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Resgate da Mística na liturgia a

partir do Concílio Vaticano II1

Prof. Dr. Pe. Valeriano dos Santos Costa*

Resumo Abstract
Este estudo é desenvolvido em This study is developed in four
quatro partes. A primeira parte define parts. The first part defines what is
o que é mística, enquanto experiência mystical, while paschal experience that
pascal que extasiava as comunidades enraptured the primitive communities
primitivas e que, de certa forma, se and that, of certain form, it lodged in
alojou nas apologias e bênçãos da the apologies and blessings of the
Idade Média. A segunda parte trata Middle Age. The second part deals
da rígida uniformidade que se insta- with the rigid uniformity that has taken
lou na liturgia a partir do Concílio de place in the liturgy since the Council of
Trento, prejudicando a entrega ritual Trent, hampering the delivery ritual that
que a mística extática exige. A terceira requires the mystical ecstatic. The third
aborda o Movimento Litúrgico como a deals with the Liturgical Movement as
fonte do resgate da mística na liturgia. the source of mystical redemption of
A quarta, por fim, trata do resgate da the liturgy. The fourth, finally comes
mística a partir do Concílio Vaticano to rescue of the mystique from the
II, mostrando que é uma mística que Vatican Council II, showing that it is a
leva à participação litúrgica ativa por- mystique that leads to active liturgical
que é de cunho extático. participation is because stamp ecstatic.
Palavras-chave: Mística, Mistério Key-words: Mystic, Paschal Mys-
Pascal, êxtase, participação ativa. tery, ecstasy, active participation.

1
Este texto foi preparado em vista de dois dias de conferência que o autor realizou sobre
o tema, no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA), em Belo Horizonte, nos dia 9 e 10 de
junho de 2009.
* Prof. Dr. Pe. Valeriano dos Santos Costa, Doutor em liturgia pelo Pontifício Ateneu Santo
Anselmo, Roma, professor e diretor titular na Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora
da Assunção da PUC-SP.

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Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II

Introdução

A Igreja Católica vive sob impacto de um dos maiores eventos de sua


história, que é o Concílio Vaticano II. No bojo deste evento, está a reforma
geral da liturgia, realizada logo no início, abrindo assim um caminho que
marcou todo o trajeto conciliar. Mais de quatro décadas passadas, é neces-
sário buscarmos nas fontes da própria reforma as luzes que nos ajudam a
compreender a grandeza dos avanços e o porquê das falhas em algumas
aplicações conciliares. Isso para que nos projetemos de forma lúcida e
perspicaz na aplicação do sonho que o Concílio representa. Este sonho
com certeza aponta para a mística, que na liturgia tem seu espaço mais
natural. A mística na liturgia foi espetacularmente resgatada pela Constituição
Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, mas não posta em prá-
tica como se esperava. O futuro está em nossas mãos e, como profetizou
Karl Rhaner, “o cristão do futuro ou será místico ou não será nada”.2 Jesus
Cristo é a presença de Deus, que deixou o cimo da montanha para habitar
conosco no vale da história, tornando-se Palavra para ser ouvida, Pão para
ser comido, Sangue para ser bebido, enfim, um Deus para ser conhecido,
amado, assimilado, seguido e cultuado na intimidade. Em outras palavras,
um Deus com o qual mantemos relações amorosas. Só um místico percebe
o alcance disso.

1. O que é mística

Antes de falarmos em resgate da mística a partir do Concílio Vaticano II,


convém definir o que é a mística, pois, como diz Paul Tillich, “é indesculpável
se um teólogo usa termos sem tê-los definido ou circunscrito”.3
É bom lembrar que “durante séculos foi impossível separar o concei-
to e o campo da mística do conjunto da teologia”.4 Somente a partir de
Bernardo de Claraval (1091-1153) é que o tratado da mística começa a
ter vida própria. Alguns séculos mais tarde, porém, o conceito de mística

2
Citado por COSTA, Valeriano Santos. Viver a ritualidade litúrgica como momento histórico da
salvação; a participação litúrgica segundo a Sacrosanctum Concilium. São Paulo: Paulinas,
2004, p. 14.
3
TILLICH, Paul. Teologia sistemática. São Leopoldo: Sinodal, 2000, p. 68.
4
HUOT DE LONGCHAMP, Max. Mística. In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de teo-
logia. São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004, p. 1161.

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perde toda a precisão desde que Rousseau (1712-1778) e os românticos


entenderam a mística como a dimensão irracional do fenômeno religioso. Aí
vemos a vertente iluminista da filosofia, que aprisionará a mística no porão
da ignorância. Nesta linha, a definição de religião por Schleiermacher como
“sentimento de dependência absoluta” levou os seus discípulos a situá-la no
reino do sentimento, como uma função psicológica qualquer. Isso provocou
o banimento da religião para a margem irracional das emoções subjetivas.
Tillich considera tal banimento uma inaceitável pena de morte para a religião.5
Usaremos, então, o sentido mais clássico da mística cristã, que consiste
numa nítida percepção de Deus por meio de uma profunda experiência do
Mistério de Cristo.6 As três palavras-chave para a compreensão do fenômeno
místico são, portanto: “experiência”, “mistério” e “Cristo”. Neste trinômio, o
que diferencia a mística do discurso teológico, por exemplo, é a “experiência”.
Então, para facilitar, usaremos o termo “mística” significando a “experiência”
da participação no mistério de Deus revelado em Jesus Cristo ou teologia
primeira, e o vocábulo “teologia” com o significado de “discurso metodológico
sobre esta experiência” ou teologia segunda.
Segundo o peregrino querúbico, obra prima de Angelus Silesius (1624-
1677),7 podemos também dizer que a mística é a capacidade de ver Deus

5
TILLICH, Teologia sistemática, cit., p. 23.
6
HUOT DE LONGCHAMP, Mística, cit., p. 1162.
7
Angelus Silesius (o Anjo da Silésia) é o nome com o qual Johannes Scheffer assina a sua
obra-prima, O Peregrino Querúbico. Nasceu em 1624, em Breslau, na Polônia. Nascido
em uma família luterana de posses, recebeu uma formação clássica. Estudou medicina em
Strasbourg, Leyde e Pádua. Doutor em filosofia e medicina, tornou-se médico do príncipe
de Öls, frequentando círculos místicos e ligando-se a Abraham von Franckenberg, discípulo
de Jacob Boehme. Foi luterano fervoroso até os 29 anos. Um ano após a morte de seu
mestre, Scheffler converteu-se ao catolicismo em 1653, tomando o nome de Angelus Si-
lesius. Passou a viver em retiro e silêncio durante três anos, e publicando vários poemas.
Ordenou-se padre em 1661, com 37 anos. Herdeiro da grande tradição de Eckhart e Tauler,
mas também de Boehme, Angelus Silesius lhes deu uma expressão poética ímpar, além de
qualquer formulação confessional. Deus é indefinível, ao mesmo tempo Tudo e Nada, Ser
e Nada. Diante de seu Criador, o homem não é nada e no entanto nele somente, que é “à
imagem de Deus”, este pode se contemplar. O homem deve assim abandonar-se totalmente,
esvaziar-se de si mesmo, para tornar-se aquilo que verdadeiramente é: um reflexo divino
e, deste modo, eterno. O Peregrino Querúbico influenciou muitos filósofos alemães, sendo
reconhecido como uma das formulações mais notáveis de uma mística que supera toda e
qualquer convenção. Cf. http;// coracaomistico. Blogspot.com/2007/12angelus-silesius.html;
VANNINI, M. Silésio, Ângelo. In: BORRIELO, L. et al. Dicionário de mística. São Paulo:
Loyola/Paulus, 2003, p. 970-971.

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Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II

agora: “Tu dizes que verás a Deus e a sua luz; estulto nunca o verás se
não o vê agora”.8 Então, a mística é a experiência da visão de Deus que se
dá na contingência da história, fundindo o sobrenatural e o mais íntimo do
ser humano nas profundezas misteriosas da intimidade homem-Deus, onde
o encontro se dá. Encontro que Agostinho afirma ser inútil buscar fora do
íntimo do homem, pois é lá que somos arrebatados e nos deixamos possuir
pela beleza divina. Daí brota a experiência da graça de forma sensível e
indizível, produzindo na alma a festa do encontro com Cristo. 9 Esta expe-
riência se dá, então, no âmbito do sagrado, mas não de um sagrado em
oposição ao profano e sim de um sagrado na perspectiva de A. Vergote,
como a experiência da dimensão mais profunda da existência, onde aparecem
o valor e o destino quase religioso da existência humana e do universo.10
Isso significa que todo ser humano tem uma propensão mística natural.
Desta forma, Karl Rahner entende pessoa humana como homo mysticus,
ser extático criado para confiar-se voluntária e amorosamente ao Mistério,
que se doa inteiramente e abraça a todos.11

2. A mística das comunidades primitivas

Para resgatar a mística que brota da reforma conciliar, convém resgatar


a mística das comunidades primitivas, onde o Concílio Vaticano II buscou
suas inspirações. Podemos destacar três características relevantes da mística
vivida, sobretudo, na liturgia das comunidades primitivas: era realmente uma
teologia primeira, tinha caráter extático e comunitário.
Era uma teologia primeira, porque o dado experiencial da fé já traz em
si uma compreensão da revelação antes de ser articulado metodologicamente
num discurso (teologia segunda). E, justamente, só é possível fazê-lo porque
se trata de uma compreensão nítida e luminosa, e não enigmática como
o sorriso da Mona Lisa. Por isso, mais do que explicar, a Igreja primitiva
se preocupava em celebrar a fé e aí perceber essa presença luminosa de

8
SILESIO, A. Il pelegrino cherubico. VI, 115, citado por DEL GENIO, M. R. Mística. In: BOR-
RIELO, Dicionário de mística, cit., p. 706.
9
Cf. HUOT DE LONGCHAMP, Mística, cit., p. 1162.
10
Cf. VERGOTE, A. Equivoques et articulations du sacré. In: CASTELLE, E (ed.). Le care;
études et recerches: actes du colloque internactionel de Rome. Paris: s.n., 1974, p. 471-492.
11
Cf. EGAN, H. D. Rahner Carl. In: BORRIELO et al., Dicionário de mística, cit., p. 907.

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Deus clareando os caminhos da vida. Era algo tão central, que podemos
situá-lo no que Tillich chama de preocupação última, aquilo que determina
nosso ser ou não ser.
O termo “ser” neste contexto não designa a existência no tem-
po e no espaço […], mas a totalidade da realidade humana,
a estrutura, o sentido e o alvo da existência. Tudo isso está
ameaçado, pode ser perdido ou salvo […]. O homem está
incondicionalmente preocupado com aquilo que condiciona o
ser para além de todas as condições nele e ao redor dele. O
homem está de forma última preocupado com aquilo que deter-
mina o seu destino último para além de todas as necessidades
e acidentes preliminares.12
Nesta dinâmica da articulação entre teologia primeira e teologia segunda,
a experiência de Deus em sua particular dinâmica celebrativa e o discurso
inerente estão entrelaçados. O exemplo mais claro vem dos Santos Padres,
que falavam de Deus com uma intelecção acurada de quem tinha uma pro-
funda experiência de Deus na dimensão celebrativa do Mistério. Conforme
Cesare Giraudo, isto faz parte de uma metodologia que marcou o primeiro
milênio, quando os teólogos “primeiro rezavam e depois criam, rezavam para
poder crer, rezavam para saber como e o que deviam crer”. 13 Porém, a
partir do segundo milênio, quando a teologia se torna uma obra da escola,
e a oração uma atividade circunscrita à igreja ou ao foro íntimo, também
houve a separação entre teologia e mística, de tal forma que o teólogo,
salvo honrosas exceções, foi para as universidades pesquisar e postular
seus discursos teológicos, enquanto o místico foi para o seu oratório rezar e
buscar caminhos de aplicar a santidade no dia a dia. Esta dicotomia causa
um enorme mal na Igreja, pois a fé, de cujo conteúdo a teologia constitui
uma explanação metódica, 14 é, antes de tudo, o deslumbramento diante de
Deus, a quem o crente se entrega confiantemente. Como diz Paul Tillich, o
teólogo, ao contrário de outros pesquisadores, não pode se distanciar do seu
objeto pesquisado, está envolvido nele numa atitude de comprometimento
com o conteúdo que expõe. O teólogo é determinado por sua fé.15 Então o

12
TILLICH, Teologia sistemática, cit., p. 22.
13
GIRAUDO, C. Redescobrindo a Eucaristia. São Paulo: Loyola, 2003, p. 10.
14
Cf. TILLICH, Teologia sistemática, cit., p. 33.
15
Cf. ibidem, p. 28-29.

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Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II

discurso teológico sem mística fica sem chão, e a mística sem o discurso
teológico fica sem ar.
A mística das comunidades primitivas tinha também um profundo cunho
extático, pois como diz M. R. Del Genio, “a mística cristã originariamente
não era esotérica, mas extática, e tem como fundamento Cristo morto e
ressuscitado”.16 Portanto, a mística não era uma experiência reservada a
uns poucos iluminados, mas a todos os que se deixavam extasiar pela pelo
mistério de Cristo. O encontro com Jesus arrebatou gente de todas as cama-
das sociais do Império Romano e forjou uma situação que o império teve de
assimilar. Mas era na reunião litúrgica dominical que a mística manifestava o
seu auge. Era aí que se vivia o êxtase, isto é, o encantamento experimentado
no mergulho do mistério pascal propiciado por uma liturgia que tinha sinais
da liturgia celestial. Por isso é muito provável que, diante dos tormentos do
martírio, os que estavam para serem sacrificados por Cristo encontrassem
força sobrenatural cantando hinos litúrgicos. E também podemos afirmar: os
que viviam esta experiência extática na liturgia jamais deixaram de celebrar
sua fé regularmente, enquanto os que a perdiam desestimulavam-se; daí a
necessidade da insistência pastoral em relação à frequência na liturgia, o
que já aparece na Carta aos Hebreus: “Empenhemo-nos, portanto, por entrar
nesse repouso, para que este exemplo de indocilidade não leve ninguém a
cair” (Hb 4,11). Cabe já antecipar que este caráter da mística na liturgia foi
resgatado pelo Concílio Vaticano II.
Por fim, a mística das comunidades primitivas tinha também um in-
tenso caráter comunitário, pois, “além disso, desde o início ela assume a
conotação eclesial, expressa principalmente pelo monaquismo”.17 Na primeira
hora, o fato mais contundente e documentado se deu no início do século
IV, lá pelo ano 304, quando, mais ou menos, quarenta cristãos da Abitínia
(Tunísia), enquanto celebravam a Eucaristia, foram presos pelos soldados do
imperador Dioclesiano. Resistindo ao interrogatório, foram todos martirizados,
legando-nos uma das páginas mais belas do testemunho cristão, que vale
como um testamento místico:
O primeiro dos mártires torturados, Télica, gritou: “Somos cristãos. Por
isso, nos reunimos” […]. Vitória, uma das cristãs, declarou: “Tudo o que eu

16
DEL GENIO, Mística, cit., p. 708.
17
Ibidem.

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fiz, eu o fiz espontaneamente e por minha própria vontade. Sim eu participei


da reunião e celebrei os mistérios do Senhor com meus irmãos porque sou
cristã”. O presbítero Saturnino, experimentando as torturas em seu corpo,
foi levado diante do procônsul, que lhe disse: “Você agiu contra as ordens
dos imperadores, reunindo esta gente”. Saturnino, cheio do Espírito, res-
pondeu ao procônsul: “Simplesmente celebramos o dia do Senhor, porque
a celebração do dia do Senhor não pode ser omitida” […]. Um outro cristão,
de nome Emérito, levantou-se dizendo: “Eu sou o responsável, porque as
reuniões foram celebradas em minha casa. E o fizemos porque o dia do
Senhor não pode ser omitido […]”. O procônsul perguntou-lhe: “Em sua casa
fizeram essas reuniões? Por que você os deixou entrar? Porque são meus
irmãos e não podia proibi-los […], pois nós não podemos viver sem celebrar
o mistério do Senhor”.18
Os mártires da Abitínia preferiram morrer a renunciar ao direito e dever
de participar das reuniões litúrgicas, porque sabiam que não podiam viver
de forma isolada a mística que lhes dava o sentido desta vida e a garan-
tia da vida eterna. Em outras palavras, não existe mística na liturgia sem
identidade eclesial.
Era esta mística que o Vaticano II precisava resgatar na liturgia: uma
mística que funciona como a primeira leitura teológica da revelação e que
proporciona o êxtase diante do Mistério celebrado, engajando solidamente o
fiel na comunidade eclesial. Uma mística assim não aplica os esforços pas-
torais em obrigar os fiéis a participarem da liturgia, mas inicia-lhes na fé, de
tal forma que se encantem com a liturgia e amadureçam para a participação
ativa e autodeterminativa, tornando-se eles mesmos missionários que envolvem
os outros nessa mesma experiência fundante da fé. É, portanto, uma mística
que faz da celebração da fé uma resposta ao Cristo, que, quando se reuniu
com seus Apóstolos para a ceia, disse-lhes: “desejei ardentemente comer
esta páscoa convosco, antes de sofrer” (Lc 22,15). O antes de sofrer tem
um sentido testemunhal que representa o desafio da missão. Isso descarta
totalmente uma teologia da prosperidade, que faz da liturgia um trampolim
para o enriquecimento material ou qualquer tipo de “oba-oba”. Jesus Cristo
foi muito claro com os Apóstolos a esse respeito e não deixou de dizer em
forma de experiência mística ao Apóstolo Paulo quanto ele devia sofrer em

18
Cf. Acta de los mártires, p. 75 (BAC 75).

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Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II

sua missão: “Eu mesmo lhe mostrarei quanto lhe é preciso sofrer em favor
do meu nome” (At 9,15). Portanto, só é capaz de enfrentar os desafios da
missão, o que muitas se traduzem em sofrimentos e angústias, quem sabe
se maravilhar diante da contemplação do Mistério que a liturgia possibilita.
Para falar do resgate desta mística pelo Concílio Vaticano II, convém ir
à fonte onde ele começou, que é o Movimento litúrgico. Mas antes vamos
dizer umas palavras sobre o Concílio de Trento e a consequente uniformi-
zação da liturgia.

3. Trento e a mística da uniformidade?

Sabemos que quando Lutero, no século XVI, pôs à luz questões fun-
damentais sobre a Igreja e sua liturgia, havia um ambiente desfavorável ao
diálogo, tanto na Igreja como na sociedade politicamente fragmentada. Nesse
clima, uma discussão sensata pode facilmente degenerar em anarquia. Era
preciso um Concílio forte que o impedisse. Esse concílio foi o Concílio de
Trento.
A reação do Concílio de Trento, na sua grandeza histórica, foi dema-
siadamente preocupada com o controle de tal anarquia e a universalidade
dogmática da Igreja e, por isso, instaurou e universalizou um formalismo
litúrgico rígido para a celebração dos sacramentos da fé. Desta feita, a
Liturgia era essencialmente pautada pela uniformidade ritual, que acabou
sendo mais importante do que a experiência do Mistério. O presbítero que
celebrava “direitinho” e, por isso era considerado piedoso, era aquele que
cumpria todas as rubricas com perfeição. Como consequência, surgiu, então,
a rubricística, que era a disciplina teológica que ensinava de modo científico
as rubricas. Foi esta disciplina que dominou a formação litúrgica do clero.
Perguntamo-nos como se situaria São Felipe Neri (1515-1595), que
viveu a maior parte do seu ministério antes da reforma de Trento. São Fe-
lipe Neri, quando celebrava a Missa, tinha frequentes êxtases. Conforme o
tempo que dispunha para a Missa sem povo, às vezes uma manhã inteira,
combinava com o sacristão que num determinado horário o tirasse do êxtase
para terminar a Missa. Quando celebrava com a comunidade, o sacristão
colocava ao lado do missal um livro de histórias cômicas que aconteceram
com um tal Padre Arlotto. Ao sentir que o êxtase se aproximava, Filipe Neri
lia algumas pequenas histórias, ria, saía do estado místico que o levaria ao

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êxtase e terminava a celebração. As pessoas nem se davam conta, pois


a missa, antes do Concílio Vaticano II, não era versus populum. Conta-se
também que era comum que dois coroinhas o puxassem-no para baixo, para
continuar a missa. Portanto,
a uniformidade rígida que conhecemos hoje na liturgia romana
é um fenômeno relativamente recente, pois data do século XVI,
tendo como causas próximas a descoberta da imprensa e a
reforma do Concílio de Trento. Em toda a Idade Média há uma
imensa variedade nas cerimônias religiosas, de tal modo que
não é fácil encontrar dois livros litúrgicos exatamente iguais, a
não ser evidentemente dentro da mesma tradição local.19

4. Movimento Litúrgico e o resgate da mística

Querendo ou não, a rubricística transfere o foco da celebração litúrgica


para a validade jurídica da administração dos sacramentos e força a liturgia a
se acomodar mais no campo da técnica do que da mística. Então, a liturgia
perde o seu encantamento e passa a ser uma tarefa de obrigação religiosa,
que, uma vez cumprida, libera o fiel para aquelas tarefas que lhe dão prazer
e alegria. Essa perda de alegria pascal que só a liturgia pode oferecer era um
elemento fundamental que precisava ser resgatado. Aí, então começa a ser
gestado o Movimento Litúrgico, com a grandiosa figura de Abade Próspero
Guéranger (1805-1875). Este homem apaixonado por Deus e pela liturgia
da Igreja foi um farol que brilhou na noite escura de sua Abadia, Solesmes,
que, por sua vez, representava a decadência da liturgia da Igreja. Solesmes
estava ruindo por fora e por dentro, pois tanto o prédio como a comunidade
estava caindo. A reforma que Dom Guéranger empreendeu teria parecido um
ato de loucura se não fosse um ato de fé.20 Foi a descoberta das riquezas

19
BRAGANÇA, J. O. Liturgia e espiritualidade na Idade Média. Lisboa: Universidade Católica,
2008, p. 62.
20
“Nul ne peut se douter qu’une grande oeuvre commence. Tout est humble et misérable : les
bâtiments délabrés, la petite communauté sans argent, sans éclat pour attirer les vocations
et surtout sans expérience de la vie monastique. Son supérieur de vingt-huit ans n’en a
lui-même qu’une connaissance théorique. L’entreprise paraît un acte de folie, si elle n’est
un acte de foi”: http:/www.abbaeydesolesme.fr/FRhistoire/queranger.php?js=1 — Acesso em
10/05/2009.

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Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II

espirituais e teológicas da liturgia romana que o ajudou a descobrir um novo


horizonte na Igreja e na vida monástica.
O Abade Guéranger fez um copioso trabalho literário para mostrar sua
descoberta em torno das riquezas espirituais e teológicas da liturgia romana.
Isto está estampado em sua obra científica Institutions liturgiques21 e no seu
precioso trabalho de cunho menos científico e mais de divulgação, L’Année
liturgique.22 Mostrando a grandeza espiritual desta liturgia, Guéranger propõe
a volta à liturgia romana pura como fonte de espiritualidade e de experiência
de Deus. Propõe, na verdade, uma “restauração” da liturgia romana dos
séculos IV a VII, não ainda uma reforma.
Ao descobrir as riquezas teológicas e espirituais da liturgia romana,
Guéranger descobriu as riquezas da liturgia da Igreja. Isso foi também a
“descoberta do mistério da Igreja, por meio da experiência espiritual desta
mesma liturgia e da leitura assídua dos padres, artífices das primeiras formas
litúrgicas romanas”. 23
O mais importante em tudo isso é que Guéranger
aprendeu também, com a própria liturgia e com os próprios
padres, o que considerou a chave da compreensão dos textos
bíblicos e ações simbólicas do culto da Igreja: a leitura cristã
do Antigo Testamento e do Novo Testamento com o apoio do
Antigo.24
Como consequência, a Abadia de Solesmes passou a apresentar a
liturgia mais rica da França, atraindo frequentemente centenas de pessoas.
Era uma liturgia esteticamente perfeita, uma lição de beleza e fé. Até hoje
os CDs da liturgia gregoriana de Solesmes são cobiçados. Paralelamente a
isso, a comunidade adquiriu um vigor que perdura até hoje. Dá para ima-
ginar como os meios financeiros foram aparecendo para restaurar o prédio
que estava ruindo.

21
Institutions liturgiques. IV. Paris, 1878-1885.
22
L’Année ligurgique. IV. Burgos, 1954-1956.
23
GOENAGA, J. A. Vida litúrgico-sacramental da Igreja e sua evolução histórica. In: BOROBIO,
D. A celebração na Igreja. V. 1. Liturgia e sacramentologia fundamental. São Paulo: Loyola,
1990, p. 127.
24
Ibidem, p. 127.

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Prof. Dr. Pe. Valeriano dos Santos Costa

As críticas a Guéranger por ter instaurado um esteticismo litúrgico em


Solesmes são injustas, pois a beleza é fundamental para fazer o aporte para
Deus, e a experiência de cunho místico que uma liturgia assim proporciona
desqualificada a crítica. Tratava-se antes de tudo da interiorização do culto
da Igreja, que não vivia seu melhor momento naquela época.
A segunda grande figura do Movimento Litúrgico foi Dom Lambert Be-
auduin (1873-1960), monge beneditino da Abadia de Mont-César, Leuven.
Foi homem de ação e não um pesquisador. Escritor famoso que deu con-
tinuidade à obra iniciada por Dom Guéranger, ao mesmo tempo em que a
desenvolveu. Quis inspirar a piedade e a vida cristã no culto da Igreja, pro-
moveu a participação dos batizados na liturgia. Com Dom Lambert, começa
já um movimento de reforma litúrgica e não simplesmente de restauração.
Porém, a ciência litúrgica conquista seu lugar, e a reflexão da mística
na liturgia ganha o seu status com os albores da Abadia de Maria Laach,
sobretudo com a grande figura de Odo Casel (1886-1948). Segundo o Abade
Salvatore Marsili, OSB, (1910-1983): “O mistério pascal ocupou e dirigiu toda
a sua pesquisa e toda a sua vida, até marcar também a sua morte. Com
efeito, ele morreu na Páscoa de 1948, quando entoava o ‘precônio pascal‘
Exultent divina misericórdia”.25 No entanto, Juan Javier Flores afirma: “No dia
28 de março de 1948, sofreu um infarto enquanto estava entoando o Lumen
Christi da vigília pascal, e morreu na manhã de Páscoa”. 26
Foi a teologia do mistério que envolveu a vida deste grande homem
dedicado totalmente à pesquisa da liturgia da Igreja e descobriu nela o
“mistério” que faz das nossas celebrações uma experiência profundamente
mística. O privilégio de morrer na Páscoa sela de forma especial nosso
nascimento para Deus e nos configura ao Ressuscitado, que nos preenche
com sua presença e seu amor já na liturgia terrena. Odo Casel27 recupera
aquilo que na Igreja antiga era natural, isto é, a presença memorial da obra
salvífica de Cristo em seus mistérios.28 É justamente daí que o Vaticano II
vai recuperar a mística na liturgia, mediante a qual sentimos e somos de

25
MARSILI, S. Teologia da celebração da eucaristia. In: AA.VV. A. A Eucaristia; teologia e
história da celebração. São Paulo: Paulinas, 1986, p. 60, nota de rodapé n. 60.
26
FLORES, X. Introdução à teologia litúrgica. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 162.
27
Está para ser lançado o livro O mistério do culto no cristianismo, pela Loyola.
28
Cf. MARSILI, Teologia da celebração da eucaristia, cit., p. 61, citando na p. 61 BETZ, J.
Die Eucharistie in der griechischen Väter. I/1, Friburgo, 1955, p. 247.

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Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II

fato atingidos pela mesma salvação que se manifestava na comunidade


apostólica. É essa mística que nos faz perceber a presença viva do Ressus-
citado interagindo com a assembleia e com cada participante do começo ao
fim da liturgia, como interagiu na liturgia dos discípulos de Emaús. Naquela
Eucaristia dominical narrada por Lucas, o relato é tão plástico que nos
faz sentir caminhando com eles e sentados à mesa para a fração do pão.
Isso nos leva a pensar também que na mística da comunidade primitiva,
auxiliada por uma liturgia onde reinavam a fé e o essencial, e nada faltava
desse essencial, todos em volta da mesa sagrada, olhando-se como irmãos,
depois que terminava a celebração, era possível que um perguntasse ao
outro: “Você sentiu o mesmo que eu senti?”. O outro respondia: “Se você
está falando da presença dele aqui entre nós, confesso que senti. Sim, eu
a senti tão intensa como nos velhos tempos”.
Mais uma grande contribuição para a compreensão e a vivência da
mística litúrgica vem de Romano Guardini (1885-1968). Em sua obra O es-
pírito da liturgia,29 publicada no Brasil em 1942, Guardini mostra a dimensão
lúdica da liturgia, baseada em Pr 8,30-31: “Eu estava junto com ele como o
mestre de obras, eu era o seu encanto todos os dias, todo o tempo brincava
em sua presença: brincava na superfície da terra, e me alegrava com os
homens”. A intuição genial de Guardini foi ver nestas palavras, justamente,
a ação da liturgia, uma liturgia que encanta a Deus e alegra o coração dos
homens. A partir daí, Guardini vai mais longe: compara a liturgia com a
brincadeira de meninos, que brincam pelo prazer de brincar.30 Uma liturgia
que dá prazer a Deus e ao coração humano não pode ser uma ação rígi-
da. Toda ação pedagógica que não tenha como finalidade a liturgia em si
desqualifica nossas celebrações, porque indica motivações que transformam
a liturgia numa espécie de trabalho em vista de algum interesse específico.
Uma liturgia assim não tem êxtase nem pentecostes. Diz Guardini:
Tal é a magnífica realização que a liturgia nos oferece: arte
e realidade unidas na infância sobrenatural diante da face de
Deus. Aquilo que até agora só encontrávamos […] no mundo
da representação artística, a saber, as formas da arte como
expressão da vida humana plenamente consciente, tornou-se

29
GUARDINI, R. O espírito da liturgia. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1942.
30
Ibidem, p. 82.

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Prof. Dr. Pe. Valeriano dos Santos Costa

aqui realidade. Mas esta vida tem algo de comum com a da


criança e a da arte: é livre de finalidade, embora plena do mais
profundo sentido. Não é trabalho, mas jogo.31
Então, com Romano Guardini está recuperada a ideia de liturgia como
um ato que dá prazer e nos envolve na alegria que o mistério pascal trouxe
para a humanidade.
Esse também deveria ser o espírito que norteasse um concílio que
viesse a ser celebrado na Igreja. Justamente foi este espírito que João XXIII
imprimiu ao Concílio Ecumênico Vaticano II: espírito de aprofundamento tanto
da doutrina cristã católica como da forma de enunciá-la em nosso tempo,
mas, diante do erro, com o uso da misericórdia em vez da severidade. Para
isto, convinha mostrar a validez da doutrina em vez renovar condenações.32
Por isso a Igreja Católica devia “mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna,
paciente, cheia de misericórdia e bondade”.33

5.  O resgate da mística na liturgia a partir


do Vaticano II

Coube por designo de Deus que o primeiro texto discutido e aprovado


pelo Concílio Vaticano II fosse a Constituição Sacrosanctum Concilium sobre
a Sagrada Liturgia. E quem lê o discurso de abertura de João XXIII e, em
seguida, o proêmio da Sacrosanctum Concilium, parece estar lendo um texto
em continuação, como o Evangelho de Lucas e os Atos dos Apóstolos: “O
sagrado Concílio, propondo-se fomentar sempre mais a vida cristã entre os
fiéis […], julga ser sua obrigação ocupar-se de modo particular também da
reforma e do incremento da liturgia”.34
A mística, enquanto nítida percepção de Deus, por meio de uma parti-
cular experiência do Mistério de Cristo, é resgatada pelo Concílio Vaticano II
e por documentos posteriores em duas vertentes. A primeira é a assimilação

31
Ibidem, p. 83-84.
32
Cf. JOÃO XXIII, Discurso na abertura solene do Concilio. In: Documentos do Concílio Ecu-
mênico Vaticano II (1962-1965). São Paulo: Paulus, 1997, p. 28.
33
Ibidem, p. 29.
34
SC 1.

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Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II

das teses centrais do Movimento Litúrgico, e a segunda é a assimilação do


espírito que João XXIII imprimiu ao Concílio.
As teses centrais do Movimento Litúrgico são encontradas na volta à
liturgia com sua beleza essencial (Guéranger), na teologia do Mistério que
opera a redenção (Odo Casel), no espírito lúdico que conduz a ação litúrgica
à contemplação do Mistério (Guardini) e no enfoque teológico da pastoral
litúrgica (Beauduin).
A postura de João XXIII abre possibilidade para a mística renascer
na liturgia, na medida em que intui uma concepção de Igreja que a Sacro-
sanctum Concilium chama de “Corpo Místico de Cristo” 35 e “Sacramento de
Salvação”,36 expressões que depois a Lumen Gentium vai aprofundar. Pelo
fato mesmo de ‑ no capítulo áureo, que é o primeiro capítulo, onde se ex-
plicita a natureza da liturgia ‑, antes de dizer o que é liturgia, a SC procurar
dizer o que é Igreja, são estabelecidas as bases para o renascimento da
mística na liturgia; pois ecclesia, no seu sentido primitivo, era um conceito
litúrgico, já que tinha a ver a com a reunião litúrgica da comunidade. Os
mártires da Abitínia preferiram morrer a renunciar ao direito e dever de par-
ticipar de tais reuniões, porque bem sabiam que, se o fizessem, perderiam
a identidade eclesial, tamanha é a importância do lugar que a liturgia ocupa
na Igreja. Lugar que é definido como “cume para o qual se dirige a ação
da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte donde emana a sua força”.37 Então
a Igreja, que é uma comunidade mística, porque nela tudo está orientado
para o transcendente […]; “de tal modo que nela o humano é orientado ao
divino, o visível ao invisível, a ação à contemplação, a realidade presente
à futura cidade para a qual estamos caminhando”;38 enquanto sacramento
que brota do lado de Cristo perfurado na cruz, dá continuidade à obra da
redenção, “especialmente pelo mistério pascal de sua sagrada paixão, res-
surreição dos mortos e gloriosa ascensão”,39 mistério que é essencialmente
celebrado na liturgia.

35
SC 7; LG 7.
36
SC 2.
37
SC 10.
38
SC 2.
39
SC 7.

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O Concílio deveria, portanto, mostrar a profundidade da liturgia e


sua importância como obra salvífica aplicada em nosso tempo, em vez de
emitir normas rígidas 40e renovar condenações. Já era hora de mostrar que
se participa da liturgia não por obrigação, mas pelo prazer do encontro
com o Ressuscitado, que nos diz hoje: “Desejei ardentemente comer esta
páscoa antes de sofrer” (Lc 22,15). Então, por meio da liturgia, a Igreja
generosamente oferece o que ela tem de melhor, que é a salvação em
Cristo: “Eu não tenho ouro nem prata, mas dou-te aquilo que tenho: em
nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda” (At 3,6).
Neste ponto, a SC faz uma fantástica recuperação da sacramenta-
lidade da liturgia, quando afirma sem rodeios a presença de Cristo nas
ações litúrgicas.41 Isso significa que do início ao fim da liturgia o Cristo
é o Ator invisível que dá vida a todos os sinais sensíveis com os quais
a liturgia simboliza e exerce a função sacerdotal de Jesus envolvendo
todo o corpo místico, isto é, o Cristo Cabeça e a assembleia litúrgica.42 Aí
acontece a comunhão entre a liturgia celeste protagonizada por Cristo e a
liturgia terrestre celebrada sacramentalmente pela humanidade, cabendo
sempre a iniciativa à Cabeça, que é Cristo, e não a nós.43 Esta imagem
da liturgia celeste realizando-se na liturgia terrestre coroa a sacramenta-
lidade da liturgia; pois permite em todos os sinais simbólicos da liturgia
terrestre uma leitura transcendente, além de mostrar o todo da liturgia.
Por exemplo, a oração eucarística, que é um todo no segundo milênio,
foi dissecada em suas partes e, por isso, se deu tal destaque ao seu
miolo, a consagração, que este parece estar separado do resto. Segundo
Cesare Giraudo, essa mudança de metodologia pode ser comparada a
“um relojoeiro desajeitado que, querendo descobrir o funcionamento de
um relógio perfeito, desmonta-o peça por peça e não repara que, pelo
desejo ardente de compreender, imobilizou o mecanismo que revela seus
segredos”.44

40
SC 37.
41
SC 5.
42
SC 7.
43
Isso recorda o livro de CORBON, J. Liturgia fundamental; misterio — celebración — vida.
Madrid: Palabra, 2001.
44
GIRAUDO, C. Redescobrindo a eucaristia. São Paulo: Loyola, 2003, p. 8.

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Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II

6. A mística da participação ativa

Na metáfora do “Corpo Místico” está colocada a base teológica da par-


ticipação litúrgica. Conceituando a Igreja como um Corpo Místico que celebra
a ação sacerdotal de Cristo, é um pecado não envolver toda a assembleia
como num corpo físico, onde cada membro responde ao conjunto de todos os
estímulos corporais, sejam de dor ou de alegria. Essa dimensão eclesial, no
seu sentido pastoral, vai ser aprofundada na Constituição Pastoral Gaudium
et Spes sobre a Igreja no mundo de hoje. Não pode haver, portanto, na
liturgia uma cabeça ativa e um corpo passivo. Daí a necessidade também,
além da eterna disposição de Cristo, das disposições pessoais dos fiéis para
o envolvimento no o mistério celebrado.45
Em consequência das afirmações anteriores, que são básicas para o
resgate da mística na liturgia, surge a imperiosa necessidade de promover a
formação litúrgica em vista da participação ativa em todos os níveis, para que
todos sejam imbuídos do “espírito da liturgia”.46 Para isso, a reforma geral da
liturgia é uma proposta de restauração da “nobre simplicidade” do rito litúrgico
(As cerimônias resplandeçam de nobre simplicidade) 47 e de adaptação do
culto da Igreja aos nossos tempos, de modo a favorecer a participação ativa
de todos os fiéis no mistério celebrado. No primeiro objetivo, vemos o sonho
de Dom Guéranger, que certamente terá aplaudido do céu. No segundo, o
desafio da inculturação litúrgica a favor da participação mística, pois, como
já dissemos, a mística é a experiência do Mistério pela via da participação.
E isso se faz pelo caminho simbólico, que é necessariamente cultural.

7. Uma mística extática e não esotérica

Se os textos e as ações litúrgicas não são acessíveis à maioria da


assembleia celebrante, então se pode falar de uma mística esotérica expe-
rimentada por um grupo seleto que participa ativamente, deixando a maio-
ria numa assistência passiva. Não era assim que a Igreja primitiva vivia a
experiência de Deus por meio da liturgia. Sua mística não tinha nenhum
caráter esotérico, mas sim extático. A palavra êxtase significa em primeiro

45
SC 11.
46
SC 14; 16.
47
SC 34.

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plano: arrebatamento íntimo, enlevo, encanto. Então, era uma liturgia que
extasiava, isto é, enlevava e encantava, porque conduzia ao Mistério. A mís-
tica extática engaja o místico em todos os significados da liturgia e o leva
à difícil missão de comunicar o “indizível”. Apesar de usar o vocabulário da
teologia apofática, o qual tem na sua essência o caráter negativo (Deus é
indizível, inefável, inacessível etc.), a mística extática, aceitando que Deus
se dá, ousa aventurar-se em busca de uma linguagem que o comunique,
considerando que esta linguagem na liturgia é um fenômeno pentecostal (At
2,1-11); pois é uma linguagem divina, expressa pela semelhança de línguas
de fogo provindas do Céu, que se apoderam da linguagem humana criando a
comunicação horizontal. O caso mais ilustrativo é a visão mística que Teresa
d’Ávila teve das três pessoas da Santíssima Trindade, durante a liturgia. A
partir daí, ela passou a exercitar com mais propriedade o discurso sobre
o dogma trinitário. Uma experiência mística de tal ordem provoca também
uma iluminação no intelecto e produz uma linguagem que resgata o Todo
nos fragmentos da linguagem humana.
Então, podemos dizer que desde o início, a SC busca uma liturgia que
resgate todo o potencial místico das nossas celebrações. Para isso, há de
ser uma liturgia que focalize mais a obra da redenção do que a miséria do
pecador. Em outras palavras, uma liturgia que trate da “preocupação última”
do ser humano e não das preocupações preliminares,48 focalizando a tota-
lidade da realidade humana, a estrutura, o sentido e o alvo da existência,
ou seja, aquilo que determina o seu destino último para além de todas as
necessidades e acidentes preliminares. É uma liturgia, enfim, que mergulha
no mistério da salvação e engaja o homem que luta entre o ser e o não ser
numa vida sem ambiguidades, que, embora seja promessa escatológica, pode
ser experimentada como antecipação na celebração do Mistério de Cristo.
Assim, os primeiros capítulos da SC são basilares para a compreen-
são do resgate na mística na liturgia. Se, no dizer de Silesius, a mística
é a capacidade de ver Deus agora, a liturgia é o lugar por excelência da
mística. Ela expressa de forma plena o mistério de Cristo e leva os fiéis a

48
Por preocupações preliminares, podemos entender aqui aquilo que Guardini chama de “ações
pedagógicas” introduzidas na liturgia para chegar a outros fins que não a própria liturgia. Em
grupos de engajamento político mais consciente, a liturgia pode ser usada pedagogicamente
para conscientização política; nos grupos pastorais acontece o mesmo, como por exemplo
a pastoral do dízimo etc.

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Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II

expressá-lo na vida. O místico é por excelência aquele que vive como se


visse o “Invisível”. Outra coisa não se busca na liturgia senão, por meio dos
seus sinais sensíveis, o encontro com o Ressuscitado, que desde o evento
da Ascensão não se comunica aos Apóstolos diretamente pelos sentidos
do corpo, pois “uma nuvem o ocultou de seus olhos” (At 1,9). No entanto,
ele está tão presente em nosso meio como a nossa própria respiração. É
na liturgia que a sua presença se faz notável, como bem o expressou São
Leão Magno: “Tudo o que era visível do nosso Redentor passou para os
sacramentos da Igreja”. 49
Se outros documentos posteriores ao Concílio foram necessários para
esclarecer o sentido da reforma litúrgica,50 é porque os capítulos finais da SC
não têm a densidade dos iniciais. E como eles são as propostas práticas do
que foi exposto no início e, não contendo uma teologia à altura, podem-se
esperar os problemas que enfrentamos até hoje em nossas práticas litúrgicas.
É tanto que José Antonio Goenaga, que junto com Xavier Basurko, escreve
um excelente texto intitulado “a vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua
evolução histórica”, faz a seguinte avaliação dos números finais da SC:
Nos capítulos da música e da arte, devemos lamentar a au-
sência de uma teologia da expressão artística. Os membros
das comissões e os padres sinodais talvez não tenham dado o
devido destaque à música, ao canto e à arte como atividades
simbólicas fundamentais na ação simbólica por excelência que
é a liturgia. Desse ponto de vista, esses capítulos não são
apêndices à constituição, mas partes desta.

49
Sermo 2 De Ascencione. PL 54, 398, citado por COSTA, V. S. Viver a ritualidade litúrgica
como momento histórico da salvação; a participação litúrgica segundo a Sacrosanctum
Concilium. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 93.
50
PAULO VI. Motu proprio Sacram Liturgiam (1964). In: Documentos do Concílio Ecumênico
Vaticano II (1962-1965). São Paulo: Paulus, 1997, p. 82-88; PAULO VI. Carta Encíclica
Mysterium Fidei sobre o culto da Sagrada Eucaristia (1965). São Paulo: Paulinas, 1965.
CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. A liturgia romana e a inculturação: IV instrução
para uma correta aplicação da constituição conciliar sobre a liturgia. São Paulo: Paulinas,
1994; JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Ecclesia de Eucaharistia sobre a Eucaristia na sua
relação com a Igreja (2003). São Paulo: Paulinas, 2003; CONGREGAÇÃO PARA O CULTO
DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Instrução Redemptionis sacramentum sobre
alguns aspectos que se de deve observar e evitar acerca da santíssima Eucaristia (2004).
São Paulo: Paulinas, 2004; BENTO XVI. Exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum
Caritatis sobre a Eucaristia fonte e ápice da vida e da missão da Igreja (2007). São Paulo:
Paulinas, 2007.

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Prof. Dr. Pe. Valeriano dos Santos Costa

Lembramos aqui, ademais, que, no capítulo VI, pouco se diz


acerca do conteúdo daquilo que se deve cantar nas celebrações.
Aqui entra em jogo, de uma ou de outra maneira, o princípio lex
orandi lex credendi, talvez, com mais vigor do que em outras
partes da liturgia, visto que o canto é uma das mais profundas
expressões do homem. Hoje se monta com frequência “outra
liturgia” sobre a liturgia da Igreja, com os cantos incluídos em
profusão. Paulo VI afirmava, depois do concílio: o tema da
música sacra “requer uma ampla reflexão”.51
Essas colocações nos lembram que na liturgia russa o canto é con-
siderado elemento indispensável. Ele comove profundamente o povo. Sua
função é fazer do nosso coração o templo do Senhor, e do nosso espírito o
seu altar. Assim, a beleza litúrgica é uma preparação para a oração superior
do coração.52
É notório que a delicadeza e a leveza do rito reformado, em muitas cir-
cunstâncias, não foram levadas em consideração. Por exemplo, as rubricas
da narração eucarística da missa manifestam claramente esta leveza a res-
peito do comportamento ritual do presbítero celebrante: “Inclina-se levemente,
toma o pão, mantendo-o um pouco elevado sobre o altar, toma o cálice nas
mãos, mantendo-o um pouco elevado sobre o altar”. 53 O que está em jogo
aqui não é superficial: é a mística da entrega e não do domínio sobre o rito
por meio da perfeita aplicação das rubricas. São duas posturas antagônicas.
A postura da entrega ritual implica vivência mística do rito envolvendo corpo,
mente e espírito, o conhecimento profundo do seu sentido teológico, que sa-
berá também não marginalizar as rubricas, uma atitude tranquila e serena nos
gestos e palavras. Já a atitude de controle rubricístico denota muito mais uma
tendência nervosa de controlar o rito, como que a “pegar o boi pelo chifre”.
Isto remonta à dificuldade do ser humano em confiar em Deus (atitude de
fé) e deixar-se envolver inteiramente pelo seu mistério (atitude de entrega). O
pecado original constitui a competição entre a bondade do homem e a bondade
do Criador, porém a bondade humana é essencialmente ambígua. Somente
a entrega a Deus, que é a bondade sem ambiguidade, pode nos libertar da

51
GOENAGA, A vida litúrgico-sacramental da Igreja, cit., p. 145.
52
Cf. ŜPIDLÍK, T. Mística russa. In: BORRIELO, et al., Dicionário de mística, cit., p. 748.
53
Missal Romano, narração eucarística dos onze formulários de missa presente no missal
brasileiro.

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Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II

ambiguidade. A dificuldade é atingir uma fé que represente “o estado de ser


possuído pela Presença Espiritual e aberto à unidade transcendente da vida
sem ambiguidade”.54 Paul Tillich traduz isto como “a coragem da fé”, na qual
o homem desiste da própria bondade e mergulha na bondade de Deus:
A coragem de entregar nossa própria bondade a Deus é o
elemento central na coragem da fé. Nela o paradoxo do Novo
Ser é experienciado, é vencida a ambiguidade de bom e mau, e
a vida sem ambiguidade terá se apoderado do homem através
do impacto da Presença Espiritual. Tudo isso é manifestado
através da imagem de Jesus, o Crucificado.55
Então a fé não é resultado de nenhuma função mental humana. “Não
pode ser criada pelos processos do intelecto ou por esforços da vontade ou por
movimentos emocionais”.56 Tudo isso está incluído na fé, mas ela mesma é o
resultado transcendente da nossa entrega a Deus, que se entregou livremente por
nós na cruz, para que nós nos entregássemos livremente a ele aos pés da cruz.
Por fim, poderíamos dizer que a metáfora da liturgia como cume e
fonte da vida da Igreja57 ressalta três virtudes que não poderiam faltar para
o resgate da mística na liturgia: o silêncio, a beleza, a autoentrega. Tanto na
fonte como no cimo da montanha, o silêncio, a beleza e a autoentrega são
paradigmáticos. E uma forma de mostrar que o ato litúrgico por excelência é
a sua própria comunicação. Tem que falar por si mesmo. Esta é a intuição
mais fecunda da reforma do Concílio Vaticano II. É nesta perspectiva que
podemos entender a recomendação que faz o Missal Romano a respeito do
silêncio.58 No filme Antes de partir,59 há um diálogo entre o ator protagonista

54
TILLICH, Teologia sistemática, cit., p. 485.
55
Ibidem, p. 557.
56
Ibidem, p. 487.
57
SC 10.
58
A liturgia da palavra deve ser celebrada de tal modo que favoreça a meditação; por isso
deve ser de todo evitada qualquer pressa que impeça o recolhimento. Integram-na também
breves momentos de silêncio, de acordo com a assembleia reunida, pelos quais, sob a ação
do Espírito Santo, se acolhe no coração a Palavra de Deus e se prepara a resposta pela
oração. Convém que tais momentos de silêncio sejam observados, por exemplo, antes de
iniciar a própria liturgia da palavra, após a primeira e a segunda leitura, como também após
o término da homilia.
Terminada a distribuição da Comunhão, se for oportuno, o sacerdote e os fiéis oram por
algum tempo em silêncio (cf. IGMR 88).
59
The bucked list, capítulo 17.

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Carter e uma mulher, que ilustra e evoca de uma forma plástica a natureza
do silêncio do cume da montanha. O tema do diálogo é a experiência no
topo do Himalaia:
─ Eu já estive lá em cima.
─ É mesmo?
─ Durante o dia, o céu é mais negro que azul. Não tem ar
suficiente para refletir a luz do sol. Mas à noite fica salpicado
de estrelas. Parecem tão próximas e brilhantes! É como se o
firmamento fosse um chão de estrelas.
─ Você ouviu?
─ Ouviu o quê?
─ Li o relato de um homem que chegou ao cume, e lá em
cima do topo do mundo vivenciou um silêncio profundo, como
se todo o som tivesse desaparecido. E foi quando ele ouviu o
som da montanha. Ele disse que foi como ouvir a voz de Deus.

Conclusão

Então, já concluindo, vamos retomar o discurso sobre o resgate da


mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II. A oração litúrgica deve
refletir esta postura de entrega; motivando-nos tal confiança é que quebra-
mos as nossas resistências e, de coração alquebrado, nos deixamos pousar
nas mãos de Deus. Para isso, o rito tem que ser: claro, fácil, leve, belo
e profundo. Tem que ser um convite à entrega e não à disputa agressiva
de controle, como um ato desesperado de mostrar a bondade humana, o
que impede de sermos completamente dominados pela beleza divina que
o rito expressa. Não somos nós que devemos controlar o rito, mas ele sim
deve nos possuir e nos conduzir ao coração do mistério. Portanto, não se
trata tanto de saber fazer o rito, mas de vivê-lo em todo o seu potencial
extático. Como diz Paul Tillich, “O Espírito Divino aparece no êxtase do
espírito humano”.60 Sem êxtase não há transcendência, sem transcendên-
cia não há autêntica imanência. E também não há engajamento social e

60
TILLICH, Teologia sistemática, cit., p. 594.

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Resgate da mística na liturgia a partir do Concílio Vaticano II

transformador a partir da fé. Sobra somente o cansaço. Aí está o cerne


do que a Sacrosanctum Concilium chama de “participação litúrgica”.61 E
esse aspecto, infelizmente, abandonou a liturgia por séculos e, graças a
Deus, passou a habitar as manifestações da piedade popular. Quando
equivocadamente, no pós-concílio, foram marginalizadas as manifestações
da piedade popular e as pessoas sentiam enorme saudade, foram os san-
tuários que acolheram as multidões sedentas de Deus. O Concílio bem o
disse que a piedade popular não perdia o seu espaço na fé da Igreja,62
mas desejava que a liturgia da Igreja fosse sua principal fonte. Acabou que
nem a liturgia renovada conseguiu manifestar sua mística extática, nem a
piedade popular conseguiu reconquistar o seu espaço e trazer o elo da
transcendência. E o perigo está na volta ao rubricismo, se não ao próprio
rito anterior à reforma como uma forma de chorar as cebolas do Egito.
Há também o perigo de substituir o êxtase da liturgia por uma espécie de
show ou outros modismos.
A partir da década de 1980, autores apontam falhas na interpretação
da SC, sobretudo em relação a dois textos que mais provocaram equívocos
de compreensão:
O texto e as cerimônias devem ordenar-se de tal modo, que
de fato exprimam mais claramente as coisas santas que eles
significam e o povo cristão possa compreendê-los facilmente
na medida do possível (SC 21).
As cerimônias resplandeçam de nobre simplicidade, sejam trans-
parentes por sua brevidade […], acomodadas à compreensão dos
fiéis e, em geral, não careçam de muitas explicações (SC 34).
Goenaga faz uma avaliação muito consciente desta questão,
afirmando que houve um enfoque exagerado ou até equivocado
na leitura destes dois textos:
As instruções conciliares de simplificação ritual eram necessá-
rias, para revisar uma liturgia anquilosada havia séculos. Mas
as fórmulas empregadas não foram felizes ou foram objeto de

61
A esse respeito, ler COSTA, Viver a ritualidade litúrgica como momento histórico da sal-
vação, cit.
62
SC 9.

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Prof. Dr. Pe. Valeriano dos Santos Costa

mal-entendidos no ambiente dessacralizador do primeiro decênio


do pós-concílio. Os textos ensejaram “celebrações” descuidadas
de sua riqueza ritual, com pretensões de clareza, fácil compre-
ensão, adaptadas, como se dizia à capacidade intelectual dos
fiéis, didáticas em termos de fé (temáticas) e moralizantes no
tocante ao sinal religioso e humanista. Os textos citados facilita-
ram a interpretação racionalista da liturgia, que prejudicou a esta
consideravelmente. Porque a liturgia é antes de tudo simbólica;
por isso, não se entende ou se explica tanto como se percebe;
ela não é tanto didática e moralizante quanto celebrativa.63

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