestra proferida pelo historiador Petrônio Domingues no VII Fórum Pró Igual-
dade Racial e Inclusão Social UFRB/BA. Cachoeira, Bahia 21/11/2014.
298 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Considerações finais
O caminho percorrido para chegar a conclusão dessa pesquisa
ao longo desses dois anos, fez-se através de entrevistas com vinte dois
integrantes de entidades negras oriundas da cidade de Salvador e do
interior do Estado da Bahia, a partir de questionários fechados e poste-
riormente questões abertas.
Com base nas análises do discurso dos entrevistados, foi possível
identificar uma rede de relações, pautadas na luta e no embate político
do segmento de cor, como estratégia de engajamento social dos mili-
tantes, para fundamentar a construção do movimento negro na cidade
de Salvador na década de 1970.
Durante o regime militar, a ideologia da democracia racial foi
soberana e qualquer discussão que fosse contrária a essa ideologia era
vista como “subversiva”, “perniciosas” e os seus propagadores consi-
derados comunistas ou desestabilizadores do sistema vigente. Desta
forma, o regime valeu-se de órgãos repressores para intimidar os mili-
tantes negros, que usaram de estratégias para denunciar e contraditar
essa ideologia. Essas estratégias poderiam ser feitas através da dança,
dos tambores, das indumentárias, da música, ou, de forma mais direta,
por meio de um discurso político de esquerda.
Assim, mesmo sob a repressão da ditadura militar e prevalecen-
do a ideologia da democracia racial como projeto étnico da nação bra-
sileira, a partir de 1978, com a “abertura política”, “lenta” e “gradual”,
várias entidades negras começam a se rearticular em âmbito nacional,
formando uma frente mais acirrada de luta contra o racismo.
Dessa maneira, os negros passaram a se engajar em uma dinâmi-
ca que permitiu a organização de grupos diversificados sob uma agen-
da unificada, como forma de sistematizar seus anseios, suas reivindica-
ções, na luta pela cidadania.
E o grito negro, aos poucos, foi sendo escutado, mesmo sob uma
forte resistência do Estado brasileiro em reconhecer a dívida que do-
ravante tem com os afrodescendentes. Dívida histórica, pautada em
centenas de anos de escravidão, cujo legado causou diferenças sociais
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 299

e econômicas mantidas pelas relações de poder entre os grupos sociais


na contemporaneidade. Aspectos verificados nas condições materiais
de existência da população negra.

Referências

AMORIM, Alessandro Moura de. MNU representa Zumbi (1970-


2005): cultura histórica, movimento negro e ensino de história.
Dissertação (Mestrado em História). João Pessoa: UFPA, 2011.

BUSCÁCIO, Gabriela Cordeiro. “A chama não se apagou”. Candeia


e a grand Quilombo – Movimentos negros e escola de samba nos
anos 70. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense
UFF, 2005.

D’ADESKY, Jacques. Pluralismo étnico e multiculturalismo: racismo


e anti-racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2009.

DOMINGUES, Petrônio. Palestra proferida no dia 21 de novembro


de 2014 no VII Fórum Pró Igualdade Racial e Inclusão Social,
realizada no Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL), Univer-
sidade Federal do Recôncavo da Bahia, 2014.

GOMBATA, Marsílea. Como a ditadura perseguiu militantes ne-


gros. Revista Carta Capital, edição 867, São paulo 2015.

HANCHARD, Michael George. Orfeu e o poder: o movimento negro


no Rio de Janeiro e São Paulo (1945-1988). Rio de Janeiro: EdUERJ,
2001.

HASENBALG, Carlos; GONZALES, Lélia. Lugar de negro. Editora Mar-


co Zero Ltda. Rio de Janeiro, 1982.

LEAL, Gilberto. Entrevista, em 17/10/2014.

OLIVEIRA, Demosthenes Soares. Entrevista, em 24/01/2016.


300 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

PEREIRA, Amilcar Araujo. O mundo negro: relações raciais e a


constituição do movimento contemporâneo no Brasil. Rio de Janeiro:
Pallas, FAPERJ, 2013.

PIRES. Antonio Liberac Cardoso Simões Pires. As Associações dos


Homens de Cor e a Imprensa Negra Paulista. Belo Horizonte,
Daliana, 2006.

SANTOS, Ivair Augusto Alves dos. O movimento negro e o Estado


(1983-1987) – O caso do Conselho de Participação e Desenvolvi-
mento da Comunidade Negra no Governo de São Paulo. Dissertação
de Mestrado em Ciências Políticas, Departamento de Ciências Polí-
ticas do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Estadual de Campinas. São Paulo, 2001.
Professores formados pelo
programa UNIAFRO - UFRB

Danilo Fé Silva
Antônio Liberac Cardoso Simões Pires

Introdução
Passados alguns anos desde a promulgação da Lei 10.639/03, que
tornou obrigatório o ensino da história da África e da Cultura Afro-bra-
sileira nas escolas da educação básica, e da Lei 11.645/08, que incluiu
o ensino da história indígena, ainda estejamos tratando do processo
de implementação destas normas. É bem verdade que esse campo de
atuação profissional sofreu reformulações ao longo dos últimos anos,
passando por diagnóstico e formulação de medidas e produtos. Porém,
ainda há muito que fazer, principalmente, no que concerne ao desen-
volvimento de possíveis aplicações do conhecimento construído em
artefatos acessíveis aos profissionais da educação.
Os estudos apresentados nesse campo, no contexto de discussão
da legislação e de seus primeiros anos de existência, dedicaram-se ao
levantamento dos grandes desafios que acompanhariam a plena efeti-
vação das normas legais. Estudos como o de Reginaldo (2002) denun-
ciaram a inadequação dos materiais didáticos, existentes à época, com
uma perspectiva de educação antirracista apontaram a necessidade de
mudanças na produção desses meios. Já trabalhos como o de Santana
(2008) apontou a necessidade de se superar um modelo de forma-
ção docente baseado na monoculturalidade e sua substituição por um
modelo baseado na multiculturalidade como um processo necessário
a efetivação da Lei 10.639/03. Outro campo de estudos que se esta-
beleceu deu conta de analisar as implicações da observância que a lei
traria no restante do currículo, nesse sentido podemos citar o trabalho
de Silva (2008). Também houve estudos como o de Rocha (2006) que
302 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

alertaram que a plena efetivação da Lei só seria possível mediante a


proposição de políticas públicas que lhe dessem apoio.
Com o tempo, após a comunidade científica ter levantado os de-
safios que acompanhavam a implementação da Lei, foi-se percebendo
a necessidade da elaboração de estudos que se desenvolvessem no
sentido da elaboração de produtos acadêmicos que dessem suporte
aos diversos profissionais de educação em suas atividades concernen-
tes ao desenvolvimento de práticas educacionais antirracistas. Nesse
sentido, podemos citar o Museu Virtual da Bata do Feijão (SOUZA, E.:
2017), o Museu Virtual do Quilombo do Cabula (MARTINS; SILVA; MAT-
TA, 2017) e do o livro paradidático de Souza (2017) como exemplos.
Nesse trabalho, que se configura como uma versão resumida de
nosso produto de mestrado, estudaremos o Programa UNIAFRO: Curso
de Especialização em História da África, da Cultura Negra e do Negro
do Brasil, uma ação de pesquisa e extensão desenvolvida pelo Núcleo
de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia (NEAB), entre os anos de 2012 e 2014 com apoio de Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Minis-
tério da Educação do Brasil (SECADI). Essa ação teve três eixos de de-
senvolvimento: um curso de especialização lato sensu, voltado ao pes-
soal docente em atuação em escolas públicas do Recôncavo da Bahia;
a organização de eventos acadêmicos visando a discussão dos temas
relacionados às leis 10.639/03 e 11.645/08 e a publicação de coleção de
livros voltados a História da África e cultura Afro-brasileira e indígena
Assim, procuraremos contribuir com o debate educacional e com
o processo de elaboração de políticas públicas voltadas a implementa-
ção das leis 10.639/03 e 11.645/08 apresentando o perfil socioeconô-
mico-cultural dos profissionais formandos no curso e algumas leituras
de mundo, que esses sujeitos formulavam, acerca dos processos de
implementação das leis 10.639/03 e 11.645/08 em seus ambientes de
trabalho, à época da pesquisa que foi defendida em meados de 2016.
Visando o desenvolvimento desse problema, realizamos a aplica-
ção de um formulário de pesquisa (survey) com os docentes formados
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 303

pelo programa. O mesmo tratava principalmente de suas trajetórias


profissionais e dos impactos da experiência formativa nela. Também fi-
zemos a análise dos documentos que formataram o programa, como os
editais e outros documentos administrativos aos quais tivemos acesso.
Por fim, nós entrevistamos alguns dos professores formados no curso a
fim de dirimir questões pontuais. Dessa forma, elaboramos o mosaico
que nos permitiu acessar alguns dos elementos que essa comunidade
de aprendizagem elegeu peças-chave à perenização dos impactos do
programa nos seus contextos educacionais.

Resultados e discussão
Estudando a documentação institucional encontramos que o ob-
jetivo do curso de especialização foi:
Fomentar a oferta de capacitação e formação ini-
cial e continuada, presencial, de professores, pro-
fissionais, funcionários e gestores da educação
básica na área de ensino de história e cultura indí-
gena, afro-brasileira e africana, bem como contri-
buir para o desenvolvimento de estudos e pesqui-
sas voltadas para a melhoria da formação.91

O processo seletivo para o ingresso no curso ocorreu no mês de


novembro de 2012, sendo ofertadas 150 vagas. A comissão que condu-
ziu o certame foi composta por membros do NEA e representantes das
secretárias de educação dos municípios envolvidos. O edital do pro-
cesso seletivo para o preenchimento das vagas previa uma bonificação
para os docentes que exerciam suas atividades na área diretamente
relacionada a temática do curso e para aqueles que comprovassem
filiação a entidades ligadas ao movimento negro. Tendo-se em vistas
aumentar a capilaridade do programa também buscou-se selecionar,
“na medida do possível”, pelo menos um professor de cada município
do Recôncavo da Bahia.

91  - NEAB-UFRB. Projeto do Curso de Especialização em História da África, da Cultu-


ra Negra e do Negro no Brasil, 2008.
304 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

O cronograma do curso, inicialmente, previa que as atividades


durariam entre março e novembro de 2013, porém, a incidência de gre-
ves dos docentes universitários nesse período comprometeu substan-
cialmente essa programação e as atividades tiveram que ser alongadas
até novembro de 2014.
A carga horária do curso foi de 544 horas, distribuídas em dez
disciplinas: Literatura e Conceitos, Métodos e Metodologia do Ensino
Superior, Geografia e Pré-História da África, África I, África II, África III
e Escravidão I, Escravidão II e III, Comunidades Negras Rurais e Cultura
Negra. Movimentos Negros I e Movimentos Negros II, Raça e Gênero,
Raça e Educação, Seminário e TCC. Cada uma dessas disciplinas pos-
suía uma carga horária de 51 horas. O curso se desenvolveu a partir de
dois polos, um localizado na cidade de Cachoeira e outro na cidade
de Amargosa, utilizando-se das estruturas da própria UFRB.O finan-
ciamento da ação ocorreu através do Programa UNIAFRO, da SECADI.
Através dele, contou-se com um orçamento de R$ 504.000,00.
Uma dificuldade relatada pela equipe executora do programa,
quanto a política orçamentária, decorreu da impossibilidade de paga-
mento de bolsas para os docentes formadores, conforme as regras da
SECADI vigentes naquele período. Como o curso ocorreu em dois po-
los, os profissionais tinham que executar deslocamentos intermunici-
pais que decorriam em gastos sem ressarcimento institucional.
O curso de especialização formou 132 profissionais. A análise do
formulário que aplicamos nos permitiu traçar perfis socioeconômico-
-culturais desses sujeitos, verificamos que a maioria deles se declarou
de cor negra, do gênero feminino e com idade entre 36 e 50 anos.
Também prevaleceu o número de profissionais que eram casados, prin-
cipais provedores de suas famílias e com renda variando entre um e
três salários-mínimos.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 305

Gráfico 1: Participação de docentes formados pelo Programa UNIAFRO Curso de


Especialização em História da África, da Cultura Negra e do Negro no Brasil por
município.

A maioria dos docentes formados pelo programa foi oriunda dos


municípios do Recôncavo da Bahia, algo natural, considerando que o
foco da ação se debruçava nesse território. Os municípios que tiveram
mais profissionais inscritos foram Cruz da Almas e Santo Amaro, com
25. Em seguida veio Mutuípe, com 20 Cachoeira e Brejões tiveram 6,
Amargosa e São Francisco do Conde tiveram 5, Ubaíra teve 4, São Félix
teve 3, Maragogipe e São Miguel das Matas tiveram 2 cada uma. Por
fim, as cidades de Governador Mangabeira, Santo Antônio de Jesus,
Saubara, Milagres, Camaçari, Terra Nova, Cabaceiras do Paraguaçu,
Castro Alves, Jaguaripe e Salvador tiveram um profissional formado
cada uma.
Entre os professores formados pela ação, a maioria (98) declarou
trabalhar na rede municipal, 22 declararam trabalhar na rede estadual
e 3 declararam trabalhar na educação privada. A forte presença de ser-
vidores vinculados as redes municipais de ensino já era esperada visto
que uma estratégia de captação de público adotada pela equipe exe-
cutora do Programa foram as parcerias com as secretarias municipais
de educação.
306 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

O corpo de professores formados distribuía-se por várias dis-


ciplinas, a saber: Artes (22), Biologia (8), Educação Física (9), Religião
(1), Filosofia (12), Matemática (18), Física (2), Química (2), Geografia
(40), Sociologia (15), Línguas Estrangeiras (9), Educação Física (9),
História (62), Língua Portuguesa (36), Libras (1) Ética e Cidadania (1),
Cultura Baiana (1) e Turismo (1). Ressalte-se que a maioria absoluta
dos professores ministrava mais de uma disciplina, as vezes com com-
binações bastantes peculiares como o caso de um deles que assumia
turmas de História, Geografia, Sociologia, Filosofia, Português, Artes
e Educação Física.
A maior parte dos professores (78) atuava no ensino fundamen-
tal em seus dois níveis, sendo 31 nos primeiros anos e 47 nos últimos
anos. No ensino médio atuavam outros 15 professores e 13 trabalha-
vam na educação infantil e alfabetização. Houve ainda 19 profissionais
que declararam trabalhar na coordenação pedagógica e outros 19 que
trabalhavam em outras atividades administrativas. 2 matriculados no
curso declararam não serem profissionais da educação e uma declarou
lecionar no ensino superior.
A maioria entre os 116 docentes que responderam ao item rela-
cionado a demanda semanal de trabalho declarou cumprir carga ho-
rária entre quarenta e cinquenta e nove horas, 20 declararam cumprir
entre vinte e trinta e nove horas, 11 declararam cumprir carga horária
de até 20 horas e outros 7 declararam cumprir uma jornada de trabalho
semanal superior a 60 horas.
A questão referente a filiação ao sindicato dos professores foi
respondida por 103 docentes, destes, 63 declararam manterem-se filia-
dos ao sindicato dos professores enquanto que 40 não possuíam esse
vínculo. Quando ao nível de participação nas atividades sindicais, 42
declararam apenas ocasionalmente frequentar assembleias e fóruns da
entidade, 26 declaram participar ativamente das atividades e apenas 5
têm uma participação efetiva no sindicato chegando a ocupar cargos e
funções. O número dos que estão totalmente alheios a atividade sindi-
cal foi de 23 docentes.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 307

Foram poucos os docentes que declararam ter tido algum tipo


de atuação nos movimentos negros, 11, entre os 105 respondentes,
enquanto que 94 declararam jamais ter tido qualquer tipo de militância
nos movimentos negros. Em relação a atuação em outros movimentos
sociais, poucos docentes declararam ter tido alguma experiência, entre
estes, a maioria, 27, declarou já ter participado de movimento estu-
dantil. Também houve quem declarasse já ter atuado no movimento
das mulheres (4), no movimento sem-terra (1) e nos movimentos dos
sem teto (3). Quanto a filiação ao partido político 102 responderam a
questão, sendo que 18 declararam possuir tal vínculo e outros 84, não.
Entre os 116 respondentes que se manifestaram acerca da ques-
tão relacionada as suas trajetórias acadêmicas 79 declararam já possuir
um curso de especialização, 1 declarou estar, naquele momento, fre-
quentando um curso de mestrado e apenas 36 declararam que aquela
era a primeira experiência na pós-graduação.
Quanto as motivações para o ingresso no curso, dos 112 que
responderam a questão relacionada a esse tema, 75 declararam fazê-
-lo em busca de aprimoramento profissional, 45 declararam interesse
acadêmico, 32 interesse financeiro, 10 declararam-se interessados no
curso em virtude da relação que este estabelecia com a sua militância,
atuação política ou história de vida e 2 alegaram outros motivos.
Outro fator que, no nosso entender, exemplifica o esforço dos
docentes em aprimoramento profissional foi o fato de a maioria de-
les ter declarado não ter recebido apoio dos órgãos empregadores no
cumprimento das atividades do curso. Conforme já demonstramos, eles
eram oriundos de municípios que espalhavam por todo o Recôncavo
e era de se esperar, visto que o programa foi formulado em parceria
com as secretarias de educação, que os poderes públicos assumissem,
ao menos, o transporte dos docentes, porém, apenas 26, entre 117 res-
pondentes, declararam ter recebido algum tipo de apoio, 4 declararam
ter recebido apoio parcial e a grande maioria (91), declarou não ter
recebido nenhum tipo de apoio.
308 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

A maioria dos docentes formados no curso podem ser classifica-


dos como experientes no magistério. Entre os 121 que responderam ao
item relacionado ao tempo de exercício da docência 31 declararam ter
entre 16 e 20 anos na atividade, 28 declararam ter entre 11 e 15 anos,
23 entre 21 e 25 anos, 12 entre 6 e 10 anos, 11 mais de 25 anos, 7 entre
6 e 5 anos, 3 menos de 3 anos e 6 declararam não exercer o magistério.
A partir dessas observações nos interessamos em compreender o
pertencimento étnico dos alunos destes professores, por esse motivo,
questionamos os docentes os grupos de cor que estavam represen-
tados em suas salas de aula. A questão que permitia a assinalação de
mais de um item apontou os seguintes resultados. Quase a totalidade
(99) dos respondentes declarou possuir alunos majoritariamente ne-
gros, 13 declararam ter alunos que identificavam como amarelos, 11
como brancos, 1 como indígenas e 2 assinalaram o campo “outros”.
A presença do racismo na escola foi percebida pelos docentes
formados pelo programa. Quase a metade deles, 46 entre 102 respon-
dentes, declarou que já tinham testemunhado algum episódio de ra-
cismo na escola. É interessante observar que as respostas dos docentes
a esse item variaram conforme as suas declarações de cor. Professores
autodeclarados pretos relataram ter presenciado casos de racismo em
número maior do que os que se declararam pardos e estes mais do que
os que se declararam brancos.
Quase a metade dos professores, 46 entre 98 respondentes, de-
clarou considerar que as Lei 10.639/03 e 11.645/08 não foram efetiva-
mente implementadas nos colégios nos quais lecionavam, o que con-
sideramos um número bastante insatisfatório. Conforme relatos dos
docentes as principais medidas de implementação das normas em suas
redes de ensino são atividades de formação continuada docente, como
cursos, palestras e oficinas. Apenas 5 professores relataram ações de
reformulação dos projetos políticos pedagógicos de suas escolas no
sentido de abarcar a educação para as relações étnico-raciais. Alguns
professores afirmaram que suas escolas estão provendo a inclusão de
disciplinas como Cultura Baiana, Educação Étnico-racial.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 309

Entre o grupo de professores que estudamos, apenas pouco mais


do que a metade, 48 entre 92 respondentes, declarou que seus alunos
tinham a disposição materiais didáticos de qualidade no que concer-
nia ao estudo da história da África e da cultura afro-brasileira. E mais
preocupante ainda: quando questionamos alguns professores acerca
das estratégias que utilizavam a fim de contornar as limitações dos
materiais didáticos quase todos respondiam com silêncio. O mesmo
silêncio se apresentou quando questionamos os professores para, de
memória, citarem os materiais didáticos que utilizavam para trabalhar
as temáticas relacionadas as Leis 10.639/03 e 11.645/08.
No processo de seleção dos docentes que seriam aceitos no cur-
so de especialização a equipe gestora procurou captar profissionais
cujo perfil sugeriria que pudessem atuar como multiplicadores dos co-
nhecimentos adquiridos no curso em suas escolas. Dessa maneira pre-
tendia-se ampliar capilaridade da proposta atingido um número maior
de docentes. Nesse ponto a ação parece ter tido sucesso pleno, pois,
92 entre 102 docentes declararam atuar pela sensibilização seus cole-
gas pela adoção de práticas educacionais antirracistas. Positivo, tam-
bém, foi que 51 entre 95 professores declarou participar de discussões
e debates nos âmbitos da escola e da rede de ensino sobre a educação
para as relações étnico-raciais.
Questionamos os docentes formados quanto a segurança que ti-
nham para abordar as seguintes temáticas relacionas às Leis 10.369/03
e 11.645/08 com seus alunos em sala de aula: História da África, His-
tória dos Povos Indígenas, Religiões Afro-brasileiras, Cultura Negra,
Resistência Negra e Movimentos Negros, Escravidão Negra no Brasil,
Racismo e Antirracismo, Gênero e Raça. Para cada um dos temas os
professores poderiam assinalar uma das respostas que seguem: “não
consigo desenvolver essa temática”, “abordo essa temática com difi-
culdades” ou “sinto-me seguro para abordar essa temática”. Em to-
das as temáticas mais da metade dos respondentes declarou sentir-se
absolutamente segura para trabalhar com os conteúdos relacionados
no ambiente escolar o que demonstra um grau considerável grau de
sucesso do Programa em sua proposta formativa.
310 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Considerações finais
Consideramos relevantes os impactos do Programa UNIAFRO:
Curso de Especialização em História da África, da Cultura Negra e do
Negro no Brasil. Por ele passaram 136 professores que atuavam em
92 colégios do Recôncavo Baiano. O sucesso do curso que pode ser
demonstrado através desses números, deve-se a dedicação dos pro-
fessores formados que deixaram suas casas nos fins de semana a fim
de buscar conhecimentos acerca da História da África e da Cultura
Afro-brasileira. Esses profissionais, que trabalham em cargas horárias
extensas, muitas vezes em mais de um município, recebendo salários
incompatíveis com seus esforços e formação mostraram-se exempla-
res. E, quando falamos dos professores, devemos sempre ter em mente
que se tratam, na realidade, em sua maioria, de professoras, professo-
ras negras! Também devemos destacar o compromisso de uma equipe
executora que sem condições perfeitas de trabalho tocou essa propos-
ta formativa de modo bastante profissional.
A discussão da negritude que esteve bem presente nesse esforço
formativo. No nosso entender um dos principais méritos do curso foi
contribuir com o processo de formação desses profissionais como ele-
mentos de valorização da cultura negra, o que tem se manifestado em
suas escolas, na forma de ações multiplicadoras buscando a efetivação
de uma educação que combata o racismo e lute por relações étnico-ra-
ciais saudáveis e tolerantes no ambiente escolar.
Os impactos que se espera de um curso formulado dentro de uma
proposta temporal de média duração, nos parece ter iniciado de forma
positiva as ações de multiplicação do conhecimento. Os professores
passaram a criar mecanismo de ensino variados, materiais didáticos es-
pecializados, dirigidos a determinadas faixas etárias, séries, turmas se-
riadas; o campo de invenções é imenso e intenso. O que o curso de
especialização se propunha a oferecer, esteve voltado a uma formação
que propiciasse a invenção, a criatividade, a segurança de identidade, e
a consciência transformadora. A formação dos profissionais foi diversi-
ficada, frente a imensidão de informações oferecidas para profissionais
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 311

de diversas idades, quase todas mulheres negras. A transformação es-


tava pautada na questão da construção da consciência profissional e no
papel social dos professores que atuam nas salas de aulas das escolas
municipais, estaduais e privadas. O impacto esperado esteve relaciona-
do a formação teórica e a estrutura de pensamento que os alunos, em
sua maioria professore e professoras das redes de ensino Básico, adqui-
riram no decorre de horas aulas; discutindo conteúdos como geografia
africana, período colonial e pós-colonial em África, escravidão no Brasil,
resistência negra. Cultura negra nas Américas, arqueologia africana e
indígena, aspectos históricos dos movimentos negros, organizações das
mulheres negras. Tudo isso, no encontro com profissionais que atuam
em diversas áreas de conhecimento: historiadores, antropólogos, geó-
grafos, arqueólogos, músicos, atores, poetas, literatos, líderes de asso-
ciações artísticas, religiosas, quilombolas, indígenas.

Referências

MARTINS, Luciana Conceição Almeida; SILVA, Francisca de Paula San-


tos da; MATTA, Alfredo Eurico Rodrigues. Museu Virtual Quilombo
Cabula: educação dialógica para o turismo de base comunitária.
Revista da FAEEBA-Educação e Contemporaneidade, v. 27, n. 52, p.
44-59, 2018.

REGINALDO, L. Vagas informações, fortes impressões: A África


nos livros didáticos de história. Humanas (Feira de Santana), Feira de
Santana, v. 1, n.2, p. 99-121, 2002.

ROCHA, Luiz Carlos Paixão. Políticas afirmativas e educação: a lei


10639/03 no contexto das políticas educacionais no Brasil contem-
porâneo. 2006. 125f. 2006. Tese de Doutorado. Programa de Pós-
-Graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba.

SANTANA, Marise de. Educação e culturas: trabalho docente com


os PCN e a lei 10639/2003. Publicatio UEPG: Ciências Sociais Aplica-
das, v. 16, n. 1, 2008.
312 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

SILVA, Iraneide Soares da. As inquietações no currículo educa-


cional a partir da lei 10639/03. Padê: Estudos em filosofia, raça,
gênero e direitos humanos (encerrada), v. 1, n. 2, 2008.

SOUZA, E. Bata do feijão: da roça para a escola: Museu Virtual da


Bata do Feijão. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da
Bahia. Departamento de Educação. Campus I. Programa de Pós-Gra-
duação em Educação e Contemporaneidade - PPGEDUC, 2017.

SOUZA, R. O Cabelo que dava volta ao mundo – livro infantil


e subsídios metodológicos para contação de histórias. Paradi-
dáticos LEHRB, 2017. Disponível em https://www3.ufrb.edu.br/
lehrb/2017/07/04/cabelo-volta-mundo/. Acesso 25/05/2020.
Sobre os autores

Andersen Kubnhavn Figueirêdo:


Mestre em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas
pela UFRB. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
Mestrado Profissional em História da África, da Diáspora e dos Povos
Indígenas (UFRB), em 2016.

Andrea de Carvalho Moreira:


Mestra em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas
pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e professora da
Educação Básica.

Antônio Liberac Cardoso Simões Pires:


Professor Titular de História da Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia (UFRB). Coordenador do Mestrado Profissional em História da
África, da Diáspora e dos Povos Indígenas, do Centro de Humanida-
des. Artes e Letras da UFRB, líder do Núcleo de Estudos Afro-brasilei-
ros do Recôncavo (NEAB-UFRB). Doutor em História pela UNICAMP.

Antônio Marcos dos Santos Cajé:


Mestre em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas
pela Universidade Federal do Recôncavo - UFRB. Professor e Escritor
das Obras: Afrocontos: Ler e ouvir para transformar pela Quarteto
editora; Igbo e as princesas; Amali e sua história pela editora Mon-
drongo; Zula a guerreira pela editora Metanoia; Ara o menino trovão
pela Metanoia.

Bárbara Santana Nogueira:


Licenciada em História pela Faculdade São Bento da Bahia, Pedagoga
pela Faculdade FAEL e Mestra em História da África da Diáspora e dos
Povos Indígenas na UFRB. Autora do Livro Amali e sua História, e atual-
mente professora na rede pública e privada.
314 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Claudio Orlando Costa Nascimento:


Professor Associado, UFRB-CECULT, Docente Permanente MPHADPI
(CAHL/UFRB).

Danilo Fé Silva:
Mestre em História formado no Mestrado em História da África, da
Diáspora e dos Povos Indígenas pela Universidade Federal do Re-
côncavo da Bahia. Atua como Técnico em Assuntos Educacionais no
Laboratório de Ensino de História da Universidade Federal do Recôn-
cavo da Bahia e como Professor de História na Rede Municipal de
Feira de Santana.

Delmaci Ribeiro de Jesus:


Prof. de História e diretor do Colégio Estadual Maria Isabel de Melo
Góes, com vinculo efetivo na Secretaria de Educação do Estado da
Bahia. Mestre em História da África, da Diáspora e dos Povos Indí-
genas, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Especialista em
Educação Científica e Popularização das Ciências (2015) Instituto Fe-
deral de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano. Graduado em História
pela Universidade do Estado da Bahia (2007).

Emanuel Luís Roque Soares:
Professor Associado II, da UFRB/CFP, professor do mestrado pro-
fissional em História da África UFRB. Ph.D. em educação UFC/FA-
CED/2019, Ph.D. em Educação UFPB/FACED/2012, doutorado UFC/
FACED/2008, mestrado UFBA/FACED/2004, especialização UFBA/
FACED/2001. Bel em Filosofia UCSAL/1999.

Eliane Fátima Boa Morte do Carmo:


Doutoranda em Educação pela Universidade Federal da Bahia, Mes-
tre em História da África da Diáspora e dos Povos Indígenas pela
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, especialista em Histó-
ria e História e Cultura Afro Brasileira e Indígena – IFBAIANO, gradu-
ação em Pedagogia pela Universidade Federal da Bahia.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 315

Fabricio Lyrio Santos:


Professor do curso de Licenciatura em História e do Mestrado em
História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas da Universida-
de Federal do Recôncavo da Bahia. Doutor em História pela Universi-
dade Federal da Bahia.

Flávio Márcio Cerqueira do Sacramento:


Egresso da turma de 2014 do programa de Mestrado Profissional
com ênfase na História da África, Diáspora e Povos Indígenas pela
UFRB. Atualmente é doutorando em História Social pela UFBA,
desenvolvendo pesquisas sobre os rastros do movimento rebelde
baiano de 1798 que se espalharam pelo Recôncavo.

Franklim da Silva Peixinho:


Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais (UMSA), Mestre em História
da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas, Mestre em Gestão de
Políticas Públicas e Segurança Social, ambos pela UFRB, pós-gradu-
ado em História e Cultura no Brasil. É bacharel em Direito e possui
Licenciatura em História. Integra o Grupo de Pesquisa História e
Memória da Educação Brasileira (HIMEB/UFRB).

Frederico da Luz Santana Filho:


Mestre em História da África das Diásporas e dos Povos Indígenas
(UFRB).

Girlandio Gomes Bomfim:


Graduado em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia
(2008); Pós-graduado em Pedagogia Social na Faculdade Vasco da
Gama (2012) e em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça
pela Universidade Federal da Bahia (2014). Mestre em História da
África da Diáspora e dos Povos Indígenas pela Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia (2017).
316 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

Jardelina Garcia Santana:


Graduada em Pedagogia, no Centro de Formação de Professores
da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, (UFRB/CFP), 2014.
Pós-graduada em Psicopedagogia Clinica e Institucional, pela Facul-
dade Dom Alberto, 2020. Mestra em História da África das Diásporas
e dos Povos Indígenas pela Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia. Centro de Artes, Humanidades e Letras, 2016.

João de Deus Fonseca Junior:


Mestre em História da África das Diásporas e dos Povos Indígenas
(UFRB).

Juvenal de Carvalho Conceição:


Professor de História da África, UFRB/CAHL. Leciona na Graduação
em História. Docente Permanente MPHADPI (CAHL/UFRB). Doutor em
História (PUC – SP), Mestre em História (UFBA), Bacharel e Licenciado em
História (UFBA). Coordena o grupo de pesquisa África em Pauta. Vice coor-
denador do MPHADPI.

Leandro Antônio de Almeida:


Historiador, Bacharel, Licenciado, Mestre e Doutor em História Social
pela FFLCH/USP. Realizou entre 2017 e 2019 estágio pós-doutoral
junto ao grupo de Pesquisa Humor e História da USP. Professor do
curso de Licenciatura em História do Centro de Artes, Humanidades
e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e
professor permanente do Mestrado Profissional em História da Áfri-
ca, da Diáspora e dos Povos Indígenas. Coordenador do Grupo de
Pesquisa Roda de Histórias (https://www.rodahistorias.pro.br/).

Leodinéia da Costa Reis:


Graduada em Relações Internacionais pela FIB, Mestre em História
da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas pela Universidade Fe-
deral do Recôncavo da Bahia – UFRB.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 317

Lilian Soares:
Mestra em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas.
Pós-Graduanda: em Formação Pedagógica de Docentes para a
Educação Profissional de Nível Médio e em Educação Profissional
integrada à Educação Básica na modalidade de Jovens e Adultos.
Graduada em: Pedagogia com habilitação em Gestão Escolar, Educa-
ção Infantil e Séries Iniciais. Professora de Educação Infantil e Ensino
Fundamental I.

Luciana da Cruz Brito:


Professora do curso de História da UFRB, professora do Mestrado
em História da África, da Diáspora e dos povos Indígenas da UFRB.
Doutora em História pela Universidade de São Paulo, pós-doutora
em História da Diáspora Negra pela City University of New York. É
autora de diversos artigos e do livro "Temor da África: segurança,
legislação e população africana na Bahia oitocentista", que recebeu
o prêmio Thomas Skidmore em 2019.

Marilene Martins dos santos: Mestra em História da África, da Di-


áspora e dos Povos Indígenas UFRB. Licenciada em Letras com Inglês
UNEB, Especialização em Estudos Linguísticos e Literários UFBA, em
Língua Portuguesa e Ensino de Gramática – UNB e em Estudos de
África, da Diáspora e Indígenas UFRB.

Railma dos Santos Souza:


Doutoranda em História (UFBA). Mestra em História da África, da Diáspo-
ra e dos Povos Indígenas, defendendo a dissertação Memórias e História
Quilombola: Experiência Negra em Matinha dos Pretos e Candeal (Feira de
Santana/BA ), UFRB, 2016. Licenciada em História (UEFS/2013).

Rita de Cassia Pereira Dias de Jesus:


Professora Associada, UFRB- CECULT Docente Permanente MPHADPI
(CAHL/UFRB). Doutora em Educação (2007-UFBA). Mestra em Educa-
318 Emanoel Luís Roque Soares (Org.) et.al.

ção (2001- UFBA). Pós-graduada em Direitos Humanos (UNEB-M-


PBa). Graduada em Direito (1993-UCSAL) e Pedagogia (1997- UFBA).
Tutora do Programa de Educação Tutorial. Foi Pró-Reitora de ações
Afirmativas e de Graduação na UFRB.

Rosy de Oliveira:
Professora Associada II, UFRB-CCAAB. Docente Permanente do Mes-
trado Profissional Em Gestão de Políticas Públicas e Segurança Social
do CCAAB-UFRB e do MPHADPI (CAHL-UFRB). Vice coordenadora do
NEAB-UFRB. Doutora em Antropologia Cultural (UFRJ e Faculdade
de Antropologia da Universidade de Coimbra), Mestra em Ciência
Política (UNICAMP).

Solyane Silveira Lima:


Docente do Centro de Artes, Humanidades e Letras–CAHL/UFRB, do
quadro permanente do Mestrado Profissional em História da África,
da Diáspora e dos Povos Indígenas–UFRB. Doutora em Educação
pela Universidade Federal de Minas Gerais. Líder do Grupo de Pes-
quisa HIMEB (História e Memória da Educação Brasileira/UFRB).

Tamires Conceição Costa:


Mestra em História da África, da Diáspora e dos povos Indígenas e
Licenciada em História pela Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia. Também graduada em Pedagogia (FAEL). Integrou o Programa
de Educação Tutorial (PET-UFRB). Idealizou e coordenou o Projeto:
Caminhadas Patrimoniais Passos da Independência da Bahia em
Cachoeira.

Tamires Santos Teles:


Licenciada em História e Mestra em História da África, da Diáspora
e dos Povos Indígenas pela Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia.
Encruzilhadas entre história e educação na diáspora 319

Thaia Conceição Porto:


É mestra pelo Mestrado em História da África, da Diáspora e dos
Povos Indígenas pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e
possui graduação em História pela Universidade Estadual de Feira de
Santana. Atualmente é Técnica em Assuntos Educacionais da Universi-
dade Federal do Recôncavo da Bahia.

Walter da Silva Fraga Júnior:


Professor Adjunto da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia-
-UFRB. Licenciado (1988) e Mestre (1994) em História pela UFBA.
Doutor (2004) em História pela UNICAMP. Em 2010, recebeu o Jabuti
de melhor Paradidático com a obra Uma História da Cultura Afro-
-brasileira. O livro Encruzilhadas da Liberdade foi eleito, pela Ame-
rican Historical Association, como o melhor de história da América
Latina.
Aquilombamento acadêmico é a melhor definição para este livro, por
valorizar os conhecimentos das culturas africanas, afrodescendente
e indígenas, sempre vistos como menores e menos importantes no
meio acadêmico brasileiro. É fruto do trabalho acadêmico-militante de
docentes (orientadores/as e coautores/as) e mestrandos/as (autores/
as) do Mestrado Profissional em História da África, da Diáspora
e dos Povos Indígenas (PPGMPHADI) da Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia (UFRB). Assemelha-se a um quilombo
quando reúne, em uma só célula, os saberes diaspóricos, afro-
brasileiros, africanos e indígenas no Brasil, narrando, descrevendo e
ensinando através de produtos acadêmicos e pedagógicos, os quais
necessariamente não obedecem a uma epistemologia do Ocidente.

ISBN: 978-65-87743-39-4

Você também pode gostar