01 - Curso de Liturgia Da Igreja
01 - Curso de Liturgia Da Igreja
01 - Curso de Liturgia Da Igreja
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1.2 Início e teologia do Movimento Litúrgico
1.3 Desenvolvimento do Movimento Litúrgico
1.4 O Movimento Litúrgico no Brasil
Movimento litúrgico 2 A contestação do Movimento Litúrgico
Sumário 3 Nova fase do Movimento Litúrgico
Introdução Conclusão
1 Passos históricos do movimento litúrgico Referências
1.1 Pré-história do Movimento Litúrgico
12
expressiva e edificante literatura (alegórica) sobre os 14s). Pio XII, na encíclica Musicae Sacrae
instrumentos musicais. No interior dessas alegorias, Disciplina (1956), elogia o uso do órgão e admite o uso
escondem-se aspectos espirituais e doutrinais. O alvo de violinos e outros instrumentos de arco, todavia
direto dessa literatura é o mundo pagão e suas ameaças à continua reticente quanto ao uso de instrumentos tidos
integridade da fé. Dentre as inúmeras imagens alegóricas como “rumorosos” e “barulhentos” que são “destoantes
sobre os instrumentos musicais em geral, usadas pelos do rito sagrado e da gravidade do lugar” (cf. MSD n. 28-
Padres, destacamos as da cítara e da lira. 29).
A imagem da cítara — relacionada com a atuação Todas as pendências sobre o uso dos instrumentos
do Espírito na assembleia que canta — se processa da musicais na liturgia parecem ter chegado a termo com a
seguinte forma: assim como as diferentes cordas da reforma do Concílio Vaticano II. A
cítara que, graças à habilidade do tocador, produzem Constituição Sacrosanctum Concilium (1963), além de
uma melodia harmoniosa, também a Igreja (as cordas classificar o “órgão de tubos” como o instrumento mais
vivas), dirigida pelo Espírito Santo, une sua voz na mais apropriado para a liturgia, admite que outros
perfeita harmonia. Em outras palavras, a função do instrumentos possam ser igualmente usados, desde que
Espírito é unificar a comunidade que canta. Já a figura haja o “consentimento da autoridade competente” e,
de Cristo aparece como o músico que realiza a união dependendo da região, que estes sejam adaptados às
artística dos sons das diversas cordas da lira e faz subir circunstâncias e aos costumes do lugar (cf. SC n. 120).
até o Pai um maravilhoso concerto. Muitas vezes o
A Instrução Musicam Sacram (1967), além de
próprio Cristo vem representado como um instrumento
reconhecer a utilidade e a importância dos instrumentos
de Deus, e a cítara, com a sua paixão: as cordas
musicais na liturgia, apresenta-nos também suas
estendidas sobre a madeira nesse instrumento musical
principais funções: sustentar o canto, facilitar a
são tidas como imagem do corpo de Cristo estendido
participação e criar a unidade da assembleia. Adverte-
sobre o madeiro da cruz (cf. BASURKO, 2005, p. 113-
nos que o som dos instrumentos jamais deverá cobrir as
116).
vozes, de sorte que dificulte a compreensão dos textos. E
Os Padres são unânimes em afirmar que a voz mais: estes devem “se calar quando o sacerdote ou o
humana é o instrumento mais perfeito para o louvor a ministro pronuncia em voz alta algum texto, por força de
Deus, e se esforçam em convencer os fiéis — na sua sua função própria”. Quanto aos solos instrumentais, a
maioria neoconvertidos do mundo pagão — que o canto mesma Instrução — tomando como referencial a liturgia
puro é superior ao som de qualquer instrumento musical eucarística — prevê quatro momentos adequados para
feito por mãos humanas. “O povo de Deus, reunido no esse tipo de música: no início, durante a procissão de
templo para o canto de hinos e salmos, é agora a cítara entrada do presidente e demais ministros; enquanto se
espiritual que substitui e supera os instrumentos usados faz a procissão e a preparação das oferendas; na
pelo povo judeu”. Eusébio de Cesareia chega a dizer que comunhão e no final da missa (cf. MS n. 62-65).
“superior a qualquer saltério material é a multidão que,
Quanto à música puramente vocal, pouco se sabe
estendida por toda o orbe, celebra ao Deus que está
como esta era executada nos três primeiros séculos da
sobre todas as coisas, com um mesmo canto e com uma
era cristã. Quanto aos corais, seu surgimento remonta ao
mesma harmonia”. Para Eusébio, o cantar é superior ao
século IV. Eram formados de homens, sobretudo de
salmodiar. Este último ainda carece de ações
monges que, inicialmente, ficavam agrupados nas
corporais (do uso de instrumentos como o saltério),
primeiras filas da assembleia. Não se trata, ainda, de
enquanto o cantar é mais nobre e mais espiritual —
cantores especializados, mas de pessoas que auxiliavam
desprovido de suporte instrumental —, mais em
o canto da comunidade, executando aquelas partes mais
consonância com a contemplação e a teologia.
difíceis de entoação dos salmos, hinos, aclamações,
Em suma, não só a voz, mas o ser humano como ladainhas e respostas.
um todo é, para os Padres, o mais perfeito instrumento
No intuito de difundir o canto gregoriano em toda
musical, como bem resume Santo Agostinho: “Vós sois
a Europa, aparecem, por volta do século VII, as
a trombeta, o saltério, a cítara, o tímpano, o coro, as
chamadas Scholae Cantorum, que, na realidade, eram
cordas e o órgão”. Portanto, para os santos Padres, os
coros de meninos e de clérigos altamente especializados.
instrumentos eram considerados no sentido “espiritual”.
Isto se fez necessário porque o canto se tornara mais
Vale lembrar que, mesmo depois da introdução rebuscado e de difícil execução. Consequentemente, os
gradativa de instrumentos musicais no culto, persistia corais passaram a monopolizar o canto litúrgico,
certa ambiguidade a respeito do que era e do que não era enquanto o povo se contentava na condição de ouvinte
lícito se fazer em matéria de música. Aliás, esse dilema da “divina música”.
se arrastou por todo o segundo milênio. Ainda no início
Essa situação se agravou ainda mais com o
do século XX, Pio X, em seu Motu Proprio Tra le
surgimento da polifonia vocal clássica, no início do
Sollecitudini (1903), admite o órgão na Igreja; tolera
segundo milênio. A partir de então, gradativamente, a
alguns instrumentos de sopro; proíbe o piano, o tambor,
música da Igreja latina foi se confundindo com a música
o bombo, pratos, campainhas e semelhantes (cf. TLS n.
de concerto, atingindo seu ápice nos séculos XVIII e
13
XIX. A separação entre coral e assembleia se deu de tal não é mais uma música de acompanhamento, mas uma
forma que nas igrejas não podia faltar o “coro” — lugar música que entra para “preformare” e “performare” o
elevado normalmente por cima do hall de entrada do rito com
templo, reservado aos músicos. objetivos catárticos, apotropaicos, iniciáticos e entusiásti
cos. Nesses casos, a música não é apenas parte
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II não
integrante, mas parte constitutiva do rito,
aboliu o coral, apenas estabeleceu critérios claros quanto
acompanhando-o quase que necessariamente, fazendo
ao seu ministério na assembleia litúrgica. Um coral, bem
parte da sua essência. Nesse contexto, pode-se dizer que
formado e orientado, poderá prestar um importante
o rito desliza para o fato musical e quase que se
serviço à assembleia, exercendo um ministério múltiplo,
confunde com ele (TERRIN, 2004, p. 298).
seja reforçando o canto litúrgico da assembleia, em
uníssono, ou enriquecendo as melodias executando Contudo, o mesmo autor nos previne de que não
arranjos a mais vozes. Por exemplo: as formas se trata de qualquer música, mas de uma autêntica
litânicas do “Senhor, tende piedade de nós”, do “música ritual”. Esta, por sua vez, deve adequar-se ao
“Cordeiro de Deus”; ou ainda a forma antifonal (coro e todo simbólico do rito, funcionando como seu apoio e
assembleia executando um mesmo canto, de forma seu comentário. Em última análise, é o rito que, em
alternada) são meios eficazes de integração entre coro e virtude de sua própria natureza, deve apropriar-se de
assembleia. Além dessas possibilidades, o coral também uma particular estrutura musical. Uma vez que o rito não
poderá entoar uma peça, ou motete durante a procissão e comporta elementos estranhos à sua natureza, a música
preparação das oferendas, durante ou após a comunhão. ali utilizada jamais deverá ser arbitrária ou autônoma (cf.
TERRIN, p. 311-312).
É sempre oportuno lembrar que alguns cantos, em
princípio, nunca deveriam ser executados somente pelo Nessa mesma esteira, se enquadra a música ritual
coral, como o “Glória” e o “Santo”. Pelo fato de esses cristã. Esta, por sua vez, expressa o mistério pascal de
hinos pertencerem à comunidade toda, eventuais Cristo, eixo axial da liturgia cristã. Joseph Gelineau
arranjos a vozes para coro nunca deveriam impedir, mas recorda que a Igreja, desde seus primórdios, buscou
antes, favorecer e reforçar a participação do povo. E solucionar questões relacionadas à admissão ou não
quanto aos cantores e instrumentistas, seu melhor lugar é desta ou daquela expressão da arte musical emergente,
próximo aos demais fiéis, uma vez que seu ministério é no seu culto. Ao longo da história, três princípios se
exercido em função da participação da assembleia no tornaram basilares: a) a música não deve servir a dois
mistério celebrado. senhores, ou seja, o mundo ou os demônios de um lado,
e o Deus de santidade do outro (princípio moral); b) a
3 A música ritual cristã
música não deve recusar seu serviço ao verdadeiro Deus
Nesta seção, a abordagem sobre a música ritual e nunca servir-se a si mesma — arte pela arte (princípio
cristã se limitará a três pontos, a saber: a) a música como teológico); c) a música não deve desorientar os fiéis
rito; b) o repertório litúrgico; c) critérios para a escolha (princípio pastoral), ou seja, tornar-se um corpo
do repertório. estranho, no conjunto da ação litúrgica (cf. GELINEAU,
3.1 A música como rito 1968, p. 54).
Como dito anteriormente (item 1), a música ocupa Buscando vincular exemplos da história da música
amplo espaço na vida dos humanos e se presta a diversas ritual cristã a cada princípio acima, J. Gelineau destaca:
utilidades. Contudo, há um tipo de música que possui a) a irredutibilidade da Igreja, nos sete primeiros
caráter próprio e se reveste de densidade “sacramental”, séculos, quanto ao não uso de instrumentos musicais na
quando executada numa ação ritual. Essa “música liturgia. Estes eram tidos como símbolo do paganismo;
ritual”, nas diversas tradições religiosas, possui vínculo b) o embate advindo do “mundo das belas artes” — do
estreito com o “mistério” celebrado. belo pelo belo —, desvinculado da “estética litúrgica”;
c) algumas formas de polifonia que tornavam o texto
Por música ritual, entendemos toda prática musical e litúrgico ininteligível, sobressaindo apenas o complexo
instrumental que, na celebração, distingue-se das formas jogo das vozes. Essa questão foi discutida, inclusive, no
habituais, seja na palavra falada, seja nos sons ou Concílio de Trento (cf. IBID p. 54-61).
barulhos ordinários. O domínio sonoro assim designado
amplia o que, normalmente, define-se como “música” ou Em suma, nada deve dificultar a participação dos
como “canto” em certos ambientes culturais fiéis no mistério celebrado. Como bem nos ensina o
(UNIVERSA LAUS, 1980, n. 1.4). Concílio Vaticano II, a ação litúrgica é ação de Cristo e
de seu corpo, a Igreja, realizada mediante sinais
Aldo Terrin, ao tecer considerações sobre a sensíveis que significam e realizam a salvação (cf. SC n.
música ritual em civilizações antigas, como 7). A música ritual, por sua vez, jamais poderá causar
Mesopotâmia, Egito, Índia védica, China…, aponta a estranheza nos fiéis ou torná-los espectadores passivos
relação intrínseca entre música e rito, e ressalta, ou indiferentes.
igualmente, o “poder” que essa música exerce sobre as
pessoas, nestes termos: 3.2 Repertório litúrgico
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Passadas cinco décadas pós-Concílio Vaticano II, 3.3 Critérios para a escolha do repertório
a reflexão teológico-litúrgico-musical tende a direcionar litúrgico
seu foco para a questão do “repertório litúrgico”. Isso se
O princípio conciliar de que a música ritual deve
faz necessário perante a avalanche de novas
estar plenamente configurada à lex orandi, como “parte
composições, surgidas nesse período, e porque,
necessária ou integrante” dos diversos ritos, tem por
infelizmente, nem tudo pode ser aproveitado para o uso
finalidade levar os fiéis à participação ativa e frutuosa no
litúrgico.
mistério celebrado. Tudo o mais vem corroborar isso: a
Repertório é, portanto, o conjunto de cantos que beleza das formas, o perfeito “casamento” entre texto e
cada comunidade escolhe para uso nas celebrações, ao demais expressões musicais, a nobre simplicidade etc. A
longo do ano litúrgico. Pressupõe uma escolha objetiva e título de síntese, apresentaremos alguns critérios para a
cuidadosa, respaldada por um código de critérios, escolha do repertório litúrgico, quanto ao texto e quanto
oriundos da própria natureza da liturgia. A ideia de à música.
repertório está intimamente ligada à de rito. O rito, por
Na tradição musical da Igreja, o texto sempre teve
sua própria natureza, é repetição, memória, consenso
a primazia. A melodia e demais expressões musicais, por
coletivo.
sua vez, deverão explicitá-lo e nunca obscurecê-lo. Isso
A sedimentação de um repertório se dá mediante pressupõe critérios objetivos, como:
a repetição. A pedagogia intrínseca de repetir, em cada
a) Critério bíblico-litúrgico. Os textos “sejam
tempo ou festa, um repertório básico de cantos, leva os
tirados da Sagrada Escritura e das fontes litúrgicas” (SC
fiéis a uma vivência espiritual mais intensa do mistério
121). J. Gelineau sintetiza, de forma magistral, a
celebrado graças à ação renovadora do Espírito Santo.
aplicação desse critério na tradição litúrgica da Igreja,
Todavia, esse princípio não descarta a possibilidade de
nestes termos:
ampliação dos repertórios que, naturalmente, deverá
acontecer na caminhada de cada comunidade. Da palavra bíblica é de onde vieram as melhores peças
dos repertórios latinos e orientais […]. Mas, da palavra
Um repertório bíblico-litúrgico que permanece
bíblica recitada, memorizada, saboreada, meditada,
vivo na memória dos fiéis, além de facilitar sua
repetida, proclamada, anunciada, cantada, saíram as
execução como tal, também resgata a dimensão
salmodias, as respostas, as antífonas breves ou longas;
de memorial — essencial para a liturgia. A ordem de
sobre este tronco sólido, brotarão depois os tropários e
iteração dada por Jesus (“fazei isto em memória de
os hinos (GELINEAU, s.d., p. 68).
mim”), atualizada em cada ação litúrgica, também se
aplica à música ritual. Esta se põe a serviço da b) Critério da função ministerial. A música ritual
recordação dos fatos salvíficos, um passado significativo é parte necessária ou integrante da ação litúrgica e será
que aflora nos acontecimentos, no hoje da comunidade tanto mais litúrgica quanto mais intimamente estiver
cristã e a projeta para o futuro, para a plena configuração ligada à ação litúrgica, quer exprimindo mais
ao corpo glorioso de Cristo. “Assim, na liturgia cristã, a suavemente a oração, quer favorecendo a unanimidade,
música ritual vem carregada de ‘sacramentalidade’: é quer, enfim, dando maior solenidade aos ritos sagrados.
atuação transformadora de Deus em nós, que nos faz Sua finalidade é a glória de Deus e a santificação dos
participantes de sua vida divina, que aprofunda em nós a fiéis (cf. SC n. 112).
vida pascal e nos mantém no caminho do seguimento de A funcionalidade ritual não pode ser encarada
Jesus” (BUYST, 2008, p. 8). unicamente a partir do rito bruto (o significante). Ela
O repertório litúrgico também se sedimenta implica também e sobretudo seus destinatários, a
mediante consenso coletivo. No entanto, não convém sensibilidade deles, a cultura, as disposições, as reações
que esse consenso se restrinja a gostos meramente conscientes e inconscientes que eles têm. Não basta que
subjetivos, mas a ele se deve agregar o caráter objetivo o salmo seja de forma responsorial para que ele tenha
da ação litúrgica. efetivamente resposta da assembleia à Palavra. […]
Quando se é realmente parte integrante, torna-se
Na liturgia, a beleza de um canto ou de uma música não
impossível isolar, num canto, o resultado sonoro da ação
existe independentemente da celebração, do local, do
global em que está inserido. A estética de um canto
rito e da assembleia que os acolhe. Certamente, o canto e
litúrgico não é apenas a de um texto com sua música,
a música podem manifestar e engrandecer a verdade que
mas a de toda a celebração em que o canto intervém
uma assembleia vive. Mas o que importa é o estado de
(GELINEAU, 1968, p. 116-117).
escuta do canto desta assembleia, a disponibilidade que a
embeleza e a abre para a beleza que advém (UNIVERSA c) Critério do “tempo litúrgico”. Este critério
LAUS, 2002, n. 2.8). possui estreita relação com o anterior. Os tempos e
festas do ano litúrgico são parte integrante da ação
Enfim, todas as celebrações litúrgicas
litúrgica. A música ritual, assim como os demais
(sacramentos, sacramentais, exéquias…) devem ter seu
elementos que compõem a celebração, deve expressar a
repertório.
espiritualidade de cada tempo ou festa do calendário
litúrgico.
15
d) Critério estético. A música ritual privilegia a transcendente. Os diversos povos descobriram que a
linguagem poética. Afinal, toda autêntica experiência de linguagem musical é um meio eficaz de comunicação
oração é, antes de tudo, uma experiência poética. Esta entre o ser humano e os deuses. A partir dessa
linguagem é a que mais se ajusta ao caráter simbólico da descoberta, esses povos utilizaram a música como parte
liturgia. Portanto, não basta que seu conteúdo tenha integrante de seus ritos. Nessa mesma esteira, encontra-
inspiração bíblica. Explicitações óbvias, redundâncias, se a tradição judaico-cristã.
moralismos, intimismos e chavões desqualificam a
Vimos, igualmente, que a música é elemento
música ritual. A melodia, por sua vez, além de realçar o
indispensável na ação litúrgica e, quando bem elaborada
sentido teológico litúrgico-espiritual dos textos, deve ser
(simbiose entre texto e demais expressões musicais) e
acessível à grande maioria da assembleia. Todavia, vale
devidamente integrada no momento ritual, nos
o alerta de não confundir “acessível” com banal,
arremessa, pela força do Espírito Santo, ao inefável de
superficial.
Deus. Todavia, essa “integração”, no seu sentido pleno,
e) Critério da originalidade. A Conferência não se dá de forma automática. Pressupõe uma
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), no ano de 1976, permanente formação teológico-litúrgica do clero, dos
já havia alertado para a observação deste critério: agentes litúrgico-musicais (regentes, salmistas, corais,
instrumentistas) e de todo o povo de Deus. Aliás, existe
Em relação aos textos, evitem cantos com letras
uma estreita relação entre “formação” e “participação”: a
adaptadas. Além de ferir os direitos do autor, tal
formação é condicionante da participação.
adaptação, por si mesma, revela a inconveniência do
A Sacrosanctum Concilium reconhece que a liturgia é a
original que será mentalmente evocado, evidenciando
primeira e necessária fonte, da qual os fiéis podem
empobrecimento da celebração litúrgica e desvirtuando
haurir o espírito genuinamente cristão. E, para que isso
o seu sentido (CNBB, 1976, n. 3.9).
seja levado a efeito, é imprescindível uma adequada
O mesmo critério se aplica às demais expressões formação do clero e de todo o povo (cf. SC n. 14b).
musicais: sejam evitadas adaptações de canções
Acreditamos que essa formação permanente
populares, trilhas de filmes e novelas etc.
poderá acontecer mediante três níveis da pastoral
f) Critério da inculturação litúrgica. A música litúrgica, a saber:
ritual não pode prescindir da cultura musical do povo, de
a) Em “reuniões semanais” da equipe de
onde provêm os participantes da assembleia celebrante.
celebração. Nesses encontros semanais – ocasião em
A partir desse “ambiente” cultural, os compositores
que se avaliam as celebrações anteriores e se preparam
deverão buscar expressões musicais que melhor
as seguintes –, deverão participar todas as pessoas
encaixem na espiritualidade de cada tempo ou festa do
escaladas para o exercício de algum ministério nas
ano litúrgico. A etnomúsica religiosa pode ser uma
celebrações do próximo fim de semana (leitores,
preciosa fonte. Inculturação tem a ver com participação.
salmistas, ministros extraordinários da comunhão
Por música ritual inculturada entende-se aquela que,
eucarística, acólitos, sacristães), bem como outros fiéis
como parte integrante da liturgia, expressa o mistério
interessados. O ponto alto dessas reuniões é a meditação
através da linguagem musical típica de um povo. Assim,
da Palavra de Deus (partindo sempre do evangelho) e
a música cumprirá, de forma mais eficaz, sua função
sua incidência no “hoje” da comunidade de fé.
mistagógica de introduzir os fiéis na vivência do
mistério pascal de Cristo, uma vez que estes veem nessa b) Em “reuniões mensais” dos grupos conforme
música o “jeito” da sua própria cultura. sua condição ministerial. Cada grupo (músicos, leitores
e salmistas, ministros extraordinários da comunhão…)
No âmbito da inculturação da música ritual, a
deve se reunir, mensalmente, para encontros de
Igreja na América Latina tem se esforçado na
formação teológico-litúrgica mais sistemática e de
sedimentação de repertórios litúrgicos que melhor
avaliação quanto ao desempenho do respectivo
expressem as características culturais de seus povos. No
ministério nas celebrações.
caso do Brasil, por exemplo, merecem destaque duas
referências significativas: a) o Hinário Litúrgico da c) Em encontros “ocasionais”. Trata-se de
CNBB, que contém amplo repertório para celebrações encontros ampliados de integração dos diversos grupos
da eucaristia, da Palavra, dos demais sacramentos e (músicos, leitores, salmistas, ministros extraordinários
sacramentais, abrangendo todo o ano litúrgico; b) da comunhão eucarística…), com duração de um dia ou
o Ofício Divino das Comunidades, que, desde 1988, tem fim de semana. Essa modalidade de formação poderá ter
sido um suporte valioso para as comunidades eclesiais o formato de um “retiro” ou “minicurso” e ser realizada,
celebrarem a Liturgia das Horas, mediante uma preferencialmente, por ocasião do início de um novo
linguagem poética e musical populares. tempo litúrgico. Tais encontros deverão constar no
planejamento anual das atividades da comunidade.
4 A título de conclusão
Todo esse esforço tem como principal objetivo a
Numa visão panorâmica, pudemos constatar que a
participação ativa, consciente e plena de todo o povo
música é uma arte que sempre acompanhou a vida
sacerdotal na ação litúrgica e seus consequentes frutos
humana e também possui estreita relação com o
16
no agir cotidiano. Afinal, a razão última de nosso cantar música litúrgica. São Paulo: Paulus, 2005. p. 37-60.
reside naquele “que está sentado no trono e ao (Documentos da Igreja, 11)
Cordeiro”, pois só a eles pertencem o louvor, a honra, a
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glória e o domínio pelos séculos dos séculos (cf. Ap
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teológicos, litúrgicos, pastorais e estéticos. Brasília: 2.1 O memorial e a compreensão mistérico-
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A importância teológica do conceito de
____. O canto novo da Nação do Divino: música
“memorial” tem sua raiz na ordem de Jesus na última
ritual inculturada na experiência do padre Geraldo Leite
ceia, ao instituir a eucaristia: “Fazei isto como meu
Bastos e sua comunidade. São Paulo: Paulinas, 2000.
memorial” (cf. 1Cor 11,24-25; Lc 22,19). Jesus o diz em
FONSECA, J.; WEBER, J. A música litúrgica no seu contexto histórico e cultural, a partir do horizonte
Brasil 50 anos depois do Concílio Vaticano II. São veterotestamentário e judaico que lhe é próprio. Cabe,
Paulo: Paulus, 2015. pois, voltar às raízes bíblicas de
GELINEAU, J. Canto e música no culto cristão. memorial/anámnesis/zikkaron.
Petrópolis: Vozes, 1968. “Memorial” – e não memória – é a melhor
______. La música de la assamblea Cristiana, tradução do grego anámnesis que ocorre nas palavras de
veinte años después del Vaticano II. Cuadernos Phase, Jesus na última ceia ao instituir a eucaristia e expressa o
Barcelona, n. 28, s.d., p. 59-69. que ele mandou fazer todas as vezes que comemos do
pão e bebemos do vinho eucaristizados (cf. 1Co 11,24-
MONRABAL, M. V. T. Música, dança e poesia 25). A palavra grega, por sua vez, traduz o
na Bíblia. São Paulo: Paulus, 2006. hebraico zikkaron que se encontra, por exemplo, em Ex
PIO X. Motu próprio “Tra le sollecitudini” sobre a 12,14, na narrativa da instituição da ceia pascal judaica.
música sacra. In: VV.AA. Documentos sobre a música 1.1 Memorial: no Antigo Testamento (cf.
litúrgica. São Paulo: Paulus, 2005. p. 13-22. EISING, 1977)
(Documentos da Igreja, 11)
O primeiro a dizer é
PIO XII. Encíclica “Musicae sacrae disciplina” que zakar (qal), mimneiskomai (“lembrar/lembrar-se”),
sobre a música sacra. In: VV.AA. Documentos sobre a na Bíblia, não é mera ação de uma subjetividade que se
17
aferra ao passado. Não é retrospecção histórica ou acrescentar também sua intencionalidade com relação ao
psicológica. Poderia dizer-se que “lembrar” é um verbo futuro. Is 47,7 e Qo 11,8, por exemplo, mostram como
performativo, realiza algo, expressa uma ação com também o futuro pode ser objeto do “lembrar-se”. O
consequências para o presente e o futuro e, com isso, futuro pode ser lembrado porque virá, com toda a
uma ação que, desde o passado, irrompe no presente, certeza, e terá consequências que se podem prever. Ou
abrindo futuro. Para tomar um caso profano, não ainda, porque nele se realizarão as promessas de Deus, já
litúrgico, pense-se na “recordação” do copeiro do Faraó conhecidas. Ao presentificar culticamente a passada
em Gn 40,14.23 e 41,9. “Lembrar-se” de José é intervir ação salvífica de Deus, atualiza-se a promessa de
em favor dele. Quando o mesmo verbo aparece no salvação ligada ao evento e assim já acontece salvação.
contexto religioso do culto ou da oração, sua dimensão Lançar a Deus um clamor que recorda suas promessas
performativa se reforça, pois, quando Deus “se recorda”, desperta a esperança: elas hão de cumprir-se. Dizer ao
atua salvificamente de acordo com suas promessas. ser humano que se “lembre” das ações de Deus na
Basta considerar que, em 68 ocorrências história incita à obediência, à observância dos
veterotestamentárias do verbo zakar em qal (um dos mandamentos e, consequentemente, a acolher a salvação
modos da conjugação verbal do hebraico), Deus é o de Deus.
sujeito do “lembrar-se” e o objeto é sua ação em prol da
A anamnese é assim um “lembrar-se” da origem
humanidade, e quando o sujeito de zakar é o ser
que permanece decisiva para o presente e para o futuro.
humano, 69 vezes o objeto do ponto de vista gramatical
Lembra-se o passado para interpretar o presente e
é Deus ou sua ação salvífica. Essa menção significa que
possibilitar o futuro (cf. FABRY, 1993, p. 590). O culto
o passado recordado se torna atuante, cheio de eficácia
de Israel é sempre uma anamnese. As festas – muitas
de salvação. Tal perspectiva é comprovada pelo oposto,
delas ou até mesmo todas – originárias de uma religião
quando se considera um texto como Sl 34,17 ou 9,7:
da natureza são historizadas, tornam-se no Antigo
Deus apaga a lembrança do ímpio. Seu desaparecimento,
Testamento anamnese dos grandes feitos de Deus: a
como se nunca tivesse sido, é atribuído a Deus. De onde
libertação do Egito (Páscoa), a concessão da Torá
se deduz que o “recordar-se” de alguém, por parte de
(Pentecostes), a estadia do povo no deserto (Festa das
Deus, é algo que pertence, por assim dizer, à ordem
Tendas). Desta maneira as festas testemunham a
ontológica, é existir diante de Deus e pela ação de Deus.
presença permanente de Deus na história, conjugando
“O ser humano vive, porque Deus se lembra dele e este
recordação do passado, significado permanente e
tem o dever de louvar a Deus, lembrando suas
perspectiva escatológica. Assim se vê que não se trata de
maravilhas” (EISING, 1977, p.586). Por parte de
puro girar em torno a algo que se foi e não volta mais e
Deus zakar é uma ação criadora em favor de seu povo
está cada vez mais longínquo, mas à anamnese é própria
(cf. EISING, 1977, p.591). O “lembrar(-se)” é,
uma força atualizante que revela que a ação de Deus se
pois, eficaz, produz efeito.
mantém no presente. Recordar é uma mediação entre a
O sujeito da ação de “recordar-se” pode ser ação de Deus no passado que, como tal, permanece no
Deus ou o ser humano, mas o complemento, quando em passado e não se repete, e a significação permanente
contexto religioso, é a aliança, ação salvífica de Deus, e dessa mesma ação que tem suas raízes e origens naquele
a resposta humana positiva ou negativa. passado que se evoca na anamnese e é mediada para o
hoje através de uma celebração ou de determinado gesto
Desta forma, o grupo semântico em torno à
litúrgico, como a realização da ceia pascal cada ano.
palavra “memorial” não deve ser estreitado só para um
lado, como se um aspecto excluísse o outro. Ao afirmar 1.2 Memorial: no Novo Testamento (cf.
que o memorial visa a lembrar a Deus, não se exclui que MICHEL, 1942)
vise também a lembrar ao ser humano e vice-versa.
A complexidade dos termos
No contexto da aliança, o grupo de palavras evoca o memorial/anámnesis/zikkaron,
modo de petição persistente e espalhado, acoplado com a lembrar/zakar/mimimneiskomai permanece presente no
ação de graças, no qual se pede a Deus pelo povo […] Novo Testamento. “A palavra de Jesus mostra sua força
para que “se lembre de suas promessas de aliança”, uma ao permanecer viva na lembrança dos discípulos”
prática que, simultaneamente, sublinha que os pedintes (MICHEL 1942, p. 681). Pedro se lembra da profecia de
estão eles mesmos lembrando-se delas (CHENDERLIN: Jesus sobre sua negação e, por isso, chora amargamente
1982, p. 216-217, § 448). (cf. Mc 14,72; Mt 26, 75; Lc 22,61-62). Mas é
especialmente depois da ressurreição que se manifesta a
Com o conceito de zikkaron à ideia de “lembrar(-
eficácia da “lembrança” dos discípulos (cf. Lc 24,6.8). O
se)” se acrescenta a de sinal e, por isso, é muitas vezes
Evangelho de João insiste nesse aspecto como fonte de
ligada a ‘ôt, sinal (cf. Js 4,6.7; Ex 13,9; Nm 17,3.5; Ex
fé e de conhecimento (cf. Jo 2,22 e 12,16). “Recordar-
12,13-14). E esse sinal pode ser tanto para Deus, como
se” é verdadeiro conhecimento, porque resulta da ação
para o ser humano. E, portanto, ter a finalidade de
do Espírito (cf. Jo 14,26). “O Espírito Santo confirma,
lembrar a Deus como a de lembrar ao ser humano.
consolida, esclarece a obra de Jesus e assim traz consigo
“Lembrar” aparece, pois, como uma referência ao uma recordação definitiva, conclusiva” (MICHEL 1942,
passado que se faz no presente. Mas é preciso p.681). A Tradição, no sentido teológico forte do termo,
18
é esse “recordar-se” que se dá pela ação do Espírito obediência à ordem do Senhor. É Cristo quem age no
Santo na transmissão da Palavra, na conformação cristã Espírito Santo para tornar-nos “contemporâneos” do
da existência através do amor ao necessitado (cf. Hb Calvário e do sepulcro do Ressuscitado, comungando do
13,3), na celebração da liturgia. Não se trata de uma pão que faz de nós corpo de Cristo a ser entregue pelos
recordação historizante, nem intelectualista, nem demais.
doutrinária, mas de uma vivificação pela Palavra numa
O conceito de memorial/anámnesis/zikkaron não
vivência celebrada na liturgia sob a ação do Espírito de
corresponde, portanto, ao uso corriqueiro do vocabulário
Cristo. É fundamental para a compreensão do
de “lembrança, memória” que denota subjetivismo.
memorial/anámnesis/zikkaron no sentido
Numa hora nostálgica volto meu pensamento ao passado
neotestamentário essa afirmação do Espírito Santo como
e “recordo” os momentos alegres ou as passagens
fonte e penhor do realismo salvífico que nela se opera.
dolorosas da vida. O passado permanece passado, o
Graças à atuação do Espírito Santo o memorial é presente é alimentado por uma recordação que desperta
eficaz, não corre o perigo de ser a nuda determinados sentimentos e a vida continua. É pura
commemoratio que o Concílio de Trento excluiu como nostalgia. No contexto bíblico, litúrgico, teológico,
explicitação do que acontece na eucaristia (cf. DH n. memorial é muito mais; é uma instituição estabelecida
1753). Atuando o Espírito de Cristo, pode-se reconhecer por Deus que nos reporta ao passado, dá sentido ao
a eficácia do memorial. Ele é capaz de tornar perene o presente e nos abre para o futuro.
sacrifício de Cristo e fazer de nós participantes de seu
2 O memorial eucarístico
mistério salvífico.
As raízes bíblicas e judaicas de “memorial” e seu
No tocante à temporalidade do memorial, o Novo
uso no contexto da instituição da ceia pascal judaica (cf.
Testamento acrescenta um aspecto novo e essencial. As
Ex 12,14) iluminam a eucaristia como a páscoa cristã, já
promessas de Deus se cumpriram definitivamente em
que ela é obediência à ordem de iteração dada pelo
Jesus Cristo (ele é o “sim” de Deus, cf. 2Co 1,20),
Senhor na última ceia que os Evangelhos Sinóticos
chegaram os tempos escatológicos (cf. Hb 1,1), o futuro
identificam como uma ceia pascal (cf. GIRAUDO, 2003,
se torna presente, porque na ressurreição de Jesus os
p. 127-143. GIRAUDO, 1989, p. 162-186).
discípulos apalparam com as mãos (cf. 1Jo 1,1) o futuro
que nos cabe. A memória é assim também “memória do 2.1 O memorial e a compreensão mistérico-
futuro”. sacramental da eucaristia
É tendo em mente toda essa riqueza semântica do A compreensão judaica do memorial pascal fica
termo bíblico memorial/anámnesis/zikkaron que se deve muito clara a partir do dito atribuído pela tradição
entender a ordem com que Jesus estabeleceu a iteração talmúdica ao Rabi Gamaliel, que seria ou o próprio
do rito criado por ele na última ceia. A interpretação da mestre de Paulo no judaísmo (cf. At 22,3), ou seu neto
ordem de iteração como “Fazei isto para manter viva a homônimo. Ele resume de forma lapidar o que todo
minha memória” estreita e mesmo deturpa o sentido de judeu piedoso vivia ao comer anualmente o cordeiro
“memorial”. Primeiramente, porque entende “memória” pascal, os pães ázimos e as ervas amargas (cf.
no sentido psicológico intimista. Se não se repete sempre GIRAUDO, 2003, p. 112-115; GIRAUDO, 1989, p.
o que Jesus fez, ele cairá no esquecimento. Dependeria 143-146):
da ação humana o manter-se viva a lembrança do Senhor Em toda geração e geração, cada um é obrigado a ver-se
e sua ação salvífica. Nesse caso, o memorial seria mera a si próprio como tendo ele mesmo saído do Egito, como
ação humana e dependeria de nossa iniciativa a foi dito “E anunciarás a teu filho naquele dia, dizendo:
presentificação do mistério pascal e nossa participação É por causa disto que o Senhor fez por mim [o que ele
na salvação que nos foi dada por Cristo. Não fazemos o fez], quando saí do Egito” [Ex 13,8]. Não somente a
memorial “para manter viva” a memória de Jesus, senão nossos pais remiu o Santo – bendito seja Ele! –, mas
que Deus mesmo nos convoca (como ekklesia) para também a nós remiu com eles, conforme está dito:
celebrarmos o memorial e assim nos leva a “manter “E nos fez sair de lá, para nos fazer vir e dar-nos a terra
viva” a memória de Jesus. que tinha jurado a nossos pais” [Dt 6,23]. (GIRAUDO,
Em outras palavras: o memorial é dom. O 2003, 112s; negrito meu, itálico do autor)
memorial é ação do Espírito Santo em sacramento, em Primeiro observe-se o que está em itálico, a saber:
mistério, em semelhança, segundo a dinâmica própria da expressões que incluem no evento fundante – a
ação sacramental (cf. GIRAUDO, 2003, p. 509-512). É libertação do Egito – aquele que agora celebra a páscoa.
primeiramente ação de Deus que nos convoca (ek-klesía) Não foram eles só, os nossos pais, mas nós hoje que
para, na força do Espírito Santo, realizarmos o sinal (ôt) saímos do Egito, a nós o Altíssimo redimiu. Essa
que é memorial (zikkaron) do mistério de Cristo. O sinal perspectiva é confirmada por outro momento do ritual de
é o gesto de tomar pão e vinho conforme a ordem de Páscoa: a alegoria dos quatro filhos. O segundo filho,
Jesus. Ele se torna memorial quando pronunciamos classificado como malvado, não se inclui na salvação
sobre as oferendas a ação de graças pela obra salvífica operada na libertação do Egito e assim tampouco na
consumada por Cristo. Memorial é pura graça, porque
19
comunidade de Israel, negando, portanto, suas raízes (cf. do vinho sobre os quais se pronunciou o memorial de
GIRAUDO, 1989, p. 137; GIRAUDO, 2003, p. 107). ação de graças) que somos remidos (cf. JOÃO PAULO
II, 2003, n. 4; GIRAUDO, 2008, p. 51).
É tão fundamental saber-se incluído na celebração
da intervenção histórica e irrepetível de YHWH que não A transposição da mistagogia judaica para a
fazê-lo exclui do efeito salvífico próprio à ação divina. eucaristia permite captar melhor o realismo da
Trata-se, pois, de uma compreensão mistérico- eucaristia: pelo memorial da entrega do Senhor sob os
sacramental da ceia pascal, em que está em jogo a noção sinais do pão e do vinho nós nos apropriamos da
de memória sacramental. Este é o primeiro ponto que é redenção em Cristo e ele se torna presente, como o
preciso ter presente para compreender a eucaristia como verdadeiro Cordeiro que tira o pecado do mundo.
memorial. Também nós podemos dizer: este pão que agora
partimos, é aquele que Jesus partiu significando
Um segundo ponto a observar na cláusula de
profeticamente seu corpo entregue por nós; este vinho
Gamaliel é o que está em negrito. Trata-se da
que está agora aqui no cálice é aquele vinho que Jesus
interpretação de Ex 13,8. “É por causa disto”. Pode-se
bebeu na última ceia, anunciando profeticamente seu
perguntar “disto” quê? No caso da Páscoa judaica: do
sangue derramado (cf. GIRAUDO, 1989, p. 221-222.
cordeiro, do ázimo e das ervas amargas (cf. Ex 12,1-14).
GIRAUDO, 2003, p. 168-169).
Vale dizer: os elementos essenciais que não podem faltar
na ceia pascal judaica são os sinais 2.2 A eucaristia, sacrifício memorial
sacramentais que reportam figurativamente os
A partir do realismo salvífico do memorial, pode-
participantes da ceia ao evento pascal da passagem do
se reconhecer a eucaristia como sacrifício. Neste ponto,
Mar Vermelho (cf. Ex 14,15-31), evento único e
o primeiro a fazer é sublinhar que o caráter sacrifical da
irrepetível. Os comensais de hoje se tornam
eucaristia não empana a unicidade do sacrifício de
presentes em mistério ao evento fundador, são
Cristo. Ele é o sacerdote único da nova e eterna aliança;
transportados por esses sinais à passagem do Mar que,
seu sacrifício também é único, pois não é ritual, mas
como todo acontecimento histórico, não se pode mais
histórico, vivencial, existencial e, como todo fato
repetir. A Páscoa de hoje é a mesma Páscoa dos pais.
histórico, irrepetível. Para expressá-lo, no entanto, o
Sob o aspecto salvífico, no plano mistérico-sacramental,
autor da Epístola aos Hebreus lança mão de vocabulário
não há diferença entre o cordeiro, o ázimo e a erva
cultual, ritual e sacerdotal, mas o transforma
amarga daquela última ceia do Egito e os mesmos
intrinsecamente, aplicando-o à realidade profana da
elementos da Páscoa atual. E “é por causa disto” (do
existência histórica de Jesus. A constante referência ao
cordeiro, do ázimo, da erva amarga) que o Senhor nos
culto levítico serve para distanciar-se dele e mostrá-lo
remiu.
superado pelo culto histórico realizado por Jesus, que
Essa perspectiva da ceia pascal judaica esclarece o culmina em sua morte de cruz. Como acontecimento
sentido da eucaristia. Com a mesma intenção de instituir histórico, com todos os horrores das torturas a que são
um zikkaron/memorial/anámnesis, Jesus partiu o pão e submetidas pessoas condenadas como malfeitores, o
distribuiu o cálice. A perspectiva mistérico-sacramental sacrifício de Cristo é absolutamente irrepetível,
herdada do judaísmo permite compreender o alcance do aconteceu de uma vez para sempre (cf. Hb 9,12 e 26) e,
gesto de Jesus. Plagiando a admoestação de Gamaliel com isso, aboliu todos os sacrifícios. Destarte, Cristo é
cabe dizer: o fim do sacerdócio e dos sacrifícios, como o é da Lei
(cf. Rm 10,4). Fim significa ao mesmo tempo “término”
De geração em geração, cada um de nós é obrigado a
e “meta”. Nesse sentido, Cristo é o fim e a realização de
ver-se a si próprio – com os olhos penetrantes da fé –
todo sacerdócio, e sua vida, culminando na cruz e na
como tendo estado lá no Calvário na primeira Sexta-
ressurreição, é o fim e a realização de todo sacrifício.
feira santa e diante da tumba vazia na manhã da
Nessa condição tornam-se desnecessários ulteriores
ressurreição. Pois não só nossos pais estavam lá; mas
sacrifícios, pois por sua vida realizou definitivamente,
também nós todos, reunidos hoje aqui para celebrar a
escatologicamente, a pretensão de todo ato sacrifical:
eucaristia, estávamos lá com eles, prestes a morrer na
apresentar-nos a Deus e ser acolhidos com um olhar
morte de Cristo e a ressurgir em sua ressurreição
benévolo.
(GIRAUDO, 2003, p. 90; GIRAUDO, 1989, p. 116).
A partir dessa afirmação irredutível da unicidade
Nos sinais do pão e do vinho deixados por Jesus,
do sacerdócio e do sacrifício de Cristo ilumina-se o
nós nos tornamos hoje salvificamente contemporâneos
sentido da eucaristia e de seu caráter sacrifical. A
do evento redentor da morte e ressurreição do Senhor.
eucaristia não é o pendant neotestamentário dos
Em mistério ou sacramento, participamos do
sacrifícios do templo. No templo de Jerusalém (e nos
acontecimento histórico único e irrepetível que trouxe a
sacrifícios de todas as religiões), cada sacrifício é um
redenção para nós. Por este pão e este vinho sobre o qual
novo ato sacrifical, distinto do anterior, de forma que
se pronunciou a ação de graças do memorial e para os
podem ser numerados, e trinta sacrifícios valem mais do
quais se suplicou a vinda do Espírito Santo, somos
que dez. A eucaristia, ao contrário, é todo o Calvário e
realmente transportados – na fé – ao evento fundador e
nada mais que o Calvário. E nada lhe acrescenta.
participamos dele. “É por causa disto” (do sinal do pão e
20
Para compreender como, apesar da unicidade e caminhada rumo à definitividade da união plena com o
suficiência do sacrifício de Cristo, a eucaristia pode ser e Senhor no corpo eclesial escatológico.
é “sacrifício <no sentido> verdadeiro e próprio” (DH n.
Nossa contemporaneidade com o passado e o
1751), vem em ajuda o conceito de memorial. Ele
futuro é possível graças à ressurreição de Cristo,
permite que se veja a eucaristia como totalmente
porque, tendo subido aos céus, nele já se realiza essa
relacional ao sacrifício da cruz. É sacrifício porque
junção. Poderíamos ilustrá-lo através de duas
memorial; é sacrifício porque sacramento do único
perspectivas bíblicas que se encontram, respectivamente,
sacrifício (cf. AVERBECK, 1967).
na Epístola aos Hebreus e no Apocalipse.
2.3 No memorial vivemos o “tempo sacramental”
No Apocalipse o vidente vê o Cordeiro que está no
ou “tempo redimido” (PAMPALONI, 2008, p. 87-103)
centro do trono, de pé e como que imolado (cf. Ap 5,6).
Se o memorial nos torna contemporâneos à ação O Cordeiro é o Ressuscitado na glória do Pai. Está de pé,
histórica que é a morte de Jesus e sua manifestação aos como um triunfador, como alguém que possui uma
discípulos como Ressuscitado, pode-se explicá-lo especial dignidade e pode ficar de pé diante de Deus (cf.
distinguindo entre “tempo físico” e “tempo At 7,55). Mas ele está “como que imolado”, porque o
sacramental”. Respondendo ao questionamento de Ressuscitado é o Crucificado e Jesus está na glória do
Calvino que negava a presença de Cristo no pão Pai com toda sua história que culmina e se resume em
eucarístico, porque estando ele no céu, à direita do Pai, sua morte. Nós – cada um de nós – somos o que nos
não poderia estar, ao mesmo tempo, na terra sob as tornamos no decorrer de nossa história. Ninguém nasce
espécies de pão e de vinho, o Concílio de Trento faz pronto; fazemo-nos dia a dia, através de nossas decisões
uma importante distinção entre “espaço físico” e em face aos embates que sofremos, diante das
“espaço sacramental”, declarando não haver contradição circunstâncias em que transcorre nossa existência, do
entre ambos (cf. GIRAUDO, 2003, p.540). A presença cenário em que vivemos. Fazemo-nos a nós mesmos
de Cristo no céu, à direita do Pai, não obsta que ele cada dia, e somente no momento da morte podemos
esteja presente para nós sacramentalmente em sua dizer quem verdadeiramente somos, pois só então
substância, em muitos outros lugares, “segundo um entramos na definitividade. Por isso Jesus, por ser
modo de existência que, embora mal o possamos verdadeiro homem, está junto do Pai com sua história,
exprimir em palavras, podemos reconhecer pelo sua vida de entrega até à cruz.
pensamento iluminado pela fé como possível para Deus
Na Epístola aos Hebreus, Cristo é apresentado
e no qual devemos crer firmemente” (DH n. 1636).
como o verdadeiro sacerdote que supera e realiza o
Em outras palavras: não há contradição entre a sacerdócio levítico. Ponto de partida é a liturgia do Dia
presença física – que, por definição é única – e a do Perdão (Yom Kippur), o grande dia da expiação, a
presença sacramental, múltipla, em todas as eucaristias festa máxima do templo de Jerusalém (cf. Lv 16,3-34).
que se celebram na face da terra. Da mesma forma, deve Nesse único dia do ano, o Sumo Sacerdote (e somente
ser possível afirmar que não há contradição entre o ele), para oferecer a Deus o sangue das vítimas,
tempo físico em que se realizou o sacrifício do Calvário atravessava o véu que separava do olhar profano a parte
e sua perpetuação em cada “hoje” das celebrações mais sagrada do templo, o Santo dos Santos. Mas, para
eucarísticas. O conceito de “tempo sacramental” é muito que pudesse ter acesso à presença do Altíssimo,
feliz por evocar que é em sacramento, em mistério, que, precisava purificar-se dos próprios pecados pelo
pelas palavras de Cristo e a invocação do Espírito Santo sacrifício de novilhos e bodes.
(cf. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 2003, n.
O autor da Epístola aos Hebreus vê nessa liturgia
1333; TABORDA, 2015, p. 287-309), nos tornamos aqui
do templo uma “sombra dos bens futuros” (Hb 10,1). O
e agora contemporâneos do evento do Calvário e da
verdadeiro sacerdote é Cristo que entrou de uma vez por
experiência feita pelas mulheres na manhã do domingo
todas no verdadeiro Santo dos Santos, o céu, sem
junto à tumba do Ressuscitado.
precisar purificar-se previamente, porque feito
Massimo Pampaloni sugere que entendamos o semelhante a nós em tudo, menos no pecado (cf. Hb
“tempo sacramental” como uma irrupção de Deus no 4,15). E ele entrou não por um ato ritual, mas por um ato
tempo cronológico, qualificando a este como “tempo histórico, sua morte como condenado, posto para fora do
redimido” (PAMPALONI, 2004, p. 98-100; lugar sagrado e mesmo da Cidade Santa, tendo que levar
TABORDA, 2015, p. 79-84). Na liturgia vivemos sobre si a ignomínia da cruz (cf. Hb 13,12-13). Seu
imersos na antecipação sacramental do tempo redimido sacrifício é ele próprio, sua vida, sua história. Por isso
que é o “tempo” que experienciaremos na comunhão mesmo supera todo culto antigo e lá está, junto do Pai, a
definitiva e escatológica com Deus. O tempo litúrgico é, interceder para sempre por nós (cf. Hb 7,25),
pois, tempo redimido que não vive a fragmentação do apresentando ao Pai sua vida desde a entrada no mundo
aqui-e-não-lá, do agora-e-não-depois. A liturgia não é (cf. Hb 10,5-7) até a morte na cruz (cf. Hb 13,12). Ele é,
repetição do passado; mas, transportando-nos pela fé e como diz a liturgia, “ao mesmo tempo sacerdote, altar e
pelos sinais sacramentais ao evento fundador, é, cada cordeiro” (MISSAL ROMANO, Prefácio da Páscoa V).
vez que se celebra, um passo ulterior em nossa
21
Em vista dessas duas perspectivas bíblicas do Alten Testament. v. 2. Stuttgart; Berlin; Köln; Mainz:
Apocalipse e da Epístola aos Hebreus, houve quem Kohlhammer, 1977. p. 571-593.
postulasse a admissão de um “sacrifício celeste”
FABRY, H.-J. Anamnese. III. Biblisch. In:
(LEPIN, 1926, p. 737-758). A história de cada um é o
KASPER, W. et al. (eds.). Lexikon für Theologie und
que o identifica como esta pessoa (é o “corpo” da
Kirche. 3.ed. v. 1. Freiburg; Basel; Rom; Wien: Herder,
pessoa). Ora, na plenitude escatológica, não perdemos
1993. p. 590-591.
nossa identidade; pelo contrário, afirmamo-la, pois
também lá “carregaremos” – para o bem e para o mal – GIRAUDO, C. Eucaristia per la Chiesa:
nossa própria história, que é a história de nossa Prospettive teologiche sull’eucaristia a partire dalla lex
liberdade. O mesmo vale do Cristo glorioso, de forma orandi. Roma: Gregorian University Press; Brescia:
que o “sacrifício celeste” não é “outro sacrifício”, ao Morcelliana, 1989.
qual se referiria a eucaristia, mas o mesmo sacrifício do ______. Num só corpo: tratado mistagógico sobre
Calvário perenizado na glória como “sacrifício celeste” a eucaristia. São Paulo: Loyola, 2003.
que serve como mediação para que, celebrando a
eucaristia, nos tornemos contemporâneos do sacrifício ______. Admiração eucarística: para uma
da cruz perpetuado pela existência de Cristo na mistagogia da Missa à luz da encíclica Ecclesia de
eternidade, o vencedor da morte que porta em seu corpo Eucharistia. São Paulo: Loyola, 2008.
as chagas do Crucificado (cf. Jo 20,20 e 27). JOÃO PAULO II. Encíclica Ecclesia de
Em suma: o memorial eucarístico faz Cristo Eucharistia, 17 de abril de 2003. Disponível
presente e, com ele, sua vida, morte, ressurreição, em: http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encycl
manifestação no Espírito, parusia, porque em seu icals/documents/hf_jp-ii_enc_20030417_eccl-de-
mistério pascal Cristo redime o tempo. Pelo memorial, euch.html Acesso em: 27 fev 2020.
sob a ação do Espírito Santo (epiclese), participamos LEPIN, M. L’idée du sacrifice de la Messe
desse “tempo redimido” e, com isso, Cristo se torna d’après les théologiens depuis l’origine jusqu’à nos
presente a nós e em nós, transformando-nos, pela jours. Paris: Gabriel Beauchesne, 1926.
comunhão, em seu corpo eclesial. Por isso, na oração
eucarística, depois de louvar o Pai, recordando (= MICHEL, O. Mimineiskomai ktl. In: KITTEL, G.
memorial) o que fez por nós em seu Filho Jesus e em (ed.). Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament.
vista dele, suplicamos que envie o Espírito com a dupla v. 4. Stuttgart: W. Kohlhammer, 1942. p.678-687.
finalidade: transformar os dons do pão e do vinho no NEUNHEUSER, B. Memorial. In: SARTORE,
corpo e no sangue de Cristo, a fim de que, D.; TRIACCA, A. M. (org.). Dicionário de Liturgia. São
comungando, nós possamos ser transformados no corpo Paulo: Paulinas, 1992. p. 723-736.
eclesial (cf. GIRAUDO, 2003, p. 306-318; GIRAUDO,
1989,p. 436-439). PAMPALONI, M. A liturgia como pastor do
tempo. In: BARROS, P. C. (org.). A serviço do
Francisco Taborda SJ – Faculdade Jesuíta de Evangelho: estudos em homenagem a J. A. Ruiz de
Filosofia e Teologia. Texto original português. Postado Gopegui, SJ, em seu 80º aniversário. São Paulo: Loyola,
em dezembro de 2020. 2008. p. 87-103.
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Abendmahls in der neueren evangelischen Theologie. percorsi sacramentali del testo. Roma: Facoltà di
Paderborn: Bonifatius-Druckerei, 1967. Scienze Ecclesiastiche Orientali. Pontificio Istituto
Orientale, 2004 (pro manuscripto).
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São
Paulo; Petrópolis: Loyola, Paulinas, Ave-Maria, Paulus, TABORDA, F. O memorial da Páscoa do Senhor:
Vozes, 1999 (reimpressão: junho de 2003). ensaios litúrgico-teológicos sobre a eucaristia. 2.ed. São
Paulo: Loyola, 2015.
CHENDERLIN, F. “Do This as My Memorial”.
The Semantic and Conceptual Background and Value of
‘anamnesis’ in 1 Corinthians 11:24-25. Rome: Biblical
Institute Press, 1982.
Bíblia e Liturgia, uma simbiose
EISING, H. zakar. In: BOTTERWERK, G; Sumário
RINGGREN, H. (eds.). Theologisches Wörterbuch zum
Introdução 2.1.3 Festas e celebrações
1 A simbiose esquecida 2.1.4 O calendário religioso
2 A liturgia na Bíblia 2.1.5 O sábado
2.1 A liturgia de Israel 2.2 A liturgia no NT
2.1.1 Lugares 2.2.1 Continuidade e ruptura em relação à liturgia de
2.1.2 Atividades cultuais Israel
22
2.2.2 A fração do pão e o memorial da Ceia do Senhor 3.2 A leitura bíblica na liturgia cristã (católica)
2.2.3 Orações e hinos 4 A formação bíblico-litúrgica
3 A Bíblia na Liturgia Referências
3.1 A leitura bíblica na liturgia judaica
objeto de investigação histórica, literária etc. Segundo
Introdução sua constituição íntima, porém, a Bíblia não é uma
instituição autônoma, nem um fim em si, mas um
Releva-se aqui a intrínseca ligação entre Liturgia e testemunho da comunidade que celebra sua vida diante
Bíblia, numa abordagem principalmente histórica. A da face de Deus, Senhor da vida e da história. Livro da
reflexão teológica, sobretudo da parte da Igreja Católica, vida aberto na presença de Deus, a Bíblia tem seu Sitz
pode ser encontrada nas im Leben na liturgia. Arrancando a Bíblia da celebração
constituições Sacrosanctum Concilium (SC) e Dei da vida na comunidade dos fiéis condenamo-la à
Verbum (DV) do Concílio Vaticano II, nas exortações esterilidade.
apostólicas Evangelii Nuntiandi (EN) de Paulo VI
e Verbum Domini (VD) de Bento XVI e na 2 A liturgia na Bíblia
encíclica Evangelii Gaudium (EG) do papa Francisco. 2.1 A liturgia de Israel[2]
Desde suas origens, a Bíblia e a tradição litúrgica 2.1.1 Lugares
judaica e cristã estão intimamente interligadas, e o Podemos iniciar a descoberta do culto do antigo
reconhecimento dessa “simbiose” fornece a chave de Israel a partir dos territórios/lugares sagrados, dedicados
interpretação tanto de alguns episódios bíblicos como à divindade protetora da coletividade, a casa patriarcal
dos grandes atos litúrgicos. Não só no Novo Testamento ou tribo.[3] No tempo dos patriarcas, são mencionados
(NT), mas também no Antigo (AT) a liturgia é “lugar de sobretudo: Siquém (Gn 12,6-7), Betel (Gn 12,8),
cristalização” das tradições bíblicas (no NT, cf. Mambré (Gn 13,18), Beersheba (Gn 21,22-31; 26,33).
BASURKA; GOENAGA, 1990, p.41). Isso tem
consequências para a leitura e o estudo da Bíblia e para a No tempo do Êxodo, o lugar santo por excelência
formação dos fiéis e dos agentes de pastoral. será a Tenda, o santuário do deserto, chamado Tenda do
Encontro ou da Reunião (’ohel mo‘ed), lugar do
Salvo exceções, usamos o termo “Bíblia” para encontro do povo, mas logo visto como lugar de
significar os escritos registrados no cânon católico do encontro com Deus, onde, inclusive, Deus fala com
AT e do NT, assinalando, quando necessário, o uso de Moisés face a face (Ex 33,11) (DE VAUX, 1973, p. 294-
outras igrejas cristãs e do judaísmo. Quanto ao AT, 295). Ali, Moisés funciona como intermediário entre
lembramos a distinção entre a Bíblia hebraica (BH) ou Deus e povo. É o lugar dos oráculos. Outro nome
Tanakh, normativa para o judaísmo, e a tradução grega, é mishkan, morada (como as tendas dos hebreus
a Septuaginta (LXX), que é mais extensa que a BH e às nômades), sugerindo a presença de Deus no meio das
vezes considerada como “cristã” por causa de seu uso tendas de seu povo, acompanhando-o pelo deserto. A
nas Igrejas Orientais. presença de Deus é reconhecida pela nuvem escura que
Ao falar de “liturgia”, olhamos em direção à desce sobre a Tenda.[4]
liturgia católica renovada depois do Concílio Vaticano Conflui com a tradição da Tenda a veneração da
II, mas, no decorrer do estudo, recorreremos com Arca, baú no qual Moisés guardou as tábuas da Lei (Ex
frequência a conceitos ou figuras do culto religioso em 31,18; 25,16; 40,20). A tradição deuteronomista (Dt
geral, particularmente no mundo bíblico. No contexto 10,1-5) guarda ainda a memória da pequena arca
bíblico, antes que “culto” preferimos o termo “liturgia”, original, contendo somente as tábuas da Lei e chamada
no sentido de ação (érgon) do “povo” (laós)[1], no caso, Arca da Aliança, berît (na tradição sacerdotal: Arca do
o povo de Deus reunido na Aliança, da qual o evento do Documento, edut) (DE VAUX, 1973, p. 301). Mais tarde
Sinai (Ex 19,1–24,11) é a “referência memorável” e que ela é associada à Tenda, pela tradição sacerdotal que tem
encontra sua plenitude na Nova Aliança do “evento diante dos olhos o templo de Salomão e o Segundo
Jesus Cristo”. Templo depois do exílio. Por causa da associação à
1 A simbiose esquecida Arca, a Tenda é também chamada Tenda do Testemunho
Apesar da origem profana de alguns de seus (Nm 9,15; 17,22; 18,2). Conforme a historiografia
componentes, a Bíblia como tal pertence ao espaço- deuteronomista, a Arca foi posta no Debir, a “capela”
tempo sagrado. A coleção e organização dos livros ou cella do Templo (o “Santo dos Santos” da tradição
bíblicos no judaísmo começou a partir do século V aC, sacerdotal), onde ela se encontrava coberta com uma
nos círculos sacerdotais, em função das celebrações no bandeja para o sangue sacrifical, ladeada de dois
“Segundo Templo” e nas sinagogas, as quais fizeram da querubins.[5]
prática da leitura o centro do culto. Durante a Entretanto, devemos lembrar que havia santuários
Antiguidade e a Idade Média, era evidente a simbiose de em todo o território das tribos: Guilgal (Js 4,19 etc.),
liturgia e Bíblia, tanto nos ambientes judaicos como Silo (onde Deus é chamado YHWH Sabaot; segundo Js
cristãos. A Modernidade, porém, “autonomizou” a 18, o lugar de encontro das tribos), Mispa (Masfa) em
Bíblia. Fez dela uma autoridade religiosa autônoma e um Benjamim (Jz 20–21), Guibeon (Gabaon), que será o
23
lugar de oração de Salomão (1Rs 1,4-15), Ofra, Dã; e Outro tipo, importante para a ulterior liturgia
Jebus-Jerusalém, conquistado por Davi (2Sm 6) e lugar cristã, é o sacrifício de paz, zebaḥ shelamim, no qual o
do futuro templo construído por seu filho Salomão (1Rs acento está na comunhão entre o(s) oferente(s), o
6,37-38; cf. 6,1). Desde o tempo de Salomão, o Templo sacerdote e Deus, e que, por isso, é chamado sacrifício
comportava três espaços principais: o átrio/pátio (’ulâm), de comunhão (DE VAUX, 1973, p. 417). Há três tipos: o
o Santo (hekal) e o Santo dos Santos (debir). sacrifício de louvor, o sacrifício voluntário e o sacrifício
O templo de Salomão tornou-se o centro religioso votivo (obrigado por um voto).
de Israel apesar do prestígio dos antigos santuários e Além disso, temos o sacrifício expiatório,
apesar do templo rival construído por Jeroboão chamado sacrifício pelo pecado (ḥaṭṭat) ou de reparação
(Ierobeam) em Betel (1Rs 12,29). O Templo era a sede da culpa (’asham). Este tipo ocupa quase a metade do
da presença divina, e também o sinal de eleição, o lugar código sacrifical do Segundo Templo (no Lv) e é
escolhido por Deus (já antes de sua construção, cf. 2Sm importantíssimo para a teologia do NT, que fica
24,16). Tornou-se até um símbolo cósmico em Ezequiel incompreensível quando se cede a certa tendência a
e na literatura apocalíptica. Existiu, porém, sempre certa depreciar o sacrifício de expiação.
relativização do Templo, como na profecia de Natã Da oferta vegetal (minḥah, traduzido por
(2Sm 7,5-7), nos recabitas (Jr 35), e mesmo na visão “presente” ou “manjar”), é queimada sobre o altar uma
pós-exílica de Is 66,1: “O céu é meu trono e a terra o parte chamada ’azkarah (em grego zikkaron), que
estrado dos meus pés; que casa construireis para mim?” significa “memorial” e é vista como um meio para que
– que chega ao cúmulo na visão da nova Jerusalém que Deus se lembre do oferente. Uma variante desse
dispensa o Templo (Ap 21,22). Essa relatividade do simbolismo consiste nos “pães da proposição”, oferta
Templo foi certamente decisiva para que o judaísmo exposta na mesa juntamente com incenso, que (pela
sobrevivesse sem o Templo, tanto na sinagoga rabínica fumaça e pelo “suave odor”) cumpre a função
como no cristianismo (cf. Jo 2,21). de ’azkarah, memorial. Os pães de proposição eram
2.1.2 Atividades cultuais reservados aos sacerdotes (cf. Mc 2,26), que os
Lembramos per transennam os ministros do culto consumiam ao final da semana.
– sacerdotes e levitas – em vista da ressignificação do
sacerdócio no NT (DE VAUX, 1973, p. 345-414). Eles B. Atividades secundárias
estão em função das ações cultuais, sacrifícios e preces,
que deixaram profunda marca na liturgia cristã.
a. Culto, oração e canto
A. Sacrifícios Celebrações que consistiam exclusivamente de
oração e canto são mencionadas apenas em Ne 9 e Jl 1-
“O sacrifício era o ato principal do culto de Israel”
2, ambos ritos penitenciais, mas a literatura sapiencial,
(DE VAUX, 1973, p. 414). Realizava-se no altar
sobretudo Sirácida, insistem no sacrifício de louvor ou
(mizbêaḥ, derivado de zabaḥ, imolar/oferecer sacrifício),
“dos lábios”.
que era uma plataforma, de pedra natural ou construída,
inclusive com uma grelha para os sacrifícios queimados No contexto dos sacrifícios, são mencionadas
e um rego por onde escorria o sangue. O nome mais fórmulas de bênção (Nm 6,22-27) e de maldição (Nm
comum para os sacrifícios é ‘olah, “aquilo que sobe” – a 5,21-22; Dt 27,14-26). O Deuteronômio formula orações
vítima que sobe ao altar ou o “presente” (minḥah) que para a oferta das primícias (26,1-10) e do dízimo trienal
sobe até Deus. A tradução grega holokauston visa (26,13-15) e para a Páscoa (6,20-25; cf. Ex 12,26-27),
principalmente os sacrifícios consumidos pelo fogo do bem como para o caso de não localização do homicida
altar. O caráter de doação livre a Deus, portanto não (Dt 27,1-8). Am 5,23 menciona os hinos acompanhando
mágica, é bem acentuado no rito levítico. Muitas vezes é os sacrifícios. No livro das Crônicas, encontramos toda a
entendido como uma retribuição a Deus por seus dons. organização dos cantores que acompanhavam os
Isto se mostra especialmente na efusão do sangue sobre sacrifícios e procissões.
o altar, porque o sangue é vida e a vida pertence a Deus O lugar de maior consideração para a oração era o
(DE VAUX, 1973, p. 417). Nos rituais mais tardios é Templo (cf. a parábola de Jesus em Lc 18,10), mas é
muito acentuada a minḥah, o “presente”, um alimento ou evidente que não era exclusivo. Inspirou o costume de
libação acompanhando a ‘olah (DE VAUX, 1973, p. orar em direção do Templo (Sl 5,8; 28,2; 138,2) ou de
417). Outro termo para diversos tipos de sacrifícios Jerusalém (1Rs 8,44.48; Dn 6,11). Podia-se orar em
é qorban, que significa “aproximação”, oferta.[6] qualquer lugar e tempo, mas alguns momentos eram
especiais, como a oração à noite (Sl 4) e pela manhã (Sl
5), em horas e dias fixos (Jt 9,1; Dn 6,11). Orava-se em
pé, inclinado ou ajoelhado.
Importante é que a oração no AT é dirigida
diretamente a Deus, sem divindades intercessoras
(monoteísmo!), embora depois do exílio, aos poucos,
24
apareçam os anjos mediadores (p.ex. Tb 12,12). Em prescreveram todos os remédios necessários […]. O
2Mc 15,14 é dito que Jeremias ora pelo povo e a Cidade judaísmo pós-bíblico enveredou ainda mais longe na
Santa. mesma direção. (1973, p. 464)
E apesar da crítica de Jesus e de Paulo, não poucos
b. Os salmos cristãos continuaram na mesma linha…
Merecem consideração especial os Salmos, que
constituem praticamente 1/10 do volume do Tanakh. O d. Ritos de consagração
saltério, cujos trechos mais antigos remontam até o Purificação tinha a ver com a santidade, que se
tempo do nomadismo, é concebido em função do culto. procurava seja neutralizando o contato com o santo ou
Especialmente os salmos “graduais” ou “de subida” numinoso (cf. supra), seja dispondo-se para receber a
acompanhavam as peregrinações ao Templo (Sl 120– santidade (cf. a seguir), de modo que os termos purificar
134). Mesmo os salmos individuais são muitas vezes e santificar/consagrar às vezes se tornam sinônimos (cf.
individuais apenas na sua formulação, mas com índole Jo 11,55).
coletiva e litúrgica. Os cabeçalhos dos Salmos nos
informam sobre o uso litúrgico. Reunindo diversos Santificação ou consagração é a separação de algo
gêneros literários, foram subdivididos em cinco livros ou alguém para o santo ou sagrado. Nem sempre se
(como os cinco livros de Moisés). Os salmos, como diz precisava de um rito para isso; um contato ou situação
Tomás de Aquino, contêm a Bíblia toda: eles lembram podia ser o suficiente. Os soldados para a guerra santa
orando o que os outros textos bíblicos expõem narrando eram santificados e os despojos conquistados também.
ou exortando. Mas ritos de consagração havia, e muitos. Embora os
sacerdotes fossem consagrados pela própria ação do
sacrifício, havia também a consagração dos sacerdotes
c. Ritos de purificação e de dessacralização amplamente descrita em Lv 8–10. Aqui entra a unção
Um senso primordial que vem à tona no culto de com óleo especial (crisma), aplicada ao sumo sacerdote,
Israel é o horror ao que é intocável, seja pelo “excesso” ao santuário, ao altar, aos utensílios (Ex 30,26-29; 40,9-
de santidade (o santo), seja pelo caráter de mistura 11; Lv 8,10). A unção era essencial para o rito de
perturbadora (o impuro): a Arca da Aliança, as vestes do entronização do rei, o “ungido” por excelência,
sacerdote, os fluidos do corpo, o sangue do parto… caracterizado pelo nezer, a parte não raspada do cabelo
Tratava-se de impureza cultual, não moral. Depois de (Sl 89,39).[8]
um contato assim era preciso uma purificação para Uma forma muito explícita de consagração é o
voltar ao estado normal. De modo que o rito de voto, pelo qual se “devota” algo a Deus: um dízimo (Gn
purificação podia também significar a neutralização do 28,22); uma pessoa (Jz 11,30-31; 1Sm 1,11) etc. A
contato com o santo, portanto, dessacralização. intenção do voto é estreitar o laço com Deus. Como os
Para essa finalidade existiam sacrifícios e votos eram constringentes (Dt 22,22-24), melhor era não
abluções, e é preciso perceber a hermenêutica da fazer quando não se tinha certeza (Ecl 5,3-5). Certas
pureza nesta matéria. A purificação depois do parto era circunstâncias tornavam o voto automaticamente
“tabelada” como holocausto e sacrifício ḥaṭṭat (= pelo inválido (Dt 23,19; Nm 30,4-17), e sempre podia ser
pecado) (Lv 14,10-32), embora não houvesse falta moral comutado por uma doação em dinheiro (Lv 27,1-25). O
alguma, pois um parto era coisa abençoada por Deus! rito do voto de nazireato é descrito explicitamente, no
Para um nazireu, no término de sua consagração, a tarifa AT, só para Sansão (Jz 13,4-5.7.13-14), mas
pela “dessacralização” consistia num sacrifício pelo mencionado no NT (At 18,18).
pecado e outro, de reparação (Nm 6,13-20; cf. At 21,23-
24). Na mesma linha, temos os múltiplos ritos de
2.1.3 Festas e celebrações
purificação de objetos, vasilhas, roupas etc. (cf. DE
VAUX, 1973, p. 460-461). Havia até um rito especial Israel gostava de festas e a vida da natureza as
para preparar água purificadora, a água lustral, com as provocava: desmame de uma criança (Gn 21,8),
cinzas de uma novilha vermelha (Nm 19,1-10). casamento (Gn 29,22-23), enterro (Gn 23,2), tosa do
rebanho (1Sm 25,2-38) etc. Ocasiões públicas: coroação
Um tabu forte era a lepra. Lv 13–14 se esgota em
do rei, vitória na guerra (com canto e dança: Ex 15!).
descrever o diagnóstico e os ritos purificatórios para os
Até o jejum tinha caráter festivo (Zc 7,1-3; Jl 1–2; Lm).
“intocáveis” que eram os leprosos. A constatação era
Havia as peregrinações a Betel (Gn 35,1-4), a Silo (Jz
feita pelo sacerdote (Lv 14,3; cf. Mt 8,4 par.; Lc 17,14).
21,19-21; 1Sm 1,3-4), mais tarde incorporadas no culto
[7]
único no templo de Jerusalém.
Observa De Vaux que, depois do exílio,
Os serviços ordinários no Templo:
os judeus se tornaram sempre mais conscientes da
– o holocausto diário de dois cordeiros, um pela
necessidade de pureza, e o medo da impureza podia se
manhã e outro ao entardecer (Ex 29,38-42; Nm 28,2-8),
tornar uma obsessão. Daí, os autores do Código
chamado de ”sacrifício perpétuo” (Ex 19,42; Nm 28
Sacerdotal multiplicaram os casos de impureza e
etc.), interrompido durante a perseguição de Antíoco
25
(Dan 11,13 etc.) e restabelecido por Judas Macabeu
(1Mc 4,36-58). No tempo do NT, o sacrifício é
celebrado em plena tarde (Mt 27,46-30 par.).
– no sábado, havia uma oferenda suplementar de presença de todos os masculinos +
mais dois cordeiros, um manjar e uma libação (Nm 28,9-
10), mas Ezequiel prevê isso muito maior (Ez 46,1-5). Muito mais detalhado é o código sacerdotal, na
– o sacrifício da lua-nova (Nm 28,11-15), ou Lei da Santidade, Lv 23, seguido pelo judaísmo até hoje.
neomênia, iniciava cada novo mês do calendário lunar. [9] Adota o ano babilônio, considerando abib o primeiro
Essa festa é muito arcaica, mencionada juntamente com mês (primavera, março-abril) (23,5). A primeira festa é a
o sábado em Os 2,13. Como o sábado, é dia de repouso Páscoa, combinada com Ázimos, no dia 15
(Am 8,5), dia de consultar o “homem de Deus” (2Rs de abib (iniciando 14 à noite; 23,5-6), com “santa
4,23), dia de festa para o rei Saul (1S, 20,5 etc.), mas convocação” no primeiro e no sétimo dias (23,7-8). A
objeto de indiferença para Paulo em Cl 2,16. Só o segunda, sem nome próprio, é no quinquagésimo dia (de
repouso da lua-nova do sétimo mês ganhou uma lei onde, em grego, Pentecostes). A terceira, com o nome
própria em Lv 23,24-24; Nm 29,1-6 (Dia da Aclamação, de Sukkot, Tendas, é no dia 15 do “sétimo mês”, mas o
preparando o Yom Kippur). calendário inclui, antes disso, na lua-nova (primeiro dia)
do mês de tishrî (set-out), a festa do chofar (dia da
Aclamação, ou Ano Novo, Rosh Hashaná) e, no dia 10,
2.1.4 O calendário religioso o Yom Kippur (Expiação, descrito em Lv 16).
Ao lado dos sábados e neomênias, Israel tem O calendário utópico de Ez 45,18-25 nem
reuniões (mo‘ed) em diversas oportunidades, menciona a festa das Semanas e transforma a Páscoa e
principalmente nas três grandes festas anuais de Tendas em celebrações penitenciais. A legislação
peregrinação, com procissão e danças (ḥag). São elas: 1) abrangente de Nm 28–29, porém, desconsidera o projeto
Ázimos (maṣṣot), em Dt combinado com Páscoa de Ezequiel e completa com outros ritos aqueles de Lv
(pésaḥ), ambas lembrando a saída do Egito; 2) 23, apresentando a lista completa dos sacrifícios no
Sega/Ceifa (qaṣîr), no Javista e em Dt chamada Semanas tempo de Esdras.
(shabuot); 3) Colheita (’asiph), em Dt chamada Sukkot,
Houve ainda outras festas, mas conservam-se
Tendas. Em Dt o caráter agropastoril fica diluído e a
somente Purim (Sortes, cf. Est 10,3k), 14 de adar (fev-
celebração da Páscoa fixada num lugar único, Jerusalém
mar), e Dedicação (do Templo por Judas Macabeu, cf.
(reforma de Josias, cf. 2Rs 23,21-23).
1Mc 4,56), 25 de kisleu (nov-dez).
tradições: Eloísta
2.1.5 O sábado
Ex 23,14-17
definições: Consideração especial merece o sábado.[10] O
termo shabbat ou, mais enfático, shabbatôn é
provavelmente derivado do verbo shabat, cessar (o
comparecer 3 vezes ao ano + trabalho, cf. Gn 2,3), de onde, repousar. Suas origens se
perdem nos tempos arcaicos, e sua obrigação é
no mês de abib – memória da saída do Egito + mencionada nos códigos legais eloísta e javista (Ex
23,12; 34,21), no Decálogo (Dt 5,12-14‖Ex 20,8-10) e no
Código Sacerdotal (Ex 31,12-17). Era praticado desde a
ázimos (maṣṣot ) no mês de abib, 7 dias + ocupação de Canaã (por volta de 1100 aC).
Matematicamente, não cabia na divisão quádrupla do
mês lunar de 29 1/2 dias; simplesmente se descansava a
páscoa (pésaḥ) de YHWH – memória da saída do Egito – cada sete dias, pois sete é o número da completude…
Desconsiderando os poucos casos em que outros dias
no lugar que Deus tiver escolhido (Jerusalém) – eram designados para descanso festivo, o sétimo dia
sustenta como um basso continuo de santidade todo o
ritmo da comunidade. Por isso aparece nos textos que se
oferta dos primogênitos – referem à Aliança, e a teologia sacerdotal o associou à
própria obra da criação (Gn 1,1–2,3). É o dia
dedicado/consagrado a YHWH (Lv 23,3.38; Ex 31,15),
sega/ceifa (qaṣîr) depois de 7 semanas
consagrado por YHWH mesmo (Ex 20,11). Associado à
+
Aliança, sua observância é vista como garantia de
Salvação (Is 58, 13-14; cf. 56,2; Jr 17,19-27), e a não
observância causava exclusão da comunidade (Ex 31,14;
colheita (’asiph) na saída/ no fim do ano + 35,2; Nm 15,32-26) e castigo de Deus (Ex 20,13; Ne
13,17-18). Depois do exílio, quando era impossível
26
observar as outras festas, o sábado tornou-se a marca do insistiram em criticar o formalismo que consistia em
judeu fiel. Entretanto, as regras se tornaram sempre mais realizar o culto por realizá-lo, sem compromisso com o
estritas. No tempo dos Macabeus, os soldados preferiam projeto de Deus: “Este povo se aproxima de mim só com
morrer a combater no sábado (1Mc 2,39-41; 9,43-39). a boca e me honra só com os lábios, mas o seu coração
Mais severos ainda são o livro dos Jubileus e os monges está longe de mim, e seu temor para comigo é como
de Qumran. Estava na hora de aparecer Jesus… preceito humano, aprendido de rotina” (Is 29,13) –
crítica retomada por Jesus mesmo (Mc 7,6-7 par.).
Jesus e os seus discípulos/seguidores não criaram
2.2 A liturgia no NT
um novo culto. Viveram os costumes de Israel, porém,
Cabe mostrar aqui a continuidade e a seletiva e criticamente, abandonando alguns,
descontinuidade da liturgia do NT com a do AT, bem ressignificando outros. Jesus frequenta a sinagoga aos
como a novidade decisiva da fração do pão e do sábados, participa do culto do Templo e das
memorial da morte e ressurreição de Cristo. peregrinações, mas também transgride a ordem cultual,
O ponto de ruptura entre o AT e o NT se chama manifestando sua soberania sobre o sábado (Mc 2,23-28
Jesus. par.) e sobre as leis da pureza alimentar (Mc 7,1-23
par.). Assim como reinterpreta a Lei em função da
Na sua visão profético-apocalíptica, como porta- justiça e da misericórdia de Deus (Sermão da
voz/revelador[11] de que o reino de Deus chegou, Jesus Montanha), o culto é para ele uma ocasião para revelar a
não procurava continuar, muito menos restaurar as misericórdia de Deus (Mc 3,1-6 par.), do mesmo modo
instituições religiosas do judaísmo, e sim derramar sobre como a revela fora do culto, nas refeições, nos
o povo o espírito da purificação e do reavivamento encontros. Jesus prolonga a tradição crítica dos profetas
anunciado por Jeremias e Ezequiel, repetindo as (Mc 11,15-17 cf. Is 56,7 e Jr 7,3-11; Mt 9,13 cf. Os 6,6).
censuras contra o culto pronunciadas por Amós, Oseias e Subordina o sacrifício ao perdão fraterno (Mt 5,23-24).
Isaías. Isso, acompanhando suas palavras com sinais de Ensina a simplicidade na oração (Mt 6,7-13‖ Lc 11,1-4).
sua autoridade (exousia), no estilo de Elias e Eliseu. Não Tudo isso está condensado em Jo 4,21-23: “Vem a hora,
estava preocupado em restaurar o Templo e sim a “tenda e é agora, em que os verdadeiros adoradores adorarão o
arruinada de Davi”, o reinado instaurado por Deus Pai em espírito e verdade”. O lugar do culto não tem
mesmo mediante seu servo Davi (Am 9,11-12, cf. At importância. Por isso, a pregação profético-apocalíptica
15,16), em outras palavras: o povo de Deus. (= reveladora) de Jesus pode anunciar a destruição do
Temos duas orientações para compreender a Templo (Mc 13 par.), e o “apocalíptico de Patmos”
atitude de Jesus em relação ao culto e à Lei em geral mostra a visão da Jerusalém Celeste sem templo, pois a
(que no entendimento dos fariseus e escribas se tinha presença de Deus e do Cordeiro é imediata (Ap 21,22).
tornado uma espécie de culto):
1) a exigência profética do coração puro na 2.2.2 A fração do pão e o memorial da Ceia do
observância da Lei e do culto, priorizando o amor a Senhor
Deus e, portanto, ao próximo[12], realizando a justiça
(ṣedeq), a fidelidade (’emet) e a misericórdia (ḥesed);
2) a crítica à falsidade em geral (hipocrisia) e, de
modo especial, no culto (Mc 7, Mt 23), culminando no
gesto e nas palavras proféticos (reveladores do kairós de
Deus) em relação ao Templo (Mc 11,15-18; 13,1-37 e
par.) – o estopim de sua condenação por parte dos
chefes religiosos.
27
A grande novidade na liturgia cristã é a fração do da teologia sacerdotal do AT. Observe-se, porém, que
pão e a Ceia do Senhor. A fração do pão tem um sinal isso é tipologia e não pode servir para uma interpretação
precursor num gesto profético de Jesus, a multiplicação clerical do sacerdócio ministerial na comunidade cristã.
dos pães. Gesto profético, porque também Elias (1Rs
17,8-16) e sobretudo Eliseu (2Rs 4,42-44) realizaram
sinais de sua missão da parte de Deus por gestos 2.2.3 Orações e hinos
semelhantes. Neste tópico, convém valorizar alguns Eliminando toda verbosidade, Jesus deu aos
traços do relato joanino, que, embora baseado na forma simples a oração cotidiana, o Pai-nosso, que, segundo
marcana, talvez represente melhor a importância desta Agostinho, contém tudo o que se pode pedir a Deus. Por
tradição no conjunto da memória cristã. Em todas as isso, ela ocupa o lugar matematicamente central no
cinco versões sinópticas[13], aparecem dois detalhes que Sermão da Montanha (5,1–6,8|6,9-13|6,14–7,28).
sugerem o caráter ritual da “fração do pão”, que é uma
das características da primeira comunidade cristã As comunidades nascidas de Jesus não deixaram
segundo At 2,42-42: a fração do pão com ação de graças de continuar a tradição hinológica do AT, criando os
(cf. também Lc 24,30.35). Outro traço que sugere o rito hinos que exprimem a história da salvação e o louvor a
da comunidade é o papel de cooperadores/distribuidores Cristo e ao Pai. Por exemplo, Fl 2,6-11; Cl 1,15-20; Ef
confiado aos discípulos. Alusões às doze tribos sugerem 1,3-14; 1Pd 2,21-24; Lc 1,68-79; 1,46-55; 2,29-32; os
o caráter messiânico atribuído a esse fato. A versão cânticos do Apocalipse; a forma original do prólogo
joanina, que não contém o termo “fração” nem o papel joanino Jo 1,1-5.9-14; entre outros (GOURGUES, 1995;
de mediação dos discípulos, por outro lado usa esse MAREANO, 2018).[14]
relato como base para o discurso do “pão da vida” com
nítidas alusões àquilo que Paulo chama “a ceia do
Senhor” (KONINGS, 2020). 3 A Bíblia na Liturgia
De fato, a literatura paulina deixa entrever nas A simbiose de Bíblia e Liturgia não significa
reuniões das comunidades um momento para a ceia do apenas que a liturgia tem um lugar permanente nos
Senhor, entendida como memorial da morte e escritos bíblicos, como acabamos de descrever, mas,
ressurreição de Cristo. Nos evangelhos sinópticos, esta vice-versa, que a Bíblia tem um lugar permanente na
ceia é descrita de modo extenso, com indícios de Liturgia.
diversas tradições. O conteúdo específico do memorial é 3.1 A leitura bíblica na liturgia judaica
a morte de Jesus, vista como prenúncio de sua volta na
gloria escatológica. Este traço escatológico é claro O culto do Israel Antigo conhecia ritos sacrificais,
sobretudo na versão de Lc 22,15-18 (composto de duas divinatórios, expiatórios, apotropaicos etc., que foram
tradições). progressivamente concentrados na adoração do Deus
único, YHWH, culminando na unificação do culto em
Um segundo elemento da Ceia do Senhor é o torno do Templo de Jerusalém, pelo rei Josias por volta
caráter sacrifical. Nítida é a referência ao sacrifício da de 620 aC, pouco antes de Judá ser golpeado pelo exílio
Aliança em Ex 24,1-11, pelas palavras de Jesus “este é babilônico (597-538 aC). Depois do exílio, com o
meu sangue da (nova) Aliança”. Em Mt 26,29 lê-se desenvolvimento do culto sinagogal, a liturgia judaica se
“para o perdão dos pecados”. Será que isso acrescenta transformou paulatinamente numa liturgia da Palavra.
algo à fórmula “por vós” ou “pelos muitos” (= todos) Durante o domínio persa, instaurou-se a prática da
que ocorre nas diversas tradições? A forma de Mateus leitura pública da Lei, na liturgia do dia da Aclamação,
parece aproximar a morte de Jesus do sacrifício pelo no início do sétimo mês (hoje festa do ano novo),
pecado, o que não é necessariamente o sentido original provavelmente em 397 aC (Ne 7,52–8,3). A Bíblia
de “por vós/pelos muitos”, que pode ter o sentido da menciona também em diversas ocasiões anteriores uma
fundação da nova Aliança, um sacrifício de comunhão. leitura diante do povo ou das autoridades de um texto
O evangelho joanino (que não traz as palavras da legislativo ulteriormente assumido na Torá:[15] a solene
instituição da Ceia e liga a eucaristia à multiplicação dos leitura da Lei em Ex 24,7, a leitura da Lei em 2Rs 23,3 e
pães/“pão da vida”) parece unir na morte de Jesus a a instituição da prática setenal em Dt 31,9-13.
referência ao cordeiro oferecido pelo pecado (Jo À medida que os escritos bíblicos de Israel iam
1,29.36) e o cordeiro pascal (19,36). Nas cartas joaninas, sendo reunidos, tornaram-se referência para a identidade
Jesus é chamado de vítima de expiação (1Jo 2,2; 4,10). confessional, como memória dos magnalia Dei e como
É Paulo que usa a linguagem sacrifical para tornar regra de vida para a comunidade. Esse significado
compreensível a obra de Jesus, mas num sentido complexo se resume no termo hebraico torah,
bastante geral, acessível aos gentios que constituíam “instrução”, traduzido no grego como nomos, “lei”
parte de seu leitorado. Entretanto, a Carta aos Hebreus (entendida como disciplina ou educação, comparável
(que não é de Paulo!) descreve, para um público à paideia dos gregos).
eminentemente judeu e sacerdotal, a vida e a morte de Com essa dupla finalidade de rememoração e de
Jesus mediante uma releitura de toda a tradição sacrifical educação, a sinagoga adotou a leitura litúrgica dos cinco
28
livros chamados “de Moisés” (a preleção da torah no louvores, os hinos cristãos e os salmos do AT, muitas
sentido restrito), além dos trechos memoráveis dos vezes interpretados como profecia do evento Jesus
“profetas” (a haftarah), tudo isso emoldurado pelos Cristo.
“louvores” (os tehillim, salmos).
“Considerando a Igreja como ‘casa da Palavra’
Na época da atuação de Jesus de Nazaré, essa deve-se antes de tudo dar atenção à Liturgia sagrada”
“leitura da Lei” era praticada, dependendo do costume (VD n. 52). “Cada ação litúrgica está, por sua natureza,
local, num ciclo de um ou de três anos, ou também de impregnada da Sagrada Escritura” (VD n. 52). A leitura
modo mais livre (TREBOLLE BARRERA, 1996, p. bíblica na Liturgia é uma forma de o Cristo estar
141-144). Além disso havia outras celebrações que são presente (cf. VD n. 51; DV n. 8) – abrindo as Escrituras
descritas em estudos específicos sobre a liturgia da (cf. Lc 24,32). Esta expressão de Lucas e a frequente
Palavra no judaísmo. presença de alusões, aplicações, sentidos plenos das
Escrituras de Israel mostra que não se pode dispensar a
Diferentemente da liturgia sacrifical, reservada ao
presença do AT na liturgia cristã.
Templo de Jerusalém, a liturgia sinagogal (de leitura)
pode ser realizada em todas as comunidades, até na Isso se aplica em primeiro lugar à celebração da
diáspora, sendo sustentada pela observância Palavra na missa (ou sem Eucaristia) e no Divino Ofício.
do shabbat, repouso do sétimo dia, que garante espaço “Aqui se vê também a sábia pedagogia da Igreja que
para a sinaxe ou reunião sinagogal – exemplo imitado proclama e escuta a Sagrada Escritura seguindo o ritmo
pelo domingo cristão. A liturgia do Templo, depois da do ano litúrgico. Vemos a Palavra de Deus distribuída ao
unificação deuteronomista, ficava longe do povo longo do tempo, particularmente na celebração
disperso, apesar da prescrição das “subidas” em Páscoa, eucarística e na Liturgia das Horas” (VD n. 52). Nessas
Pentecostes e Tabernáculos. A liturgia de leitura na duas formas de liturgia está presente, a princípio, a
sinagoga remediava a distância do Templo. Assim, a Bíblia toda do AT e do NT. O ciclo trienal das leituras
instrução da comunidade, as festas de “todo o Israel” e a dominicais apresenta o NT inteiro e, do AT, aqueles
piedade cotidiana do israelita se alimentam da tradição trechos que ilustram de alguma maneira as leituras do
bíblica e, por sua vez, a realimentam. NT (principalmente os evangelhos), lembrando textos
análogos ou temas proféticos que encontram no NT seu
Depois da destruição do Segundo Templo, em 70
sentido pleno. Já no ciclo bienal das celebrações nos dias
dC. o culto sabático, com a preleção da Lei e dos
de semana lê-se a Bíblia integralmente. O mesmo deve
Profetas acompanhada de hinos e orações, tornou-se a
ser dito do Divino Ofício (o Breviário), que inclui, além
espinha dorsal da religião judaica, ocupando
da leitura da Bíblia inteira, as exegeses dos Santos
praticamente o lugar do Templo. Sinal disso é que o
Padres e dos mestres espirituais até os dias de hoje.
presidente ganha o título de qohên, sacerdote. Quando o
Além disso, o Divino Ofício tem o grande mérito de,
sacrifício do Templo perdeu seu lugar central, cresceu a
através do dia todo, manter a Igreja em contato com os
acentuação, já no judaísmo, mas sobretudo no
Salmos, expressão por excelência da herança espiritual
cristianismo, do sacrifício de louvor e do sacrifício
de Israel, partilhada pelo próprio Jesus.
espiritual.
É de primeira importância o nexo entre a leitura
3.2 A leitura bíblica na liturgia cristã (católica)
bíblica e o sacramento da Eucaristia: os discípulos de
A segunda parte da Dei Verbum (“Verbum in Emaús reconheceram o Ressuscitado pela fração do pão
Ecclesia”, n. 52-89) oferece as principais referências depois que lhes havia explicado as Escrituras (Lc
para a compreensão do uso da Bíblia na liturgia católica. 24,32.35). A palavra e a ação salvífica de Jesus
Herdeira da liturgia judaica, a liturgia cristã desde encontram-se unidas na mesma memória. Se as leituras
os inícios dedicou amplo espaço à proclamação da bíblicas tornam presente o ensino de Jesus (inclusive
Palavra de Deus encontrada na Bíblia. As celebrações suas referências ao AT), o memorial de sua morte e
cristãs incluíam desde sua a origem a leitura das ressurreição traz presente a verdade desse ensinamento
Escrituras (Justino, Apol. 67), embora em alguns no dom da própria vida em amor até o fim, recebido em
ambientes as leituras se limitassem ao NT comunhão pelos seus fiéis.
(JUNGMANN, 1958, p. 337). É provável que os judeu- Essa articulação da Palavra com a ação de Jesus
cristãos assistissem à leitura bíblica sinagogal no sábado apresenta-se, de alguma forma, também nos demais
e, ao pôr do sol, quando se iniciava “o primeiro dia da Sacramentos, agora que a reforma litúrgica do Vaticano
semana”, celebravam a ceia memorial do mistério pascal II incluiu em todos eles uma “liturgia da Palavra”.
(morte e ressurreição) de Jesus. Pode-se supor que a
Olhando esse panorama, pode-se concluir que,
combinação da leitura das Escrituras e da celebração da
para o cristão católico, a fiel participação da Liturgia,
refeição fraterna, com ação de graças (eucaristia)
desde que bem preparada e apresentada, é uma imersão
celebrando o mistério pascal de Cristo, tenha se dado
bíblica, que o torna espiritualmente preparado para
bem cedo, como sugerem também outros textos do NT
desfrutar plenamente a memória de Cristo que é o cerne
(Lc 24) e os primeiros escritos patrísticos (Didaqué,
de sua fé.
Carta a Diogneto). Certamente não faltavam os
29
4 A formação bíblico-litúrgica BÍBLIA TEB – Tradução Ecumênica da Bíblia.
3.ed. São Paulo: Loyola, 2020.
É evidente que o desfrute da riqueza bíblica em
nossa cultura não se dá espontaneamente. Se o próprio DE VAUX, Roland. Ancient Israel: Its Life and
Jesus depois de ter ensinado em parábolas, que deviam Institutions. London: Darton, 1973.
falar por si mesmas, se viu obrigado a dar explicações
GOURGUES, Michel. Os hinos do Novo
através de seus discípulos (Mc 4,33-34), essa exigência
Testamento. São Paulo: Paulus, 1995.
se torna mais premente em nosso tempo, tão afastado do
mundo de Jesus. Desde os primeiros tempos do JUNGMANN, Josef. A. Bibel. II. Gebrauch in der
cristianismo conhecemos a homilia ou explicação das Kirche. In: Lexikon für Theologie und Kirche, Bd. 2.
Escrituras que, aliás, já existia na sinagoga judaica. O Freiburg: Herder, 1958. p. 337.
próprio NT, tanto nos evangelhos como nas cartas, KONINGS, Johan. A Bíblia, sua origem e sua
revela essa prática. A explicação da parábola do leitura. Introdução ao estudo da Bíblia. 8. ed. Petrópolis:
semeador, os discursos de revelação no Quarto Vozes, 2014.
Evangelho, as homilias batismais na Carta aos Efésios e
na 1ª de Pedro confirmam esse costume. Consciente da KONINGS, Johan. A Palavra que é Pão: a
necessidade de explicação, a Sacrosanctum Eucaristia no Quarto Evangelho. Fronteiras, Recife, v.
Concilium recomenda que a leitura bíblica na Liturgia da 3, n. 2, p. 478-499, jul/dez 2020.
Palavra seja acompanhada de breve explicação, se não MAREANO, Marcus Aurélio Alves. Os hinos do
de homilia extensa. Uma das grandes preocupações do Apocalipse: Mysterium tremendum et fascinans. Tese
papa Francisco é a homilia (EG n. 135-144). Doutorado, FAJE. Belo Horizonte, 2018.
A formação bíblico-litúrgica dos ministros e dos TREBOLLE BARRERA, Julio. A Bíblia judaica e
agentes de pastoral é uma prioridade urgente, mas não a Bíblia cristã: introdução à história da Bíblia.
pode ser concebida como mero enriquecimento pessoal Petrópolis: Vozes,1996.
para a vida espiritual ou, como às vezes acontece, para a
mera erudição. Ela deve ser “ministerial”, isto é, voltada [1] No contexto grego, “liturgia” significa
para o serviço ao Povo de Deus. Exorta o papa Bento simplesmente culto ou evento público.
XVI: [2] Esta parte se baseia principalmente nas
Por isso exorto os Pastores da Igreja e os agentes informações de DE VAUX, Roland. Ancient Israel: Its
pastorais a fazer com que todos os fiéis sejam educados Life and Institutions. London: Darton, 1973. p. 271-515
para saborear o sentido profundo da Palavra de Deus que (= Part IV: Religious Institutions).
está distribuída ao longo do ano na liturgia, mostrando [3] Os lugares altos (“altares”) mencionados no
os mistérios fundamentais da nossa fé. Também disto AT muitas vezes são relacionados com teofanias, águas
depende a correta abordagem da Sagrada Escritura. ou árvores sagradas, pirâmides (zigurates) ou, a partir de
(VD n. 52). certo momento, templos. O templo de Jerusalém
Os grupos de estudo e de leitura bíblica com o começou como templo privado da casa de
povo em torno de temas ou livros específicos podem Davi/Salomão.
completar oportunamente a grande pedagogia bíblica [4] Sobre algumas diferenças na descrição da
que é a Liturgia, desde que não a suplantem. Foi graças a tradição eloísta e da sacerdotal, ver DE VAUX, 1973, p.
este tipo de atividades que nas décadas recentes, no 295.
Brasil e na América Latina, como também em outras
partes do mundo, a Bíblia foi, por assim dizer, retirada [5] Que ela era considerada pedestal ou trono do
das mãos dos especialistas ou clérigos e devolvida ao Deus invisível é um significado ulterior, que não aparece
povo. nas antigas tradições narrativas. Móveis semelhantes
aparecem também nas religiões vizinhas (DE VAUX,
“Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, 1973, p. 300).
porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e
as revelaste aos pequeninos” (Lc 10,21). [6] Uma descrição bastante clara encontra-se na
introdução ao Levítico da BÍBLIA TEB – Tradução
Johan Konings, SJ. Faculdade Jesuíta de Filosofia Ecumênica da Bíblia.
e Teologia. Texto original português. Postado em
dezembro de 2020. [7] Lv 14 combina dois ritos: um arcaico, que vê a
contaminação como obra do demônio, exigindo,
Referências portanto, um exorcismo; e um mais recente, equiparado
BASURKA, Xabier; GOENAGA, J. A. A vida aos ritos de purificação levítica (DE VAUX, 1973, p.
litúrgico-sacramental em sua evolução histórica. In: 463).
BOROBIO, Dionisio (org.). A Celebração na Igreja. I: [8] Em 2Sm 1,10 a tradução correta de nezer (do
Liturgia e Sacramentologia Fundamental. São Paulo: verbo nazar, separar) não é coroa, mas sinal de
Loyola, 1990. p. 37-160. consagração (DE VAUX, 1973, p. 465).
30
[9] A crítica literária constata que Lv 23 é uma no amor leal, generoso e justo para com o próximo do
conflação de duas tradições, daí o texto ser um tanto qual ele é o protetor; cf. Mc 12,28-34 par.
complexo (DE VAUX, 1973, p. 473).
[13] Marcos e Mateus trazem duas formas do
[10] Resumimos aqui DE VAUX, 1973, p. 481- relato, Lucas e João uma só.
483.
[14] Nem sempre os hinos se deixam delinear com
[11] É de lembrar que Jesus se apresenta como certeza no NT
mediador da revelação em Mt 11,25-27‖Lc 10,21-22, e é
nesse papel que aparece em Ap 1,1.
Sacramentos
[12] O sentido da junção do amor a Deus e ao
próximo (seja quem for) é que o amor a Deus se realiza Sumário
31
tantum da Escolástica) pode já existir antes. presença e atuação de Cristo no Espírito Santo. Nesse
Logicamente anterior ao sacramento como expressão e sentido Cristo funda e institui a Igreja sempre de novo.
mais básico do que ele, é o acontecimento que ele Ela está enraizada em Cristo e, como para a árvore, não
expressa e realiza: a participação no mistério de Cristo. basta que um dia tenha tido raízes para poder ainda hoje
Em outras palavras: Deus, enquanto por Cristo no viger, crescer e produzir frutos, assim também a Igreja.
Espírito Santo reúne a Igreja e a convoca e provoca pelo A raiz precisa estar presente e atuante para que a árvore
memorial do mistério de Cristo, é o autor dos viva. Semelhantemente também Cristo, porque
sacramentos. permanece na Igreja, a institui – como raiz – sempre de
novo e, com isso, institui constantemente os sacramentos
O problema da instituição dos sacramentos só
pela ação do Espírito Santo.
pode ser resolvido satisfatoriamente, se se considera que
Cristo instituiu primeiramente um caminho de vida e À luz dessa instituição permanente dos
consequentemente seu seguimento. No contexto desse sacramentos, entende-se melhor o axioma agostiniano:
caminho, pela necessidade antropológica de expressar “Quer batize Pedro, quer batize Judas, é Cristo quem
através de ritos o fundamento da vida cristã, adquirem batiza” (AGOSTINHO, In Joannis Evangelium 6,
sentido os sacramentos. Instituindo um caminho de vida, 7: PL 35, 1428). Assim se compreende que o sacramento
convidando ao seguimento, Cristo institui os independe da dignidade e santidade do ministro
sacramentos. Assim Deus, Cristo, o Espírito Santo, a (cf. DH 1612 e 1611), porque é o próprio Cristo que atua
Igreja – cada qual a seu modo, na medida e forma de sua nele. Essa presença dinâmica de Cristo nos sacramentos
participação no plano salvífico – são autores dos se enquadra no contexto geral da presença do Senhor
sacramentos: Deus como fonte última da salvação, Jesus Ressuscitado em sua Igreja (cf. SC 7; PAULO VI,
como o mediador único, o Espírito Santo como quem 1965). Porque os sacramentos estão enraizados em
presentifica Cristo através dos séculos, a Igreja como Cristo, Deus não deixa de atuar neles e se autocomunicar
corpo do Senhor Ressuscitado (cf. verbete “A indefectivelmente pelo fato de a celebração ser presidida
eclesialidade dos sacramentos: 1 A Igreja faz os por um homem indigno, que vive longe do caminho de
sacramentos”). Jesus. É Cristo quem age, porque ele constantemente
fundamenta os sacramentos.
Essa explicação não contraria o Concílio de Trento
(cf. DH 1601), porque não se deve nem se pode reduzir a Nessa perspectiva, a preocupação de buscar no
instituição a um ato jurídico-formal realizado no passado Novo Testamento uma instituição dos sacramentos pelo
e tampouco o texto conciliar o exige. Pelo contrário, a Jesus pré-pascal deixa de ter interesse. Ela seria, aliás,
interpretação mística dos Padres da Igreja, segundo os insuficiente, pois os sacramentos só podem ter sentido
quais os sacramentos têm sua origem no acontecimento depois da Páscoa. Tomás de Aquino estabelece um
da cruz, o que é expresso pelo sangue e pela água princípio muito válido nesse contexto – embora ele
jorrados do costado de Cristo, é bem mais fundamental próprio o aplique insuficientemente. Escreve: “É por sua
que a discussão em moldes jurídicos dos teólogos instituição que os sacramentos conferem a graça.
medievais. Conclui-se, pois, que um sacramento é instituído no
momento em que recebe a força de produzir seu efeito”
A instituição dos sacramentos, como a da Igreja, é
(STh III, q.66, a.2). Ora, a força dos sacramentos provém
algo constante, permanente, expressão do “estarei
do mistério pascal de Cristo e dos mistérios da vida de
convosco todos os dias até a consumação dos séculos”
Cristo, enquanto preparam e levam à morte e
(Mt 28,20). De fato, em geral a palavra “instituição”
ressurreição e são confirmados e transfigurados por esta.
sugere um ato realizado num determinado momento do
Segue-se, pois, que só após a Páscoa cabe falar da
passado. Mas então a Igreja – e com ela os sacramentos
instituição dos sacramentos, no sentido pleno da palavra.
– estaria sujeita a desaparecer com o passar das
Por isso a Tradição patrística ensinava que os
gerações, pela vontade dos humanos, da mesma forma
sacramentos jorraram do costado aberto do Senhor.
como deixa de existir com o tempo uma sociedade
criada por seres humanos para cultuar a memória de Se os sacramentos radicam em Cristo, a Igreja não
algum personagem eminente. Passado o impacto da é senhora, mas servidora dos sacramentos. Essa verdade
presença histórica daquela pessoa, a sociedade acaba por é expressa pelo Concílio de Trento ao declarar que a
desfazer-se e morrer. Mas a Igreja não cai nessa Igreja não pode mudar a “substância dos sacramentos”
categoria de associações, porque é sempre de novo (DH 1728). A “substância dos sacramentos” não é o
constituída por Cristo Ressuscitado, presente a ela por gesto simbólico ou o rito, mas sua significação, seu
seu Espírito. A Igreja não é mero acaso nem invenção sentido que é o sentido mesmo de tudo o que Jesus fez e
humana: ela pertence ao próprio mistério da ressurreição ensinou. Significa que é a impossível a Igreja se
de Cristo. Sem Igreja, isto é, sem a comunidade dos que estruturar ou modificar por si mesma, pelas veleidades
creem no Ressuscitado, a ressurreição de Jesus não teria dos seres humanos que a constituem. Ela tem que ser fiel
sido a manifestação definitiva e escatológica do Deus ao caminho instituído por Cristo, do qual ela é o
revelado (RAHNER; THÜSING, 1975, p.43-4). Por sacramento e os sete sacramentos suas expressões
isso, a Igreja é o Corpo do Ressuscitado, vive da vida do rituais.
Ressuscitado. Vale dizer: é criada constantemente pela
32
2 A hierarquia dos sacramentos (TABORDA, exprime a unidade e a comunhão dos muitos em Cristo.
1998, p.124-7; CONGAR, 1968) Em outras palavras: batismo e eucaristia constituem a
pessoa como cristão. Os demais sacramentos atingem-na
Apesar de serem listados num rol de sete, como se
em situações particulares da vida cristã: o pecado, a
fossem iguais, os sacramentos diferem entre si. A
doença, a vocação ministerial, o amor conjugal. Estão,
afirmação do Concílio de Trento de que há sacramentos
por isso mesmo, em outro nível de importância.
“mais dignos” que outros (cf. DH 1603), supõe uma
diferença radical entre eles, desde o ponto de vista A afirmação do batismo e da eucaristia como
teológico. sacramentos principais é o conteúdo essencial de uma
hierarquia dos sacramentos. A hierarquização que se
Os sacramentos celebram nossa participação no
possa estabelecer entre os demais sacramentos é
mistério de Cristo. Ora, tanto a vida cristã como o
secundária e dependerá dos critérios que se adote para
mistério de Cristo têm momentos de diferente densidade.
estabelecê-la, variando segundo o ponto de vista
A vida humana não é uma monótona planície, onde um
assumido. A perspectiva, no entanto, pela qual se
fato se desenvolve depois do outro, com a mesma
estabeleceu aqui a principalidade de batismo e eucaristia
importância. Também a vida de Jesus apresenta
é a perspectiva básica por fundar-se no significado
momentos diferenciados por sua intensidade. O mistério
mesmo do sacramento.
pascal de Cristo é um momento de muito maior peso que
qualquer outro momento da vida de Jesus, até por ser o Recuperar na teologia sacramental esse dado da
resultado de todos os outros momentos menores e Tradição, reafirmado no Concílio de Trento
iluminar todos eles. Como os sacramentos celebram (cf. DH 1603), é de grande interesse ecumênico, tendo
nossa participação no mistério de Cristo, também eles em vista a posição das Igrejas históricas provenientes da
têm diferente peso para a vida cristã. Há entre eles uma Reforma que aceitam só dois sacramentos: batismo e
hierarquia, onde se destacam sacramentos maiores ou eucaristia. Tem também sua importância pastoral em
principais. Quanto mais um acontecimento da vida do vista da seleção espontânea praticada por nosso povo
cristão significa participação no centro do mistério de que procura, por exemplo, o batismo para as crianças e a
Cristo, sua Páscoa, tanto mais importância tem o missa em determinadas ocasiões (no sétimo dia do
sacramento que sinaliza essa comunhão com o cerne do falecimento de um fiel, em datas especiais como as
mistério de Cristo. bodas de prata ou de ouro…). O “instinto da fé” os
orienta nessa direção.
É verdade que todo sacramento relaciona a vida do
cristão e da comunidade com o mistério pascal, mas há 3 O número dos sacramentos (TABORDA,
sacramentos em que a participação no mistério pascal 1998, 138-43)
está em primeiro plano, inclusive do ponto de vista do
O número “sete” dos sacramentos não é
gesto simbólico. Tal é o caso do batismo e da eucaristia.
primeiramente aritmético-numérico-quantitativo, mas
A passagem pela água é um símbolo que evoca a
simbólico. Tanto é assim que a afirmação de Trento, de
passagem da morte à vida que é a conversão dos ídolos
que os sacramentos são sete, nem mais nem menos
ao Deus verdadeiro. Como outrora o povo escolhido
(cf. DH 1601), pode ser mantida, ainda que se admita
passou da escravidão à liberdade pela travessia do Mar
que episcopado, presbiterado e diaconado são
Vermelho, pelo batismo o neófito passa da vida velha do
sacramentos (o que poderia elevar a nove a numeração
pecado à nova vida à imagem de Cristo. Como Cristo
aritmética dos sacramentos); ou se mantenha com o
atravessou o mar da morte, passando da morte à vida em
Concílio de Trento que a extrema-unção é “o
seu mistério pascal, também o cristão pelo batismo se
acabamento” da penitência (cf. DH 1694), o que a
renova e se reveste do “homem novo” em Cristo
constituiria como uma quase-unidade e perigaria
(TABORDA, 2012, p.155-81). Na eucaristia, a ação de
diminuir para seis o valor aritmético da lista
graças sobre o pão e o vinho faz memória do corpo
sacramental; ou ainda se aceite a íntima unidade entre
entregue por nós na morte de Jesus, desse corpo que é
batismo e confirmação que poderiam ser considerados
fonte de vida, que se entrega em favor da vida dos
sacramentos complementares e com isso somar como
demais. Do ponto de vista do gesto simbólico, o partir
um no rol dos sacramentos.
do pão e o distribuir do cálice evoca a doação de vida
pelo outro que Jesus realizou na cruz e ressurreição Para entender o que significa afirmar que o
(TABORDA, 2009, p. 56-82). Mostra-se assim o lugar número “sete” dos sacramentos é uma grandeza antes
central do batismo e da eucaristia, entre todos os simbólica que aritmética, antes qualitativa que
sacramentos. quantitativa, será preciso considerar alguns elementos
históricos.
A centralidade dos dois sacramentos maiores é
ainda corroborada por serem ambos constitutivos do ser O número “sete” não foi simplesmente
cristão e edificadores da Igreja enquanto tal. Fazem da consequência lógica de uma definição exata de
multidão o Povo de Deus. O batismo, porque incorpora à sacramento. Os teólogos não definiram primeiro o que é
Igreja quem o recebe. A eucaristia, porque faz da sacramento e depois saíram à busca de ritos que
multidão dos redimidos o Corpo de Cristo, cria e preenchessem os requisitos da definição, encontrando
33
casualmente sete, nem mais nem menos. O fato histórico do cosmos. Quatro são os elementos, os ventos, os rios
é que na evolução da teologia sacramental o número do paraíso, os impérios segundo as visões de Daniel etc.
“sete” aparece simultaneamente com um conceito ainda Como soma de três e quatro, o sete é a perfeição por
amplo de sacramento, o que sugere que número e excelência, pois une numa totalidade a tríade divina e o
definição são questões independentes. Aliás, em toda a quaternário cósmico. É, pois, o número da harmonia.
história da teologia dos sacramentos, nunca se chegou a Daí ser ele frequente: sete são não só os sacramentos,
um conceito que de fato abrangesse todos os sete e só os mas também as virtudes, os dons do Espírito Santo, os
sete (CHAUVET, 1976). pecados capitais, os planetas, os períodos celestes, os
tons da escala musical, sem falar nas diversas
Desta consideração histórica, decorre como
ocorrências do septenário no livro do Apocalipse de São
conclusão provável que não foi a definição de
João.
sacramento que serviu de critério para escolher os sete.
Mas tampouco foi a prática litúrgica e eclesial que levou Nesse horizonte é que se devem localizar os sete
a privilegiar esses sete e não outros. Nessa prática, só sacramentos. O número sete já é uma definição de
batismo e eucaristia sempre tiveram o primado sacramento: Deus (tríade divina) que se comunica aos
incontestável; os demais “sinais sagrados” mereceram humanos na realidade cósmica dos gestos simbólicos (o
diversos acentos. quaternário cósmico). Mesmo em Trento, apesar do
acento quantitativo, permanece o sentir qualitativo. O
A razão é que o número sete não tem significado
acento aritmético responde à negação protestante que
quantitativo-numérico, mas qualitativo. Claro que o
também é aritmética. A Reforma protestante se agarra à
conceito qualitativo só existe se podem ser enumerados
letra da Escritura e não apreende o alcance qualitativo do
sete quantitativamente, mas o número sete não é
número sete. Posicionando-se sempre face às afirmações
autônomo.
ou negações dos Reformadores, Trento entra no terreno
O conceito qualitativo de número situa-se no do valor aritmético de sete nem mais nem menos.
contexto de mística dos números da Idade Média. Essa é Entretanto, a Reforma nega não só o número dos
muitas vezes fundamentada em Sb 11,20: “Tudo sacramentos, mas o próprio princípio da
dispuseste com medida, número e peso”. Pensava-se, a sacramentalidade. Trento, defendendo o número sete e
partir daí, que o número expressasse ao mesmo tempo o pondo-se em pé de igualdade (aritmeticamente) com a
pensamento divino e a estrutura fundamental da Reforma, na realidade defende a própria
realidade. A mística dos números remonta, através de sacramentalidade da salvação, expressa simbolicamente
Isidoro de Sevilha (†636), a Agostinho (†430) e, por no número sete.
meio deste, a Platão (†347 aC) e daí a Pitágoras (†495
O parentesco qualitativo-aritmético com a posição
aC). Seu pressuposto é que, compreendendo-se as
protestante teve, no entanto, consequências: a
relações numéricas, não se fala sobre a realidade, mas a
quantificação dos sacramentos com a correspondente
própria realidade nelas se manifesta. A mística dos
tendência a medir a intensidade da vida cristã pela
números era enormemente estendida na Idade Média,
frequência aos sacramentos. Não é preciso ser contra a
como o prova sua existência também entre os judeus
quantificação matemática dos sete, mas contra a perda
(cabala). Pelo simbolismo dos números, a cabala queria
de seu valor qualitativo e o consequente “consumo” dos
fundir os princípios matemáticos e científicos para
sacramentos.
poder, por assim dizer, espiar para dentro do mistério
das coisas. O simbolismo dos números transcende o Mesmo reconhecendo o valor simbólico do
pensamento e permite penetrar mais a realidade. A número sete, no entanto, não se pode abstrair do fato de
mística dos números, nessa perspectiva, não é uma meta que ele é mediado pelo valor aritmético sete. Isto é: sete
de conhecimento, mas uma instância mediadora de ações simbólicas da Igreja – e não outras – foram
maior conhecimento. reconhecidas aptas para expressar simbolicamente, no
simbolismo dos números, o princípio da
Nessa perspectiva do simbolismo numérico para
sacramentalidade, a saber: que Deus se comunica ao ser
expressar a natureza das coisas, sobressai o número sete
humano no histórico-sensível.
por seu significado. O número sete é símbolo qualitativo
da perfeição: o número um significa origem, aludindo ao Em primeiro lugar é preciso dizer que não se pode
uno antes de seu desdobramento em múltiplos; o número estabelecer a priori que sejam esses e por que esses e
dois representa o outro, fundamento da multiplicidade; o não outros os sete sacramentos. Mas, a posteriori é
número três tem sua importância como síntese da possível encontrar uma lógica na escolha dessas ações
unidade (número 1) com a multiplicidade (número 2), simbólicas e não de outras. É que essas ações simbólicas
além de ser o número da mais simples figura geométrica, marcam momentos decisivos na vida do cristão e
o triângulo. Por essa razão, três é o número da perfeição consequentemente na própria vida da comunidade
divina[1], designa a totalidade, símbolo da unidade do eclesial. Historicamente, não é de desprezar o confronto
uno (número 1) e do múltiplo (número 2). O número do problema concreto “quais sete?” com os dados da
quatro é o número da perfeição material, cósmica, o Escritura, que a seleção desses gestos simbólicos
número da proporção perfeita (2:2) e, portanto, da ordem implica. De todos eles o teólogo medieval encontrava
34
resquícios no Novo Testamento. Além do batismo e da soteriologia) na segunda metade do século XII. Ao tratar
eucaristia, que obviamente são dados bíblicos, via-se a da obra redentora de Cristo, distinguia-se o opus
confirmação na imposição das mãos pelos apóstolos em operatum, sua obra redentora ao morrer na cruz, sua
At 8,17; a penitência, em Jo 20,23 e Mt 18,18; a unção ação de morrer, e o opus operantis, a ação dos que
dos enfermos, em Tg 5,14; a ordem, em At 6; o levaram Jesus à morte (Judas, por sua traição; Anás e
matrimônio, em Ef 5,32, onde a tradução latina fazia Caifás, os membros do Sinédrio, e Pilatos, como
ler magnum sacramentum, expressão forte, tão incisiva mandantes do crime; os verdugos, como executores…).
que foi capaz de vencer os preconceitos vigentes contra O efeito redentor da morte de Cristo se dá ex opere
o sexo e o matrimônio. operato e não ex opere operantis; provém da ação de
Cristo ao morrer e não da ação dos homens que o
Na fixação dos sete sacramentos, há um
mataram.
paralelismo com a formação do cânon neotestamentário:
só depois de uma evolução, de um lapso relativamente No século XIII a expressão foi transposta para a
longo de tempo, a Igreja chegou a fixar o cânon. Poderá, teologia dos sacramentos: a graça sacramental não
à primeira vista, ter sido levada pela autoria apostólica depende do ministro nem de quem recebe o sacramento
dos escritos, que hoje, para muitos livros, é negada ou (opus operantis), mas da ação sacramental, exterior,
pelo menos posta em questão. Nem por isso os livros perceptível, visível (opus operatum). É importante
selecionados na formação do cânon deixam de ser considerar a preposição ex que ocorre na expressão. Ela
inspirados e canônicos. A própria história da Igreja, sua significa “por causa de”, “a partir de”. O sacramento não
identidade, que se construiu sobre esses livros e somente é eficaz ex opere operantis, não significa que o opus
esses, não permite voltar atrás. E, para quem crê que a operantis não seja importante, mas sim que a força do
Igreja é conduzida pelo Espírito Santo, é uma garantia sacramento, a graça sacramental, não provém do
da propriedade da escolha. ministro ou da fé de quem recebe o sacramento.
Entretanto, para que o sacramento seja eficaz ex opere
Semelhantemente se poderia dizer dos sete
operato, é preciso sempre algum opus operantis, seja do
sacramentos: a Igreja não apenas celebrou durante
ministro (“a intenção de (…) fazer o que a Igreja
séculos esses sacramentos, talvez sem privilegiá-los,
faz”, DH 1611), seja de quem o recebe (não pôr
mas, uma vez reconhecidos, eles marcaram de tal forma
obstáculo à graça, cf. DH 1606). E, mais que a intenção,
a comunidade cristã, sua vida e sua prática, que já não
exige-se fé por parte de quem recebe o sacramento, uma
pode viver sem celebrá-los. Conduzida pelo Espírito
entrega a Deus correspondente à graça concedida, uma
Santo, a Igreja só poderia ter aceitado evolução tão
vida de acordo com o sacramento ou, pelo menos, a
prenhe de consequências sob a ação do mesmo Espírito.
disposição interna de começar um caminho de
Além disso, discutir se se pode hoje voltar atrás de conversão. A eficácia ex opere operato não substitui
Trento e acrescentar “novos” sacramentos ou reduzir o o opus operantis; entretanto, a graça não vem do opus
septenário, é perder de vista que a Igreja não se reduz à operantis. A fonte da graça é a ação sacramental, mas
celebração dos sacramentos, mas esses se põem no não no sentido mágico, pois o opus operatum não está na
contexto mais amplo do testemunho de fé no mistério materialidade da ação sacramental, mas em ser ela ação
pascal de Cristo, decisivo para que os sacramentos deem de Cristo pelo Espírito Santo. Os sacramentos agirem ex
frutos de vida cristã. opere operato significa, portanto, que agem por força da
4 A eficácia dos sacramentos (TABORDA, 1998, obra salvífica de Cristo presentificada pelo
p.170-2) sacramento. Opus operatum e opus operantis se
encontram no sacramento. Este é o momento em que a
O Concílio de Trento ensina que “os sacramentos graça se expressa como graça que leva a pessoa a aceitá-
da Nova Lei (…) conferem a graça pela própria la livremente e, por isso e ao mesmo tempo, o gesto pelo
realização do ato <sacramental>” (ex opere operato) qual a pessoa expressa seu livre assentimento à graça,
(DH 1608). O significado profundo dessa expressão, assentimento que, por sua vez, lhe é dado totalmente
muitas vezes mal entendida num sentido mágico ou pela graça. Longe de se oporem, opus operatum e opus
quase mágico, é que é Deus e somente Deus quem atua operantis se supõem mutuamente como graça e
nos sacramentos. A análise da expressão tradicional liberdade (cf. antropologia teológica).
ajudará a compreender melhor essa prioridade de Deus
nos sacramentos. Essa ação de Cristo no Espírito pelos gestos
simbólicos da celebração é oferecimento que Deus faz
A expressão opus operatum significa a “ação de si próprio ao ser humano (autocomunicação de Deus).
como tal”, “a própria realização do ato”. Contrapõe-se O oferecimento não deixa de ser oferecimento pelo fato
a opus operantis, que poderia ser traduzido literalmente de alguém não aceitar o que foi oferecido, embora para
como a “ação de quem atua”. Na primeira expressão se ser oferecimento sempre deva haver a possibilidade de
atende objetivamente à ação; na segunda, a um sujeito aceitação. Se, por exemplo, um louco oferece a uma
que realiza a ação. As expressões se elucidam, se se pessoa um terreno na lua, não é oferecimento real,
recorda o problema que historicamente está em sua porque ele não tem possibilidade de dar o que ofereceu.
origem. Elas surgiram na teologia (e mais exatamente na Também não é oferecimento se alguém oferece a um
35
surdo-mudo um CD com uma sinfonia de Beethoven ou CHAUVET, L.-M. Le mariage, un sacrement pas
a alguém que amputou as duas pernas, um par de comme les autres. In: LMD, n.127, p.85-105. 1976.
sapatos. Mas não deixa de ser oferecimento se alguém
CONGAR, Y. A noção de sacramentos maiores ou
oferece a uma pessoa com plena capacidade auditiva um
principais. In: Concilium, n.31, p.21-31. 1968.
CD de Beethoven ou a alguém que tem ambas as pernas
um par de sapatos, embora alguns não o aceitem, porque PAULO VI. A sagrada
não gostam de música erudita, ou porque não se eucaristia: encíclica Mysterium fidei. Petrópolis: Vozes,
agradam do modelo do sapato. É um oferecimento real, 1965. Documentos Pontifícios, 153.
mesmo quando não aceito. Também Jesus era uma RAHNER, K.; THÜSING, W. Cristología: estudio
chance de conversão para os fariseus, embora eles não o sistemático y exegético. Madrid: Cristiandad, 1975.
tenham aceitado. A ação ex opere operato dos Biblioteca Teológica Cristiandad, 3.
sacramentos expressa essa estrutura fundamental do
sacramento: Deus se oferece à pessoa através deles e TABORDA, F. Sacramentos, práxis e festa: para
esse oferecimento subsiste independente de que a pessoa uma teologia latino-americana dos sacramentos. 4.ed.
o aceite. Petrópolis: Vozes, 1998.
Em resumo: a fórmula “os sacramentos agem ex ______. O memorial da Páscoa do Senhor:
opere operato” significa negativamente que a eficácia do ensaios litúrgico-teológicos sobre a eucaristia. São
sacramento não procede do ser humano; positivamente Paulo: Loyola, 2009.
que a eficácia procede da obra de Cristo, sua vida, morte ______. Nas fontes da vida cristã: uma teologia do
e ressurreição, objeto do memorial, e que o gesto batismo-crisma. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2012.
sacramental é um oferecimento permanente de Deus ao Theologica.
ser humano, quer este o aceite, quer não. Por isso, a
expressão põe em primeiro plano a ação sacramental [1] A qualificação do número três como número
como tal, pela qual o mistério de Cristo (opus operatum) da divindade não tem nada a ver com a noção cristã de
é celebrado e assim oferecido como convite a esta que Deus é Trindade. Esse sentido do número existe
pessoa e a esta comunidade para que assumam mais também no judaísmo, por exemplo.
profundamente a vida de seguimento de Jesus.
Francisco Taborda SJ, FAJE, Brasil. Texto
original português.
A eclesialidade dos sacramentos
6 Referências bibliográficas
Sumário
1 A Igreja faz os sacramentos 3 Os sacramentos irrepetíveis como constituintes da
2 Os sacramentos fazem a Igreja Igreja
4 Referências bibliográficas
que nos precederam na fé (dimensão diacrônica) e com
os que conosco aceitam a fé (dimensão sincrônica), é
O que caracteriza a autocomunicação de Deus
possível fazer “memória da paixão e da ressurreição do
através dos sacramentos é sua dimensão eclesial. Deus é
Senhor”, porque a Igreja não é uma realidade extrínseca
soberanamente livre para se autocomunicar por vias só
ao Mistério Pascal de Cristo que se lhe acrescente
por ele conhecidas, pois “o Espírito sopra onde quer” (Jo
posteriormente, quase como por acidente. Não. A
3,8). Mas, na dinâmica encarnatória própria à revelação,
comunidade dos que creem no Ressuscitado é uma
Deus se comunica em sinais sensíveis. Primeiramente
dimensão intrínseca à ressurreição de Jesus. Sem Igreja,
através do Verbo feito carne e, em continuidade com ele,
não tem sentido a ressurreição, como vice-versa: sem a
através da Igreja, corpo de Cristo, e dos gestos e ritos em
ressurreição de Jesus não há Igreja. Ressuscitando Jesus,
que ela se realiza como veículo da graça.
o Pai dá origem à Igreja como Corpo do Ressuscitado,
A relação entre Igreja e sacramentos é mútua: a comunidade suscitada e reunida pelo Espírito Santo.
Igreja faz os sacramentos e, por sua vez, esses a criam e
A ressurreição veio confirmar, da parte de Deus,
constituem como corpo de Cristo com a diferença de
que a vida e morte de Jesus revelam quem é Deus. A
funções entre seus membros.
ressurreição, portanto, não importa só a Jesus, que assim
1 A Igreja faz os sacramentos (TABORDA, supera a morte. Importa igualmente a toda a
1998, 145-50) humanidade, a que Deus, desta forma, manifesta quem
Toda celebração supõe uma comunidade que se Ele é: o Deus dos pobres e não o Deus do poder
reúne para celebrar, porque compreende o sentido da (religioso e político) que condenou Jesus, considerando-
celebração e comunga com seu conteúdo. No caso dos o indigno de viver. Ora, se ressurreição é a
sacramentos, em cujo núcleo está a atualização do autorrevelação de Deus à humanidade, se por ela Deus
mistério de Cristo, a celebração supõe a comunidade de mostra quem Ele é, de nada adiantaria Jesus ter
fé, que é a Igreja. Somente nela, na comunhão com os ressurgido, se nenhum ser humano tomasse
conhecimento desse fato.
36
Suponhamos, por absurdo, que Jesus tivesse visibilização do mesmo. Nela se manifesta o próprio da
ressuscitado, mas ninguém o tivesse encontrado nem missão do Espírito: unir a pluralidade.
crido nele. Nesse caso, Deus não se teria manifestado em
O sujeito dos sacramentos, aquele que os realiza é,
Jesus, mas no Sinédrio e em Pilatos. Pois o Sinédrio que
pois, a Igreja, a comunidade toda em sua unidade e
condenou Jesus à morte e o entregou aos romanos dizia
pluralidade, onde cada um atua conforme a função que o
agir em nome de Deus. Conseguindo acabar com Jesus,
Espírito Santo lhe deu (cf. SC 28). Mas, na Igreja e
que se pretendia Filho de Deus, estava em questão de
através da Igreja, é Cristo mesmo por seu Espírito que
que lado Deus estava: com o Sinédrio vitorioso ou com
nos aproxima do Pai.
Jesus vencido, abandonado por Deus. Como ambos os
lados se invocavam de Deus, a vitória de um deles A Igreja, comunidade dos que aderiram
mostraria com quem Deus estava. Se ninguém ficasse visivelmente a Cristo e vivem assim sua fé, faz os
sabendo da ressurreição, Jesus teria ressuscitado em vão, sacramentos. Exc1uem-se deles, portanto, os não
pois a conc1usão lógica da história de Jesus teria sido: é queiram assumir o seguimento de Jesus. Mas a exc1usão
mais um fanático idealista que morre a morte que dos sacramentos não significa a exc1usão da salvação.
merece. Ninguém hoje saberia nada de Jesus, a não ser Deus pode salvar e salva também os que não pertencem
talvez algum pesquisador ultraespecializado em Oriente visivelmente à Igreja. Daí pode nascer a dúvida sobre a
Próximo antigo. necessidade dos sacramentos. Para que sacramentos, se a
graça de Deus é mais ampla que sua visibilização
À ressurreição de Jesus pertence, portanto, a
eclesial? Essa questão permite perceber a indispensável
existência de testemunhas e de quem aceite seu
dimensão eclesial como característica essencial dos
testemunho e transmita esse testemunho às gerações
sacramentos.
futuras (RAHNER; THÜSING, 1975, p.43-4). Se a
constituição da Igreja é momento intrínseco à Para dar conta da re1ação entre a salvação dos que
ressurreição de Jesus, então só na comunhão da Igreja é não conhecem a Cristo e a dos que a ele aderiram na
possível fazer memória de Jesus como o Cristo, o Filho Igreja, é preciso distinguir entre o processo da
do Deus vivo. Só a comunidade de fé, a Igreja, é capaz salvação e a mediação da salvação (RAHNER, 1966,
de celebrar os sacramentos que são sempre memorial do p.55-61). O processo da salvação é a história da salvação
Senhor. universal. Onde quer que alguém realize o bem, a
justiça, o amor, a fraternidade, enfim, os bens do Reino,
A Igreja é, portanto, o sujeito atuante dos
está Deus atuando sobre ele com seu Espírito. Toda
sacramentos. Mas não como mero aglomerado de
pessoa que aceita a salvação que Deus assim lhe oferece,
pessoas. Por ela e nela atua o próprio Senhor
através de sua consciência, de seus semelhantes, de sua
Ressuscitado, do qual a Igreja é o Corpo. Esse o sentido
cultura, de sua religião, está dentro do processo da
mais profundo da afirmação da presença dinâmica de
salvação, acolheu a salvação oferecida por Deus, quer
Cristo nos sacramentos (cf. SC 7). Qualquer que seja a
essa pessoa conheça a Cristo, quer não tenha jamais
comunidade eclesial celebrante, qualquer que seja o
ouvido falar dele. Assim, todo o bem que qualquer
ministro que a preside, é Cristo mesmo quem neles atua
pessoa pratica, creia ou não em Deus e em Cristo, é fruto
pelo Espírito Santo. Por isso o ministro pode ser indigno,
da graça, presença da salvação. É salvação como
não viver o que os sacramentos contêm e anunciam e, no
processo e em processo.
entanto, sob sua presidência se comunica a nós
participação no mistério pascal de Cristo. Pois o ministro Nem por isso a Igreja ou os sacramentos se tornam
não os preside como indivíduo, dotado de méritos supérfluos. Esses são necessários, tão necessários como
pessoais, mas como alguém com a função específica de aquela. Para quem considera a Igreja com olhos de fé,
presidir a comunidade de fé. Não atua por sua virtude, não como mera organização religiosa de iniciativa
como tampouco a Igreja atua por própria força, mas pela humana, mas como Corpo do Ressuscitado, dimensão
presença perene de Cristo, que pelo Espírito Santo a cria intrínseca da própria ressurreição de Jesus, negar a
e recria constantemente e assim a institui e com ela dá necessidade da Igreja para a salvação é negar a
origem aos sacramentos (Sacramentos: 1 Instituição dos necessidade de Cristo e da revelação de Deus. Pois só
sacramentos por Cristo). pela comunidade dos que creem no Ressuscitado, a vida
e morte de Cristo revelam o Deus verdadeiro. A
A presença de Cristo na Igreja é obra do Espírito
necessidade da Igreja, no entanto, não se situa no âmbito
Santo. O Cristo ressuscitado é o Cristo vivificado pelo
do processo da salvação, mas no âmbito da mediação da
Espírito (cf. 2Cor 3,17), que transmite o Espírito a seus
salvação. A mediação da salvação designa a presença
discípulos. O dom do Espírito pertence como momento
da salvação na dimensão histórica e palpável da Igreja,
interno ao mistério pascal de Cristo (TABORDA, 2012,
no conhecimento e reconhecimento explícito de Cristo
p.100-4). O Espírito suscita testemunhas, abre os olhos
como revelação do Pai. A mediação da salvação é, pois,
aos discípulos. Se há uma comunidade de fé, resulta da
mais restrita que o processo salvífico. O processo
ação do Espírito Santo que desperta a fé. Nesse sentido,
salvífico é, sim, mediado por Cristo, mas nem sempre as
a Igreja, Corpo do Ressuscitado, é vivificada e animada
pessoas que nele estão envolvidas tomam conhecimento
pelo Espírito. Mais: é sacramento do Espírito Santo,
dessa mediação ou a reconhecem. E, no entanto,
37
explicitar essa mediação é o termo a que tende a carismas, oferece ao Pai, unida a Cristo no Espírito
salvação como processo, pois o que se vive exige ser Santo, o memorial do único sacrifício de Cristo e une a
explicitado, para que se viva mais intensa e ele sua vida no seguimento de Jesus, que é o culto “em
conscientemente. espírito e verdade” (Jo 4,24; cf. TABORDA, 2012,
p.242-5). Mas também em cada um dos outros
Os sacramentos são necessários como celebração
sacramentos aparece a identidade da Igreja: ela vive e
da Igreja, que, por sua vez, é necessária, como Cristo é
cresce pela conversão (batismo-crisma); santa e
necessário à salvação. A necessidade salvífica dos
pecadora, sempre de novo precisa aceitar a reconciliação
sacramentos não significa que sem eles Deus não se
oferecida pelo Pai (penitência); a exemplo de Jesus,
autocomunique ao ser humano em graça, mas sim que os
volta-se aos enfermos e fracos levando-lhes
sacramentos são necessários como celebração explícita
solidariedade e consolo (unção dos enfermos); manifesta
da gratuidade do dom de Deus em Cristo que o Espírito
o amor de Deus aos humanos no amor conjugal
faz presente em todo bem que qualquer pessoa faz.
(matrimônio); constitui-se na diferença de funções dadas
A Igreja é assim sacramento-raiz ou sacramento por Deus como graça (ordem).
fundamental, porque toda graça sacramental é mediada
Santa e pecadora, a Igreja nos sacramentos é
pela Igreja. Nela se enraízam os sacramentos, como
confrontada com a sua origem e o seu sentido, fazendo
manifestações da graça de Deus atuando por Cristo no
memória do Senhor Ressuscitado. Nessa confrontação,
Espírito Santo na vida das pessoas. Enquanto
seu agir é questionado pelo Cristo presente e atuante que
sacramento-raiz, a Igreja constitui e faz os sacramentos.
exige que ela corresponda, na vida, ao que celebra nos
Dela brotam os sacramentos, como os ramos de um
gestos. Aí ela encontra legitimação para sua existência: o
arbusto são sustentados por sua raiz. Mas vale também o
exemplo e a força de Cristo atuante no sacramento
inverso: a Igreja é feita pelos sacramentos, como a raiz
renovam o ânimo para o seguimento histórico de Jesus e
necessita dos ramos para ter sentido e ser fonte de vida.
justificam a ousadia de pretender um relacionamento
2 Os sacramentos fazem a Igreja (TABORDA, fraterno num mundo de ódio e de construir o Reino no
1998, p.150-6) aqui e agora do mundo pecador.
A expressão “sacramento-raiz” referida à Igreja Enfim, os sacramentos organizam a Igreja tanto no
quer também designar este segundo aspecto da relação plano espiritual como no plano da organicidade: a
Igreja-sacramento. A raiz deixada na terra, sem tronco e humilde atitude de constante conversão unida à imensa
sem ramos, perde seu sentido e acaba apodrecendo. Se dignidade de membros do Corpo de Cristo (batismo-
os ramos vivem da raiz, também é verdade que a raiz crisma); o reconhecimento do pecado e a aceitação do
vive dos ramos. Sacramento-raiz, a Igreja precisa dos perdão de Deus e dos irmãos e irmãs (reconciliação ou
sacramentos que a tornam partícipes do Mistério Pascal penitência); a acolhida e o amor preferencial ao irmão
de Cristo. enfermo, bem como a visibilização do vínculo entre o
Os sacramentos, portanto, fazem a Igreja. O enfermo e a comunidade eclesial (unção dos enfermos);
batismo e a confirmação agregam à Igreja. A penitência o reconhecimento de que no amor mais profundamente
reconcilia o cristão pecador com a Igreja. A unção dos humano, o amor conjugal, está presente o sentido de
enfermos une o cristão enfermo à Igreja através da todo amor: presença do amor de Deus à humanidade
intercessão da comunidade. O matrimônio constitui (matrimônio); a visão do ministério eclesial como
homem e mulher em “eclesíola” doméstica, cria uma serviço aos demais em favor da unidade da Igreja
família no seio da comunidade. A ordem designa uma (ordem); e principalmente o reconhecimento de que é na
pessoa para o serviço da unidade da comunidade partilha, no dar a vida pelo outro, que se fundamenta
eclesial. A eucaristia torna visível o que é ser Igreja: toda organização e toda autoridade (eucaristia). Tudo
comunhão fraterna em torno ao Cristo presente e a partir isso reestrutura a Igreja no Espírito de Jesus.
dele. Pelos sacramentos a Igreja é constantemente Dentre os sacramentos há três que marcam a
edificada por Cristo, que atua nos sacramentos na força organicidade da comunhão eclesial e a constituem como
do Espírito Santo. Os sacramentos constroem a Igreja Corpo de Cristo uno e diferenciado.
exatamente por serem ações de Cristo, ações cuja meta é
3 Os sacramentos irrepetíveis como
sempre o relacionamento com o Pai no Espírito Santo
constituintes da Igreja (TABORDA, 1998, p.156-61;
por meio de Cristo. A relação com a Igreja é de
TABORDA, 2012, p.228-30; 241-7)
mediação; o ato terminal é a relação com Cristo e, por
isso, os sacramentos fazem a Igreja, não são só feitos por Os três sacramentos que estruturam a comunidade
ela. eclesial são, por sua constituição, irrepetíveis.
Costumam ser chamados de sacramentos caracterizantes,
Assim, os sacramentos criam e recriam a
por imprimirem caráter. A doutrina do caráter é
comunidade eclesial. Neles, em especial na eucaristia, o
um teologúmenon para explicar por que não se repetem
sacramento central, a Igreja encontra sua identidade:
esses três sacramentos.
comunidade criada pela presença do Senhor
Ressuscitado que, na diferenciação de suas funções e
38
A origem da doutrina do caráter está em originar um apelido ou apodo que o acompanha pela
Agostinho, em sua luta contra o rebatismo dos que, vida afora.
batizados numa seita herética, vinham para o seio da
Tais fatos constituem o novo termo de comparação
Igreja católica. Na discussão de Agostinho com os
para compreender a irrepetibilidade de certos
rebatistas, ambos partiam de um pressuposto comum:
sacramentos e o caráter sacramental. Há sacramentos
ninguém dá o que não tem. Os hereges não podem dar o
irrepetíveis, porque dão ao sujeito uma função, uma
Espírito Santo, porque não o têm. Surge então a questão:
posição determinada na constituição da
se o batismo dos hereges não dá a vida do Espírito, por
Igreja. Marcam o sujeito para sua função na
que a tradição da Igreja não permite rebatizar? Para
comunidade. A marca é invisível, porque se dá no
explicá-lo, Agostinho recorre à metáfora do caráter,
âmbito existencial e intersubjetivo. No âmbito
tatuagem ou marca a ferro e fogo recebida pelos
existencial, porque o sujeito aceitou assumir a condição
soldados do exército romano. O caráter (marca) era uma
de membro[1] ou a função de ministro da comunidade
exigência permanente a que o desertor voltasse ao
eclesial. No âmbito intersubjetivo ou relacional, porque
exército. Assim também o batismo nos marca com a
o fez diante de Deus e da comunidade, da Igreja presente
exigência permanente de seguir Cristo e pertencer à sua
na assembleia celebrante. Uma realidade existencial e
Igreja. Mesmo que o batismo dos hereges não dê o
relacional não é irreal ou menos real, como poderia
Espírito Santo, ele dá o caráter, a exigência de pertença
parecer à mentalidade objetivista ou coisista. É tão real
a Cristo na Igreja. O sentido de falar em caráter era
como a ação de Deus, a memória do sujeito e a memória
explicar por que determinados sacramentos nunca se
histórica da comunidade. É tão real como o próprio
repetiam.
sujeito que num dado momento foi determinantemente
A Escolástica assumiu a doutrina agostiniana e constituído por esse fato. A pessoa que recebeu os
trabalhou-a no contexto de sua sistematização. Os sacramentos irrepetíveis está numa relação, com os
sacramentos irrepetíveis, dentro da explicação outros membros da Igreja, que é específica do
agostiniana, por um lado produzem certo efeito (o sacramento recebido. Essa relação marca a pessoa,
caráter), mas não seu efeito pleno. O caráter, por sua e marca-a no sentido de que a comunidade eclesial exige
vez, pela própria metáfora que o sustém, possui a e espera dela uma determinada ação e atitude. É um
propriedade de ser um sinal. Ora, a metáfora, dentro do “sinal espiritual”.
pensamento coisista da Escolástica, só pode ser
O fato histórico, visível, social de receber os
entendida no sentido de que tais sacramentos imprimem
sacramentos caracterizantes é, enquanto fato histórico,
um sinal na alma. A propriedade dessa construção não é
irreversível. O sujeito pode arrepender-se de tê-los
questionada. Não ocorre perguntar, por exemplo, como
recebido, pode voltar atrás em suas atitudes, apostatar,
algo espiritual pode ser ainda chamado de sinal. Enfim, a
mas ele será sempre alguém que recebeu o sacramento
mesma mentalidade coisista faz inverter o sentido da
em questão e, como tal, aquele fato
metáfora do caráter: de explicação da irrepetibilidade
o marcou indelevelmente, de maneira indestrutível
dos três sacramentos, passa a fundamentar por que
(“sinal espiritual e indelével”).
alguns sacramentos não podem ser repetidos. A relação
gnosiológica entre irrepetibilidade e caráter é perdida de Mas isso acontece com qualquer fato histórico.
vista e fica a relação onto1ógica que, com base no Nós carregamos sempre conosco tudo o que nos
caráter, afirma a irrepetibilidade. aconteceu, ainda que seja nas profundezas do
subconsciente e do inconsciente. A diferença está em
Ao definir a questão contra os Reformadores, o
que o fato histórico de receber um sacramento irrepetível
Concílio de Trento descreve o caráter como “sinal
é um compromisso assumido. Todo compromisso tem
espiritual e indelével” (DH 1609). Afirmar o caráter
dimensão social, é relacionado a outros, depende
como um “sinal espiritual” parece contradição: se é sinal
também dos outros. Mesmo que alguém se desdiga do
deve ser visível e não pode ser espiritual, ainda mais
compromisso assumido com Deus e com a Igreja num
“impresso na alma” que tampouco se vê. Se se
sacramento caracterizante, esse compromisso continua a
compreende o caráter de maneira ontológico-
significar relação com Deus e com a Igreja e essa, em
substancialista, não há, no entanto, como entender
seu caráter de realidade escatológica, continuará, em
diferentemente. É possível, entretanto, interpretar a
nome de Deus, a exigir o exercício daquela função. Os
expressão numa perspectiva histórico-relacional.
sacramentos caracterizantes são constitutivos da Igreja
Há acontecimentos que marcam o sujeito, sem que como comunidade (batismo e confirmação) e como
com isso se afirme uma marca visível, mas, no fundo, comunidade diferenciada internamente por funções
um “sinal espiritual”. Na vida de cada um há (ordem). Ora, como comunidade escatológica, corpo do
acontecimentos decisivos, fatos marcantes. Fatos que Ressuscitado, ela permanecerá para sempre até o fim dos
conformam indelevelmente a personalidade de quem o tempos. Por isso mesmo não pode abrir mão do
viveu. O sujeito o carrega por toda a vida, determinando compromisso daqueles que receberam um sacramento
suas atitudes e decisões. Fatos que o que lhe é constitutivo.
deixam marcado perante a sociedade. Podem inclusive
39
O caráter sacramental é, pois, um relacionamento Pastoraltheologie. v.II/1. Freiburg/Br: Herder, 1966.
visível e permanente com a Igreja. Ora, essa é, no mais p.55-61.
íntimo de seu ser, sacramento da graça. Por isso o
RAHNER, K.; THÜSING, W. Cristología: estudio
caráter não exige só uma função exterior, mas a
sistemático y exegético. Madrid: Cristiandad, 1975.
assimilação pessoal diante de Deus dessa função. De
Biblioteca Teológica Cristiandad, 3.
fato, uma Igreja cujos membros não vivessem no
seguimento de Cristo acabaria esboroando-se. Por isso, à TABORDA, F. Sacramentos, práxis e festa: para
promessa divina de indefectibilidade pertence a garantia uma teologia latino-americana dos sacramentos. 4.ed.
de que sempre haverá batizados e crismados que vivam Petrópolis: Vozes, 1998.
efetivamente no seguimento de Cristo. Isto significa que TABORDA, F. Nas fontes da vida cristã: Uma
a exigência própria ao caráter sacramental não é só teologia do batismo-crisma. 3.ed. São Paulo: Loyola,
externa, mas atinge a pessoa internamente. 2012. Theologica.
Algo análogo deve ser dito do sacramento [1] Pessoalmente ou através dos pais e padrinhos,
(respectivamente, do caráter) da ordem: uma hierarquia no caso do batismo de crianças.
que, em bloco, não vivesse a fé, não seguisse Cristo na
vida, acabaria por destruir a Igreja, pois terminaria por
não ver mais sentido em presidir uma comunidade
Sacramentos
reunida por uma Palavra em que não crê e visibilizada
em sacramentos que considera vazios de sentido. Em Sumário
consequência, deixaria de fazê-lo. Ora, a Igreja é 1 Instituição dos sacramentos por Cristo
constituída pela Palavra e pelos sacramentos em vista do 2 A hierarquia dos sacramentos
seguimento de Cristo. Assim também o caráter 3 O número dos sacramentos
sacramental é essencialmente salvífico, diz respeito à 4 A eficácia dos sacramentos
salvação ou perdição da pessoa na comunidade e através 5 Referências bibliográficas
da comunidade. O Espírito Santo, que pelo sacramento
constitui o sujeito como membro ou ministro da Igreja, é
o Espírito santificador, o fogo devorador que não quer Durante séculos a Igreja celebrou e refletiu sobre o
apenas tostar aquele a quem atinge, mas inflamá-lo que hoje chamamos de “sete sacramentos”, sem reuni-
totalmente. O caráter sacramental exige que se viva o los numa lista à parte e pera-los sistematicamente. A
acontecimento que nos marcou. partir do séc. XII, aproximadamente, a teologia listou-os
e procurou estabelecer certos traços comuns aos sete.
Entretanto, mesmo que alguém receba um
Desde então determinados conceitos se tornaram temas
sacramento caracterizante em contradição com sua vida,
obrigatórios na abordagem genérica dos sacramentos,
é membro/ministro da Igreja e assim, pela força do
tais como a afirmação de que os sete sacramentos foram
sacramento, é provocado a que faça sua vida
instituídos por Cristo e de que sua eficácia se exerce ex
corresponder à sua função. Essa função ele possui,
opere operato, que alguns imprimem caráter e que não
mesmo que a vida não corresponda a ela: o membro
todos tem a mesma importância. Há, entre eles, uma
pecador da Igreja não precisa, ao reconciliar-se, ser
hierarquia em que sobressaem, como “sacramentos
batizado ou crismado novamente; o ministro pecador
maiores”, a eucaristia e o batismo.
não precisa, ao arrepender-se, ser reordenado. Mas o
pecado no membro ou no ministro da Igreja está em Essas questões, devidamente sistematizadas,
contradição com o caráter que recebeu e que leva pela passaram ao patrimônio da fé na Igreja latina e foram
vida afora. O caráter tem tendência inerente a que se assim apresentadas já no Concílio de Florença (1439),
realize salvificamente, para a salvação de quem recebeu em vista da união com as Igrejas Orientais. Será, porém,
o respectivo sacramento. Com o teologúmenon caráter no Concílio de Trento, contra as negações dos
expressa-se a existência de um pacto irrevogável que se Reformadores, que os princípios da teologia dos
fundamenta na fidelidade do Deus vivo, na ação de Deus sacramentos em geral tomarão forma, com concisão e
pelo sacramento, mas que supõe e exige a resposta do exatidão escolástica, tornando-se, na teologia posterior a
ser humano. Não por coação e sim por vocação e esse Concílio, como que a espinha dorsal do tratado De
provocação esta pessoa é convidada a engajar-se na Sacramentis in genere.
própria obra de Cristo presente pelo Espírito Santo na Dentre os temas desse tratado, escolhemos quatro
Igreja. que parecem centrais e merecem que se procure seu
Francisco Taborda SJ, FAJE, Brasil. Texto sentido perene. (Veja-se, sobre o caráter, o verbete “A
original português. eclesialidade dos sacramentos. 3 Os sacramentos
irrepetíveis como constituintes da Igreja”).
4 Referências bibliográficas
1 Instituição dos sacramentos por
RAHNER, K. Heilsvermittlung und Heilsprozess.
Cristo (TABORDA, 1998, p.115-24)
In: ARNOLD, F. X. et al. (ed.). Handbuch der
40
O Concílio de Trento afirmou como característica expressa e realiza: a participação no mistério de Cristo.
fundamental dos sete sacramentos sua instituição por Em outras palavras: Deus, enquanto por Cristo no
Cristo (cf. DH 1601). O ponto central dessa afirmação Espírito Santo reúne a Igreja e a convoca e provoca pelo
dogmática consiste em professar a origem dos memorial do mistério de Cristo, é o autor dos
sacramentos na iniciativa divina e não na invenção sacramentos.
humana. Cristo é a origem dos sacramentos, que estão
O problema da instituição dos sacramentos só
todos nele fundamentados e enraizados.
pode ser resolvido satisfatoriamente, se se considera que
A exegese moderna não permite que se entenda Cristo instituiu primeiramente um caminho de vida e
por “instituição” um suposto ato jurídico de Jesus, consequentemente seu seguimento. No contexto desse
determinando que haja tal sacramento e seja caminho, pela necessidade antropológica de expressar
administrado de tal ou tal forma. Nesse sentido, será vão através de ritos o fundamento da vida cristã, adquirem
procurar no Novo Testamento textos que demonstrem a sentido os sacramentos. Instituindo um caminho de vida,
instituição de cada um dos sacramentos. Mesmo para os convidando ao seguimento, Cristo institui os
sacramentos claramente atestados pela Escritura subsiste sacramentos. Assim Deus, Cristo, o Espírito Santo, a
o problema. O “fazei isto em memória de mim” talvez Igreja – cada qual a seu modo, na medida e forma de sua
não se possa considerar ipsissima verba Jesu. O mandato participação no plano salvífico – são autores dos
do batismo é feito pelo Senhor Ressuscitado e não pelo sacramentos: Deus como fonte última da salvação, Jesus
Jesus terrestre e está numa perícope que é composição como o mediador único, o Espírito Santo como quem
de Mateus. presentifica Cristo através dos séculos, a Igreja como
corpo do Senhor Ressuscitado (cf. verbete “A
Já muito antes de a exegese moderna ter surgido e
eclesialidade dos sacramentos: 1 A Igreja faz os
adquirido foro de cidadania na Igreja católica, era
sacramentos”).
conhecido o problema, pelo menos com relação a alguns
sacramentos. Tendo-o em vista, discutia-se se a Essa explicação não contraria o Concílio de Trento
instituição fora mediata (por meio de outros) ou imediata (cf. DH 1601), porque não se deve nem se pode reduzir a
(diretamente por Cristo). Mas disputava-se também se instituição a um ato jurídico-formal realizado no passado
ela fora específica (indicando em linhas gerais matéria e e tampouco o texto conciliar o exige. Pelo contrário, a
forma de cada sacramento – cf. hilemorfismo interpretação mística dos Padres da Igreja, segundo os
sacramental) ou genérica (determinando a graça de cada quais os sacramentos têm sua origem no acontecimento
um, mas não os elementos físicos/visíveis que o da cruz, o que é expresso pelo sangue e pela água
constituiriam), direta (ordenando que se fizesse assim) jorrados do costado de Cristo, é bem mais fundamental
ou indireta (deixando entender determinada prática que a discussão em moldes jurídicos dos teólogos
sacramental). O Concílio de Trento tinha consciência medievais.
dessa discussão, mas não quis dirimir a questão,
A instituição dos sacramentos, como a da Igreja, é
seguindo o princípio que se impusera de não intervir nas
algo constante, permanente, expressão do “estarei
disputas entre as escolas teológicas católicas. Apenas
convosco todos os dias até a consumação dos séculos”
afirma, contra os Reformadores, a instituição por Cristo.
(Mt 28,20). De fato, em geral a palavra “instituição”
A própria evolução histórica dos gestos sugere um ato realizado num determinado momento do
sacramentais – em parte conhecida pelos Padres de passado. Mas então a Igreja – e com ela os sacramentos
Trento – não permitia reconduzir a uma determinação de – estaria sujeita a desaparecer com o passar das
Jesus cada um dos sacramentos em sua feição histórica gerações, pela vontade dos humanos, da mesma forma
concreta. Bastava percorrer as modificações havidas nos como deixa de existir com o tempo uma sociedade
ritos essenciais de cada sacramento para se perceber o criada por seres humanos para cultuar a memória de
problema. algum personagem eminente. Passado o impacto da
presença histórica daquela pessoa, a sociedade acaba por
Levando em consideração essa evolução
desfazer-se e morrer. Mas a Igreja não cai nessa
indiscutível, é preciso pôr o problema da instituição dos
categoria de associações, porque é sempre de novo
sacramentos num contexto mais amplo. As formas de
constituída por Cristo Ressuscitado, presente a ela por
expressão do sacramento são secundárias (não no
seu Espírito. A Igreja não é mero acaso nem invenção
sentido de serem menos importantes, mas no sentido de
humana: ela pertence ao próprio mistério da ressurreição
serem decorrentes da graça significada pelos gestos).
de Cristo. Sem Igreja, isto é, sem a comunidade dos que
Assumem-se, pois, gestos que no contexto cultural em
creem no Ressuscitado, a ressurreição de Jesus não teria
que se formou o cristianismo são significativos do
sido a manifestação definitiva e escatológica do Deus
aspecto do mistério de Cristo que deve ser significado e
revelado (RAHNER; THÜSING, 1975, p.43-4). Por
celebrado por eles. O sacramento enquanto forma de
isso, a Igreja é o Corpo do Ressuscitado, vive da vida do
expressão (isto é, enquanto gesto; o sacramentum
Ressuscitado. Vale dizer: é criada constantemente pela
tantum da Escolástica) pode já existir antes.
presença e atuação de Cristo no Espírito Santo. Nesse
Logicamente anterior ao sacramento como expressão e
sentido Cristo funda e institui a Igreja sempre de novo.
mais básico do que ele, é o acontecimento que ele
Ela está enraizada em Cristo e, como para a árvore, não
41
basta que um dia tenha tido raízes para poder ainda hoje Apesar de serem listados num rol de sete, como se
viger, crescer e produzir frutos, assim também a Igreja. fossem iguais, os sacramentos diferem entre si. A
A raiz precisa estar presente e atuante para que a árvore afirmação do Concílio de Trento de que há sacramentos
viva. Semelhantemente também Cristo, porque “mais dignos” que outros (cf. DH 1603), supõe uma
permanece na Igreja, a institui – como raiz – sempre de diferença radical entre eles, desde o ponto de vista
novo e, com isso, institui constantemente os sacramentos teológico.
pela ação do Espírito Santo.
Os sacramentos celebram nossa participação no
À luz dessa instituição permanente dos mistério de Cristo. Ora, tanto a vida cristã como o
sacramentos, entende-se melhor o axioma agostiniano: mistério de Cristo têm momentos de diferente densidade.
“Quer batize Pedro, quer batize Judas, é Cristo quem A vida humana não é uma monótona planície, onde um
batiza” (AGOSTINHO, In Joannis Evangelium 6, fato se desenvolve depois do outro, com a mesma
7: PL 35, 1428). Assim se compreende que o sacramento importância. Também a vida de Jesus apresenta
independe da dignidade e santidade do ministro momentos diferenciados por sua intensidade. O mistério
(cf. DH 1612 e 1611), porque é o próprio Cristo que atua pascal de Cristo é um momento de muito maior peso que
nele. Essa presença dinâmica de Cristo nos sacramentos qualquer outro momento da vida de Jesus, até por ser o
se enquadra no contexto geral da presença do Senhor resultado de todos os outros momentos menores e
Ressuscitado em sua Igreja (cf. SC 7; PAULO VI, iluminar todos eles. Como os sacramentos celebram
1965). Porque os sacramentos estão enraizados em nossa participação no mistério de Cristo, também eles
Cristo, Deus não deixa de atuar neles e se autocomunicar têm diferente peso para a vida cristã. Há entre eles uma
indefectivelmente pelo fato de a celebração ser presidida hierarquia, onde se destacam sacramentos maiores ou
por um homem indigno, que vive longe do caminho de principais. Quanto mais um acontecimento da vida do
Jesus. É Cristo quem age, porque ele constantemente cristão significa participação no centro do mistério de
fundamenta os sacramentos. Cristo, sua Páscoa, tanto mais importância tem o
sacramento que sinaliza essa comunhão com o cerne do
Nessa perspectiva, a preocupação de buscar no
mistério de Cristo.
Novo Testamento uma instituição dos sacramentos pelo
Jesus pré-pascal deixa de ter interesse. Ela seria, aliás, É verdade que todo sacramento relaciona a vida do
insuficiente, pois os sacramentos só podem ter sentido cristão e da comunidade com o mistério pascal, mas há
depois da Páscoa. Tomás de Aquino estabelece um sacramentos em que a participação no mistério pascal
princípio muito válido nesse contexto – embora ele está em primeiro plano, inclusive do ponto de vista do
próprio o aplique insuficientemente. Escreve: “É por sua gesto simbólico. Tal é o caso do batismo e da eucaristia.
instituição que os sacramentos conferem a graça. A passagem pela água é um símbolo que evoca a
Conclui-se, pois, que um sacramento é instituído no passagem da morte à vida que é a conversão dos ídolos
momento em que recebe a força de produzir seu efeito” ao Deus verdadeiro. Como outrora o povo escolhido
(STh III, q.66, a.2). Ora, a força dos sacramentos provém passou da escravidão à liberdade pela travessia do Mar
do mistério pascal de Cristo e dos mistérios da vida de Vermelho, pelo batismo o neófito passa da vida velha do
Cristo, enquanto preparam e levam à morte e pecado à nova vida à imagem de Cristo. Como Cristo
ressurreição e são confirmados e transfigurados por esta. atravessou o mar da morte, passando da morte à vida em
Segue-se, pois, que só após a Páscoa cabe falar da seu mistério pascal, também o cristão pelo batismo se
instituição dos sacramentos, no sentido pleno da palavra. renova e se reveste do “homem novo” em Cristo
Por isso a Tradição patrística ensinava que os (TABORDA, 2012, p.155-81). Na eucaristia, a ação de
sacramentos jorraram do costado aberto do Senhor. graças sobre o pão e o vinho faz memória do corpo
entregue por nós na morte de Jesus, desse corpo que é
Se os sacramentos radicam em Cristo, a Igreja não
fonte de vida, que se entrega em favor da vida dos
é senhora, mas servidora dos sacramentos. Essa verdade
demais. Do ponto de vista do gesto simbólico, o partir
é expressa pelo Concílio de Trento ao declarar que a
do pão e o distribuir do cálice evoca a doação de vida
Igreja não pode mudar a “substância dos sacramentos”
pelo outro que Jesus realizou na cruz e ressurreição
(DH 1728). A “substância dos sacramentos” não é o
(TABORDA, 2009, p. 56-82). Mostra-se assim o lugar
gesto simbólico ou o rito, mas sua significação, seu
central do batismo e da eucaristia, entre todos os
sentido que é o sentido mesmo de tudo o que Jesus fez e
sacramentos.
ensinou. Significa que é a impossível a Igreja se
estruturar ou modificar por si mesma, pelas veleidades A centralidade dos dois sacramentos maiores é
dos seres humanos que a constituem. Ela tem que ser fiel ainda corroborada por serem ambos constitutivos do ser
ao caminho instituído por Cristo, do qual ela é o cristão e edificadores da Igreja enquanto tal. Fazem da
sacramento e os sete sacramentos suas expressões multidão o Povo de Deus. O batismo, porque incorpora à
rituais. Igreja quem o recebe. A eucaristia, porque faz da
multidão dos redimidos o Corpo de Cristo, cria e
2 A hierarquia dos sacramentos (TABORDA,
exprime a unidade e a comunhão dos muitos em Cristo.
1998, p.124-7; CONGAR, 1968)
Em outras palavras: batismo e eucaristia constituem a
pessoa como cristão. Os demais sacramentos atingem-na
42
em situações particulares da vida cristã: o pecado, a amplo de sacramento, o que sugere que número e
doença, a vocação ministerial, o amor conjugal. Estão, definição são questões independentes. Aliás, em toda a
por isso mesmo, em outro nível de importância. história da teologia dos sacramentos, nunca se chegou a
um conceito que de fato abrangesse todos os sete e só os
A afirmação do batismo e da eucaristia como
sete (CHAUVET, 1976).
sacramentos principais é o conteúdo essencial de uma
hierarquia dos sacramentos. A hierarquização que se Desta consideração histórica, decorre como
possa estabelecer entre os demais sacramentos é conclusão provável que não foi a definição de
secundária e dependerá dos critérios que se adote para sacramento que serviu de critério para escolher os sete.
perantes-la, variando segundo o ponto de vista assumido. Mas tampouco foi a prática litúrgica e eclesial que levou
A perspectiva, no entanto, pela qual se estabeleceu aqui a privilegiar esses sete e não outros. Nessa prática, só
a principalidade de batismo e eucaristia é a perspectiva batismo e eucaristia sempre tiveram o primado
básica por fundar-se no significado mesmo do incontestável; os demais “sinais sagrados” mereceram
sacramento. diversos acentos.
Recuperar na teologia sacramental esse dado da A razão é que o número sete não tem significado
Tradição, reafirmado no Concílio de Trento quantitativo-numérico, mas qualitativo. Claro que o
(cf. DH 1603), é de grande interesse ecumênico, tendo conceito qualitativo só existe se podem ser enumerados
em vista a posição das Igrejas históricas provenientes da sete quantitativamente, mas o número sete não é
Reforma que aceitam só dois sacramentos: batismo e autônomo.
eucaristia. Tem também sua importância pastoral em
O conceito qualitativo de número situa-se no
vista da seleção espontânea praticada por nosso povo
contexto de mística dos números da Idade Média. Essa é
que procura, por exemplo, o batismo para as crianças e a
muitas vezes fundamentada em Sb 11,20: “Tudo
missa em determinadas ocasiões (no sétimo dia do
dispuseste com medida, número e peso”. Pensava-se, a
falecimento de um fiel, em datas especiais como as
partir daí, que o número expressasse ao mesmo tempo o
bodas de prata ou de ouro…). O “instinto da fé” os
pensamento divino e a estrutura fundamental da
orienta nessa direção.
realidade. A mística dos números remonta, através de
3 O número dos sacramentos (TABORDA, Isidoro de Sevilha (†636), a Agostinho (†430) e, por
1998, 138-43) meio deste, a Platão (†347 aC) e daí a Pitágoras (†495
aC). Seu pressuposto é que, compreendendo-se as
O número “sete” dos sacramentos não é
relações numéricas, não se fala sobre a realidade, mas a
primeiramente aritmético-numérico-quantitativo, mas
própria realidade nelas se manifesta. A mística dos
simbólico. Tanto é assim que a afirmação de Trento, de
números era enormemente estendida na Idade Média,
que os sacramentos são sete, nem mais nem menos
como o prova sua existência também entre os judeus
(cf. DH 1601), pode ser mantida, ainda que se admita
(cabala). Pelo simbolismo dos números, a cabala queria
que episcopado, presbiterado e diaconado são
fundir os princípios matemáticos e científicos para
sacramentos (o que poderia elevar a nove a numeração
poder, por assim dizer, espiar para dentro do mistério
aritmética dos sacramentos); ou se mantenha com o
das coisas. O simbolismo dos números transcende o
Concílio de Trento que a extrema-unção é “o
pensamento e permite penetrar mais a realidade. A
acabamento” da penitência (cf. DH 1694), o que a
mística dos números, nessa perspectiva, não é uma meta
constituiria como uma quase-unidade e perigaria
de conhecimento, mas uma instância mediadora de
diminuir para seis o valor aritmético da lista
maior conhecimento.
sacramental; ou ainda se aceite a íntima unidade entre
batismo e confirmação que poderiam ser considerados Nessa perspectiva do simbolismo numérico para
sacramentos complementares e com isso somar como expressar a natureza das coisas, sobressai o número sete
um no rol dos sacramentos. por seu significado. O número sete é símbolo qualitativo
da perfeição: o número um significa origem, aludindo ao
Para entender o que significa afirmar que o
uno antes de seu desdobramento em múltiplos; o número
número “sete” dos sacramentos é uma grandeza antes
dois representa o outro, fundamento da multiplicidade; o
simbólica que aritmética, antes qualitativa que
número três tem sua importância como síntese da
quantitativa, será preciso considerar alguns elementos
unidade (número 1) com a multiplicidade (número 2),
históricos.
além de ser o número da mais simples figura geométrica,
O número “sete” não foi simplesmente o triângulo. Por essa razão, três é o número da perfeição
consequência lógica de uma definição exata de divina[1], designa a totalidade, símbolo da unidade do
sacramento. Os teólogos não definiram primeiro o que é uno (número 1) e do múltiplo (número 2). O número
sacramento e depois saíram à busca de ritos que quatro é o número da perfeição material, cósmica, o
preenchessem os requisitos da definição, encontrando número da proporção perfeita (2:2) e, portanto, da ordem
casualmente sete, nem mais nem menos. O fato histórico do cosmos. Quatro são os elementos, os ventos, os rios
é que na evolução da teologia sacramental o número do paraíso, os impérios segundo as visões de Daniel etc.
“sete” aparece simultaneamente com um conceito ainda Como soma de três e quatro, o sete é a perfeição por
43
excelência, pois une numa totalidade a tríade divina e o At 8,17; a penitência, em Jo 20,23 e Mt 18,18; a unção
quaternário cósmico. É, pois, o número da harmonia. dos enfermos, em Tg 5,14; a ordem, em At 6; o
Daí ser ele frequente: sete são não só os sacramentos, matrimônio, em Ef 5,32, onde a tradução latina fazia
mas também as virtudes, os dons do Espírito Santo, os ler peran sacramentum, expressão forte, tão incisiva que
pecados capitais, os planetas, os períodos celestes, os foi capaz de vencer os preconceitos vigentes contra o
tons da escala musical, sem falar nas diversas sexo e o matrimônio.
ocorrências do septenário no livro do Apocalipse de São
Na fixação dos sete sacramentos, há um
João.
paralelismo com a formação do cânon neotestamentário:
Nesse horizonte é que se devem localizar os sete só depois de uma evolução, de um lapso relativamente
sacramentos. O número sete já é uma definição de longo de tempo, a Igreja chegou a fixar o cânon. Poderá,
sacramento: Deus (tríade divina) que se comunica aos à primeira vista, ter sido levada pela autoria apostólica
humanos na realidade cósmica dos gestos simbólicos (o dos escritos, que hoje, para muitos livros, é negada ou
quaternário cósmico). Mesmo em Trento, apesar do pelo menos posta em questão. Nem por isso os livros
acento quantitativo, permanece o sentir qualitativo. O selecionados na formação do cânon deixam de ser
acento aritmético responde à negação protestante que inspirados e canônicos. A própria história da Igreja, sua
também é aritmética. A Reforma protestante se agarra à identidade, que se construiu sobre esses livros e somente
letra da Escritura e não apreende o alcance qualitativo do esses, não permite voltar atrás. E, para quem crê que a
número sete. Posicionando-se sempre face às afirmações Igreja é conduzida pelo Espírito Santo, é uma garantia
ou negações dos Reformadores, Trento entra no terreno da propriedade da escolha.
do valor aritmético de sete nem mais nem menos.
Semelhantemente se poderia dizer dos sete
Entretanto, a Reforma nega não só o número dos
sacramentos: a Igreja não apenas celebrou durante
sacramentos, mas o próprio princípio da
séculos esses sacramentos, talvez sem privilegiá-los,
sacramentalidade. Trento, defendendo o número sete e
mas, uma vez reconhecidos, eles marcaram de tal forma
pondo-se em pé de igualdade (aritmeticamente) com a
a comunidade cristã, sua vida e sua prática, que já não
Reforma, na realidade defende a própria
pode viver sem celebrá-los. Conduzida pelo Espírito
sacramentalidade da salvação, expressa simbolicamente
Santo, a Igreja só poderia ter aceitado evolução tão
no número sete.
prenhe de consequências sob a ação do mesmo Espírito.
O parentesco qualitativo-aritmético com a posição
Além disso, discutir se se pode hoje voltar atrás de
protestante teve, no entanto, consequências: a
Trento e acrescentar “novos” sacramentos ou reduzir o
quantificação dos sacramentos com a correspondente
septenário, é perder de vista que a Igreja não se reduz à
tendência a medir a intensidade da vida cristã pela
celebração dos sacramentos, mas esses se põem no
frequência aos sacramentos. Não é preciso ser contra a
contexto mais amplo do testemunho de fé no mistério
quantificação matemática dos sete, mas contra a perda
pascal de Cristo, decisivo para que os sacramentos deem
de seu valor qualitativo e o consequente “consumo” dos
frutos de vida cristã.
sacramentos.
4 A eficácia dos sacramentos (TABORDA, 1998,
Mesmo reconhecendo o valor simbólico do
p.170-2)
número sete, no entanto, não se pode abstrair do fato de
que ele é mediado pelo valor aritmético sete. Isto é: sete O Concílio de Trento ensina que “os sacramentos
ações simbólicas da Igreja – e não outras – foram da Nova Lei (…) conferem a graça pela própria
reconhecidas aptas para expressar simbolicamente, no realização do ato <sacramental>” (ex opere operato)
simbolismo dos números, o princípio da (DH 1608). O significado profundo dessa expressão,
sacramentalidade, a saber: que Deus se comunica ao ser muitas vezes mal entendida num sentido mágico ou
humano no histórico-sensível. quase mágico, é que é Deus e somente Deus quem atua
nos sacramentos. A análise da expressão tradicional
Em primeiro lugar é preciso dizer que não se pode
ajudará a compreender melhor essa prioridade de Deus
estabelecer a priori que sejam esses e por que esses e
nos sacramentos.
não outros os sete sacramentos. Mas, a posteriori é
possível encontrar uma lógica na escolha dessas ações A expressão opus operatum significa a “ação
simbólicas e não de outras. É que essas ações simbólicas como tal”, “a própria realização do ato”. Contrapõe-se
marcam momentos decisivos na vida do cristão e a opus perantes, que poderia ser traduzido literalmente
consequentemente na própria vida da comunidade como a “ação de quem atua”. Na primeira expressão se
eclesial. Historicamente, não é de desprezar o confronto atende objetivamente à ação; na segunda, a um sujeito
do problema concreto “quais sete?” com os dados da que realiza a ação. As expressões se elucidam, se se
Escritura, que a seleção desses gestos simbólicos recorda o problema que historicamente está em sua
implica. De todos eles o teólogo medieval encontrava origem. Elas surgiram na teologia (e mais exatamente na
resquícios no Novo Testamento. Além do batismo e da soteriologia) na segunda metade do século XII. Ao tratar
eucaristia, que obviamente são dados bíblicos, via-se a da obra redentora de Cristo, distinguia-se o opus
confirmação na imposição das mãos pelos apóstolos em operatum, sua obra redentora ao morrer na cruz, sua
44
ação de morrer, e o opus perantes, a ação dos que oferece a uma pessoa com plena capacidade auditiva um
levaram Jesus à morte (Judas, por sua traição; Anás e CD de Beethoven ou a alguém que tem ambas as pernas
Caifás, os membros do Sinédrio, e Pilatos, como um par de sapatos, embora alguns não o aceitem, porque
mandantes do crime; os verdugos, como executores…). não gostam de música erudita, ou porque não se
O efeito redentor da morte de Cristo se dá ex opere agradam do modelo do sapato. É um oferecimento real,
operato e não ex opere perantes; provém da ação de mesmo quando não aceito. Também Jesus era uma
Cristo ao morrer e não da ação dos homens que o chance de conversão para os fariseus, embora eles não o
mataram. tenham aceitado. A ação ex opere operato dos
sacramentos expressa essa estrutura fundamental do
No século XIII a expressão foi transposta para a
sacramento: Deus se oferece à pessoa através deles e
teologia dos sacramentos: a graça sacramental não
esse oferecimento subsiste independente de que a pessoa
depende do ministro nem de quem recebe o sacramento
o aceite.
(opus perantes), mas da ação sacramental, exterior,
perceptível, visível (opus operatum). É importante Em resumo: a fórmula “os sacramentos agem ex
considerar a preposição ex que ocorre na expressão. Ela opere operato” significa negativamente que a eficácia do
significa “por causa de”, “a partir de”. O sacramento não sacramento não procede do ser humano; positivamente
é eficaz ex opere perantes, não significa que o opus que a eficácia procede da obra de Cristo, sua vida, morte
perantes não seja importante, mas sim que a força do e ressurreição, objeto do memorial, e que o gesto
sacramento, a graça sacramental, não provém do sacramental é um oferecimento permanente de Deus ao
ministro ou da fé de quem recebe o sacramento. ser humano, quer este o aceite, quer não. Por isso, a
Entretanto, para que o sacramento seja eficaz ex opere expressão põe em primeiro plano a ação sacramental
operato, é preciso sempre algum opus perantes, seja do como tal, pela qual o mistério de Cristo (opus operatum)
ministro (“a intenção de (…) fazer o que a Igreja é celebrado e assim oferecido como convite a esta
faz”, DH 1611), seja de quem o recebe (não pôr pessoa e a esta comunidade para que assumam mais
obstáculo à graça, cf. DH 1606). E, mais que a intenção, profundamente a vida de seguimento de Jesus.
exige-se fé por parte de quem recebe o sacramento, uma
*Francisco Taborda SJ, FAJE, Brasil. Texto
entrega a Deus correspondente à graça concedida, uma
original português.
vida de acordo com o sacramento ou, pelo menos, a
disposição interna de começar um caminho de 6 Referências bibliográficas
conversão. A eficácia ex opere operato não substitui CHAUVET, L.-M. Le mariage, un sacrement pas
o opus perantes; entretanto, a graça não vem do opus comme les autres. In: LMD, n.127, p.85-105. 1976.
perantes. A fonte da graça é a ação sacramental, mas
não no sentido mágico, pois o opus operatum não está na CONGAR, Y. A noção de sacramentos maiores ou
materialidade da ação sacramental, mas em ser ela ação principais. In: Concilium, n.31, p.21-31. 1968.
de Cristo pelo Espírito Santo. Os sacramentos agirem ex PAULO VI. A sagrada
opere operato significa, portanto, que agem por força da eucaristia: encíclica Mysterium fidei. Petrópolis: Vozes,
obra salvífica de Cristo presentificada pelo 1965. Documentos Pontifícios, 153.
sacramento. Opus operatum e opus perantes se
encontram no sacramento. Este é o momento em que a RAHNER, K.; THÜSING, W. Cristología: estudio
graça se expressa como graça que leva a pessoa a peran- sistemático y exegético. Madrid: Cristiandad, 1975.
la livremente e, por isso e ao mesmo tempo, o gesto pelo Biblioteca Teológica Cristiandad, 3.
qual a pessoa expressa seu livre assentimento à graça, TABORDA, F. Sacramentos, práxis e festa: para
assentimento que, por sua vez, lhe é dado totalmente uma teologia latino-americana dos sacramentos. 4.ed.
pela graça. Longe de se oporem, opus operatum e opus Petrópolis: Vozes, 1998.
perantes se supõem mutuamente como graça e liberdade
(cf. antropologia teológica). ______. O memorial da Páscoa do Senhor:
ensaios litúrgico-teológicos sobre a eucaristia. São
Essa ação de Cristo no Espírito pelos gestos Paulo: Loyola, 2009.
simbólicos da celebração é oferecimento que Deus faz
de si próprio ao ser humano (autocomunicação de Deus). ______. Nas fontes da vida cristã: uma teologia do
O oferecimento não deixa de ser oferecimento pelo fato batismo-crisma. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2012.
de alguém não aceitar o que foi oferecido, embora para Theologica.
ser oferecimento sempre deva haver a possibilidade de [1] A qualificação do número três como número
aceitação. Se, por exemplo, um louco oferece a uma da divindade não tem nada a ver com a noção cristã de
pessoa um terreno na lua, não é oferecimento real, que Deus é Trindade. Esse sentido do número existe
porque ele não tem possibilidade de dar o que ofereceu. também no judaísmo, por exemplo.
Também não é oferecimento se alguém oferece a um
surdo-mudo um CD com uma sinfonia de Beethoven ou
a alguém que amputou as duas pernas, um par de Sacramentos, centro da liturgia
sapatos. Mas não deixa de ser oferecimento se alguém
Sumário
45
1 A renovação conciliar da Liturgia 4 Iniciação cristã pelo batismo e a unção com o santo
2 Os sete sacramentos crisma
3 A eucaristia, memorial da Páscoa do Senhor, 5 Os outros sacramentos
sacramento dos sacramentos 6 Resumindo
7 Referências bibliográficas
Concílio de Bispos orientais. Enquanto nas Igrejas de
rito latino os sacramentos se compreendem a partir da
1 A renovação conciliar da Liturgia
noção de sacramento, no oriente se mantém o termo
O que é a liturgia? O Concílio Vaticano II, mais bíblico mysterium, que os relaciona mais
sabiamente, não propõe uma definição da liturgia. intuitivamente com o mistério do Cristo.
Definir significa delimitar a partir de conceitos, e como
A partir do Concílio de Trento, no ocidente o
delimitar as insondáveis riquezas do mistério de Cristo,
cristão aprendia no catecismo que os sacramentos eram
que é o mistério de nossa salvação celebrado na
sete e tanto a prática litúrgica como a reflexão foram
Liturgia? Mas ‒ ao mostrar, desde diversos ângulos,
influenciadas pela forma fragmentada de vê-los. Se
como a liturgia torna presente no mundo, mediante a
alguém perguntasse a um cristão dos primeiros séculos
Igreja, o mistério de Cristo ‒ o Concílio abre um
pelos “sete sacramentos” esse ficaria surpreso e não
caminho fecundo à teologia dos sacramentos,
saberia como responder. Falaria, porém, com entusiasmo
apresentados na Constituição dogmática Sacrosanctum
dos santos mistérios, celebrados de forma eminente na
Concilium como o núcleo da liturgia. O caminho que
ceia do Senhor, como presença viva e atuante do
deve ser procurado na tradição eclesial da própria prática
mistério de Cristo, e do batismo que esteve unido desde
litúrgica, em sua rica diversidade. Afirma-se no
muito cedo à unção com o myron ou santo crisma. Em
documento conciliar que pela liturgia, principalmente no
torno a eles, outros muitos ritos, de forma diversa,
divino Sacrifício da eucaristia, “se atua a obra de nossa
celebravam esse único mistério.
Redenção”, com uma expressão tirada dos próprios
textos litúrgicos, a oração sobre as oferendas do segundo O termo latino sacramentum, contudo, não é
domingo depois de Pentecostes do antigo Missal. A senão a tradução do termo grego mystērion, cujo sentido
Liturgia ‒ afirma também a Constituição ‒ é “o cume original é o de consagração, e aproxima-se, assim, do
para o se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde sentido de mystērion. Tendo, porém, um aspecto mais
promana toda a sua força” (SC n.10). estático, irá acentuando, no ocidente cristão, o aspecto
jurídico, embora somente nos século XII e XIII, por
Ao apresentar os sacramentos como centro da
influência da filosofia aristotélica, esse aspecto se
Liturgia, caracterizada como fonte e cume da vida
tornasse predominante. Os sacramentos foram definidos
eclesial, o Concílio indica à Teologia o ponto de partida
como sinais exteriores da santificação interior
da reflexão sobre os sacramentos: o mistério pascal de
realizada por Cristo. A definição é correta, mas só
Cristo celebrado na própria tradição litúrgica. Superam-
revelará o sentido profundo do sacramento quando sinal
se, assim, as limitações da apresentação dos sacramentos
for entendido como símbolo, criador de comunhão e for
a partir de conceitos da filosofia escolástica e devolve-se
melhor articulada a relação entre símbolo e sacramento,
à liturgia a sua grandeza e a sua relevância teológica.
o que só acontecerá com o desenvolvimento da filosofia
Consequentemente, a SC determina que a Liturgia seja
da linguagem e do corpo como lugar das relações inter-
estudada, nas faculdades de Teologia e nos seminários,
humanas.
como uma das disciplinas mais importantes “tanto no
aspecto teológico e histórico, quanto espiritual, pastoral 2 Os sete sacramentos
e jurídico” (n.16). Determinação óbvia da compreensão
A definição dos sete sacramentos teve o mérito de
da Liturgia em consonância com a mais antiga tradição.
destacar, dentre as muitas ações sacramentais da Igreja,
Segundo o conhecido aforismo dos Pais da Igreja: a
as mais importantes para a vida cristã e para a missão da
eucaristia faz a Igreja, a Igreja faz a eucaristia.
Igreja. Em contrapartida, trouxe o inconveniente de
Até um passado relativamente recente, em muitas desvalorizar algumas ações litúrgicas em que se
faculdades de Teologia e seminários, a disciplina da manifesta a ação de Cristo na vida cristã. Essas foram
Liturgia limitava-se ao estudo das rubricas e os denominadas, com um adjetivo substantivado,
sacramentos eram estudados sem muita relação com a “sacramentais”, em contraposição aos “sacramentos”.
forma concreta da celebração do mistério de Cristo na Inconveniente maior foi reduzir a um denominador
liturgia. O tratado dogmático dos sacramentos era comum os sete sacramentos, na tentativa de encontrar
introduzido por uma noção comum de sacramento, que, uma definição de sacramento.
embora analógica, tendia a ocultar a singularidade da
O que está na base da apresentação conciliar dos
manifestação do mistério celebrada em cada sacramento.
sacramentos é que a totalidade da ação da Igreja é
A reforma litúrgica promovida pela Sacrosantum compreendida como sacramental (Lumen gentium n.1):
Concílium tende a aproximar as liturgias do Ocidente e “A Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal,
do Oriente, devendo-se isso, em parte, à presença no e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade
46
de todo o gênero humano”. O Vaticano II afasta-se da de Aquino ‒ ao dizer que os sacramentos são instituídos
apresentação preponderantemente jurídica dos ‒, afirma-se que Cristo é o autor, “autor” no sentido de
sacramentos ao afastar-se da visão da Igreja como “ator”, dos sacramentos, aquele que realiza a ação
sociedade perfeita, vendo-a preferentemente salvífica visibilizada pelo sinal sacramental. A igreja não
como mystērion ou sacramento. inventa os sacramentos, como não inventa nenhuma
ação que pretenda tornar presente a ação salvadora de
O que significa isso? Significa que a Igreja não
Cristo: os recebe do Cristo na missão de ser sacramento
oferece ao mundo uma salvação da qual seria a autora e
do mistério pascal do Cristo.
que poderia reivindicar como própria, mas que todas as
suas palavras, gestos e ações querem manifestar e tornar Relativiza-se assim (não se suprime), a distinção
presente a ação de outro: o Cristo, que viveu, morreu e dos sete sacramentos de outras muitas ações de Cristo
ressuscitou para a salvação do mundo, ou seja, o pelo caráter de instituídos por Cristo, e também a
mistério pascal. A Igreja realiza a missão de ser o procedência da eficácia das ações dos sacramentos em
Sacramento do Cristo não apenas com os sete relação a outras ações da Igreja que celebram e
sacramentos, mas com toda a sua vida. Quando isso não manifestam na liturgia sua missão de ser sacramento da
acontece, a Igreja trai sua missão. Por isso deve salvação. A eficácia das primeiras era chamada ex
reconhecer-se santa e pecadora, necessitada em cada opere operato e a das últimas ex opere operantis
instante de receber o perdão e a santificação do Cristo, Ecclesiae, distinções válidas no interior do sistema
para ser seu sacramento. escolástico, expostas à deturpação quando não se
domina a terminologia do sistema. A noção de ex
No entanto, a tradição da Igreja, no ocidente,
opere operato mostra que a eficácia do sacramento
reservou a designação de sacramentos às ações
procede do fato de ser ação de Cristo. Mal entendida,
sacramentais que são a fonte e manifestação privilegiada
abriu as portas a sacramentalismo, com a concepção da
do agir da Igreja como sacramento de Cristo. Nem tudo
eficácia quase-mágica dos sacramentos, esquecendo que
é liturgia afirmou o Concílio. Mas a liturgia mostra que
também os sacramentais recebem sua eficácia do fato de
toda a ação de Igreja nasce da liturgia. O
serem ações de Cristo e que, tanto uns como os outros,
trabalho cristão pela justiça nasce da “vida em Cristo”
são sinais do agir do Cristo e exigem a vivência da fé no
que nos é dada pelo batismo e celebramos na eucaristia.
seio da Igreja. Exigem sempre dois atores: Deus agindo
Se a celebração da eucaristia não conduz ao viver
por seu filho Jesus Cristo e a Igreja movida pela fé, dom
cotidiano em comunhão fraterna deixa de ser a mesa do
do Espírito.
Senhor, como sugere a censura de Paulo aos Coríntios
pelo modo como se comportavam em algumas das suas A fragilidade das sutis distinções da escolástica
celebrações (Cf. 1 Cor 11, 19 s). Por aí se vê a torna-se evidente quando a teologia, ajudada pela
complexidade da compreensão dos sacramentos e a hermenêutica bíblica, compreende não ser possível
impossibilidade de classificá-los a partir de uma noção distinguir os sacramentos de outras ações de Cristo a
prévia de sacramento. partir de um ato instituinte de Jesus, no tempo da sua
vida mortal, e que a eficácia ex opere operato é
As ambiguidades começam ao aplicar-se aos
propriedade da graça divina e consequentemente de toda
sacramentos, por um lado, as categorias aristotélicas do
ação de Cristo mediante a sua Igreja. Mais ainda, é
hilemorfismo e, por outro, os conceitos de causa
propriedade de toda ação divina para salvação da
eficiente e principal ou instrumental, que dificilmente
humanidade presente no mundo desde a sua origem,
escapam de representações produtivistas e objetivantes.
dentro ou fora da Igreja. E todas elas postulam do
Sob o viés do hilemorfismo, a palavra de Cristo é
homem a livre acolhida do dom divino.
considerada a forma do sacramento que unida
à matéria (o elemento visível: água, pão etc.) o constitui Essas distinções surgiram ao tentar explicar os
como sinal da salvação. Do ponto de vista da sacramentos com ajuda da causalidade eficiente
causalidade, Deus é afirmado como agente principal do (principal ou instrumental), deixando na sombra que os
sacramento, sendo o ministro seu instrumento. Não que sacramentos, os mystēria da terminologia grega, mais
isso seja falso. Mas é uma explicação exterior ao enraizada na linguagem bíblica, são ações sagradas
mistério, que não é outro senão o mistério pascal que se simbólicas, que agem mediante o mesmo ato de
torna presente no memorial que a Igreja faz dele. simbolizar. Em outras palavras: são sacramento e
memorial do mistério do Cristo, “o segredo (mystērion)
As ambiguidades aumentaram ao querer distinguir
escondido por séculos e gerações, e agora revelado aos
as ações sagradas “instituídas” por Cristo (os sete
seus santos (…) que é Cristo para vós, esperança da
sacramentos) de outras que seriam criadas pela Igreja.
glória” (Cl 1, 26s).
Na “instituição por Cristo”, buscavam alguns uma ação
do Jesus histórico, o que levou à dissidência luterana 3 A eucaristia, memorial da Páscoa do Senhor,
nesse ponto e a admitir só dois sacramentos: a eucaristia sacramento dos sacramentos
e o batismo – do qual, no entanto, não se pode afirmar a
A constituição Sacrosanctum Concilium situa-se
instituição por Jesus em sua vida terrena. Em realidade,
nessa perspectiva: a liturgia é presença e revelação
na teologia dos grandes escolásticos, pense-se em Tomás
do Mystērion que é o próprio Cristo. Ao tratar dos
47
sacramentos, a SC começa pela eucaristia e só depois Compreende-se facilmente agora o que significa
fala dos outros sacramentos, principiando pelo batismo afirmar que os sacramentos são instituídos por Cristo,
que, com o santo Crisma, inicia a vida cristã embora não seja possível encontrar atos instituintes de
introduzindo o catecúmeno na assembleia litúrgica, Jesus na sua vida terrena determinando-lhes o ritual. Na
mediante a participação progressiva na celebração atual hermenêutica da Escritura, nem o batismo pode ser
eucarística (a liturgia da palavra é parte constitutiva reconduzido a uma instituição verbal do Cristo e na
desta), até a plena participação “pela comunhão do corpo gênese da eucaristia pós-pascal não deve ser procurada
e sangue do Senhor”. apenas a última ceia. A Ceia não é a primeira de uma
série de eucaristias, mas o fundamento de sua
A eucaristia, conforme a visão dos primeiros
instituição, junto com: 1) a experiência das frequentes
séculos, que permanece até hoje viva na Igreja ‒ embora
refeições de Jesus com os discípulos, abertas aos
de maneira mais acentuada talvez na Igreja oriental ‒,
pecadores e publicanos, como sinal da abertura da mesa
não é um mystērion na Igreja (um dos sete sacramentos),
messiânica a todos e, sobretudo, 2) a experiência pós-
mas o mystērion ou sacramento da mesma Igreja. É
pascal da presença do Ressuscitado na assembleia dos
o mystērion dos mystēria, o sacramento dos
discípulos reunidos em seu nome, em virtude da
sacramentos. Isso significa que todos os outros
promessa da ceia.
sacramentos estão ordenados à eucaristia e encontram
nela sua plenitude. Em consequência, todo sacramento é Os sacramentos vão nascendo da obediência da
sempre um evento da Igreja, na Igreja e para a Igreja, Igreja pós-pascal ao testamento do Cristo na Ceia. Num
aspectos ocultados tanto pela prática sacramental da gesto simbólico, enraizado na celebração da páscoa
igreja latina, quanto pela teologia dos sacramentos judaica e levando-a à plenitude, Jesus, obediente à
anteriores ao Concílio, que a reforma litúrgica tenta vontade do Pai, entrega aos discípulos a sua morte,
reestabelecer, embora ainda reste um longo e árduo acolhida livremente como gesto derradeiro do seu amor.
caminho a percorrer. Com o gesto da ceia, Jesus dá sentido à morte violenta,
absurda e sem-sentido, que lhe é injustamente imposta, e
Mérito da reforma conciliar foi pôr em evidência
pede aos discípulos que façam, em sua memória, o que
essa conexão íntima de todos os sacramentos com a
ele fez: viver para os demais até a entrega da própria
eucaristia. Os novos rituais recomendam, por exemplo, a
vida se for preciso. O mandato dado na Ceia é mais que
celebração do batismo na assembleia eucarística e
repetir um ritual. É imitar a entrega do Senhor na cruz
preveem também uma forma de celebração da unção dos
em favor da humanidade. Da obediência criativa,
enfermos dentro da missa. As ordenações, a confirmação
inspirada pelo espírito dos discípulos de Jesus, irão
e, com frequência, o matrimônio já vinham celebrando-
surgindo na Igreja os sacramentos como celebrações da
se tradicionalmente dessa forma. A penitência é o único
memória do mistério pascal.
sacramento cuja celebração dentro da eucaristia,
estranhamente, não é prevista pelos novos rituais. Na Comecemos pelo sacramento dos sacramentos. A
antiguidade, a penitência realizava-se como longo Igreja faz a eucaristia por mandato do Senhor. Não a
processo de conversão que começava pela exclusão inventa. Celebra a eucaristia por fidelidade ao
da comunhão (eclesial e eucarística) e terminava pela testamento de Jesus na última ceia: amar como o seu
imposição das mãos do bispo. Desde o século IV Senhor, até a entrega da vida se for preciso. O
esta reconciliatio altaris tinha lugar no contexto da desenvolvimento progressivo e diferenciado do ritual é
celebração eucarística da quinta-feira santa. gerado pelo cuidado de reencontrar, em cada celebração,
o significado que Jesus deu ao gesto do pão e do vinho:
Dizer que o sacramento é uma ação simbólica, que
como sacramentos da sua entrega na cruz. O ritual
age significando, implica afirmar que a Palavra bíblica
expressará que comunhão no sacramento da entrega do
proclamada na celebração dos sacramentos tem caráter
Cristo na cruz faz da Igreja o corpo de Cristo pela ação
sacramental, faz parte constitutiva do sacramento e que
do Espírito. E o suplicará, de diversas formas nas
sua acolhida na fé (só possível como dom do Espírito) é
orações eucarísticas.
um dos meios pelo qual Deus age mediante o
sacramento. Claro que isso implica estender o caráter de Reduzir ou mesmo apenas focar o sacramento da
sacramento ao conjunto dos ritos que formam sua eucaristia na transformação do pão e do vinho no corpo
celebração e não reduzi-lo às palavras que a teologia e sangue sacramentais de Cristo deturpa o gesto de Jesus
clássica considerava como a “matéria e forma” do na Ceia. Oculta a missão da Igreja de ser, com toda sua
sacramento, exigidos pelo direito para a validez. Esta vida, sacramento do Cristo para a salvação da
forma de conceber os sacramentos deve ser superada e a humanidade. Isto foi, sem dúvida, em maior ou menor
melhor maneira de compreender a razão disso é pensar o grau, uma das consequências da teologia dos
sacramento como mystērion: memorial sacramental do sacramentos que não se deixou guiar totalmente pela
mistério de Cristo para a salvação do mundo confiado à própria tradição das práticas litúrgicas na sua rica
Igreja. Os escritos dos Pais da Igreja sobre os variedade eclesial.
sacramentos testemunham essa concepção ampla e o
Quando se compreende a ação sacramental da
cuidado que se tinha para que todo o ritual fosse
eucaristia a partir da sua celebração e não mediante
revelador do mistério celebrado.
48
teologias e práticas litúrgicas redutoras, ao querer assembleia. A celebração do batismo na missa da
determinar o mínimo essencial para a validade do comunidade paroquial torna transparente o sentido do
sacramento, as palavras precisas que realizam o batismo de uma criança nascida no seio de uma família
sacramento e o momento exato em que isso acontece, cristã. Cristo a acolhe enquanto criança, no mesmo ato
superam-se muitas dificuldades e controvérsias entre da comunidade que a acolhe e compromete-se em iniciá-
oriente e ocidente. Pense-se na dilatada controvérsia la progressivamente à própria vida de fé.
entre as igrejas do oriente e ocidente, de saber se são as
A unção com o santo crisma manifesta e confere o
palavras da instituição ou a epiclese as que consagram.
dom do Espírito, que mediante a catequese, iniciada na
A prática litúrgica mostra que o sacramento da família e continuada na comunidade, irá configurando,
eucaristia é constituído pela ação do Cristo, presente progressivamente, o pensar e o agir da criança à vida da
como anfitrião da Ceia desde o começo e ao longo de Igreja enquanto corpo de Cristo. Para isso a catequese,
toda a celebração, em diálogo com a assembleia, desde seus começos, configurou-se como história de
convidando-a a acolher o dom se sua vida “por nós e Jesus, como mostram os quatro evangelhos. Com que
para nossa salvação”, que culminou na Cruz, e a deixar- argumentos se negaria o caráter e a eficácia sacramentais
se transformar pela comunhão do sacramento do seu a essa unção que segue o batismo, acompanhada das
corpo e do seu sangue entregues na cruz por amor de palavras do ritual que explicitam seu sentido e seu
todos. Eternizado na ressurreição, o gesto de Cristo na alcance? “Pelo batismo, Deus Pai te libertou do pecado e
ceia, consumado na cruz, se torna presente em cada te fez renascer pela água e pelo Espírito Santo. Fazes
assembleia litúrgica, para fazer da Igreja o seu corpo, agora parte do povo de Deus. Que ele te consagre com o
pelo Espírito que jorra da Cruz. A oração eucarística é óleo santo, para que, como membro do Cristo sacerdote,
uma ação de graças mediante o memorial da ação profeta e rei, continues no seu povo até a vida eterna”.
redentora de Cristo, acolhido na fé. Uma fé que deve ir
Segundo a prática atual do rito latino, na
crescendo no desenrolar da vida pela ação do
adolescência ou na idade adulta, celebra-se o sacramento
sacramento e, por isso, a proclamação da Palavra divina,
da confirmação. Mas isso não esvazia de maneira
“a memória dos atos e palavras de Jesus (Justino), e a
alguma, antes confirma, a validade da unção recebida na
escuta amorosa dessa Palavra foram, desde as origens,
infância e seu caráter de sacramento. Ao confirmar o
momentos constitutivos do sacramento da eucaristia, e
cristão, ao chegar à idade adulta, a fé recebida na
não apenas preâmbulos, cf. IGMR n.8. Não se pode
infância, Deus confirma o dom, agora melhor
negar o caráter sacramental a toda a celebração.
compreendido. Aparece, assim, a relativa liberdade da
Isso vale analogicamente para o batismo e para os Igreja na configuração dos sacramentos a partir da
outros sacramentos. Todos são sacramentos do mistério obediência ao mandato de configurar sua vida pelo
pascal nas diversas circunstâncias, ministérios e missões mistério pascal. Abre-se, ao mesmo tempo, um caminho
da Igreja. Símbolos da missão a ela confiada pelo para o diálogo ecumênico entre as Igrejas e suas
Senhor, de ser seu sacramento em todas as conjunturas diferentes prática sacramentais.
da vida.
A participação na mesa eucarística pela comunhão
4 Iniciação cristã pelo batismo e a unção com o do corpo e sangue do Senhor deveria acontecer logo que
santo crisma a criança for capaz de distinguir o pão eucarístico do pão
comum ‒ permito-me emprestar uma expressão de Pio X
A partir desse princípio é fácil compreender o
‒, sem esperar à conclusão de uma determinada etapa da
batismo, na diversidade de suas configurações históricas.
catequese. Comungando ela ira aprendendo com Jesus,
O batismo na água desde as origens é acompanhado da
que entregou sua vida por nós, a sair do egoísmo e viver
unção com o santo Crisma, e ordenado à eucaristia,
para os demais. Isso deveria ser óbvio para todo
configurando-se assim como sacramento da iniciação à
discípulo daquele que corrigiu severamente os discípulos
vida na comunidade cristã. No catecumenato antigo, que
que queriam impedir que as crianças chegassem perto
inspirou o rito atual do batismo de adultos, era celebrado
dele. Uma assembleia que põe barreiras às crianças em
em etapas sucessivas após a liturgia da Palavra da
suas celebrações não se configura como Igreja de Jesus.
celebração eucarística. Essa forma tradicional da
celebração mostra claramente que a eucaristia é o A prática diversa da Igreja oriental de dar a
sacramento dos sacramentos. Ela não pode ser comunhão às crianças mostra, de outra forma, a eficácia
simplesmente catalogada como um a mais entre os sete do sacramento por ser ação de Cristo em diálogo com a
sacramentos, nem sequer como um entre os sacramentos fé da comunidade que acolhe no colo as crianças.
de iniciação.
5 Os outros sacramentos
Os atores que configuram e constituem a “ação
Os outros sacramentos que completam o número
sacramental” do batismo ‒ como acontece em todos os
de sete, segundo a definição de Trento, são: a ordenação,
sacramentos ‒ são sempre o Cristo e a Igreja,
o matrimônio, a penitência e a unção dos
presencializada pela assembleia litúrgica, mesmo
enfermos. Quando a Igreja, em Trento, os define como
quando o sacramento visa a conferir um dom, uma
as sete ações sacramentais baseia-se, em primeiro lugar,
missão, um serviço a um ou vários membros da
49
na prática eclesial recebida da tradição. As razões que na Na implementação da reforma litúrgica, que desde os
época se davam para a definição dos sete sacramentos seus começos se apresentou conflitiva após séculos de
podem ser questionadas. A teologia atual mostra a rigidez ritual, a Sacrosanctum
importância desses sacramentos pelo fato deles Concilium afirma prudentemente, para não
manifestarem a sacramentalidade da Igreja como dizer condescendentemente, que na celebração dos
sacramento de Cristo, por sua importância para a sacramentos se prefira a celebração comunitária. Nesse
edificação da Igreja e para a vivência do ser cristão em mesmo espírito, os rituais recomendam a celebração dos
momentos essenciais da vida. Não podem ser sacramentos na eucaristia dominical da comunidade. Se
compreendidos a partir de um conceito unívoco de a prática se tornar comum, ir-se-ão abrindo caminhos
sacramento. Aqui apresentaremos brevissimamente sua surpreendentes para sua compreensão. Claro que isto
relação com a sacramentalidade da Igreja manifestada exigirá uma renovação dos ministérios para que toda
plenamente na eucaristia. comunidade possa celebrar facilmente a eucaristia.
A “ordenação” relaciona-se imediatamente com a 6 Resumindo
eucaristia e se ordena a ela. A eucaristia é celebrada por
Se quer-se recuperar a riqueza da teologia contida
toda a assembleia litúrgica, mas nem ela, nem qualquer
na própria tradição litúrgica das ações sacramentais que
um dos seus membros, a poderia celebrar sem a
concretizam a ação da Igreja enquanto sacramento do
presidência do Cristo. O ministério ordenado manifesta
Cristo, deve-se obedecer aos seguintes princípios:
que todo o poder de celebrar a ceia do Senhor procede
do Cristo. 1) Toda ação litúrgica é de alguma forma ação
sacramental enquanto ação de Cristo realizada mediante
O sacramento do “matrimônio” faz que a união
a sua Igreja para a edificação do seu corpo, para
conjugal do homem e da mulher, renascidos no batismo
anunciar e tornar presente a salvação em todas as
para a nova vida do Ressuscitado, seja imagem da união
realidades da história humana.
do Cristo e da Igreja. Ao mesmo tempo manifesta na
menor comunidade dos discípulos, a família cristã, que 2) A teologia deve abandonar definitivamente a
Cristo é a rocha sobre a qual se edifica a Igreja. explicação os sacramentos a partir de uma previa noção
genérica do sacramento aplicada a cada um deles,
A unção dos enfermos mostra a presença especial
mesmo com a ressalva de ser aplicação analógica.
de Jesus na situação crucial da doença, que mesmo não
sendo muito grave, coloca o ser humano diante da sua 3) Para melhor compreensão dos sacramentos, é
condição mortal. Como não sentir, nesse momento, a conveniente começar, como faz a SC, pela eucaristia,
necessidade da presença da oração da Igreja e do apoio memorial do mistério da morte e ressurreição do Senhor,
acolhedor de seus braços, sacramento dos braços abertos o mistério dos mistérios ou o sacramento dos
na cruz do próprio Cristo? sacramentos, por ser o sacramento da própria Igreja e
conter, como dizia Tomás de Aquino, totum mysterium
A necessidade de um sacramento para a
nostrae salutis, “a totalidade do mistério da salvação”
reconciliação foi inspirada pelo Espírito à Igreja, perante
ou, como afirmavam os Pais, porque a eucaristia faz a
a situação de cristãos que tendo recebido no batismo o
Igreja.
dom inestimável do perdão divino e a vida nova em
Cristo o rejeitaram pelo pecado, às vezes até negação da Juan Ruiz de Gopegui, SJ. FAJE. Texto original
fé, e sentiram-se na iminência de cair no desespero, português.
rejeitados por Deus e pela Igreja de Cristo. Por isso, o 7 Referências Bibliográficas
sacramento nasce como reconciliação com Deus, que
passa pela reconciliação com a Igreja. Mais tarde, o CHAUVET, Louis-Marie. Symbole et
sacramento da reconciliação foi configurando-se de sacrement. Une relecture sacramentelle de l’existence
formas muito diversas. chrétienne. Paris: Cerf, 1987.
A sacramentalidade de alguns dos ritos HOTZ, Robert. Los sacramentos en nuevas
sacramentais, que passaram na Igreja por configurações perspectivas. La riqueza sacramental de Oriente e
históricas, só pode ser compreendida no estudo histórico Occidente. Salamanca: Sígueme, 1986.
e teológico de cada um deles. A sua celebração BIRMELLÉ, André. La articulation entre Écriture
apresenta problemas especiais para que, como postula et sacraments dans la lturgie lutherienne. In:
a SC (n.34), “os ritos resplandeçam de nobre BORDEYNE, Philippe; MORRILL, Bruce T. Les
simplicidade, sejam transparentes por sua brevidade e Sacrements, révélation de l’humanité de Dieu, volume
evitem as repetições inúteis, sejam acomodados à offert à Louis-Marie Chauvet. Paris: Cerf, 2008.
compreensão dos fiéis e, em geral, não careçam de
muitas explicações”. RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé.
Introdução ao conceito de cristianismo. São Paulo:
Em todos os sacramentos deveria ser transparente Paulus, 1989. p.476-97. A vida sacramental.
que se celebra o mistério pascal, que os atores são
sempre Cristo e a Igreja e que se ordenam à eucaristia.
50
SEGUNDO, Juan Luis. Teología abierta para el tríplice corpo ‒ social, ancestral e cósmico ‒ que
laico adulto, IV. Los Sacramentos hoy. Buenos Aires: constitui o ser humano como sujeito. No corpo se
Carlos Lohlé, 1971. articulam o eu e o outro, a natureza a cultura, o desejo e
a palavra. Para a fé cristã, o corpo de Cristo na tríplice
RUIZ DE COPEGUI, Juan A. Eukharistia,
dimensão ‒ terrena, eclesial e celeste ‒ é o lugar da
Verdade e caminho da Igreja. São Paulo: Loyola, 2008.
manifestação da Palavra eterna de Deus, que, por nós e
TABORDA, Francisco. O memorial da Páscoa do por nossa salvação, se fez carne em Jesus Cristo.
Senhor. Ensaios litúrgico-teológicos sobre a eucaristia. Os sacramentos só podem ser bem compreendidos
São Paulo: Loyola, 2009. quando pensados como ações ou intercâmbios
simbólicos que envolvem sempre o eu-corpo do homem,
o corpo eclesial e o corpo de Cristo em sua relação com
Símbolo e sacramento o universo. Os sacramentos são ações litúrgicas da
Sumário Igreja, A assembleia litúrgica, enquanto personificação
1 Signo, símbolo, linguagem, corpo da Igreja, corpo de Cristo, em um lugar e um tempo
2 Referências Bibliográficas determinados, é o sujeito primordial dos sacramentos.
Cada um dos sacramentos envolve e manifesta a ação
sacramental da Igreja, sacramento fundamental (Grund-
1 Signo, símbolo, linguagem, corpo sakrament) que, por sua vez, reenvia ao Uhr-
“Isoladas/ as palavras são mudas./ Homem, sakrament ou proto-sacramento: o Cristo, a palavra de
mulher,/ amor/, é som em linha reta/ e a Terra é Deus feita carne (TABORDA, 2005, p.73 nota 56).
redonda;/o som se perde em nada./ As palavras Enquanto sacramento da união dos homens entre
sobrevivem unidas umas às outras numa força de ponte si e com Deus, toda a ação da Igreja é sacramental,
para alcançar o ritmo no horizonte” Estes versos do mediante o culto espiritual que consiste em apresentar a
poema A palavra é carente, de Lupe Cotrim Garaude, Deus o próprio corpo como sacrifício vivo e espiritual
podem ser uma boa introdução, em linguagem para o serviço dos irmãos (cf. Rm 12, 1ss.), seguindo o
simbólica, para compreender os sacramentos como exemplo de Cristo que se ofereceu por nós na cruz. As
“símbolos”. ações sacramentais do culto cristão, encontram seu
Por sua atividade simbólica o ser humano sentido, seu acabamento e sua verificação no viver dos
configura o mundo e, ao mesmo tempo, é configurado cristãos ao serviço dos irmãos na vida cotidiana. Elas
por ela. O símbolo se distingue do fazem que “o viver para” os irmãos seja recebido
simples sinal ou signo, ou seja, da mera ação gratuitamente de Deus como dom e graça ao mostrá-lo
significativa das palavras enquanto usadas para designar ritualmente, porque o sacramento como símbolo não
os diversos objetos do mundo. A palavra remete a algo exterior a si mesmo, mas introduz numa
grega symbolon literalmente significa pôr junto, reunir. ordem da qual ele faz parte: a vida no corpo de Cristo.
Próprio do símbolo é reunir, pôr em comum, criar Os sacramentos celebrados na liturgia são, por isso,
comunhão. A palavra “rosa” designa um objeto da momentos culminantes da vida cristã, enquanto vida em
natureza. A rosa oferecida como presente à pessoa Cristo para o serviço do mundo. Introduzem, no Mistério
amada torna-se símbolo. A significação do símbolo não Pascal, o Mistério do corpo de Cristo, morto na cruz e
reside isoladamente na rosa, nem no gesto de entregar a ressuscitado por nós e para nossa salvação, mediante o
rosa, nem na pessoa que a oferece ou a recebe, mas na dom do Espírito que faz parte desse Mistério.
atividade mediante a qual os seres humanos Para tentar compreender a eficácia divina dos
intercambiam um objeto, uma palavra, ou um gesto e sacramentos, a teologia escolástica lançou mão das
desse modo se relacionam, manifestam seus sentimentos categorias filosóficas de causalidade eficiente e
recíprocos, ao mesmo em tempo que descobrem sua causalidade instrumental. O Verbo encarnado ‒
identidade. Ou seja, na linguagem. A ordem simbólica é afirmava-se ‒ age mediante os sacramentos, de modo
o meio pelo qual as pessoas se encontram e se revelam e semelhante ao artífice que esculpe uma estátua servindo-
assim se constroem e constroem o seu mundo. É nessa se de instrumentos apropriados. A afirmação era
ordem que o vocábulo como signo dos objetos se torna verdadeira e útil para afirmar que a eficácia do
símbolo, palavra que une e comunica as pessoas. sacramento provém de ser Deus o seu autor. Tomás de
A ação simbólica faz parte da linguagem, Aquino construiu uma reflexão muito rica sobre os
entendida não como mero instrumento para designar os sacramentos, servindo-se da analogia com os conceitos
objetos, mas como meio ou ambiente no qual a pessoa de causalidade emprestados da filosofia, embora não
humana se descobre, se constrói e acontece. A deduzindo-a deles, senão dos dados da revelação em
linguagem põe em jogo a pessoa humana Cristo. Mas a utilização de causalidades que dificilmente
enquanto corpo ‒ o “eu-corpo” ‒ o eu que somente escapam a representações de tipo produtivista não chega
enquanto corporeidade pode relacionar-se com os outros a tocar o mais essencial do agir sacramental, a ordem
e com Deus. O corpo é o lugar da articulação simbólica, simbólica. Não é de estranhar que a teologia posterior,
diferenciada segundo as orientações do desejo, do presa àqueles conceitos, não conseguisse desenvolver a
51
forma específica do agir sacramental, como linguagem e humanos para que no Filho e com o Filho renasçam para
corpo humanos assumidos por Deus em Jesus Cristo uma vida nova e imperecível.
para se relacionar conosco. Consequência desse tipo de Compreender o gesto de Cristo na cruz como
reflexão, aliada a outras conjunturas históricas, foi uma gesto de amor do Pai para a humanidade toda,
visão do agir dos sacramentos, em não poucos setores da simbolizado nos sacramentos, requer um processo lento
Igreja, de forma quase mágica. Não foi o fato de pensar e progressivo de comunhão, como o que deve haver
os sacramentos a partir da causalidade eficiente o que os entre mãe e filho para que seu abraço se torne símbolo
expôs a serem considerados como ações mágicas de amor. A prática da Igreja e o surgimento progressivo
(Tomás de Aquino não caiu na armadilha), mas o fato de dos sacramentos mostram bem isso. Os sacramentos
a teologia posterior e a prática sacramental não se nascem em torno à mesa em que se celebra a memória
deixarem guiar constantemente pela revelação divina em da entrega de Cristo por nós, e são sempre
Jesus Cristo. acompanhados do sacramento da Palavra que os torna
A teologia busca, hoje, no modo de agir significativos, até o ponto de revelar, na morte de um
simbólico um instrumental epistemológico mais judeu crucificado, o dom ‒ a autocomunicação ‒ do
apropriado para compreender o agir divino mediante os próprio Deus à humanidade. Para compreender isso não
sacramentos. Não com a pretensão de deduzir o agir basta narrar os eventos da vida de Jesus. Era necessário
sacramental de uma noção previa do símbolo. Construir- escutar o próprio Deus dizendo neles o seu amor por
se-ia, por esse caminho, uma nova escolástica incapaz de Israel e por toda a humanidade. Compreende-se por que
dar razão da prática sacramental. Mas olhando, com a memória da entrega de Jesus na cruz, celebrada na
ajuda da reflexão sobre a linguagem e o corpo como liturgia, foi sempre precedida pela leitura das Escrituras
lugares privilegiados das relações entre os humanos, a judaicas e por que são lidas também as cartas dos
revelação singular e escandalosa de Deus no Mistério apóstolos. Os apóstolos, iluminados pela memória de
Pascal, para reencontrar o sentido dos sacramentos que a Jesus, viram-se obrigados a reinterpretar as escrituras
Igreja recebe do Cristo na tradição litúrgica. antigas ao se deparar com pessoas que não eram judias e
O corpo de Cristo, morto na cruz, ressuscitado e procuravam em Jesus a salvação. Como Deus poderia
exaltado por Deus por mérito dessa mesma morte, fonte agir por meio de Jesus se a sua memória não se tornasse
do Espírito que suscita para Cristo o corpo eclesial, é o significativa para os que participavam das celebrações
fundamento dos sacramentos. Sacramentos do amor da Igreja?
“trinitário de Deus”, eles nos introduzem na Pensar um sacramento implica pensar o seu ritual
ordem simbólica criada pelo Mistério Pascal, sacramento como verdadeiro intercâmbio simbólico entre Deus e o
da humanidade de Deus. O modo do agir simbólico nos ouvinte da sua Palavra, que é tocado por ele como gesto
ajuda a pensar esse agir divino, sem a pretensão de divino de salvação. A ação sacramental não pode ser
desvelar o Mistério santo do próprio Deus, revelado no reduzida ao que a escolástica considerava a matéria e a
Mistério Pascal, ao permitir-nos articular os dados da forma, sob pena de cair no sacramentalismo mágico.
Revelação com nossa experiência cotidiana de ser no Para agir mediante o sacramento, o rito litúrgico deve
mundo em relação de alteridade com todos os humanos. introduzir quem o recebe, de forma real, na ordem
O símbolo age significando e pelo mesmo ato de simbólica do Mistério Pascal, como transparece da
significar que conduz à comunhão entre as pessoas, prática litúrgica. Essa manifesta melhor o sentido dos
envolvendo, mediante a corporeidade, a verdade do ser: sacramentos do que uma reflexão teológica que não se
ser para, ser em relação. Um exemplo fácil de deixa guiar pela própria celebração. Todo o ritual da
compreender: o abraço da mãe a uma criança, enquanto celebração dos sacramentos faz parte deles e não pode
envolve todo o seu afeto, entregando-se a ela sem ser considerado como acessório dispensável sem negar a
reservas, dá a esta a consciência de ser querida e cria sua essência, que é serem ações simbólicas cujos atores
laços imperecíveis. O gesto aparentemente idêntico de são o próprio Deus a Igreja. Recupera-se assim, na
alguém que, pretendendo abusar de uma criança, tenta reflexão teológica, a sacramentalidade da liturgia da
iludi-la para conseguir seu perverso propósito, produzirá Palavra, esquecida durante séculos pela teologia
um efeito desastroso, deixando marcas indeléveis por sacramental, como protestou Lutero. A proclamação da
toda a sua vida, porque o gesto significou uma coisa palavra acompanha sempre o gesto sacramental e faz
estranha, não fazia parte de uma ordem simbólica parte dele, não podendo ser compreendia como uma
verdadeira. palavra humana, preparatória ou explicativa do gesto
sacramental, mas como Palavra do próprio Deus e do
A morte do Cristo na cruz, coroando toda uma seu Filho Jesus Cristo na comunhão criada pelo Espírito
vida de doação incondicional a quantos se encontraram na ação litúrgica.
com ele, contemplada no interior da tradição de fé de
Israel e à luz da fé cristã, revela o amor de Deus não A renovação conciliar da Liturgia, que ainda
apenas aos discípulos do Nazareno, mas aos homens e deverá percorrer um longo e árduo caminho, não é
mulheres de todos os tempos. Amor divino que, no inovação. Ela devolverá progressivamente aos
corpo do Filho, se entrega incondicionalmente a todos os sacramentos o seu lugar originário, a Liturgia da
assembleia dominical que celebra a Páscoa do Senhor.
52
Assim, transparecerão como momentos culminantes do Sacrements, révélation de l’humanité de Dieu, volume
encontro dos homens com o Deus que vem ao seu offert à Louis-Marie Chauvet. Paris: Cerf, 2008.
encontro em Jesus Cristo, no corpo eclesial que o TABORDA, Francisco, Mistério – Símbolo –
Espírito dá ao Senhor ressuscitado. Mistério. Ensaio de compreensão da lógica interna da
Isso, porém, não se tornará transparente em um teologia de Karl Rahner. In: OLIVEIRA, Pedro Rubens
mundo onde uma infinidade de seres humanos é vítima F. ; TABORDA, Francisco (orgs.). Karl Rahner 100
da violência e da injustiça, se as comunidades não vivem anos. Teologia, Filosofia e Experiência espiritual. São
o que celebram: Deus revelado, proclamado e cultuado Paulo: Loyola, 2005.
em um crucificado, vítima da violência do mundo por ter
anunciado a escandalosa notícia que a invocação do
verdadeiro Deus só pode nascer da procura do seu rosto Liturgia, religiosidade popular e culturas
nos pobres e nos excluídos pelos poderes do mundo. Sumário
Excluídos até pelas religiões, quando são construídas à
Proêmio
imagem dos poderes mundanos. Rosto de Deus revelado
1 Inculturação da liturgia
escandalosamente num homem declarado maldito em
1.1 Que entendemos por liturgia e por cultura
nome da religião (cf. Gal 3,10-13)! Por isso o
1.2 Interação entre liturgia e culturas
sacramento, enquanto introdução do homem na ordem
simbólica pela qual Deus, por pura graça, entra em 1.3 Breve resenha histórica. Rumo à interculturalidade
relação com todos os humanos no Crucificado, só pode 2 Criatividade litúrgica
ser compreendido por quem, seguindo o caminho de 2.1 Criatividade e novidade
Jesus, estiver disposto a perder a vida por amor aos 2.2 Quatro modalidades na criatividade litúrgica
irmãos. 2.3 Variação, adaptação, inculturação
3 Religiosidade popular, cultura e liturgia
E aqui surge um paradoxo da fé cristã. Os
3.1 Importância da religiosidade popular
sacramentos, que criam a identidade cristã de quantos os
3.2 Religiosidade popular na América Latina
celebram e recebem por eles a vida verdadeira como
3.3 Religiosidade popular e liturgia
dom de Deus, obrigam o cristão a afirmar que o dom
4 Encontro de fé e cultura no simbólico sacramental
recebido não é privilégio que o separa dos outros, senão
4.1 Importância do simbólico sacramental
missão de anunciar para todos, como boa notícia, o amor
4.2 O evangelho nos chega através de símbolos e ritos
divino, experimentado no crucificado como amor a
todos os humanos, sem fronteiras de religião. Explicar 4.3 As culturas devem entrar no rito e progredir com
ele.
isso, sem relativizar o Mistério divino revelado em
5 Conclusão
Cristo, e sem negar a presença de Deus nos caminhos
das religiões, implicaria desenvolver complexas 6 Referências Bibliográficas
reflexões de Cristologia e Soteriologia. Mas é pertinente
dizer, numa simples introdução ao sacramento como Proêmio
símbolo, que a celebração dos sacramentos, para ser
significativa para os cristãos no mundo da comunicação Para a fé cristã a encarnação do Filho de Deus é
globalizada, deve também tornar transparente esse um dado tão importante que afeta todas as estruturas e
aspecto mediante o próprio ritual. elementos que a compõem: o tempo, o espaço, a cultura,
a religiosidade, o culto, as relações sociais … Tudo é
Juan Ruiz de Gopegui , SJ, FAJE, Brasil. Texto permeado pelo fato de que Deus entrou em nossa
original português. história. A encarnação adquire o seu pleno significado
2 Referências bibliográficas na glorificação de Jesus. Mas para a fé cristã há outro
BIRMELLÉ, André. La articulation entre Écriture fato, sem o qual não é totalmente compreendida, nem a
et sacraments dans la lturgie lutherienne. In: pessoa de Jesus, nem a sua glorificação, nem a Igreja
BORDEYNE, Philippe; MORRILL, Bruce T. Les nem o destino da humanidade: este fato é a presença do
Sacrements, révélation de l’humanité de Dieu, volume Espírito de Deus na pessoa de Jesus na Igreja e no
offert à Louis-Marie Chauvet. Paris: Cerf, 2008. mundo.
53
Santo os unifica: Ele vai ser a chave para entender coisas diversificado; a cultura é um todo estruturado, mas é
tão variadas como a presença de Deus na religiosidade mutável e evolutiva; deve ser participativa, se não quer
do povo, a presença de Deus na liturgia, a presença de ser manipulada; inclui as realidades profundas de um
Deus em cada coração e em todas as culturas, o destino povo, realidades que a “moldam”, incluindo o fenómeno
da humanidade . religioso; influenciam nela o meio ambiente e
história[1].
Sempre, mas especialmente em tempos de rápidas
mudanças históricas, culturais e sociais, a Igreja, na sua 1.2 Interação entre liturgia e culturas
evangelização, estruturação e liturgia, precisa voltar a
A cultura como uma expressão do mais
repensar a sua relação com a cultura ou as culturas dos
característico e mais íntimo do ser, agir, sentir e
povos, com base na encarnação de Cristo e no dom do
valorizar de um povo inclui, obviamente, a experiência
Espírito.
religiosa de um povo. Enquanto isso, também a
1 Inculturaçaõ da liturgia religiosidade de um povo (expressa em seus livros,
crenças, festas e rituais) imprime de alguma forma a sua
1.1 Que entendemos por liturgia e por cultura?
marca na cultura. Portanto, quando um povo tem
A palavra liturgia tem significados diferentes para recebido em sua história a fé cristã, a sua liturgia
o nível bíblico e eclesial. Refere-se a realidades inter- interage com a cultura numa simbiose mais ou menos
relacionadas, mas não idênticas. Aqui por liturgia bem sucedida, mas real. Duas palavras-chave explicam
entendemos o significado que a como ele funciona, ou, pelo menos, como pode
Constituição Sacrosanctum Concilium do Vaticano II funcionar essa interação: são as
lhe atribui mesmo sem tentar definir o que ela é. Ela diz palavras aculturação e inculturação.
no n. 7:
Aculturação: É a introdução de uma mudança ou
Com razão se considera a Liturgia como o exercício da modificação em um rito litúrgico para uma melhor
função sacerdotal de Cristo. Nela, os sinais sensíveis inserção dos fiéis na liturgia. Aculturação envolve
significam e, cada um à sua maneira, realizam a sempre se mudanças mais ou menos significativas no
santificação dos homens; nela, o Corpo Místico de Jesus rito litúrgico estabelecido. Um exemplo: a sóbria liturgia
Cristo – cabeça e membros – presta a Deus o culto romana dos primeiros séculos, quando em contato com
público integral. povos evangelizados provenientes de outras culturas nos
Há palavras que devem ser levadas muito em séculos posteriores, aceitou ritos mais expressivos e
conta nesta quase definição: exercício do sacerdócio de textos mais exuberantes que de alguma forma mudaram
Jesus Cristo, cabeça e membros, santificação e culto o gênio do rito romano. Assim, a liturgia romana se
público, sinais sensíveis que significam e realizam algo. “aculturou” (= acomodou-se) à cultura desses povos.
A liturgia não pode ser reduzida a algo puramente Inculturação: É a reinterpretação e transformação
interno ou individual; não é uma mera lembrança das de um rito não-cristão para que ele possa tornar-se parte
ações salvíficas de Jesus; é atuação de Cristo hoje na sua de um rito litúrgico, mas de forma que expresse o
Igreja; é adoração e santificação. O que Cristo fez na sua mesmo que expressa o rito litúrgico. A inculturação
encarnação, paixão e glorificação, o continua comporta mudanças mais ou menos profundas do rito
atualizando hoje na liturgia pela Igreja, que recebeu seu não-cristão, mas respeitando a forma própria de uma
Espírito. Odo Casel, grande precursor da renovação da cultura. Para realizar a inculturação é preciso, entre
teologia da liturgia, disse em 1928 que em cada um dos outras coisas que o gênio e a cultura de um povo e suas
sacramentos é dada “a presença do ato salvador divino expressões simbólicas, linguísticas e rituais sejam muito
sob o véu dos símbolos bem conhecidos. Um exemplo: A unção pré-batismal
e que “a liturgia é o mistério cultual de Cristo na Igreja” não estava no rito batismal dos primeiros séculos; ele foi
(citado por FILTHAUT, p. 28-29). A Sacrosanctum tirado da cultura e ritualidade pagãs; mas lhe foi dado
Concilium por sua vez, diz que “Cristo está sempre um sentido cristão[2].
presente na sua Igreja, sobretudo na ação litúrgica” (SC 1.3 Breve resenha histórica. Rumo à
7). interculturalidade
A palavra cultura tem tido e tem significados
muito diferentes. Limitando-nos ao âmbito do nosso
estudo se poderia dizer que é o conjunto de expressões
simbólicas (modo de vida e de trabalho, festas, artes,
celebrações, formação …) que caracterizam a forma de
ser, de agir, de sentir e de valorizar de um o povo. E
mesmo quando não há unanimidade ante o conceito de
cultura, há algum acordo sobre certos traços que a
caracterizam e que caracterizam todas as culturas: a
cultura não só é racional; não é um simples enfeite
folclórico; não é algo unívoco, mas plural e
54
Famílias litúrgicas: Um fenômeno eloquente da devemos reconhecer que a interculturalidade aplicada ao
interação entre fé e cultura é, acima de tudo, a presença nosso caso pode ajudar à liturgia oficial para ter um
de vários ritos ou famílias litúrgicas na Igreja. Na relacionamento mais aberto e uma atitude mais
verdade, por causa da diversidade teológica e cultural, respeitosa para com os valores de cada cultura.
existem desde os primórdios do cristianismo várias
2 Criatividade litúrgica
maneiras de celebrar a liturgia no Oriente e Ocidente:
não se celebrava antes nem se celebra hoje da mesma 2.1 Criatividade e novidade
forma nas igrejas de Roma, Constantinopla ( Istambul), A palavra criatividade é uma palavra muito ampla.
Antioquia ou Alexandria. O Concílio Vaticano II A ação de criar, característica de Deus, também se aplica
valoriza muito estes ritos e deseja que continuem (cf. ao homem, uma criatura de Deus. O homem cria,
Orientalium Ecclesiarum n. 1-2). inventa, produz, institui, estrutura, organiza, recria.
Aculturação: Circunscrevendo-nos ao rito romano, Criatividade e novidade estão ligadas: quando se cria se
a história da liturgia mostra que, apesar de que a liturgia produz algo novo. Não podemos esquecer que Jesus é a
ocidental tem sido muito resistente às mudanças, os ritos novidade e a novidade não passa: ‘Jesus Cristo é o
foram modificados ao longo dos séculos: não se mesmo ontem, hoje, sempre “(Hb 13,8). Esta novidade
celebrava da mesma forma nos primeiros séculos, que que é Cristo deve se expressar e manifestar na liturgia da
nos tempos medievais, depois do concílio de Trento e Igreja que Ele preside.
depois da reforma conciliar do Vaticano II. A liturgia A liturgia ocidental, como eu sugeri, nem sempre
ocidental tem sido “aculturando” aos diversos tempos e tem sido um modelo de criatividade litúrgica. Esta falta
ás mudanças cultural. Em particular, a reforma litúrgica de criatividade -, mas também de coragem e de
do Concílio Vaticano II teve em conta as exigências da clarividência – não fez nada para superar as divisões na
cultura de hoje (uso de línguas vernáculas, criação e grave crise da Reforma (s XVI.). A história da liturgia
variedade de textos eucológicos, participação, etc.). pós-tridentina, além do resultado infeliz dos ritos
Inculturação: Sobre a inculturação, podemos dizer orientais chineses e malabares (s. XVII e XVIII), mostra
que o próprio Jesus fez uso de padrões culturais algo que hoje parece estranho e ao qual tiveram que se
anteriores e de seu tempo (incluindo banhos rituais de submeter, mais mal do que bem, as gerações passadas.
Israel, o batismo de penitencial e iniciático de João Trata-se do “fixismo” e imobilismo litúrgico: língua,
Batista), mas dando lhes um novo sentido. Nos ritos, normas, rubricas e música foram prescritos e
primeiros séculos e limitando-nos ao patriarcado do regulamentados até os menores detalhes durante séculos.
Ocidente, a liturgia foi cautelosa em aceitar formas A Constituição Sacrosanctum Concilium deu um grande
rituais de outras religiões. Nos séculos XVI e XVII passo ao estabelecer a reforma dos livros e ritos
destacam as controvérsias sobre os ritos malabares e litúrgicos e ao incentivar a participação efetiva de todos
chineses que acabaram por ser desautorizados. os fiéis na liturgia. Mas reforma litúrgica não significa
Singularmente o Ritual do Matrimonio do Vaticano II automaticamente renovação litúrgica. Muitos
não está fechado para a possibilidade de aceitar um rito acreditavam ingenuamente que com a reforma dos livros
matrimonial tirado de outra cultura como forma do litúrgicos, mudando do latim para a língua vernácula e
matrimonio, sob certas condições, especialmente em transformando alguns ritos ou a disposição do local de
países recém-evangelizados e culturalmente muito culto, já tudo foi resolvido. Logo ficou claro que não era
diversos. assim. Além disso, na América Latina a mudança nos
pegou despreparados: faltava aprofundar na catequese,
Rumo à interculturalidade: Após o Concílio
no modo de pregar e celebrar, na piedade popular, na
Vaticano II foi discutida – nem sempre com precisão
relação entre liturgia e vida, na formação e catequese
nem com uma linguagem única – a aculturação e a
dos fiéis. Foi dada ênfase à reforma, mas não à
inculturação da liturgia. Hoje, no contexto da pluralidade
renovação; falava-se demais de criatividade, mas pouco
cultural e eclesial, se tende tanto no nível cultural e
de novidade; houve uma febre de mudanças, mas não
litúrgico a falar mais de interculturalidade. Limitando-
um esforço para alcançar uma melhor celebração e
nos ao caso da liturgia, pode-se dizer que os termos
participação. Hoje ainda resulta difícil de entender que
aculturação e inculturação já expressam a relação e
nem tudo pode ser resolvido com mudanças e que não
interação entre liturgia e culturas. Mas o termo
há reforma verdadeira sem renovação.
interculturalidade expressa em si mesmo com mais
clareza e reciprocidade a interação entre duas ou mais 2.2 Quatro modalidades na criatividade litúrgica
culturas e evita o perigo real de dominação de uma Quatro modalidades: Se a criatividade litúrgica
cultura sobre a outra. A interculturalidade insiste que a significa inventar novas formas rituais, devem
relação deve ser em ambos os sentidos, sinérgica, distinguir-se os diferentes modos de criatividade:
respeitosa, de enriquecimento mútuo … Alguém pode se a. Cria-se tudo, forma e conteúdo (por exemplo,
perguntar até que ponto a interculturalidade (que fala de algumas intenções da oração dos fiéis improvisadas);
culturas) é aplicável à relação entre uma cultura b. Se ajusta uma forma ordinária ou “recriação
particular e liturgia da Igreja: é a liturgia, sem maiores parcial” (por exemplo, se explicita uma oração do
precisões, uma cultura …? Sem entrar neste ponto,
55
missal muito abstrata ou muito concisa); c. Escolhe-se sacramento a quem o recebe. Um modelo de adaptação
entre vários elementos (leituras, orações, cantos, ritos); verdadeiramente exemplar é o “Diretório litúrgico para
d. Se reproduz algo já existente como se tivesse sido as missas com participação de crianças”, publicado pela
criado naquele momento época (declamação de um Congregação para o Culto Divino, em 1973. Ele merece
salmo, interpretação de uma música, recitação de uma ser levado mais em consideração nas escolas, na
oração). catequese e nas paróquias. Outra adaptação para ter
presente é o “Diretório para as celebrações dominicais
Regra de Ouro da criatividade: Dentro desses
na ausência do presbítero”, publicado em 1988 pela
quatro modos indicados não existe uma hierarquia de
Congregação e que convida a exercer uma adaptação
valor ou eficácia. Porque “o valor litúrgico de
criativa e a evitar a imitação servil da missa dominical.
criatividade não flui a partir da quantidade de
novidade, mas da capacidade de significar a novidade A inculturação-aculturação: Na Constituição da
do invisível“. Ou, em linguagem simples: A novidade Liturgia não aparece este tecnicismo; mas se fala aí de
litúrgica não consiste em fazer algo diferente todos os uma “adaptação mais profunda” à mentalidade e às
dias, mas fazê-lo cada vez de forma nova. O modo a não tradições dos povos em determinados lugares e
é necessariamente melhor do que o modo d. circunstâncias (cf. n. 37-40). Os n. 38-39 falam de uma
adaptação do rito romano a uma cultura (aculturação);
Alguns exemplos: 1. Uma boa orquestra e coro
Os n. 37 e 40 falam da inclusão de elementos de uma
interpretam dezenas de vezes a Nona Sinfonia de
cultura no rito litúrgico (inculturação). Para esta
Beethoven, sem mudar nada; mas cada vez o faz de uma
adaptação mais profunda se exigem certas condições
nova maneira, como se fosse a primeira vez. 2. Na
descritas em outros documentos. Um exemplo atual de
comemoração de um aniversário não é necessário mudar
recente inculturação e aculturação é encontrado no rito
os gestos estabelecidos, mas fazê-los com o entusiasmo
zairense da Eucaristia (hoje chamado rito congolês), na
para celebrar algo novo: o dom da vida. 3. As intenções
atual Rep. Dem. do Congo, em África (PALOMERA cf.,
da oração dos fiéis improvisadas não necessariamente
p. 73-76). Em diversas culturas indígenas da América
ajudam a suplicar melhor do que aquelas preparadas
Latina têm-se permitido mudanças limitadas,
com antecedência e anunciadas por um leitor. 4. Um
especialmente no campo dos textos eucológicos
cântico natalino novo o 25 de dezembro é louvável, mas
(traduções dinâmicas).
não necessariamente comove mais e expressa melhor a
festa de Natal que o clássico “Noite de Paz” bem 3 Religiosidade popular, cultura e liturgia
executado. Mas este não é um convite para fazer sempre
Falando das relações entre religiosidade popular,
a mesma coisa: não podemos esquecer que ao rito
cultura e liturgia, não faremos uma distinção entre
litúrgico sempre lhe espreita a rotina e a banalidade, a
religiosidade popular e religião do povo. Embora a
simples repetição do passado sem referência para o
distinção é relevante para o nível geral da antropologia
futuro, o olhar para nós sem olhar para os outros e para o
religiosa, ao nível da liturgia e da cultura dos povos da
Outro.
América Latina, a distinção está cada vez menos nítida.
2.3 Variação, adaptação, inculturação O povo tende a expressar e viver a religião (fé, crenças,
sentido religioso) pela religiosidade (ritos, expressões
Na preparação e execução da liturgia deve ser
simbólicas, festas) na liturgia oficial da Igreja e fora
levado em conta, além do indicado sobre a criatividade e
dela.
novidade, três elementos que as favorecem e indico a
seguir: 3.1 Importância da religiosidade popular
A variação (indicado nos livros litúrgicos e pouco A religiosidade popular é um fenômeno que
utilizado por alguns): Não podemos repetir todos os dias atravessa todos os povos e que influi em todas as
o mesmo ritual, a mesma celebração, os mesmos textos e culturas. O documento de Puebla (n. 444) nos diz em
os mesmos cantos sem cair na rotina. É necessário o uso palavras simples que “por religião do povo, religiosidade
de variantes. Os livros litúrgicos atuais apresentam uma popular ou piedade popular, entendemos o conjunto de
grande variedade de textos eucológicos (por exemplo: de crenças profundas marcadas por Deus, das atitudes
uma oração eucarística passou-se a treze). Além disso, a básicas que derivam dessas convicções e as expressões
liturgia não deve ser reduzida à celebração da Eucaristia: que as manifestam”. E acrescenta: “Trata-se da forma ou
rezar a Liturgia das Horas oferece uma estrutura da existência cultural que a religião adota em um povo
diferente e enriquece a nossa oração. A inflação de determinado.” A religiosidade popular tem
missas leva à desvalorização eucarística … acompanhado a liturgia da Igreja desde os seus inicios.
No Oriente cristão, a liturgia soube incorporar a
A adaptação: A missa não pode ser igual na
religiosidade em sua liturgia ou caminhar em estreita
paróquia, num convento de religiosas, com as crianças,
união com ela. No Ocidente, a liturgia, mais formal e
ou na prisão … Os livros litúrgicos o insinuam quando
elitista, não conseguiu essa simbiose: a religiosidade
dizem nas rubricas: “segundo as circunstancias” ou “se
popular se desenvolveu em forma paralela à liturgia.
for considerado adequado pastoralmente ” e quando
apresentam diversidade de orações para acomodar um 3.2 Religiosidade popular na América Latina
56
Na América Latina, a religiosidade popular Os limites entre o litúrgico e a religiosidade
católica impregnou tanto a cultura das diversas etnias e popular não devem tornar-se fronteiras. Nossas liturgias
grupos sociais que é um traço que marcou o catolicismo deveriam reconhecer mais plenamente a importância da
e as culturas latino-americanas. Os bispos reunidos em piedade popular, como insinua a Sacrosanctum
Medellín após o Concilio alertaram sobre a necessidade Concilium (n. 9 e 13). Deveríamos ter mais em conta as
de tê-la em conta para evitar um divórcio entre o culturas, as etnias e as línguas minoritárias. Além disso,
catolicismo e o povo dos batizados (cf. Doc. Medellín na religiosidade popular deveria promover-se a
6.3). João Paulo II a valorizava e a caracterizava com valorização da Palavra de Deus, a pregação, a
estas palavras: participação na oração comunitária e nas assembleias
dominicais, a preparação para os sacramentos, uma
“Esta piedade popular não é necessariamente um
sólida catequese no nível dos ritos e a purificação de
sentimento vago, carente de base doutrinal sólida, como
aquilo que desmente a fé e a vida cristã.
uma forma inferior de manifestação religiosa. Pelo
contrário, quantas vezes é a expressão verdadeira da 4 Encontro de fé e cultura no simbólico
alma de um povo, enquanto tocada pela graça e forjada sacramental
pelo encontro feliz entre a obra de evangelização e a
4.1 Importância do simbólico sacramental
cultura local “(Homilia pronunciada em 30 de Janeiro de
1979, santuário de Nossa. Senhora de Zapopan, 2) A comunicação no nível humano e religioso
funciona por símbolos. A pessoa humana é um ser ritual.
Papa Francisco fala na Evangelii Gaudium em
Se expressa e se disse através de sua corporeidade, da
termos altamente elogiosos da religiosidade popular na
sua palavra, dos seus gestos, dos seus símbolos e dos
América Latina, dizendo:
seus ritos. Isto nos é lembrado pela religiosidade e
“aquele amado Continente, onde uma multidão imensa piedade popular de nossos povos: basta pensar na
de cristãos exprime a sua fé através da piedade popular, importância das imagens, cantos, bênçãos, devoções,
os Bispos chamam-na também «espiritualidade popular» oração em família, procissões, confrarias, danças
ou «mística popular». Trata-se de uma verdadeira religiosas, festas patronais e santuários em cada cidade.
«espiritualidade encarnada na cultura dos simples».” Também a comunicação no nível divino salvífico
(EG, 124). funciona por símbolos. Deus se mostrou através de
sinais: a criação, os profetas, a Palavra revelada, Cristo e
Junto com elementos positivos não faltam
seus gestos, a comunidade eclesial e humana, os gestos
elementos negativos na religiosidade popular. Entre os
sacramentais, o pobre… Porque Deus nos fez corpóreos
elementos positivos podemos apontar, entre outros, os
e se tornou corpóreo.
seguintes: a presença trinitária em devoções e na
iconografia; sentido da providência de Deus Pai; Cristo, 4.2 O evangelho chega até nós através de
celebrado no seu mistério da encarnação, na sua símbolos e ritos
crucificação, na Eucaristia, na devoção ao Coração de
O evangelho não é simplesmente uma história de
Jesus; amor afetuoso e terno a Maria (talvez o traço mais
dois mil anos atrás. A Boa Nova não é apenas uma
característico da religiosidade da América Latina); as
história de algo que aconteceu “in illo tempore“. Se
festas patronais; as peregrinações; a fé na vida após a
fosse assim nós admiraríamos um homem excepcional,
morte. Entre os aspectos negativos apontamos, entre
mas não mais. O que Jesus fez na Palestina é atualizado
outros, os de origem ancestral (superstição, magia,
hoje “per ritus et preces” (Sacrosanctum Concilium n.
fatalismo); aqueles resultantes de uma catequese pobres
48), ou seja, através da ação litúrgica de assembleias
(ignorância, sincretismo, redução da fé a um mero
realizadas em seu nome e invocando a força do seu
contrato, sacramentalismo vazio, ritualismo); os origem
Espírito nas celebrações. O Símbolo da Fé (Credo), não
ambiental (incoerência entre a fé e a vida, falsos
só expressa a fé da Igreja: ao professá-lo nos une, nos
messias, alcoolismo em festas) (ver Doc. Puebla n. 454
identifica e nos ajuda a crescer como Igreja. A liturgia é
e 456 e Doc. Aparecida n. 258-259).
isto: não é simples cerimônia, não é mera memória, e
3.3 Religiosidade popular e liturgia não é mera repetição. Cristo está presente no sinal da
Palavra, Cristo nos alimenta com Seu pão celestial,
Cristo nos une em seu corpo pela força do seu Espírito.
Sem esses sinais e sem o Espírito Santo, Cristo
permaneceria distante.
4.3 As culturas devem entrar no rito e progredir
com ele
Hoje não podemos falar de uma única cultura.
Vivemos em um mundo plural. Também a igreja una é
uma Igreja plural. É católica não é porque ela se
expresse em um idioma e cultura, mas porque na
pluralidade de línguas e culturas celebra uma mesma fé.
57
Em Pentecostes, o dom de línguas fez que cada povo DI SANTE, Carmine, “Cultura y liturgia”
entendesse em seu idioma a mensagem que os apóstolos en: Nuevo Diccionario de Liturgia, ed. D. Sartore y
professavam em sua própria língua. Hoje, o dom de A.M. Triacca, Madrid: Paulinas, 1987.
línguas deve consistir em que a boa nova do Evangelho
FILTHAUT, Teodoro, Teología de los Misterios.
seja recebida, se celebre e se encarne na multiplicidade
Exposición de la controversia, Bilbao: Desclée de
de línguas, salvaguardada a fé. A Igreja Católica é
Brouwer, 1963.
universal, porque nela há espaço para cada cultura,
língua, expressão ritual e artística. A inculturação ritual PALOMERA, Luis, “Le rite zaïrois de la messe.
não é moda; é uma tarefa. Opinion d’un liturgiste de l’Amérique latine”,
en Telema 29 (1982) 73-76.
Conclusão
Para aprofundar mais:
A encarnação do Filho de Deus é um fato que nos
convida a concentrar-nos e encontrar-nos na pessoa de ALDAZÁBAL, J. et al., La inculturación en la
Jesus. A irrupção do Espírito de Jesus na comunidade de liturgia, Cuadernos Phase 35, Barcelona: Centre de
Pentecostes nos convida a alargar o horizonte para ver Pastoral Litúrgica , 1992.
que Jesus, presente na sua Igreja, abraça todas as CASEL, Odo, El Misterio del culto cristiano, San
culturas, povos e línguas e nos abre a humanizar e Sebastián: Dinor, 1953.
divinizar o mundo. A igreja na sua liturgia (embora não
apenas nela) tem uma tarefa importante: mostrar que o CONSEJO EPISCOPAL LATINO-
Senhor está presente em nossa história, em nossas vidas, AMERICANO, Iglesia y Religiosidad popular en
em nossas culturas. Para isso, a liturgia deve abraçar América Latina. Ponencias y Documento final, Bogotá,
cada cultura, encarnar-se nelas e traduzir a mensagem 1977.
para a língua de hoje, a de cada povo e cada cultura. DEPARTAMENTO DE LITURGIA DEL
Árdua missão, a longo prazo, mas não impossível. Trata- CELAM, El Medellín de la Liturgia, Bogotá, 1973.
se não de mudar tudo e desperdiçar um tesouro de vinte
séculos; mas de evitar uma liturgia de museu EQUIPO SELADOC, Religiosidad popular,
(antiquada), inexpressiva (de rotina) ou discordante com Salamanca: Sígueme, 1976.
a cultura de um povo : é a tarefa de todos, especialmente [1] Para um maior aprofundamento cf. DI
dos que a presidem, especialmente se eles estão SANTE: p. 518-530.
inseridos pelo nascimento e batismo naquela cultura.
[2] Para um maior aprofundamento cf.
L. Palomera, S.J. Universidad Catolica de Bolívia, CHUPUNGCO: p. 45-48
Cochabamba, Bolívia. Texto original espanhol
5 Referências bibliográficas
CHUPUNGCO, Anscar, “Adaptación” en: Nuevo
Espaço litúrgico
Diccionario de Liturgia, ed. D. Sartore y A.M. Triacca,
Madrid: Paulinas, 1987. Sumário
1 Definição 2.8 O barroco
2 Evolução 2.9 O pós-barroco
2.1 Compreensão neotestamentária de templo 3 O lugar da assembleia celebrante
2.2 Era pré-nicena 4 Teologia do espaço litúrgico
2.3 Igrejas paleocristãs 4.1 Qualidades identificadoras
2.4 Igrejas no Oriente cristão 4.2 O ambão
2.5 A era carolíngia e o românico 4.3 A fonte batismal
2.6 O gótico 4.4 O altar
2.7 O Renascimento 5 Referências bibliográficas
além de uma história da evolução dos estilos
arquitetônicos. Essa teologia e evolução arquitetônica
1 Definição
revelam uma eclesiologia, em que a Igreja se
O espaço litúrgico é aquele edifício onde a Igreja compreende como imagem da Trindade através das três
realiza o seu culto e que, por feliz metonímia, recebe o categorias eclesiológicas: Povo de Deus, Corpo de
seu mesmo nome, igreja. Esse edifício possui Cristo e Templo do Espírito Santo.
características próprias que o qualificam como lugar de
2 Evolução
culto, o que chamamos de qualidades identificadoras ou
monumentos pascais, sendo os principais o altar, o 2.1 Compreensão neotestamentária de templo
ambão e a fonte batismal. Para além dessas qualidades
Os primeiros cristãos tinham uma forte
identificadoras, o espaço litúrgico recebe em sua estética
consciência de que o verdadeiro espaço sagrado era a
aspectos que lhe conferem a mistagogia cristã. Disso
comunidade dos discípulos de Cristo e cada fiel
decorre que o espaço litúrgico tem uma teologia, para
individualmente a exemplo do Mestre. De fato, em Jo
58
2,19-21, Jesus declara solenemente ser ele o verdadeiro grandes multidões. A basílica romana se caracteriza por
templo que, destruído, erguer-se-ia em três dias, e João sua forma retangular e com dupla simetria: na
explica que Jesus falava do templo do seu Corpo. Tendo longitudinal, duas filas de colunas uma frente à outra e,
Jesus morrido, ressuscitado e subido aos céus, o seu nas transversais, duas absides, também uma frente à
Corpo é a Igreja (Ef 1,22-23; 4,15-16; 5,23; Cl 1,18; cf. outra, criando assim um centro único e precioso. O
1Cor 12,12). Eles não tinham, portanto, a preocupação arquiteto cristão, porém, suprime uma das absides,
de possuir um lugar específico de culto como o tinham eliminando aquele centro único, que é função do
os judeus e muitos pagãos. De fato, o lugar de adorar edifício, propondo-lhe um caminho, o do homem (ZEVI,
Deus não é mais sobre a montanha de Sicar, na Samaria, 2009, p.71). Por caminho do homem entende-se a
e tampouco em Jerusalém, mas em espírito e verdade (Jo trajetória do observador, ou seja, o cristão deu aos
4,21-23). Assim sendo, os discípulos de Jesus se esquemas da basílica romana uma alma e uma função,
reuniam na casa de algum deles que possuía um imóvel de modo que o eixo do edifício se tornou uma metáfora
capaz de abrigar bom número de pessoas (Lc 22,7-13; do caminho a ser percorrido pelo homem rumo à
At 2,46; 12,12; At 20,7-12; 1Cor 16,19; Fm 1,2). parusia, representada pela abside única. A organização
Contudo, isso era principalmente para o caso específico interna da basílica, porém, segue o esquema sinagogal
do culto cristão, porque, por algum tempo, eles (BOUYER, p.15). Contudo, advirta-se que o estilo
costumavam ir diariamente ao templo de Jerusalém (At basilical não foi o único, embora predominante; a
2,46) e os apóstolos pregavam também nas sinagogas basílica de São Vital, em Ravena, por exemplo, tem
(At 9,20) até serem delas expulsos. É preciso, porém, planta redonda. A todo esse conjunto de estilos, hoje, se
considerar que algumas sinagogas, onde tenha havido chama paleocristão.
conversão em massa de judeus, inclusive dos chefes,
2.4 Igrejas no Oriente cristão
tenham se tornado lugares de culto cristão (Mc 5,22; Tg
2,2; o Sacramentário Gelasiano Antigo traz orações de Na Síria, as basílicas se distinguiam fortemente
consagração de lugares de culto que antes foram das de tradição ocidental pelo ambão. Este era uma
sinagogas (GeV 724-729). construção monumental no centro do edifício, com a
cadeira presidencial para o bispo, ladeada por assentos
2.2 Era pré-nicena
para os presbíteros e demais ministros e, de cada lado,
O número dos fiéis aumentava entre a paz ou as uma estante para a leitura da epístola e do Evangelho.
perseguições; fizeram-se, então, necessários lugares Toda a liturgia da Palavra se dava nesse ambão, que se
maiores para abrigar as comunidades cristãs, o que já costuma chamar de Bema; na tradição ocidental, o
começava a ganhar certos aspectos da nova realidade. ambão, embora também central, era de dimensões
Que os cristãos se reunissem nas catacumbas para menores e servia apenas como lugar da proclamação da
celebrarem o culto dominical em épocas de perseguição Palavra, a homilia se dava no presbitério. Terminada a
é um tanto controverso, porque suas condições eram tão liturgia da Palavra nas igrejas sírias, o bispo e seus
insalubres que os impediriam de ali permanecer por presbíteros se dirigiam, através de uma passarela, para o
muitas horas, além de suas dimensões não acolherem presbitério-abside para a liturgia eucarística. O altar
sequer cinquenta pessoas (KRAUTHEIMER, 1986, ficava muito próximo dos fundos da abside e escondido
p.30). De modo que já começam a surgir, no séc. II, por um pesado cortinado, de modo que a assembleia
edifícios com uma sala ampla, com espaços definidos ouvia, mas não via o que se passava. Na tradição
para o clero e para os demais fiéis, o que ficou bizantina, esse cortinado deu lugar à iconóstase, uma
conhecido como domus ecclesiae. A mais conhecida é o parede ricamente decorada com ícones e com três portas;
domus ecclesiae de Dura Europos, atualmente Qalat es na tradição latina, porém, o altar sempre foi visível à
Salyhiye, na Síria, datada entre os anos 231 a 265 assembleia. A fonte batismal, via de regra, era edificada
(KRAUTHEIMER,1986, p.27; LASSUS, 11863; fora da basílica.
HOPKINS, p.116).
2.5 A era carolíngia e o românico
2.3 Igrejas paleocristãs
À era arquitetônica paleocristã sucede o chamado
No séc. IV, os cristãos conquistam liberdade de estilo carolíngio. Um belo exemplo é a parte original da
culto, reconhecida pelo imperador Constantino, com Capela Palatina de Aquisgrana (Aachen, Alemanha),
Edito de Milão, de 313. Por ordem do imperador, várias encomendada por Carlos Magno no século IX. A planta
igrejas são edificadas por quase todo o Império Romano. é redonda, como a de São Vital em Ravena, mas
A mais antiga que se tem notícia é a Catedral de Tiro, na aprofunda fortemente o presbitério. As colunas italianas
Fenícia, inaugurada aproximadamente em 316, da qual suportam o peso da abóbada de pedra, o que antecipa a
Eusébio de Cesareia nos fornece uma descrição influência bizantina. Em Roma segue o estilo basilical,
pormenorizada, inclusive com uma interpretação mas já com grande influência bizantina, como é o caso
simbólico-teológica. Entretanto, nesse momento de de Santa Inês (séc. VII) e Santa Praxedes (séc. IV). Esse
liberdade, a grande questão era que arquitetura adotar na ambiente arquitetônico serviu de preparação para o
edificação das igrejas. A escolha cai sobre a basílica famoso e imponente estilo românico, que se imporia por
romana, uma adaptação da basílica grega para abrigar quase todo o Ocidente a partir do séc. X. De fato, trata-
59
se da combinação dos diferentes estilos que surgiram na Também leva a fonte batismal para dentro da igreja,
Europa Central na segunda metade do primeiro milênio numa capela próxima à porta frontal, uma vez que o
e, sobretudo, da evolução das construções difundidas na batismo de grande número de pessoas, sobretudo
Itália setentrional por influência da arquitetura bizantina adultas, era uma realidade há séculos quase inusitada.
a partir do séc. VII. O românico foi, primeiro, acolhido Doravante, mormente, batizam-se crianças.
nas igrejas monásticas e, devido a grande presença
2.7 O Renascimento
dessas na vida eclesial, espalhou-se por toda a Europa.
Essas igrejas monásticas tinham três naves e, nas No séc. XV surge, na Itália, o estilo renascentista,
laterais, construía-se uma abside um pouco menor do que se caracteriza culturalmente pelo antropocentrismo,
que aquela central. As igrejas românicas tinham paredes o classicismo e a ligação com o mecenato. O
muito espessas e cegas, porque todo o peso da abóbada antropocentrismo busca, nas artes, as devidas proporções
se descarregava sobre elas; sobre a porta principal e ou dos componentes do edifício e das representações
na abside, abria-se uma rosácea que projetava a luz do pictóricas e estatuárias. Deste modo, o artista
sol sobre o altar. Já não mais se construía o ambão, pois, renascentista prefere os edifícios de planta centrada aos
nessa época, o latim já deixava de ser língua vernácula, de forma basilical. Os renascentistas se inspiram no
passou apenas a ser de uso litúrgico, de modo que o templo pagão romano antigo, estilo rejeitado pelos
povo já não compreendia a liturgia, mas apenas cristãos antigos. O ideal de beleza do classicismo antigo
participava assistindo passivamente aos ritos sagrados. O volta com toda a sua força na essencialidade da
ambão continuou em uso apenas na península itálica, arquitetura renascentista, no equilíbrio e no nu dos
como é o caso da catedral de Pisa, na Itália. Com o heróis idealizados, exaltando a anatomia e o vigor
desuso do ambão, toda a atenção da assembleia recai muscular como, por exemplo, nas estátuas de Davi, em
sobre o altar do sacrifício eucarístico. Doravante, o que Florença, e de Moisés, em Roma. Em tudo isso se
mais importa é a presença real de Cristo na hóstia percebe que as igrejas renascentistas não são pensadas
consagrada que todos os fiéis querem ver. em primeiro lugar como espaço para acolher a
assembleia dos fiéis para o louvor de Deus, mas para a
2.6 O gótico
exaltação das artes e a satisfação do gosto do mecenas.
O gótico surge na França, no séc. XII e, como Além disso, os vitrais, tão caros ao gótico, considerados
nessa época o país despontava como grande potência como “Bíblia dos iletrados”, dão lugar às janelas
cultual e política, esse estilo se difundirá rapidamente transparentes, com o intuito de conseguir mais luz para o
por quase toda a Europa. Na península itálica teve pouca destaque da decoração.
influência e na ibérica, devido à difícil transposição dos
2.8 O barroco
Pirineus e forte domínio islâmico, só chegou no séc.
XIV. Eram tempos de constantes guerras e duras pestes; Também em solo italiano, surge o estilo barroco,
neste ambiente, o gótico foi a melhor expressão da que ganha grande impulso no mundo católico depois da
espiritualidade medieval. De fato, a necessidade humana Reforma de Martinho Lutero e, sobretudo, com o
de pedir proteção a Deus e aos seus Santos e de lhes Concílio de Trento (1545-1563). A Reforma tridentina
render graças e louvores fizera com que tudo apontasse rejeita o estilo renascentista devido à influência do
para o alto, às moradas celestes. Por isso, o gótico é paganismo do classicismo romano, mas os arquitetos
agudo, lança para o alto com a leveza das estruturas não tardariam em retomar os edifícios de planta centrada
vazadas, conseguindo encher o interior de luz através de que sobrevive e, às vezes, se funde com a planta
seus grandes vitrais. A estrutura gótica é o resultado da basilical. Com sua suntuosa ostentação, o barroco serviu
fusão de duas técnicas arquitetônicas há tempo bastante ao triunfalismo católico pós-Trento. O barroco
conhecidas, de modo que os mestres de obra franceses se preocupa muito com a aparência, conferindo assim
conseguem plasmar o perfil desse novo estilo dando uma importância cada vez maior à fachada com a
solidez às suas realizações. Disso surgem os dois traços sobreposição de estátuas, pilares, colunas e pilastras,
principais do gótico, ou seja, o arco ogival, que livra os alternância e mescla de superfícies de paredes côncavas
construtores das dificuldades da abóbada de base e convexas que lhe conferem um aspecto alegre e
quadrada e o fato de não serem mais as paredes que imponente, além de formar ondulações, que vibram
suportam o peso do teto e das abóbadas, pois o delgado ritmicamente, transmitindo seus movimentos ao espaço
esqueleto dos contrafortes, que se prolonga nas nervuras interno. Essas formas arquitetônicas se juntam à
das meias-colunas e dos arcobotantes, transfere a carga abundância pictórica e estatuária criando um movimento
para os contrafortes externos, de modo que as espessas sempre ascendente, para o destino dos fiéis em Cristo. O
paredes dos estilos precedentes se tornam supérfluas e, dourado é abundante e as demais cores são vivas nas
no lugar delas, enormes janelas estendem seus vitrais de pinturas que, ao contrário dos estilos paleocristãos e
um pilar a outro, elevando-se até as abóbadas. Enquanto medievais, preferentemente anamnéticos (cenas bíblicas,
espaço de culto, o gótico traz a novidade dos púlpitos, aspectos da vida de Cristo, da Virgem e dos santos),
por influência das ordens mendicantes que, preocupadas preferem temas escatológicos tais como a assunção da
com a ignorância dos fiéis, os usam para instruí-los, Virgem e dos santos e a representação do paraíso. A
enquanto um sacerdote dizia a missa a baixa voz.
60
representação teatral se mostra em uma espécie de participavam somente da liturgia da Palavra e eram
espetáculo sagrado, um jogo entre o visível e o invisível. despedidos antes do início da celebração da eucaristia, o
que ficou conhecido como “disciplina do arcano”. Na
O cruzeiro, que separa o presbitério com seu altar-
Idade Média, porém, dá-se uma separação entre clérigos
mor da nave central, no barroco, muitas vezes, se
e monges, de um lado, e leigos, de outro. Esses
compõe de quatro arcos, sobre os quais se apoia a
primeiros eram o pessoal especializado do culto e os
cúpula. Esta cúpula é algo bem particular, porque
leigos, meros espectadores. Surge, então, uma
recebe, em sua base, um tambor cheio de janelas e, em
balaustrada que separava essas duas classes de cristãos:
seu cume, uma lanterna também com janelas que deixam
leigos espalhados pela nave central e clérigos ou monges
entrar abundante luz. Esta se projeta sobre o altar-mor,
no presbitério-santuário. Tudo isso foi consequência do
foco da atenção da assembleia por ser o lugar da
esquecimento da categoria eclesiológica “Povo de
transubstanciação, portanto da presença real de Cristo. A
Deus”, tão cara ao Novo Testamento e à era patrística.
cobertura das igrejas barrocas recebe rica representação
Do fim da Idade Média até o Movimento Litúrgico,
pictórica e, graças à sua perspectiva, os artistas
precursor do Vaticano II, somente a categoria “Corpo de
conseguem substituir a elevação do gótico por uma
Cristo” reinaria absoluta, mas, mesmo assim, ela se
ilusão de ótica de uma pintura que dá o mesmo sentido,
concentrava mais na eucaristia, de modo que toda a
ou seja, elevar à morada divina. Essa elevação em
atenção da assembleia era projetada ao altar do
perspectiva da igreja faz com que o céu se abra sobre a
sacrifício. Era natural que, nesse ambiente eclesiológico,
terra, de modo que Deus, com seus anjos e santos, desça
a devoção dos leigos à Virgem e aos santos crescesse
à igreja, que se torna casa de Deus. Contemplando o céu
muito e os altares laterais surgissem ao longo das naves
e o gozo futuro, o cristão barroco cresce no desejo de um
laterais para servir a essa devoção. O espaço litúrgico se
dia lá chegar.
reduz, portanto, ao presbitério-santuário: lugar onde se
Nas Américas, o barroco foi o primeiro estilo reza o ofício divino e se celebra a eucaristia.
eclesial conhecido. Longe das disputas entre católicos e
4 Teologia do espaço litúrgico
protestantes, o barroco nas Américas, sobretudo na que
hoje chamamos Latina, não tem conotações ideológicas. A definição teológica da Trindade é bem posterior
Teve que encontrar novas técnicas e adaptação ao aos escritos neotestamentários, mas é nesses escritos que
material aqui encontrado, como, por exemplo, o uso ela encontra os seus sólidos fundamentos. Ora, a
abundante de pedra sabão na região central do estado de comunidade dos discípulos de Jesus é concebida como
Minas Gerais no Brasil, ou de outro tipo de pedra em imagem da Trindade através das três categorias
cidades importantes das colônias lusitana e espanhola. eclesiológicas: Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo
Usou-se, também, a madeira, e a douradura foi do Espírito Santo; e o edifício eclesial, por sua vez, é
semelhante a da Europa, devido à abundância do concebido à imagem da comunidade que ele abriga. O
precioso metal. Uma particularidade do barroco, tanto no mistério trinitário só pode ser concebido a partir do
velho quanto no novo Continente, foi a pertença dos mistério pascal, que se revela na morte-ressurreição de
altares laterais às confrarias ou ordens terceiras ligadas a Cristo e Pentecostes, pois o Espírito Santo é o grande
alguma ordem religiosa. dom da Páscoa. A igreja edifício eclesial, por ser
imagem da Igreja comunidade dos discípulos, não pode
2.9 O pós-barroco
ser concebida apenas como uma edificação que visa a
No final do séc. XVIII, por influência do proteger os fiéis das intempéries, mas deve sempre levar
Iluminismo europeu, o barroco caiu em desuso na em consideração que é lugar de reunião da assembleia
construção de novas igrejas, cedendo lugar aos temas do Povo de Deus, do Corpo de Cristo e do Templo do
clássicos da Grécia antiga, berço da filosofia ocidental. Espírito Santo para celebrar o mistério pascal, não
Surge, então, o estilo que ficou conhecido como somente na eucaristia, mas também nos demais
neoclássico. A reação a este estilo não tardaria no sacramentos, na Liturgia das horas e nos sacramentais. O
mundo católico, de modo que, no séc. XIX, os espaço litúrgico é, portanto, o lugar onde os fiéis
tradicionais estilos europeus voltariam na forma de celebram o mistério do Deus Trindade revelado na
neogótico e neorromânico e, por vezes, um híbrido Páscoa de Cristo.
desses estilos que resultaria no eclético. Hoje, sobretudo
4.1 Qualidades identificadoras
depois do Concílio Vaticano II, reina a liberdade e a
criatividade dos arquitetos e o diálogo com a índole dos O arquiteto, ao projetar o edifício eclesial,
povos cristãos. salvaguardada a sua liberdade criativa e deve,
imprescindivelmente, ter em mente os seguintes
3 O lugar da assembleia celebrante
critérios: o conforto e participação da assembleia nos
Na antiguidade, a preocupação primeira ao sagrados mistérios, os lugares dos ministros (cadeira
conceber o espaço litúrgico era a assembleia que celebra, presidencial, bancos para os acólitos e leitores, lugar dos
embora a hierarquia dos ministérios já estivesse bem cantores), funcionalidade para o desenvolvimento do
concebida. Toda a assembleia de iniciados participava culto, acústica e iluminação; mas, respeitado tudo isso, o
da celebração, mas os catecúmenos e os penitentes que qualifica o edifício como lugar do culto cristão são o
61
ambão, a fonte batismal e o altar. São esses três batismal. É na fonte de água viva que ele se torna
elementos litúrgicos que, com sua mistagogia, ajudam os Templo do Espírito Santo (1Cor 3,16-17), o que
fiéis a se autocompreenderem como Povo de Deus, equivale dizer que, doravante, ele andará sob a ação do
Corpo de Cristo e Templo do Espírito Santo, povo Espírito, pois foi enxertado no Corpo de Cristo e
renascido e congregado na Páscoa de Cristo. introduzido no Povo de Deus. Na Carta aos Romanos,
Paulo faz uma bela e profunda reflexão sobre o batismo,
4.2 O ambão
sugerindo que se trata de morte e ressurreição com
O ambão é o lugar da proclamação da Palavra de Cristo (Rm 6,1-14), de modo que, na fonte batismal, o
Deus, que encontra o seu ápice com o evento Cristo (Hb fiel experimenta sacramentalmente o que Cristo viveu
1,1-2), especialmente sua Páscoa. Por ser o lugar da em sua Páscoa. Assim sendo, o gesto de entrar na água e
proclamação da Palavra de Deus, o ambão acentua dela sair simboliza a morte e a ressurreição. Esta
teologicamente a categoria eclesiológica Povo de Deus. estrutura teológica requer que a fonte batismal tenha
É o povo da nova Aliança, convocado e reunido pela dimensão capaz de receber uma pessoa mesmo adulta
Palavra. Este fato o põe em continuidade com o povo da em seu interior, porque o batismo por imersão é o
antiga Aliança que, por sua vez, tinha como centro de símbolo mais eloquente, embora a Igreja admita também
sua fé a Lei e os Profetas, portanto a Palavra de Deus. O a forma da ablução. Em seu Evangelho, João fala de
ambão, enquanto lugar por excelência da proclamação água viva (Jo 4,10-11; 7,37-38), o que se expressa
da Páscoa, remete ao sepulcro vazio, de onde os anjos melhor pela água corrente e não a parada. De fato, já no
anunciam às piedosas mulheres a ressurreição de Cristo. AT a água corrente é sinal de vida, enquanto a parada é
Esse fato diz que a ressurreição não é uma mera sinal de morte (Jr 2,13). Isso sugere que na fonte
interpretação do sinal do sepulcro vazio, mas sim que se batismal haja uma instalação hidráulica para o
trata de uma revelação divina. Isso explica por que, em movimento da água: é a estrutura física a serviço da
muitas igrejas, o ambão recebe como ícone a imagem de estrutura teológica. Por seu caráter de lugar anamnético
um ou dois anjos (Mt 28,6; Mc 16,5-6 e Lc 24,23 da Páscoa de Cristo (o que acontece na experiência do
respectivamente). Por ser lugar da proclamação do catecúmeno-neófito), a fonte batismal é também
Evangelho, cume da liturgia da Palavra, o ambão pode monumento pascal e requer, assim como o ambão,
também receber esculturas dos quatro animais do dimensão e solidez próprias de um monumento. Batismo
Apocalipse: (homem, leão, touro e águia), segundo a e crisma, embora hoje sejam ministrados em momentos
interpretação patrística. diferentes, no caso da iniciação da criança, na realidade
Em Cristo, todo o batizado é profeta, sacerdote e são dois sacramentos intimamente associados, a unção é
rei; o ambão é, pois, o lugar onde ele exerce o seu ser consequência do banho, por isso pode-se dizer que é na
profeta. De fato, a proclamação da Palavra de Deus na fonte batismal que o cristão é ungido rei em Cristo.
liturgia não é uma mera leitura que o ministro faz para a 4.4 O altar
assembleia, mas um verdadeiro e próprio diálogo entre
O altar atrai para si a categoria eclesiológica
Deus e a assembleia de seus fiéis: Deus fala a seu povo
“Corpo de Cristo”. Esta categoria se expressa na dupla
pelo profeta (leitor) e a assembleia responde com salmos
dimensão do altar, mesa da ceia e lugar do sacrifício,
e orações. No ambão se dá, pois, esse diálogo. Não se
portanto é elemento mimético e anamnético (Lc 22,19;
trata, portanto, de uma simples narrativa de fatos
1Cor 11,25-26). Enquanto lugar mimético, o altar é onde
passados, mas de uma verdadeira atualização da
os cristãos se alimentam com o corpo e o sangue do
manifestação de Deus aos seus eleitos. Nesse sentido, o
Senhor, e como lugar anamnético se faz memória de seu
ambão é também lugar anamnético da história da
sacrifício redentor, de sua Páscoa, corpo entregue e
salvação, uma vez que na anamnese litúrgica o passado
sangue derramado no altar da cruz. Mesa e altar são duas
se atualiza, no aqui e agora da celebração, e desponta
realidades que se completam, pois na última ceia, Jesus
para a parusia. Isso dá ao ambão características de
desvela a seus discípulos o sentido do evento do dia
monumento, lugar do não esquecimento, da memória e,
seguinte, sua morte. A crueldade da sexta-feira ganha
como o momento culminante da história da salvação é o
sentido na ceia: a entrega de Jesus é livre e cheia de
mistério pascal, o ambão é monumento pascal. Esta
amor pela humanidade, obediência ao projeto salvífico
estrutura teológica sugere para o ambão uma estrutura
do Pai até à morte e morte de cruz. Ambas as coisas são
física – forma e robustez – de um verdadeiro
feitas por mandato de Cristo e são dois momentos de um
monumento. Sua elevação com relação ao piso da nave
único mistério pascal, o que é celebrado no altar da
revela que a Palavra vem do alto reforçando, assim, a
eucaristia.
ideia de diálogo e, portanto, da força performática da
Palavra proclamada. Contudo, surge a questão de saber qual das duas
dimensões deve definir a estética do altar: mesa ou lugar
4.3 A fonte batismal
do sacrifício. Na nomenclatura tradicional católica,
A fonte batismal atrai para si a categoria prevalece o termo altar, portanto lugar de sacrifício. A
eclesiológica “Templo do Espírito Santo”, pois, como Igreja faz memória do sacrifício de Jesus, deixando claro
outrora o Cristo recebeu o Espírito ao ser batizado nas que não se trata de um novo sacrifício, mas do
águas do Jordão, hoje o cristão o recebe ao sair da fonte sacramento único de Jesus no altar da cruz (Hb 10,18);
62
ao reapresentar ao Pai o sacrifício de Jesus, a Igreja se KOCH, W. Dicionário dos Estilos Arquitetônicos.
une a ele e oferece a si mesma como sacrifício vivo, São Paulo: Martins Fontes, 2004.
santo e agradável a Deus (Rm 12,1). Pode-se dizer que,
LASSUS, J. “Syrie”. In: DICTIONAIRE
pelo seu rito, os cristãos se inserem no sacrifício único
d’Archeologie Chrétienne et Liturgie 15/2. Paris:
de Cristo e, com ele, oferecem a si mesmos. Essa
Librairie Letouzey et Ané, 1953. col. 1855-1941.
oblação define o altar como lugar de sacrifício. Isso,
porém, acontece dentro de uma ceia, mas esta se MACHADO, R. C. A. O local de celebração:
expressa no gesto de os cristãos se aproximarem do altar arquitetura e liturgia. São Paulo: Paulinas, 2001.
e se alimentarem com o corpo e sangue de Cristo. O MENEZES, I. P. Arquitetura Sagrada. São Paulo:
altar se expressa como lugar de sacrifício por sua Loyola, 2006.
estética e como mesa pela gestualidade do comer e
beber. Em ambos os casos, o altar se impõe como ____. Bens Culturais da Igreja. São Paulo:
monumento pascal: ceia e sacrifício em memória de Loyola, 2006.
Cristo. Na definição da forma e do material vale, pois, o MORAES, F. F. O espaço do culto à imagem da
que anteriormente foi dito para o ambão e retomado para Igreja. São Paulo: Loyola, 2009.
a fonte batismal. Vale ainda dizer que a situação do altar
e a acessibilidade a ele são o que vai expressar aos fiéis PANOFSKY, E. Arquitetura Gótica e Escolástica.
o exercício de seu sacerdócio batismal em Cristo. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
Marco Antonio Morais Lima, SJ – UNICAP. PASTRO, C. Guia do espaço sagrado. São Paulo:
Texto original português. Loyola, 1993.
5 Referências bibliográficas ______. A arte no Cristianismo. São Paulo:
Paulus, 2010.
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Qiqajon, 1994. RAMALLO, G. Saber ver a arte românica. São
Paulo: Martins Fontes,1992.
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Martins Fontes, 1992. SACRAMENTARIUM Gelasianum Vetus. Liber
Sacramentorum Romanae Aeclesiae Ordinis Anni
CRONIN, D. P. O espaço celebrativo. In: Circuli. L. C. Mohlberg (Moderante). Roma: Herder,
CELAM. Manual de liturgia II. São Paulo: Paulus, 1960. (Rerum Ecclesiasticarum Documenta. Series
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FRADE, G. Arquitetura Sagrada no Brasil. São ZEVI, B. Saber ver a arquitetura. São Paulo:
Paulo: Loyola, 2007. Martins Fontes, 2009.
HOPKINS, C. The Discovery of Dura-Europos.
New Haven/London: Yale University Press, 1979.
KRAUTHEIMER, R. Early Christian and
Byzantine Architeture. London/New York: Yale O tempo litúrgico
University Press, 1986. Sumário
1 O tempo na experiência humana 2.3.3 Círculo, linha, espiral
1.1 A dimensão objetiva e a dimensão subjetiva do 2.3.4 Ano, mês, dia e hora
tempo 3 O ano litúrgico cristão
1.2 A “humanização” do tempo 4 A reforma do Vaticano II
2 O tempo na experiência cristã 4.1 A atual estrutura do ano litúrgico
2.1 O tempo na Sagrada Escritura 4.1.1 O ciclo ou tempo de Natal
2.2 O culto como memorial 4.1.2 O ciclo ou tempo pascal
2.3 A compreensão litúrgica do tempo 4.1.3 O tempo comum
2.3.1 O objeto da celebração cristã 4.1.4 Outras festas do ano litúrgico
2.3.2 Na história, em direção à plenitude do Reino 4.2 O tempo litúrgico como mistagogia da Igreja
entrada no grande espaço do mundo, muito menos
amável que o seio da mãe, o ser humano transita, habita
1 O tempo na experiência humana
e domestica o espaço natural ou o que ele mesmo
O tempo é, acima de tudo, uma experiência constrói para viver.
fundamental e determinante do ser humano. Junto com o
Isso acontece de modo análogo com o tempo, que
espaço, são as duas coordenadas fundantes de sua
o homem experimenta como uma evolução contínua (um
experiência: estamos e nos movemos em um lugar e em
contínuo devir), sem movimento para trás, perceptível na
um devir. Todo ser humano é gestado, nasce e vive, até
mudança, renovação e envelhecimento das coisas e das
sua norte, imerso nessas duas dimensões. Desde o
pessoas, impossível de parar. “Muda, tudo muda”, diz
espaço protegido, quente e nutritivo do útero materno,
uma conhecida canção popular latino-americana, que
drásticamente abandonado no nascimento, para dar
63
expressa não apenas a experiência da inevitável intimamente ligadas à consciência e inteligência do
mudança, mas também a da persistência da memória e homem.
dos valores humanos.
O tempo medido objetivamente pode ser
O tempo é a experiência de que tudo pode ser determinado tanto pelos ritmos biológicos e cósmicos,
medido em termos de sua duração. Dá ao ser pensante quanto pelos sistemas de medida concebidos pelo ser
um passado, um presente e um futuro, que é tanto humano. O tempo subjetivamente experimentado, no
individual quanto social. O tempo e o espaço entanto, é determinado pelos eventos que resultam em
determinam o homem como indivíduo e como ser social, vida humana pessoal ou social. Qualquer período da vida
possibilitando e limitando, ao mesmo tempo, sua de uma pessoa é experimentado como “curto” ou
existência, que é radicalmente espaço-temporal. O “longo”, dependendo se é divertido ou chato, importante
homem não pode escapar da realidade de estar situado ou banal, feliz ou doloroso. Quem não experimenta
em ambas as dimensões, e pode experimentá-las como como intermináveis os dez minutos de espera em uma
áreas de liberdade ou, também, de limitação. fila de banco, e como curtíssimos os mesmos dez
minutos que compartilhamos com a pessoa amada?
A experiência do tempo está na mente e nas
Portanto, não é o tempo em si, mas o que acontece nele,
emoções, mais do que nos sentimentos. É mais difícil
que determina a experiência temporal.
apreender, definir, medir e controlar do que o espaço. É
uma experiência que desperta a sensação de fragilidade, 1.2 A “humanização” do tempo
de desamparo, de dependência de forças incontroláveis.
O ser humano tenta dominar o fluxo imparável do
Por isso, o ser humano sempre procurou controlá-lo,
tempo através de sua medição e sua organização. No
dominá-lo e superá-lo, colidindo com a impossibilidade
entanto, todas as formas de medição de tempo são
objetiva de fazê-lo, porque é como um rio caudaloso que
baseadas em uma concepção prévia dele mesmo; essas
não pode ser detido. Essa experiência leva ao sentimento
concepções são basicamente duas: a cíclica e a linear.
religioso. A religião tem a capacidade de inclinar em
favor do homem um devir que amedronta, dando-lhe A cíclica, expressa graficamente pelo círculo, é
significado; ou construir, através de sua ritualidade, a típica das culturas mais arcaicas, já que sua origem está
ilusão de controlá-lo e dominá-lo. nos ritmos da natureza. Isso explica por que as
categorias do ano, do mês e do dia existem em todo o
A primeira e mais difundida ação de controle do
mundo: elas são facilmente apreensíveis na experiência
tempo pelo homem é sua mensuração e, para isso, tem a
cotidiana.
ajuda da própria natureza.
A forma linear percebe o tempo como um devir
1.1 A dimensão objetiva e a dimensão subjetiva
permanente, sem a possibilidade de retroceder,
do tempo
representado graficamente por uma linha que sempre
Existem ritmos que ajudam o ser humano a medir avança. Sua medição consiste na segmentação dessa
o tempo. Entre aqueles que pertencem à própria natureza linha em períodos. Nela, adquire uma importância
humana, estão os biológicos: as batidas do coração e a fundamental o objetivo, o “até onde” a linha vai, ou
respiração são características de sua corporeidade. Entre onde termina. A tradição judaico-cristã adere
aqueles que o homem observa na natureza estão os basicamente a esta concepção do tempo.
cósmicos, como o caminho diário do sol de leste a oeste,
A alternância do dia e da noite é o padrão mais
a sucessão do dia e da noite, os meses determinados
imediato para medir o tempo. Mas a duração da luz e da
pelas fases da lua e o movimento das estrelas que, ligado
escuridão a que estão ligados varia muito de uma região
às estações da natureza, determina a duração de um ano.
para outra e de uma estação para outra. Assim, a
Baseado nesses ritmos naturais, o homem criou engenhosidade humana inventou instrumentos que
ritmos sociais como a hora, a semana e o mês, que, em medem as horas do dia, independentemente do fator
sua duração objetiva, variaram muito de tempos em claro-escuro: relógios solares, relógios de água e,
tempos e de cultura para cultura. O ser humano não finalmente, somente no século XIV, o relógio mecânico.
precisa apenas medir o tempo. Também é capaz de gerar Esse massificou-se no século XIX pela produção em
um horizonte temporal e distinguir, em sua consciência, massa de relógios de bolso e de pulso. No início do
entre o momento presente, o passado e o futuro. Este século XX, o sistema temporal foi universalizado ao se
horizonte depende da idade e do desenvolvimento estabelecer o horário de Greenwich (GMT – Greenwich
intelectual e é determinado pela situação social de cada Mean Time) como o padrão de tempo, o que favoreceu a
pessoa. Da mesma forma, o horizonte de tempo de um organização do tempo para um mundo cada vez mais
grupo humano depende, entre outros fatores, de seu globalizado nas áreas da produção, transporte e
desenvolvimento econômico, social e cultural. mobilidade humana.
É preciso distinguir, portanto, entre o tempo O mês, por outro lado, é uma unidade complexa.
subjetivamente experimentado e o tempo objetivamente Apesar de ter evidente apoio natural nas fases da lua, é
medido. Em ambos os casos, se trata do tempo para o vivenciado como parte de um segmento maior, que é o
ser humano, uma vez que sua percepção e medição estão ano. No entanto, a duração do ciclo solar, que chamamos
64
de ano, não se encaixa com a divisão em meses com a Palestina a partir das conquistas de Alexandre, o
base no ciclo lunar. Isto levou a diferentes soluções: o Grande, no século IV aC.
calendário islâmico padronizou o ciclo solar e dividiu o
Antes de tudo, o tempo é, na Bíblia, a história da
ano em doze meses lunares, de modo que o ano é dez
salvação. O tempo é a história na qual Deus revela seu
dias mais curto que o ano solar, ou como fez o
projeto salvífico, manifesta sua vontade chamando
calendário juliano, que tomou o ciclo solar como base e
pessoas concretas, convoca e reúne um povo de sua
os doze ciclos lunares foram padronizados.
propriedade, libertando-o permanentemente da
A semana é diferente do dia, mês e ano, porque escravidão e do pecado, conduzindo-o até o
não está relacionada a ciclos naturais, exceto nas cumprimento de suas promessas.
culturas em que se impôs a semana de sete dias, que é
Essa promessa é plenamente cumprida em Jesus
quase um quarto do tempo do ciclo lunar, que tem 29,5
Cristo, a irrupção de Deus na história humana, na
dias.
encarnação e em sua vida histórica. Esta irrupção, o dia
A semana é de origem cultural. Portanto, nos favorável da salvação, não termina com a vida humana
tempos antigos, era diferente em diversas sociedades. Na de Jesus de Nazaré, mas inaugura a eternidade
Mesopotâmia e em Israel a semana tinha sete dias. Os definitiva, o tempo da plenitude que só aguarda sua
antigos romanos tinham uma semana de oito dias, os consumação na parusia, a vinda definitiva do Cristo
chineses, uma de dez, e em várias culturas da África glorioso. O conceito de “reino” de Deus, inaugurado por
Ocidental, do Sudeste Asiático e da América Central Jesus Cristo, é um conceito temporal e não precisamente
havia semanas com cerca de três e seis dias. O que era geográfico. É equivalente ao “reinado” de Deus, isto é, à
comum em todas elas era o padrão sempre recorrente de instauração de sua soberania. Jesus afirmou que este
certos dias, provavelmente para regular certas atividades reinado já estava no meio de seu povo por causa de suas
repetitivas, como os dias de mercado. Muitas sociedades intervenções salvadoras (Lc 11,20). Sua própria irrupção
conheciam, no sistema semanal, um dia de especial na história já era o começo do reinado, e a ressurreição
alívio, geralmente com fundamento religioso: o shabat dos mortos abriu a porta do tempo definitivo, lançando
do judaísmo, o domingo do cristianismo e a sexta-feira assim a linha para a consumação de sua vinda
do islamismo. escatológica.
2 O tempo na experiência cristã 2.2 O culto como memorial
A experiência humana do tempo e sua organização Nesta ideia de tempo, o culto adquire um
social estão intimamente relacionadas com a consciência significado particular. Os grandes festivais anuais do
religiosa do homem. Em todas as religiões, o tempo Antigo Testamento, que em sua origem eram festas da
desempenha um papel importante, mas a concepção do natureza, cíclicas, foram historicizadas. Seu conteúdo
tempo e o comportamento religioso e cultual em relação original foi substituído por ações salvíficas de Deus na
a ele, que derivam desse entendimento, são muito história. As festividades se transformaram em festas
variados. A concepção bíblica e litúrgica cristã é apenas memoriais, que recordavam fatos salvíficos do passado.
uma delas. Através de palavras e ações rituais, esses eventos
atualizavam (tornavam presente) a salvação de Deus e,
2.1 O tempo na Sagrada Escritura
ao mesmo tempo, prometiam a salvação definitiva para o
A experiência bíblica do tempo está na base do futuro.
significado que a liturgia cristã atribui a ela. O Deus
O ritual tornou-se um sinal memorial do que
cristão é o Deus-homem, o Deus-conosco, o Deus que
acontecera em algum momento, uma expressão de
encarna e assume não apenas a beleza de sua criação e
fidelidade aos preceitos divinos e um sinal de esperança
de suas criaturas, mas também suas limitações e
no cumprimento futuro da promessa de Deus. É a sua
condicionamentos. É o Deus que se fez carne, frágil,
fidelidade que atualiza no presente a salvação já
limitada e corruptível, localizada nas coordenadas
realizada e promete para o futuro.
fundamentais do tempo e do espaço. Isso determina
radicalmente a liturgia, assim como o mistério pascal de Esta compreensão do tempo e da ação cultual ao
Cristo, que representa a superação de todo o longo dele se dá tanto na liturgia da sinagoga como na
condicionamento, também do tempo: o Ressuscitado liturgia da nossa Igreja cristã.
introduz a humanidade na nova eternidade, em um novo
2.3 A compreensão litúrgica do tempo
tempo, que aguarda sua segunda vinda, a definitiva.
O tempo é obra de Deus e a Ele pertence, como
Na Bíblia predomina uma ideia de tempo que
tudo criado por Ele. Deus existe desde sempre e para
considera o âmbito da ação de Deus e da revelação do
sempre, isto é, fora do tempo e não sujeito ao seu
desígnio divino na história. É fundamentalmente uma
domínio. O “tempo” de Deus é chamado eternidade. Ele
concepção linear do tempo, com a exceção do livro
é autor, criador e senhor do tempo.
Qohelet, que introduz uma concepção cíclica e fatalista,
característica do mundo helênico, cuja cultura dominou No tempo, a vida humana se desenvolve, tomando
consciência do devir, fazendo dele história. O
65
cristianismo é uma religião histórica. Também sua linear. Organizado em torno dos ciclos naturais do dia,
liturgia é histórica, num duplo sentido: celebra a história do mês e do ano e, acima de tudo, como o Concílio
e é celebrada na história. Vaticano II enfatizou, em torno do ciclo cultural-
religioso da semana de sete dias, com o domingo como o
2.3.1 O objeto da celebração cristã
dia principal. O mundo ocidental, influenciado pelo
O quê, precisamente, da história celebra nossa cristianismo, determinou o início de seu calendário, o
liturgia? O foco principal da liturgia cristã é o mistério ano zero, de acordo com o nascimento de Jesus Cristo.
pascal de Cristo, isto é, os eventos históricos de sua Hoje, graças a estudos que corrigiram cálculos do
morte e ressurreição. Eles constituem o ápice e a passado, sabemos que o nascimento de Jesus foi, de fato,
articulação do tempo cristão. Na liturgia, celebra-se um entre os anos 4 e 7 antes do ano 0.
Deus que, segundo a revelação, não é apenas o criador
De acordo com a concepção cíclica, a liturgia
de tudo o que existe, mas também se manifesta
cristã é ordenada pelas horas do dia, na sequência
libertando e salvando o homem na história, porque ele
semanal marcada pelo domingo, e no ano, que recebe
mesmo se fez história de salvação.
vários nomes: “ano litúrgico”, “ano eclesial”, “ano do
As intervenções libertadoras de Deus na história Senhor”. Para distribuir a riqueza da Bíblia nas leituras
da salvação, passada, presente e futura, concentram-se das várias celebrações, organiza-se o tempo litúrgico,
no evento Cristo, no seu mistério pascal. E é desde a reforma do Concílio Vaticano II, num ciclo de
precisamente este mistério pascal que a Igreja celebra três anos: A, B e C. A liturgia das horas organiza os
sempre em todas as liturgias. Como o mistério pascal é a textos bíblicos do ofício de leituras em um ciclo de dois
síntese da história da salvação, a liturgia é seu anos, Par e Ímpar. A Igreja universal estabeleceu um ano
“momento” privilegiado, sua atualização. Ela celebra jubilar a cada 50 anos. Todos esses padrões se repetem
essa história na medida em que é preenchida pelas circularmente, uma unidade após a outra, sem mudança.
intervenções libertadoras de Deus, antes e depois da Eles representam a continuidade da concepção cíclica no
encarnação. Celebra não só a morte e ressurreição de tempo litúrgico.
Cristo, mas toda a sua vida, a terrena, a preexistente e a
Ao mesmo tempo, a tensão subjacente do tempo
gloriosa, a sua mensagem e os seus próprios atos
litúrgico é claramente constituída por um entendimento
salvíficos.
linear: a Igreja, povo de Deus que nasce da Páscoa de
2.3.2 Na história, em direção à plenitude do Reino Cristo, peregrina em direção ao “fim dos tempos”, à
A liturgia é celebrada na história. Não é uma ação plenitude do Reino de Deus que será definitivamente
atemporal, não pretende “superar” o tempo. Não é instalado na segunda vinda de Cristo: a parusia.
celebrada de costas, mas imersa na história real, porque Da síntese do círculo e da linha, surge a imagem
atualiza as irrupções salvíficas passadas de Deus na mais apropriada do tempo da Igreja, que é o tempo
história presente, que é, também ela, a continuação da litúrgico: a espiral ascendente. Contém tanto o
história da salvação. movimento circular, de ciclos que se repetem sem
A liturgia cristã não pretende, portanto, nem mudança, como o movimento linear da história que
superar nem dominar o tempo, mas, ao contrário, nele, avança sem nunca voltar atrás. Cada evolução da espiral
que é o cenário da história da salvação, “renasce” a ao mesmo tempo repete e renova, volta sobre si mesma e
história real dos seres humanos, submergindo-a no se move em direção ao que nunca foi percorrido antes. O
mistério de Cristo para que os crentes celebrem as que se repete no ano litúrgico, de fato, nunca se repete
intervenções libertadoras de Deus como um como no ciclo anterior, mas sempre em um nível
permanente dia de salvação: o hoje do mistério pascal superior, em um contexto novo e diferente, porque o
que se faz presente na vida concreta da Igreja. mundo e a humanidade, os cristãos e aqueles que
celebram não são os mesmos de um ano antes, e nem
2.3.3 Círculo, linha, espiral mesmo de um mês, de uma semana ou de um dia antes.
Na liturgia, reúnem-se os três tempos que Embora tudo na liturgia se repita, também é sempre
distinguem nossa consciência: o passado, com toda sua novo, porque o mundo e a humanidade “mudam, tudo
riqueza de intervenções de Deus, o presente, com as muda”.
circunstâncias concretas e determinantes da assembleia 2.3.4 Ano, mês, dia e hora
que celebra, e o futuro, como meta escatológica que
mobiliza a esperança e o compromisso dos cristãos: Como na sociedade civil, a principal unidade do
“Anunciamos a sua morte, proclamamos a sua tempo litúrgico é o “ano”, embora seja um “ano”
ressurreição. Venha, Senhor Jesus!”, dizemos na particular, cujo início e fim não coincidem
aclamação, após o relato da instituição da eucaristia. A temporariamente com o ano civil. Seu valor é teológico,
liturgia é celebrada na tensão de uma linha que avança e não organizacional. Não é definido como uma mera
para o encontro definitivo com o Senhor da história. magnitude temporal, mas como símbolo de uma
realidade sobrenatural. Para o cristianismo, é a analogia
No tempo litúrgico cristão há uma síntese dos dois de uma realidade espiritual muito mais profunda do que
grandes sistemas de organização temporal, o cíclico e o os dados cosmológicos de uma virada da Terra ao redor
66
do sol. Tem profundas raízes bíblicas, cristalizadas nas “oitavos días”, que hoje chamamos de domingo
expressões “ano da graça de Yahweh” (Is 61,2), “ano da (de dominica dies, “dia do Senhor”) – e da páscoa anual
graça do Senhor” (Lc 4,19), “plenitude dos tempos” (Gl (celebração da Páscoa da Ressurreição uma vez por
4,4; Ef 1,10), “Reino dos Céus” (Mt 3,2). ano ), um rico ciclo de celebrações foi se desenvolvendo
ao longo do ano.
O fundamento cristão do ano é o próprio Senhor
Jesus Cristo. O ano da graça do Senhor é o tempo da As igrejas cristãs dos primeiros séculos,
presença de Cristo que dura para sempre. O ano litúrgico submetidas por longos períodos às perseguições do
é o símbolo da eternidade definitiva inaugurada por Império Romano, começaram a venerar seus mártires,
Jesus Cristo com a sua ressurreição e, por essa razão, que entregavam suas vidas e derramavam seu sangue por
torna-se um símbolo da vida plena do ressuscitado. causa do evangelho, participando assim, do mistério
pascal do Senhor. A recorrência anual da data dessas
A liturgia, celebrando o mistério pascal de Cristo
mortes deu origem ao que chamamos “martirológio”,
ao longo dos anos, meses, semanas, dias e
isto é, a lista de todos os santos que veneramos na
horas, pascoaliza o tempo, colocando-o explicitamente
liturgia. O martirológio é enriquecido permanentemente
na linha da história da salvação. Em outras palavras,
por meio da beatificação e canonização de novos
o santifica.
homens e mulheres, como aconteceu recentemente com
No decorrer do dia, a Igreja celebra a eucaristia e monsenhor Oscar Romero, de El Salvador (canonizado
a liturgia das horas. Com a liturgia das horas, a em 14 de outubro de 2018, em Roma).
Igreja santifica os momentos do começo e do fim do dia
No quarto século, surgiu a festa do nascimento de
– o nascer do sol e seu poente – com as orações das
Jesus, como consequência lógica da atenção dada a toda
Laudes e das Vésperas, que considera “o duplo eixo
sua vida e obra, desde o momento de sua concepção e
sobre o qual se volta o Ofício diário” – e as horas
nascimento. Nos séculos subsequentes, outros eventos
principais, e também o meio-dia ou tempo intermediário,
na vida de Jesus foram adquirindo o estatuto de festas
com as horas menores da Terceira, Sexta e Nona.
litúrgicas. No mesmo século, a figura de Maria entrou na
Agrega o ofício de leituras e uma oração breve – as
liturgia com grande força, na medida em que a teologia e
Completas – antes do descanso noturno.
a espiritualidade iam definindo e aprofundando seu
A semana é marcada principalmente pelo papel essencial na história da salvação.
domingo, que é a primeira festa dos cristãos, como
Desde o Concílio de Trento, no século XVI, o ano
enfatizou o Vaticano II. O ritmo semanal representa de
litúrgico, como toda a liturgia, estava formado em todas
maneira mais evidente a santificação do tempo litúrgico.
as suas estruturas fundamentais, que permaneceram sem
A Páscoa semanal é a sequência fundamental do tempo
mudanças de grande relevância até o Concílio Vaticano
litúrgico cristão.
II em 1965. O CVII foi precedido por mais de um século
O ano está claramente organizado no calendário de estudos litúrgicos científicos, que pouco a pouco
romano, que foi inteiramente reformado pelo Concílio foram questionando uma série de aspectos da liturgia
Vaticano II. O conceito bíblico e litúrgico de “ano que seriam reformados profundamente a partir da
santo” foi incorporado à Igreja no costume de instituir segunda metade do século XX.
regularmente, a cada 25 anos, e também por ocasião de
4 A reforma do Vaticano II
algum evento extraordinário, um ano festivo com esse
nome. Desde o Concílio Vaticano II, temos um ano
litúrgico muito renovado sobre o passado. O enorme
3 O ano litúrgico cristão
número de festas obrigatórias de santos que foram se
O tempo litúrgico cristão adquiriu forma concreta, acumulando ao longo da história levou gradualmente à
como parte da liturgia e como organização concreta das perda da centralidade do mistério pascoal de Cristo e da
várias celebrações, como um “ano litúrgico”. Isso não se importância do domingo. A consciência da importância
criou ou desenvolveu a partir de teoria, mas foi se fundamental da Sagrada Escritura para a fé e para a
formando a partir da prática em celebrar e aprofundar as catequese da Igreja, tornou necessário repensar a sua
verdades teológicas dos cristãos de vários lugares. presença na liturgia. O mesmo pode ser dito do uso das
Estabeleceu, desde o início, usos distintos e diferenças, línguas de cada país ou grupo humano, chave para a
que em parte foram unificados posteriormente para compreensão e, acima de tudo, para a participação mais
afirmar a comunhão da Igreja e em parte foram ativa das pessoas na celebração. A participação da
mantidos, alguns deles até hoje, como práticas distintas assembleia foi uma das principais questões da reforma,
dentro da comunhão eclesial. Por exemplo, as Igrejas que concebeu a liturgia não como uma função sagrada a
Orientais, mesmo aquelas em comunhão com Roma, que os fiéis assistem passivamente, ouvindo e repetindo
celebram a Páscoa, a principal festa dos cristãos, em data gestos pré-definidos, mas sim como uma festa do povo
diferente da católica romana. E a mesma coisa acontece de Deus, presidida pelo próprio Cristo em seus
com outras datas e tempos litúrgicos. ministros, e caracterizada pela participação ativa de toda
Como foi no começo? A partir da eucaristia a assembleia litúrgica, cada qual segundo sua condição e
semanal – os primeiros cristãos celebravam todos os
67
função, e com maior espontaneidade e presença da vida A “encarnação” de Deus, o fazer-se “carne” ou
concreta dos fiéis. pessoa humana, é a condição necessária para que
historicamente possa viver e morrer. O mistério pascal
Levando em consideração estes e outros aspectos
foi possível porque Deus se tornou humano. Este ciclo
que necessitavam urgentemente de uma reforma, o
inicia o ano litúrgico da Igreja, o primeiro domingo do
Concílio renovou a liturgia e o ano litúrgico de maneira
Advento. Seus principais momentos são:
profunda. Reavaliou a centralidade do domingo, a
celebração da “Páscoa semanal” e o ritmo fundamental – os quatro domingos do Advento, que constituem
do ano litúrgico. Outra grande riqueza da reforma é a a preparação para o Natal e nos sensibilizam para a
presença renovada da Bíblia nas celebrações. Para a esperança da vinda definitiva do Senhor;
eucaristia aos domingos, foi elaborado um ciclo de três
– o Natal, festa do nascimento de Jesus Cristo em
anos, no decorrer dos quais foram distribuídas leituras de
Belém;
toda a Bíblia, que permitem às comunidades conhecer os
fundamentos da Sagrada Escritura nesse período. – a Oitava do Natal, semelhante à da Páscoa, que
continua a festa durante uma semana inteira; ela
4.1 A atual estrutura do ano litúrgico
inaugura o “tempo de Natal”, que dura até o começo do
A atual organização do ano litúrgico tem “tempos” tempo comum;
e celebrações para a Igreja universal. Começa, na Igreja
– a festa da Sagrada Família, no domingo depois
Católica, com as Primeiras Vésperas do Primeiro
do Natal;
Domingo do Advento (isto é, no sábado depois da festa
de Cristo Rei, à tarde). A data deste dia não é fixa, mas – o dia da Oitava, 1º de janeiro e início do ano
muda ligeiramente todos os anos. Uma vez que há civil em grande parte do mundo, celebrando a solenidade
quatro domingos de preparação para o Natal, retrocede- de Santa Maria Mãe de Deus;
se do último domingo antes de 25 de dezembro para – a Epifania, em 6 de janeiro ou no segundo
determinar a data do primeiro domingo do Advento. É domingo após o Natal, que recorda a manifestação do
sempre entre os últimos dias de novembro e os primeiros recém-nascido a todas as nações, representadas nos
dias de dezembro. Com o Advento, inicia-se o ciclo de magos do oriente;
Natal (também chamado de ciclo de Manifestação do
Senhor), que continua até a festa do batismo do Senhor, – o batismo do Senhor, no domingo depois da
no primeiro domingo depois de 6 de janeiro. Epifania, que faz memória do início do seu ministério
messiânico, manifestando-se assim ao seu povo, Israel.
O segundo tempo é o tempo comum, que inicia Com esta festa, o “tempo de Natal” termina e a primeira
após a festa do batismo de Jesus e se estende até o início semana do “tempo comum” começa.
de Quaresma, tempo de preparação para a Páscoa da
ressurreição. Nem mesmo essa data é fixa, pois é 4.1.2 O ciclo ou tempo pascal
determinada pela data da Páscoa, estabelecida com base O ciclo, ou tempo, da Páscoa é o mais importante
no calendário lunar, e não no solar: a Páscoa é sempre do ano litúrgico, porque no seu centro está a principal
no primeiro domingo que se segue à lua cheia, após o festa cristã, a Páscoa da Ressurreição. O ciclo começa na
equinócio da primavera. Oscila entre 22 de março e 25 Quarta-feira de Cinzas, com a Quaresma, um tempo de
de abril. conversão e reflexão que dura 40 dias e está orientado
Começa então o ciclo pascal, que é constituído para a preparação da Páscoa. No final da Quaresma, vem
pela Quaresma, pela Semana Santa e a Páscoa, a Semana Santa, a mais intensa do ano litúrgico, cujos
culminando com a solenidade de Pentecostes. dias mais importantes são:
Na segunda-feira após o Pentecostes, o tempo – Domingo de Ramos, quando se inicia e
comum é retomado e dura até o sábado posterior à comemora a entrada de Jesus em Jerusalém antes de
solenidade de Cristo Rei. O tempo comum tem 33 ou 34 morrer e ressuscitar;
semanas e é o mais longo do ano litúrgico. Com as – Quinta-feira Santa, em que se celebra a “missa
primeiras Vésperas no domingo posterior a essa festa, crismal” do bispo com todos os seus colaboradores no
um novo ano litúrgico começa. ministério (sacerdotes e diáconos) e os óleos são
4.1.1 O ciclo ou tempo de Natal benzidos para os batismos, confirmações, unções dos
enfermos e ordenações do ano (existem dioceses em que
Este ciclo ou tempo, o segundo em importância do esta missa é transferida para outro dia da Semana Santa);
ano litúrgico, é também chamado de “ciclo da e, na noite da Quinta-feira Santa, a Ceia do Senhor em
manifestação do Senhor”, porque celebramos Cristo que que celebramos a instituição da eucaristia e o sacerdócio
se revela a nós em suas manifestações na história ordenado;
humana. É organizado em torno da segunda grande festa
do Senhor, o Natal, que celebra seu nascimento em – Sexta-Feira Santa, o dia em que lembramos a
Belém. morte do Senhor; é o único dia do ano em que a
eucaristia não é celebrada (por isso comungamos com as
hóstias consagradas na Quinta-feira Santa);
68
– Sábado Santo, que culmina, à noite, com a (8 de dezembro); Imaculado Coração de Maria (terceiro
vigília pascal; sábado após Pentecostes); e muitas invocações especiais,
como Nossa Senhora de Lourdes (11 de fevereiro),
– e a celebração dominical da ressurreição.
Nossa Senhora de Fátima (13 de maio), e, especialmente
A celebração da ressurreição prolonga-se na na América Latina, o continente mariano por excelencia,
Oitava da Páscoa, até o domingo seguinte, como “um cujos países veneram a Virgem Maria como padroeira
único dia de festa”. Continua, além disso, para todo o em várias invocações: Nossa Senhora de Guadalupe
quinquagésimo pascal ou período pascal, que são os (padroeira da América Latina, 12 de dezembro), Nossa
cinquenta dias que culminam com a festa do Espírito Senhora Aparecida (12 de outubro), Virgem de Luján (8
Santo, Pentecostes. No 40º dia é celebrada a Festa da de maio), Nossa Senhora do Carmo (16 de julho) e
Ascensão do Senhor, que em muitos países é transferida muitas outras.
para o domingo seguinte, que é aquele antes de
Em relação aos santos: Todos os santos (1º de
Pentecostes.
novembro), São José (19 de março) e São José Operário
4.1.3 O tempo comum (1º de maio), São João Batista (24 de junho), São Pedro
Em todo o tempo que fica fora dos dois grandes e São Paulo (29 de junho) e outros próprios de cada país.
ciclos anteriores, cuja duração é de 33 ou 34 semanas, O grande número de homens e mulheres que foram
nenhum aspecto particular do mistério pascal é canonizados desde o pontificado de São João Paulo II
celebrado, a não ser o mistério de Cristo e de sua Igreja deve-se ao desejo de enriquecer os calendários
como um todo. Os domingos são seus principais dias; a particulares com santos e santas locais, além daqueles do
cada sete dias acontece a festa da ressurreição para os calendário universal.
cristãos. Uma parte menor destes domingos, entre 5 e 9, Há ainda muitas outras festas da Virgem Maria e
se encontra depois do ciclo da manifestação, a partir da dos santos. Frequentemente estão mais ligadas à
festa do batismo do Senhor, e os restantes, depois do devoção pessoal ou a algumas regiões. Por sua
domingo de Pentecostes, até o sábado anterior ao importância para muitos católicos, devemos lembrar
primeiro domingo do Advento. também a comemoração de Todos os mortos (2 de
Quanto à leitura do evangelho, o evangelista novembro), um dia de grande afluência aos cemitérios.
Lucas foi designado para o ano A, os evangelistas A comunhão não é uniformidade, mas unidade na
Marcos e João para o ano B, e o evangelista Mateus para riqueza da diversidade. Por esta razão, o ano litúrgico se
o ano C. A cada três anos, o ciclo recomeça, dando-nos a torna local em cada Igreja particular, através de
possibilidade de uma nova passagem pelos livros e celebrações e festas próprias.
textos mais importantes para a nossa fé. No tempo
As celebrações têm suas próprias cores, que são
comum, os domingos e os dias da semana são a razão da
usadas em vestes litúrgicas e outros signos/símbolos do
celebração, especialmente o lecionário. Com as leituras
espaço da celebração: verde para o tempo comum, tanto
dos anos A, B e C se dá sua unidade, que não é cortada
nos domingos como em festas e dias da semana;
por estar dividida em duas partes.
vermelho para o Domingo de Ramos, Sexta-Feira Santa
4.1.4 Outras festas do ano litúrgico e as festas dos apóstolos e mártires; roxo para o
No tempo comum, a Igreja coloca uma série de Advento, a Quaresma e as celebrações dos falecidos; e
outras festividades importantes, entre as quais se branco para a Páscoa, o Natal e as outras solenidades e
destacam muitas festas da Virgem e dos santos, embora festas de Cristo e da Virgem Maria. Em vários lugares, a
essas também estejam distribuídas ao longo do ano, cor azul foi popularizada pelas festas da Virgem. O
podendo estar nos ciclos da manifestação e da Páscoa. significado das cores é convencional, pode mudar de
Os eventos mais importantes são os seguintes. cultura para cultura: vermelho para paixão, apóstolos e
mártires que deram seu sangue, como Jesus Cristo, pelo
Em relação a Jesus Cristo: apresentação do Senhor evangelho. Branco, a cor por excelência de santidade e
(2 de fevereiro, na verdade, entra no complexo das pureza, para as grandes solenidades do ano e para as
festividades da manifestação); Exaltação da Cruz (14 de festas da Virgem. Púrpura, cor originalmente
setembro ou 3 de maio); Santíssima Trindade (domingo penitencial, de recordação e conversão, para os tempos
após o Pentecostes; celebra o Pai, o Filho e o Espírito de preparação e para as celebrações da morte dos
Santo); Corpus Christi (Corpo e Sangue de Cristo; cristãos. Verde, a cor mais comum, para o tempo
segunda quinta-feira após Pentecostes); Sagrado normal.
Coração de Jesus (terceira sexta-feira após Pentecostes);
Transfiguração do Senhor (6 de agosto); Cristo Rei 4.2 O tempo litúrgico como mistagogia da Igreja
(último domingo do ano litúrgico, isto é, antes do O ano litúrgico não é uma mera organização das
primeiro dia do Advento). celebrações litúrgicas da Igreja no tempo. Muito mais do
Em relação à Virgem Maria: Anunciação do que uma estrutura simples, é na verdade
Senhor (25 de março: nove meses antes do nascimento); uma mistagogia da Igreja, isto é, um itinerário formativo
Assunção de Maria (15 de agosto); Imaculada Conceição que introduz o mistério de Cristo e conduz para um
69
aprofundamento cada vez maior do evangelho e de toda BERGAMINI, Augusto. Verbete Año litúrgico.
a doutrina cristã e, portanto, a um crescimento no In: Nuevo diccionario de liturgia. Madrid: Paulinas,
compromisso dos fiéis com sua fé. 1987, p. 136-144.
Comemora-se toda a riqueza do mistério de Cristo: CASTELLANO, Jesús. El año
seu nascimento, sua vida, sua paixão, morte e litúrgico. Memorial de Cristo y mistagogía de la
ressurreição, suas palavras e atos, sua Mãe Maria, os Iglesia. Barcelona: Biblioteca litúrgica 1, Centre de
efeitos de sua mensagem sobre tantas testemunhas e Pastoral litúrgica, 1994.
mártires a partir das leituras bíblicas, a riqueza e a beleza
DALMAIS I. H. El tiempo en la liturgia. In:
dos textos litúrgicos elaborados pela Igreja, a
MARTIMORT, A. G. La Iglesia en
experiência de celebrar em comunidade e participar
oración. Introducción a la liturgia. Nueva edición
ativamente de celebrações, de cantar e dialogar em
actualizada y aumentada, parte IV. Barcelona: Herder,
ambientes fraternos, de experimentar os desafios a que o
1987, p.889-895.
Senhor nos chama da celebração da fé; tudo isso é um
caminho único de crescimento e aprofundamento da vida GOÑI, José Antonio. Historia del año litúrgico y
cristã para todos os fiéis. del calendario romano, Biblioteca litúrgica 40.
Barcelona: Centre de Pastoral litúrgica, 2010.
Viver conscientemente o desenvolvimento do ano
litúrgico, não só por um ano, mas pelos três anos do LÓPEZ MARTÍN, Julián. La voz: Calendario
ciclo dominical, nos permite percorrer os fundamentos litúrgico. In: Nuevo diccionario de liturgia. Madrid:
da revelação cristã através das leituras bíblicas, e Paulinas, 1987, p.258-264.
também ajuda a gerar, na Igreja, a autêntica comunhão ROSAS, Guillermo. El año litúrgico. In:
na diversidade e, em cada cristão, a consciência de uma CELAM. Manual de Liturgia, v. IV: La celebración del
fé e um compromisso que não são estáticos. São misterio pascual. Otras expresiones celebrativas del
autênticas “histórias da salvação” vividas na evolução do misterio pascual y la liturgia en la vida de la Iglesia.
tempo, sempre desafiadas a uma maior fidelidade ao Bogotá: CELAM, 2002, p.19-58.
evangelho e sempre atraídas pela esperança do Reino,
ápice do tempo e do ano litúrgico. _____. El hoy de la salvación en la
liturgia. Revista Medellín, v.XXIX, n.116, CELAM-
Guillermo Rosas. Pontifícia Universidad Católica ITEPAL, p.699-718, diciembre 2003.
de Chile. Texto original em espanhol.
______. El tiempo en la liturgia. In:
Referências CELAM. Manual de Liturgia, v. III: La celebración del
CALENDARIO ROMANO GENERAL, 1969. misterio pascual. Fundamentos teológicos y elementos
Também a edição que contém o Missal Romano, 3ª constitutivos. Bogotá: CELAM, 2003, p.545-57.
edição típica, 2002. TRIACCA A. M. Verbete: Tiempo y liturgia.
CALENDARIA PARTICULARIA, Instrucción In: Nuevo diccionario de liturgia. Madrid: Paulinas,
de la Sagrada Congregación para el Culto divino, 24 1987.
junio 1970.
PAULO VI. Msterii Paschalis, Motu proprio,
Os Sacramentais
1969.
Sumário
1 O que são os sacramentais? 4.3 Cosmologia teológica e sacramental
2 Uma aproximação histórica 4.4 A teologia da benção
3 Popularidade dos sacramentais 5 Teologia da misericórdia
4 Iluminação teológica 6 Conclusão
4.1 Reino de Deus 7 Referências bibliográficas
4.2 A oração da Igreja
O atual Código de Direito Canônico (1983) fala
dos sacramentais (c. 166-1172) e não os define como
1 O que são os sacramentais?
“coisas ou ações” – como no Código anterior de 1917 (c.
O Vaticano II define os sacramentais como “sinais 1169) – mas como “sinais sagrados” (c 1169.) de acordo
sagrados criados no modelo dos sacramentos, pelos com o Vaticano II (SC n.60); inclui, entre os
quais se expressam efeitos, especialmente de caráter sacramentais, consagrações e dedicações, bênçãos e
espiritual, obtidos pela intercessão da Igreja” (SC n.60). exorcismos, mas restringe o uso dos exorcismos (c.
O concílio os situa em torno do mistério pascal de Cristo 1172) e estende alguns sacramentais aos leigos (c.
(SC n.61) e afirma que devem ser reformados (SC n.62; 1168).
79) e sugere que alguns podem ser administrados por
Certamente, muitos estudantes de teologia
leigos (SC n.79).
terminam seus estudos sem nunca ter ouvido falar dos
sacramentais. Nos manuais de teologia anteriores ao
70
Vaticano II poderia ser encontrado algum apêndice sobre sacramentos (como os conhecemos hoje) quanto os
eles, enquanto nos manuais modernos apenas se fala dos sacramentais. No segundo milênio, quando tantas coisas
sacramentais, mencionando que representam um mudaram na Igreja, se estabelece uma hierarquia entre
problema difícil de conciliar com o mundo moderno os sacramentos e sacramentais, que conduzirá à
secularizado de hoje (Mysterium salutis IV/2, Madrid: distinção do septenário sacramental dos sacramentais
Cristiandad, dedica a este tema três páginas, 155-157). (Trento).
Exemplos de sacramentais são a água-benta e 3 Popularidade dos sacramentais
todos os tipos de bênçãos com água-benta (de imagens,
Para o povo, os sacramentais sempre foram
de casas, de crianças, de doentes, de idosos, de famílias,
importantes. Na Idade Média europeia, em que o povo
do campo, de alimentos, de veículos e até mesmo de
enfrentava situações de pobreza, pestes, guerras e medo
animais etc.), a imposição das cinzas no início da
do diabo, o sacramental materializava a bênção divina
Quaresma, as palmas do domingo de Ramos, as velas
que emanava de algum objeto abençoado. Os frutos que
iluminadas, as exéquias e os ritos fúnebres, a veneração
podiam ser obtidos a partir dos sacramentais não eram
da cruz, de Maria e dos santos e, por extensão, muitas
apenas espirituais, mas também, e principalmente,
devoções da religiosidade popular, como peregrinações a
temporais: saúde, boa colheita, paz etc.
santuários do Senhor ou de Maria, via sacra, procissões
etc. Também hoje os sacramentais tem grande
importância em setores populares, principalmente na
2 Uma aproximação histórica
América Latina e no Caribe. No Natal, muitas vezes o
A teologia dos sacramentos e, em particular, o centro da celebração é a bênção do Menino Jesus que,
número septenário dos sacramentos, não foi depois, será venerado na família durante as festas
desenvolvida até o século XII. Nem na Escritura nem na natalinas. Na Quaresma, as cinzas desfrutam de grande
tradição cristã primitiva podemos encontrar uma popularidade. O Domingo de Ramos, provavelmente a
doutrina clara dos sete sacramentos. Para as primeiras festa mais popular de todo o ano, para o povo é a festa
gerações cristãs, sacramento (que era a tradução do das palmas, que levam para suas casas e guardam
grego misteryon) tinha um sentido muito mais amplo e durante todo o ano com devoção. Na Quinta-feira Santa,
mais rico que o nosso conceito moderno de sacramento. em muitos lugares, o centro de atenção popular é o lava-
Os primeiros que falaram de sacramento foram os pés, cerimônia que, para a Igreja antiga, tinha valor de
canonistas e teólogos escolásticos do século XII, como sacramento em alguns lugares. A Sexta-feira Santa se
Pedro Lombardo, mas, durante os séculos XII e XIII, o centra, para o povo, na Via Sacra, adoração da cruz e em
conceito de sacramento ainda era muito extensivo e não procissões do Santo Sepulcro, mais do que na solene
se distinguiam os sacramentos dos sacramentais. Para S. liturgia da paixão. Na Vigília Pascal, o que mais atrai o
Bernardo, um contemporâneo de Pedro Lombardo, os povo é a fogueira inicial e as velas que levam com tanta
sacramentos são tantos que, em uma hora, não é possível devoção às suas casas, tal qual a água abençoada da
listar todos. Para ele, os três sacramentos principais são liturgia batismal.
o batismo, a eucaristia e o lava-pés. Para Hugo de S.
Já Paulo VI, na Evangelii Nuntiandi (1975)
Victor, também um contemporâneo de Pedro Lombardo,
afirmou que “a piedade popular expressa uma sede de
os sacramentos são a água benta, a imposição das cinzas,
Deus que só os pobres e os simples podem conhecer”
a bênção dos ramos e de velas e o toque dos sinos para
(n.48). Bento XVI, em discurso em Aparecida, disse que
chamar os fiéis. Apenas com as grandes sumas
esta piedade popular é “um tesouro precioso da Igreja
teológicas de Alexandre de Hales, Boaventura e Tomás
Católica” e “nela aparece a alma dos povos latino-
de Aquino, se chegará a estabelecer e difundir o número
americanos” (discurso inaugural da V Conferência
septenário dos sacramentos, doutrina que, em seguida,
General do Episcopado Latino-americano, em 13 de
passou aos Concílios II de Lyon (1274), Florença (1439)
maio de 2007).
e, de forma definitiva, em Trento (1547). Ainda assim,
o número sete tem um significado profundo, mais O Documento de Aparecida (2007) recolhe alguns
simbólico que aritmético. Ele é a soma de três e quatro, destes gestos simbólicos de fé do povo:
o que significa plenitude (cf. matriz sacramentos). Nos diferentes momentos da luta cotidiana, muitos
Após Trento, os sacramentais são estudados em recorrem a algum pequeno sinal do amor de Deus: um
um tratado próprio, independente dos sacramentos crucifixo, um rosário, uma vela que se acende para
(Suárez) e o movimento litúrgico que precedeu o acompanhar um filho em sua enfermidade, um Pai
Concílio Vaticano II (Guardini, Parsch etc.), situa os Nosso recitado entre lágrimas, um olhar entranhável a
sacramentais dentro da teologia da liturgia, intuição que uma imagem querida de Maria, um sorriso dirigido ao
o Vaticano II acolherá, como foi visto. Céu em meio a uma alegria singela (n.261).
Se quiséssemos resumir brevemente esse processo E o papa Francisco, na Evangelii Gaudium,
histórico, poderíamos dizer que, ao longo do primeiro falando da fé do povo que se manifesta na piedade
milênio da Igreja, o conceito de sacramento foi popular, manifesta:
extremamente amplo e rico, incluindo tanto os
71
Penso na fé firme das mães ao pé da cama do filho (Mt 9,20), a unção de Maria em Betânia (Jo 12), o lava-
doente, que se agarram a um terço ainda que não saibam pés (Jo 13) são atos sacramentais de grande densidade
elencar os artigos do Credo; ou na carga imensa de teológica. Santo Tomás diz enfaticamente que os rudes
esperança contida numa vela que se acende, numa casa (ou seja, os simples, ignorantes e pobres) vivem a fé da
humilde, para pedir ajuda a Maria, ou nos olhares de Igreja através das celebrações litúrgicas e das festas da
profundo amor a Cristo crucificado. (n.125) Igreja, que têm uma dimensão sacramental em um
sentido muito amplo (cf. “De quibus ecclesia festa
Esse apreço do povo pelos sacramentais gera,
facit”, De Veritate q 14 a 11).
muitas vezes, um problema pastoral, porque o povo
parece mais interessado nos sacramentais do que nos A partir desta sacramentalidade original e
sacramentos. Poderíamos acrescentar que os mesmos fundante do Reino de Deus adquirem sentido pleno
sacramentos que o povo pede, muitas vezes, estão vistos todos os sacramentais do povo cristão.
mais sob o prisma dos sacramentais que dos
4.2 A oração da Igreja
sacramentos.
Todo gesto litúrgico sacramental da Igreja é uma
Não é exagero dizer que, para o povo simples e
oração eclesial, é súplica ao Pai por meio de Cristo, é
pobre, os sacramentais são mais valiosos que os
invocação do Espírito Santo (ou epiclese), em função do
sacramentos, porque são mais compreensíveis que os
Reino de Deus. Neste sentido, os sacramentais não são
sacramentos: são variados, ricos em simbolismo,
formas degradadas de sacramentalidade, mas se pode
próximos, domésticos, acompanham o ritmo da vida
entender os sacramentos como a culminação dos
cotidiana, são sensíveis, mais familiares e vitais. Os
sacramentais.
sacramentais são os sacramentos dos pobres.
Temos de passar das cinzas para o sacramento da
Evidentemente, este fato contrasta com a
reconciliação, das palmas do Domingo de Ramos para o
valorização teórica que o dogma e a teologia nos
mistério do Tríduo Pascal, do lava-pés à eucaristia, da
apresentam: o centro da celebração litúrgica cristã são os
água benta ao batismo. Deveríamos manter e continuar a
sete sacramentos, e sua fonte e ápice é a eucaristia
pedagogia divina da história da salvação (DV n.15),
(SC n.10); os sacramentais são secundários e periféricos.
pedagogia paciente e misericordiosa que parte de baixo,
No entanto, continua a ser um paradoxo que a maioria
dos pobres e dos pequenos.
das pessoas que estão na Igreja, justamente tenha acesso
a Deus mais pelos sacramentais do que pelos Tanto o estudo dogmático dos sacramentos quanto
sacramentos. a pastoral deveriam começar pelos sacramentais,
sacramentos dos pobres e, lentamente, alcançar os sete
4 Iluminação teológica
sacramentos clássicos, que os ordenam e de quem
Como iluminar os sacramentais e sua importância recebem a força.
pastoral a partir da fé e da tradição eclesial?
Especificamente, o clamor dos pobres a Deus,
4.1 Reino de Deus inspirado pelo Espírito, é a grande oração sacramental
que se eleva ao Pai através da Igreja e move suas
A categoria central para nos aproximar de uma
entranhas de misericórdia. Isso nos leva a ver o
releitura teológica dos sacramentais pode ser a do Reino
sacramental como oração eclesial do povo cristão, e não
de Deus, que é o horizonte último da pregação e da
uma forma degradada dos sete sacramentos. Quando este
atividade do Jesus histórico (Mc 1,15).
clamor atinge sua densidade máxima e torna-se oração
O Reino de Deus é o grande projeto de Deus ao solene da Igreja, então temos um sacramento no sentido
criar o mundo, para fazer da humanidade uma família pleno e rigoroso do termo. Mas os sacramentais já são
reconciliada e fraterna de filhos e filhas do Pai, em oração eclesial, grito do povo inspirado pelo Espírito ao
Cristo, pelo Espírito. É a Trindade para fora, que deseja Pai, um clamor para o Reino.
comunicar o mistério da sua vida e comunhão trinitária
4.3 Cosmologia teológica e sacramental
para o mundo. É o mistério mais abrangente da fé cristã.
Este capítulo um pouco esquecido na nossa
Precisamente por ser o Reino de Deus um
teologia latina poderia iluminar o mundo sacramental e,
mistério, só pode ser abordado simbolicamente: as
mais especificamente, os sacramentais.
parábolas, os milagres e sinais de Jesus são as únicas
maneiras que temos para acessar alguma compreensão O Oriente cristão manteve uma visão integral da
do Reino de Deus. Tanto os sacramentos quanto os salvação, em que o cósmico desempenha um papel
sacramentais são colocados sob a órbita de sinais muito importante. Precisamos desenvolver um capítulo
sensíveis e simbólicos da presença eficaz do Reino de da cosmologia teológica no qual se integre a criação do
Deus. cosmos, a sua queda, a encarnação de Cristo, a
ressurreição, a consumação escatológica do oitavo dia,
Quanto mais simples, populares, comunitários e
todo isso transformado pela força vivificante do Espírito,
cósmicos são esses ritos simbólicos, mais eles cumprem
que tudo o transfigura. O cosmos é um ícone sagrado,
uma função sacramental, se aproximam do Reino de
não é um mero objeto de exploração. Os sacramentos
Deus. A hemorroíssa que toca a orla do manto de Jesus
72
são momentos especialmente densos de uma Nos sacramentais o clamor do pobre, através da
cosmologia teológica e escatológica, lugares onde se Igreja, se torna petição ao Espírito (epiclese). As coisas
antecipa a transfiguração do cosmos, os novos céus e abençoadas são um sinal sacramental da força
nova terra. vivificante da Palavra de Deus através da Igreja. O fruto
dos sacramentais é a bênção de Deus, a vida, a
Tudo isso também se aplica aos sacramentais.
participação do Reino de Deus.
Cristo, descendo às águas do Jordão em seu batismo,
começa a purificar a natureza cósmica, antecipando o 5 Teologia da misericórdia
que se realizará no mistério pascal. Os céus e a terra, as
Chegamos ao último ponto da nossa reflexão
águas, o arco-íris, os frutos do campo e do trabalho
teológica. Todo este rico e variado mundo dos
humano tornam-se símbolos sacramentais da nova terra
sacramentais não é compreensível se não o acessamos
renovada pela ressurreição.
com uma atitude de misericórdia.
Dentro da cosmologia cristã é necessário integrar a
Para aqueles que não vivem a angustiosa situação
noção de salvação de forma plena. A divisão canônica e
dos pobres, os sacramentais podem parecer supérfluos,
jurídica entre os efeitos espirituais e efeitos temporais
supersticiosos, profanos, carregados de um ambíguo
sobre os sacramentais é empobrecedora e pressupõe
sincretismo. No entanto, com misericórdia pode-se
uma visão dualista da salvação que está intimamente
contemplar que, por trás da petição dos sacramentais que
ligada à saúde (da qual leva o nome salus, soteria) e que
o povos deseja, se esconde um mundo de dor, pobreza e
inclui a libertação do pecado, do mal e da morte. A
injustiça não apenas metafísica, mas histórica e real.
salvação alcança sua plenitude no Reino de Deus que é
consumação total da vida e, portanto, inclui o material e Mas, acima de tudo, os sacramentais nos
o espiritual, que são dimensões inseparáveis. aproximam da misericórdia de Deus, suas entranhas de
misericórdia, com as quais acolheu Israel (Lc 1,54), com
Este tópico, sumariamente enunciado, nos leva à
as mesmas que Jesus se compadeceu das multidões
teologia de bênçãos.
cansadas e abatidas, como ovelhas sem pastor (Mt 9,35,
4.4 A teologia da benção no final da seção narrativa dos milagres que começa em
Mt 8).
Os sacramentais estão geralmente ligados às
bênçãos. A bênção, no Antigo Testamento, é O papa Francisco diz a este respeito na Evangelii
comunicação da força e poder de Deus através de sua Gaudium:
Palavra e a de seus ministros. A bênção (berakah)
Para compreender esta necessidade, é preciso abordá-la
produz abundância, fertilidade, bem-estar, saúde e paz
com o olhar do Bom Pastor, que não procura julgar, mas
(shalom).
amar. Só a partir da conaturalidade afetiva que dá o
Podemos dizer que a bênção comunica a vida amor é que podemos apreciar a vida teologal presente na
divina aos humanos, é um dom do Deus vivo da vida, piedade dos povos cristãos, especialmente nos pobres
que chega a todos os viventes de alguma forma. O (n.125).
oposto de bênção é a maldição, um sinal de morte, por
Certamente, os sacramentais devem ser
vezes pronunciada pelos profetas (Jer 25,5-6). O povo
evangelizados, iluminados pela Palavra, entroncados nos
israelita na Bíblia se encontra entre a vida e a morte (Dt
sacramentos, orientados ao reconhecimento dos
39,19), deve escolher um destes caminhos.
benefícios de Deus e à tomada da consciência do
No Novo Testamento, Jesus, Palavra de Deus, compromisso que o cristão tem com o mundo (Puebla
abençoa crianças e doentes, com a sua autoridade n.962; DAp n.380-430). Mas não se pode esquecer que
expulsa demônios (Mc 1,21-28; Mt 12,28 e outros), são sacramentos dos pobres e são parte de uma teologia
chama bem-aventurados aos pobres e lamenta a situação e pastoral da misericórdia.
dos ricos ( Lc 6,20-26), antecipando, assim, o
Isso também deverá levar à reforma os
julgamento escatológico (Mt 25,31-45). A eficácia da
sacramentais, ampliando aos leigos muitas bênçãos que,
sua palavra passar para os discípulos, que participam do
até agora, estão ligadas exclusivamente ao ministério
seu poder libertador que denuncia o mal, comunica a
ordenado. A igreja local tem aqui um amplo espaço para
salvação e antecipa, de algum modo, o julgamento de
realizar a sua missão pastoral.
Deus (Rm 15,19; 2Cor 12,12; Atos 8,18-28).
Poderíamos dizer que a bênção antecipa o Reino de 6 Conclusão
Deus, comunica vida e Espírito, liberta da morte e do O sacramental é o clamor do povo feito oração
maligno. simbólica, que sobe ao Pai através da Igreja e desce
A bênção das coisas simboliza e condensa esta sobre o povo como uma bênção. Esta bênção atualiza de
eficácia da Palavra, fazendo com que a criação fique modo eclesial as bem-aventuranças dos pobres e
impregnada e cheia da força e da energia vivificadora do antecipa cósmica e historicamente o Reino de Deus, o
Senhor para o bem das pessoas. A bênção tem uma triunfo da vida sobre a morte. E tudo isso, pela
dimensão sacramental. misericórdia do nosso Deus, que nos visita para iluminar
73
os que vivem nas trevas e nas sombras da morte (Lc 3.1 Presença de Cristo
1,68-79). 3.2 Assembleia e participação
3.3 Sagrada Escritura
Os destinatários privilegiados dos sacramentais
4 Conclusão
são os pobres, ou seja, a maior parte da Igreja e da
5 Referências bibliográficas
humanidade hoje. E, como escreve o papa Francisco
na Evangelii Gaudium, “as expressões da piedade
popular têm muito que nos ensinar e, para quem as sabe Por meio da Constituição Apostólica Missale
ler, são um lugar teológico a que devemos prestar Romanum, de 3 de abril de 1969, o papa Paulo VI
atenção particularmente na hora de pensar a nova aprovou o novo Missal Romano e a “Instrução Geral ao
evangelização” (EG n.126). Missal Romano” (Institutio Generalis Missalis
Os sacramentais dos pobres podem evangelizar a Romanum – IGMR), que acompanha e precede o
teologia e a pastoral dos sete sacramentos. Os pobres formulário do Missal. O texto da edição oficial (editio
sempre nos evangelizam. typica) do Missal e da Instrução datam de 25 de março
de 1970. Passados apenas cinco anos, foi publicada a
Víctor Codina, SJ. Universidad Católica de segunda edição do Missal Romano. No ano 2000, trinta
Cochabanba, Bolívia. Texto original em Espanhol anos após a primeira edição do Missal, é lançada a sua
7 Referências bibliográficas terceira edição. Nessa ocasião surgiram algumas
orientações que complementavam a edição anterior do
CODINA, V. Os sacramentais: sacramentos dos Missal, as quais foram incorporadas na terceira edição
pobres. Perspectiva Teológica v.22, n.56, 1990. p.55-68 da IGMR. Tomaremos como paradigma para as nossas
CODINA, V. Sacramentos. In: ELLACURÍA, I.; referências esta última edição da IGMR. Ela apresenta
SOBRINO, J. (eds.) Mysterium Liberationis. v.II. nove capítulos e 399 números (a primeira edição tinha
Madrid: Trotta, 1990. p.267-294. oito capítulos e 342 números).
MARTIMORT, A. G. La Iglesia en oración. Essa Instrução – da mesma forma como acontece
Barcelona: Herder, 1987. com as introduções dos livros litúrgicos emanados da
reforma litúrgica conciliar (praenotanda) – é um rico
TABORDA, F. Sacramentos, praxis e festa. 4.ed. emaranhado de fios de caráter bíblico, teológico,
Petrópolis: Vozes,,1998. doutrinal, catequético e pastoral; todos formando um
Para saber mais único tecido multicolorido. Longe de ser um mero
manual de rubricas, a IGMR é portadora de uma teologia
BOFF, L. Los sacramentos de la vida y la vida de fermentada pela renovação pré e pós-conciliar, mas,
los sacramentos. Bogotá: Indo-American Press Service, sobretudo, pelas riquíssimas propostas do Concílio
1977. Vaticano II. Ela marca “uma reviravolta em relação às
BOROBIO, D. La celebración en la Iglesia, II precedentes Rubricae Generales e Ritus servandus do
Sacramentos. Salamanca: Sígueme, 1988. Missal de Pio V, já pelo próprio título: Institutio, um
gênero literário novo, e ainda por seu conteúdo de amplo
CASTILLO, J. M. El Reino de Dios. 3.ed. Bilbao: respiro” (FALSINI, 1996, p.7).
Desclée de Brouwer,. 2001
Ao lado da IGMR, outro tesouro da reforma
CHARALAMBIDIS, S. Cosmología Cristiana. litúrgica foi o Ordo Lectionum Missae (OLM) – o
In: LAURENT, B.; REFOULÉ, F. Iniciación a la elenco oficial das leituras da Sagrada Escritura que são
práctica de la teología. v.III. Madrid: Cristiandad, 1985. proclamadas na celebração da eucaristia. A primeira
CODINA, V. No extingáis el Espíritu. Santander: edição típica do OLM foi publicada em 1969, por
Sal Terrae, 2008 mandato de Paulo VI. Em 1981 houve a sua segunda
edição. Trata-se de um documento composto de seis
KASPER,W. La misericórdia. 3.ed. Santander:
capítulos, cujo escopo teológico, catequético e pastoral é
Sal Terrae, 2013.
realçar o valor de máxima importância da Sagrada
IRRARRÁZAVAL, D. Itinerarios de la fe andina. Escritura na celebração da eucaristia (CNBB, 2008).
Cochabamba: Verbo Divino, 2013
O objetivo da investigação ora proposta é explorar
alguns aspectos relevantes do Missal Romano. Para tal,
proporemos um trajeto a ser percorrido em três etapas:
1) Constituição Apostólica Missale Romanum; 2) Breve
Missal Romano histórico e gênese do Missal de Paulo VI; 3) Aspectos
Sumário teológicos e pastorais valorizados pelo novo Missal,
onde especificaremos três aspectos: presença de Cristo,
1 A Constituição Apostólica Missale Romanum assembleia e participação e Sagrada Escritura.
2 Breve histórico e gênese do Missal Romano
3 Aspectos teológicos e pastorais valorizados pelo novo 1 A Constituição Apostólica Missale Romanum
Missal
74
A Constituição Apostólica Missale Espírito Santo, que, em todas as fases da história, suscita
Romanum merece uma abordagem à parte, dado o seu na Igreja de Cristo os sopros de renovação. Paulo VI
peso e relevância. Ela não só se apresentou como um recorda que, após o Concílio de Trento, começou-se o
instrumento necessário para que fosse possível a estudo de antigos manuscritos da Biblioteca Vaticana e
promulgação do novo Missal, mas trouxe consigo uma de outros materiais recolhidos de vários lugares. O papa
densa e profunda síntese de potencialidades e propostas Pio V dá testemunho que esse rico documentário muito
teológicas e pastorais.[1] contribuiu para a revisão e renovação do Missal
promulgado em 1570. Da publicação desse Missal até o
O Missal que vigorou até 1970 foi aquele
Concílio Vaticano II foi descoberto e publicado um rico
promulgado pelo papa Pio V, em 1570, de acordo com o
material de antigas fontes litúrgicas, como também
decreto do Concílio de Trento. Segundo a nossa
foram conhecidas e estudadas antigas fórmulas litúrgicas
Constituição, ele está “entre os muitos e admiráveis
da Igreja Oriental. Diante disso, afirma Paulo VI:
frutos que aquele Santo Sínodo difundiu por toda a
“Assim muitos insistiram para que tais riquezas
Igreja de Cristo”. Durante quatro séculos, os sacerdotes
doutrinais e espirituais não permanecessem na
do rito latino o tiveram como norma para a celebração
obscuridade das bibliotecas, mas, pelo contrário, fossem
da eucaristia.
dadas à luz, para ilustrarem e nutrirem as mentes dos
Na primeira metade do século XX, de modo cristãos” (PAULO VI, 1992, p.18).
particular, começa a despontar e ganhar corpo entre os
Uma das mais importantes novidades da reforma
cristãos um forte desejo de uma renovação da liturgia,
do novo Missal são os novos formulários de Orações
desejo este que, segundo as palavras do papa Pio XII,
Eucarísticas. A Oração Eucarística I, também chamada
deve ser considerado “passagem do Espírito Santo pela
de Cânon Romano, foi fixada entre os séculos IV e V e
sua Igreja” (JAVIER FLORES, 2006, p.285). Com isso,
permaneceu sendo o único formulário usado nas Missas
foi se tornando claro que o Missal de Pio V deveria ser
até o novo Missal. Além das novas Orações Eucarísticas,
urgentemente renovado e enriquecido em seus textos. O
este Missal foi também enriquecido com um grande
próprio Pio XII deu início a esta obra, restaurando a
número de novos Prefácios. O atual Missal conta com
Vigília Pascal e o Ordinário da Semana Santa, autênticos
treze Orações Eucarísticas.[3] Trata-se, portanto, de um
e concretos passos para o início da reforma do Missal
Missal com uma riqueza eucológica sem precedentes
Romano e de sua adaptação às necessidades da Igreja de
(BUGNINI, 2013, p.347).
hoje.
Além disso, de acordo com as orientações do
Com a promulgação do primeiro documento do
Concílio Vaticano II, houve o cuidado de se simplificar
Concílio Vaticano II, a Constituição
vários elementos secundários que, no decurso dos
Litúrgica Sacrosanctum Concilium (SC), foi lançada a
séculos, foram sendo acrescidos à celebração da Missa.
pedra fundamental da profunda reforma do Missal
Com frequência, esses elementos desviavam os fiéis
Romano. No que se refere ao mistério da eucaristia,
daquilo que era essencial no mistério eucarístico, além
a Sacrosanctum Concilium, no capítulo II (números 47-
de sobrecarregar demasiadamente a celebração. Tudo,
58), apresenta algumas diretrizes concretas para a
porém, foi feito cuidadosamente a fim de que fosse
revisão do Missal: buscar maior clareza nos texto e ritos;
conservada a substância dos ritos litúrgicos. Respeitou-
promover a participação dos fiéis; preparar “com maior
se a estrutura essencial dos ritos e, ao mesmo tempo,
abundância para os fiéis” a mesa da Palavra de Deus;
optou-se por sua simplificação. Orienta o Concílio:
centralizar a realidade do mistério pascal; resgatar
“Sejam omitidos todos os elementos que, com o passar
alguns ritos que se perderam durante a história (oração
do tempo, se duplicaram ou, menos utilmente, se
universal, concelebração, leitura de textos do Antigo
acrescentaram; restaurem-se, porém, se parecer oportuno
Testamento, comunhão sob as duas espécies etc.) e o uso
ou necessário e segundo a antiga tradição dos Padres,
da língua vernácula. A preocupação com uma autêntica
alguns que injustamente se perderam” (SC n.50).
renovação litúrgica, em particular naquilo que se refere à
(MARSILI, 2010, p. 329-37).
celebração da eucaristia, visa precisamente à
participação dos batizados no mistério que se celebra: Foram restaurados, continua a nos lembrar Paulo
“O ritual da Missa deve ser revisto, de modo que apareça VI na Constituição Apostólica, alguns ritos que tinham
mais claramente a estrutura de cada uma das suas partes, caído em desuso na celebração da Missa e que gozaram
bem como a sua mútua conexão, para facilitar uma de importância no tempo dos Padres da Igreja. Dentre os
participação piedosa e ativa dos fiéis” (SC n.50).[2] ritos restaurados, o da proclamação da Bíblia na Liturgia
da Palavra é indubitavelmente um dos mais
Paulo VI, na Constituição Apostólica Missale
significativos e decisivos (TRIACCA, 1992, p.135-51).
Romanum, esclarece que a renovação do Missal não é
Tratou-se de uma expressa orientação conciliar: “Para
fruto de um capricho da Igreja pós-conciliar e nada tem
que a mesa da Palavra de Deus seja preparada com
de improvisado. Diversamente, ela foi preparada
maior abundância para os fiéis, abram-se mais
carinhosa e progressivamente, de modo particular, com o
largamente os tesouros da Bíblia, de modo que, dentro
auxílio dos avanços da teologia bíblica e litúrgica. Esses
de certo número de anos, sejam lidas ao povo as partes
e outros fatores sinalizam a assistência permanente do
mais importantes da Sagrada Escritura” (SC n.51).
75
[4] “Tudo isto foi assim ordenado para aumentar cada Tardini, pediu a todos os bispos, aos superiores de
vez mais nos fiéis ‘a fome da Palavra de Deus’ (Am ordens religiosas e às universidades católicas para enviar
8,11) que, sob a direção do Espírito Santo, deve levar o sugestões de temas a serem tratados no Concílio. Muitas
povo da nova Aliança à perfeita unidade da Igreja” – dessas sugestões diziam respeito à reforma da Missa
afirma Paulo VI. (LENGELING, 1971, p.501). Considerando esses e
outros fatores, pode-se entender o motivo pelo qual o
Na conclusão da Constituição Apostólica Missale
primeiro documento emanado do Vaticano II foi
Romanum, o pontífice manifesta seu desejo de “dar
justamente a Constituição Litúrgica Sacrosanctum
força de lei” a tudo o que foi exposto nesse documento.
Concilium, promulgada em 4 de dezembro de 1963. O
Ele lembra que seu predecessor Pio V, na ocasião da
segundo capítulo dessa Constituição (n.47-58) foi
promulgação do Missal Romano, declara ao povo cristão
inteiramente dedicado ao sacramento da eucaristia.
que aquele livro litúrgico era “como fator da unidade
litúrgica e sinal da pureza do culto da Igreja”. “Da Em 25 de janeiro de 1964, Paulo VI formou
mesma forma”, continua Paulo VI, “nós, no novo o Consilium ad exsequendam Constitutionem de Sacra
Missal, embora deixando lugar para legítimas variações Liturgia, uma comissão que deveria levar avante o
e adaptações, segundo as normas do Concílio Vaticano projeto da reforma litúrgica. Ao formar esse conselho, o
II, esperamos que seja recebido pelos fiéis como um pontífice tinha o ardente desejo de colocar em prática
meio de testemunhar e afirmar a unidade de todos, pois, aquilo que fora pedido pelo Concílio Vaticano II: “Os
entre tamanha diversidade de línguas, uma só e mesma livros litúrgicos sejam quanto antes revistos por pessoas
oração, mais fragrante que o incenso, subirá ao Pai competentes e consultando bispos de diversos países do
celeste por nosso Sumo Sacerdote Jesus Cristo, no mundo” (SC n.25). Motivado por essa exortação,
Espírito Santo” (PAULO VI, 1992, p.21). o Consilium, de imediato, lançou mãos à obra. Em
pouco tempo, os trabalhos da comissão já apresentavam
2 Breve histórico e gênese do Missal Romano
os primeiros sinais da reforma do Missal (BASURKO &
Ainda que o nosso intento seja focalizar a reforma GOENAGA, 1990, p.149). A empreitada, no entanto,
do Missal Romano de Paulo VI, não se pode deixar de precisou ser enfrentada de forma paciente e gradativa. O
assinalar que o século XX foi marcado por um forte motivo desse procedimento se deu por duas razões: a) de
desejo de reforma no campo da liturgia. Já Pio X, na acordo com o Concílio Vaticano II, o trabalho de
Bula Divino afflatu (1/11/1911), mostra a necessidade de reforma deveria transcorrer com prudência, pois o que
se reformar algumas rubricas concernentes à Missa e ao estava em jogo era algo delicado e desafiante. Segundo
Ofício divino. Em seu motu próprio Abhinc duos a SC n.23, era tarefa da Igreja conservar a “sã tradição”
annos (23/10/1913), ele apresenta um esboço e, ao mesmo tempo, lançar-se num “progresso legítimo”,
programático de uma futura reforma do Breviário. Os conforme os novos tempos exigiam. E isso deveria ser
projetos de reforma dos dois principais livros litúrgicos feito “com acurada investigação teológica, histórica e
da Igreja – o Breviário e o Missal – ficaram paralisados pastoral acerca de cada uma das partes da liturgia
devido a várias circunstâncias imprevistas, de modo eucarística que devem ser revistas”. E mais, a Igreja
particular o estourar da primeira guerra mundial e a deveria levar em consideração “as leis gerais da
morte do pontífice. estrutura e do espírito da liturgia, a experiência adquirida
Coube a Pio XII dar novo impulso aos trabalhos nas recentes reformas litúrgicas”. Além disso, que se
da reforma já em andamento. Em 1946, ele forma uma tomasse o cuidado de não se introduzir inovações
comissão com a finalidade de fazer um levantamento indevidas no processo da reforma e que as novas formas
daquilo que até aquele momento havia sido realizado em surgissem daquelas já existentes. Obviamente, uma obra
prol de uma reforma litúrgica. Essa comissão ficou sob a de tal porte exigia tempo, discernimento e cautela; b) do
coordenação do então prefeito da Congregação dos ponto de vista didático e psicológico, seria prejudicial
Ritos, o cardeal Salotti. No ano de 1948, essa comissão exigir uma mudança imediata e radical. O clero e o povo
produziu um longo memorandum contendo as principais de Deus não teriam condições de compreender
diretrizes de uma concreta obra de reforma. Fator corretamente e assimilar de forma profunda e proveitosa
decisivo dessa fase foi a publicação da as mudanças propostas pela Igreja. Para comprovar a
encíclica Mediator Dei (20/11/1947). Com esta paciência e o cuidado maternal da Igreja em relação a
encíclica, Pio XII abre decisivamente a fase pré- seus filhos, basta conferir a lista dos documentos
conciliar da renovação litúrgica (JAVIER FLORES, romanos publicados entre os anos de 1964 e 1971, todos
2006, p.271-87). eles relacionados à reforma do novo Missal. E isso com
o desejo que o povo de Deus acolhesse com consciência
Nos anos imediatamente precedentes ao Concílio e proveito as propostas da reforma litúrgica
Vaticano II, havia, nos diversos setores da Igreja e entre (LENGELING, 1971, p.506-9).
os fiéis, um vivo desejo de uma reforma litúrgica,
particularmente no que dizia respeito à Missa. Em 25 de No âmbito do Consilium, doze grupos de trabalho
janeiro de 1959, o papa João XXIII manifesta, pela contribuíram para realizar o novo Missal. Três outros
primeira vez, sua intenção de convocar um Concílio. Em grupos se ocuparam de problemas comuns à reforma do
junho do mesmo ano, o secretário de Estado, cardeal Breviário e do Missal, tais como o calendário, as
76
rubricas e a festas particulares. Dos grupos que se ministerial, próprio do bispo e do presbítero que
encarregaram da reforma do Missal – leituras bíblicas, oferecem o sacrifício na pessoa de Cristo e presidem a
orações, prefácios, participação dos fiéis, comunhão sob assembleia do povo santo, evidencia-se no próprio rito,
duas espécies, concelebração, Missas votivas, cantos da pela eminência do lugar de função do sacerdote” (n.4).
Missa – não se pode deixar de fazer memória de nomes
Após um doloroso parto, nasce, enfim, o Missale
como A. Franquesa, M. Righetti, T. Schnitzler, P.
Romanum. Um momento novo e promissor na vida da
Jounel, C. Vagaggini, P. M. Gy, J. A. Jungmann, J.
Igreja, de sua identidade e missão, uma vez que o que
Gelineau, L. Bouyer e tantos outros. Graças a eles e à
está em jogo é a celebração do mistério da eucaristia. Ela
supervisão contínua de Paulo VI, tornou-se possível a
“contém todo o bem espiritual da Igreja, a saber, o
obra da reforma litúrgica com um de seus frutos mais
próprio Cristo, nossa páscoa e pão vivo, dando vida aos
fecundos e promissores: o Missal Romano.
homens através de sua carne vivificada e vivificante pelo
Sendo a reforma do Missal uma obra Espírito Santo (…). A Eucaristia aparece como fonte e
autenticamente eclesial e colegial, Paulo VI fez questão ápice de toda a evangelização” (CONCÍLIO
de que dela participassem todos os bispos. Sobre isso, VATICANO II, 1982, n.5).
recordamos aqui as palavras pronunciadas pelo pontífice
3 Aspectos teológicos e pastorais valorizados
na audiência concedida aos participantes da VII sessão
pelo novo Missal
plenária do Consilium, em dezembro de 1966. Após ter
falado da importância da música sacra, ele declara: Para que se tenha acesso ao manancial oferecido
pelo novo Missal e dele se tire um fecundo proveito,
Há outra questão, dentre todas, a de máximo interesse:
torna-se necessário conhecê-lo em sua teologia e
aquela que diz respeito ao Ordo Missae. Tomamos já
perspectivas pastorais. Sem dúvida, um dos melhores
ciência do estudo realizado e sabemos quantas eruditas e
meios para isso é um bom conhecimento dos princípios e
religiosas discussões estão relacionadas seja ao texto do
normas propostos pela IGMR. Essa Instrução quer
assim chamado Ordo Missae, seja à composição do novo
franquear o contato com o rico material eucológico
Missal e do calendário das celebrações. A coisa é de
presente no atual Missal – trata-se de peças ricas em
tanto peso e de tamanha importância universal que não
suas dimensões bíblica, teológica, litúrgica, espiritual,
podemos deixar de consultar o episcopado antes de
catequética e pastoral. Nesse sentido, a IGMR está longe
convalidar com a nossa aprovação as medidas propostas
de ser um simples aggiornamento de rubricas e de
por este Consilium. (LENGELING, 1971, p.506-9)
orientações pragmáticas; ao contrário, quer ser um rico e
De fato, a proposta de reforma da Missa foi permanente manual de formação litúrgica para o clero e
submetida ao exame dos bispos, que foram convocados o povo de Deus. Aqui convém lembrar a admoestação
para um Sínodo em Roma, no ano de 1967. Várias que nos vem do Concílio Vaticano II: “Com empenho e
indagações foram feitas e ricas sugestões foram dadas paciência procurem os pastores de almas dar a formação
para que, sem demora, se efetivasse a reforma do Missal. litúrgica e promovam também a participação ativa dos
Entretanto, seja durante o Sínodo, seja em momentos fiéis (…)” (SC n.19) (CONGREGAÇÃO PARA O
sucessivos, “não faltaram tentativas com o intuito de CULTO DIVINO2, 2003, n.11). Com esse escopo,
denegrir o novo Ordo Missae” (LENGELING, 1971, selecionamos nesta seção três temas de particular
p.512). Dele foi dito que continha “erros de uma nova relevância no Missal Romano e, por conseguinte,
teologia”, transferidos para o campo litúrgico, e que a enfatizados na IGMR.
proposta do novo Ordo, de que também o povo de Deus
3.1 Presença de Cristo
possa oferecer o sacrifício, obscurece nos fiéis a
realidade da “plenitude dos poderes sacerdotais” O tema da presença de Cristo na celebração
(LENGELING, 1971, p.512). As vozes contra o novo eucarística é enfaticamente abordado no número 27 da
Missal propalavam que a reforma havia desrespeitado IGMR:
três importantes pontos sustentados pela doutrina Na missa ou ceia do Senhor, o povo de Deus é
católica: a natureza sacrifical da missa, a questão da convocado e reunido, sob a presidência do sacerdote
presença real do Senhor nas espécies eucarísticas e o como representante de Cristo, para celebrar o memorial
tema da natureza do sacerdócio ministerial. Em três do Senhor ou sacrifício eucarístico. A esta assembleia
números seguidos do proêmio da IGMR, esses local da santa Igreja se aplica eminentemente a promessa
argumentos são enfrentados e esclarecidos do seguinte de Cristo: “Onde estiverem dois ou três reunidos em
modo: “A natureza sacrifical da Missa, que o Concílio meu nome, eu estou no meio deles” (Mt 18,20). Pois na
de Trento solenemente afirmou, em concordância com a celebração da missa, em que se perpetua o sacrifício da
universal tradição da Igreja, foi de novo proclamada pelo cruz, Cristo está realmente presente tanto na assembleia
Concílio Vaticano II” (n.2). “O admirável mistério da reunida em seu nome, como na pessoa do ministro, na
presença real do Senhor sob as espécies eucarísticas foi sua palavra e, ainda de uma forma substancial e
confirmado pelo Concílio Vaticano II e por outros permanente, sob as espécies eucarísticas.
documentos do Magistério Eclesiástico, no mesmo
sentido e na mesma forma com que fora à nossa fé pelo A doutrina contida nesse número encontra-se
Concílio de Trento” (n.4). “A natureza do sacerdócio eivada de teologia bíblica. Em passagens como Mt
77
28,19-20 e Jo 15,4-7, vemos o desejo de Jesus em estar & RUSSO, 2004, p.123). As conseqüências disso são
presente, de permanecer junto aos seus. Certamente a sentidas frequentemente nos âmbitos da catequese, da
experiência dessa presença era o coração do culto e da pastoral e da vivência eucarísticas, onde, aqui e ali,
experiência de fé da comunidade primitiva. Na época prevalece um devocionismo eucarístico concentrado de
apostólica e patrística “a presença do Senhor era uma forma exclusiva na adoração a Cristo presente na “hóstia
verdade profundamente vivida em todas as suas consagrada”, desconsiderando-se a riqueza e amplitude
dimensões” (LÓPEZ MARTÍN, 1996, p.112). Na das formas da presença de Cristo – todas elas reais – no
celebração litúrgica, de modo privilegiado, essa verdade mistério da celebração da Ceia do Senhor.
se experimentava em profundidade.
3.2 Assembleia e participação
O tema da presença de Cristo na liturgia tem sido
Conforme anteriormente verificado, uma das
objeto de constante interesse do Magistério da Igreja,
formas da presença de Cristo na celebração da ceia dá-se
sobretudo a partir de Pio XII[5]. É, no entanto,
precisamente na assembleia litúrgica; nela Cristo está
na Sacrosanctum Concilium, que ele é abordado de
realmente presente (cf. IGMR n.27). O próprio Deus
forma incisiva: Cristo está sempre presente em sua
toma a iniciativa de convocar e reunir o seu povo para
Igreja, especialmente nas ações litúrgicas: no sacrifício
dele fazer o sacramento da sua presença e da permanente
da missa, na pessoa daquele que preside o culto, nas
ação de Cristo em sua Igreja. A cada assembleia
espécies eucarísticas (cf. SC n.7). É no fôlego do
eucarística se aplica com toda a propriedade a promessa
Concílio que a IGMR enfrenta a questão da presença de
de Cristo aos seus discípulos: “Onde dois ou três
Cristo na celebração da ceia do Senhor – presença
estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio
variada e multíplice, devido à diversidade dos sinais com
deles” (Mt 18,20). Dessa forma, podemos dizer que a
que se que realiza a ação litúrgica: assembleia, ministro,
IGMR considera a assembleia cultual a partir de sua
Palavra, espécies eucarísticas. Certamente essa
sacramentalidade, isto é, daquilo que ela sinaliza e
panorâmica se deve, em grande parte, à teologia
realiza no âmbito do projeto salvífico de Deus em
conciliar. A Sacrosanctum Concilium afirma que, por
relação a todos os homens (BOSELLI, 2014, p.98-116).
meio da liturgia, especialmente pelo sacrifício
eucarístico, “se atua a obra da nossa redenção” (SC n.2). Essa assembleia é o autêntico sujeito da ação
A realização de uma obra de tal porte exige a “presença” litúrgica (PALUDO, 2003, p.67-75; AUGÉ, 1998, p.73-
de Cristo atuando através dos sinais litúrgicos. Com 4), uma realidade diferenciada e enriquecida por
efeito, aquilo que foi realizado “uma vez por todas” (Hb múltiplos dons e carismas que o Espírito Santo lhe
7,27), no evento histórico, se atualiza “todas as vezes” confere. Nela, cada batizado, membro do corpo de
(1Cor,11,26), na celebração da eucaristia. É a grandeza Cristo, é chamado a vivenciar o tríplice múnus que o
dessa presença em mystérion, isto é, operada pelo sacramento do batismo lhe confiou: profético, sacerdotal
Espírito Santo no corpo de Cristo, através dos sinais e régio. Na mesma dinâmica de um organismo
sacramentais, que provocou a genial formulação da estruturado e sob o prisma de um povo hierarquicamente
IGMR 27 (CORBON, 2004, p. 111-9). ordenado, a celebração eucarística conta
necessariamente com o exercício do sacerdócio
“Cristo está realmente presente” (“Christus
ministerial e do sacerdócio comum dos fiéis. Dessa
realiter praesens adest”) sempre que a Igreja celebra o
forma, o culto eucarístico é uma ação de toda a Igreja,
mistério da eucaristia. Notemos bem o tom dessa
onde cada um deve fazer somente aquilo que lhe
formulação da Instrução. A presença de Cristo é descrita
compete, de acordo com o dom que recebeu de Deus,
marcadamente em quatro formas distintas e integradas;
colocado a serviço da edificação da assembleia. “Este é
e, para cada uma delas, se aplica a força do advérbio
o povo adquirido pelo sangue de Cristo, reunido pelo
“realmente”, presença “real”. Isso não só está em
Senhor, alimentado por sua Palavra; povo chamado para
perfeita consonância com a revelação bíblica e a tradição
elevar a Deus as preces de toda a família humana, e dar
da Igreja, como também é um estupendo resgate de uma
graças em Cristo pelo mistério da salvação, oferecendo o
realidade que jazia sob os escombros por muitos séculos.
seu sacrifício; povo, enfim, que cresce na unidade pela
Sabemos que, na Idade Média, em virtude das
comunhão do Corpo e Sangue de Cristo” (IGMR 5).
controvérsias eucarísticas surgidas a partir dos séculos
VIII e IX, a atenção da teologia católica passou a se Como sujeito da ação celebrativa, toda assembleia
concentrar única e exclusivamente na forma da presença é insistentemente chamada a tomar parte no mistério
de Cristo nas espécies eucarísticas, ficando na penumbra celebrado, a dele participar. Nesse ponto, a IGMR ecoa
as demais formas elencadas pela nossa Instrução. Essa perfeitamente o apelo lançado pela
polarização absolutizante nos fez perder, de certa forma, Constituição Sacrosanctum Concilium, a qual, por sua
a visão de conjunto do mistério eucarístico. “O Concílio vez, outra coisa não faz senão levar a termo o grito
de Trento e a teologia pós-tridentina reafirmaram a fé da levantado pelo Movimento Litúrgico dos inícios do
Igreja na presença real de Cristo na eucaristia. A ênfase século passado. De lá até hoje, não se pode mais pensar
com a qual essa verdade de fé foi afirmada fez pensar só em celebração litúrgica senão a partir de categorias mais
nela como verdadeiramente real, como se os outros participativas, que se alinham perfeitamente às fontes do
modos de presença também não fossem reais” (SPERA
78
culto cristão e ao pensamento da tradição dos Padres da povo, e Cristo continua a anunciar o Evangelho. Por seu
Igreja (SANTO DOMINGO, 1993, n.9; BOTTE, 1978). lado, o povo responde a Deus com o canto e a oração”
(SC n.33). Continua a Instrução lembrando que, durante
Convém ressaltar que a profunda e ampla reforma
a proclamação da santa Escritura, “Deus fala ao seu
dos ritos e textos litúrgicos, proposta pelo Concílio
povo, revela o mistério da redenção e salvação, e oferece
Vaticano II e pela reforma pós-conciliar, sempre teve em
alimento espiritual; e o próprio Cristo, por sua Palavra,
mira melhorar a qualidade da participação dos fiéis. Já
se acha presente no meio dos fiéis”.
não faz parte do pensamento litúrgico contemporâneo
uma mera reforma rubrical ou casuística. Compete aos Resgatar a importância da Palavra de Deus no
bispos, de forma particular, orientar os fiéis nessa âmbito da assembleia e a sua índole proclamativa foi
perspectiva. Eles devem cuidar para que, “na ação uma das principais intenções do Concílio Vaticano II e
litúrgica, não só se observem as leis para a válida e lícita da reforma litúrgica encabeçada pelo papa Paulo VI,
celebração, mas que os fiéis participem dela consciente, levada adiante graças à empenhada atividade de seus
ativa e frutuosamente” (SC n.11). E matizando ainda a colaboradores. Certamente, essa reforma outra coisa não
realidade da participação como algo que brota do nosso pretendeu senão voltar às origens mais genuínas da
chamado batismal, vale a pena ainda ouvir o Concílio: celebração cristã no que diz respeito à primazia que
“É desejo ardente na mãe Igreja que todos os fiéis tinham os textos sagrados nas assembleias primitivas e
cheguem àquela plena, consciente e ativa participação na nas comunidades que floresceram a partir das instruções
celebração litúrgica que a própria natureza da liturgia dos Padres da Igreja; deles, a esse respeito, poderíamos
exige e à qual o povo cristão, ‘raça escolhida, sacerdócio citar vários testemunhos.
real, nação santa, povo adquirido’ (1Pd 2,9; cfr. 2,4-5),
A IGMR declara que é “melhor conservar a
tem direito por força do batismo” (SC n.14).
disposição das leituras bíblicas pela qual se manifesta a
Os nove capítulos que tecem a IGMR, direta ou unidade dos dois testamentos e da história da salvação”
indiretamente, se polarizam em torno da assembleia (n.57). Que precioso resgate este realizado pela reforma
reunida para a celebração eucarística e da participação litúrgica, sobretudo quando se conhece a práxis que
exigida por esse culto. Os vários elementos da Instrução vigorava na celebração da Missa até o Concilio
procuram estar a serviço dessas realidades a fim de que Vaticano: a ausência da proclamação dos textos
delas venha à tona o manancial que carregam em veterotestamentários. Toma-se agora uma clara
potência. O nosso documento tem uma grande consciência da “unidade dos dois testamentos”, que
preocupação em estabelecer um relacionamento “rito- formam uma única economia da salvação. Segundo a
assembleia” e “rito-participação”. Por essa razão, ele dinâmica do projeto de Deus, não se pode conceber a
procura esclarecer e precisar as funções que cada plenitude da revelação ocorrida em Cristo sem a
ministro, cada membro da assembleia, é chamado a comunicação que Deus faz de si mesmo, de diversos
desempenhar durante a celebração – uma verdadeira modos, na primeira aliança (cf. Hb 1,1).
orquestra que conta com a dedicação e participação de
A Sagrada Escritura, proclamada na Liturgia da
cada músico, cuja meta é a experiência da beleza e da
Palavra, evoca e torna atual toda a economia da salvação
harmonia, uma unidade gerada a partir de uma fecunda
que, em Cristo, teve o seu pleno cumprimento. Sugestivo
diversidade. À luz da IGMR, a própria disposição do
a esse respeito é o episódio dos discípulos de Emaús. Na
espaço e suas condições da celebração – dignidade do
tarde da Páscoa, o ressuscitado se coloca entre dois de
local, arte litúrgica, altar, cátedra, ambão, som, luz etc.)
seus discípulos que se encontravam desolados e
devem ser finalizadas à plena e ativa participação dos
incapazes de reconhecer o Senhor. Em determinada
fiéis. “Aquilo que aqui se ressalta – uma clara sensação
altura do percurso, Lucas diz que Jesus retoma a
de harmonia do conjunto – não é a correta
revelação veterotestamentária e dela se faz um
funcionalidade do rito, mas a sua finalização à
hermeneuta qualificado: “E, começando por Moisés e
assembleia, à Igreja reunida, que ali realiza o seu
por todos os profetas, interpretou-lhes em todas as
mistério, chamada a entrar no dinamismo da páscoa de
Escrituras o que a ele dizia respeito” (Lc 24,27). Dado
seu Senhor” (FALSINI, 1996, p.9).
importante a se notar é o fato de a economia da primeira
3.3 Sagrada Escritura aliança, toda ela, encontrar no Cristo pascal o seu
cumprimento, o que fica também bastante marcado no
A IGMR dá absoluta primazia à proclamação das
seguimento da perícope: “Era preciso que se cumprisse
leituras bíblicas na celebração da eucaristia: “A parte
tudo o está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos
principal da liturgia da palavra é constituída pelas
Profetas e nos Salmos” (v.44).
leituras da Sagrada Escritura” (n.55). Proclamar os
textos da Bíblia na assembleia dos fiéis – o que se A proclamação da Palavra na liturgia nos torna
costuma chamar de “Liturgia da Palavra” – é uma das “contemporâneos” do mistério de Cristo e nos coloca em
principais missões da Igreja (ekklesía, isto é, convocação comunhão com a sua presença. Celebrando o memorial
do povo da Aliança para acolher e responder a Palavra da promessa feita a Abraão e levada a cabo na
do Senhor), conforme tão bem nos fala o Concílio “plenitude dos tempos” (Gl 4,4), a Palavra anunciada na
Vaticano II: “Efetivamente, na liturgia Deus fala ao seu liturgia torna-se epifania da presença definitiva do
79
Emanuel, o “Deus conosco” (cf. Mt 1,23; Is 7,14). Ele do Concílio Vaticano II” e ainda a “pérola”, a “obra-
mesmo é o euangélion perenemente proclamado e prima” do Concílio:
tornado atual, evento de salvação para todos os que o
Mantenham contato íntimo com as Escrituras (…)
acolhem na fé.
Lembrem-se, porém, de que a leitura da Sagrada
A IGMR ressalta, com toda a propriedade, que a Escritura deve ser acompanhada da oração, para que seja
proclamação da Palavra na celebração eucarística se possível o colóquio entre Deus e o homem, pois com ele
prolonga na homilia, parte integrante da Liturgia da falamos quando rezamos, e a ele ouvimos, quando lemos
Palavra: “A homilia é uma parte da liturgia e vivamente os divinos oráculos (S. Ambrósio). (CONCÍLIO
recomendada, sendo indispensável para nutrir a vida VATICANO II, 2010, n.25).
cristã” (n.65). Via de regra, essa função compete àquele
4 Conclusão
que preside a assembleia, podendo também ser delegada
a outro concelebrante ou a um diácono (cf. n.66). Aquilo O livro princeps da reforma do Concílio Vaticano
que a Instrução propõe acerca da homilia é uma concreta II é, indubitavelmente, o novo Missal Romano. Em total
aplicação pastoral do que fora preconizado pelo Concílio respeito à tradição, ele se apresenta também, sob muitos
Vaticano II: “Recomenda-se vivamente a homilia, como aspectos, como algo verdadeiramente novo, que somente
parte própria da liturgia; nela, no decurso do ano pode ser avaliado através de um profundo conhecimento
litúrgico, são apresentados, a partir do texto sagrado, os (MARSILI, 1971, p.443). Por essa razão a Igreja é
mistérios da fé e as normas da vida cristã. Nas missas convidada a debruçar-se sobre ele e a investigar, sem
dominicais, porém, e nas festas de preceito, concorridas trégua e com afetuoso carinho, sua estrutura,
pelo povo, não se omita a homilia, a não ser por grave composição, riqueza e potencialidade. Ele reclama por
motivo” (SC n.52). ser conhecido na variedade de seus formulários e na
ampla margem de possibilidades catequéticas e
“Na celebração litúrgica é máxima a importância
pastorais. Valorizá-lo e aproximar-se dele com esse
da Palavra de Deus”, recorda-nos veementemente o
espírito de investigação, certo, não é uma obra fácil; mas
Vaticano II (SC n.24). Resgatar a importância da Palavra
é necessário que assim o seja para que dele se possa
de Deus no âmbito da assembleia reunida e a sua índole
fazer um uso profícuo e surpreendente em descobertas.
proclamativa foi uma das principais intenções do
“A multiplicidade dos textos e a flexibilidade das
Concílio e da reforma litúrgica pós-conciliar. De modo
rubricas, com efeito, permitem uma celebração viva,
que isso se verifica na proposta que chega do Ordo
sugestiva, espiritualmente eficaz, uma vez que podem
Lectionum Missae, que afirma que “a Palavra de Deus e
ser adaptadas às várias situações e diversos contextos
o mistério eucarístico foram honrados pela Igreja com a
das assembleias, sem que haja necessidade de se recorrer
mesma veneração, embora com diferente culto”
a artifícios e escolhas pessoais, muitas vezes arbitrárias,
(OLM n.10). E ainda: “A Palavra de Deus, proposta
que certamente abaixariam o tom da celebração”
continuamente na liturgia, é sempre viva e eficaz pelo
(CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO, 1971,
poder do Espírito Santo, e manifesta o amor ativo do
p.541).
Pai, que nunca deixa de ser eficaz entre os homens”
(OLM n.4). A IGMR coloca-se exatamente a serviço dessa
investigação. “Considerada em seu conjunto, a ela pode
[A liturgia] constitui, efetivamente, o âmbito
ser considerada como um dos melhores documentos da
privilegiado onde Deus nos fala no momento presente da
reforma litúrgica. De seu conhecimento depende tanto
nossa vida; fala hoje ao seu povo, que escuta e responde.
uma correta e eficaz pastoral da celebração, quanto um
Cada ação litúrgica está, por natureza, impregnada da
renovado estilo de celebração do máximo mistério da
Sagrada Escritura. (BENTO XVI, 2010, n.52)
nossa fé” (FALSINI, 1996, p.10). Como uma espécie
O desejo de escutar e responder a Deus, por meio de vademecum, com o qual podemos cultivar
de sua Palavra, sem dúvida alguma, tem sido uma familiaridade, a IGMR se presta não só a consultas
gratificante experiência eclesial na vida de nossas esporádicas para sanar eventuais dúvidas de rubricas,
comunidades, no Brasil e na América Latina em geral mas também se coloca diante de seu leitor como um
(PALUDO & D’ANNIBALE, 2005, p.143-91). São veículo que poderá conduzi-lo a profundas reflexões de
inúmeros os testemunhos dessa realidade. Podemos eclesiologia, cristologia e teologia eucarística; isso sem
afirmar que a forte aspiração do Concílio Vaticano II – mencionar, naturalmente, seu escopo catequético e
que, com largueza, os “tesouros da Bíblia” sejam abertos pastoral.
a todo o Povo de Deus”[6] – tem se realizado entre nós,
Tentar pincelar alguns aspectos mais relevantes do
ainda que, certamente, tenhamos um caminho a
Missal Romano foi a proposta de nosso contributo.
percorrer nessa direção.
Optamos por fazer um recorte metodológico em nossa
Concluamos este item com uma exortação abordagem, cientes de que o tema pode ser apresentado
conciliar, endereçada aos sacerdotes, catequistas, enfim, sob diversos ângulos. Privilegiamos alguns aspectos
a todos batizados. Ela se encontra na Dei Verbum, já teológicos e pastorais. A Institutio Generalis Missalis
denominada como “um dos mais preciosos documentos Romanum foi o instrumental que nos possibilitou o
vislumbre das potencialidades do Missal Romano. A
80
abordagem da Constituição Apostólica Missale CORBON, J. A fonte da liturgia. Lisboa: Paulinas,
Romanum e de um breve histórico e gênese do Missal se 2004.
alinharam à IGMR para o fim a que nos propusemos.
BENTO XVI. Exortação Apostólica Verbum
Luis Fernando Ribeiro Santana, PUC Rio, Domini. São Paulo: Paulinas, 2010.
Original português.
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DIVINO. Diretório sobre a piedade popular e [1] Isso pode ser verificado na proposta do próprio
liturgia. Princípios e orientações. São Paulo: Paulinas, conteúdo da Constituição do papa Paulo VI: PAULO
2003. VI, Constituição Apostólica “Missale Romanum”.
Missal Romano. São Paulo: Paulus, 1992.
81
[2] A esse respeito, conferir: CNBB. Animação da [5] Por essa razão achamos por bem elencar
vida litúrgica no Brasil. Documento 43. São Paulo: alguns documentos magisteriais que tratam dessa
Paulinas, 1989, n.184-195 e GRILLO, A. Introduzione questão: Encíclica Mediator Dei (1947),
alla teologia liturgica. Approcio teorico alla liturgia e Constituição Sacrosanctum Concilium (1963),
ai sacramenti cristiani. Padova: Messaggero si Encíclica Mysterium Fidei (1965),
Sant’Antonio, 2011, p. 407-8. Instrução Eucharisticum Mysterium (1967), Carta
Apostólica Mysterii Paschalis celebrationem (1969).
[3] No caso do Brasil temos uma a mais: a Oração
Eucarística V, do Congresso Eucarístico de Manaus. [6] SC n.51: “Prepare-se para os fiéis, com maior
abundância, a mesa da Palavra de Deus: abram-se mais
[4] Sobre o tema da mesa da Palavra e da mesa da
largamente os tesouros da Bíblia, de modo que, dentro
eucaristia na celebração eucarística do Dia do Senhor,
de um período de tempo estabelecido, sejam lidas ao
conferir: ALDAZÁBAL, J. (org.). A mesa da Palavra.
povo as partes mais importantes da Sagrada Escritura.”
Elenco das leituras da Missa. v. I. São Paulo: Paulinas,
2007, p.74-8; BIANCHI, E. Giorno del Signore. Giorno
dell’uomo. Per um rinnovamento della domenica. Casale
Monferrato: Piemme, 1999, p.167-71.
Batismo – Crisma
Sumário
1 A unidade da iniciação cristã 2.2.3 Batismo-crisma, sacramento de iniciação
2 Da lex orandi à lex credendi 2.3 A distinção entre o batismo e a crisma
2.1 A iniciação cristã no séc. III 3 A dimensão eclesial do batismo-crisma
2.2 A caracterização do batismo-crisma 3.1 A Igreja faz o batismo-crisma
2.2.1 Batismo-crisma, sacramento da fé 3.2 O batismo-crisma faz a Igreja
2.2.2 Batismo-crisma, sacramento da conversão 4 Referências bibliográficas
axioma, verificando como a Igreja ora (lex orandi),
conclui-se sobre o que devemos crer (lex credendi).
1 A unidade da iniciação cristã (TABORDA,
2012, p.25-28) 2.1 A iniciação cristã no século III
(BRADSHAW; JOHNSON; PHILLIPS, 2002;
Batismo e crisma são dois sacramentos, como se
JOHNSON, 1999, p.82-135; TRADIÇÃO
pode verificar na lista dos sete sacramentos definida pelo
APOSTÓLICA, 1971, p.40-55)
Concílio de Trento (cf. DH 1901). Mas são dois
sacramentos intimamente unidos. Juntamente com a A chamada “Tradição Apostólica”, outrora
eucaristia batismal são os sacramentos da iniciação atribuída a Hipólito de Roma (BRADSHAW, 1996), é
cristã. Como a eucaristia não é só sacramento de um antiquíssimo testemunho pormenorizado de como se
iniciação, aqui se tratará somente do batismo e da crisma processava a iniciação cristã nos sécs. III-IV. O texto
em sua unidade. Tal foi, nas origens, a prática da que apresenta a tradição do santo batismo pode ser
tradição eclesial conservada ainda hoje no Oriente, dividido em cinco cenas: 1) a apresentação e exame do
mesmo para crianças de colo. A prática atual da Igreja candidato ao batismo; 2) o catecumenato e a escolha dos
Latina é testemunhada desde o séc. V (cf. DH 215). Em que serão batizados; 3) a preparação próxima para o
consequência dessa prática, perdeu-se na Igreja Latina a batismo; 4) a celebração do batismo; 5) a vida cristã
visão da unidade dos sacramentos da iniciação cristã e subsequente. Embora se fale da “tradição do santo
tentou-se (em vão) desenvolver uma teologia da crisma batismo”, trata-se do que poderia ser chamado “o grande
independente do batismo. Só considerando a unidade batismo”, que inclui todos os ritos da iniciação cristã,
dos dois sacramentos é possível fazer uma teologia da inclusive crisma e eucaristia, pois a iniciação cristã
crisma que não “roube” algo do batismo, e vice-versa, constitui uma unidade composta por uma série de ações
uma teologia do batismo que não “perca” algo para que e ritos, pelos quais a pessoa se torna cristã. O processo
a crisma possa existir. tem como ponto de partida a vida pregressa (paganismo)
e como ponto de chegada a prática da vida cristã. É,
2 Da lex orandi à lex credendi (TABORDA,
portanto, um processo de conversão e de iniciação que
2015, p.23-47)
culmina no banho batismal, durante o qual o
Graças à volta às fontes, a teologia redescobriu na eleito professa a fé trinitária. Com isso, em sua estrutura
Patrística uma forma de refletir sobre os sacramentos, litúrgica mais tradicional, o batismo-crisma se desvenda
distinta da maneira usual da sacramentária sistematizada como sacramento da fé, da conversão e da iniciação
pela Escolástica. A Patrística parte da celebração vivida cristã.
em comunidade. A prática litúrgica da Igreja, tal como
2.2 A caracterização do batismo-crisma
foi “em toda a parte, sempre e por todos” celebrada
(TABORDA, 2012, p.39-45)
(Vicente de Lérins, † cerca de 450), contém uma
teologia implícita a ser desenvolvida. Segundo o antigo 2.2.1 Batismo-crisma, sacramento da
fé (TABORDA, 2012, p.55-78)
82
Com base na profissão de fé trinitária que de Deus. Ele é o “reino em pessoa” (autobasileia,
acompanha o banho batismal, o (grande) batismo é Orígenes † 254). O Reino de Deus é uma nova ordem de
sacramento da fé. A fé não é inata ao ser humano. Ela coisas, fundamentada em Deus, onde predominam
vem pela pregação do Evangelho (cf. Rm 10,17), a boa justiça, fraternidade, amor, igualdade, solidariedade…
notícia de que Deus se revelou em Cristo crucificado (cf. Quando Deus reina, a fraternidade não fica em palavras,
1Cor 1,23). No entanto, ele é escândalo para os mas passa à prática e se torna história. O batismo-crisma
“piedosos” e loucura para os “sábios”, pois significa que expressa e realiza a adesão ao Reino, segundo o Espírito
a salvação de Deus vem através de um rejeitado. Ambos de Jesus, aprendendo a obediência na sua entrega ao Pai
os grupos pretendem saber como é Deus e como ele se (cf. Hb 5,8).
deve revelar. Os “piedosos” só admitem que ele se
2.2.2 Batismo-crisma, sacramento
mostre no maravilhoso e extraordinário; os “sábios”, no
da conversão (TABORDA, 2012, p.79-109)
razoável. “Piedosos” e “sábios” personificam a falta de
fé. Coincidem em pretender saber perfeitamente quem é A “Tradição Apostólica” descreve o processo
Deus e querer dar normas a seu agir. batismal como mudança de costumes e hábitos,
passagem dos ídolos ao Deus verdadeiro (cf. 1Ts 1,9). A
Revelando-se no “crucificado pela injustiça” (cf.
idolatria não necessariamente tem feição religiosa, pois
Puebla), Deus manifesta sua proximidade, pois o último
consiste em pôr como o absoluto de nossa existência
aos olhos humanos é a fonte de salvação. Mas, com isso,
aquilo que é relativo. Tudo pode tornar-se ídolo. Hoje se
ao mesmo tempo ele revela o pecado e o perdão de
trata especialmente da riqueza, poder, prazer e saber,
Deus. “Nenhum dos poderosos deste mundo a conheceu
coisas boas em si, que se transformam em ídolo quando
[a sabedoria de Deus, Cristo crucificado]. Pois, se a
se faz delas o valor supremo da vida. Por isso, o cuidado
tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da
que se observa na “Tradição Apostólica” para que o
glória” (1Cor 2,8). Fora da fé é impossível reconhecer o
candidato abandone toda atividade que, de alguma
pecado e acolher o perdão. O pecado não é “boa
maneira, rescenda a idolatria.
notícia”, mas o Evangelho torna patente o pecado como
contraponto da fé. Como sacramento da fé, o batismo- Pertence à natureza do ídolo exigir sacrifícios
crisma sela a aceitação da fé e inclui, por isso mesmo, a humanos (cf. Dt 12,31; 2Rs 16,3; Os 13,2; Mq 6,7; Jr
remissão dos pecados como a outra face da “obediência 7,31 e 19,5; Ez 20,31 e 23,39), porque são forças de
da fé” (cf. Rm 1,5). morte. Para obtê-los, passa-se por cima dos direitos dos
outros, ou os próprios idólatras se sacrificam,
O reconhecimento do pecado permite captar a
desgastando-se para obter intimidade com o ídolo. O
incapacidade humana de salvar-se pelas próprias forças
Deus vivo, Pai de Jesus Cristo, ao contrário, quer a vida
(autossalvação). Nem a mera contemplação da verdade
do ser humano, e vida em abundância (cf. Jo 10,10).
(“sábios”), nem a observância abstrata da Lei
Desse modo, em Cristo se aproxima dos excluídos e dos
(“piedosos”) são capazes de salvar, mas a ação do
pecadores. Lança o desafio a que as pessoas mudem de
Espírito que impele o ser humano a “fazer a verdade”
vida, acercando-se de quem está à margem e é
(cf. Jo 3,21), aproximando-se de quem está à margem do
desprezado (cf. Lc 10,29-37). Só a partir de baixo se
caminho (cf. Lc 10,29-37) e realizando o bem concreto,
pode construir a igualdade exigida pelo Reino de Deus.
que agora se apresenta a ser feito, mesmo que a Lei
Jesus vai à frente (cf. Hb 12,2), abrindo caminho, para
pudesse lançar dúvidas sobre sua liceidade (cf. curas no
que se reconheça Deus nos pequenos e humilhados, pois
sábado).
ele próprio carregou a humilhação da morte de cruz fora
A fé no Evangelho é dom e presença do Espírito, dos muros da Cidade Santa (cf. Hb 13,12-13).
porque a criatura animada pelo Espírito não vive a partir
A conversão dos ídolos ao Deus verdadeiro é uma
de si, mas a partir de Deus. Essa vida nova é fruto de um
passagem da morte à vida. É Páscoa, como a existência
novo nascimento pela água e pelo Espírito (cf. Jo 3,5).
de Jesus (cf. Jo 16,28). O mistério pascal de Cristo só
Como para o banho batismal o catecúmeno tem que
pode ser entendido de modo correto quando visto como
despir-se para depois vestir novas roupas, assim
consequência de sua vida. Jesus morreu condenado à
também, pela fé e pelo batismo, o neófito se reveste do
morte, porque viveu da forma que viveu. Ressuscitou,
“homem novo, criado à imagem de Deus, na verdadeira
porque viveu e morreu daquela maneira. Ora, a vida e
justiça e santidade” (Ef 4,24). A nova criação que surge
obra de Jesus se resumem na fidelidade à sua missão de
da fonte batismal, por um lado, só se realizará
tornar presente o Reino de Deus, que exige que se
plenamente na consumação do mundo e, portanto, é
absolutize somente a Deus e nada mais, e ninguém mais
objeto da esperança; por outro lado, ela já está presente
(cf. Mt 13,44-46). Onde Deus é o único absoluto,
na novidade trazida por Cristo. O “velho homem” que
pratica-se o primado da justiça, da verdade, da
morre no batismo é o ser humano atingido pelo pecado,
solidariedade, da fraternidade e de todos os demais
até a raiz de sua existência histórica (cf. pecado original,
valores do Reino.
pecado social).
A mensagem do Reino que Jesus tematiza em suas
Se o Evangelho é o Cristo crucificado, este
ações e em suas palavras é, pois, uma mensagem de vida
concretiza em si, por sua obediência até a morte, o Reino
contra os ídolos da morte. Nada mais natural que os
83
ídolos se voltem contra Jesus e procurem eliminá-lo. Por Gl 2,4; 5,1; Jo 8,36). A liberdade segundo o Espírito de
sua atuação, Jesus entra na luta entre os ídolos e Deus e Cristo é serviço mútuo (cf. Gl 5,13), é dar espaço à
morre vítima desses ídolos. A Lei dos judeus liberdade dos outros, limitar-se por amor ao outro (cf.
absolutizada e o poder dos romanos divinizado são os 1Cor 8,13; Rm 14,20-21).
dois ídolos que determinam a condenação de Jesus. Por
2.2.3 Batismo-crisma, sacramento da iniciação
isso, a conversão dos ídolos ao Deus verdadeiro é
cristã (TABORDA, 2012, p.111-134)
participação na luta de vida e morte de Jesus contra os
ídolos. O processo batismal descrito na “Tradição
Apostólica” mostra também que é preciso aprender a ser
O mistério pascal é a passagem de Cristo da morte
cristão, porque, como disse Tertuliano, “não nascemos
à vida. O aspecto “vida” no mistério pascal é uma
cristãos; nós nos fazemos cristãos” (Apologeticus, c.18).
unidade estruturada, diferenciada em três momentos:
Esse processo consiste em que, pela ação do Espírito
ressurreição-ascensão-Pentecostes. Essas três etapas
Santo, o candidato seja introduzido no mistério de Deus
podem ser apresentadas num esquema temporal, como o
(mistagogia), pois somente no Espírito temos acesso ao
faz Lucas em sua dupla obra (Evangelho e Atos dos
Pai para clamar “Abbá” (cf. Rm 8,14-17; Gl 4,4-7). Sem
Apóstolos), bem como o final canônico de Marcos (cf.
ele, não é possível conhecer o Pai (cf. 1Cor 2,10-12)
Mc 16,9-20). Mas também podem ser vistos em sua
nem confessar o Filho (cf. 1Cor 12,3). Por isso,
unidade, como sintetiza João sob o conceito de
tradicionalmente o (grande) batismo recebeu o nome de
“glorificação” que entretece morte, ressurreição, ida ao
“iluminação”: só se pode ter acesso ao Mistério de Deus
Pai e envio do Espírito numa unidade inseparável.
pela luz do alto.
Mateus, embora não distinga os três momentos, supõe-
nos na única aparição de Jesus aos discípulos em um Como todo conhecimento entre pessoas, também o
monte da Galileia (cf. Mt 28,16-20). conhecimento de Deus só é possível na revelação mútua
que se autossupera no amor: é um tipo de conhecimento
A unidade diferenciada do mistério pascal de
não meramente intelectual; ele se dá na práxis do
Cristo possibilita que reconheçamos o mesmo para
seguimento de Jesus. Quem se converte a Cristo não
batismo e crisma. A passagem pela água – afogamento e
precisa apenas ser instruído numa doutrina, mas posto
fonte de vida – simboliza a participação no mistério
em contato com uma pessoa viva a quem se entrega no
pascal enquanto passagem da morte à vida
amor.
(ressurreição); os gestos simbólicos da crisma expressam
a comunhão ao mistério pascal de Cristo como novo O seguimento é concretização da fé em Jesus. Ele
Pentecostes (cf. a seguir em 2.3). vai à frente na caminhada (cf. Hb 12,2), mas junto com
ele, empós ele, vem toda a “nuvem de testemunhas” (cf.
Pela conversão a Cristo, o ser humano faz também
Hb 12,1), com as quais está prometido obtermos a
sua páscoa ou “passagem”, em Cristo e com Cristo, ao
“plena realização” (cf. Hb 11,40). O caminho do
Pai. Aceitar na fé o mistério pascal e aceitar participar
seguimento de Jesus é comunitário, eclesial. Seguir
dele só é possível se nos é dada a mesma liberdade de
Jesus significa assemelhar-se a ele (proximidade) por
Cristo, seu Espírito que transformou os apóstolos de
uma prática semelhante à dele (movimento
medrosos em audazes e valentes. Não por acaso,
subordinado), que tem um desenlace como o dele, na
Pentecostes é uma dimensão do mistério pascal de
cruz. Pois somente a partir da cruz se pode conhecer a
Cristo, o seu fecho e desfecho. Participar do mistério
Jesus e assim ao Pai, porque então realmente se rompem
pascal de Cristo é tomar parte em sua liberdade. Ora, a
todos os esquemas humanos sobre quem é Deus e sobre
liberdade está ali, onde está o Espírito do Senhor (cf.
o que significa ser Filho de Deus. A cruz é crise e
2Cor 3,17).
revolução na ideia de Deus. Deus, que se costuma
A conversão, dos ídolos ao Deus verdadeiro, não é considerar como poder, força e glória, mostra-se na
simplesmente um ato nosso: é dom de Deus, graça. Deus impotência, vergonha e ignomínia, no absurdo (kénosis).
tem a iniciativa no convite à conversão. A ação de Deus
O Espírito Santo nos leva a fixar os olhos em
desperta a liberdade humana e, despertando-a, a
Jesus, para nele vermos o Pai (cf. Jo 14,9) e
“carrega”, acompanha, liberta e salva dos ídolos, forças
caminharmos com ele, pois sua existência toda foi
de morte. A idolatria torna a liberdade humana escrava
passagem para o Pai (Páscoa). Seguir Jesus nos revela a
do pecado (cf. Jo 8,34). Pela conversão à fé cristã e pelo
face do Pai como nosso Pai, pois, sob ação do Espírito,
(grande) batismo, “fomos chamados à liberdade” (Gl
somos feitos “filhos no Filho” pela fé e pelo batismo.
5,13).
Nessa condição, podemos dirigir-nos ao Pai na
A liberdade apresenta dois polos: é liberdade
franqueza e liberdade (parrhesía) de filhas e filhos. Por
de e liberdade para. Negativamente, é liberdade de:
isso, ao rito da iniciação cristã pertence a “entrega do Pai
liberdade do pecado, da Lei, da morte, forças de morte
Nosso” que é aprendizado da oração cristã com suas
próprias da idolatria. Positivamente, ela se concretiza
características próprias, diferentes das de outras
como liberdade para Deus (cf. Rm 6,18-22; Gl 5,13;
religiões. A oração especificamente cristã sempre se
1Pd 2,16; 1Cor 7,21s), liberdade para o outro (cf. Gl
dirige ao Pai, pela mediação do Filho no Espírito Santo,
5,13s.22s; 1Cor 6,12), liberdade em Cristo e por ele (cf.
84
porque não é a oração de um estranho, mas de alguém A característica do sacramento é sua dimensão
que está inserido no mistério de Deus e no qual habita eclesial (→Eclesialidade dos sacramentos). Há uma
Deus por seu Espírito (cf. 1Cor 6,19). De fato, pelo relação mútua entre Igreja e sacramento, expressa no
Espírito Santo estamos mergulhados no mistério do axioma “a Igreja faz os sacramentos; os sacramentos
Deus que se aproximou de nós em Jesus Cristo. Ao Pai, fazem a Igreja”.
pelo Filho, no Espírito Santo, a oração do cristão é a
3.1 A Igreja faz o batismo-crisma (TABORDA,
graça de participar da dinâmica mesma da vida trinitária.
2012, p.215-230)
Salientem-se dois elementos essenciais da oração
A missão da Igreja está expressa em Mt 28,19-20,
cristã: a consciência de não sabermos orar como convém
em termos de fazer todos os povos discípulos de Jesus,
e, por isso mesmo, deixar que o Espírito ore por nós
batizando-os. Batizar é intrínseco ao ser da Igreja. A ela
“com gemidos inenarráveis” (cf. Rm 8,14-27); e não
cabe não só iniciar na fé pelo (grande) batismo, mas
fugir da realidade para orar, mas dirigir-nos ao Pai a
também propiciar aos batizados um crescimento
partir de nossa inserção na história humana, ouvindo e
constante na fé recebida no batismo, porque, embora a fé
fazendo eco aos gemidos da criação (cf. Rm 8,22-23).
seja um ato pessoal, livre e intransferível, é
2.3 A distinção entre o batismo e a crisma essencialmente comunitário. Sendo a fé adesão ao
(TABORDA, 2012, p.145-150; 187-211) mistério inesgotável de Deus, ninguém é capaz de vivê-
la plenamente; tem que confrontar-se sempre com outras
Até agora foi explicitada a graça comum ao
formas de acolher e viver o Deus que se autocomunica
batismo e à crisma, que pode ser resumida como
por meio de Cristo no Espírito Santo.
participação no mistério pascal de Cristo e, portanto, na
vida trinitária. Ora, o mistério pascal com seus três A Igreja é criada pelo Espírito de Cristo que
momentos (ressurreição, ascensão e Pentecostes) é uma desperta a fé, move à conversão, atua na iniciação. O
unidade diferenciada. Da mesma forma os sacramentos Espírito Santo é o Espírito da unidade e da diversidade.
da iniciação, em sua unidade, diferenciam-se em batismo No batismo-crisma ele eleva os iniciados à dignidade de
e crisma (e eucaristia). Batismo e crisma, pelos gestos filhos e filhas de Deus. Confere-lhes uma dignidade que
simbólicos com que se realizam, remetem a dois torna iguais todos os membros da Igreja. Mas, como
momentos do mistério pascal de Cristo: morte- Espírito de vida, “na variedade dos dons celestes e na
ressurreição (passagem da morte à vida) e Pentecostes diversidade dos membros”, faz “crescer com admirável
(efusão do Espírito para o testemunho). A passagem da unidade” o Corpo de Cristo (prece de ordenação
morte à vida é simbolizada no banho batismal, pois diaconal da liturgia romana). Como os membros do
afogar-se leva à morte, mas desse mergulho na morte se corpo não são iguais, também cada membro da Igreja
sai com uma vida nova. Pentecostes é significado pelo tem seu carisma a ser vivido harmonicamente com os
gesto simples e complexo da imposição das mãos, demais carismas, pois todos provém do Espírito que nos
assinalação e unção com óleo perfumado. A imposição foi dado no (grande) batismo.
das mãos é um gesto de bênção; no caso, a bênção por
3.2 O batismo-crisma faz a Igreja (TABORDA,
excelência que é o Espírito (cf. Lc 11,13). A assinalação
2012, p.231-248)
significa pertença a alguém e, biblicamente, também é
sinal de salvação para quando do juízo escatológico de Ao dar a todos os cristãos igual dignidade, o
Deus (cf. Ez 9,4-6; Ap 7,3 e 9,4). Na crisma, significa (grande) batismo cria a Igreja como comunidade de
que já agora pertencemos a Deus (cf. 2Cor 1,22), iguais. Gl 3,26-28 professa que a Igreja, pelo batismo, é
embora essa pertença ainda não se manifeste em uma comunidade onde todas as diferenças sociais,
plenitude (cf. 1Jo 3,2). A unção indica que pelo batismo- culturais, religiosas, nacionais, raciais e de gênero são
crisma somos sacerdotes, profetas e reis. Como, porém, superadas ou, pelo menos, deveriam sê-lo, porque todos
se trata de um óleo perfumado, o sacramento nos foram revestidos de Cristo. O que conta, a partir do
constitui, por nossa própria vida, testemunhas do batismo, não são os papéis sociais, culturais e religiosos,
Ressuscitado, pois o perfume permite perceber a mas o discipulado e o poder concedido pelo Espírito.
presença de alguém, mesmo sem que se veja a pessoa. Conferindo igualdade a judeus e gregos, escravos e
livres, homens e mulheres, a Igreja vive numa constante
Os gestos simbólicos distinguem os dois
tensão, criada pelo batismo, entre a igualdade em Cristo
sacramentos (batismo e crisma), mas é na sua unidade
e as desigualdades criadas pela sociedade.
que eles devem ser compreendidos como participação no
mistério pascal. A eucaristia, terceiro sacramento da A igualdade batismal tem sua base na dignidade
iniciação, tem uma característica específica: é o de sacerdotes, profetas e reis, comum a todos os
sacramento cotidiano de nossa entrega com Cristo ao Pai batizados. Esse tríplice múnus se resume em dar
pela ação do Espírito Santo. Dá-nos parte no mistério testemunho da fé. Como sacerdote, o cristão proclama os
pascal enquanto sacrifício. grandes feitos de Deus em Cristo Jesus (cf. 1Pd 2,9),
adora Deus com sua vida, rejeitando os ídolos históricos
3 A dimensão eclesial do batismo-crisma
da riqueza, do poder, do prazer e do saber, descobre a
imagem de Deus ultrajada no rosto do pobre. Como rei,
85
concretiza o Reino na busca da justiça e do direito, CODINA, V.; IRARRÁZAVAL, D. Sacramentos
combatendo os ídolos que, para viverem, exigem a da iniciação: água e Espírito de liberdade. Petrópolis:
morte do pobre, lutando por implantar a igualdade Vozes, 1988.
batismal, para além de toda diferença de raça, posição
CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS –
social e gênero, o que, nas condições concretas da
Comissão de Fé e Constituição. Batismo – Eucaristia –
história, só se faz privilegiando quem é descartado.
Ministério: convergência da fé. Rio de Janeiro: Tempo e
Como profeta, desmascara a falta de fé como egoísmo e
Presença, 1983.
negação do outro, especialmente do pobre, mostra-se
livre para Deus e para o próximo, denuncia toda JOHNSON, M. E. The Rites of Christian
desfiguração da imagem de Deus no ser humano, Initiation: Their Evolution and Interpretation.
resultante da exploração de uns pelos outros. Collegeville: The Liturgical Press, 1999.
Embora a Igreja seja una pelo batismo, existe em OÑATIBIA, I. Batismo e confirmação:
diversas confissões, devido ao pecado dos cristãos. Sob sacramentos de iniciação. São Paulo: Paulinas, 2007.
esse ponto de vista, vale o que declarou o Documento de TABORDA, F. Nas fontes da vida cristã: uma
Lima (1982): “Nosso único batismo em Cristo constitui teologia do batismo-crisma. 3.ed. revista. São Paulo:
um apelo dirigido às Igrejas, para ultrapassarem suas Loyola, 2012.
divisões e manifestarem visivelmente sua comunhão”,
pois o batismo “nos une ao Cristo na fé” e é, assim, “um ______. O memorial da Páscoa do Senhor:
vínculo fundamental de unidade” (CONSELHO ensaios litúrgico-teológicos sobre a eucaristia. 2.ed.
MUNDIAL DE IGREJAS, 1983, n.6, p.17). revista e ampliada. São Paulo: Loyola, 2015.
Francisco Taborda, SJ. FAJE, Belo Horizonte TENA, P.; BOROBIO, D. Sacramentos da
(Brasil). Texto original em português. iniciação cristã: batismo e confirmação. In: BOROBIO,
D. A celebração na Igreja. V.2. São Paulo: Loyola,
4 Referências bibliográficas 1993. p21-141.
BRADSHAW, P. F.; JOHNSON, M. E.; TRADIÇÃO APOSTÓLICA DE HIPÓLITO DE
PHILLIPS, L. E. The Apostolic Tradition: a ROMA: liturgia e catequese em Roma no séc. III.
Commentary. Minneapolis: Fortress Press, 2002. Tradução da versão latina e notas por Maria da Glória
BRADSHAW, P. F. Re-dating the Apostolic Novak; introdução de Maucyr Gibin. Petrópolis: Vozes,
Tradition: Some Preliminary Steps. In: BALDOVIN, J.; 1971.
MITCHELL, N. (ed.). Rule of Prayer, Rule of
Faith. Essays in Honor of Aidan Kavanagh, OSB.
Collegeville: The Liturgical Press, 1996. p.3-17.
CASPANI, P. Renascer da água e do Espírito: Ritual da Iniciação Cristã de Adultos (RICA)
batismo e crisma, sacramentos da iniciação cristã. São Sumário
Paulo: Paulinas, 2013.
1 Introdução 4.3 A terceira etapa da iniciação
2 A necessidade pastoral atual 4.3.2 Os sacramentos (àSacramentos, centro da liturgia)
3 A estrutura 4.3.2 A mistagogia
4 O conteúdo 4.3.3 Orientações e adaptações
4.1 A primeira etapa da iniciação 5 Conclusão
4.1.1 O pré-catecumenato Referências
4.2 A segunda etapa da iniciação
inscrição dos eleitos e protocatequese (homilia) pelo
1 Introdução bispo, durante a quaresma; 4) catequese mistagógica,
durante o tempo pascal. (CAVALLOTTO, 1996, p.8-
Foi a pedido do Concílio Vaticano II (SC, n.64; 11).
CD, n.14; AG, n.14) que se restabeleceu o catecumenato
de adultos, culminando, após a consideração das A partir do século V, com a conversão massiva de
experiências de catecumenato em diversos países, na cristãos, as exigências pastorais acabaram por
publicação do RICA, em 1972. O próprio desejo simplificar drasticamente a iniciação cristã. Aprofundou-
conciliar de restaurar o catecumenato expressa a se paulatinamente a separação entre liturgia e catequese.
consciência de que a iniciação cristã (à INICIAÇÃO Perdeu-se a unidade dos três sacramentos da iniciação:
CRISTÃ) de então havia perdido, ao menos em parte, batismo, crisma e eucaristia (ANCILLI, 1985, p.200).
seu sentido originário. Por fim, até o Concílio Vaticano II a catequese ficou
praticamente reduzida à transmissão de verdades
De fato, a iniciação cristã compreendia, até o conceituais, em detrimento da linguagem litúrgico-
século V, as seguintes etapas: 1) O anúncio de Jesus simbólica da patrística; e os sacramentos passaram a ser
Cristo para suscitar a fé e a conversão; 2) o compreendidos a partir de categorias filosóficas tais
catecumenato, com duração aproximada de três anos; 3)
86
como hilemorfismo, causalidade, substância etc. e outra vez “volta às fontes” de sua própria razão de
(CHAUVET, 1988, p.87). É bem verdade que nesse existir, porque ela é “ecclesia semper initianda”
longo período não faltaram tentativas isoladas de (OÑATIBIA, 2000, p.6). Daí a importância da unidade
restauração da iniciação cristã, mas não alcançaram entre catequese, iniciação cristã e liturgia (DGC, n.66).
grande êxito. Enfim, a iniciação cristã é algo que diz respeito a toda a
Além disso, por detrás do restabelecimento do comunidade cristã (RICA, n.41).
catecumenato, encontra-se não uma mera volta ao 2 A necessidade pastoral atual
passado da iniciação cristã, mas a recuperação de um Considerando-se o fato inegável de que uma
dado fundamental daquele período, a centralidade do porção significativa dos batizados católicos não teve
mistério pascal de Cristo. Obviamente que essa propriamente uma iniciação cristã; que os países de
centralidade do mistério esteve sempre “suposta”, mas missão e até os países que outrora foram
nem sempre “significada”. Essa sutil distinção entre predominantemente católicos e que agora se deparam
“supor” (supponieren) e “significar” (bezeichnen), com um significativo contingente de adultos que se
proposta por K. Rahner (RAHNER, 1967, p.145-7), nos convertem ao cristianismo católico; que ainda persiste,
ajuda a perceber que, de tanto estar implícita, a em nossos dias, uma compreensão débil da vida cristã
centralidade do mistério pascal de Cristo acabou por como frequência à liturgia e defesa de algumas verdades
ficar em segundo plano, se não até esquecida, como de fé, sem a consequente implicação ética; que a própria
insinua o próprio Concílio (SC, n.21). liturgia é muitas vezes desfigurada pelo ritualismo e
Ora, é somente a partir do encontro pessoal com o rubricismo; e que ainda permanece certo distanciamento
mistério de Cristo que se inicia o processo da conversão entre catequese, iniciação cristã e liturgia, compreende-
que culminará na adesão livre à sua pessoa e missão, se, ao menos em parte, por qual razão ainda urge que a
como explicita a Introdução ao Rito da Iniciação Cristã comunidade cristã “volte às fontes”.
de Adultos, n.1: Se por um lado essa “volta às fontes”, alentada
Este rito de iniciação cristã é destinado a adultos que, pelos padres conciliares, pode ser compreendida como
iluminados pelo Espírito Santo, ouviram o anúncio do um apelo para retornar-se à tradição mais antiga da fé,
mistério de Cristo e, conscientes e livres, procuram o por outro, pode-se também compreendê-la, de modo
Deus vivo e encetam o caminho da fé e da conversão. ainda mais radical, como volta às fontes dos sacramentos
Por meio dele, serão fortalecidos espiritualmente e da iniciação cristã e, por conseguinte, à fonte batismal. É
preparados para uma frutuosa recepção dos sacramentos aqui que o RICA oferece para toda a comunidade cristã
no tempo oportuno. uma “rica” possibilidade de renovação, na medida em
Nessa breve introdução descortina-se todo um que sua progressiva implementação pode conduzir todos
horizonte de “volta às fontes”, como desejavam os os fiéis a reencontrarem não apenas as razões de sua fé,
padres conciliares. A menção à iluminação pelo Espírito mas o próprio “autor e consumador da fé” (Hb 12,2).
refere-se ao contexto profundamente mistagógico da 3 A estrutura
iniciação cristã dos primeiros séculos, caracterizada, Quanto à estrutura, pode-se notar que cada
entre outras coisas, por uma pneumatologia e por uma conferência episcopal fez pequenas adaptações, em
cristologia mais explicitamente desenvolvidas. A função das necessidades pastorais locais.
expressão “ouviram o anúncio” refere-se à
evangelização ou anúncio querigmático, que antecedia a Em linhas gerais a estrutura básica do RICA é a
iniciação cristã e a ela conduzia. Logo, a primazia do seguinte:
processo de atração e conversão à fé cristã passava pelo
anúncio do kerygma e não tanto pelo anúncio de Observações gerais preliminares sobre a
verdades abstratas. Por fim, o indicador de uma iniciação cristã
verdadeira iniciação à fé cristã se dava não tanto pelo Introdução ao Rito da iniciação cristã de adultos
domínio cognitivo da doutrina, mas, sobretudo, pela O catecumenato e suas etapas
conversão ética, testemunhada particularmente pelos que 1ª etapa:
mais proximamente acompanhavam o catecúmeno. Entrada: acolhida, apresentação, exorcismos,
entrega dos Evangelhos;
O RICA, portanto, não é mera coletânea de
Catecumenato: exorcismos, bênçãos, unção,
rubricas, gestos e palavras normativamente
entrega do Símbolo, entrega da Oração do
estabelecidas. É, antes de tudo, um itinerário que nasceu
Senhor;
no seio das primeiras comunidades cristãs, visando
2ª etapa: Tempo da purificação e iluminação:
conduzir não apenas aquele que deseja aderir à fé cristã,
Eleição
mas, juntamente com ele, toda a comunidade dos fiéis ao
Tríplice escrutínio
mergulho no mistério pascal de Cristo. Trata-se do
3ª etapa: Sacramentos da iniciação cristã
caráter eminentemente soteriológico da iniciação cristã.
Batismo, confirmação e eucaristia
Por isso o ritual não se destina tão somente ao
Mistagogia
catecúmeno, mas principalmente à comunidade cristã
(RICA, Observações preliminares gerais, n.7) que uma
87
Ritos especiais: ritos simplificados/abreviados, somente após essa experiência inicial de ser alcançada
para adultos já batizados, para crianças, para pela graça que a pessoa é acolhida ao catecumenato.
acolhida dos batizados válidos em outras Essa preocupação com a evangelização prévia é bastante
tradições cristãs consequente, na medida em que, ao ignorá-la, corre-se o
risco de reduzir novamente a iniciação cristã à
Na própria estrutura do RICA já aparece apropriação de verdades doutrinais e manter o
claramente o resgate da gradualidade do processo de catecúmeno à margem da experiência salvífica do
introdução ao mistério da fé cristã. Além disso, o RICA encontro com o mistério de Cristo, especialmente
demarca claramente a necessidade de um rito distinto naqueles casos em que as motivações para a conversão
para o batismo de adultos e outro para o de crianças, são espúrias.
realidade que pastoralmente ainda não havia sido 4.1.2 O catecumenato
solucionada em todos os lugares.
A fim de evitar equívocos sobre o significado da
No que tange à estrutura e ao conteúdo, o RICA se etapa do pré-catecumenato, o RICA orienta para que se
inspira basicamente na Tradição Apostólica de Hipólito observe no candidato ao catecumenato os sinais ou as
(séc. III) e no Sacramentário Gelasiano (séc. V). seguintes condições: o “início de conversão, de fé e de
4 O conteúdo senso eclesial” (RICA, n.68), o “desejo de mudar de
vida e entrar em relação pessoal com Deus em Cristo”, o
As Observações preliminares gerais que abrem o “costume de rezar”, e a “experiência da comunidade e
RICA se destinam basicamente a apresentar uma do espírito dos cristãos” (RICA, n.15). Só então o
profunda teologia do batismo, instruções práticas sobre candidato poderia ser acolhido ao catecumenato.
os papéis de cada um com relação ao rito e ao batizado,
as exigências básicas para a realização do batismo e Os ritos relativos ao catecumenato são divididos
possíveis adaptações. Especialmente o primeiro em dois momentos, o da celebração de entrada no
parágrafo é de uma capacidade de síntese teológica catecumenato e os ritos relativos ao tempo do
difícil de superar: catecumenato propriamente dito. É importante notar que
o catecumenato pode durar vários anos (RICA, n.98), ao
Os seres humanos, libertos do poder das trevas, graças longo dos quais os vários ritos propostos para o
aos sacramentos da iniciação cristã, mortos com Cristo, catecumenato são distribuídos. Especial lugar cabe às
com ele sepultados e ressuscitados, recebem o Espírito celebrações da Palavra de Deus que têm por finalidade:
de filhos adotivos e celebram com todo o povo de Deus gravar nos corações dos catecúmenos o ensinamento
o memorial da morte e da ressurreição do Senhor. recebido quanto aos mistérios de Cristo e a maneira de
A longa Introdução (RICA, n.1-67) mescla viver que daí decorre, levá-los a saborear a oração e
orientações práticas, teologia da iniciação e uma introduzi-los na liturgia da comunidade (RICA, n.106).
verdadeira catequese mistagógica. Destacam-se o acento A partir do rito de entrada no catecumenato, os
no papel do testemunho e da participação da catecúmenos “já fazem parte da família de Cristo”
comunidade cristã para a iniciação dos catecúmenos; as (RICA, n.18). Daí a importância da ativa participação de
etapas e “tempos de informação e amadurecimento”; a toda a comunidade (RICA, n.70). Essa celebração de
recomendação de que determinadas etapas aconteçam acolhida ao catecumenato compreende apenas a
concomitantemente ao ciclo pascal (RICA, n.1-8). recepção dos candidatos, que fazem uma primeira
Além das observações prévias e da introdução adesão a Cristo, a assinalação da fronte e dos sentidos, a
geral, o RICA apresenta antes de cada rito uma série de Liturgia da Palavra e a despedida.
novas orientações e observações. Todas elas serão Durante o período do catecumenato propriamente
analisadas conjuntamente aqui segundo a etapa da dito, vários meios são oferecidos ao catecúmeno para
iniciação a que se referem. sua maturação na fé: 1) a catequese, marcada pela
Para a Liturgia da Palavra, o RICA oferece uma liturgia, pelo conhecimento dos dogmas e preceitos e,
abundante e criteriosa seleção de textos bíblicos mais fundamentalmente, pela “íntima percepção do mistério
adequados ao contexto teológico de cada rito, além de da salvação”; 2) a familiaridade com as práticas da vida
acolher também algumas sugestões do Elenco das cristã: testemunho, oração, caridade, progressiva
Leituras da Missa (RICA, n.92). conversão; 3) ritos litúrgicos e celebrações da Palavra
para os catecúmenos; 4) a cooperação, através do
4.1 A primeira etapa da iniciação
testemunho e da profissão de fé, com a missão da
4.1.1 O pré-catecumenato evangelização; 5) os exorcismos, bênçãos e unções; 6) a
escolha de padrinhos (RICA, n.19-20; 98-105).
Merece especial menção a importância dada
na Introdução à evangelização ou pré-catecumenato. O As entregas do Símbolo e da Oração do Senhor
texto insiste no anúncio querigmático como o caminho podem acontecer durante o catecumenato ou serem
pelo qual o Espírito conduz a pessoa “simpatizante” adiadas para a segunda etapa, conforme se julgar mais
(RICA, n.12) à experiência da fé (RICA, n.9-10). É oportuno (RICA, n.125).
88
4.2 A segunda etapa da iniciação Esta etapa compreende os sacramentos do
batismo, confirmação e eucaristia e conclui-se com a
Segundo a Introdução, o tempo da purificação e
mistagogia. O RICA, embora não se estenda muito sobre
iluminação, que normalmente deveria ocorrer durante a
a teologia dos sacramentos, apresenta de maneira
quaresma, se consagra a “preparar mais intensamente o
sintética o sentido teológico de cada um dos três
espírito e o coração” (RICA, n.22) dos catecúmenos.
sacramentos. Sobre o batismo, destaca o seu caráter
a) Eleição ou inscrição do nome trinitário, a aliança que se realiza com Cristo, a
É nessa etapa que são “eleitos” aqueles participação em seu mistério pascal e em sua filiação e a
catecúmenos que já alcançaram a maturidade suficiente consequente agregação ao povo de Deus, a importância
da fé e da caridade e desejam participar dos sacramentos do símbolo da água, dos ritos da renúncia e da profissão
da iniciação cristã. A partir desse momento, esses de fé (RICA, n.28-33, 210-211). Sobre a confirmação,
catecúmenos passam a ser chamados “eleitos”, acentua-se a efusão do Espírito como em Pentecostes e o
“copetentes” ou “iluminados”, referindo-se à luz da fé nexo entre os sacramentos da iniciação (RICA, n.34-35,
(RICA, n.22-24). A eleição marca o fim do 229-231). E sobre a Eucaristia, destaca-se a elevação dos
catecumenato propriamente dito e só deve acontecer neófitos à dignidade do sacerdócio real, participando da
após a aprovação do catecúmeno por aqueles que o “ação sacrifical” e recitando a Oração do Senhor, e, por
acompanharam de perto, entre eles, os padrinhos, que, a fim, o sentido da comunhão do Corpo e Sangue do
partir de agora, assumem diante da comunidade sua Senhor como confirmação dos dons recebidos e
missão (RICA, n.133-139). antegozo dos eternos (RICA, n.36).
A celebração da eleição, que deveria ocorrer no Os três sacramentos da iniciação cristã são
primeiro domingo da Quaresma, compreende a Liturgia realizados de uma só vez, preferencialmente durante a
da Palavra, a apresentação dos candidatos, o exame e a Vigília Pascal. O RICA destaca a importância de se
petição dos candidatos, as orações e a despedida (RICA, manter o rito da bênção da água, mesmo que os
n.140-150). sacramentos não ocorram na Vigília Pascal, dada a
função mistagógica dessa bênção.
b)Tríplice escrutínio
4.3.2 A mistagogia
A “purificação” própria desta etapa consiste em
acentuar mais a vida interior que a catequese, nos Quanto ao tempo da mistagogia, ele é definido
exercícios do exame de consciência e da penitência, como um tempo de “conhecimento mais completo e
culminando nos escrutínios realizados aos domingos e frutuoso dos ‘mistérios’ através das novas explanações e
que levam os eleitos a uma maior libertação do pecado e sobretudo da experiência dos sacramentos recebidos”
do mal. Já a “iluminação” refere-se especialmente à fé, (RICA, n.38). O que se deseja é que os neófitos
ritualizada pela entrega do Símbolo, e a acolhida do adquiram um “novo senso da fé, da Igreja e do mundo” e
espírito de filiação que permite chamar Deus de Pai e estabeleçam um relacionamento mais proveitoso e
que é ritualizada pela entrega da Oração do Senhor estreito com os fiéis da comunidade (RICA, n.235). À
(RICA, n.25-26). mistagogia destinam-se especialmente as “missas pelos
neófitos” ou as missas dos domingos de Páscoa (RICA,
O termo “escrutínio” significa, etimologicamente, n.236).
o ato de examinar rigorosamente. No contexto do rito, o
exame é feito pela própria Trindade, que nas preces O término do tempo da mistagogia coincide com o
pelos eleitos e nos exorcismos é invocada para sondar o término do tempo Pascal.
eleito, purificá-lo, orientá-lo em seus propósitos, 4.3.3 Orientações e adaptações
despertar-lhe a consciência do pecado e estimular-lhe a
A Introdução conclui-se com orientações práticas
vontade e os desejos (RICA, n. 154-164). Por fim, os
e exortações sobre a participação da comunidade em
três escrutínios, realizados durante o 3º, 4º e 5º
todo o processo da iniciação cristã, a começar pela
domingos da Quaresma, são tematizados em função dos
evangelização ou pré-catecumenato. Estende-se sobre a
respectivos Evangelhos: samaritana (água viva), cego de
função e importância do introdutor, do padrinho, do
nascença (luz) e a ressurreição de Lázaro (ressurreição e
bispo local, dos presbíteros, dos diáconos e dos
vida).
catequistas. E conclui com orientações sobre as
A etapa da purificação e iluminação se conclui adaptações possíveis do ritual da iniciação, conforme as
com uma celebração prevista para o Sábado Santo, antes exigências pastorais de cada lugar; e sobre os tempos
da Vigília Pascal. Trata-se dos ritos da recitação do mais adequados para cada etapa (RICA, n.41-67).
Símbolo, do Éfeta (Ouvir) e da escolha do nome cristão,
O RICA oferece uma série de ritos adaptados às
se for o caso. (RICA, n.194-203)
diversas circunstâncias: 1) simplificado para os casos em
4.3 A terceira etapa da iniciação que o candidato não pode percorrer todas as etapas da
4.3.1 Os sacramentos (Sacramentos, centro da iniciação (RICA, n.240-277); 2) abreviado para adultos
liturgia) em perigo de morte (RICA, n.278-294); 3) para adultos
batizados na infância e que não receberam a devida
89
catequese (RICA, n.295-305); 4) para iniciação de respeito é o rito de entrada no catecumenato, ao sugerir a
crianças em idade de catequese e que não foram seguinte alocução àquele que preside a celebração:
batizadas (RICA, n.306-369). O RICA conclui com um
A vida eterna consiste em conhecermos o verdadeiro
apêndice, em que se apresenta o rito para a admissão na
Deus e Jesus Cristo, que ele enviou. Ressuscitando dos
plena comunhão da Igreja Católica das pessoas já
mortos, Jesus foi constituído, por Deus, Senhor da vida e
batizadas validamente.
de todas as coisas, visíveis e invisíveis. Se vocês querem
5 Conclusão ser discípulos seus e membros da Igreja, é preciso que
vocês sejam instruídos em toda a verdade revelada por
Considerando que o Concílio Ecumênico Vaticano
ele; que aprendam a ter os mesmos sentimentos de Jesus
II estava interessado sobretudo em atender às
Cristo e procurem viver segundo os preceitos do
necessidades pastorais mais prementes da Igreja, em
Evangelho; e, portanto, que vocês amem o Senhor Deus
especial um diálogo mais profundo com o mundo, cabe
e o próximo como Cristo nos mandou fazer, dando-nos o
destacar as principais contribuições possibilitadas pela
exemplo. (RICA, n.76)
restauração do catecumenato como proposto pelo RICA:
4) A reiterada referência à centralidade do mistério
1) O resgate da iniciação cristã em seu vínculo
pascal de Cristo. A implementação do RICA pode
com a liturgia, a catequese e a vida comunitária. A
efetivamente ser uma fonte contínua de catequese e de
comunidade cristã é, em sua totalidade, aquela que, pela
espiritualidade para a comunidade cristã na medida em
graça divina, conduz o candidato à participação
que, pedagogicamente, a conduz ao núcleo da fé cristã, o
progressiva no mistério de Deus. E enquanto faz a
que favorece enormemente o discernimento sobre a
iniciação, a comunidade cristã é ela mesma
hierarquia das verdades na Igreja, impedindo assim que
reintroduzida no mesmo processo de volta às fontes da
o secundário acabe por ocupar o primeiro posto, coisa
fé.
que infelizmente ainda aflige inúmeras comunidades
2) A recuperação da mistagogia, tão utilizada na cristãs.
Patrística. O termo mistagogia, utilizado pelos Padres,
5) A valorização da Bíblia para a introdução à fé.
possuía inúmeros significados: a celebração dos
Todas as orações e gestos propostos pelo RICA são
sacramentos da iniciação cristã, a catequese sobre os
acompanhados de uma fundamentação bíblica em algum
sacramentos; uma teologia que se nutre da experiência
evento da história da salvação, como explicita de forma
litúrgica; o último período do catecumenato; o caminho
paradigmática a bênção da água para o batismo. Dessa
de iniciação ao mistério de Deus etc. (FEDERICI, 1985,
forma, o RICA recoloca a liturgia e as Sagradas
p.163-245). A mistagogia se apresenta, hoje, como
Escrituras como os lugares incontornáveis da catequese.
muito propícia para o diálogo com o contexto pós-
De fato, uma catequese que se afaste da liturgia cristã e
moderno, na medida em que ultrapassa aquele discurso
das Escrituras deixa de ser iniciação à fé cristã e torna-se
excessivamente gnosiológico e racional da Idade Média
possivelmente uma introdução fenomenológica à
tardia, acolhendo a riqueza do símbolo, da metáfora, da
religião cristã. A diferença entre ambas é que naquela o
expressão e dos sentidos corporais para atrair, apresentar
indivíduo é conduzido à experiência da fé, e nesta à
e introduzir os mistérios da fé cristã.
experiência cognitiva sobre a religião cristã. Naquela
3) O acento na verificação ética do processo nasce um discípulo, nesta um conhecedor da religião.
iniciatório como critério para a recepção dos
6) O RICA ressitua, através de sua proposta, a
sacramentos da iniciação cristã; ao mesmo tempo em
liturgia como atualização da história da salvação através
que se apresenta como um desafio para a sua
de ações simbólico-sacramentais (→SÍMBOLO E
implementação, valoriza a centralidade do seguimento
SACRAMENTO), como expressão da ação salvífica de
de Jesus como o verdadeiro sinal da identidade cristã.
Deus na história (SC, 9-10). E, justamente por seu
Isso significa que não é tão somente a ortodoxia, mas
caráter simbólico, a liturgia abre o fiel à infindáveis
sobretudo a ortopraxia que identifica o verdadeiro
experiências com o mistério de Deus Uno e Trino. É
discípulo de Cristo, o que nada mais é do que a
nesse horizonte que a práxis humana é
reafirmação do critério joanino: “Se alguém disser:
mistagogicamente movida à identificação com a causa e
‘Amo a Deus’, e odeia seu irmão, é um mentiroso” (1Jo
a pessoa de Jesus de Nazaré, na obediência ao Pai, na
4,20). No entanto, a ética não é apenas o critério de
força do Espírito Santo.
entrada à comunidade dos cristãos. O próprio RICA, e
por extensão toda liturgia cristã, visa a configurar a 7) Por fim, o RICA se apresenta como uma forma
assembleia reunida a Cristo, levando-a a pensar, sentir e de resgate da liturgia como língua materna do crer.
agir como Cristo. Trata-se, portanto, da recuperação do Antes mesmo que o catecúmeno compreenda mais
conhecido axioma teológico: lex orandi, lex credendi, profundamente o mistério da fé, ele é introduzido à
lex agendi (a norma do orar é a norma do crer e do agir). nomeação de Deus feita pela comunidade cristã,
Daí a insistência do RICA no tema da conversão ao valendo-se de termos como: Pai, Filho, Espírito Santo,
longo dos vários ritos, utilizando-se com frequência, Senhor, Luz, Amor, Criador, Redentor etc. Confirma-o,
especialmente no caso do batismo, das antíteses “vida- por exemplo, o rito de entrega do Símbolo ao
morte”, “luz-trevas”, “velho-novo” etc. Eloquente a esse catecúmeno, o rito de entrega da Oração do Senhor e o
90
rito de entrega do Evangelho. Toda essa iniciação ao ii_decree_19651028_christusdominus_ po.html. Acesso
conteúdo da fé, que, insistimos, também é iniciação à em: 20 dez 2016.
linguagem da fé e, mais exatamente, iniciação à
CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Diretório
nomeação de Deus, expressa que a nomeação de Deus
Geral para a Catequese. Vaticano, 1997. Disponível
não é acessória, nem ingênua. O modo como Deus é
em: http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/c
nomeado liga-se estreitamente ao modo como Deus é
clergy/ documents/
compreendido e acolhido. De fato, por detrás de cada
rc_con_ccatheduc_doc_17041998_directory-for-
nomeação de Deus está uma peculiar revelação divina
catechesis_po.html. Acesso em 10 set 2017.
(LÖHRER, 1972, p.276-8).
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CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO
II. Decreto Christus Dominus. Sobre o múnus pastoral
dos Bispos na Igreja. Disponível A Eucaristia
em: http://www.vatican.va/archive/ hist_councils/ii_vati
can_council/documents/vat- Sumário
1 Realidade atual da eucaristia 5.3 Memorial do sacrifício
2 Valorização do magistério 5.4 A presença real de Cristo
3 Sacramento principal 5.5 Transubstanciação
4 Nomes 5.6 A questão das espécies e a fórmula essencial
5 A doutrina fundamental 6 A eucaristia e a Igreja
5.1 Instituída por Cristo na última ceia 7 A celebração, em síntese
5.2 Memorial da ceia Referências
91
1 Realidade atual da eucaristia afetar o próprio cerne da sua práxis litúrgico-
A eucaristia, como principal celebração litúrgica sacramental?
da Igreja, sofre nestes tempos as mesmas tensões e 2 Valorização do magistério
contradições que a fé cristã nas sociedades O magistério da Igreja continua a colocar a
contemporâneas. Não é estranho, porque celebra, eucaristia em um lugar eminente na sua prática cultual.
precisamente, a fé em Jesus Cristo, morto e ressuscitado O Catecismo da Igreja Católica (CEC) reafirma que a
na vida atual da humanidade e de cada crente. A liturgia eucaristia é “a fonte e o ápice de toda a vida cristã”,
é sensível às mudanças no mundo e na Igreja, porque citando a Lumen Gentium n.11 (CEC n.1324); que
não se celebra em espaços e tempos abstratos, mas nos “contém todo o bem espiritual da Igreja, isto é, o próprio
contextos humanos, culturais e eclesiais concretos de Cristo, nossa Páscoa”, citando Presbyterorum
cada crente e de cada comunidade. Em geral, pode-se ordinis n.5 (CEC n.1325), e termina afirmando que “a
dizer que, na última década, um grande número de eucaristia é o compêndio e a soma da nossa fé” (CEC
católicos deixou de participar da eucaristia dominical e n.1327).
de praticar a vida sacramental. Em geral, são aqueles
cuja relação com a Igreja se baseava sobretudo na Anteriormente, a constituição sobre a liturgia do
recepção dos sacramentos e na participação nos funerais Concílio Vaticano II, a Sacrosanctum Concilium (SC),
e nas grandes festas cristãs do ano litúrgico ou dos afirmava que a liturgia, da qual a eucaristia é a expressão
santuários. As comunidades eclesiais de base, capelas de máxima, é “o ápice a que tende a atividade da Igreja e,
bairros mais homogêneos ou setores rurais, por outro ao mesmo tempo, a fonte da qual emana toda a sua
lado, tendem a manter uma práxis celebrativa mais viva força” (SC n.10).
e regular. Mas também, muito frequentemente, têm se O papa São João Paulo II dedicou importantes
ressentido do distanciamento dos jovens e da dificuldade páginas à eucaristia no seu magistério, dentre as quais se
de engajar leigos e leigas nos vários papéis litúrgicos destaca a sua última carta encíclica, em 2003, Ecclesia
ligados à eucaristia: coros, leitores, acólitos. A crise de Eucharistia (EdE). Nela há passagens testemunhais
resultante dos abusos de poder, consciência e sexuais de de grande profundidade, como a que diz: “Aqui (na
membros do clero, que nos últimos anos foi amplamente eucaristia) está o tesouro da Igreja, o coração do mundo,
divulgada e afetou fortemente a Igreja em muitos países o penhor do fim a que todo homem, ainda que
do continente, tem sido um fator que, para muitos inconscientemente , aspira. Um grande mistério, que
católicos com uma pertença mais frágil à Igreja e/ou certamente nos ultrapassa e põe à prova a capacidade de
uma formação mais superficial, os leva a cessar nossa mente de ir além das aparências” (EdE n.59).
praticamente toda a participação nela, a começar pela Também o papa emérito Bento XVI escreveu
eucaristia dominical. sobre a eucaristia. Particularmente importante é a sua
Certamente, a realidade da celebração da exortação apostólica Sacramentum caritatis (SC), de
eucaristia é muito vasta e diversa para ser resumida ou 2007, na qual integra a reflexão do Sínodo dos Bispos de
generalizada em poucas linhas. De um lado, existem 2005, cujo tema foi precisamente a eucaristia.
comunidades com celebrações muito vivas e O magistério do papa Francisco, por sua vez,
participativas, e de outro, igrejas onde o número de fiéis oferece um grande número de catequeses, homilias e
que vão à missa dominical diminuiu drasticamente, frases sobre a eucaristia. Na catequese de 8 de novembro
enquanto a idade média dos participantes aumentou com de 2017, Francisco recorda o antigo e impressionante
a mesma radicalidade. Os planos pastorais diocesanos, o episódio dos mártires da Abitínia:
carisma dos párocos ou dos sacerdotes que presidem a
eucaristia, a formação dos leigos e das leigas e a tradição Não podemos esquecer o grande número de cristãos que,
da Igreja local são determinantes para a qualidade da no mundo inteiro, em dois mil anos de história,
vida litúrgica e, em particular, das celebrações resistiram até à morte para defender a Eucaristia; e
eucarísticas. As grandes diferenças nestes aspectos quantos, ainda hoje, arriscam a vida para participar na
também determinam, em grande parte, as diferenças na Missa dominical. No ano de 304, durante as
qualidade, participação e vivacidade das missas. perseguições de Diocleciano, um grupo de cristãos, do
norte de África, foram surpreendidos a celebrar a Missa
Este olhar realista, que não pretende ser numa casa e foram aprisionados. O procônsul romano,
pessimista, é necessário no início de um tratamento no interrogatório, perguntou-lhes por que o fizeram,
doutrinal da eucaristia, pois nós, católicos, colocamos sabendo que era absolutamente proibido. E eles
este sacramento no lugar mais alto da vida litúrgica da responderam: “Sem o domingo não podemos viver”, que
Igreja e não deixamos de proclamar sua centralidade e significava: se não podemos celebrar a Eucaristia, não
importância. Para muitos pode parecer que essas podemos viver, a nossa vida cristã morreria. Com efeito,
afirmações não correspondem à realidade no momento e, Jesus disse aos seus discípulos: “se não comerdes a
para falar a verdade, não estariam errados. Por outro carne do Filho do homem, e não beberdes o seu sangue,
lado, pode a Igreja renunciar a afirmar e ensinar a não tereis vida em vós mesmos. Quem come a minha
importância e a centralidade da eucaristia, sem com isso carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o
ressuscitarei no último dia” (Jo 6, 53-54). Aqueles
92
cristãos do norte de África foram assassinados porque recebida pela primeira vez apenas na crisma,
celebravam a Eucaristia. Deixaram o testemunho de que preservando assim a ordem tradicional: 1-batismo, 2-
se pode renunciar à vida terrena pela Eucaristia, porque crisma e 3-eucaristia e, portanto, se preservava o sinal
ela nos dá a vida eterna, tornando-nos partícipes da concreto da eucaristia como culminância da iniciação
vitória de Cristo sobre a morte. Um testemunho que nos cristã.
interpela a todos e exige uma resposta acerca do que Hoje se considera importante recuperar a unidade
significa para cada um de nós participar no Sacrifício da destes três sacramentos, teológica e pastoralmente
Missa e aproximarmo-nos da Mesa do Senhor. vinculados e interdependentes. Já que nas igrejas latinas
(FRANCISCO, 2017) essa unidade não pode ser temporal – o costume e certas
A pergunta do Papa Francisco é chave em nossos vantagens pastorais de administrar a primeira eucaristia
dias: o que a eucaristia significa para nós hoje? Se houve primeiro e depois a crisma estão muito arraigados –
momentos em que não era necessário fazer tal pergunta, tenta-se que seja pelo menos catequética e
não são estes que se vive. Certamente, para apreciar a liturgicamente clara: na formação e no ritual. Considerar
eucaristia não basta saber mais sobre ela. Se o a eucaristia como o ponto culminante da iniciação cristã
conhecimento não está em conexão vital com toda a vida só pode ser afirmado teoricamente, pois o sinal
de fé, é de pouca utilidade. Pode nos tornar mais sábios, estabelece como ponto culminante (pelo menos
mas não ajuda celebrar melhor nossa fé. A eucaristia é, temporalmente) o sacramento da crisma.
antes de tudo, uma experiência. Uma experiência O batismo e a confirmação imprimem caráter, ou
celebrativa, festiva, que nasce da gratuidade de ser seja, são sacramentos que só são recebidos uma vez na
cristão. Podemos saber muito sobre ela, mas para que vida, pois deixam uma marca espiritual indelével em
adquira seu sentido pleno como sacramento da Igreja, quem os recebeu. A eucaristia, por sua vez, é o
deve ser experimentada, vivida e celebrada na sacramento do caminho cristão: é recebida quantas vezes
comunidade dos fiéis. Dessa perspectiva, tenta-se aqui forem necessárias, como alimento para viver a união
sintetizar sua doutrina fundamental. pessoal com Cristo e o discipulado. É o sacramento do
3 Sacramento principal viajante, do peregrino que deseja viver a sua fé no
A liturgia e os ministérios da Igreja são orientados seguimento e na fidelidade à missão confiada. Na
para a eucaristia. “Os outros sacramentos”, afirma o homilia do Corpus Christi de 2015, o papa Francisco
CEC n.1324, “assim como todos os ministérios eclesiais afirmou que “a eucaristia não é uma recompensa para os
e obras de apostolado, estão unidos à eucaristia e a ela bons, mas uma força para os fracos; para os pecadores é
são ordenados”. Sua centralidade na Igreja Católica é o perdão, o viático que nos ajuda a andar, a caminhar”.
clara e está bem fundamentada na práxis e na doutrina Imagem profunda e realista: a comunhão eucarística não
de sua história. Por isso é necessário conhecer esses pode ser recompensa pelos méritos que um cristão
fundamentos nestes tempos em que a formação possui, mas é precisamente o alimento de que necessita
catequética da Igreja costuma ser fraca e escassa. na sua fragilidade e vulnerabilidade para viver e
testemunhar a sua fé no complexo mundo de hoje.
A eucaristia é o principal dos sete sacramentos. No
mundo sacramental, está ordenada com o conjunto dos 4 Nomes
sacramentos da iniciação cristã, juntamente com o A eucaristia recebeu vários nomes ao longo da
batismo e a crisma. A tríade batismo-crisma-eucaristia história. Cada um deles destaca algum aspecto de seu
foi, durante os primeiros séculos do cristianismo, a porta conteúdo teológico ou de sua forma celebrativa. A CEC
de entrada para a comunidade cristã, como uma os lista de forma mais completa nos números 1328 a
celebração sacramental única e simultânea, da qual a 1332. Três deles são particularmente importantes:
eucaristia era o ponto culminante. Muito tarde na Fração do pão. Esta expressão encontra-se em
história da Igreja, apenas no início do século XX, Atos 2, 42-46, no contexto da descrição da primeira
generalizou-se o costume de antecipar a eucaristia aos comunidade cristã, e em Atos 20, 7-11, em um contexto
mais novos, alterando assim a ordem tradicional em que que pode ser chamado de litúrgico, de uma assembleia
eram ministrados os sacramentos de iniciação: 1- no “primeiro dia da semana” (Domingo, Dia do Senhor),
batismo, 2-crisma e 3-eucaristia; para uma nova: 1- com longa palestra (homilia) de São Paulo. A expressão
batismo, 2-eucaristia e 3-crisma. Mas já antes, na Igreja fração do pão refere-se diretamente a uma ação própria
latina, a crisma havia sido separada do batismo no da eucaristia, como é a de partir o pão para distribuí-lo,
momento da administração. A razão é que, no Ocidente, mas tem suas raízes em um costume judaico muito mais
ao contrário das comunidades do Oriente cristão, o bispo antigo: o do pai de família que, depois de abençoar a
(e não o sacerdote) foi instituído como ministro mesa, partia e repartia o pão para os seus. Na refeição da
ordinário (hoje o chamamos original) da confirmação. Páscoa judaica, que é o antecedente imediato da
Os padres batizavam os recém-nascidos e somente eucaristia, este gesto era particularmente significativo.
quando o bispo visitava a localidade, ou quando crianças
ou jovens podiam ir à sé episcopal, eles podiam ser Ceia do senhor. Em 1Cor 11,20, São Paulo usa
crismados. E muitas vezes anos se passavam entre os esta expressão para distinguir a ceia fraterna que
dois sacramentos. Mas mesmo assim, a eucaristia era precedeu a “Ceia do Senhor” (a eucaristia) nas primeiras
93
comunidades cristãs. Na comunidade de Corinto, as Páscoa, instituiu a eucaristia como memorial de sua
ceias anteriores eram palco de excessos e desprezo pelos morte e ressurreição e ordenou a seus apóstolos
mais pobres, o que motiva a crítica de Paulo. Apesar de (“aqueles que constituía os sacerdotes do Novo
não se reproduzir na própria Ceia do Senhor, sua Testamento”, Concílio de Trento, Denziger-Hünermann
proximidade com ela deve torná-los coerentes com o (DH), n.1740) para fazerem o mesmo “em sua memória”
espírito cristão de fraternidade, solidariedade e apreço (Lc 22,19 e 1Cor 11,24). Eucaristia e sacerdócio
pelos mais pobres. ministerial são dois temas que a tradição católica
Eucaristia. Este nome encontra-se, na sua forma manteve essencialmente ligados.
verbal, dar graças, em Lc 22,19: “Pegou o pão, deu Ao falar da instituição da eucaristia, é necessário
graças (…)” e em 1Cor 11,24: “Pegou o pão, agradeceu referir-se à compreensão contemporânea de
e partiu-o (…)”. Bem próximo está o termo abençoar, “instituição”: não é apenas o momento fundante de um
utilizado em Mc 14,22 e Mt 26,26: “Ele tomou o pão, sacramento, mas sobretudo a vontade de Jesus de salvar
abençoou-o (…)”. Dado que a ação de graças e a bênção por meio de certos sinais rituais em que Ele mesmo
são ações inerentes à liturgia cristã, e que se manifestam continua a agir por meio do Espírito Santo, através de
com particular clareza na eucaristia, este é o termo que a ministros que o fazem em seu nome e em seu lugar. Ou
liturgia atual tem privilegiado sobre os demais. seja, a instituição não é apenas uma ação do passado
Missa? Embora a expressão “missa” continue a histórico, mas um efeito permanente dela, cada vez que
ser usada em linguagem coloquial e pastoral em o sacramento – neste caso, a eucaristia – é celebrado
português, espanhol e outras línguas, é um termo que novamente: ali está Jesus Cristo, agora ressuscitado e
deixou de ser usado em linguagem teológica devido à glorioso, presidindo cada assembleia que celebra sua fé.
sua escassa relação com qualquer aspecto central da 5.2 Memorial da Ceia
eucaristia. Sua origem está na Idade Média, na fórmula A eucaristia é “memorial”: “Fazei isto em
de despedida dos fiéis no final da eucaristia: “Ite, missa memória (comemoração) de mim”. Este conceito é
est” (literalmente, “vai, foi enviado”, referindo-se fundamental na compreensão sacramental
implicitamente à celebração). A partir daí, por contemporânea. Permite-nos compreender melhor o
metonímia, a eucaristia passou a ser chamada de mistério da presença e atualização da obra salvífica de
“missa”. Cristo na liturgia, e especialmente na eucaristia. Não é
5 A doutrina fundamental uma mera memória subjetiva individual, mas uma ação
5.1 Instituída por Cristo na última ceia ritual e eclesial que torna atual e presente a força
libertadora das ações de Jesus. A eucaristia é, portanto, o
A tradição cristã, baseada no Novo Testamento, memorial do mistério pascal de Cristo: não só evoca ou
afirma que a eucaristia foi instituída por Jesus Cristo na recorda, mas também traz, de algum modo, para o aqui e
ceia que ele celebrou com seus apóstolos na noite agora, a obra de salvação realizada pela sua vida, morte
anterior à sua paixão. Os textos fundamentais são Mt e ressurreição. Essa obra torna-se presente e atual
26,26-29; Mc 14,22-25; Lc 22,19-20; 1Cor 11,23-25. através da ação litúrgica celebrada pela Igreja.
Transmitem, com pequenas variações, o relato da
instituição que até hoje constitui a parte central das Os ritos e as palavras constituem a “matéria-
Orações eucarísticas. Também é fundamental Jo 13,1- prima” do mundo sacramental cristão e, em particular,
15, que relata o lava-pés que Jesus fez durante a ceia, da eucaristia. Esses ritos, que são ações simbólicas
considerado um sinal cujo conteúdo e significado são realizadas pelos fiéis em lugares e com objetos
paralelos e análogos ao da fração do pão: a entrega significativos, e acompanhados por palavras igualmente
radical de sua vida ao serviço da humanidade. Diz que o significativas, faladas ou cantadas, são os elementos
Senhor, tendo amado os seus, amou-os até o fim. básicos de toda celebração litúrgica. Na história da
Sabendo que chegara a hora de deixar este mundo para eucaristia, o âmbito significativo estendeu-se, para além
voltar para seu Pai, durante o jantar, ele lavou os pés dos dos ritos e das palavras, ao prédio em que é celebrada,
apóstolos e deixou-lhes o mandamento do amor como cujo centro visual e ritual é ocupado pelo altar,
missão. É o mesmo conteúdo da oferta do pão partido e acompanhado do ambão da Palavra, a outros lugares
do vinho repartido, sinais da entrega radical de Jesus aos significativos dentro dele (pia batismal, sacrário, sede,
seus, que os seus discípulos devem imitar em sua lugar de penitência, imagens), e para a vestimenta dos
memória. ministros. Todos estes sinais são elementos que “falam”,
comunicando um sentido que ultrapassa a mera
Na ceia, Jesus deu à Páscoa, a principal festa compreensão racional e envolve todo o ser daqueles que
judaica, seu “significado definitivo” (CEC n.1340). “O formam a assembleia que celebra a sua fé. No “prédio-
nosso Salvador, na última Ceia, na noite em que foi igreja” é realizada a “Ceia do Senhor”, que em sua
entregue, instituiu o sacrifício eucarístico, (…) banquete forma ritual evoca a ceia de Jesus com seus discípulos
pascal em que se recebe Cristo, a alma se enche de graça antes de sua paixão e morte. A mesa (alimento) e a
e nos é concedido o penhor da glória futura” (SC n.47). palavra (comunicação) também são os elementos
Para lhes deixar um penhor desse amor, para centrais de toda ceia de convívio.
nunca se afastar dos seus e torná-los participantes de sua
94
A eucaristia é memorial da única ceia histórica Por outro lado, a crítica profética do Antigo
que Jesus celebrou com seus discípulos antes de padecer. Testamento já havia alertado que os sacrifícios
Tanto a última ceia narrada pelos Evangelhos, como sangrentos (de animais sacrificados de maneiras
também a paixão, morte e ressurreição de Jesus, diferentes) não agradam a Deus se não implicam uma
ocorridas imediatamente depois, ocorreram apenas uma vida diária coerente com a adoração. “Eu quero
vez na história (ephapax). O que foi dado temporalmente misericórdia, não sacrifícios”, diz Oseias 6,6,
se deu uma vez por todas, sacramentalmente, pela obra profetizando contra a adoração vazia. E Isaías diz:
do Espírito Santo, pode ser realizado “em memória sua” “Estou farto de holocaustos de carneiros… e o sangue de
todas as vezes e em qualquer lugar que um grupo de touros e bodes não me agrada. (…) Buscar o que é justo,
cristãos queira celebrar sua fé, “até que Ele venha” dar seus direitos aos oprimidos, fazer justiça aos órfãos,
(1Cor 11,26), atualizando hic et nunc (aqui e agora) a defender a causa da viúva ”(Is 1,11,17). Um sacrifício
salvação ocorrida no mistério pascal. Assim, cada “espiritual”, isto é, oração crente e amor ao próximo,
eucaristia na história participa, sacramentalmente, na agrada mais a Deus do que sacrifícios materiais de
única ceia do passado temporal por obra do Espírito animais.
Santo. Cada eucaristia é um memorial ou comemoração O que Jesus fez foi dar a sua vida por amor
da última ceia. extremo, radical, pela humanidade, coroando assim uma
5.3 Memorial do sacrifício vida e um ministério de serviço humilde à humanidade,
SC n. 47 afirma: “O nosso Salvador instituiu na representado no lava-pés que o Evangelho segundo João
última Ceia, na noite em que foi entregue, o Sacrifício coloca no lugar da Ceia do Senhor. Jesus não queria
eucarístico do seu Corpo e do seu Sangue para perpetuar morrer da maneira que vislumbrava: daí a sua oração
pelo decorrer dos séculos, até Ele voltar, o sacrifício da pungente no jardim do Getsêmani. A sua entrega à
cruz (…)”. vontade do Pai é consequência de uma missão entregue à
missão de dar vida, que com a sua morte teria a sua
Assim como é um memorial da ceia, a eucaristia é expressão máxima, a ressurreição dos mortos. Só nesse
também um memorial do único sacrifício histórico de sentido pode-se dizer que a morte de Cristo foi um
Cristo na cruz. Isso é comumente expresso simplesmente sacrifício. Toda a sua vida foi ser pão partido/corpo
dizendo que a eucaristia é sacrifício. Mas essa expressão entregue e vinho/sangue derramado por seu próximo. No
pode suscitar interpretações equivocadas. Tal como sacrifício da cruz culmina uma atitude permanente de
acontece com a ceia, quando se diz que a eucaristia é Jesus, que ele entendeu como essencial na missão
sacrifício, não se afirma em sentido histórico, pois confiada pelo Pai: o despojo de si mesmo assumindo a
historicamente Jesus morreu uma só vez na cruz, mas condição de escravo (Fl 2,6-8), servindo a humanidade
em sentido sacramental ou memorial: a eucaristia é o até a entrega voluntária da própria vida.
“sacramento do sacrifício (da cruz)”. No entanto, isso
não explica por que ou em que sentido a própria cruz, ou O caráter sacrificial da eucaristia, sempre afirmado
seja, a morte histórica de Jesus Cristo crucificado, é um pela doutrina da Igreja Católica, com extrema força
sacrifício. O livro bíblico que desenvolve essa ideia é a depois que Lutero e a Reforma do século XVI o
carta aos Hebreus (Hb 7,26-27; 10,1-14), afirmando que negaram, deve ser entendido como uma participação
Cristo é o único sacerdote que oferece um único memorial na entrega voluntária e extrema de sua vida,
sacrifício (oferecendo-se na cruz), uma vez e para todos. aceita por Jesus Cristo como consequência da sua
Ou seja, o sacrifício é feito por Jesus se oferecendo. Daí missão no mundo. Ao mesmo tempo, e daí o verdadeiro
a expressão que ele é “sacerdote, vítima e altar”. Fora da sentido da apresentação das ofertas na celebração da
Bíblia, a Didaquê, escrita contemporânea aos últimos eucaristia, a assembleia atualiza o sentido sacrificial da
livros do Novo Testamento, é a primeira escrita que fala sua própria vida cristã, ou seja, oferece-se como
da eucaristia como um “sacrifício”. instrumento do amor de Deus pela humanidade, e está
empenhada em perpetuar a missão de Cristo de anunciar
A eucaristia não é “sacrifício” no sentido usual da e fazer presente o Reino de Deus no mundo.
palavra, isto é, uma oferta feita a Deus para atrair algum
favor, expiar uma falta ou purificar-se. O Deus de Jesus A eucaristia é sacrifício neste horizonte. Na
Cristo não precisa de sangue ou sacrifícios humanos – medida em que é um dom recebido de Deus, a eucaristia
como a terrível tortura e morte na cruz – para amar e é memorial do seu amor extremo e, na medida em que é
favorecer seu povo. Jesus não se ofereceu como oferta a Deus, é sacrifício: não para obter algo dele, mas
sacrifício nesse sentido. O “cordeiro de Deus”, Jesus para dar a própria vida por seu Reino, como Jesus.
Cristo, que evoca aquele cordeiro sacrificado em cada 5.4 A presença real de Cristo
Páscoa judaica para ser comido em família, recordando a A Igreja sempre afirmou que, nas espécies
refeição rápida de cordeiro assado, pão sem fermento e “eucaristizadas” do pão e do vinho, Cristo está presente.
verduras amargas antes de partir para o êxodo, não pode A base bíblica fundamental são as palavras de Jesus nas
ser entendido como uma oferenda apresentado pelo ser histórias da instituição: “Este é o meu corpo … este é o
humano como um sacrifício a Deus, para apaziguá-lo ou meu sangue” (Mt 26,26-28). A fé na presença de Cristo
obter favores. na celebração e nas espécies eucarísticas está presente
desde o início da formação da liturgia cristã.
95
Veio então, no desenvolvimento histórico da contribuições na contemporaneidade, que criticam sua
eucaristia, a veneração das espécies, principalmente do concentração no que acontece com a espécie sem
pão, quando sobravam pedaços após a celebração. Eram considerar um fator essencial da eucaristia: seu
conservados com respeito para serem distribuídos aos significado e sua finalidade; isto é, eles afirmam que a
enfermos ou impossibilitados de participar da eucaristia doutrina da transubstanciação considera as espécies
e, posteriormente, passaram a ser objeto de devoção e estaticamente e postulam que a transformação das
mantidos em sacrários ou tabernáculos feitos espécies deve ser entendida de forma dinâmica e de
especialmente para esse fim. Finalmente, em paralelo acordo com o significado do sacramento da eucaristia:
com a perda do sentido de comunhão eucarística, quando alimento espiritual, força para a vida eclesial. Daí os
ninguém ou muito poucos já se aproximavam para nomes dessas
comungar, a adoração do pão consagrado desenvolveu- teorias: transignificação e transfinalização.
se mais intensamente como uma liturgia própria e Especialmente interessante é a segunda, pois
independente da celebração da eucaristia, e a construção Jesus, na última ceia, não se limitou a dizer: “Este é o
dos altares barrocos, que muitas vezes exaltavam a meu Corpo, este é o meu Sangue”; em vez disso, ele fez
guarda para a adoração em exuberantes retábulos que os gestos e pronunciou essas palavras com um propósito:
ocupavam toda a largura e altura da abside das igrejas. para distribuir aquela comida e aquela bebida entre os
A presença de Cristo na eucaristia é firme doutrina comensais e serem também consumidas por eles. Quer
da Igreja Católica, que também as grandes igrejas dizer: à afirmação de que este pão é o seu Corpo e que o
reformadas partilham, embora com nuances diferentes vinho é o seu Sangue, o seu consumo na ceia festiva e
na sua interpretação. O Concílio de Trento formulou fraterna pertence teológica e ritualmente, como uma
dogmaticamente esta afirmação dizendo que sob as única ação litúrgica. E, ainda mais, este consumo visa
espécies consagradas o próprio Cristo, vivo e glorioso, alimentar a vida interior e a fidelidade ao seguimento de
está presente de maneira verdadeira, real e substancial, Cristo por parte de quem o faz, não só individualmente,
com seu Corpo, seu Sangue, sua alma e sua divindade mas como Igreja, Corpo de Cristo. Não basta considerar
(DH n.1640, 1651) . a transubstanciação em si, sem fazê-la juntamente com
No entanto, a presença real de Cristo na eucaristia sua finalidade. É por isso que não poderia haver uma
nunca foi fácil de entender racionalmente; menos ainda eucaristia em que apenas o sacerdote celebrante
para a mentalidade técnico-científica contemporânea. comungasse, visto que é celebrada para a comunhão
Percebe-se com muita clareza, como acontece com todas eucarística, embora parte das espécies sejam preservadas
as verdades cristãs fundamentais, que é somente pela fé para serem distribuídas posteriormente ou para a
que pode ser aceita. A pergunta sobre como isso pode adoração eucarística.
acontecer sempre acompanhou os cristãos. 5.6 A questão das espécies e a fórmula essencial
5.5 A transubstanciação Pão de farinha de trigo feito na hora e vinho
Foi a permanente dificuldade em compreender natural, de uva, não corrompido, são a “matéria” do
racionalmente a afirmação de que o pão e o vinho sacramento. Um pouco de água deve ser misturada ao
consagrados são o corpo e o sangue de Cristo – quando vinho. O Código de Direito Canônico especifica que “
o bom senso e a evidência dos sentidos da visão, olfato, segundo a antiga tradição da Igreja latina, o sacerdote
paladar e tato dizem que só há pão e vinho – que levou, utilize o pão ázimo, onde quer que celebre” (CIC n.926
já no final da Idade Média, a complexas reflexões e §1). O pão ázimo é o pão feito sem fermento. Os ritos
árduas discussões sobre como ocorre a mudança nas orientais geralmente usam pão fermentado para a
espécies. O resultado foi a teoria finalmente aceita pela eucaristia.
Igreja Católica: a doutrina da transubstanciação (DH A comunhão, de acordo com a Introdução à última
n.1642). edição do Missal Romano (2002), pode ser oferecida em
Segundo ela, no relato da instituição, ocorre muitas ocasiões nas duas espécies (com pão e vinho),
a transubstanciação do pão e do vinho no Corpo e mais do que no passado. Mas a comunhão segue válida
Sangue de Cristo. A doutrina explica que ocorre uma sob a espécie única do pão e, se necessário, quando
mudança de substância, ou de essência, do pão e do alguém não está em condições de engolir sólidos, sob a
vinho, que se tornam Corpo e Sangue de Cristo, mas única espécie do vinho. Mais que a validade, a verdade
sem mudar seus acidentes de pão e vinho (aparência, do sinal aconselha comungar habitualmente sob as duas
peso, cor, sabor, cheiro e textura), de modo que, embora espécies, uma vez que isso foi feito pelo Senhor na
mantenham as características do pão e do vinho, última ceia e assim se fez durante séculos em todas as
mudaram de essência, sendo agora, verdadeiramente, a comunidades cristãs.
do Corpo e Sangue de Cristo. Todos os sacramentos têm uma fórmula essencial,
A doutrina da transubstanciação continua a ser a cuja proclamação está ligada a sua validade e que
uma explicação plausível de como se dá a transformação tradicionalmente é muito cuidada pela Igreja. Na
do pão e do vinho no Corpo e no Sangue de Cristo, mas eucaristia, esta fórmula é considerada a Oração
tem sido complementada ou ampliada por outras eucarística completa, desde o diálogo antes do Prefácio à
doxologia com o Amém final. O cerne da oração é
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constituído pelo relato da instituição, que não tempos), que também estão intimamente ligadas entre si.
corresponde literalmente a nenhum dos relatos bíblicos Quando celebra a eucaristia, a Igreja é uma Igreja que
mencionados acima (Mt, Mc, Lc e 1Cor), mas contém o experimenta a salvação e se nutre para ser libertadora e,
essencial deles: “Peguem e comam todos dele, porque ao mesmo tempo, participando antecipadamente na
este é o meu Corpo, que será entregue por vocês. / liturgia celeste (SC n.8), é uma Igreja da esperança.
Tomem e bebam todos dele, porque este é o cálice do Isso não significa que a vida dos cristãos se reduza
meu Sangue, Sangue da nova e eterna aliança, que se à eucaristia; significa antes que, sendo a eucaristia o
derramará por vocês e por muitos para remissão dos ápice e a fonte (LG n.11) da vida da Igreja, é o momento
pecados. Façam isso em memória de mim.” em que toda a nossa vida é oferecida a Deus e dele
6 A eucaristia e a Igreja recebe força para continuar o seu caminho. A eucaristia
São Paulo afirma que os cristãos são o corpo de supõe a vida e é para a vida, assim como supõe a fé e
Cristo e Cristo a sua cabeça (1Cor 12,13-30). Esta deve fortalecê-la. Todos os sacramentos alimentam a
imagem tem uma expressão particularmente intensa na vida cristã, mas a eucaristia o faz de uma forma única,
celebração da eucaristia. Nela os fiéis se reúnem como como encontro do crente no centro da sua fé: Jesus
“assembleia” e se identificam como “igreja” de Cristo Cristo morreu e ressuscitou para que todos tenham “vida
(igreja deriva do grego ecclesia, que originalmente em abundância” (Jo 10,10).
significa assembleia). Cada vez que celebram a A participação ativa na celebração da eucaristia é
eucaristia, os cristãos se constituem uma comunidade de um sinal de maturidade dos cristãos. Responder os
discípulos que continua a missão de Jesus na história. diálogos com o ministro que preside, cantar no coro,
Celebram juntos em seu nome e “em sua memória”, saudar os vizinhos no rito da paz e, sobretudo, comungar
presididos pelo próprio Cristo, presente no ministro (SC são parte integrante de uma boa celebração da eucaristia.
n.7) e na própria assembleia, que é o seu Corpo. São um sinal visível de que não é uma simples festa
Toda a liturgia, e de modo muito especial a humana, mas um encontro pessoal e eclesial com Cristo
eucaristia, é “exercício do sacerdócio de Cristo”, ressuscitado e vivo na humanidade.
segundo a expressão de SC n.7. Aqui está a raiz 7 A celebração, em síntese
teológica da participação ativa que a reforma do A liturgia da eucaristia desenvolve-se segundo
Vaticano II promoveu na liturgia. Todo o Cristo, isto é, uma estrutura fundamental que se formou e consolidou
Cabeça e Corpo, exerce seu sacerdócio na celebração da desde muito cedo e que se conserva até hoje.
eucaristia. Portanto, não é o sacerdote ministro sozinho Compreende dois grandes momentos que formam uma
ou isolado, mas ele juntamente com toda a assembleia, unidade básica, “um único ato de culto” (SC n.56): a
que pelo batismo se constituiu em “povo sacerdotal” liturgia da Palavra e a liturgia eucarística. A elas estão
(1Pe 2,9), e cada homem ou mulher batizados, em associados os dois principais centros significativos do
“sacerdotes, profetas e reis” (Ritual do Batismo, oração espaço litúrgico: o altar e o ambão, que devem ser
da unção com crisma), que os torna protagonistas da sempre únicos. É assim que falamos das “duas mesas”: a
liturgia pela sua participação ativa, plena, consciente e da palavra e a da eucaristia. Essas duas grandes partes
fecunda (SC n.48). A eucaristia, cada vez que é são enquadradas nos ritos iniciais e nos ritos finais. Ao
celebrada, é uma expressão de toda a Igreja, um sinal primeiro pertencem o ato penitencial e o canto de Glória;
histórico da Igreja celeste. ao segundo, a bênção final que envia a assembleia para
A participação ativa dos fiéis na liturgia foi uma vivenciar o que foi celebrado.
das grandes conquistas do Concílio Vaticano II. Desde A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II
então, se quis que os cristãos não assistissem à eucaristia enfatizou de forma marcante a importância da Sagrada
como estranhos e mudos espectadores, mas, conscientes Escritura na eucaristia e em toda a liturgia da Igreja.
de que na eucaristia há um encontro com Jesus Cristo Para isso enriqueceu o ciclo anual anterior, que se
vivo e, ao mesmo tempo, compreendendo-o tanto quanto repetia a cada ano e oferecia muito menos passagens
possível, dela participem pela intimidade da fé, pelos bíblicas e muita repetição de algumas delas, planejando
ritos e orações, serviços e ministérios, canções e gestos um ciclo de três anos para os domingos e dois para as
simbólicos, na riqueza da celebração. A renovação dos missas da semana (feriais), com uma riqueza muito
ritos, dos textos e dos cantos, e especialmente os maior de passagens bíblicas cujo critério de seleção e
esforços de inculturação têm facilitado este propósito, distribuição foi que quem celebra a eucaristia todos os
embora hoje, como já foi referido, a eucaristia sofra domingos, nos três anos, tenha uma visão global de toda
outras ameaças das nossas sociedades secularizadas. a Sagrada Escritura. Os ciclos dominicais (ou “anos”)
A Igreja se alimenta da eucaristia: dela vive eram chamados de A, B e C, e cada um deles recebia a
porque é o sacramento do caminho, da peregrinação leitura de um Evangelho: Mateus para o ciclo A, Marcos
cristã pelas luzes e sombras da vida e da história, e João para o ciclo B e Lucas para o C. Para a eucaristia
continuando a missão de Jesus Cristo, para a plenitude dominical, estabeleceram-se ainda leituras do Antigo e
do Reino. A relação entre a eucaristia e a Igreja enfatiza do Novo Testamento.
particularmente a dimensão soteriológica (relativa à
salvação) e a dimensão escatológica (relativa ao fim dos
97
Para as eucaristias feriais foi estabelecido um ciclo http://www.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/20
de dois anos, denominado I (anos ímpares) e II (anos 17/documents/papa-francesco_20171108_udienza-
pares), em que o Evangelho se repete todos os anos, mas generale.html. Acesso em: 12 set 2020.
a primeira leitura é diferente em anos ímpares e pares. GERKEN, A. Teología de la Eucaristía. Madrid:
Tanto em quantidade como sobretudo em qualidade Paulinas, 1991.
(critérios de seleção dos textos), a Bíblia tem, desde a
reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, uma presença GESTEIRA, M. La eucaristía, misterio de
digna do seu estatuto de “mesa da Palavra”, parte comunión. Madri: Ediciones Cristiandad, 1983.
essencial da eucaristia e não mera preparação para a GONZÁLEZ, C. I. ’Bendijo el pan y lo partió (Mc
comunhão. Em relação à riqueza bíblica, que deve ser 6,41): Tratado de Eucaristía. Conferencia del
lida e acolhida como palavra viva, isto é, como Episcopado Mexicano. México, 1999.
iluminação da realidade da assembleia celebrante, a JUAN PABLO II. Carta encíclica Ecclesia de
reforma pede aos sacerdotes que façam uma homilia Eucharistia. 17 abr 2003.
todos os domingos e, com sorte, em cada eucaristia, e
que seja baseada na proclamação da Palavra de Deus. NOCKE, F.-J. Doctrina especial de los
sacramentos. In: SCHNEIDER, T. Manual de teología
A celebração da eucaristia não foi e não pode ser dogmática. Barcelona: Herder, 1996
estática. Mantendo o cerne testemunhado pela Bíblia,
especialmente todo o Novo Testamento e a primeira
práxis cristã, carrega o destino de tudo o que é humano:
se desenvolve, se adapta, muda ao longo da história. A
esclerose de suas normas ou a inflexibilidade para Reconciliação
adaptá-las às culturas e aos grupos humanos só a alienou Sumário
do Povo de Deus, que precisa celebrar sua fé e sempre
Introdução
encontrar uma maneira de fazê-lo. Que esta forma
mantenha sempre a eucaristia em primeiro lugar, é tarefa 1 Reconciliação: condição para a perfeita integração do
ser humano consigo mesmo, com Deus, com a comunidade
permanente da Igreja ser fiel a Jesus, que nos pediu que
eclesial, com a sociedade e com o cosmos
fizéssemos isso “em sua memória”.
2 A experiência da reconciliação na Sagrada Escritura
Guillermo Rosas, SSCC. Pontificia Universidad 2.1 Pecado – misericórdia – conversão, no Antigo
Católica de Chile. Texto original espanhol. Postado em Testamento
30 de dezembro de 2020. 2.2 Pecado – misericórdia – conversão, no Novo
Referências Testamento
3 A experiência da reconciliação na prática da Igreja
ALDAZÁBAL, J. La Eucaristía. Biblioteca 3.1 Séculos I-VI: reconciliação mediante penitência
Litúrgica 12. Barcelona: Centre de Pastoral litúrgica, canônica
1999. 3.2 Séculos VII-XI: reconciliação mediante penitência
ARIAS R., Maximino. Eucaristía, presencia del tarifada / privada
Señor. CELAM, Colección de Textos básicos para 3.3 Séculos XI-XX: reconciliação mediante penitência
Seminarios latino-americanos. v.IX 2-2. Bogotá, 1997. de confissão
4 A experiência da reconciliação proposta no Ritual da
BASURKO, X. Para comprender la Eucaristía. Penitência de 1973 e seus desafios pastorais
Estella: Verbo Divino, 1997.
4.1 O Ritual da Penitência de 1973
BENTO XVI. Exhortación Apostólica 4.1.1 Destaques teológico-litúrgicos
Postsinodal Sacramentum Caritatis. 22 fev 2007. 4.1.2 Avanços e limites
BETZ, J. La Eucaristía, misterio central. In: 4.2 Celebrar a reconciliação hoje: pistas de ação
FEINER, J.; LÖHRER, M. (eds). Mysterium salutis. Referências
v.IV/2. Madrid: 1975. p.186-310.
BOROBIO, D. Eucaristía, Sapientia Fidei 23. Introdução
Madrid: BAC, 2000.
A abordagem sobre o sacramento da reconciliação
BROUARD, Maurice (dir.). Enciclopedia de la dar-se-á a partir dos seguintes pontos: 1) A reconciliação
Eucaristía. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2004. como condição para a perfeita integração do ser humano
CONCÍLIO VATICANO II. Constitución sobre la consigo mesmo, com Deus, com a comunidade eclesial,
Sagrada Liturgia, Sacrosanctum Concilium. 1965. com a sociedade e com o cosmos; 2) A experiência da
reconciliação na Sagrada Escritura; 3) A experiência da
D’ANNIBALE, Miguel Ángel. El misterio
reconciliação na prática da Igreja (abordagem histórico-
eucarístico. In: MANUAL DE LITURGIA del CELAM.
teológica); 4) A experiência da reconciliação proposta
v.III. Santafé de Bogotá, 2001. p.167-260.
no novo ritual da penitência e seus desafios pastorais.
FRANCISCO. Audiencia general 8 noviembre
2017. Disponível em:
98
1 Reconciliação: condição para a perfeita os dois polos ou realidades que devem ser reconciliados.
integração do ser humano consigo mesmo, com Deus, (BOROBIO, 2009, p.297)
com a comunidade eclesial, com a sociedade e com o
A reconciliação é, portanto, fruto de contínuo
cosmos
processo de conversão que perpassa todo o agir humano,
Dentre as questões existenciais postas pelo ser desde a simples tarefa de cumprir o dever cotidiano até
humano, ao longo da história, talvez a que mais o ações de maior vulto como: solidariedade, correção
inquiete seja a da busca pela paz. Dentre as múltiplas fraterna, perdão mútuo, compromisso com a justiça,
formas de comportamento, tanto em nível pessoal como engajamento na defesa da vida no planeta etc. Portanto,
social, há aquelas que geram sérias rupturas que essa compreensão de “conversão” e a consequente
extrapolam o âmbito das relações humanas, a ponto de “reconciliação” suplantarão a mentalidade de que o
pôr em risco até a viabilidade da vida no planeta. Parece perdão de Deus se limita tão somente ao momento
que as divisões e tensões no mundo tendem a se celebrativo do sacramento da reconciliação.
desenvolver em círculos concêntricos, ou seja, desde
2 A experiência da reconciliação na Sagrada
simples conflitos interpessoais e familiares até grandes
Escritura
impasses gerados por interesses políticos de povos e
nações. O papa Francisco, em sua Constituição A história de Israel é marcada pela intervenção
Apostólica Veritatis Gaudium, enfoca, com lucidez, constante daquele que é “paciente e misericordioso”, que
aspectos dessa questão: não leva em conta as faltas e pecados desse povo (Sl
130,3). Esse agir salvífico do Eterno perpassa toda a
Tanto mais que, hoje, não vivemos apenas uma época de
Sagrada Escritura. Embora admitindo haver outras
mudanças, mas uma verdadeira e própria mudança de
possibilidades de enfoque do tema em questão, para o
época, caracterizada por uma “crise antropológica” e
escopo deste texto, optamos por tecer alguns
“socioambiental” global, em que verificamos de dia para
apontamentos sobre a experiência da reconciliação a
dia cada vez mais “sintomas dum ponto de ruptura, por
partir da tríade: pecado – misericórdia – conversão (cf.
causa da alta velocidade das mudanças e da degradação,
NOCENT, 1989, p.149-154).
que se manifestam tanto em catástrofes naturais
regionais como em crises sociais ou mesmo 2.1 Pecado – misericórdia – conversão, no
financeiras”. Em última análise, trata-se de “mudar o Antigo Testamento
modelo de desenvolvimento global” e de “redefinir o a) O pecado remonta às origens, ou seja, a partir
progresso” (VG n.3). do momento em que o ser humano ambiciona tomar o
Essa mudança e redefinição de modelo lugar do próprio Deus. Por causa desse pecado das
comportamental a que o Papa se refere pode ser origens, fomos gerados na culpa (Sl 51,7). O pecado está
vinculada à palavra “reconciliação”, tão cara à tradição relacionado com a Aliança. É, pois, apostasia da
bíblico-litúrgica. É sabido que o ser humano, na sua fidelidade a Deus. Há diversos tipos de pecado, sendo o
essência, aspira por um mundo melhor, justo, fraterno, mais comum e mais grave o da idolatria. Em virtude
reconciliado. A concretização de tal aspiração exige da dessas “infidelidades”, o povo de Israel é submetido a
pessoa de boa vontade a decisão de colocar-se num “castigos” e experimenta a alegria do “retorno” a Deus.
contínuo processo de metanoia, de mudança radical de Embora sendo de responsabilidade de todos, inclusive de
seu pensar, agir e sentir. Isso porque o ser humano “não reis, o pecado é também responsabilidade individual. O
é nem um ‘não’, nem um ‘já’, mas um ‘ainda não’, um pecado é escravidão e, por isso mesmo, atrai o castigo de
ser inacabado chamado a se aperfeiçoar, que deve ser Deus. Esse castigo é, muitas vezes, interpretado como
criativo e deve se sentir chamado a lutar e avançar” um tipo de remédio dado por Deus para corrigir seus
(BOROBIO, 2009, p.298). filhos e filhas do pecado.
A reconciliação é condição sine qua non para que b) A misericórdia de Deus é largamente cantada
se estabeleça a perfeita integração do ser humano nos textos sagrados, pois ele é, desde sempre,
consigo mesmo, com Deus, com a comunidade eclesial, misericórdia (Dt 4,31). No livro dos salmos, por
com a sociedade e com o próprio cosmos. Esse processo exemplo, encontramos eloquentes vozes que cantam esse
se dá, em primeira instância, no reconhecimento das agir de Deus: “Ele perdoa todas as tuas iniquidades e
limitações e fraquezas que induzem o ser humano a cura todas as tuas doenças” (Sl 103,3); “Perdoaste a
práticas ilícitas e injustas. maldade do teu povo, encobriste todos os seus pecados”
(Sl 85,3); “Não age conosco segundo nossos pecados, e
É falsa, portanto, a reconciliação daquele que fecha os
não nos retribui segundo nossas iniquidades” (Sl
olhos para a realidade e faz como se não existisse; ou a
103,10); “Dai graças ao Senhor, porque ele é bom: sua
do que começa desculpando-se a si mesmo de modo
misericórdia é para sempre” (Sl 136,1).
total; ou a de quem pretende se reconciliar aniquilando o
contrário; ou a de quem renuncia a todo esforço de c) A conversão é experimentada como dom do
reconciliação dizendo a si mesmo: “Não há nada a próprio Deus. Ele, em pessoa, ou através dos profetas,
fazer”. Esses caminhos são falsos porque negam, em convida seu povo à conversão: “Filhos dos homens, até
princípio, a condição básica para a reconciliação: aceitar quando tereis o coração pesado? Para que amais a
99
vaidade e procurais a mentira?” (Sl 4,3); “Não no caminho da vida; é o caminho que une Deus e o
endureçais os vossos corações como em Meriba, como homem” (MV n.2).
no dia de Massa, no deserto” (Sl 95,8); “Cada qual volte
c) A conversão é meio eficaz para a obtenção da
atrás do seu mau caminho. Melhorai vossa conduta e
misericórdia e se processa sob duas vertentes: o desejo
vossas obras” (Jr 18,11); “Vinde, voltemos ao Senhor”
humano de uma mudança radical de vida (metanoia) e o
(Os 6,1). Enfim, o salmo 51 sintetiza, de forma
auxílio divino para sua plena realização. No entanto,
eloquente, a teologia da culpa, da conversão e da
vale a ressalva de que a iniciativa é sempre de Deus,
misericórdia de Deus no Primeiro Testamento.
como bem expressa o apóstolo Paulo, Cristo foi enviado
2.2 Pecado – misericórdia – conversão, no Novo não quando estávamos decididos a nos converter, mas
Testamento quando estávamos em plena situação de pecado (cf. Rm
5,6s).
a) O pecado, bem como todas as suas implicações,
deve ser abordado à luz do mistério de Cristo. Conforme A escuta da Palavra de Deus e a consequente
o apóstolo Paulo, o pecado entrou no mundo por um só adesão a ela nos reposicionam na trilha do seguimento
homem (Rm 5,12) e por um só homem a morte será de Cristo, pois ele nos perdoa o pecado, e nos torna
vencida (1Cor 15,21). Portanto, o pecado advém do criaturas novas, graças ao mistério de sua morte e
início do mundo e todos os seres humanos estão ressurreição. Em outras palavras, trata-se de levar a
implicados nele: “Se dizemos que não temos pecado, efeito, em nossas vidas, a dinâmica do mistério pascal de
enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em Cristo.
nós” (1Jo 1,8); “Quem dentre vós não tiver pecado atire
3 A experiência da reconciliação na prática da
a primeira pedra!” (Jo 8,7).
Igreja
Em geral, nos escritos neotestamentários, o pecado
A Igreja, ao longo de sua história, conheceu
consiste na recusa da Palavra (Mt 13,22), na negação do
modalidades diversas quanto à compreensão teológica e
Verbo e da luz (Jo 3,19), no não reconhecimento da
à prática celebrativa da reconciliação. Para o escopo
própria cegueira (Jo 9,41), na recusa de Cristo (Jo 1,11),
deste texto, a abordagem histórico-teológica dar-se-á a
na prática da iniquidade (1Jo 2,14-17). Enfim, do
partir dos seguintes períodos: a) séculos I-VI (mediante
“pecado” brotam os pecados, como bem aponta o
penitência canônica); b) séculos VII-XI (reconciliação
apóstolo Paulo em uma de suas listas: “libertinos,
mediante penitência tarifada / privada); c) séculos XI-
idólatras, adúlteros, sodomitas, ladrões, gananciosos,
XX (reconciliação mediante penitência de confissão).
beberrões, maldizentes, estelionatários (…)” (1Cor 6,9-
10). 3.1 Séculos I-VI: reconciliação mediante
penitência canônica
b) A misericórdia caracteriza o Deus dos cristãos.
Os fiéis são o objeto dessa misericórdia divina: “Bem- Nos dois primeiros séculos da era cristã, há poucos
aventurados os misericordiosos, porque alcançarão registros alusivos à prática penitencial dos cristãos. A
misericórdia” (Mt 5,7). Jesus Cristo é o rosto da título de exemplo, citamos a Didaqué, a Carta de
misericórdia do Pai. “Quando se completou o tempo Barnabé, a Primeira Carta de Clemente de Roma aos
previsto, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, Coríntios e O Pastor de Hermas (cf. NOCENT, 1989,
nascido sujeito à Lei, para resgatar os que eram sujeitos p.165-169).
à Lei, e todos recebermos a dignidade de filhos” (Gl 4,4- a) A Didaqué (séc. I), na esteira dos escritos
5). O evangelista Lucas é, certamente, quem melhor neotestamentários, elenca alguns pecados graves,
reúne os diversos comportamentos de Jesus que correspondentes aos mandamentos (cap. 2). Fala,
manifestam a misericórdia. A parábola do pai e dos dois igualmente, da “confissão” dos pecados à assembleia
filhos é paradigmática: o pai, tomado de compaixão, vai (cap. 4) e impõe condições (confissão dos pecados) para
às pressas ao encontro do filho que retorna e, depois de a participação plena na mesa do Senhor (cap. 14). Vale o
tê-lo acolhido afetuosamente (com abraços e beijos), de alerta de que tal “confissão” seja, possivelmente, uma
ter ouvido a sua “confissão”, o conduz para o banquete espécie de reconhecimento público dos próprios
(Lc 15,11-32). Aliás, a atitude de Jesus de se mostrar pecados, tipo “ato penitencial”, de nossas celebrações
amigo dos pecadores, marginalizados, doentes, eucarísticas.
atribulados – e que foi motivo de escândalo para fariseus
e até alguns de seus discípulos! – decorre de sua missão b) A Primeira carta de Clemente de Roma aos
primordial, que é revelar a misericórdia do Pai. Coríntios (séc. I) traz algo mais concreto: “Vós que
inspirastes a revolta, submetei-vos aos presbíteros e
Enfim, misericórdia aceitai o castigo como vossa penitência, dobrando os
é condição da nossa salvação; é a palavra que revela o joelhos do vosso coração” (57,1).
mistério da Santíssima Trindade; é o ato último e c) A Carta de Barnabé (séc. II), além de listar
supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro; é a lei uma série de vícios a serem evitados, traz advertências
fundamental que mora no coração de cada pessoa, de cunho escatológico: “O Senhor está perto, com o seu
quando vê com olhos sinceros o irmão que se encontra salário” (cap. 19).
100
d) O Pastor de Hermas (séc. II) aborda a questão Na prática, a penitência tarifada provocou
penitencial sob os aspectos da perspectiva escatológica, impasses, tipo: como solucionar casos de, numa única
da conversão e da única possibilidade de receber o confissão, a pessoa se ver obrigada a reparar muitos anos
perdão da Igreja. de penitência? Diante disso, criaram-se as chamadas
comutações ou resgates da ação penitencial. Tais
A partir do século III, verifica-se com mais clareza
comutações podiam ser feitas conforme cálculos
a prática penitencial. Estabelece-se a “penitência
previstos, por exemplo: a) ação penitencial de longa
“canônica” ou “pública”, concedida uma única vez na
duração: podia ser substituída por outra mais breve,
vida para os pecados mais graves. Trata-se de uma
porém mais dura; b) ação penitencial trocada por
disciplina rigorosa de expiação, que terminava com a
dinheiro: a quantia variava conforme a pena; c) ação
reconciliação eclesial, através do ministério do bispo.
penitencial substituída pela missa: encomendava-se certo
Constava, basicamente, de três momentos bem distintos:
número de missas como pagamento da penitência
a) a confissão secreta do pecado, ao bispo. Este admitia
imposta; d) ação penitencial resgatada por meio de outra
a pessoa ao grupo dos “penitentes”; b) o tempo
pessoa: valia-se do preceito evangélico de uns
necessário para a realização das obras de penitência, ou
suportarem as cargas dos outros (cf. BAÑADOS, 2005,
seja: jejuns prolongados, restrições alimentares, uso de
p.217).
vestes penitenciais e de cilício, oração de joelhos etc. Ao
penitente cabia, ainda, a tarefa de pedir aos membros da Embora o acesso reiterado ao sacramento tenha
comunidade de fé que orassem em seu favor; c) sido um dado positivo na história da Penitência, no que
a reconciliação ou a paz. Trata-se do momento tange à prática pastoral, houve limites consideráveis, por
celebrativo em que o bispo e os presbíteros presentes exemplo, à “mercantilização” das penas. Isso, além de
impunham as mãos sobre os penitentes, concedendo-lhes acentuar o caráter individual e mágico do sacramento,
a remissão dos pecados e sua readmissão na assembleia reforçou o binômio confissão-absolvição, relativizando a
eclesial. penitência como tal.
Enfim, ninguém duvida do valor pedagógico dessa 3.3 Séculos XI-XX: reconciliação mediante
prática antiga de penitência, respaldada pela consciência penitência de confissão
de sua estreita vinculação com o sacramento do batismo.
Mesmo ainda existindo a penitência pública
Este é, na verdade, a “penitência primeira”. O
reservada a pecados públicos, tidos como escandalosos,
sacramento da reconciliação, por sua vez, era tido como
a confissão auricular ocupou, gradativamente, seu
um segundo batismo. No entanto, o rigor extremo e o
espaço, a ponto de tornar-se a única forma de celebrar o
fato de ser concedido somente uma vez na vida e de ter
sacramento. Desencadeia-se um tipo de “confissão
consequências para toda a vida contribuíram para que as
devocional”, caracterizada pela acusação dos pecados
pessoas adiassem, o quanto possível, o acesso ao
(da parte do penitente) e a absolvição imediata (da parte
sacramento da reconciliação. Disso decorreram efeitos
do ministro ordenado). Essa “confissão” foi, aos poucos,
colaterais como: o afastamento progressivo da
tornando-se um condicionante para a comunhão
comunhão eucarística e a transformação da reconciliação
eucarística, mesmo que uma vez ao ano, como propôs o
em sacramento de idosos e moribundos.
Concílio de Latrão (1215). Enfim, a reconciliação que,
3.2 Séculos VII-XI: reconciliação mediante nos primeiros séculos, era concedida uma vez na vida –
penitência tarifada / privada pois este sacramento era tido como um segundo batismo,
ou “batismo laborioso” –, agora torna-se obrigatória uma
O século VII é tido como um divisor de águas em
vez ao ano. Essa prática se estendeu até o Concílio de
matéria de disciplina penitencial. Dá-se uma ruptura
Trento (séc. XVI).
com a antiga prática, ou seja: a reconciliação pode
realizar-se privadamente e ser repetida. Essa prática Na época do Concílio de Trento, o problema teológico e
disciplinar, utilizada por monges irlandeses e escoceses, disciplinar do sacramento da penitência era complexo
fora também estendida às comunidades paroquiais. O não só por causa da Reforma e da sua atitude para com o
fato de a maioria dos bispos serem também monges sacramento, mas também pela complexidade do
contribuiu para a expansão dessa “novidade”. Daí problema, da disciplina do sacramento e da própria
surgiram os célebres “livros penitenciais”. Nesses livros Igreja. Com efeito, do ponto de vista da disciplina do
se encontram tabelas e listas de pecados e a pena sacramento verificavam-se várias divergências nas suas
correspondente (tarifa) a ser imposta ao penitente, por aplicações (NOCENT, 1989, p.204).
cada pecado cometido. O prazo de duração do
Limitando-se a dar uma resposta de cunho
cumprimento dessas penas variava, conforme a
dogmático aos ataques dos reformadores, o Concílio de
gravidade do pecado, podendo estender-se em dias,
Trento tratou o sacramento da penitência em si mesmo, e
semanas, meses, anos de jejum etc. Em contrapartida,
quando o considera em relação à eucaristia, o faz sob o
continuava em vigor o princípio: “Para pecado grave e
aspecto da dignidade necessária para comungar e
oculto, penitência secreta; para pecado grave e público,
também para salientar que a eucaristia não pode
penitência pública”.
substituir a absolvição no caso de pecado grave. Da
doutrina sobre o sacramento da penitência ensinada por
101
Trento, vale destacar: a) a afirmação sobre a instituição Atendendo ao pedido expresso do Concílio
do sacramento por Cristo e sua necessidade por direito Vaticano de que “o rito e as fórmulas da Penitência
divino, para a salvação aos que caíram depois do sejam revistos de tal forma que exprimam mais
batismo; b) o ensinamento de que a confissão só se faz claramente a natureza e o efeito deste sacramento” (SC
ao sacerdote e é secreta; c) o apelo para a necessidade de n.72), a Sagrada Congregação para o Culto Divino
se confessar todos os pecados, inclusive os veniais, ao publicou, em Roma, no dia 2 de dezembro de 1973, o
menos uma vez por ano. novo Ritual da Penitência (RP).
Trento enfatiza a estreita relação entre indivíduo e Esse ritual é composto de uma “Introdução geral”,
confessor: da parte do indivíduo é exigida uma atitude de um “Rito para a reconciliação individual dos
de profunda contrição, seguida da declaração de todos os penitentes”, de um “Rito para a reconciliação de vários
pecados (confissão) e a satisfação das penas; ao penitentes com confissão e absolvição individuais”, de
confessor, representante de Deus e juiz, caberá a um “Rito para a reconciliação de vários penitentes com
absolvição dos pecados do penitente. confissão e absolvição geral”; de um amplo
“Lecionário”; e de três “Apêndices”, a saber: a)
Vale destacar, ainda, o ensinamento de Trento
absolvição de censuras e de dispensa de irregularidade;
sobre a diferença entre o sacramento da penitência e o
b) exemplos de celebrações penitenciais: Quaresma,
sacramento do batismo:
Advento, Celebrações ordinárias para crianças, para
É evidente que este sacramento é diferente do batismo jovens, para enfermos; c) esquema para exame de
por muitas razões. Pois além de serem muitíssimo consciência.
diferentes a matéria e a forma que perfazem a essência
4.1.1 Destaques teológico-litúrgicos
do sacramento, consta também que o ministro do
batismo não deve ser juiz, porque a Igreja não exerce A “Introdução geral” do RP, afinada com
jurisdição sobre a pessoa que não tenha primeiro entrado a Sacrosanctum Concilium, inicia-se com a abordagem
pela porta do batismo. (…) O mesmo não se dá com os do ministério da reconciliação no âmbito da história da
que são da família da fé, os que o Cristo Senhor, com o Salvação: o Pai, desde sempre, manifestou sua
banho do batismo, fez uma vez por todas membros de misericórdia e reconciliou o mundo consigo. Esse plano
seu corpo. Com efeito, se estes se contaminarem depois divino atingiu seu ápice no mistério pascal de Cristo.
de algum delito, devem, segundo a sua vontade, Desde então, a Igreja jamais deixou de convocar homens
purificar-se, não por um novo batismo, o que de nenhum e mulheres à conversão, mediante a celebração do
modo é lícito na Igreja católica, mas comparecendo sacramento da reconciliação. A este sacramento associa-
como réus diante deste tribunal da penitência, a fim de se o batismo, “pelo qual o velho homem é crucificado
poderem, pela sentença do sacerdote, libertar-se, não com Cristo para que, destruído o corpo do pecado, já não
apenas uma vez, mas todas as vezes que, arrependidos sirvamos o pecado, mas, ressuscitados com Cristo,
de seus pecados, recorrerem a ele (DENZINGER- vivamos para Deus”, e a eucaristia, que edifica a Igreja e
HÜNERMANN, 2007, n.1671). faz de seus membros “um só corpo e um só espírito” (RP
n.1-2).
Nos séculos seguintes (pós-tridentinos), a teologia
e a prática pastoral do sacramento da penitência A segunda seção discorre sobre a reconciliação
percorrem a trilha traçada por Trento e não apresentam dos penitentes na vida da Igreja: Cristo amou a Igreja e
mudanças substanciais, apesar de acaloradas discussões por ela se entregou para santificá-la, unindo-a a si como
em torno da intensidade da “contrição”. A “satisfação” esposa. Essa, por sua vez, nem sempre lhe é fiel e, por
imposta após a absolvição, além de levar o penitente à isso mesmo, necessita de contínua purificação e
aceitação da pena (cura das sequelas do pecado renovação. No sacramento da reconciliação, “os fiéis
cometido), torna-o mais cauteloso e vigilante no futuro. obtêm da misericórdia divina o perdão da ofensa feita a
Também sobressaem nesse período reiterados apelos à Deus e, ao mesmo tempo, são reconciliados com a
“confissão individual”, quase sempre tida como Igreja, que eles feriram pelo pecado e que colabora para
condição para se receber dignamente a eucaristia. A sua conversão com a caridade, o exemplo e as orações”
confissão frequente de todos os pecados (inclusive os (LG n.11).
veniais) torna-se obsessão da parte do clero.
Ainda nesta seção, vêm apresentadas as partes
4 A experiência da reconciliação proposta no constitutivas do sacramento da reconciliação, a saber:
Ritual da Penitência de 1973 e seus desafios pastorais
a) A contrição. Da contrição interior depende a
Esta última seção se ocupará, em primeiro lugar, autenticidade da penitência. A conversão deve atingir
do estudo do Ritual da Penitência de 1973, buscando intimamente o ser humano para iluminá-lo cada dia, com
destacar nele sua teologia. Em seguida, serão maior intensidade, e configurá-lo cada vez mais ao
apresentadas três pistas de ação, tendo em vista uma Cristo.
consciente, ativa e frutuosa participação dos fiéis na
b) A confissão exige do penitente a vontade de
celebração da reconciliação.
abrir seu coração ao ministro de Deus; e da parte deste,
4.1 O Ritual da Penitência de 1973 um julgamento espiritual pelo qual, agindo em nome de
102
Cristo, pronuncia, em virtude do poder das chaves, a uma vez que a reconciliação com Deus é solicitada e
sentença da remissão ou da retenção dos pecados. concedida pelo ministério da Igreja (RP n.19).
c) A satisfação das culpas é expressão concreta da A quinta seção fala das “Celebrações
verdadeira conversão, ou seja, da reparação do dano penitenciais”. Quanto à natureza e estrutura, essas
causado. É necessário, por conseguinte, que a satisfação celebrações são
imposta seja realmente remédio para o pecado e, de
reuniões do povo de Deus para ouvir sua Palavra, que
algum modo, renovação de vida. Assim, o penitente,
convida à conversão e à renovação de vida, proclamando
esquecendo o que passou (Fl 3,13), integra-se de novo
também nossa libertação do pecado pela morte e
no mistério da salvação lançando-se para frente.
ressurreição de Cristo. Sua estrutura é a mesma das
d) A absolvição. Pela confissão sacramental, Deus celebrações da Palavra, proposta no “Rito para
concede perdão mediante o sinal da absolvição, e assim reconciliação de vários penitentes”. (RP n.36)
realiza o sacramento da reconciliação. Por este
Quanto à utilidade e importância, as “Celebrações
sacramento, o Pai acolhe o seu filho que regressa; Cristo
penitenciais” fomentam o espírito de penitência da
coloca sobre os ombros a ovelha perdida, reconduzindo-
comunidade cristã; ajudam os fiéis a prepararem a
a ao redil; e o Espírito Santo santifica de novo seu
confissão que cada um poderá fazer oportunamente;
templo ou passa a habitá-lo mais plenamente. Isso se
educam as crianças a adquirirem, gradualmente, a
manifesta plenamente na participação frequente ou mais
consciência do pecado na vida humana e da libertação
fervorosa na mesa do Senhor, havendo grande júbilo na
do pecado por Cristo; ajudam os catecúmenos em sua
Igreja de Deus pela volta do filho distante (cf. RP n.6).
conversão. Além disso, onde não houver nenhum
Vale observar que a satisfação aparece antes da ministro ordenado disponível para conceder a absolvição
absolvição, ou seja, a ordem ideal da estrutura do sacramental, as celebrações penitenciais são utilíssimas
sacramento fora restabelecida. por despertar nos fiéis uma contrição perfeita, nascida da
caridade, pela qual, com o desejo de receber mais tarde o
Quanto à reiteração do sacramento, dentre outras
sacramento da reconciliação, possam conseguir a graça
recomendações, o RP esclarece que
de Deus (cf. RP n.37).
não se trata de mera repetição ritual, nem de uma espécie
A última seção da “Introdução geral” do RP
de exercício psicológico, mas de um esforço assíduo
discorre sobre as “Adaptações do Rito às diversas
para aperfeiçoar a graça do batismo, a fim de que,
regiões e circunstâncias”. Tais adaptações poderão ser
trazendo em nosso corpo a mortificação de Cristo, a vida
feitas pelas conferências episcopais (RP n.38), pelo
de Jesus se manifeste cada vez mais em nós. (…) A
bispo diocesano (RP n.39) e pelo ministro (RP n.40).
celebração deste sacramento é sempre uma ação pela
qual a Igreja proclama sua fé, dá graças a Deus pela 4.1.2 Avanços e limites
liberdade com que Cristo nos libertou, e oferece sua vida
Para tecer algum juízo sobre o RP de 1973, é
como sacrifício espiritual para o louvor da glória de
necessário levar em conta que este ritual é fruto de um
Deus, enquanto se apressa ao encontro de Cristo (RP
laborioso trabalho articulado pelo Consilium. A.
n.7).
Bugnini, em sua antológica obra A reforma litúrgica,
A terceira seção versa sobre as funções e assim se expressa: “A revisão dos ritos da Penitência
ministérios na reconciliação dos penitentes. Além de passou por um caminho bastante longo e difícil. Foram
destacar o papel de toda a comunidade na celebração da necessários sete anos para pôr em prática as poucas
reconciliação, recorda que a Igreja está envolvida e age linhas que a Constituição litúrgica dedica a esse assunto”
na reconciliação; salienta a responsabilidade do bispo e (2018, p.551).
dos presbíteros (que agem em comunhão com o bispo)
Grandes questões foram discutidas, algumas delas,
na remissão dos pecados; lembra que “o fiel, enquanto
de forma “acalorada”, já na primeira etapa dos trabalhos
experimenta e proclama em sua vida a misericórdia de
(1966-1969), como o aspecto social e comunitário do
Deus, celebra junto com o ministro ordenado a liturgia
pecado e da reconciliação, a questão de uma possível
de uma Igreja que continuamente se renova” (RP n.8-
celebração comunitária da reconciliação, com absolvição
11).
geral, sem prévia confissão individual, uma nova
A quarta seção, por sua vez, descreve as três fórmula sacramental de absolvição e a possibilidade de
modalidades de celebração do sacramento da fórmulas sacramentais facultativas etc.
reconciliação, buscando mostrar sua importância na vida
Foi a partir desse contexto que se elaborou o novo
dos fiéis; ressalta a teologia da fórmula da absolvição,
RP. As três modalidades de celebração da reconciliação,
nestes termos:
propostas nesse ritual, constituem um bom exemplo
A fórmula da absolvição mostra que a reconciliação do disso. O célebre liturgista A. Nocent, numa análise
penitente procede da misericórdia do Pai; indica o nexo crítica do RP, reconhece como positivas essas
entre a reconciliação do pecador e o mistério pascal; modalidades, sob três aspectos: a) a tentativa de
exalta a ação do Espírito Santo no perdão dos pecados, e restabelecer a unidade entre Palavra e sacramento; b) a
finalmente evidencia o aspecto eclesial do sacramento, intervenção, ao menos parcial, da comunidade eclesial;
103
c) a apresentação de formulário de absolvição – As celebrações penitenciais poderão facilitar a
dogmaticamente mais rico, e que corrige o aspecto passagem de uma concepção individualista, legalista,
jurídico. Por outro lado, lamenta que nenhuma das três formalista, para uma mentalidade mais bíblica e
modalidades é realmente satisfatória e adequada às comunitário-eclesial da reconciliação. Não tendo de
circunstâncias atuais, nestes termos: preocupar-se com confissão e absolvição, as pessoas
estão mais dispostas a concentrar-se na Palavra de Deus
O primeiro ritual, aquele relativo ao penitente que se
e deixar-se transformar por ela. E ainda: com o fato de a
encontra com o confessor, não se realiza facilmente:
presidência dessas celebrações não se restringir ao
supõe contato humano e espiritual para diálogo, une ao
ministro ordenado, torna-se mais evidente a
sacramento breve liturgia da Palavra, mas falta-lhe a
responsabilidade da comunidade e de cada pessoa como
visibilidade da comunidade e sobretudo dificilmente se
ministra da penitência.
pode realizar em paróquia ou grupo de pessoas que se
apresentam juntas; e isso impossibilita a prática prevista – A comunidade poderá privilegiar momentos
pelo ritual. propícios para as celebrações penitenciais, como: nos
tempos da Quaresma e do Advento, nas festas dos
O segundo ritual acentua a preparação comunitária para
padroeiros, nos encontros de romarias, em momentos
a confissão, coisa que não tem nenhuma base na
pontuais da caminhada eclesial, sobretudo em situações
tradição, mas que de fato constitui enriquecimento. Mas
de desencontros, desentendimentos, rixas etc.
no momento em que o ritual sacramental deveria
acentuar o aspecto comunitário do sacramento, a – As celebrações penitenciais poderão ajudar as
absolvição, sem a licença do Ordinário, permanece comunidades na compreensão de que a reconciliação é
individual. É comunitária só a preparação para o um itinerário espiritual que dura toda a vida e que seu
sacramento, enquanto o sacramento mesmo continua objetivo primordial é o “homem novo”.
visivelmente individual.
– Uma vez que as celebrações penitenciais são
O terceiro ritual, a absolvição sem confissão prévia, não “reuniões do povo de Deus para ouvir sua Palavra, que o
encontra nenhum apoio na tradição, pelo fato de que a convida à conversão e à renovação de vida, proclamando
antiguidade considerava a absolvição coroamento da também nossa libertação do pecado pela morte de
conversão. Aqui, ao contrário, a absolvição é posta em Cristo” (RP n.36), seu incremento na vida da
plano jurídico, sem nenhum controle sobre o modo como comunidade propiciará aos fiéis a experiência da eficácia
o penitente tenciona converter-se. Contudo, é forçoso da Palavra proclamada que, pela ação do Espírito, faz
reconhecê-lo, vivemos em situações novas, que a Igreja acontecer a conversão e a renovação da vida.
antiga não conheceu (NOCENT, 1989, p. 215-216).
c) Atentar-se para o horizonte aberto de possíveis
4.2 Celebrar a reconciliação hoje: pistas de ação “adaptações”. Como vimos anteriormente, a
“Introdução geral” do RP propõe adaptações do rito às
Celebrar a reconciliação nas comunidades, hoje,
diversas regiões e circunstâncias, abrangendo os níveis
continua sendo um grande desafio. Mesmo assim,
da conferência episcopal, do bispo diocesano e do
ousamos apontar três exigências que julgamos
ministro (RP n.38-40).
fundamentais no incremento da pastoral da
reconciliação. Ei-las: Para os dois primeiros níveis (da conferência
episcopal e do bispo diocesano), excetuando a exigência
a) Promover uma formação teológico-litúrgica
explícita de que se deva conservar a fórmula sacramental
sobre a sacramento da reconciliação para o clero e o
na sua integralidade, todo o restante do ritual poderá ser
povo, em geral. Uma vez que esse sacramento seja “um
adaptado, inclusive com a composição de novos textos.
alegre encontro do ser humano com Deus, pela mediação
da Igreja”, tal formação poderá ser realizada, a partir do No nível do ministro, principalmente os párocos,
tripé: fica aberta a possibilidade de adaptar o rito às
circunstâncias concretas dos penitentes, desde que se
– Deus: aquele que promove e torna possível a
conserve sua estrutura essencial e a integralidade da
plena reconciliação;
fórmula de absolvição. Recomenda-se, também, o uso
– A Igreja: aquela que colabora e torna visível o frequente de celebrações penitenciais ao longo do ano.
encontro de reconciliação;
Portanto, no RP, há um vasto campo de
– O penitente: a pessoa que aceita e participa possibilidades de adaptações do rito. Isso propiciará à
ativamente na reconciliação (BOROBIO, 2009, p.324). comunidade de fé celebrar de forma mais consciente,
b) Promover as celebrações penitenciais. Essas ativa e frutuosa a reconciliação.
celebrações, previstas no RP, ainda carecem de especial Concluímos este texto com uma observação sobre
atenção da parte dos párocos e lideranças das o título do ritual. A. Bugnini assim o justifica:
comunidades eclesiais. A liturgista I. Buyst nos dá boas
O título geral do volume é Ordo Paenitentiae, porque
razões para o incremento de tais celebrações (cf.
contém indicações para os ritos quer sacramentais, quer
BUYST, 2008, p.54-66):
não sacramentais.
104
Para a ação litúrgica sacramental é preferido, nos Matrimônio
capítulos individuais do Ordo, o termo Reconciliatio. Ele
Sumário
indica melhor que a penitência sacramental é, a um
1 O matrimônio no conjunto dos 7 sacramentos
tempo, ação de Deus e do homem, ao passo que
1.1 A “diferença” do primeiro / último
“Penitência” enfatiza mais a ação do homem.
sacramento
(…) Reconciliatio é mais propriamente usado pela Igreja
1.2 A lógica paradoxal do matrimônio
antiga para o ato sacramental. (…) Esta terminologia
1.3 O matrimônio é um bem?
serve também para chamar a atenção e aprofundar um
1.4 A história dos sujeitos e o depositum fidei
aspecto fundamental para a compreensão e a renovação
2 Quatro modelos clássicos de teologia do
da penitência sacramental (2018, p.560-561).
matrimônio
Em suma, a reconciliação é ação de Deus, é 2.1 O modelo das origens: matrimônio e
iniciativa de Deus, como bem expressa o Apóstolo: patrimônio
Tudo vem de Deus, que, por Cristo, nos reconciliou 2.2 A laboriosa construção de um modelo
consigo e nos confiou o ministério da reconciliação. medieval: tradições romanas e bárbaras
Sim, foi o próprio Deus que, em Cristo reconciliou o 2.3 O modelo moderno: nasce a forma canônica
mundo consigo, não levando em conta os delitos da 2.4 A era secular e a reação católica: resistência
humanidade, e foi ele que pôs em nós a palavra da do poder temporal
reconciliação (2Cor 5,18-19). 2.4.1 Arcanum Divinae Sapientiae, Leão
XIII (1880) e Código de 1917
Joaquim Fonseca, OFM – Instituto Santo Tomás 2.4.2 Casti Connubii, Pio XI (1930)
de Aquino. (texto original português) 2.4.3 Gaudium et Spes, Concílio Vaticano II
Referências (1965)
2.4.4 Humanae Vitae, Paulo VI (1968)
BAÑADOS, C. P. Penitência e reconciliação. In: 2.4.5 Familiaris Corsortio, João Paulo II (1981)
CELAM. A celebração do mistério pascal; os 2.4.6 Código de Direito Canônico (1983)
sacramentos: sinais do mistério pascal. São Paulo: 2.4.7 Amoris Laetitia, Francisco (2016)
Paulus, 2005. Manual de liturgia, v. III, p.205-238. 3 O início de um “novo paradigma” matrimonial,
BOROBIO, D. Celebrar para viver; liturgia e familiar e relacional
sacramentos da Igreja. São Paulo: Loyola, 2009. 3.1 Uma teologia pós-moderna com esquemas
pré-modernos
BUGNINI, A. A reforma litúrgica (1948-1975). 3.2 A autocrítica do magistério do século XIX
São Paulo: Paulus; Paulinas; Loyola, 2018. 3.3 Do ato ao processo: a dimensão escatológica
BUYST, I. As celebrações penitenciais. In: do matrimônio
CNBB. Deixai-vos reconciliar. São Paulo: Paulus, 2008, 4 As questões abertas sobre união e geração
p. 49-66. Estudos da CNBB, n.96. 4.1 O caráter complexo do matrimônio
4.2 Os diversos bens do matrimônio
DENZINGER – HÜNERMANN. Compêndio dos 4.3 O debate sobre a indissolubilidade
símbolos, definições e declarações de fé e moral. São 4.4 Lei objetiva e processo pastoral
Paulo: Paulinas / Loyola, 2007. 4.5 As formas de vida e os cinco continentes do
FRANCISCO. Veritatis Gaudium. Sobre as catolicismo
universidades e as faculdades eclesiásticas. Disponível 5 O bem da relação sexual e o “fenômeno amor”
em: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_cons 5.1 Os bens do matrimônio são três, aliás quatro
titutions/documents/papa-francesco_costituzione- 5.2 A geração perde a exclusividade
ap_20171208_veritatis-gaudium.html Acesso em: 12 set 5.3 Do uso do sexo à experiência da sexualidade
2019. 5.4 Um único bem pode ser abençoado?
5.5 O centro e a periferia: as diferentes
______. Misericordiae Vultus. O rosto da linguagens da Igreja
misericórdia. Bula de proclamação do jubileu Referências
extraordinário da misericórdia. São Paulo: Paulus, 2015.
NOCENT, A. O sacramento da penitência e da
reconciliação. In: NOCENT, A. et al. Os sacramentos; 1 O matrimônio no conjunto dos 7 sacramentos
teologia e história da celebração. São Paulo: Paulinas,
1989, p.143-221. Anamnesis, 4.
VISENTIN, P. Penitência. In: 1.1 A “diferença” do primeiro / último sacramento
VV.AA. Dicionário de liturgia. São Paulo: Paulus,
1992. p. 920-937.
O matrimônio deve ser entendido ao mesmo
tempo como dado natural, como construção social e
105
como símbolo ritual da relação entre Deus e a 1.3 O matrimônio é um bem?
humanidade, entre Cristo e a Igreja. Como tal, aparece, Sabe-se que Santo Agostinho, na sua obra De
desde as primeiras listas dos “sete sacramentos” no bono coniugali [Sobre o bem conjugal], ofereceu a
século XIII, como um deles. É surpreendente, porém, primeira exposição de uma “doutrina matrimonial”, na
que, mesmo nas listas mais antigas, a peculiaridade do qual, no entanto, nota-se uma particularidade que chama
matrimônio tenha características “polares”. Com efeito, a atenção. Embora esse texto esteja na raiz do discurso
está colocado no final ou no início da lista, visto que cristão e católico sobre os “bens do matrimônio”, na
representa, ao mesmo tempo, o caso por excelência e realidade a questão fundamental a que o texto de
o caso limite do fenômeno sacramento. Está na cabeça Agostinho responde é a pergunta pela compatibilidade
ou no fim da experiência sacramental. Por um lado, de entre matrimônio e vida batismal. A polarização que já
fato, é o “último” entre os sacramentos, pois “torna lícito observamos acima encontra aqui um “lugar comum”: se
o que seria ilícito” e pode ser entendido como remedium a fé é um modo de “desposar Cristo” – e isso vale para
concupiscentiae, ou seja, como remédio para a toda a Igreja, masculina e feminina – é ainda possível ou
concupiscência. Por outro lado, os próprios autores lícito ou aconselhável para os batizados o casar-se? A
escolásticos não esquecem que ratione questão, que teve prevalentemente respostas positivas,
significationis (ou seja, “em razão do significado”) o conserva, aqui e ali ao longo da história e nas várias
matrimônio é também o primeiro dos sacramentos: não tradições, a força de traduzir-se em diferentes disciplinas
apenas porque foi instituído por Deus antes da queda do ou papéis sociais. Pense-se, por exemplo, em como o
pecado, mas porque expressa a unidade entre Deus e a matrimônio incidiu diversamente no Oriente e no
humanidade, entre Cristo e a Igreja, com uma força e Ocidente sobre as formas de vida dos pastores (diáconos,
uma imediatidade completamente inimitáveis. Essas presbíteros e bispos).
duas “almas” da tradição eclesial concentram-se ambas
em duas famosas expressões paulinas: o matrimônio
como “distração” e como “limitação do ardor” (1Cor 7) 1.4 A história dos sujeitos e o depositum fidei
e o matrimônio como via de acesso ao “grande mistério” As características particulares do sétimo
da relação entre Cristo e a Igreja (Ef 5). Toda a tradição sacramento sempre tiveram que mediar entre natureza,
eclesial se move entre esses dois polos. história e graça. Por essa razão, as grandes etapas da
teologia do matrimônio são afetadas por uma relação
muito estreita entre as formas de vida (familiar,
1.2 A lógica paradoxal do matrimônio econômica, cultural) e sua interpretação pela Igreja. Pelo
Santo Tomás de Aquino explicita-nos, com menos até o séc. XV, será bastante óbvio confiar à
extrema clareza, a natureza complexa deste natureza e à sociedade a articulação dessa experiência,
sacramento. Na Suma Teológica (III, 65, 1, c), apresenta que a Igreja se limitava a abençoar e elevar à dignidade
um famoso paralelismo entre “vida natural” e “vida de sacramento. As mudanças da história das instituições,
espiritual” e, depois de ter ilustrado para cada da compreensão geográfica do mundo, das formas de
sacramento seu “equivalente natural” (ao nascimento produção e da consciência subjetiva conduzirão, a partir
corresponde o batismo; ao crescimento, a crisma etc.), do século XIX, a uma mudança progressiva no modelo
ao chegar ao matrimônio, diz que “esta realidade de matrimônio e família. E será surpreendente observar
natural” é o sacramento. Em vez disso, na Suma contra como o tema clássico do “matrimônio” se unirá sempre
os Gentios, aborda o matrimônio em duas partes diversas mais ao novo tema da “família”, ignorado pela doutrina
(III e IV): a maior parte do que escreve encontra-se na eclesial por cerca de dezenove séculos. No entanto,
seção onde a razão elabora os dados, enquanto poucas deve-se reconhecer que, precisamente por causa do
linhas são dedicadas à parte propriamente “revelada” e entrelaçamento muito singular de níveis de experiência e
sacramental (voltaremos a isso no próximo conhecimento, o matrimônio é objeto de profunda
parágrafo). Estes dois exemplos, na obra de Tomás, reconsideração natural, social, psicológica e
confirmam algo importante: no matrimônio, de forma econômica. Em todos esses níveis, a tradição teológica,
muito particular, natureza e graça, razão e fé estão após a tentativa de resistência a todo custo, foi forçada a
indissoluvelmente entrelaçadas. Isso significa que a “traduzir a tradição”, como já tinha acontecido pelo
assunção da realidade, seja natural, seja civil, na lógica menos quatro vezes ao longo da história e como mais
do matrimônio é uma condição de possibilidade do uma vez a Amoris Laetitia (AL) exige claramente como
sacramento. Não é por acaso que só deste sacramento se tarefa para as próximas décadas. Examinemos, pois,
diz que não é “instituído por Jesus Cristo”, mas é quatro formas clássicas de impostação da teologia
“elevado” a sacramento, sendo a sua dinâmica já matrimonial.
assegurada pela lógica da criação, da natureza e das
instituições civis.
2 Quatro modelos clássicos de teologia do
matrimônio
106
2.1 O modelo das origens: matrimônio e patrimônio Gentiles = ScG), de Tomás de Aquino. A temática do
O anúncio da plenitude da relação entre homem e matrimônio encontra-se “dividida” em duas partes. A
mulher, como lugar de verdade da Aliança com o Pai primeira, mais consistente, está no livro III (cap. 122-
celeste, qualifica a palavra de Jesus (Mt 19,1-9) e 126), enquanto a mais estritamente sacramental se
inaugura a superação da “dureza de coração”. Mas já nas encontra no livro IV. É preciso saber que os três
palavras mais antigas a presença da “cláusula de primeiros livros da ScG são dedicados à discussão dos
exceção” – “exceto no caso de porneia” – abre espaço argumentos “da razão natural”, enquanto o livro IV
para uma elaboração eclesial da palavra do Mestre, o trabalha no campo da “revelação divina”. Portanto há
que implica uma mediação delicada entre as lógicas dois discursos sobre o matrimônio:
naturais, civis e eclesiais. A identificação dos – no livro III (cap. 122-126), o texto se ocupa do
destinatários da palavra – que foi recebida como palavra matrimônio natural, da indissolubilidade, do matrimônio
universal, mas tem características proféticas e monogâmico, do parentesco e da natureza pecaminosa
escatológicas que indicam que tem os discípulos como de toda união carnal;
destinatários primeiros – pode ser esclarecida
examinando a lógica do conjunto do cap. 19 do – o matrimônio (sacramento) encontra-se no livro
Evangelho segundo Mateus, no qual se passa do IV e se limita a um único capítulo (78).
“matrimônio” (Mt 19,3-9) ao “patrimônio” (Mt 19,16- Neste capítulo 78, o discurso teológico concentra-
30): a indissolubilidade do vínculo pessoal e a ausência se em algumas linhas em torno do tema da
de vínculos econômicos são anunciadas no mesmo texto, generatio (isto é, da “geração”), como categoria central
embora a tradição se tenha orientado a receber o do sacramento:
primeiro como “norma de direito natural” e o segundo Generatio autem humana ordinatur ad multa:
como “conselho evangélico” (cf. BARBAGLIA, scilicet ad perpetuitatem speciei; et ad perpetuitatem
2016). O resultado é, por um lado, a valorização alicuius boni politici, puta ad perpetuitatem populi in
simbólica da união esponsal e, por outro, uma disciplina aliqua civitate; ordinatur etiam ad perpetuitatem
cada vez mais acurada das vivências dos cristãos. A Ecclesiae, quae in fidelium collectione consistit. Unde
assunção da realidade criatural (“os cristãos casam-se oportet quod huiusmodi generatio a diversis dirigatur.
como todos”, da Epístola a Diogneto) ou o juízo sobre a Inquantum igitur ordinatur ad bonum naturae, quod est
relação no plano jurídico, profético ou escatológico perpetuitas speciei, dirigitur in finem a natura
colorem diversamente os primeiros séculos de recepção inclinante in hunc finem: et sic dicitur esse naturae
do Evangelho, até à primeira sistematização por officium. Inquantum vero ordinatur ad bonum
Agostinho (Sobre o bem conjugal). politicum, subiacet ordinationi civilis legis. Inquantum
igitur ordinatur ad bonum Ecclesiae, oportet quod
subiaceat regimini ecclesiastico. Ea autem quae populo
2.2 A laboriosa construção de um modelo medieval: per ministros Ecclesiae dispensantur, sacramenta
tradições romanas e bárbaras dicuntur. Matrimonium igitur secundum quod consistit
A evolução doutrinal e disciplinar na Idade Média in coniunctione maris et feminae intendentium prolem
merece uma consideração cuidadosa (cf. CORTONI, ad cultum Dei generare et educare est Ecclesiae
2021). Em primeiro lugar, surge como evidência que a sacramentum: unde et quaedam benedictio nubentibus
doutrina do matrimônio, na sua unidade, precisou mediar per ministros Ecclesiae adhibetur. (TOMÁS DE
diferentes tradições culturais, jurídicas e mesmo AQUINO, ScG, l. IV, c. 78)
“naturais”. Há, de fato, uma longa elaboração, com a Na tradução:
duração de alguns séculos, que tenta harmonizar a leitura
do matrimônio como “consentimento” – típica da A geração humana está ordenada a várias coisas, a
tradição romana – com a que o entende como “coito” – saber: à perpetuação da espécie, à perpetuação de algum
típica dos povos que chegaram a Roma provenientes do bem político, como seria a perpetuação do povo numa
Norte. A síntese, que o saber teológico e jurídico determinada cidade, ou à perpetuação da Igreja, que
sustentará nas Universidades de Paris e de Bolonha, a consiste na assembleia dos fiéis. É, pois, necessário que
partir do séc. XII, oferecerá uma poderosa mediação tal geração seja dirigida por diversos sujeitos. Com
histórica, combinando no mesmo ato a “validade do efeito, enquanto ordenada ao bem da natureza, que é a
consentimento” e a “indissolubilidade por perpetuação da espécie, dirige-se a este fim por força da
consumação”. A fórmula jurídica, porém, esconde a natureza que a inclina para esse fim: e por isso se diz
presença, na dinâmica do sacramento, de diversos níveis que é um dever natural. Enquanto ordenada a um bem
de experiência, cuja composição está permanentemente político, está sujeita à força de lei
confiada também à mediação da natureza e da cultura civil. Enquanto ordenada ao bem da Igreja, convém que
civil e não pode ser simplesmente antecipada pela Igreja. esteja submissa ao regime eclesiástico. Ora, o que é
conferido ao povo pelos ministros da Igreja, chama-se
Resulta, portanto, extremamente útil analisar sacramento. Portanto, o matrimônio, ao consistir na
cuidadosamente uma das grandes sínteses do saber união de varão e mulher tendente à geração e educação
medieval sobre o matrimônio, tal como se encontra da prole para o culto a Deus, é um sacramento da Igreja
na Suma contra os Gentios (Summa contra
107
e, por isso, é prevista uma bênção dos nubentes pelos esclarecedor de um dos bispos no Concílio, que disse:
ministros da Igreja. (TOMÁS DE AQUINO, ScG, l. IV, “se o matrimônio clandestino fosse abolido, os
c. 78) matrimônios feitos livre e espontaneamente seriam
Se examinarmos o texto, veremos apresentados, abolidos e, consequentemente, seria proibida a
como num espelho, as características do modelo verdadeira amizade entre os cônjuges” (assim diz o
medieval que permanecerá até o Concílio de bispo de Cava dei Tirreni, Tomás Caselius).
Trento. Resumam-se seus pontos chave: Esta decisão inaugura a competência da Igreja nos
– é caracterizado pela “pluralidade de foros”. Um casos matrimoniais, que permanecerá uma espécie
mesmo fenômeno, o matrimônio, lê-se em três âmbitos: de imprinting para todo o período moderno e que
natural, civil e eclesial, aos quais correspondem três estourará na época da modernidade tardia, quando a
“leis” e três “lógicas”; concorrência não será mais dos primeiros Estados
modernos, mas dos Estados liberais que se sucederam à
– a dimensão sacramental é a geração e educação Revolução Francesa. O embate girará em torno à
dos filhos na fé; “competência no tocante à união e à geração”. Um
– o sacramento consiste evidentemente na “bênção contemporâneo, Paulo Sarpi, que foi um cronista
dos esposos” pelos ministros da Igreja, sem que inclua respeitado e crítico do Concílio de Trento, escreveu
diretamente a união sexual nem o consentimento, que sobre o decreto:
pertencem à lógica natural e civil. Seja como for – diziam –, o decreto não teria sido feito
Do ponto de vista sistemático, a “forma” do senão para elaborar, dentro em breve, um artigo de fé
sacramento e sua ministerialidade são concebidas que afirmasse que as palavras pronunciadas pelo pároco
segundo uma visão muito diferente da atual. Já que o seriam a forma do sacramento… Pelo contrário, foi
“consentimento” e a “consumação” pertencem à lógica estabelecido que, sem a presença do sacerdote, todo
racional, natural e civil, à dimensão eclesial compete matrimônio era nulo, suprema exaltação da ordem
simplesmente a “bênção”, que obviamente não é ato dos eclesiástica, visto que uma ação tão importante na
cônjuges (como o são o consentimento e a consumação), administração política e econômica, que até então estava
mas do presbítero ou do bispo. nas mãos unicamente daqueles a quem competia, ficava
inteiramente submetida ao clero, não restando maneira
alguma de contrair matrimônio se os padres, isto é, o
2.3 O modelo moderno: nasce a forma canônica pároco e o bispo, pelo interesse que fosse, se recusassem
A passagem que ocorre com o Concílio de Trento a comparecer. (SARPI)
é de extrema importância. Não apenas porque a doutrina John Bossy, por sua vez, autor de uma síntese
clássica sobre o matrimônio é reafirmada, contra a bem-sucedida sobre a Cristandade, entre o final da Idade
contestação protestante, mas porque, mediante o Média e o início da Idade Moderna, esclarece o que
Decreto Tametsi (1563), se transforma a compreensão aconteceu com o matrimônio no decreto:
institucional do matrimônio: como diz a primeira A proposta foi aceita – era a única que poderia conciliar
palavra, “tametsi” [= embora, não obstante], há uma as partes – e virou lei. Mesmo que tivesse sido de
“concessão”, no cerne do documento, que revoluciona a alguma forma prefigurada pela história anterior sobre o
história do matrimônio católico. Leiamos o primeiro assunto, foi ainda assim um raio em céu sereno, e não
parágrafo do decreto: está claro até que ponto o Concílio estava ciente de ter
A santa Igreja de Deus sempre detestou e proibiu por imposto à Cristandade uma verdadeira revolução, no
justíssimas causas os matrimônios sentido próprio da palavra. Ao cancelar a doutrina
clandestinos, embora não se deva duvidar que, canônica segundo a qual o contrato conjugal seguido
realizados com o livre consentimento dos contraentes, pela cópula carnal constituía o matrimônio cristão,
sejam matrimônios ratificados e verdadeiros, enquanto a excluindo o vasto corpus de ritos e acordos
Igreja não os tenha anulado; consuetudinários por estar privado de potencialidade
e, por conseguinte, com razão devem ser condenados, sacramental, transformava-se o matrimônio de processo
como o santo Sínodo com anátema condena os que social garantido pela Igreja em processo eclesiástico
negam que sejam verdadeiros e ratificados, e também os administrado pela Igreja. (BOSSY, 1997, p. 79)
que afirmam erroneamente que os matrimônios A figura do matrimônio, surgida depois da metade
contraídos pelos filhos da família sem o consentimento do séc. XVI, terá grande influência em nossa maneira de
dos pais são nulos, e que os pais podem torná-los pensar o sacramento, sua verdade e seus efeitos. Embora
ratificados ou nulos. (DH 1813) seja uma intervenção meramente disciplinar, terá não
Neste parágrafo, que abre o decreto, um mundo pequenas consequências doutrinais, que se farão sentir
está mudando. Muda o papel da Igreja no matrimônio. A sobretudo a partir do séc. XIX.
introdução da “forma canônica”, necessária para a
validade do ato, coloca a Igreja numa nova
posição. Houve resistência na época. Eis o parecer
108
2.4 A era secular e a reação católica: resistência do matrimonial traduz-se na norma de uma sexualidade
poder temporal puramente “objetiva”, quase purificada da subjetividade
O título da recente Exortação Apostólica e regulada apenas naturalmente e, portanto, pelo próprio
(FRANCISCO, 2016) é Amoris Laetitia, a alegria do Deus. Num abraço entre graça e natureza que, a longo
amor, o regozijo do amor, mas também a fecundidade e prazo, corre o risco de asfixiar e polarizar cada vez mais
a criatividade do amor. A palavra latina laetitia é rica em a relação com a cultura civil e sua inevitável evolução
ressonâncias e promessas. Assim começa o documento: “responsável”. A identificação de Deus com o “natural”
com a alegria do amor. Depois da alegria do evangelho – e do homem com o “artificial” criou uma polarização
em Evangelii Gaudium – a alegria do amor – em Amoris crescente, que não trouxe somente clareza, mas que, a
Laetitia. Como chegamos até aqui? Pode ser útil longo prazo, ofuscou as mentes e os corações. Assim, o
resgatar, de forma extremamente sumária, as grandes tema da “natureza”, que para a tradição teológica era
etapas que nos trouxeram até este ponto, que é uma garantia do “diálogo com a razão”, tornou-se princípio
espécie de “novo começo”. Depois do modelo antigo, de confronto e oposição à cultura contemporânea.
medieval e moderno-tridentino, surgiu um “modelo séc.
XIX”, que tem sua estreia no primeiro documento papal
da “Idade Moderna tardia”, que aborda a questão 2.4.3 Gaudium et Spes, Concílio Vaticano II (1965)
“matrimonial” em um novo contexto. Estamos em 1880, Os textos que encontramos em GS (n. 46-52)
durante o pontificado de Leão XIII, poucos anos depois testemunham alguns fenômenos de grande importância:
do “assalto da Porta Pia” e da perda do “poder temporal” – matrimônio e família são unidos e pensados na
dos papas. A história que começa naquele momento – e categoria de “problemas mais urgentes”, mas não mais
que chega a seu termo com a AL – está profundamente principalmente apologeticamente, mas com abertura,
marcada por questões institucionais, jurídicas e misericórdia e diálogo;
políticas, que caracterizaram a evolução de grande parte
dos 140 anos seguintes. Questões teológicas e questões – propõe-se uma “leitura personalista” que, de
institucionais foram se entrelaçando de uma nova forma, forma alguma, exclui a manutenção das estruturas
que não tem precedentes na história da Igreja. À luz do disciplinares e doutrinais do séc. XIX, mas as relê com
novo texto, podemos reler essa história de outra maneira. novas lentes: a santidade familiar, o amor conjugal e a
fecundidade são entendidos como parte da missão
eclesial;
2.4.1 Arcanum Divinae Sapientiae, Leão XIII (1880) – o diálogo cultural torna-se um terreno promissor
e Código de 1917 para o desenvolvimento comum, para o reconhecimento
Toda a grande tradição medieval, mediada com do bem do matrimônio e da família, como “escola de
autoridade pelo Concílio de Trento, assume, com enriquecimento humano”.
esta encíclica de Leão XIII, a problemática nova e Esta etapa é crucial, enquanto se enquadra na
inédita de uma reafirmação da “competência eclesial” “natureza pastoral” do Vaticano II, segundo a qual a
em face da reivindicação de competência dos Estados substância da antiga doutrina do depositum fidei se
modernos sobre o matrimônio, que o séc. XIX acabara distingue da formulação de seu revestimento, de acordo
de inaugurar. Os temas fundamentais, típicos de toda a com a alocução Gaudet Mater Ecclesia, com que João
tradição precedente, são assim “filtrados” por este novo XXIII abriu os trabalhos conciliares.
e dramático problema. Nesta encíclica elaboram-se as
“formas de pensamento e de ação” que serão
posteriormente adotadas pelo Código de Direito 2.4.4 Humanae Vitae, Paulo VI (1968)
Canônico de 1917. E que se tornarão, por muitas Não obstante a mudança parcial de linguagem
décadas, o eixo decisivo da compreensão “católica” do introduzida pelo Concílio Vaticano II e o caminho para
matrimônio, da família e do amor. Com seus méritos e uma “personalização” do matrimônio e da família,
seus defeitos. Até hoje, esse “estrangulamento” que certamente encontram uma afirmação de grande
institucional lança sua longa sombra na maneira como importância na Gaudium et Spes, ainda em 1968
falamos, refletimos, agimos e até rezamos sobre o amor encontramos na Humanae Vitae, de Paulo VI, amplos
e o matrimônio. vestígios da configuração que remonta a Arcanum
Divinae Sapientiae e Casti Connubii: o matrimônio e a
família – como lugares únicos para o exercício da
2.4.2 Casti Connubii, Pio XI (1930) sexualidade – são inteiramente “predeterminados” por
Cinquenta anos depois, num mundo Deus, deixando ao ser humano um espaço
completamente diferente, Pio XI assumia um tema de responsabilidade tão pequeno que resulta muitas
particular como o da “contracepção” como “chave de vezes quase fictício e sempre muito formal e, em todo o
compreensão” do matrimônio e da família. Isso caso, sequestrado pelas teorias do “consentimento
determinará, a partir de então, uma determinada contratual”. A possibilidade de uma
prioridade na leitura “natural” do matrimônio e da “geração responsável” torna-se um tema abstrato, ao
família. A renúncia à “liberdade” no contexto qual não correspondem “práticas” e “disciplinas”
109
realistas. Mas a solução ineficaz depende – mais teóricos medievais, pelas reviravoltas institucionais
geralmente – de um modo de pensar o matrimônio e a modernas, e assim encontra uma linguagem e
família “em contraste” com a cultura civil uma mens pronta para ser aplicada também às novas
moderna. Matrimônio e família ainda podem ser questões, que surgem muito mais tarde do que o
“usados” como baluartes antimodernos e reservas de Concílio de Trento. Vemos a raiz deste “início jurídico”
competência eclesiástica. Mas neste “uso” sofrem na evolução do magistério e da experiência eclesial, tal
também mortificações e reduções progressivas, como se desenvolveu nos sécs. XIX e XX.
que paralisam o pensamento e a prática eclesial,
O Código de Direito Canônico de 1917 definia o
isolando-a e marginalizando-a da cultura comum. A
matrimônio nos seguintes termos: “O consentimento
“paternidade responsável” torna-se um espaço de
matrimonial é o ato de vontade pelo qual cada uma das
reflexão sobre o mundo e de autorreflexão sobre a
duas partes transmite e recebe o direito perpétuo e
Igreja, tendo em vista uma compreensão diferente da
exclusivo sobre o corpo (ius in corpus), em vista de atos,
relação entre união e geração.
por sua natureza, aptos à geração da prole” (cân. 1081 §
2 do CDC de 1917).
2.4.5 Familiaris Consortio, João Paulo II (1981) Podem-se observar aqui pelo menos três pontos
Embora dentro de uma forte continuidade com a importantes:
linguagem do século anterior, Familiaris – o matrimônio é compreendido como um
Consortio realiza duas importantes mudanças: por um “contrato”;
lado, introduz, inclusive no título, a expressão familiaris,
que é nova no magistério, que sempre se tinha ocupado – o ponto central é o “direito de dispor do corpo
de “matrimônio”, não de família. Seu precedente é do cônjuge” e não o “consórcio íntimo de toda a vida”;
certamente o Concílio Vaticano II e seu repensar a – a ausência de qualquer referência ao “bem dos
família eclesialmente. Mas a segunda passagem decisiva cônjuges”.
é o reconhecimento aberto de uma “diferenciação” da
sociedade, que doravante emerge como evidente também Também a linguagem jurídica, em um século,
para a Igreja. Não existem apenas “famílias mudou profundamente, o que não deixou de ser
regulares”, mas também “irregulares”, que já não são significativo como preparação do salto que aconteceu
mais automaticamente e ipso facto “infames” e com a Amoris Laetitia.
“excomungadas”. O documento de João Paulo II não dá
muita importância a essa “admissão”, mas é o início de
uma pequena revolução. A lógica da contraposição à 2.4.7 Amoris Laetitia, Francisco (2016)
sociedade civil, inaugurada por Arcanum Divinae Assim, chegamos ao magistério de Francisco. É o
Sapientiae, em 1880, cem anos depois já não último elo da corrente magisterial da Idade Moderna
se sustenta mais no plano prático e operacional, mesmo tardia. Não temos apenas um “novo” documento,
que teoricamente ainda possa dar um pouco de seguindo um acurado processo sinodal, com uma forte
conforto. Em vez da contraposição frontal entra em exigência de conversão pastoral e de vigorosa recepção
questão a conciliação na diferenciação. É apenas uma do Concílio Vaticano II. Mesmo apenas no nível do
tarefa, indicada e não realizada, mas claramente “léxico”, os “nomes do amor” mudam e se transformam:
reconhecida. Isso abre o caminho para uma evolução de “arcano da sabedoria divina” a “matrimônio casto”,
primeiro da práxis e depois também da teoria. depois à “vida humana”, a “consórcio familiar”, para
finalmente chegar à “alegria do amor”. Por detrás desses
nomes que mudam, vemos aflorar uma história
2.4.6 Código de Direito Canônico (1983) complexa, sofrida, problemática e, ao mesmo tempo,
No Catecismo da Igreja Católica, n. 1601, promissora. O novo documento deve ser lido nesse
encontra-se, sob o título “O Sacramento do “amplo arco”, no contexto dessa história recente, sem
Matrimônio”, o seguinte texto: simplesmente dissolvê-lo nos 2.000 anos de história
cristã, mas tampouco comprimi-lo na história
O pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher recentíssima das últimas décadas. À luz deste último
constituem entre si o consórcio íntimo de toda a vida, documento, todos os outros assumem hoje
ordenado por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à inevitavelmente novas cores e formas. Assim foi
procriação e educação da prole, entre os batizados foi sempre na longa história da Igreja cristã, todas as vezes
elevado por Cristo Nosso Senhor à dignidade de em que a tradição conseguiu mostrar-se e reconhecer-se
sacramento. (CIC can. 1055, § 1) não só “viva”, mas também “sã”. Para manter esta
Se olharmos sistematicamente, um fato deve nos “constituição sadia e robusta”, é preciso recorrer
surpreender: este é o único dos sete sacramentos a incessantemente às fontes da tradição e oferecer uma
começar com uma citação do código. Esse fato diz muito “tradução”, como procuro fazer a seguir.
sobre a tradição, suas luzes e sombras. É uma tradição
que, como vimos, é preparada pelos desenvolvimentos
110
3 O início de um “novo paradigma” matrimonial, relações interpessoais uma perfeição, uma pureza de
familiar e relacional intenções e uma coerência que só poderemos encontrar
O período que se seguiu ao Concílio Vaticano II no Reino definitivo. Além disso, impede-nos de julgar
acelerou a dissolução do “modelo séc. XIX” de com dureza aqueles que vivem em condições de grande
compreensão e articulação da experiência fragilidade. Todos somos chamados a manter viva a
matrimonial. Para usar a imagem de um grande tensão por algo mais além de nós mesmos e dos nossos
sociólogo alemão da segunda metade do séc. XX, “a limites, e toda família deve viver nesse estímulo
sociedade moderna se distingue das formações sociais constante. (AL n.325)
anteriores por um duplo incremento: uma possibilidade
maior de relações impessoais e relações pessoais mais
intensas” (LUHMANN, 2008, p. 43). O texto da AL, de 4 As questões abertas sobre união e geração
fato, sancionou o encontro eclesial com este mundo por Uma doutrina sobre matrimônio, família e fatos de
meio de uma série de novidades que merecem ser convivência implica uma releitura do conjunto da
consideradas brevemente, a seguir. tradição. Eis os principais elementos que sintetizam
análise histórica e reflexão sistemática.
111
Igreja antiga, medieval e moderna não A solução clássica para fazer frente às crises
considerava. Examinemos só três: conjugais era: o vínculo é indissolúvel, mas o sujeito
ligado pelo vínculo pode ter sofrido “vícios de
– o “bem dos cônjuges” e a “comunidade de vida e
consentimento”. Assim se pode reconhecer o vínculo
de amor” adquiriram nova evidência e uma consistente
como “nulo” com base numa investigação séria dessas
autonomia;
“causas de nulidade”. Porém, tudo o que a
– a “sexualidade” e o “sentimento do amor” se indissolubilidade do vínculo garante torna-se muito
transformaram de funções da geração a fins em si; frágil se for submetido a uma análise do consenso em
– uma “vocação eclesial” consciente mudou a que se baseia o vínculo. Assim se passa facilmente de
relação entre sujeito, família e Igreja, modificando as “tudo” a “nada”. É a solução de “foro externo”, que hoje
relações entre essas diferentes experiências. conhece limites cada vez maiores, tornando-se motivo
de marcantes ficções e mistificações. Uma nova via, que
Por sua vez, os “bens clássicos” já identificados de algum modo a AL inaugura, retomando uma lógica
por Agostinho foram enriquecidos e transformados: mais antiga, é a do “foro interno”, onde se pode
– a proles” não é simplesmente a geração, como descobrir que o vínculo, na consciência dos sujeitos,
fruto do exercício do sexo. É antes a descoberta de uma pode ter uma história e até malograr. O grande tema que
“geração responsável”. Com toda a necessária entra na doutrina do matrimônio católico, graças à AL,
articulação de um pensamento sobre o espaço possível com algum precedente na FC, é “a história do vínculo
de “autodeterminação” do homem / mulher no gerar; matrimonial”. A solução doutrinal e disciplinar hoje
requer novas categorias jurídicas, que devem ser
– a fides não é apenas a “fidelidade conjugal”, mas construídas e/ou reconhecidas. Há uma “lex condenda”
um ato de fé eclesial. A relação entre “fidelidade” e “fé” (uma lei a ser criada) que espera contribuições não
tornou-se um dos pontos-chave da releitura acessórias ao perfil teológico do sacramento.
contemporânea do sacramento. Aqui a relação entre
“ato” e “vocação” abriu espaço para uma nova
competência teológica no campo que antes tinha sido 4.4 Lei objetiva e processo pastoral
praticamente sequestrado pela só e óbvia competência
jurídica. A recuperação de uma “dimensão escatológica” do
matrimônio sacramental impõe, portanto, uma certa
– o sacramentum não se identifica apenas com a distância entre “instituição jurídica” e “vocação
“indissolubilidade” – com o “não poder dissolver”, ou sacramental”. Isso foi muito difícil na Europa marcada
seja, com a “negação de uma negação” – mas com o ato pelo Decreto Tametsi, que originou indiretamente o que
positivo de amar, de conviver, de estar numa os Códigos de 1917 e de 1983 assumiram
aliança. Talvez um dos pontos mais delicados dessa posteriormente como regra: ou seja, a identificação de
evolução seja interpretar corretamente a palavra forte de todo matrimônio entre batizados como
Jesus, de que o ser humano “não deve separar o que “sacramento”. Essa identificação determina uma espécie
Deus uniu”. de “zeramento vocacional” do sacramento. E
aqui entra o novo paradigma teológico da Amoris
Laetitia. Não modifica a doutrina, mas lhe garante uma
4.3 O debate sobre a indissolubilidade hermenêutica mais antiga e mais nova do que a da
Esta palavra-chave de Jesus – “o homem não ouse modernidade tardia. Ao recuperar uma antiga distinção
separar o que Deus uniu” – indica uma “evidência entre esferas que possuem uma certa autonomia, pode
originária” e um “cumprimento final”. Um teólogo disse superar a ideia (idealizada) de identificar o bem com a
há algumas décadas: o vínculo é indissolúvel, mas não é lei objetiva. Há “bens possíveis” que a natureza e a
inquebrável. A questão, em nível sistemático, requer cultura realizam, na diferença e na analogia com relação
uma solução que não pode ser simplesmente de caráter ao ideal eclesial. Esses bens não só podem, mas devem
judicial, embora requeira novas formas jurídicas. E é ser reconhecíveis e reconhecidos.
significativo que a tradição tenha identificado a
indissolubilidade não no plano da “diferença
sacramental”, mas no da lógica natural e comum. Por 4.5 As formas de vida e os cinco continentes do
isso, o remédio para o “malogro” do vínculo deve catolicismo
assumir a tarefa de uma nova compreensão que diz Uma reconsideração teológica do matrimônio, em
respeito: uma relação estrutural com a família, exige uma nova
– por um lado, aos sujeitos envolvidos e à sua correlação de mundos e experiências, que já não podem
consciência; ser interpretados como “sistemas jurídicos paralelos”. O
resíduo de “poder temporal” que subsiste no “direito
– por outro lado, à “historicidade do vínculo”, que matrimonial canônico” ainda impede de reconhecer o
não é apenas “ato”, mas “percurso” e “vocação”. “bem possível” da esfera natural e da esfera civil. Um
grande repensar teológico reinterpreta a dimensão
112
jurídica à luz da escatologia. A tudo isto deve se Mas, com a modernidade tardia, outro modo de
acrescentar a grande mudança introduzida na doutrina do entender a relação entre homem e mulher foi ganhando
matrimônio, após o Concílio Vaticano II, pela força. Agora no matrimônio cada sujeito, além de gerar
descoberta de culturas – também matrimoniais – de os filhos, encontrava no bem do outro e no bem próprio
cinco continentes diferentes, que entram como sujeitos em relação ao outro um valor decisivo. A consideração
na doutrina e disciplina eclesial. O testemunho eclesial, do próprio prazer da carne perdeu o caráter de libido a
mediado por experiências naturais e por histórias civis ser refreada e de intemperança a ser combatida, para
muito diversas – entre África, Oceania, Ásia, América e assumir o de expressão e experiência de amor – ao ponto
Europa – aporta à doutrina do matrimônio uma nova de levar a própria Igreja Católica, a partir do Concílio
riqueza e uma grande diversificação de perspectivas, Vaticano II, a falar do matrimônio como “comunidade
embora em continuidade com a tradição. Somente um de vida e de amor” e assim acrescentar aos clássicos tria
papa “latino-americano” poderia levar à plena evidência bona (três bens), de que Agostinho tinha falado, um
essa novidade estrutural. quarto bem, o bonum coniugum, o bem dos
cônjuges. Nesse horizonte, obviamente, muitas coisas
estavam destinadas a mudar.
5 O bem da relação sexual e o “fenômeno amor”
Se recapitularmos o percurso geral realizado até
aqui, podemos observar uma série de dados relevantes e 5.2 A geração perde a exclusividade
lê-los em uma perspectiva sapiencial. As relações A personalização do matrimônio e da família não
pessoais, as comunidades de vida e as alianças esponsais é indolor, nem mesmo para a teologia. A centralidade da
foram interpretadas durante séculos com a categoria de geração começava a ser contestada e falava-se,
“bem”, precisamente porque desde o começo houve a oficialmente, pelo menos a partir da Humanae Vitae, de
tentação de lê-las como um “mal”. Como vimos, a “procriação responsável” ou de “paternidade e
primeira grande síntese sobre o matrimônio, escrita por maternidade responsável”. Um certo “controle” da
Santo Agostinho, intitulava-se De bono coniugali (Sobre geração tornou-se possível e razoável, em consonância
o bem conjugal). Se superarmos a ideia de que o com a nova relevância do bem do casal. Do ponto de
matrimônio é um mal – essa foi a tentação de uma parte vista de um pensamento sistemático, esse novo
do cristianismo antigo que permaneceu oculta até L. posicionamento alterava profundamente o sistema latino,
Tolstoi e mesmo depois – e se assim também pudermos que Agostinho tinha inaugurado com sua autoridade e
superar a ideia de que o único “cônjuge” de cada homem cuja síntese tinha atravessado com grande força mais de
ou mulher só pode ser Cristo e que, portanto, todo um milênio e meio de história.
“outro” matrimônio é ilícito ou pecaminoso, entramos na
consideração do matrimônio como um “bem”, ou seja, No entanto, não é comum tirar as consequências
na teoria dos “bens do matrimônio”. Agostinho ofereceu sistemáticas necessárias desta grande transformação: ou
uma apresentação sintética que fez escola por muitos seja, é difícil admitir que, se a geração é absolutamente
séculos: os três bens do matrimônio são os filhos, a central, é evidente que a relação entre homem e mulher
fidelidade e o sacramento (isto é, a indissolubilidade). O só pode ser “ordenada” se o ius in corpus (direito ao
primado da geração é claríssimo para Agostinho, pois é corpo) for exercido dentro do matrimônio. Se, portanto,
a verdadeira justificativa central da vida matrimonial. Se o sexo se justifica pela geração, é evidente que apenas o
alguém for incapaz de continência, a orientação do ato matrimônio é o lugar do exercício do sexo. Se, porém, a
sexual à geração torna-o lícito. Mas não só a “geração” é relação entre homem e mulher tem, em si, um valor de
um bem do matrimônio; também a “fidelidade” e o “bem”, o exercício da sexualidade adquire certa
“vínculo para sempre”. Já para Agostinho, ser fiel e autonomia, não só da geração, mas também do
vincular-se para sempre tem sua dignidade própria, matrimônio. Torna-se um “bem” sem necessariamente
mesmo que não haja geração. ter que estar ligado à geração. A relação entre união e
geração muda e pede novas mediações, mais flexíveis e
menos rígidas.
5.1 Os bens do matrimônio são três, aliás quatro
Durante séculos essa representação do
matrimônio, justificado pela geração, permaneceu 5.3 Do uso do sexo à experiência da sexualidade
central. Pelo menos até o código de 1917 – e assim Esse desenvolvimento não impede de modo algum
oficialmente até 1983 – a definição do vínculo que ainda hoje se reconheça no matrimônio a unidade
matrimonial como ius in corpus (direito ao corpo) de complexa desses quatro bens (geração, bem dos
cada um dos cônjuges sobre o outro mostra a cônjuges, fidelidade e indissolubilidade), mas não exclui
centralidade do ato de união sexual como justificativa que possam existir formas de vida, uniões
teológica do matrimônio. Deve-se acrescentar que, (heterossexuais ou também homossexuais) em que
sempre a partir de Agostinho, a distinção entre “bens em existam só alguns desses bens. Que permanecem bens,
si” e “bens para outrem” colocou o matrimônio “em mesmo que não estejam no horizonte da geração. Geram
função” ou da geração ou da amizade social.
113
amizade social, fidelidade, paz, mesmo que não gerem 5.5 O centro e a periferia: as diferentes linguagens da
filhos. Igreja
A primeira pergunta que devemos fazer é, então: Concluindo, perguntamo-nos qual deve ser a
será que um homem e uma mulher podem viver a consciência dos ministros da Igreja diante do fenômeno
fidelidade, a indissolubilidade e o cuidado mútuo sem da união e da geração. Deveria ser a de consciência de
gerar? Isso não é de forma alguma impossível, aliás é funcionários de uma instituição que carrega, importa e
real e pode até assumir a forma de matrimônio, mesmo impõe o centro em todas as periferias? Ou de homens de
sacramental, contanto que a “ausência de geração” não Deus que conduzem ao centro toda periferia por remota
seja vivida e apresentada como uma escolha e isolada que seja? A Igreja não estabelece nem impõe o
explícita. Assim tem sido desde a época de Agostinho. O bem: antes de mais nada, ela o reconhece e acolhe. Por
“não poder gerar” não impede o sacramento. Mas conseguinte, a questão decisiva não é qual é o poder da
mesmo no caso em que a não geração fosse Igreja sobre a bênção, mas sim qual é a autoridade que
explicitamente desejada e, portanto, o sacramento fosse o bem real e o bem possível exercem sobre a Igreja
excluído, o que nos impediria hoje de abençoar, na mesma. A primeira pergunta surge de uma Igreja
união não sacramental, os bens que existem, ao invés de “fechada em seu centro”; a segunda surge
amaldiçoar pelo bem que não existe? espontaneamente de uma Igreja verdadeiramente em
saída universal, convicta de ter um centro eucarístico,
Aqui se encontra um ponto delicadíssimo da mas também um corpo sacramental e, finalmente, uma
tradição moral recente: se o “mal menor” ou “bem periferia e um “fora de si” a ser estimulado no louvor, na
possível” pode ser considerado uma “desordem” e, ação de graças e na bênção. Uma igreja que sabe poder e
portanto, um pecado, ou, ao invés, uma “outra ordem”, dever falar com linguagens diferentes no seu centro, no
um “bem menor”. seu corpo alargado e nas margens mais extremas de sua
periferia. Quanta semelhança com seu Esposo e Senhor
poderia reencontrar em si mesma uma Igreja que
5.4 Um único bem pode ser abençoado? estivesse acostumada a comer com as prostitutas e os
Lembremos que, em 2010, houve uma polêmica publicanos, que soubesse deter-se para conversar com
em torno de algumas declarações de Bento XVI a mulheres de muitos maridos, que não perdesse a ocasião
respeito do uso de preservativo por um “prostituto”, o para se entreter com cegos de nascença e com pobres
que em certas circunstâncias poderia ser considerado um doentes, nos quais seria sempre capaz de descobrir –
“ato moral”. O mesmo exemplo pode ser aplicado não sem grande surpresa e com abertura magnânima – o
no que toca o juízo moral, mas no que concerne ao rosto cheio de esperança das “primícias do Reino”. Por
discernimento pastoral. Tomemos o caso extremo em isso, as distinções entre matrimônio, união civil e união
que, na vida de um “prostituto” ou de uma “prostituta”, natural servem justamente para reconhecer, em cada
sejam expressamente desejadas – diríamos por profissão realidade, o máximo de bem possível por parte de uma
– a ausência de geração e a óbvia ausência de fidelidade, Igreja que se reconhece não só como mestra, mas
mas se viva uma relação estável, heterossexual ou sobretudo como mãe.
homossexual, na qual um cuida do outro e deseja o bem Andrea Grillo. Pontifício Ateneo Santo Anselmo
do outro. Essa “comunidade de vida e de amor”, (Roma); Abadia de Santa Justina (Pádua). Texto original
percebida não como ocasional, mas como tendo uma em italiano. Tradução Paolo Brivio; revisor Francisco
estabilidade adquirida, fora de qualquer perspectiva Taborda. Submetido: 03/03/2021. Aprovado:
sacramental, por que não poderia ser reconhecida e 06/06/2021. Publicado: 30/12/2021.
abençoada? E, se assim fosse, não poderia ser a
fortiori válido também para a vida descomprometida de
um homem e uma mulher, ou de dois homens, ou de Referências
duas mulheres, que vivem a sua infertilidade natural
AGOSTINHO. De bono coniugali.
forçada ou voluntária, mas que são fecundos na relação
pessoal, social, cultural e eclesial? Se faltassem três dos BARBAGLIA, S. Gesù e il matrimonoo:
quatro bens que compõem a relação matrimonial, mas o indissolubile per chi? Assisi: Cittadella, 2016.
subsistente fosse realmente um bem, uma forma de BLIXEN, K. Il matrimonio moderno. Milano:
“viver para o outro” e de “abnegação”, ainda que em Adelphi, 1986. (ed. orig. 1924)
meio à possível ausência dos outros três, não seria a
Igreja o lugar ideal para um reconhecimento profético, BOSSY, J. Dalla comunità all’individuo. Per una
antes que o tribunal severo de um julgamento de storia sociale dei sacramenti nell’Europa moderna.
exclusão? Torino: Einaudi, 1997.
CONCÍLIO DE TRENTO.
Decreto Tametsi (1563). In: DENZINGER-
HÜNERMANN. Compêndio dos Símbolos e
declarações de fé e moral (DH). São Paulo:
Paulinas/Loyola, 2007. n. 1813-1815, p. 457-458.
114
CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et
spes (1965). In: DENZINGER-
HÜNERMANN. Compêndio dos Símbolos e
Ordem (Sacramento da)
declarações de fé e moral (DH). São Paulo: Sumário
Paulinas/Loyola, 2007. n. 4240-4345, p 994-1035. 1 O nome do sacramento
CORTONI, U. C. Christus Christi est 2 Da lex orandi à lex credendi
sacramentum. Una storia dei sacramenti nel Medioevo. 2.1 Uma ordenação episcopal no séc. III
Roma: Ecclesia Orans, 2021. 2.2 A comunidade e o ministério ordenado
3 A tríade bispo-presbítero-diácono
DE ROUGEMONT, D. L’Amore e l’Occidente.
4 A espiritualidade ministerial
Milano: BUR, 1977. (ed. orig. 1939)
4.1 Cristo, o Servo do Senhor
GIDDENS, A. La trasformazione 4.2 Cristo, o Pastor exemplar
dell’intimità. Sessualità, amore ed erotismo nelle società 4.3 Cristo, o único sacerdote
moderne. Bologna: Il Mulino, 1990. 5 Referências bibliográficas
GRILLO, A. Le cose nuove di Amoris
Laetitia. Come papa Francesco traduce il sentire 1 O nome do sacramento (TABORDA, 2016, 21-
cattolico. Assisi: Cittadella, 2016. 26)
GRILLO, A. Meravigliosa O nome deste sacramento não consta no Novo
complessità. Riconoscere l’Amoris Laetitia nella società Testamento. Pode trazer consigo um mal-entendido, já
aperta. Assisi: Cittadella, 2017. que a palavra “ordem” normalmente significa “cada
LUHMANN, N. Amore come passione. Milano: coisa no seu lugar”. Mas não é este o sentido da palavra.
Bruno Mondadori, 2008. Ela se refere a um grupo de pessoas de determinada
categoria, como, por exemplo, a “Ordem dos Advogados
KASPER, W. Il matrimonio. Brescia: Queriniana, do Brasil” (OAB), que congrega os bacharéis em direito
2015. a quem é permitido advogar no país.
PAPA LEÃO XIII. Arcanum Divinae Não deve causar estranheza que a designação
Sapientiae (1880). In: DENZINGER- deste sacramento não tenha conotação sacral nem tenha
HÜNERMANN. Compêndio dos Símbolos e sido tomada de empréstimo à linguagem religiosa, já
declarações de fé e moral (DH). São Paulo: que, para designar as funções eclesiais, o Novo
Paulinas/Loyola, 2007. n. 3142-3146, p. 671-673. Testamento nunca usa termos tomados das religiões.
PAPA PIO XI Casti Connubii (1930). In: “Sacerdote”, por exemplo, não designa nenhum ministro
DENZINGER-HÜNERMANN. Compêndio dos da Igreja, mas somente os sacerdotes judeus (cf. Lc
Símbolos e declarações de fé e moral (DH). São Paulo: 10,31) e pagãos (cf. At 14,13), os cristãos em seu
Paulinas/Loyola, 2007. n. 3700-3724, p. 794-805. conjunto (cf. Ap 1,6; 5,10) e o próprio Cristo (uso
exclusivo da Carta aos Hebreus).
PAPA PAULO VI. Humanae Vitae (1968). In:
DENZINGER-HÜNERMANN. Compêndio dos O termo “ordem” tem a vantagem de trazer à luz o
Símbolos e declarações de fé e moral (DH). São Paulo: caráter colegial ou corporativo do ministério eclesial (cf.
Paulinas/Loyola, 2007. n. 4470-4496, p.1057-1066. os Doze Mc 3,14; os Sete At 6,3; o presbitério At 15,6).
À ordenação não compete transmitir um poder possuído
PAPA JOÃO PAULO II. Familiaris como indivíduo, mas incorporar num grupo do mesmo
Consortio (1981). In: DENZINGER- grau, cuja tarefa consiste em contribuir para o bem da
HÜNERMANN. Compêndio dos Símbolos e comunidade num coletivo posto a serviço de unidade da
declarações de fé e moral (DH). São Paulo: Igreja. Não se pode, pois, conceber o ministro da Igreja
Paulinas/Loyola, 2007. n. 4700-4716, p. 1110-1115. pensando e agindo por si no isolamento de sua
PAPA JOÃO PAULO II. Código de Direito individualidade, mas articulado com a comunidade e os
Canônico – 1917 – 1983. São Paulo: Paulinas, 1983. demais ministros do mesmo e dos demais graus.
PAPA FRANCISCO. Amoris Laetitia (2016). São Mas o termo apresenta também uma desvantagem.
Paulo: Paulinas, 2016. Embora sua adoção seja anterior à era constantiniana,
teve consequências nefastas quando o cristianismo foi
TOMÁS DE AQUINO. Summa
reconhecido oficialmente no Império. Ao designar-se
Theologiae, Summa contra Gentiles.
desta maneira o ministério eclesial, transpôs-se aos
VESCO, J.-P. Ogni amore vero è bispos, presbíteros e diáconos a mentalidade
indissolubile. Considerazioni in difesa dei divorziati rigorosamente hierarquizada da burocracia imperial
risposati. Brescia: Queriniana (GdT 374), 2015. romana. Como consequência, passou a conceber-se o
ministério em termos de “carreira das honras” (em
linguagem moderna: “plano de carreira”).
115
A Igreja Bizantina conserva para este sacramento 2.2 A comunidade e o ministério
o nome de “imposição das mãos” (quirotonia). Tem a ordenado (TABORDA, 2016, 157-170)
vantagem de ser um termo bíblico, mas traz consigo o
A estrutura da liturgia de ordenação mostra a
perigo de esquecer-se a dimensão colegiada própria ao
íntima conexão entre o ministério eclesial e a Igreja
ministério eclesial, levando a uma concepção
presente na comunidade local. Não é o ministro
privatizante, como honra possuída pessoalmente.
ordenado que cria a comunidade, mas é a comunidade de
2 Da lex orandi à lex credendi (TABORDA, fé que recebe de Deus o ministro que a conserve na
2015, p.23-47) unidade e estabeleça o vínculo entre ela e a Igreja
espalhada pelo mundo. Discernindo no Espírito Santo, o
A melhor maneira de apresentar um sacramento é
ator principal em toda a liturgia de ordenação, a
partir da prática litúrgica da Igreja, tal como foi “em
comunidade escolhe a pessoa que parece indicada em
toda a parte, sempre e por todos” celebrada (Vicente de
sua situação concreta. Mas o escolhido não se torna
Lérins, † cerca de 450). Verificando a forma como a
bispo por essa eleição. É imprescindível o aval dos
Igreja ora (lex orandi), conclui-se sobre o que devemos
bispos vizinhos que julgarão da ortodoxia do eleito e,
crer (lex credendi).
pela imposição das mãos e oração, o constituirão bispo
2.1 Uma ordenação episcopal no século III pela graça de Deus. Também neste momento a
(BRADSHA; JOHNSON e PHILLIPS, 2002) comunidade está ativa, orando em seus corações pela
A chamada “Tradição Apostólica”, outrora descida do Espírito. Uma vez constituído bispo,
atribuída a Hipólito de Roma, é o mais antigo novamente a comunidade o reconhece ao acolhê-lo pelo
testemunho pormenorizado de uma ordenação episcopal. abraço da paz e ao participar na eucaristia por ele
Eis o texto: presidida.
“Ordene-se bispo aquele que, [sendo] irrepreensível, A estrutura da ordenação episcopal mostra a
tiver sido escolhido por todo o povo. Quando tiver sido relação entre ministério ordenado e comunidade: o
chamado pelo nome e tiver agradado, o povo se reunirá ministro vem da comunidade e nela permanece, mas, ao
com o presbitério e os bispos presentes, no dia do mesmo tempo, se põe diante da comunidade. O bispo
Senhor. Com o consentimento de todos, [os bispos] Agostinho de Hipona († 430) expressou-o lapidarmente:
imponham-lhe as mãos e o presbitério permaneça “Convosco sou cristão, para vós sou bispo; aquele é o
sossegado. Todos guardem silêncio, orando em seus título de minha dignidade, este o título de minha
corações pela descida do Espírito. E um dos bispos responsabilidade; aquele é título de honra, este título de
presentes, instado por todos, impondo a mão ao que é perigo”. Mais fundamental que ser bispo é ser cristão;
ordenado bispo, reze dizendo:” (Tradição Apostólica, nº essa é a verdadeira dignidade. Como bispo, o cristão
2) assume uma responsabilidade que se torna um perigo,
caso não seja exercida como serviço à comunidade.
[Segue-se a prece de ordenação]
Estando diante da comunidade eclesial, o ministro
“Quando tiver sido feito bispo, todos lhe deem o representa para ela a Cristo, pela força do Espírito Santo
ósculo da paz, saudando-o, porque se tornou digno. Os recebido na ordenação. Essa relação costuma ser
diáconos apresentem-lhe a oblação e ele, impondo as expressa na fórmula latina: o ministro age in persona
mãos sobre ela com todo o presbitério, diga, dando Christi (na pessoa de Cristo, como seu representante),
graças: ’O Senhor esteja convosco‘. E todos respondam: mas só representa Cristo representando também a Igreja,
’E com teu espírito‘. ’Corações ao alto‘. ’Nós [os] temos inserido em sua fé e comunhão (in persona Ecclesiae).
no Senhor‘. ’Demos graças ao Senhor‘. “É digno e Os dois aspectos devem ser articulados entre si. Cristo
justo”. E então prossiga assim:” (Tradição Apostólica, nº tem uma dupla relação com a Igreja: por um lado, ela é
4) seu Corpo (cf. 1Cor 12,12; At 9,4); por outro, Cristo é a
[Segue-se a oração eucarística] Cabeça e, como tal, anima o Corpo (cf. 1Cor 11,3).
Assim, o ministro, enquanto representa Cristo, está face
Esse texto apresenta a celebração como um a face com a comunidade; enquanto representa a Igreja é
movimento contínuo em três momentos: 1) a eleição um membro entre outros, apenas com uma função
pelo povo (incluindo o clero); 2) a imposição das mãos específica de presidência em nome do Cristo-Cabeça.
pelos bispos com a prece de ordenação dita por um
deles; 3) o reconhecimento da comunidade, expresso no A relação entre o regente e a orquestra pode
abraço da paz e na subsequente presidência da eucaristia. ilustrar essa relação. O regente, diante da orquestra, tem
a função de conduzi-la na unidade. Enquanto regente,
Em cada um desses momentos atuam quatro não toca nenhum instrumento, mas sua atuação permite
atores: 1) os cristãos da Igreja local; 2) os bispos das que todos os instrumentos toquem harmonicamente, na
Igrejas vizinhas; 3) o ordinando; 4) o Espírito Santo, ator hora devida, com a intensidade devida. Ele não é a
principal (LEGRAND, 1988, 194-201; TABORDA, orquestra, mas a orquestra se reconhece nele. Sem a
2016, 230-240). orquestra ele não é nada; precisa da orquestra para ser
regente. Não é ele que manda na orquestra, mas
116
tampouco a orquestra manda nele. Ambos obedecem à em vista do serviço aos pobres. A partir desse serviço
partitura. A execução da partitura dependerá da aos pobres compete ao diácono o ministério da Palavra e
interpretação do regente, mas também da capacidade dos a atuação na liturgia; a Palavra dá dimensão cristã ao
músicos de aderirem a essa interpretação. Deste modo, o serviço aos pobres, que é um dever moral de toda
regente representa a orquestra diante da orquestra, mas humanidade, creia ou não no Cristo. Cabe a ele levar a
representa também o compositor. Tal é, analogamente, a Palavra ao concreto da prática solidária, testemunhar a
articulação entre o ministro ordenado e a comunidade caridade cristã, encorajar os cristãos a tomar a sério o
eclesial. Evangelho.
3 A tríade bispo-presbítero- O diácono tem sua forma própria de ser ministro
diácono (TABORDA, 2016, 190-209; BORRAS e da unidade. Não preside, mas contribui à unidade da
POTTIER, 2010) Igreja a partir dos menos favorecidos. É um ministério
“partidário”. Expressa o partidarismo da Igreja em favor
O ministério na Igreja é uno: a função de conduzir
do pobre. Indica que a unidade da Igreja não se constrói
a Igreja na unidade da fé, do amor, da celebração. Esse
a partir dos poderosos. Procura imprimir na Igreja a
ministério uno da Igreja é exercido em diversos graus
marca evangélica de uma unidade desde os pobres. Por
por aqueles que “já desde antigamente são chamados
isso mesmo, vale, na Igreja antiga, como a mão direita
bispos, presbíteros e diáconos” (LG n.28; DH 4153).
do bispo. Ele está, pois, relacionado ao bispo e não ao
Todos eles são ministros da unidade da Igreja, mas presbítero.
se distinguem pelo âmbito que lhes é próprio. O
O diácono não é um substituto do presbítero em
ministério fundamental é o episcopado. Sua função é
locais onde não existem presbíteros em número
animar a comunidade em fidelidade ao testemunho
suficiente. Seu ministério não é congregar a Igreja
apostólico. Ao interno da comunidade cabe-lhe presidir
(presidência), mas levá-la para fora, para as periferias do
a comunidade na adesão à fé apostólica (querigma), na
mundo, de forma que ela possa celebrar em verdade a
prática da fraternidade (diaconia) e na celebração da fé
eucaristia, pois “não há eucaristia sem lava-pés” (E. van
(liturgia). Com relação às demais Igrejas locais, é de sua
Waelderen).
competência representar a Igreja por ele presidida na
comunhão da Igreja universal (responsabilidade colegial Fazer presente o amor de Cristo para com os
por todas as Igrejas) e na comunhão com a Igreja de pobres e todos os que sofrem, são perseguidos,
Roma “que preside a caridade” (Inácio de Antioquia). excluídos, é um dever do bispo, não menor que o de
presidir a vida e a celebração da comunidade. Nesta
O bispo não está só na presidência de uma Igreja
tarefa é coadjuvado pelo presbitério, naquela pelos
local; é auxiliado por seu presbitério e pelos diáconos. O
diáconos. A ordem diaconal existe a serviço da Igreja
bispo é bispo por presidir uma Igreja num âmbito maior,
local, junto com o bispo e seu presbitério, para abrir a
ligada por vínculos históricos, geográficos, culturais. Por
comunidade ao mundo.
isso cabe-lhe ordenar presbíteros que constituem com ele
uma personalidade corporativa no governo da Igreja O presbítero não é um diácono com mais algum
local e, assim, presidem, em nome do bispo, as pequenas “poder”, como o bispo não é um presbítero com mais
parcelas dessa Igreja local (paróquias). algum “poder”. Não são degraus de uma escada. A
relação entre a tríade deveria ser vista não numa linha
Os presbíteros são, em primeiro lugar, membros
vertical (superior-inferior; alto-baixo), mas numa
do “senado” do bispo para o governo da Igreja local, isto
bifurcação. O episcopado é o ministério fundamental
é, para sua unidade. A partir daí, pode caber-lhes
com dois tipos de auxiliares diferentes e
presidir parcelas dessa Igreja local (comunidades
complementares como são diferentes e complementares
eucarísticas) como representantes do bispo. A prece de
homem e mulher, mão direita e mão esquerda. O homem
ordenação da liturgia romana define o presbítero como
não é superior à mulher, nem vice-versa; a mão direita
“cooperador da ordem episcopal”.
não é melhor que a esquerda, nem vice-versa.
A diferença básica entre bispo e presbítero reside
4 A espiritualidade ministerial
no grau de responsabilidade que cada um tem por uma
Igreja local e na relação mútua. O bispo exerce seu A pergunta subjacente a esta temática da
ministério da unidade sobre o todo da Igreja local e, a espiritualidade é a pergunta sobre que figuras inspiram a
partir dela, é, com os outros bispos, responsável pela vida e a missão do ministro ordenado.
Igreja universal, diante da qual testemunha a forma
4.1 Cristo, o Servo do Senhor (TABORDA,
específica de cada Igreja local inculturar a fé.
2016, 46-52; SANTANER, 1986; MESTERS, 1981)
O diácono é o ministro encarregado dos pobres,
A figura fundamental nos é dada pelo próprio
marginalizados e enfermos, serviço vital para a Igreja
Jesus em Mc 10,42-45: “Sabeis que os que são
encontrar sua identidade ao modo do Servo do Senhor,
considerados chefes das nações as dominam, e os seus
descrito nos quatro cânticos do Deuteroisaías (cf. Is
grandes fazem sentir seu poder. Entre vós não deve ser
42,1-4; 49,1-6; 50,4-11; 52,13 – 53,12). Sua função
assim. Quem quiser ser o maior entre vós seja aquele
fundamental é animar, reavivar, organizar a comunidade
que vos serve, e quem quiser ser o primeiro entre vós
117
seja o escravo de todos. Pois o Filho do Homem não Mas a designação de pastor tem sua ambiguidade,
veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em porque o pastor é superior às ovelhas; ele é um ser
resgate por muitos”. Nestas palavras Jesus alude aos racional, as ovelhas animais irracionais. Por isso é
poemas do Servo do Senhor (Deuteroisaías) e equaciona preciso lembrar que o “o Pastor exemplar” (“o bom
assim a questão do poder na Igreja. Pastor”) se tornou o “Cordeiro imolado” para a vida do
rebanho. E, principalmente, é necessário iluminar a
Os quatro cânticos inspiram quatro aspectos do
figura do pastor com a do Servo que dá a vida pela
exercício do poder na comunidade cristã. O primeiro
multidão, como o fez Jesus: “O pastor exemplar dá a
aspecto é o esvaziar-se, não afirmar o seu poder
vida por suas ovelhas” (Jo 10,11).
dominando os demais, mas despertando o poder que
neles existe (cf. Is 42,1-4: o Servo não grita, não levanta O ministro ordenado, enquanto pastor, deveria
a voz; não apaga a mecha que ainda fumega). O “poder” caracterizar-se por um amor entranhado a Cristo, não
do ministro ordenado não é dele, mas da Igreja, cujo apenas um amor superficial. Dada, porém, a fraqueza do
poder se concentra nele. Por isso não lhe cabe nem homem pecador, para início de caminhada basta o amor
açambarcar o poder nem dividi-lo, como se o poder de simpatia (cf. Jo 21,15-17). Enquanto não se atinge
fosse dele. Cabe-lhe, sim, suscitar o poder que há em aquele grau de amor profundo por Cristo, vale a
cada um, incentivar o exercício do poder de cada um e sinceridade de uma resposta ao chamado, cuidando de
cuidar que seja exercido no respeito aos demais e no não cair nas tentações que o rodeiam: não ser pastor por
cuidado pela unidade do todo. coação, mas de boa vontade, espontaneamente,
livremente; não por torpe ganância, mas de coração
O segundo aspecto mostra que o esvaziamento
generoso; não como dominadores, mas como modelos
deve ir ao extremo de dar a vida pela multidão (cf. Is
do rebanho (cf. 1Pd 5,2-3) (BOSETTI, 1986b, 101-12).
52,13 – 53,12). A identidade do ministro com a
comunidade já é, por si, um “morrer” cada dia, para que 4.3 Cristo, o único sacerdote (TABORDA, 2016,
a comunidade se desenvolva com autonomia. Em 32-46)
determinadas circunstâncias, o dar a vida terá que ser
A designação mais comum para o ministro
levado às últimas consequências, o martírio.
ordenado é sacerdote e, no entanto, é a menos adequada.
O terceiro aspecto é ouvir o Senhor e confiar Provém de uma releitura veterotestamentária do Novo
nele (cf. Is 50,4-11). Basear sua vida na escuta da Testamento, que não usa para os ministros da Igreja
Palavra de Deus assimilada na oração, celebrada na termos tomados das religiões. Episkopos (termo do qual
eucaristia, vivida a cada momento. Elemento deriva a palavra bispo) significa supervisor; presbítero
constitutivo do serviço ministerial é a intercessão “em quer dizer ancião; diácono é o servidor da mesa.
favor do povo a ele confiado e em favor de todo o Tampouco Jesus foi sacerdote, pois não pertencia à tribo
mundo” (prece de ordenação presbiteral da liturgia de Levi, condição indispensável para o sacerdócio no
romana). judaísmo.
O quarto aspecto é levar a sério que sua O único escrito do Novo Testamento que qualifica
missão não vem de si mesmo, mas lhe foi confiada pelo Jesus como sacerdote é a Carta aos Hebreus. E o faz
Senhor (cf. Is 49,1-6) através da comunidade que o para negar que Jesus seja sacerdote no sentido do
reconheceu apto. Seu ministério não lhe advém por ser sacerdócio ritual, aarônico. O autor da Carta aos
um privilegiado, mas por se esperar dele que viva os Hebreus quer mostrar como, depois de Cristo, não há
aspectos antes especificados. mais necessidade de sacerdotes. Ele o faz no estilo
próprio da reflexão teológica judaica, comparando a vida
Em resumo: o “poder” do ministro é o poder
de Cristo com a ação do Sumo Sacerdote judeu no Dia
gerado na fraqueza, que, confiando em Deus, deixa
do Perdão (Yom Kippur), o único dia do ano em que ele
espaço aos demais e suscita o poder dos demais.
atravessava o véu do Templo e entrava no Santo dos
4.2 Cristo, o Pastor exemplar (TABORDA, Santos. Jesus, por sua morte, atravessou o véu e entrou
2016, 70-74) no verdadeiro Santuário do céu, onde vive eternamente a
No capítulo 10 do Evangelho de João, Cristo se interceder por nós (cf. Hb 7,25). Jesus exerce seu
apresenta como “o Pastor exemplar” (KONINGS, 2005, sacerdócio através de sua vida, morte e ressurreição (cf.
204). A figura do pastor é arquetípica e apresenta quatro Hb 9–10). Seu sacerdócio não é ritual, mas existencial
características (BOSETTI, 1986a, 21-51): o pastor, guia, (cf. Hb 10,4-10); seu sacrifício não se realiza num lugar
conduz, caminha à frente das ovelhas; provê para que o sagrado, mas no profano, fora dos muros da Cidade
rebanho cresça e se multiplique (procura água, Santa de Jerusalém (cf. Hb 13,11-13); não precisa ser
pastagem, conduz ao aprisco ou a outro lugar seguro…); repetido, pois adquiriu para nós uma redenção eterna (cf.
está atento às ovelhas: de dia guia, de noite guarda, Hb 9,12).
especialmente se as ovelhas tem que pernoitar ao Desta forma, se deve dizer que Cristo é o fim do
relento…; é solidário, tem com o rebanho uma ligação sacerdócio (cf. a expressão de Paulo: Cristo é o “fim da
afetiva, conhecimento, solidariedade. É “o pastor com Lei”, Rm 10,4). Fim significa ao mesmo tempo
cheiro de ovelha” (Papa Francisco). “término”, desaparecimento do fenômeno em questão, e
118
“culminação “, “meta”, aquilo a que algo tende. ______. O Deus-Pastor. In: ______. Deus-Pastor
Cristo é fim e realização de todo sacerdócio. A na Bíblia: solidariedade de Deus com seu povo. São
finalidade dos sacerdotes nas religiões era mediar Deus e Paulo: Paulinas, 1986. p.81-122.
a humanidade. Ora, a distância entre Deus e a
BRADSHAW, P. F.; JOHNSON, M. E.;
humanidade foi abolida em Cristo. Primeiramente,
PHILLIPS, L. E. The Apostolic Tradition: a
porque, como homem e Deus (cf. DH 301-302), une
Commentary. Minneapolis: Fortress Press, 2002.
definitiva e escatologicamente os dois polos entre os
quais os sacerdotes deviam fazer a mediação. Ele é, em GRESHAKE, G. Ser sacerdote hoy: teología,
sua pessoa, o mediador único e perene (cf. 1Tm 2,5). práxis pastoral y espiritualidad. 2.ed. Salamanca:
Mas, além disso, tendo nos dado o Espírito Santo, pelo Sígueme, 2006.
qual o ser humano pode viver na imediatidade com KONINGS, J. Evangelho segundo João: amor e
Deus, dispensa ulteriores sacerdotes. Pelo Espírito fidelidade. São Paulo: Loyola, 2005.
constituímos um povo sacerdotal (cf. 1Pd 2,5; Ap 1,6;
5,10), temos constantemente acesso ao Pai (cf. Hb 4,16), LEGRAND, H. La réalisation de l’Église en un
clamamos Abba (cf. Gl 4,6; Rm 8,15), somos ensinados lieu. In: LAURET, B.; REFOULÉ, F. (dir.). Initiation à
por Deus (cf. Jo 6,45). Nossa imediatidade a Deus no la pratique de la théologie. Tome III: Dogmatique 2.
Espírito torna o sacerdócio dispensável (fim do Paris: Cerf, 1983p. 143-345.
sacerdócio) e Cristo é assim o único sacerdote MESTERS, C. A missão do povo que sofre: os
(realização do sacerdócio), pois nos possibilitou, de uma cânticos do Servo de Deus no livro do profeta Isaías.
vez para sempre, o acesso constante e definitivo a Deus. Petrópolis e Angra dos Reis: Vozes e CEBI, 1981.
Tal acesso só existe no Espírito de Cristo (e não pela
natureza humana). Por isso, a Igreja é o povo sacerdotal SANTANER, M.-A. Homem e poder: Igreja e
por sua atividade missionária que continua a missão de ministérios. São Paulo: Loyola, 1986.
Cristo (cf. Jo 20,21; 1Pd 2,9). TABORDA, F. O memorial da Páscoa do Senhor:
Francisco Taborda, SJ. FAJE (Brasil). Texto ensaios litúrgico-teológicos sobre a eucaristia. 2.ed.
original em português. revista e ampliada. São Paulo: Loyola, 2015.
5 Referências bibliográficas ______. A Igreja e seus ministros: uma teologia do
ministério ordenado. 2ª reimpressão. São Paulo: Paulus,
BORRAS, A.; POTTIER, B. A graça do 2016.
diaconato: questões atuais relativas ao diaconato latino.
São Paulo: Loyola, 2010.
BOSETTI, E. A regra pastoral de 1Pd 5,1-5. In:
BOSETTI, E.; PANIMOLLE, S. A. Deus-Pastor na Unção dos enfermos (Sacramento)
Bíblia: solidariedade de Deus com seu povo. São Paulo:
Paulinas, 1986. p.7-60. Sumário
1 O ser humano frente à enfermidade 3.1 Dos séculos III ao VIII
2 A enfermidade e a cura na Sagrada Escritura 3.2 Do século VIII ao Concílio de Trento
2.1 No Antigo Testamento 3.3 De Trento ao Concílio Vaticano II
2.2 No Novo Testamento 4 Desafios pastorais
3 A enfermidade e a cura na prática da Igreja 5 Referências bibliográficas
Nos tempos atuais, há o paradoxo do avanço da
medicina e o consequente prolongamento da vida a
A abordagem sobre o sacramento da unção dos
qualquer custo. Em muitos casos, esse prolongamento
enfermos virá apresentada a partir dos seguintes pontos:
tem levado pacientes e pessoas idosas ao isolamento, à
1) O ser humano frente à enfermidade; 2) A enfermidade
marginalização, ao abandono.
e a cura na Sagrada Escritura; 3) A enfermidade e a cura
na prática da Igreja; 4) Desafios pastorais. É comum, no Brasil e em outros países da
América Latina, o dilema dos pobres que, não tendo
1 O ser humano frente à enfermidade
condições de arcar com elevadas taxas dos planos de
Dentre os muitos dramas enfrentados pelo ser saúde, se veem obrigados a enfrentar a dura realidade do
humano está a doença. Sem marcar dia e hora ela chega, descaso dos poderes públicos quanto à prevenção de
e sem previsão e duração de tempo ela se instala, doenças e ao atendimento médico e hospitalar. A
trazendo consequências tanto para o paciente como para privatização da saúde, além de seu caráter restritivo e
as pessoas que estão ao seu redor, sobretudo familiares e elitista, tem se convertido em empreendimento rentável
amigos. A busca da cura nem sempre é caminho fácil. e lucrativo.
Dependendo do lugar social em que o paciente se
Esses e outros fenômenos têm impacto direto na
encontra, o drama pode transformar-se em pesadelo,
comunidade de fé. Vale recordar, aqui, a clássica
como escassez de centros e profissionais da saúde,
imagem do corpo e de seus membros descrita pelo
precária infraestrutura para atendimento dos enfermos.
119
apóstolo Paulo: “O corpo não é feito de um membro águas termais (Jo 5,2ss.), saliva (Mc 7,33; Jo 9,6), barro
apenas, mas de muitos. […] Se um membro sofre, todos (Jo 9,6ss.). Jesus se utiliza desses meios terapêuticos
sofrem com ele” (1Cor 12,13.26). Em atenção a esses para dar novo sentido ao mistério do sofrimento
membros sofredores, a Igreja, desde seus primórdios, humano. Longe do curandeirismo, as curas realizadas
tem marcado presença e prestado assistência aos seus por Jesus são, na verdade, sinais messiânicos da
filhos e filhas enfermos. salvação acontecendo aqui e agora e apontam para a
escatologia plena do Reino do Pai, onde não haverá
2 A enfermidade e a cura na Sagrada Escritura
sofrimento, nem choro, nem dor. Tais curas realizadas
Uma vez que os textos escriturísticos foram são sinais simbólico-sacramentais do poder libertador de
compilados em épocas e contextos bem distintos, buscar Jesus em favor do ser humano integral, a saber: a cura da
uma compreensão do sentido da doença e da cura na enfermidade do corpo e a libertação da pessoa do pecado
Bíblia é tarefa complexa. Por questão de espaço e pela e da morte.
brevidade deste estudo, limitar-nos-emos a apresentar
Jesus, por um lado, desvincula a concepção de que
apenas alguns elementos que poderão servir de base para
a doença é consequência do pecado ou castigo de Deus.
o entendimento do sentido teológico-litúrgico do
Por outro, procura incutir na mente de seus
sacramento da unção dos enfermos.
contemporâneos que a enfermidade pode ser enfrentada
2.1 No Antigo Testamento no âmbito da fé, como algo relacionado ao plano de
O binômio doença-cura no Antigo Testamento Deus: “Nem ele nem seus pais pecaram, mas é para que
deve ser compreendido a partir do contexto cultural do nele sejam manifestadas as obras de Deus” (Jo 9,3).
Oriente Antigo. Aqui, a doença aparece relacionada com Aliás, Jesus deu novo sentido ao sofrimento e à morte,
as forças do mal e com o pecado. Uma forma comum de graças à sua entrega incondicional nas mãos do Pai,
se obter a cura era a prática de exorcismos e ritos assumindo e redimindo a dor da humanidade. Desde
mágicos de cura. Na Bíblia, a questão da doença não é então,
abordada de forma isolada ou mesmo do ponto de vista a dor, a enfermidade e a morte não são obstáculos para o
estrito da ciência, mas sim a partir da perspectiva plano salvífico que Deus manifestou em Jesus Cristo. O
religiosa, da relação do enfermo com Deus e vice-versa. caminho libertador de Cristo, e agora da Igreja, passa
A doença é tida como algo que afeta o ser humano na pelo acontecimento da Páscoa, em sua dupla vertente de
sua inteireza. morte e ressurreição. E como Cristo, também a Igreja
Mais que perguntar sobre a causa natural da luta e vence o mal, a enfermidade e a morte
doença, a Sagrada Escritura se ocupa de sua significação (ALDAZÁBAL, 1999, p.865).
ou de seu porquê. Disso decorrem interpretações Os discípulos de Jesus deram continuidade ao
diversas, sendo comum a vinculação da enfermidade ao exemplo do Mestre. Curar os enfermos era tarefa
pecado, ao castigo de Deus e à possessão demoníaca. primordial da missão evangelizadora da comunidade
Também continuam sem respostas satisfatórias questões apostólica: “Eles saíram para proclamar que o povo se
relacionadas com o sofrimento, sobretudo dos justos, convertesse. Expulsavam muitos demônios, ungiam com
como bem aparecem retratadas no livro de Jó. óleo numerosos doentes e os curavam” (Mc 6,12-13). O
Para a cura de enfermidades, recorre-se a meios livro dos Atos dos Apóstolos, especialmente nos
terapêuticos extraídos da natureza, especialmente das capítulos 2 e 3, descreve como a comunidade dos fiéis
plantas. Dentre esses produtos, destaca-se o óleo, que crescia mediante a pregação, a conversão, o batismo, a
além de ser empregado na cura e purificação de doenças eucaristia e outras ações extraordinárias realizadas em
era também utilizado na consagração de objetos (altares nome de Cristo, como, por exemplo, a “cura do
e monumentos) ou de pessoas (sacerdotes, profetas e paralítico” (At 3,1-26). Essas ações são como uma
reis). O comportamento com os doentes consiste a dupla repetição daquelas que Jesus realizou e têm as mesmas
atitude: por um lado, aconselha-se a prática de visitá-los sequências do que vem narrado nos evangelhos.
e dar-lhes a devida atenção (cf. Sl 40,4; Jó 2,11); por 3 A enfermidade e a cura na prática da Igreja
outro, a lei prescreve a exclusão da comunidade de todas
As comunidades cristãs, desde cedo, buscaram pôr
as pessoas vítimas de doenças contagiosas como a lepra
em prática os gestos (rituais) de cura realizados por
(cf. Lv 13-14; Nm 12,10.15). É nesse contexto que se
Jesus. O texto da Carta de Tiago é um importante
deve compreender determinadas atitudes de Jesus para
testemunho disso. Esse texto serviu de base para a
com os enfermos.
reflexão teológica posterior sobre o que chamamos hoje
2.2 No Novo Testamento de “Sacramento da unção dos enfermos”. Ei-lo:
No Novo Testamento, há inúmeras referências Alguém de vós está sofrendo? Recorra à oração. Alguém
sobre diferentes tipos de doença (febre, hemorragia, está alegre? Entoe hinos. Alguém de vós está doente?
hidropisia…), bem como sobre pessoas deficientes Mande chamar os presbíteros da igreja, para que orem
(coxos, cegos, surdos, mudos, paralíticos…). Os meios sobre ele, ungindo-o com óleo no nome do Senhor. A
empregados para a cura são: óleo (Mc 6,13; Lc 3,18; Tg oração da fé salvará o enfermo, e o Senhor o levantará. E
5,14), vinho (Lc 10,34), colírio para os olhos (Ap 3,18),
120
se tiver cometido pecados, receberá o perdão (Tg 5,13- outros fins, não se restringindo aos enfermos. O texto
16). nada diz sobre o ministro da unção.
O apóstolo Tiago, além de apresentar uma prática Um importante documento pontifício que gozou
em vias de institucionalização, utiliza termos que de notável influência também sobre autores posteriores é
expressam a complexidade existencial da situação do a carta de Inocêncio I a Decêncio, bispo de Gúbio (ano
doente e a ação pastoral da comunidade: oração, unção, 416). À pergunta de Decêncio – se o bispo pode dar a
conforto e alívio, cura, perdão dos pecados. Diferente unção aos doentes, pois Tiago fala apenas de presbíteros
das demais referências neotestamentárias sobre a –, Inocêncio responde:
enfermidade e a cura, o texto de Tiago apresenta, de
Tua caridade mencionou o que está escrito na carta do
forma mais explícita, a intenção sacramental do gesto,
bem-aventurado Apóstolo Tiago: “Se há um enfermo
unido à palavra de oração que a comunidade eleva a
entre vós, chame os presbíteros, e rezem sobre ele,
Deus em favor do enfermo. Ao falar do sofrimento e da
ungindo-o com óleo no nome do Senhor, e a oração da
alegria, o Apóstolo deixa entrever que, seja qual for a
fé salvará aquele que sofre, e que o Senhor o levantará;
circunstância vital, tudo deve ser visto a partir de Deus e
e, se cometeu algum pecado, lhe perdoará”. Não há
para Deus (oração e canto). Em seguida, fala da
dúvida de que isto deva ser recebido e entendido a
enfermidade como tal, e é quando se chama os
respeito dos fiéis enfermos, os quais podem ser ungidos
presbíteros da comunidade. Esses agem com um gesto
com o santo óleo do crisma, que, consagrado pelo bispo,
simbólico, a unção com óleo e uma oração feita com fé.
pode ser usado para unção não somente pelos sacerdotes,
O efeito dessa dupla ação será a salvação, o
mas também por todos os cristãos para necessidade
reerguimento e o perdão dos pecados.
própria ou dos parentes.
Enfim, Tiago fala de ritos destinados a quem está
De resto, consideramos supérfluo o acréscimo que
doente, não necessariamente moribundo. Trata-se de
pergunta se é lícito ao bispo o que certamente o é aos
uma ação de caráter eclesial e comunitário, uma vez que
presbíteros. Pois nesta matéria são mencionados os
é ministrada pelos presbíteros da Igreja. A eficácia está
presbíteros porque os bispos, empenhados em outros
relacionada à oração de fé no Senhor. Os efeitos se
afazeres, não podem visitar cada doente. Mas se um
referem ao ser humano, na sua totalidade, embora não
bispo pode ou julga digno visitar alguém, pode também,
excluam a cura corporal e não se restrinjam a ela.
já que lhe compete a consagração do crisma, sem
Todavia, o texto em questão, para ser entendido no
dúvida, tanto benzer como ungir com o crisma. Ora, não
sentido do sacramento da unção dos enfermos, deve ser
pode ser derramado sobre quem é penitente, pois é do
lido à luz da Tradição da Igreja e não isoladamente
gênero do sacramento. Como pensar que àqueles aos
dessa, como veremos a seguir.
quais são negados outros sacramentos possa ser
A história da prática e da teologia desse concedido um gênero “de Sacramento”? (DENZINGER-
sacramento pode ser dividida em três períodos, a saber: HÜNERMANN, 2007, n.216).
a) Dos séculos III ao VIII, b) Do século VIII ao Concílio
Como se vê, não somente o bispo, mas também
de Trento, c) De Trento ao Concílio Vaticano II (cf.
presbíteros e todos os cristãos (com exceção dos
SCICOLONE, 1989, p.235-64).
penitentes) podem ministrar o sacramento. No entanto, a
3.1 Dos séculos III ao VIII “confecção” do óleo destinado a este sacramento (à
semelhança da eucaristia) compete ao bispo.
Nos três primeiros séculos da era cristã, tidos
como tempo de “improvisação” das fórmulas litúrgico- No século VI, merecem destaque os sermões de
sacramentais, encontramos poucos registros de textos Cesário de Arles (503-543). Neles, Cesário fala da unção
eucológicos para a celebração da unção. O texto mais no contexto da luta contra os ritos mágicos pagãos de
eloquente desse período é a “bênção do óleo”, contido cura. Além de apresentar a unção como remédio mais
na Tradição Apostólica e atribuído a Hipólito de Roma seguro contra as forças diabólicas, o bispo de Arles
(ano 215): acena para o perdão dos pecados, especialmente
daqueles cometidos em práticas pagãs.
Assim como, santificando este óleo, com o qual ungistes
reis, sacerdotes e profetas, concedei, ó Deus, a santidade As principais conclusões que compreendem o arco
aos que com ele são ungidos e aos que o recebem, assim entre séculos III e VIII da história do sacramento da
também ele dê alívio àqueles que vierem a prová-lo e unção dos enfermos são:
saúde aos que dele se servirem (ANTOLOGIA
a) A continuidade da prática das primeiras
LITÚRGICA, 2003, p.231).
comunidades, sobretudo no que tange à visita e atenção
Essa bênção aparece enxertada na prece aos doentes. Consciente de que devia prolongar o
eucarística, com a cláusula: “Se alguém oferece óleo”. ministério de Cristo e dos apóstolos, a Igreja se serve do
Nela, o bispo rende graças a Deus e pede santidade, testemunho e do sinal: a unção com óleo.
alívio e saúde para quem se servisse daquele óleo. Ao se
b) A documentação de fórmulas eucológicas
referir à unção de reis, sacerdotes e profetas, é possível
(bênçãos do óleo) para os enfermos, a partir do século
que esse óleo abençoado também fosse usado para
III. Nessas fórmulas se suplica a efusão do Espírito
121
Santo para que cure os doentes das doenças e lhes da unção a teologia escolástica, especialmente a de
restitua a saúde do corpo, da alma e do espírito. Tomás de Aquino. Apoiando-se nos textos
neotestamentários de Mc 6,13 e de Tiago 5,14-16,
c) O ministro da bênção do óleo é o bispo, que a
Trento ensina, dentre outras coisas, que a unção é
faz durante a oração eucarística (na eucaristia da quinta-
sacramento que remonta, em última instância, à vontade
feira santa).
de Cristo, como se vê na missão dos doze e em seu
d) Os destinatários da unção são todos os cristãos comportamento com os doentes. O conteúdo do
enfermos, exceto os penitentes, uma vez que o óleo sacramento é a graça do Espírito Santo, cuja unção
pertence ao gênero dos sacramentos. (efeito) apaga os delitos e as sequelas do pecado,
e) O efeito esperado da unção é, sobretudo, a consola e confirma a alma do doente, excitando nele
restituição da saúde corporal. Só a partir do século VIII é uma grande confiança na misericórdia divina e,
que se começa a acentuar o efeito espiritual, ou seja, a eventualmente, obtém a saúde do corpo quando for
remissão dos pecados. conveniente à salvação da alma. O ministro da sagrada
unção é o presbítero, e o momento da administração do
3.2 Do século VIII ao Concílio de Trento sacramento é, de preferência, quando o enfermo estiver
Do séc. VIII ao séc. XI, encontramos diversos correndo risco iminente de morte (cf. DENZINGER-
rituais de unção dos enfermos. Nesses rituais aparecem, HÜNERMANN, 2007, n.1695-1697).
além de formulários para a oração de bênção sobre o 3.3 De Trento ao Concílio Vaticano II
óleo, outros ritos com especificações bem precisas.
Nesse período, além da proliferação de rituais, Ao longo dos quatro séculos que separam o
acontecem mudanças significativas na teologia e na Concílio de Trento e o Concílio Vaticano II, não se pode
prática pastoral do sacramento da unção dos enfermos, dizer que tenha havido grandes progressos na teologia e
como: a) clericalização e consequente monopólio do na prática da unção. Aliás, o estudo desse sacramento
clero na administração do sacramento; b) praticamente ficou vinculado ao tratado sobre a
espiritualização dos efeitos do sacramento, ficando à penitência. Com o Movimento Litúrgico, especialmente
margem o efeito corporal de cura; c) penitencialização a partir da década de 1940, é que se desencadeou uma
do sacramento, ou seja: para recebê-lo, é necessário o renovação teológica. Isso graças ao estudo das fontes da
perdão dos pecados pela penitência; d) extremização dos genuína Tradição e ao desejo de superar a concepção
sujeitos: a unção passou a ser considerada como mágica dos sacramentos. Duas linhas de renovação
sacramento de preparação para a morte. O sujeito passa merecem destaque: a escola alemã e a escola francesa.
a ser de simples enfermo a doente que se encontra em Os teólogos alemães acentuam a dimensão
perigo de morte. Daí, o nome que prevaleceu até o escatológica do sacramento, relacionando a última unção
século XX: “Extrema Unção”. com a unção batismal. A unção é tida como
Em geral, esses ritos da extrema unção obedecem “consagração para a última luta”, como “sacramento da
à seguinte ordem: entrada na casa, bênção e aspersão da ressurreição”, como lugar da autorrealização da
água, confissão e ritos penitenciais (salmos e orações), esperança escatológica da Igreja no momento definitivo.
unções (em geral, dos cinco sentidos), comunhão como Os franceses, por sua vez, enveredam por uma teologia
viático. Na realidade, a partir do séc. XIII, por influência de cunho mais existencial. Seguem de perto a teologia
da crescente “escatologização”, muda-se a sequência: subjacente da Igreja primitiva, acentuam a destinação da
penitência – unção – viático, para: penitência – unção dos enfermos (não necessariamente em perigo de
eucaristia – unção (esta deve ser o último sacramento, morte) em seu caráter curativo e terapêutico para o ser
pois prepara imediatamente para a glória do céu, humano integral. Nesse entendimento, só o viático deve
apagando os últimos resquícios do pecado). Essa ser “sacramento na perspectiva da morte” (cf.
sequência permanecerá nos rituais até a reforma litúrgica BOROBIO, 1993, p.557-8).
do Vaticano II, quando se voltará à tradição mais antiga. O Concílio Vaticano II não teve pretensão de
Do séc. XI ao Concílio de Trento (séc. XVI), a oferecer uma doutrina completa sobre a unção e muito
celebração e a prática da extrema unção não sofrem menos dirimir questões ainda discutíveis. Contudo,
mudanças significativas. Contudo, nesse período dá-se a concentrou a atenção no âmbito litúrgico-pastoral.
“sistematização escolástica” desse sacramento. Os Dentre os documentos conciliares que aludem ao
teólogos escolásticos (Pedro Lombardo, Alberto Magno, sacramento da unção dos enfermos, além
Tomás de Aquino, Boaventura, João Duns Scotus etc) da Sacrosanctum Concilium, merece destaque a
desenvolvem uma teologia da unção que, de certa forma, Constituição Lumen Gentium (n.11). Aqui, vêm
se distancia da tradição primitiva. Insistem no efeito sublinhadas as dimensões eclesiológica, cristológica e
espiritual do sacramento, no sujeito em perigo de morte antropológica do sacramento.
e no caráter secundário da cura. Nos três números dedicados a esse sacramento,
O Concílio de Trento, preocupado em rebater as a Sacrosanctum Concilium determina: a) Que seu
contestações dos reformadores, toma como base de melhor nome é “unção dos enfermos” e que não se trata
argumentação da legitimidade e eficácia do sacramento de um sacramento só para quem está em perigo de
122
morte, mas para outros doentes e pessoas idosas várias possibilidades de adaptações do novo ritual, de
(cf. SC n.73); b) Que, além dos ritos separados da unção acordo com as tradições e culturas de cada povo. 5)
dos enfermos e do viático, faça-se um rito conjunto pelo “Adaptações que competem ao ministro”. Cabe ao
qual se administre a unção ao enfermo depois da ministro, em sua solicitude pastoral, levar em conta as
confissão e antes da recepção do viático (cf. SC n.74). circunstâncias em que se encontram os enfermos e a
Essa ordenação penitência-unção-viático reproduz, de melhor maneira de celebrar o sacramento.
alguma forma, aquela dos sacramentos de iniciação:
O rito como tal (Ordo) compreende sete capítulos,
batismo-confirmação-eucaristia; c) Que o número de
a saber: 1) Visita e a comunhão dos enfermos; 2) Rito
unções seja acomodado às circunstâncias dos enfermos e
ordinário da unção (rito comum, rito durante a Missa,
que os ritos sejam revistos para melhor corresponderem
rito em grande concentração de fiéis); 3) O viático
às condições dos destinatários do sacramento
(dentro e fora da missa); 4) A administração dos
(cf. SC n.75). Outras orientações teológico-litúrgico-
sacramentos a enfermo em perigo de morte (rito
pastorais são encontradas na “Constituição apostólica
contínuo penitência-unção-viático, unção sem viático e
sobre o sacramento da unção dos enfermos” de Paulo VI
unção na dúvida se o enfermo ainda está vivo); 5) A
e na “Introdução” do novo ritual da unção dos enfermos,
confirmação em perigo de morte; 6) Rito de
publicado em janeiro de 1973.
encomendação dos agonizantes; 7) Textos bíblicos e
A “Constituição apostólica” foi oportuna pelo fato outras fórmulas eucológicas a serem usados nos ritos de
de ter havido mudanças de elementos essenciais do rito, assistência aos enfermos.
como a matéria, a forma e as disposições sobre a
Do ponto de vista da teologia litúrgica, o “Ritual
reiterabilidade do sacramento. Para a matéria, ficou
da unção dos enfermos e sua assistência pastoral” (1973)
estabelecido que se pode utilizar outro tipo de óleo
traz expressivos avanços, se comparado ao precedente
vegetal, não exclusivamente o de oliveira. A fórmula do
(1614). Dentre as inovações, merecem destaque:
sacramento foi alterada em função de exprimir maior
clareza sobre sua natureza e seus efeitos. O texto a) A centralidade do mistério pascal de Cristo que
definitivo, na tradução oficial brasileira, ficou assim: veio salvar o ser humano integral. O sacramento dos
“Por esta santa unção e pela sua infinita misericórdia, o enfermos é memorial desse mistério, pois continua e
Senhor venha em teu auxílio com a graça do Espírito atualiza a ação salvífica de Cristo em favor dos doentes,
Santo, para que, liberto dos teus pecados, ele te salve e, completando, assim, neles, o que falta à sua paixão (cf.
na sua bondade, alivie os teus sofrimentos”. O número Cl 1,24).
de unções é reduzido a duas (na fronte e nas mãos), b) A redescoberta do valor pneumático do
podendo ser restringido a uma só, na fronte, ou em outra sacramento, especialmente na fórmula de bênção do
parte do corpo. O sacramento pode ser administrado óleo.
mais vezes, dependendo da duração da enfermidade ou
de seu agravamento. c) A dimensão eclesial e comunitária que perpassa
todo o ritual. A Igreja se faz presente junto ao enfermo
A “Introdução” do novo ritual contém cinco com solicitude pastoral permanente, pois tem
seções intituladas: 1) “A enfermidade humana e seu consciência de que o doente é membro (sofredor) do
significado no mistério da salvação”. Aqui, vem corpo vivo de Cristo e que espera participar da sua
apresentada uma síntese do pensamento cristão sobre o glorificação. O enfermo, por sua vez, imerso no mistério
estado de doença e seu significado na história da de seu sofrimento, também edifica a Igreja. As diversas
salvação. 2) “Os sacramentos a serem conferidos aos possibilidades e formas de celebração do sacramento –
doentes”. Nesta seção, vêm claramente expressos os dois sobretudo com vários enfermos ao mesmo tempo e com
sacramentos: a unção e o viático. 3) “Funções e numerosa assembleia – atestam sua índole comunitária.
ministérios em relação aos enfermos”. Aqui são
contemplados os diversos ofícios e serviços em favor Do ponto de vista antropológico, o novo ritual
dos doentes. É avaliado como positivo e louvável o avança na compreensão holística do ser humano e o
esforço de toda a humanidade (especialmente os consequente efeito (holístico) do sacramento para quem
profissionais da saúde e cientistas) na tarefa de aliviar os o recebe.
sofrimentos provocados pela doença e o consequente 4 Desafios pastorais
prolongamento da vida. Também os familiares são
contemplados pela especial participação nesse Conforme dito acima, o novo ritual da unção dos
“ministério de consolação”. Por fim, os ministros enfermos possui forte apelo pastoral, a começar pelo
(presbíteros) são lembrados de seu dever de visitar próprio nome: “Ritual da unção dos enfermos e sua
pessoalmente os enfermos, de administrar-lhes os assistência pastoral”. As celebrações ali previstas devem
sacramentos, de cuidar da catequese tanto para os ser “cume e fonte” de uma ação pastoral da Igreja que
enfermos como para os fiéis em geral, tendo em vista leva a sério o drama vivido por quem enfrenta o peso da
sua participação ativa e frutuosa na celebração dos doença, da idade avançada e de toda sorte de sofrimento.
sacramentos. 4) “Adaptações que competem às Disso decorre a necessidade de formação teológico-
conferências episcopais”. Nesta seção, são apresentadas litúrgica para toda a comunidade com os seguintes
objetivos, dentre outros:
123
a) Romper a antiga mentalidade de que o SCICOLONE, H. Unção dos enfermos. In:
sacramento da unção é somente para quem está à beira NOCENT, A. et al. Os sacramentos: teologia e história
da morte. da celebração. São Paulo: Paulus, 1989, p.223-64.
b) Obter uma visão global dos efeitos do
sacramento. Essa visão também livrará os fiéis do risco
de se fixarem na ideia de cura da doença ou do sentido
do sacramento como algo mágico. Exéquias
c) Ampliar a compreensão do que constitui a
pastoral da saúde. Em última instância, essa pastoral Sumário
deverá abranger todas as etapas e momentos da vida 1 A morte faz parte da vida
humana, não apenas restringindo seu campo de ação a 2 Celebrar por ocasião da morte: uma tradição da Igreja
quem se encontra gravemente enfermo. Enfim, uma 2.1 Rituais de exéquias da Igreja latina
pastoral que tenha implicações no contexto familiar, 2.2 Considerações acerca do ritual de exéquias de
comunitário, social. Mais que uma pastoral de 1969
conservação e remédio ante a doença que se impõe, é 3 Para melhor celebrar por ocasião da morte: sugestões
uma ação que promove a saúde e o bem-estar de todas as pastorais
pessoas, à luz do Evangelho. Referências
d) Recuperar a Tradição da Igreja Primitiva,
buscando desvincular a unção dos enfermos do
1 A morte faz parte da vida
sacramento da penitência. Nesse caso, seria desejável
que houvesse leigos instituídos ministros extraordinários Francisco de Assis conclui o célebre “Cântico das
da unção. criaturas” louvando a “irmã morte”: “Louvado sejas,
meu Senhor, pela nossa irmã, a morte corporal, da qual
e) Incrementar a prática de celebrações nenhum homem vivente pode escapar. […] Bem-
comunitárias do sacramento da unção, reafirmando sua aventurados os que ela encontrar na tua santíssima
índole eclesial. Valendo o alerta de que essa prática não vontade, porque a morte segunda não lhes fará mal”. O
resulte na banalização do sacramento, ou seja, santo de Assis foi coerente com esse motivo inusitado de
ministrando-o a qualquer pessoa, de forma louvor. Seus biógrafos relatam que, no momento
indiscriminada. extremo de sua vida, ele entoou o salmo 141, juntamente
Joaquim Fonseca, OFM. ISTA. Texto original com os irmãos que o acercavam. Aliás, o momento da
Português. morte de são Francisco foi tão expressivo que, até
nossos dias, a família franciscana se reúne, a cada ano,
5 Referências bibliográficas na véspera de sua festa, à noite, para celebrar
ALDAZÁBAL, J. Unção dos enfermos. In: o transitus do seráfico pai.
SAMANES, C. F.; TAMOYO-ACOSTA, J-J. A morte faz parte da vida. Não por acaso, em
(Ed.). Dicionário de conceitos fundamentais do diversas culturas e religiões, são celebrados ritos
cristianismo. São Paulo: Paulus, 1999, p.864-9. fúnebres, no intento de honrar, reverenciar, agradecer,
ANTOLOGIA LITÚRGICA. Textos litúrgicos, despedir-se, “recomendar” o ente querido à proteção da
patrísticos e canônicos do primeiro milênio. Fátima: divindade. Trata-se de uma espécie de conclusão dos
Secretariado Nacional de Liturgia, 2003. “ritos de passagem”. Esses ritos abarcam estágios
significativos da vida humana, como: o nascimento, a
BOROBIO, D. Unção dos enfermos. In: ____. infância, a idade adulta, a iniciação religiosa etc. Os ritos
(Ed.). A celebração da Igreja II – Sacramentos. São fúnebres evidenciam, por um lado, a despedida do
Paulo: Loyola, 1993, p.539-614. defunto deste mundo terrestre e, por outro, buscam
____. Antropología y pastoral de la salud. Phase, reintegrá-lo em outro lugar, que é o da memória. São
Barcelona, n. 325, p. 25-38, ene./feb. 2015. igualmente importantes no processo de luto, pois, além
de “homenagearem” o defunto, exercem um efeito
COLOMBO, G. Unção dos enfermos. In: restaurador nas pessoas que deles participam, ou seja:
SARTORE, D.; TRIACCA, A. (Ed.). Dicionário de reforçam a comunhão, estreitam os laços de
liturgia. São Paulo: Paulus, 1992, p.1203-13. solidariedade, de cumplicidade e de compaixão mútuas.
DENZINGER – HÜNERMANN. Compêndio dos Contudo, nos tempos atuais, é perceptível o
símbolos, definições e declarações de fé e moral. São paradoxo da negação e da banalização da morte. Ao
Paulo: Paulinas / Loyola, 2007. mesmo tempo que se oculta a realidade da morte, são
ORTEMANN, C. A força dos que sofrem; história veiculadas nos meios de comunicação notícias com
e significação do sacramento dos enfermos. São Paulo: excessivas doses de sensacionalismo, dando-nos a
Paulinas, 1978. impressão de estarmos assistindo a um aterrorizante
espetáculo. E, para agravar a situação, o mundo inteiro, a
124
partir do final do ano de 2019, se viu mergulhado num seja pela morte. Para mim, o viver é Cristo e o morrer,
oceano de tormentas, provocado pela pandemia do Sars- lucro” (Fl 1,20-21). Nesse dinamismo pascal, a morte
CoV-2. Mesmo sabendo que o isolamento social tem corporal é encarada como plenitude da vida. Uma vez
sido um dos meios mais seguros para conter a incorporado à comunidade dos que renasceram pelas
propagação do vírus, igualmente se constata que essa águas batismais, o cristão não vive mais para si mesmo,
medida preventiva provocou graves efeitos colaterais em mas para aquele que o livrou das trevas e o transferiu
boa parte da população do planeta. A impossibilidade de para o reino do Filho amado (cf. Cl 1,13). Assim,
as pessoas visitarem seus parentes e amigos enfermos e momentos marcantes da vida da comunidade, como a
de celebrarem dignamente os ritos fúnebres, em morte de um irmão ou irmã, são celebrados por toda a
memória de seus entes queridos falecidos, tem causado Igreja, o corpo vivo de Cristo.
danos irreparáveis em muitas pessoas.
É sabido que os cristãos dos primeiros séculos
O alto índice de patologias oriundas de um “luto incorporaram, nas celebrações litúrgicas, diversos
complicado”, nesses tempos de pandemia, tem elementos da cultura dos povos da época. Em outras
despertado a atenção de psicólogos e psiquiatras, “por se palavras, os ritos cristãos são fruto de uma sadia
tratar de uma situação adversa, na qual muitos estão “inculturação”, ou seja, da mútua fecundação de
perdendo muitas coisas, não só pessoas, o tempo da elementos próprios da cultura com a fé cristã. No caso
elaboração desse momento poderá ser ainda mais longo dos ritos relacionados com a morte, costumes “pagãos”
e lento, e em esfera coletiva, já que toda a sociedade está foram adaptados pelos cristãos, por exemplo: a) o viático
sofrendo” (MELO, 2020, p. 1). O célebre teólogo (comunhão oferecida ao moribundo para fortalecê-lo na
português J. Tolentino Mendonça aponta as principais “última viagem”) substitui a moeda que gregos e
fases que devem ser respeitadas no trabalho de luto, romanos punham na boca do defunto, para que este
nestes termos: pudesse pagar o “pedágio” da sua viagem para o além;
b) os salmos substituem as lamentações, comuns no
Precisaríamos primeiro chorar a nossa impossibilidade
mundo romano; c) o refrigerium (refeição fúnebre
de consolação (extraordinária frase do Antigo
“pagã” que se realizava sobre o túmulo do defunto, no
Testamento em que São Mateus recupera, para seu
terceiro, sétimo, trigésimo dia e no aniversário depois da
Evangelho, a cena da morte dos inocentes: “Ouviu-se
morte) fez com que alguns cristãos celebrassem a
uma voz em Ramá, uma lamentação e um grande pranto:
eucaristia junto ao túmulo de seus entes queridos. Tal
é Raquel que chora os seus filhos e não quer ser
prática, pouco a pouco, foi transferida para os espaços
consolada” – Mt 2,18). Precisaríamos depois chorar e ser
das igrejas, dando origem às “missas pelos fiéis
consolados, em pequenos passos. E integrar então,
defuntos”.
progressivamente, a ausência numa nova compreensão
desse mistério que é a presença dos outros na nossa vida.
(MENDONÇA, 2016, p. 16-17)
2.1 Rituais de exéquias da Igreja latina
É consenso que a pandemia tenha colocado a
Num breve percurso, serão apontadas algumas
população mundial numa enigmática encruzilhada. O
características teológico-litúrgicas extraídas dos
importante é que se decida por um caminho por onde o
principais rituais de exéquias da Igreja latina, a saber: o
trabalho de luto seja menos traumático.
ritual romano do século VII, os rituais romano-galicanos
dos séculos VIII-IX, o ritual romano de 1614 e o ritual
2 Celebrar por ocasião da morte: uma tradição da romano de 1969 (cf. ROUILLARD, 1993, p. 237-242).
Igreja O ritual romano do século VII é tido como o mais
No âmbito da fé cristã, a morte é tida como antigo e, por isso, merece uma atenção especial. Aqui, se
coroamento de uma experiência pascal da vida. Os encontra um itinerário sucinto sobre os procedimentos
sacramentos de iniciação cristã, sobretudo o batismo, dispensados ao moribundo, no seu leito de morte, bem
inserem a pessoa nessa experiência. Nas águas do como as orientações para a celebração das exéquias. Eis
batismo, se dá, sacramentalmente, a passagem da morte o texto (com tradução nossa) do “Ordinário de como agir
à vida, da sepultura à ressurreição: em favor dos defuntos”:
Pelo batismo, fomos sepultados juntamente com ele na 1. Logo que o vejas aproximar-se da morte, o doente
morte, para que, como Cristo foi ressuscitado dos mortos deverá comungar do santo sacrifício, mesmo que tenha
por meio da glória do Pai, assim também nós comido naquele dia, pois a comunhão será para ele uma
caminhemos em uma vida nova. Com efeito, se nos ajuda e defesa na ressurreição dos justos. Ela o
tornamos unidos a ele por uma morte semelhante à sua, ressuscitará.
seremos semelhantes a ele também pela ressurreição. 2. Após receber a comunhão, será lida por um presbítero
(Rm 6,4-6) ou diácono a Paixão do Senhor diante do corpo de
A vida cristã consiste numa progressiva enfermo, até quando a alma sair do corpo.
configuração a Cristo, como bem expressa o Apóstolo: 3. Antes, porém, que a alma tenha saído do corpo, diz-
“Cristo será engrandecido no meu corpo, seja pela vida, se: R/. “Santos de Deus, socorrei-o. V/. Acolha-te
125
Cristo”. Salmo 113 (Quando o povo de Israel saiu do Nos rituais romano-galicanos dos séculos
Egito). Antífona: “O coro dos anjos te acolha”. O seguintes, a eucologia muda substancialmente. A
sacerdote diz a oração como nos sacramentos. mentalidade dos povos franco-germânicos influenciou,
de forma decisiva, no conteúdo das orações e monições,
4. Em seguida, o corpo é lavado e colocado no caixão. E
a saber: a) os insistentes pedidos da misericórdia e do
depois que o corpo estiver no caixão, antes de sair da
perdão de Deus em favor do defunto, bem como a
casa, se diz a antífona: “Formastes-me da terra e
proteção contra todos os perigos a que ele se acha
vestiste-me de carne, meu Redentor; ressuscitai-me no
exposto, na sua “viagem” para o além; b) a insegurança
último dia”. Salmo 96 (O Senhor reinou).
da parte dos fiéis quanto ao destino eterno da pessoa que
5. Em seguida, o corpo é colocado no interior da igreja. acabou de falecer; c) a eucaristia, que passa a ocupar o
Diz-se: Antífona: “Senhor, ordenastes que eu lugar central nos funerais, e a consequente mentalidade
nascesse”. Salmo 41 (Como a corça de “sacrifício de propiciação e de sufrágio” em favor dos
suspira). Antífona: “Os anjos te levem ao paraíso de defuntos. Séculos mais tarde, o reducionismo chegará a
Deus; na tua chegada, os mártires te recebam, e te levem tal ponto de, na missa de exéquias, os fiéis não
à cidade santa de Jerusalém”. Salmo 4 (Quando eu comungarem, a fim de reverter ao defunto os “méritos”
chamo, respondei-me!). obtidos com tal celebração; d) a falta de clareza na
6. Enquanto é levado para a relação entre a morte do fiel e o mistério pascal de
sepultura: Antífona: “Aquele que chamou a tua alma Cristo. Aliás, Cristo e o Espírito Santo são pouco
para a vida”. Salmo 14 (Senhor, quem mencionados, exceto na conclusão trinitária das orações.
morará?). Antífona: “Senhor, que tomastes a alma do As orações são dirigidas a Deus, mas não explicitam que
corpo, faze-a alegrar-se com vossos santos em vossa ele enviou seu Filho para a salvação dos humanos. “Em
glória”. Salmo 50 (Tende piedade, ó meu suma, esta teologia do além parece quase toda inspirada
Deus). Antífona: “Vede, Senhor, a minha humildade e o no Antigo Testamento e pouco animada pela boa nova
meu sofrimento, perdoai todos os meus pecados”. Salmo do Evangelho. […] Não é nem cristológica nem pascal”
24 (Senhor, meu Deus, a vós elevo a minha (ROUILLARD, 1993, p. 241).
alma). Antífona: “Os anjos te conduzam para o reino de O ritual romano de 1614 faz parte do conjunto de
Deus com glória; os mártires te recebam no vosso reino, livros litúrgicos promulgados pela Igreja, depois do
Senhor. Da terra o moldastes e o revestistes de carne, Concílio de Trento. O desenrolar dos funerais obedece
meu Redentor, ressuscitai-o no último dia. Salmo ao antigo costume processional, a saber: da casa do
50 (Tende piedade, ó meu Deus). defunto até à igreja; da igreja para o cemitério. Quanto à
7. E quando for colocado na igreja, todos rezam por esta teologia, esse ritual traz no seu bojo influências diretas
mesma alma sempre, sem parar, até que o corpo seja dos rituais anteriores, sobretudo daqueles advindos do
sepultado. Cantem salmos ou responsórios, digam império carolíngio. Tais influências são perceptíveis nas
orações ou se façam leituras do livro de Jó e, quando ambiguidades ali presentes: ao lado de uma eucologia,
chegar a hora das vigílias, ao mesmo tempo, celebrem a advinda dos antigos sacramentários romanos, que revela
vigília, digam salmos com as antífonas sem aleluia. O a plena confiança na ressurreição, convive outra, que
sacerdote, porém, diz a oração, enquanto cantam expressa a incerteza e o terror diante da morte e do
a antífona: “Abri-me as portas da justiça e, entrando por “destino da alma”. A título de exemplo, vale citar o
elas, cantarei ao Senhor”. Salmo 117 (Dai graças ao responsório que segue à oração do Pai-nosso:
Senhor). V/. E não nos deixes cair em tentação.
Num olhar panorâmico sobre este Ordo do século R/. Mas livra-nos do mal.
VII, facilmente se percebe seu caráter pascal. Os salmos
V/. Da porta do inferno.
pascais 113 e 117 que emolduram o ritual deixam
entrever que há uma correspondência tipológica entre as R/. Arrebata, Senhor, a sua alma…
exéquias e o êxodo, ou seja: “o defunto experimenta a
Como se pode observar, o texto sugere que todos
sua saída do Egito e o seu ingresso na terra prometida,
os defuntos correm o perigo de confundir a “porta” do
onde é acolhido pelos anjos e pelos santos”
inferno com a do céu. Aliás, a concepção atemorizante
(ROUILLARD, 1993, p. 239). Isso aparece explícito no
da morte e da dúvida quanto ao destino do defunto era
rito descrito acima. O cortejo fúnebre – da casa do
largamente veiculada na reflexão e pregação da Igreja,
defunto, passando pela igreja, até à sepultura – possui
cujo ápice se deu nos séculos XVI e XVII. Outros
um sentido escatológico: a comunidade “acompanha” o
impasses teológicos são perceptíveis como: a) a
ente querido, na “viagem” até sua morada definitiva, a
inexpressiva referência ao mistério pascal; b) a ausência
“Jerusalém celeste”. Aqui, serão acolhidos pelos
de vínculo com o sacramento do batismo; c) uma
habitantes do céu aqueles que “venceram a grande
eucologia exclusiva para o defunto. Nas orações, não há
tribulação” (Ap 7,14). Enfim, no presente ritual,
qualquer menção aos vivos que choram a perda de seus
predomina a certeza de que o defunto entrará na glória,
entes queridos; e) um ritual para ser executado
sem maiores empecilhos.
exclusivamente pelo clero.
126
A música ritual de exéquias é, igualmente, pouco f) Textos diversos: para exéquias de adultos (cap.
pascal. A sequência “Dies irae” e o “Ofertório” da VI), exéquias de crianças batizadas (cap. VII), exéquias
“Missa de Réquiem” são bons exemplos disso. Nestas de crianças não batizadas (cap. VIII).
duas peças musicais, dentre outros aspectos, vêm
expressos o medo do inferno, o pessimismo diante da
vida e a crença generalizada de que “poucos se salvam”. 2.2 Considerações acerca do ritual de exéquias de 1969
Há quem afirme que a antífona “Domine Jesu Christe”
Sem sombra de dúvidas, o novo ritual de exéquias
(Ofertório) seja o texto mais enigmático – não só da
constitui um expressivo avanço frente ao antigo. A título
liturgia de exéquias como de toda a liturgia romana –,
de exemplo, podem-se destacar os seguintes pontos:
devido ao pedido para que Cristo “liberte as almas de
todos os defuntos das penas do inferno”. A rigor, trata-se a) O restabelecimento da perspectiva pascal e
de algo paradoxal, pelo fato de a teologia sustentar que é eclesial. Essa perspectiva constitui o fio condutor de
impossível passar do inferno ao paraíso, portanto, um todo o ritual. Já no início das “Observações
conflito com o princípio lex credendi lex suplicandi (cf. preliminares”, lemos:
SORESSI, 1947, p. 245-252). A Igreja celebra com profunda esperança o mistério
Passados quatro séculos de uso desse ritual pela pascal de Cristo nas exéquias de seus filhos, para que
Igreja latina, a Congregação para o Culto Divino eles, incorporados pelo batismo a Cristo defunto e
publicou, em 1969, um novo ritual de exéquias. ressuscitado, passem com ele da morte à vida. […] Por
A Sacrosanctum Concilium havia pedido, isso a santa Mãe Igreja oferece o sacrifício eucarístico da
expressamente, que o novo ritual de exéquias exprimisse Páscoa de Cristo e eleva a Deus suas orações e sufrágios
com mais clareza a índole pascal da morte cristã e que pela salvação de seus defuntos, para que, pela comunhão
melhor correspondesse às condições das diversas existente entre os membros de Cristo, o que para um
regiões, também com relação à cor litúrgica e ao rito de serve de sufrágio a outros sirva de consolo e esperança.
exéquias de crianças (cf. SC, n. 81-82). (n. 1)
Esse ritual é composto de uma introdução geral Vê-se, com clareza, a íntima relação entre as
(Observações preliminares), em que são apresentadas exéquias e os sacramentos primordiais: o batismo e a
suas bases teológicas e pastorais e de oito capítulos, eucaristia. Pode-se afirmar, igualmente, que a celebração
assim constituídos: das exéquias constitui o arremate de uma vida tecida no
seio da comunidade eclesial e alimentada pelos
a) Vigília pelo defunto e oração quando o corpo é
sacramentos.
colocado no caixão (cap. I). Trata-se de uma celebração
da Palavra de Deus, sob a presidência de um presbítero b) Uma eucologia mais abrangente. Vale destacar
ou ministro(a) leigo(a). No momento da deposição do nas orações e nos prefácios a presença de diversos
corpo no caixão, é previsto um breve rito constituído de “temas” pouco explicitados no ritual tridentino, como: a
salmos, leitura breve e oração conclusiva. esperança e a certeza da ressurreição, vinculadas à
Páscoa de Cristo; o perdão e a misericórdia divina; o
b) Primeiro tipo de exéquias: celebrações na casa
valor escatológico da eucaristia, definida como “viático
do defunto, na igreja e no cemitério (cap. II). Aqui,
na peregrinação terrena” e “penhor da páscoa eterna do
conserva-se a tradição dos antigos rituais, com duas
céu”; a profissão de fé na vitória pascal de Cristo; maior
procissões, interligando três estações, a saber: da casa do
atenção aos enlutados etc.
defunto até à igreja, e desta ao cemitério. Nesses três
locais, estão previstas orações, salmos, responsórios etc., c) Um amplo lecionário. Assim como os demais
e a eucaristia (na igreja). livros litúrgicos, elaborados pós-Concílio Vaticano II, o
ritual de exéquias traz um rico lecionário. As
c) Segundo tipo de exéquias: celebrações na
“Observações preliminares” apontam as razões para tal,
capela do cemitério e junto à sepultura (cap. III). Aqui,
nestes termos:
o ritual não prevê a celebração da eucaristia. Na capela
do cemitério, celebra-se uma liturgia da Palavra de Em todas as celebrações pelos defuntos, tanto nas
Deus, seguida da “encomendação e despedida”. Junto à exéquias como nas outras, dá-se muita importância à
sepultura, rezam-se as orações indicadas e canta-se liturgia da Palavra de Deus. Estas leituras proclamam o
algum “canto apropriado”. mistério pascal, despertam a esperança de um novo
encontro no Reino de Deus, ensinam-nos uma atitude
d) Terceiro tipo de exéquias: celebrações na casa
cristã para com os mortos e nos exortam a dar, por toda
do defunto (cap. IV). Esta terceira possibilidade de
parte, o testemunho de uma vida cristã. (n. 11)
celebração é similar à da “Vigília” (cap. I), seguida da
“encomendação e despedida”. O lecionário contempla um significativo acervo de
leituras do Antigo e do Novo Testamento. Os textos vêm
e) Exéquias para crianças (cap. V). Para este tipo
apresentados na ordem em que são proclamados na ação
de exéquias, há textos próprios (orações e leituras
litúrgica (primeira leitura – salmo responsorial –
bíblicas), além da recomendação de que a cor litúrgica
segunda leitura – aclamação ao evangelho – evangelho),
seja “festiva e pascal”.
e vêm distribuídos em três seções: “Exéquias de
127
adultos”, “Exéquias de crianças batizadas” e “Exéquias teria desejado fazer, isto é, batizá-las na fé e na vida da
de crianças não batizadas”. Igreja. (CTI, 2008, n. 102-103)
d) A ampliação do acervo de salmos. O novo ritual O ritual de exéquias de 1969 inova também em
resgata um expressivo repertório de salmos que outros aspectos, como: a admissão à cremação (n. 15); o
remontam à antiga tradição de celebrações exequiais, ministro das exéquias, excetuando a eucaristia, pode ser
sobretudo aqueles de conteúdo pascal e de confiança. um leigo (n. 19); a sensibilidade ecumênica da parte de
Afinal, a linguagem poética, expressa nos diversos quem prepara e preside as exéquias, uma vez que é
gêneros dos salmos, propicia à comunidade de fé comum nos velórios a presença de pessoas de outros
solidarizar-se com quem está enfermo, aflito, inseguro, credos ou mesmo sem nenhuma prática religiosa (n. 18);
abandonado etc.: “Na minha angústia eu clamei pelo a possibilidade de adaptações do ritual, pelas
Senhor, e o Senhor me atendeu e libertou! O Senhor conferências episcopais (n. 21-22) etc.
severamente me provou, mas não me abandonou às
Rematando estas considerações acerca do ritual de
mãos da morte” (Sl 118/117, 5.18).
exéquias de 1969, é pertinente também apontar seus
e) A revisão das exéquias de crianças. O novo limites, como a existência de vestígios de uma
ritual contemplou o pedido da Sacrosanctum escatologia dualista (corpo x alma) e a não adaptação do
Concilium para que fossem revisadas as exéquias de ritual da parte da maioria das conferências episcopais.
crianças, incluindo a criação de formulário para uma Estas e outras arestas poderão ser aplainadas, à medida
“missa própria” (cf. SC n. 82). Também foram que as igrejas se empenharem na elaboração de rituais
elaborados textos para exéquias de crianças não que, além de uma boa teologia, levem em conta a
batizadas, ou seja, daquelas cujos pais desejavam tê-las realidade cultural das comunidades de fé.
batizadas, mas foram impedidos pela morte precoce.
Uma característica da eucologia dessas celebrações é o
fato de se confiar a criança (não batizada) à misericórdia 3 Para melhor celebrar por ocasião da morte:
divina, sem fazer menção ao seu ingresso na glória sugestões pastorais
celeste; pede-se sobretudo pelos seus pais. Por trás dessa Como foi dito no início deste texto, a Igreja, em
“omissão”, se esconde a controvertida questão referente sua solicitude pastoral, sempre buscou encorajar e
à sorte das crianças que morrem sem batismo. Vale consolar seus filhos e filhas no momento extremo da
recordar que, na ocasião em que tais orações foram existência, preparando-os para o último e decisivo
redigidas, predominava a doutrina comum de que as combate espiritual, travado entre a vida e a morte. Bons
“almas” das crianças não batizadas estavam exemplos disso são o rito da “encomendação da alma”
impossibilitadas de desfrutar da “visão beatífica” de (1614) e o da “encomendação dos agonizantes” (1969).
Deus. Essa questão foi discutida, quatro décadas depois, Tais ritos – compostos de orações, breves perícopes
pela Comissão Teológica Internacional. Em 2007, o bíblicas, jaculatórias, responsos etc. – são realizados
papa Bento XVI aprovou e autorizou a publicação do junto ao moribundo no seu leito de morte. Uma vez
documento “A esperança da salvação para as crianças acontecido o desenlace, celebram-se as exéquias.
que morrem sem batismo”, elaborado pela referida
Comissão. O estudo chega à seguinte conclusão: Ao celebrar a “páscoa” de seus filhos e filhas, a
Igreja continua sua nobre missão de consolar e confortar
A nossa conclusão é que os muitos fatores que antes os enlutados, como bem exorta o Apóstolo: “Se cremos
consideramos oferecem sérias razões teológicas e que Jesus morreu e ressuscitou, cremos igualmente que
litúrgicas para esperar que as crianças que morrem sem Deus, por meio de Jesus, reunirá consigo os que
batismo serão salvas e poderão gozar da visão beatífica. adormeceram. Portanto, consolai-vos uns aos outros com
Sublinhamos que se trata, aqui, de razões estas palavras” (1Ts 4,14.18). Nessa esteira de longínqua
de esperança na oração mais do que de conhecimento tradição, é urgente que a Igreja crie meios eficazes para
certo. Existem muitas coisas que simplesmente não a sedimentação de uma “pastoral da esperança”, que
foram reveladas (cf. Jo 16,12). Vivemos na fé e na sirva de contraponto ao paradoxal fenômeno de
esperança no Deus de misericórdia e de amor que nos foi camuflagem e/ou banalização da morte, típico da
revelado em Cristo, e o Espírito nos impele a orar em sociedade hodierna.
gratidão e alegria constantes (cf. 1Ts 5,18).
Para maior eficácia dessa “pastoral da esperança”,
O que nos foi revelado é que o caminho ordinário de dentre outras coisas, deve-se levar em conta:
salvação passa através do sacramento do batismo.
Nenhuma das considerações expostas anteriormente a) Uma ação conjunta com a “pastoral da
pode ser adotada para minimizar a necessidade do saúde”. O conforto espiritual dispensado ao enfermo,
batismo, nem para retardar a sua administração. Ainda bem como às pessoas da família e a todos aqueles que se
mais, como queremos, aqui, reafirmar em conclusão, ocupam dos doentes, constitui um verdadeiro ministério
existem fortes razões para esperar que Deus salvará da consolação. Esse “ministério” tende a se potencializar
essas crianças, já que não se pode fazer por elas o que se na vida das pessoas, sobretudo quando estas têm de
enfrentar a dor da morte do ente querido e o consequente
trabalho de luto.
128
b) Uma adequada formação para agentes da quatro capítulos e dois apêndices. O primeiro capítulo
“pastoral da esperança”. A celebração das exéquias e a contém três celebrações da Palavra; o segundo traz uma
consequente assistência espiritual às famílias enlutadas celebração para a encomendação; o terceiro apresenta
requerem cuidadosa preparação. Trata-se de um um rito próprio para o momento em que o corpo é
aprendizado que privilegiará a escuta da pessoa que depositado na sepultura; o quarto traz uma proposta para
sofre. Sem a cultura da escuta, torna-se impossível a celebrações relacionadas com a cremação (uma no
abertura do canal da consolação. crematório e outra para a deposição da urna com as
cinzas). No apêndice I, se encontra um pequeno
Escutar significa dar a palavra, dar tempo e espaço ao
lecionário, e no apêndice II, uma coletânea de cantos
outro, acolhê-lo também naquilo que ele recusa de si,
apropriados.
dar-lhe direito de ser quem ele é e de sentir aquilo que
sente e fornecer-lhe a possibilidade de se exprimir. O subsídio “Celebrando por ocasião da morte:
Escutar é ato que humaniza o homem e que suscita a subsídio para velório, última encomendação e
humanidade do outro. (MANICARDI, 2017, p. 15) sepultamento”, por sua vez, compõe-se de seis roteiros.
Cada roteiro contempla uma circunstância diferente de
Nas exéquias e nas celebrações de apoio às
morte, a saber: de um membro atuante na comunidade;
famílias enlutadas, a escuta tem espaço privilegiado no
de uma pessoa falecida após longa enfermidade; de
momento da “recordação da vida”. Aqui, as pessoas são
um(a) jovem; de um(a) religioso(a); de alguém vítima da
convidadas a expressar seus sentimentos e fazer a
violência; de uma criança. Cada um dos roteiros é
memória da “passagem” do ente querido, à luz do
composto de três partes: a) “Velório” (celebração no
mistério pascal de Cristo. Fatos, palavras e ações do(a)
formato do Ofício Divino das Comunidades: chegada,
defunto(a) se convertem num verdadeiro “testamento” a
abertura, recordação da vida, salmo, leituras bíblicas,
ser cumprido por todos. Igualmente, a escuta da Palavra
meditação, preces, louvação); b) “Encomendação e
de Deus e sua vinculação com o que foi dito na
despedida”; c) “Sepultamento / cremação”. Há, também,
“recordação da vida” se converterão em substancioso
dois pequenos ritos para o momento da cremação e da
alimento para a vida e remédio eficaz no combate da
deposição das cinzas, bem como um “Ofício de apoio às
tristeza e da dor da separação.
famílias enlutadas”.
Outros conteúdos estudados, ao longo do processo
Em suma, o que se espera é que as diversas igrejas
formativo, deverão corroborar tal “escuta”.
encontrem a melhor forma de celebrar a páscoa de seus
c) A criação de roteiros exequiais adaptados às filhos e filhas e que essas celebrações sejam momentos
necessidades pastorais de cada região. O ritual de privilegiados de proclamar a fé no “Cristo primogênito
exéquias de 1969 deixa ampla margem para que as dentre os defuntos” (Cl 1,18).
conferências episcopais façam adaptações, conforme as
Joaquim Fonseca, OFM. ISTA/FAJE. Texto
necessidades pastorais de cada região (cf. n. 21-22).
original em português. Enviado: 08/12/2021. Aprovado:
Infelizmente, a grande maioria das conferências
20/12/2021. Publicado: 30/12/2021.
episcopais optou pela simples tradução do ritual. O
liturgista Gregório Lutz – de saudosa memória –,
enquanto tecia considerações sobre um novo ritual de
exéquias para o Brasil, lamentou o fato de o ritual de Referências
1969 ter sido apenas traduzido, sem qualquer adaptação, BROVELLI, F. Exéquias. In: SARTORE, D.;
nestes termos: TRIACCA, A. M. Dicionário de Liturgia. São Paulo:
Paulus, 1992. p. 426-436.
É verdade que ele exprime a fé autêntica cristã com
respeito à morte, mas esta fé é expressa numa linguagem CARPANEDO, P.; FONSECA, J.; GUIMARÃES,
que, aqui, dificilmente se entende. É por isso que este I. R. Celebrando por ocasião da morte: subsídio para
novo ritual não foi tão bem aceito como o teria sido um velório, última encomendação e sepultamento. 4.ed. São
ritual adaptado, eventualmente com sugestões diferentes Paulo: Paulinas, 2018.
para as regiões com as tradições próprias e para
CNBB. Nossa páscoa: subsídios para a celebração
ambientes diversificados. (LUTZ, 1998, p. 33)
da esperança. 2.ed. São Paulo: Paulus, 2004.
Essa opinião de Lutz pode ser aplicada a outros
COMISSSÃO TEOLÓGICA
países da América Latina. No caso do Brasil, o que tem
INTERNACIONAL. A esperança da salvação para
acontecido, na prática, são publicações de subsídios
crianças que morrem sem batismo. São Paulo: Paulinas,
alternativos para celebrações exequiais que são adotadas
2008. Documentos da Igreja, 22.
em paróquias e dioceses. A título de exemplo, pode-se
destacar: “Nossa Páscoa: subsídios para a celebração da FONSECA, J. Música ritual de exéquias: uma
esperança” e “Celebrando por ocasião da morte: subsídio proposta de enculturação. Belo Horizonte: O Lutador,
para velório, última encomendação e sepultamento”. O 2010.
primeiro foi preparado pela Comissão Episcopal Pastoral
para a Liturgia da CNBB. Este subsídio é composto de
129
LUTZ, G. Pensando um novo ritual de exéquias Introdução
para o Brasil. Revista de Liturgia, São Paulo, n. 149, p. A Liturgia das Horas é uma das várias formas de
31-34, 1998. oração da Igreja, que visa santificar o dia inteiro através
MANICARDI, L. O humano sofrer: evangelizar da oração ininterrupta. Composta por hinos, salmos,
as palavras sobre o sofrimento. Brasília: Edições CNBB, cânticos, antífonas, leituras bíblicas e textos de grandes
2017. escritores eclesiásticos e documentos do Magistério, ela
é rezada em horas determinadas: Horas Maiores: Laudes
MELO, Laís de. Como lidar com o luto em tempos (ao amanhecer) e Vésperas (ao entardecer); Horas
de pandemia. Jornal da Cidade.net., Aracaju, 20 maio Menores: Terça (à metade da manhã), Sexta (ao meio-
2020. Disponível em: dia), Nona (à metade da tarde) e Completas (antes do
http://www.jornaldacidade.net/cidades/2020/05/317677/ repouso noturno). Assim sendo, já se pode perceber que
como-lidar-com-o-luto-em-tempos-de-pandemia.html. seu simbolismo é cósmico e que, por causa dos
Acesso em: 4 nov 2021. diferentes fusos horários das diversas regiões do nosso
MENDONÇA, J. Tolentino. A mística do instante: planeta, a cada hora a Terra é banhada por uma onda de
o tempo e a promessa. São Paulo: Paulinas, 2016. p. 16- oração. Essas horas têm também um valor simbólico-
17. sacramental, uma vez que remetem a determinados
eventos importantes na vida de Jesus de Nazaré e dos
RITUAL DE EXÉQUIAS. São Paulo: Paulinas, Apóstolos, portanto, um caráter salvífico (cf. AUGÉ,
1971. 2005, p. 230).
RITUALE ROMANUM Pauli V Pontificis A Liturgia das Horas, como já sugere o próprio
Maximi. Editio septima post typicam. Sanctae Sedis nome, insere-se na dinâmica ritual e teológica do espaço
Apostolicae e Sacrae Rituum Congregationis e do tempo litúrgicos. Essa dinâmica, por sua vez,
Typographorum, 1949. enraíza-se no fato da encarnação do Verbo eterno do Pai,
ROUILLARD, Ph. Os ritos dos funerais. In: Jesus Cristo. De fato, com a encarnação do Verbo, Deus
VV.AA. Os sacramentos e as bênçãos. São Paulo: irrompe na história humana e, de modo indelével, se une
Paulus, 1993. p. 225-265. à humanidade assumindo a nossa carne na pessoa de
Jesus de Nazaré. O Eterno entra no espaço e no tempo e,
SORESSI, M. L’offertorio della messa dei defunti com esse fato, transforma o krónos em Kairós, ou seja,
e l’escatologia orientale. Ephemerides Liturgicae, Cittá em tempo de salvação.
del Vaticano, n. 61, p. 245-252, 1947.
Contudo, essa dinâmica da encarnação do Verbo
SOUZA, Christiane P. de; SOUZA, Airle M. de. eterno recebe sua luz do Mistério Pascal de Cristo. De
Ritos fúnebres no processo de luto: significados e fato, no centro de toda a vida da Igreja – estrutura, culto,
funções. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 2019, v. 25, p. ação apostólica, espiritualidade, teologia, ética etc. – está
1-7. Disponível em: a Páscoa do Cristo. Disso se conclui que a Liturgia das
https://www.scielo.br/j/ptp/a/McMhwzWgJZ4bngpRJL4 Horas é um tipo de oração essencialmente pascal, todas
J8xg/?lang=pt&format=pdf Acesso em: 6 nov 2021. as horas referem-se ao Mistério Pascal de Cristo. Aliás, é
esse último que está no centro, não só da Liturgia das
Horas, mas de toda a vida litúrgica da Igreja.
Sumário
Introdução 2.1 A oração das horas no Novo Testamento
1 Desenvolvimento Histórico
Certamente aqui não é nossa intenção encontrar a
2.1 A oração das horas no Novo Testamento estrutura da Liturgia das Horas, conforme a conhecemos
2.1.1 Jesus orava e recomendava a oração incessante hoje ou o mais próximo disso, mas simplesmente
2.1.2 Oração das horas na Igreja Apostólica encontrar as raízes bíblicas do costume da Igreja de rezar
2.2 A evolução do Ofício Divino do séc. II ao séc. em horas determinadas, algo que sempre esteve presente
V na sua vida desde os seus primórdios. A Liturgia das
2.3 O Ofício Divino da Idade Média ao Vaticano II Horas, embora tenha suas raízes na oração de Jesus e dos
3 Estrutura e elementos do rito da Liturgia das Horas seus santos Apóstolos que, por sua vez, seguiam os
4 Simbolismo e Teologia da Liturgia das Horas costumes de sua religião, o judaísmo, conheceu um
5 Pastoral longo e profundo desenvolvimento ao longo da história
Considerações conclusivas da Igreja, o que veremos a seguir.
Referências
130
2.1.1 Jesus orava e recomendava a oração incessante os nossos dias. Já no final do séc. I ou início do séc. II,
Nos evangelhos podemos encontrar informações na Didachè, capítulo IX, recomenda-se rezar a oração do
sobre a oração de Jesus. Ele, seguindo os costumes da Pai Nosso três vezes ao dia. No norte da África, onde
religião de seus pais, o judaísmo, observava as suas muito cedo se formaram fervorosas e bem estruturadas
prescrições litúrgicas além de se dirigir a Deus na comunidades cristãs, temos o testemunho de Clemente
intimidade ao Pai. Assim sendo, Jesus, desde a infância, Alexandrino (Stromata); também temos informações do
na companhia de seus pais, frequentava anualmente o primeiro escritor eclesiástico de língua latina de que se
templo nas grandes festas pascais (cf. Lc 2,41), e tem notícia, Tertuliano (De oratione; De ieiuno),
também na idade adulta (cf. Jo 2,13-14). Costumava passando por Cipriano (De oratione dominica) a
frequentar a sinagoga em dia de sábado (cf. Mt 12,9; Mc Agostinho de Hipona (Sermones ad competenti).
3,1; Lc 4,16). Afastava-se sozinho para rezar em lugares Atribuída a Hipólito de Roma, temos também
desertos (cf. Lc 5,16) e, às vezes, à noite (Mc 1,35). A a Traditio Apostólica (início do séc. III) que nos dá
oração era um hábito na vida de Jesus; o evangelista informações das horas de oração: ao amanhecer antes de
Lucas cita várias vezes a oração de Jesus (cf. 5,16; 6,12; começar qualquer atividade (esta hora na Igreja); à hora
9,18.28-29 passim); e nesses momentos ele se dirigia a terça, à hora sexta e à hora nona, onde quer que esteja;
Deus na intimidade filial (cf. Lc 10,21; 22,42; 23,43.46; antes do repouso noturno; e, por fim, à meia-noite. No
Jo 11,41-42; 17,1). final do séc. IV, a peregrina Egéria, que passou três anos
A prática da oração de Jesus não se restringia a na Palestina, dá informações sobre a liturgia de
ele, pois ensinava seus discípulos a orar (cf. Mt 6,5-13); Jerusalém, especialmente, sobre as orações das horas na
e recomendava vivamente aos seus discípulos a oração Igreja da Anástasis: Vigília (monges, virgens e leigos)
incessante (Lc 18,1-7; 21,36)). Ensinava-lhes, além da entoam hinos, salmos, aos quais se responde com
oração pessoal, a oração comunitária (Mt 18,19-20). antífonas; depois que chegam dois ou três presbíteros e
os diáconos, dá-se início à oração da manhã. O bispo
Além disso, sabemos que os evangelhos não são a chega com seus presbíteros e reza uma oração e dá a
biografia de Jesus, senão uma cristologia das bênção aos que indicam seus nomes, por detrás das
comunidades dos seus redatores. Portanto, é de se grades que fecham a gruta do túmulo onde o corpo de
imaginar que as orações que os evangelistas atribuem a Cristo foi depositado. Depois voltam a se reunir no
Jesus são também as orações praticadas pelas mesmo lugar à hora sexta e nona; à décima hora se faz o
comunidades, no seio das quais surgiram esses tratados lucernário, as Vésperas (SCh, 2002, p. 239-241); não
baseados nas experiências que elas fizeram do encontro menciona uma oração noturna, mas nas páginas
com Jesus de Nazaré. seguintes relata os ofícios solenes da Epifania, os
quarenta dias que a seguem e os ofícios das festas
pascais: Quaresma, Semana Santa, Páscoa, Oitava até
2.1.2 Oração das horas na Igreja Apostólica Pentecostes (SCh, 2002, p. 251-305).
Entretanto, os outros escritos neotestamentários – A partir dessa época, isto é, séc. IV, começam as
além dos quatro evangelhos – nos dão informações sobre primeiras tentativas de se organizar a oração das horas.
a oração das primeiras comunidades cristãs. Podemos Os autores costumam distinguir dois caminhos: um
ver Pedro e João subirem ao Templo para a oração das primeiro seguiria numa direção que chamamos Ofício
três horas da tarde (At 3,1), isto é, a hora nona. Mas, ao Catedral, e um segundo numa outra direção que
que tudo indica, também toda a comunidade da Igreja chamamos Ofício Monástico. O Ofício Catedral –
nascente tinha o costume da oração incessante. De fato, também o paroquial – já era constituído das Horas
“eles eram assíduos ao ensinamento dos apóstolos e à Maiores – Laudes e Vésperas – sendo as Laudes
comunhão fraterna, à fração do pão e às orações” (At precedidas de uma vigília aos domingos e dias festivos.
2,42); também “de comum acordo iam diariamente ao O Ofício Monástico, além dessas duas Horas Maiores, se
Templo com assiduidade: partiam o pão em casa, constituía de três horas diurnas, Terça, Sexta e Nona, e
tomando o alimento com alegria e simplicidade de mais a Primeira e Completas. Além disso, os monges
coração” (At 2,46). O apóstolo Tiago recomenda à sua institucionalizaram as vigílias de oração como ofício
comunidade: “Algum de vós está sofrendo? reze” – aqui cotidiano, uma vez que o seu ideal era o de recitar
se trata da oração pessoal, mas logo a seguir se refere à integralmente o Saltério (cf. LEIKAN, 2000, p. 48).
oração da Igreja (TEB, nota versão): “Algum de vós está
doente? Mande chamar os anciãos da Igreja e estes Digna de nota é a presença do Salmo 62 nas
orem” (Tg 5,14). Laudes e do Salmo 140 nas Vésperas em todas as Igrejas
já desde o séc. IV, segundo o testemunho de Eusébio de
Cesareia (Comentário ao Salmo 140 e 142), João
2.2 A evolução do Ofício Divino do séc. II ao séc. Crisóstomo (Catequeses batismais) e das Constituitiones
V Apostolorum. Esse último documento (fins do séc. IV ou
Esse hábito da oração pessoal e comunitária inícios do V) já registra a presença do Nunc dimittis (Lc
incessante passará às comunidades pós-apostólicas e 2,29-32) no ofício vespertino.
acompanhará a Igreja ao longo de toda a sua história, até
131
2.3 O Ofício Divino da Idade Média ao Vaticano II Aqui se recomenda que, se a comunidade for numerosa,
Entretanto, o Ofício monástico desenvolveu-se de recitem-se os salmos com antífona.
tal forma que acabou influenciando o Ofício catedral. As Vésperas se compõem de quatro salmos com as
Para além do surgimento de novas línguas e o uso cada antífonas, a leitura, responsório, hino, versículo, cântico
vez mais restrito do latim, outras razões – que não vem evangélico, a prece litânica e se concluem com o Pai
ao caso serem expostas aqui – fizeram com que o povo Nosso. Nas Completas, se recitam os três salmos
não tivesse mais acesso à liturgia em geral, passando o seguidamente sem antífona, o hino, uma única leitura, o
ofício a ser de “mão de obra especializada”, ou seja, do versículo, o Kyrie eleison e se concluem com a bênção
clero e dos monges. A partir do séc. IX, em muitas (Cap. XVII).
Igrejas locais, impunha-se ao clero a obrigação de recitar
o ofício, então, fortemente influenciado pelo Ofício Da influência das regras dos mosteiros romanos no
monástico que, por sua vez, previa mais horas e textos Ofício catedral surgirá uma espécie de Ofício monástico-
mais longos: ao longo do curso de uma semana, eclesiástico; uma dessas novas regras será adotada pelo
recitava-se todo o saltério e, em um ano, lia-se toda ou papa e os seus curiais a partir dos finais do séc. X ou
quase toda a Bíblia, e mais os hinos, cânticos, antífonas, início do séc. XI, o que ficou conhecido como Breviário
responsórios etc. da Cúria romana (cf. RAFFA, 2004, p. 655). Na
primeira metade do séc. XIII, São Francisco de Assis
Aqui não se pode deixar de mencionar a Regra de adotará esse Ofício para sua ordem, o que, por sua vez,
São Bento que, principalmente por obra de Carlos contribuirá para sua grande difusão em quase todo o
Magno, se impôs em quase todos os mosteiros do Ocidente, se tornando a forma predominante (cf.
Ocidente. Na Regula Monasteriorum Sancti Benedicti RAFFA, 2004).
Abbatis prescrevem-se sete orações das horas por dia
citando o Salmo 118,164: “Eu vos louvo sete vezes cada Na reforma tridentina do Breviário Romano, Pio
dia” (Cap. XVI). Essas horas são: Laudes, Prima, Terça, V, com a bula Quod a nobis (1568), reduziu o número
Sexta, Nona, Vésperas e Completas. de salmos, mas introduziu o Ofício de Santa Maria no
Sábado; reduziu ainda os textos hagiográficos. A bula
Para a Hora Noturna, durante o Inverno (início de não contempla os leigos, quando elenca os grupos de
novembro até a Pascoa), são previstos 6 salmos pessoas que estão obrigadas a rezar o ofício, e
precedidos do versículo “Abre, Senhor, os meus lábios e compromete o simbolismo das horas ao prever a
minha boca anunciará o vosso louvor”, ao qual segue o recitação privadamente, chega mesmo a equipará-la à
Salmo 3, o Glória, o Salmo 94 com antífona, seis salmos comunitária com a consequente recitação na hora que se
com antífonas, três leituras bíblicas com responsório, pudesse. Doravante, o Breviário de Pio V será
mais 6 salmos com aleluia, leitura do Apóstolo, e praticamente a única regra em toda a Igreja do Ocidente.
conclui-se com a súplica litânica, ou seja, Kyrie Uma nova reforma só viria já no séc. XX, por obra de
eleison (Cap. IX). A Hora Noturna é rezada na metade Pio X, com a bula Divino afflatu: reduziu o número de
da noite por causa do Salmo 118,62: “Alta noite eu me salmos em todas as horas, mas manteve a recitação do
levanto e vos dou graças”. Para o restante do ano, por saltério no curso de uma semana fazendo uma nova
causa da brevidade das noites, se faz apenas uma leitura distribuição dos salmos. Pio X fez essa reforma tendo
do Antigo Testamento, permanecendo todo o resto como em vista, sobretudo, as exigências do trabalho pastoral
no período de Inverno (Cap. X). Aos domingos, porém, do clero.
leem-se quatro leituras com responsório depois dos seis
primeiros salmos e mais quatro depois dos outros seis Da reforma promovida pelo Vaticano II surge a
salmos; três cânticos do Antigo Testamento com Liturgia das Horas de Paulo VI, promulgada em 1º de
Aleluia; mais quatro leituras com responsório, Te Deum novembro de 1970, a que usamos hoje. As grandes
laudamus, leitura do Evangelho, Te decet laus e bênção novidades aqui são: distribuição dos salmos em quatro
final (Cap. XI). semanas (cf. SC 91); a supressão da Hora Prima (SC
89); a possibilidade de a hora chamada Matinas ser
As laudes, por sua vez, se compunham do Salmo recitada a qualquer hora do dia, embora conserve no
66 com antífona, seguido do Salmo 50 com Aleluia, o coro a índole de louvor noturno, e reduz-se o número de
Salmo 117 e 62, o Benedictus, “Laudes”, uma leitura do salmos, mas propõe leituras mais longas; para as
Apocalipse, com responsório, hino ambrosiano, um chamadas Horas Menores, a saber, Terça, Sexta e Nona,
versículo, cântico evangélico e se concluíam com a pode-se escolher uma delas fora do coro (SC 90) e, por
litania (Cap. XII). Para as demais horas, as composições fim, o uso da língua vernácula (SC 101). Recomenda-se
são as seguintes: Prima: três salmos com um único ainda devolver fidelidade histórica aos martírios ou às
Glória, hino, depois o vidas dos Santos (SC 92) e que “sejam retiradas ou
versículo Deus, in adiuntorium meu…, três salmos, uma mudadas aquelas coisas que sabem a mitologia ou são
leitura, um versículo, Kyrie eleison e conclusão; a Terça, menos condizentes com a piedade cristã” (SC 93).
a Sexta e a Nona, o Ofício segue a mesma ordem para as
três: versículo, o hino próprio da hora, três salmos, as
leituras, o Kyrie eleison e as preces finais (Cap. XVII).
132
3 Estrutura e elementos do rito da Liturgia das homilia ou um breve tempo de silêncio antes do
Horas responsório; essa leitura pode ser substituída por uma
A Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas mais longa escolhida à vontade. Então recita-se o
(IGLH), no Capítulo II, muito apropriadamente, Cântico evangélico Bendictus – O Messias e o seu
apresenta o rito com o título “A santificação do dia ou as precursor (Lc 1,68-79) – com a sua antífona. Seguem as
diversas Horas do Ofício Divino”. São sete os momentos preces para consagrar o dia e o trabalho a Deus; a oração
de oração (cf. Sl 118,164): Ofício das Leituras, Laudes, do Pai Nosso e, concluindo a ofício, a oração conclusiva
três Horas Médias, Vésperas e Completas. A Introdução e a despedida.
do Ofício é, na primeira hora rezada (Laudes ou Ofício As Vésperas têm uma estrutura muito semelhante.
da Leituras), o Invitatório “Abri os meus lábios, ó Nunca se abrem com o Invitatório porque não é a
Senhor. E minha boca anunciará o vosso louvor”, com o primeira oração do dia. O Hino é o próprio dessa hora e
que “os fiéis são convidados cada dia a cantar os outra diferença está na salmodia, ou seja, em vez de se
louvores de Deus e a escutar sua voz…” (ILGH 34); rezar um cântico do Antigo Testamento, como nas
segue-se o Sl 94(95), que pode ser substituído pelos Laudes, reza-se um do Novo Testamento. Outra
salmos 99(100), 66(67) ou 23(24) com suas respectivas diferença ainda está no Cântico evangélico: aqui se
antífonas. O salmo de abertura é rezado de forma recita o Magnificat. Tudo o mais é feito como nas
responsorial, ou seja, a antífona se comporta como um Laudes, evidentemente com os conteúdos próprios de
refrão, mas, se for rezado individualmente, basta dizer a cada hora. Observe-se aqui que nos sábados não há
antífona no seu início e seu fim. Vésperas porque, nesta hora, rezam-se as primeiras
A hora chamada “Matinas” comparece na Liturgia Vésperas do domingo, que é sempre solenidade; exceção
das Horas de Paulo VI sob o título “Ofício das Leituras” a isto que acabamos de dizer é o Sábado Santo, porque
que, como prevê a Sacrosanctum Concilium – já o não se rezam as primeiras Vésperas do Domingo de
mencionamos mais acima – pode ser rezado a qualquer Páscoa que não pode ter outra oração antes da grande
hora do dia, embora conserve seu caráter de oração Vigília Pascal.
noturna (cf. SC 89; ILGH 57). Quando se abre o Ofício, As Horas Médias têm uma estrutura bem mais
reza-se no início o Invitatório, como dito no parágrafo simples: abertura como as Horas Maiores – nunca o
anterior. Diferentemente da salmodia do ordinário do versículo “Abre meus lábios, Senhor…” –; o hino
rito, o Salmo Invitatório é recitado de forma próprio de cada hora; salmodia – quando se rezam as
responsorial, ou seja, a antífona se comporta como um três horas, somente uma usa os salmos distribuídos no
refrão, e o mesmo se diga para as outras opções de Saltério com suas antífonas, para as outras duas tomam-
salmos previstos para esta hora. Quando o Ofício das se dos Salmos Complementares, os assim chamados
Leituras não abre o ofício cotidiano, ele é aberto como “Salmos Graduais”; leitura breve com seu responsório,
as demais horas, ou seja, versículo de abertura e, logo oração conclusiva e despedida: “Bendigamos ao Senhor.
em seguida o Hino. A salmodia, como nas demais horas, Graças a Deus”. Observe-se que nestas três horas não se
é composta de três salmos com as antífonas faz menção da memória dos Santos.
correspondentes; a isso segue o versículo, que faz a
transição da salmodia para a escuta da Palavra de Deus. Antes do repouso noturno, a Igreja convida seus
De fato, logo a seguir se lê uma leitura bíblica seguida fiéis a elevarem suas mentes a Deus, em ritmo de
de seu responsório. A segunda leitura é tomada das oração. Para tanto, recitam-se as Completas que, como o
obras dos Santos Padres ou de outros escritores próprio nome sugere, conclui o ofício cotidiano. De
eclesiásticos. Aos domingos, dias de solenidade ou festa, todas as horas, as Completas são as mais simples e
entoa-se o Te Deum. O Ofício é encerrado com a Oração breves em sua estrutura. Esta hora antes do repouso
Conclusiva e o “Bendigamos ao Senhor. Graças a noturno é iniciada como as demais horas, – exceto a
Deus”. primeira oração do dia, isto é, Ofício das Leituras ou
Laudes –, continua com o Hino, a salmodia composta de
As Horas Maiores, ou seja, Laudes e Vésperas, são apenas um salmo, salvo quando são rezadas depois das
abertas com o versículo introdutório “Vinde, ó Deus, em primeiras vésperas dos domingos e solenidades, quando
meu auxílio. Socorrei-me sem demora”. As Laudes, se rezam os salmos 4 e 133(134). Depois da salmodia se
porém, se forem a primeira oração do dia, são abertas faz a Leitura Breve com o responsório “Senhor em
com o Invitatório, seguido do Glória ao Pai, o hino vossas mãos entrego meu espírito… Vós sois o Deus fiel
próprio da hora, a salmodia com as respectivas antífonas que salvastes vosso povo. Glória ao Pai…”; logo em
com Aleluia – exceto no tempo da Quaresma – ditas no seguida entoa-se o Nunc Dimittis, o Cântico de Simeão
início e no fim, neste último caso, são precedidas do (Lc 2,29-32), com sua antífona. Essa hora termina com a
Glória ao Pai… Segue-se a recitação do hino, dos dois Oração Conclusiva seguida da bênção “O Senhor todo-
salmos, entre os quais, recita-se um cântico do Antigo poderoso nos conceda uma noite tranquila e, no fim da
Testamento, cada qual destes três elementos com suas vida, uma morte santa”; e, por fim, reza-se uma das
respectivas antífonas no início e no final. Em antífonas de Nossa Senhora propostas na Liturgia das
prosseguimento, se lê a leitura breve com seu Horas.
responsório – caso seja oportuno, pode-se fazer uma
133
Antes de passarmos ao próximo ponto é útil uma atitude de vigiar (cf. Mt 24,42), mas sobretudo o
lembrar que a Liturgia das Horas segue o Ano Litúrgico estar preparado para a “hora”.
e o Calendário Romano. Deste modo, o conteúdo
As Laudes têm um simbolismo natural, o sol, pelo
eucológico varia de acordo com o teor teológico de cada
fato de serem rezadas às primeiras luzes. O sol, “o astro
tempo (Advento, Natal, Quaresma, Páscoa e Tempo
nascente”, de fato, é uma referência bíblica ao Messias
Comum) – eis porque não se diz o Aleluia no final das
(para indicar o descendente de Davi: Jr 23,5; Zc 3,8;
antífonas na Quaresma –; e do mesmo modo celebram-
6,12; o verbo correspondente para indicar o do astro
se as solenidades, as festas e a memória dos Santos.
messiânico: Nm 24,17; cf. Ml 3,20; Mt 2,2; Lc 1,78). O
sol, portanto, a luz, é um simbolismo já presente tanto no
4 Simbolismo e teologia da Liturgia das Horas Antigo como no Novo Testamento, aqui especialmente
na literatura joanina:
Nas últimas décadas, se verifica uma forte
tendência de fazer teologia da liturgia em geral e de suas Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens, e a luz
celebrações “a partir da Lex Orandi”[1], ou seja, brilha nas trevas, e as trevas não a compreenderam.
comentar a teologia dos sacramentos e demais Houve um homem enviado por Deus; o seu nome era
celebrações litúrgicas a partir, principalmente, do rito e João. Ele veio como testemunha, para dar testemunho
de seus conteúdos. Para a Liturgia das Horas não poderia da luz, a fim de que todos cressem por ele. Ele não era a
ser diferente, tendo em vista a riqueza simbólica e luz, mas devia dar testemunho da luz. O Verbo era a
espiritual de suas diversas horas. verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo
homem (Jo 1,4-9).
Muito útil para a sua compreensão é começar pela
nomenclatura. “Liturgia das Horas” é um título surgido João volta a insistir neste simbolismo:
em 1959 e é muito apropriado, porque expressa a “Novamente Jesus lhes dirigiu a palavra: ‘Eu sou a luz
finalidade dessa oração da Igreja, a saber, a santificação do mundo. Aquele que vem em meu seguimento não
do curso do dia, em que o fiel se santifica – no rito andará nas trevas; ele terá a luz que conduz à vida’” (Jo
bizantino se diz “relógio” pelo mesmo motivo. “Ofício 8,12); e mais adiante escreve: “por quanto tempo eu
Divino”, usado ainda hoje ao lado de Liturgia das Horas, estiver no mundo, eu sou a luz do mundo” (Jo 9,5); e
este termo foi usado outrora para designar todo ato de ainda:
culto e, depois, para designar a celebração litúrgica da Jesus lhes respondeu:
Igreja, mas parece que visa também acenar para o
caráter obrigatório, canônico, (Officium, dever) de sua A luz ainda está entre vós por pouco tempo. Caminhai
recitação (cf. RAFFA, 2004, p. 652). “Breviário” enquanto tendes a luz, para que as trevas não se
parece-nos um tanto pobre para designar tão rica apoderem de vós; pois quem caminha nas trevas não
expressão litúrgica da Igreja, uma vez que foi usado para sabe para onde vai. Enquanto tendes a luz, crede na luz,
designar compilação, abreviação etc. dos diversos livros para vos tornardes filhos da luz. (Jo 12,35-36)
litúrgicos usados para a oração das horas na Idade E mais: “Eu, a luz, vim ao mundo a fim de que
Média. Ainda ao longo da história da liturgia foram todo aquele que crê em mim não pereça nas trevas” (Jo
usados os seguintes nomes: cursus, preces horariae, 12,46). Notemos que, em todos esses versículos, Jesus se
opus Dei, horae canonicae (cf. RAFFA, 2004, p. 652). autoidentifica com a luz, símbolo da salvação, enquanto
Originalmente, o Oficio das Leituras – à treva é identificado o pecado, o não estar e andar na
na Sacrassanctum Concilium ainda se usa a expressão presença de Deus.
“Matinas” – tem caráter noturno. Rezava-se na metade Contudo, João não é o único a usar o simbolismo
da noite, sobretudo nos mosteiros, uma referência ao da luz aplicado ao Cristo e à salvação que Ele nos
Salmo 118(119),62. O simbolismo dessa hora é o das alcançou em seu mistério pascal. Podemos também
“trevas”, das quais Cristo nos arrancou. Podemos encontrar esse simbolismo nos escritos paulinos: “Dai
encontrar um exemplo no hino “A noite escura apaga”. graças ao Pai que vos permitiu partilhar da herança dos
Já na primeira estrofe se diz: “A noite escura apaga da santos da luz. Ele nos arrancou do poder das trevas e nos
treva toda cor…” sugerindo que as trevas nos impedem a transferiu para o reino do Filho do seu amor” (Cl 1,12-
visão física, metáfora da visão beatífica. E segue “Juiz 13; cf. 1Ts 5,5; Hb 6,4; 10,32).
dos corações a vós nosso louvor” sugerindo que o nosso
louvor ao Cristo é incessante. Robert Taft observa que o simbolismo da luz, ao
ser aplicado aos que vivem em Cristo (Ef 5 e 1Jo 1,5-7;
Isso que acabamos de dizer parece ser reforçado 2,8-11), tem uma dimensão moral e comunitária, bem
pela parábola das “dez virgens” (Mt 25,1-10), que se como observa que o livro do Apocalipse é concluído
insere num quadro literário de teor marcadamente com um belo hino que faz referência à luz do Cordeiro
escatológico: a vinda do Filho do Homem (Mt 24,26- na Cidade Santa da Jerusalém celeste (Ap 21,22-26)
35); desconhecimento do dia do juízo final (Mt 24,36- (TAFT, 2000, p. 157).
51); os talentos (Mt 25,14-30); o juízo final (Mt 25,31-
46). O simbolismo das lâmpadas com óleo suficiente Mas vejamos agora como esse tema da luz, no seu
para serem acesas à chegada do esposo sugere não só simbolismo natural, o sol, aparece no rito das Laudes,
134
com uma clara referência à ressurreição de Jesus. De sua jornada bem como todas as suas atividades
início, observemos que este tema é constante nessa hora temporais serão feitas diante e para a glória de Deus.
por causa do hino Benedictus, também conhecido como
As Vésperas e as Laudes são chamadas de Horas
“Canto de Zacarias”. No hino do Advento, proposto para
Maiores. As Vésperas, porém, são celebradas ao
essa hora, podemos ler: “Em meio à treva escura, ressoa
despontar do entardecer. Como nas Laudes, o
clara voz. Os sonhos maus se afastem, refulja o Cristo
simbolismo central é o tema da luz em oposição à treva.
em nós. Despertem os que dormem feridos de pecado.
Ao pôr-do-sol, acendem-se as lâmpadas; isto significa a
Um novo sol já brilha, o mal vai ser tirado”. No hino
luz de Cristo que treva alguma pode vencer. Para além
proposto para o tempo de Natal, o sol aparece como
de evocar as trevas da paixão de Cristo, as Vésperas nos
marcador da duração do louvor, mas não é aplicado ao
fazem meditar sobre a transitoriedade da nossa vida e de
Cristo tampouco à sua ação salvadora. Para o tempo da
toda Criação. Isto que acabamos de dizer nos abre para a
Quaresma, curiosamente o simbolismo da luz/sol não
dimensão escatológica da oração vespertina, uma vez
aparece no hino proposto para o domingo, o dia do sol,
que tal transitoriedade da vida deve nos abrir para a
mas está no hino proposto para os dias da semana: “Ó
esperança da vida eterna. Outros grandes temas que
Cristo, sol de justiça, brilhai nas trevas da mente. Com
aparecem neste ofício são a ação de graças pelos
força e luz, reparai a criação novamente”. No hino das
benefícios recebidos, o trabalho realizado e o bem que
Laudes da Semana Santa, o tema é mais ligado aos
pudemos fazer ao longo do dia. Contudo, o tema das
mistérios da paixão de Cristo e não faz referência ao
trevas nos faz recordar a nossa condição pecadora e, por
simbolismo luz/sol. Para os domingos de Páscoa, porém,
isso, nos leva ao arrependimento e pedido de perdão
o simbolismo aparece sob a imagem da “rutilante
pelos pecados que, porventura, tenhamos cometido.
aurora” e, para os dias da semana, o simbolismo luz/sol
Ainda o tema da treva nos convida a pedir proteção
aparece mais explicitamente: “A fiel Jerusalém canta um
divina contra os perigos que ela oferece.
hino triunfal, celebrando, jubilosa, Jesus Cristo, a Luz
pascal”. Vimos que, nas Laudes, o simbolismo sol/luz, em
oposição à treva, nos recorda a salvação em oposição ao
Nas solenidades que ocorrem fora do Tempo
mal e ao pecado em várias passagens bíblicas. Algo
Pascal, o tema vai aparecer no hino das Laudes da
semelhante acontece nas Vésperas, por exemplo, no hino
Santíssima Trindade e é igualmente atribuído à
proposto para estas horas até o dia 16 de dezembro no
Trindade: “Ó Trindade, num sólio supremo que brilhais,
Tempo do Advento, o simbolismo luz (redenção) versus
num intenso fulgor”; e ao Filho: “Esplendor e espelho
trevas (pecado) aparece explicitamente: “Eterna luz dos
da luz sois, ó Filho, que irmãos nos chamais”; e o
homens, dos astros Criador, ouvi as nossas preces, de
Espírito Santo: “Piedade e amor, fogo ardente, branda
todos Redentor” (1ª estrofe); “Se a sombra do pecado a
luz, poderoso clarão, renovai nossa mente, ó Espírito, e
tudo escurecia, Esposo, vós saístes do seio de Maria” (3ª
aquecei o fiel coração”. Na solenidade do Sagrado
estrofe). Após o dia 16 até as vésperas do Natal, o hino
Coração de Jesus, esse simbolismo aparece na quinta
proposto liga o tema da luz, na sua forma verbal
estrofe do hino das Laudes: “Ficai conosco, Senhor,
“iluminar” à concepção virginal de Maria por obra do
nova manhã que fulgura e vence as trevas da noite,
Espírito Santo. No tempo do Natal até a Epifania, Jesus
trazendo ao mundo a doçura”. Esta estrofe deixa claro
é “Do Pai luz e esplendor” (2ª estrofe).
que nas Laudes se celebram a presença do Cristo-Luz
entre os fiéis e a vitória de Cristo sobre as trevas do No tempo da Quarema, o hino de Vésperas
pecado e da morte. também não traz o tema da luz, mas nos dias da semana
sim: “A abstinência quaresmal vós consagrastes, ó Jesus,
Muitos são os exemplos que aqui poderíamos
pelo jejum e pela prece, nos conduzis da treva à luz”.
citar, mas estes nos bastam para percebermos que o tema
Aqui notemos, entretanto, que o simbolismo treva e luz é
luz/sol, em oposição à treva, é central no ofício das
aplicado ao pecado (treva) e à salvação (luz), ou seja, a
Laudes. Esta centralidade do simbolismo do sol, para
luz é simbolismo da ação salvadora de Cristo e treva da
além de nos remeter à ressurreição de Jesus, nos lembra
ação pecaminosa da humanidade. Para o Tempo
uma das grandes maravilhas da criação, fonte de luz e
Comum, tomemos como exemplo o hino das primeiras
calor, de vida de alimento, o que nos leva ao louvor e
Vésperas do domingo da primeira semana: “Ó Deus,
ação de graças (cf. TAFT, 2000, p. 158) por tantos dons
autor de tudo, que a terra e o céu guiais, de luz vestis o
recebidos da bondade do Senhor.
dia, à noite o sono dais” (1ª estrofe); “Senhor vos damos
Contudo há outros elementos na estrutura das graças no ocaso deste dia. A noite vem caindo, mas
Laudes, que nos proporcionam o seu conteúdo teológico. vosso amor nos guia” (3ª estrofe); “E assim, chegando a
O primeiro desses elementos é a santificação do período noite, com grande escuridão, a fé, em meio às trevas,
da manhã, mas, antes de iniciar qualquer atividade do espalhe o seu clarão” (5ª estrofe). Aqui tampouco o
dia, o fiel é convidado a voltar a sua mente para o simbolismo da luz é aplicado ao Cristo, mas os termos
Senhor (cf. IGLH 38). Assim, o cristão estará seguindo o luz, dia, noite, ocaso, escuridão, trevas e clarão indicam
conselho de Paulo quando diz “Portanto, quer vós a origem da luz em Deus e sua difusão em meio às
comais quer bebais ou façais qualquer outra coisa, fazei trevas como obra da fé. Além de indicar com muita
tudo para a glória de Deus” (1Cor 10,31), ou seja, toda a precisão a hora do ofício de Vésperas, celebra a
135
confiança da fé na luz divina para atravessar a escuridão estrofe). A terceira estrofe celebra a vitória da cruz sobre
da noite, metáfora do pecado e da morte. a morte e o retorno da luz após as densas trevas, uma
clara referência à ressurreição de Cristo: “Agora morre a
Nas segundas Vésperas do primeiro domingo, se
morte, vencida pela cruz; após as trevas densas, serena,
celebra o Deus da criação e da autoria dos tempos:
volta a luz; o horror do mal se quebra, nas mentes Deus
“Criador generoso da luz, que criastes a luz para o dia,
reluz”.
com os primeiros raios da luz, sua origem o mundo
inicia” (1ª estrofe); “Vós chamastes de ‘dia’ o decurso
da manhã luminosa ao poente. Eis que as trevas já 5 Pastoral da Liturgia da Horas
descem à terra: escutai nossa prece, clemente”. Em
seguida aparecem os temas do arrependimento e do A liturgia em geral, já bem antes do final do
perdão pelos pecados cometidos ao longo do dia: “Para primeiro milênio e devido a vários fatores, deixou de ser
que sob o peso dos crimes nossa mente não fique acessível ao povo cristão, já o dissemos, tornando-se
oprimida, e, esquecendo as coisas eternas, não se exclua “ofício” de “mão de obra especializada”, isto é, monges
do prêmio da vida” (3ª estrofe); “Sempre à porta celeste e clero. À eucaristia o povo assistia, mas não
batendo, alcancemos o prêmio da vida, evitemos do mal participava; ia à missa apenas para ver o “milagre
o contágio e curemos da culpa a ferida” (4ª estrofe). eucarístico”. O famoso Decreto de Graciano (1140-
1150) deixa muito clara a distinção entre os “espirituais”
As Horas Menores ou Hora Média, a saber Terça (os monges e o clero), classe destinada ao ofício divino,
(às nove horas), Sexta (ao meio-dia) e Nona (às quinze e os “carnais”, aqueles que se casam e podem depositar
horas), têm um caráter simbólico-sacramental, pelo fato suas oferendas no altar, pagar os dízimos… (THION,
de fazerem referência aos momentos chave do mistério 2005, p. 342). Uma situação que perdurou na Igreja
de Cristo e da ação apostólica dos Doze (cf. IGLH 75). Católica até o Concílio Vaticano II. Isso já aponta para o
Seu intuito é que os cristãos interrompam suas desafio de uma mudança de mentalidade, consolidada
atividades e orem para a santificação do dia e de suas por séculos de história. Para agravar esse desvio, a Igreja
próprias atividades. Mas vejamos como os temas ligados precisa lidar com a questão do estilo de vida moderno,
ao mistério da paixão de Cristo aparecem no rito, que deixa as pessoas cada vez mais sem tempo para
especificamente, nos hinos dessas três horas. cuidar de sua vida pessoal e, aqui, a dimensão espiritual
Na Oração das Nove Horas, o hino proposto para é a mais prejudicada.
o Tempo de Quarema é exemplar, porque confirma o Algumas iniciativas têm sido tomadas: o
que acabamos de dizer no parágrafo precedente. A reconhecimento oficial da Igreja que a liturgia é culto
primeira estrofe é um louvor às três virtudes teologais, público, inclusive a Liturgia da Horas:
dons que nos são oferecidos pelos méritos da paixão de
Cristo: “Na fé em Deus, por quem vivemos, na O exemplo e o preceito do Senhor e dos Apóstolos de
esperança do que cremos, no dom da santa caridade, de orar sempre e com insistência não devem ser
Cristo as glórias entoemos”. A confirmação do que considerados como regra meramente legal, mas derivam
acabamos de fazer bem como a referência à paixão de da essência íntima da própria Igreja, que é comunidade e
Cristo aparecem na estrofe seguinte: “Ao sacrifício da deve expressar seu caráter comunitário também ao orar.
Paixão na hora terça conduzido, Jesus levando a cruz às Mas a oração da comunidade tem dignidade especial, já
costas, arranca às trevas o perdido”. Essa referência à que o próprio Cristo disse: “Onde dois ou três estiverem
redenção sobressai mais nitidamente na terceira estrofe: reunidos em meu nome, eu estou ali, no meio deles” (Mt
“Vós nos livrastes do decreto duma total condenação; do 18,20). (IGLH 9)
mundo mau livrai o povo, fruto da vossa redenção”. E mais adiante se reconhece que “A Liturgia das
Na Oração das Doze Horas a referência à paixão Horas, como as demais ações litúrgicas, não é ação
de Cristo já aparece de modo explícito na primeira particular, mas algo que pertence a todo o Corpo da
estrofe: “Na mesma hora em que Jesus, o Cristo, sofreu Igreja e o manifesta e atinge” (IGLH 20), seguindo um
a sede, sobre a cruz pregado, conceda a sede de justiça e princípio vital estabelecido pelo Vaticano II (SC 26).
graça a quem celebra o seu louvor sagrado”. A estrofe Além disso, reconhece que a Liturgia das Horas é ápice
seguinte é importante pelo fato de veicular a Liturgia das e fonte da atividade pastoral (IGLH 18), algo sobre o
Horas ao sacramento da eucaristia: “Ao mesmo tempo qual os leigos vêm assumindo cada vez mais sua
ele nos seja a fome e o Pão divino que a si mesmo dá; responsabilidade. Contudo a participação dos leigos na
seja o pecado para nós fastio, só no bem possa o nosso oração das horas é ainda muito tímida.
gozo estar”. Aqui se concebe a eucaristia como Com relação à linguagem, no Brasil, há três
sacramento do sacrifício de Jesus. décadas surgiu o Ofício Divino das Comunidades, porém
A Oração das Quinze Horas, por sua vez, usa do a participação do povo continua tímida[2]. No conjunto
simbolismo numérico para evocar o mistério da morte da América Latina, difundiu-se também a prática
redentora de Cristo: “O número sagrado, três vezes três da Leitura Orante, ligada não tanto à Liturgia das Horas,
das horas, abrindo um novo espaço, nos chama à prece, mas à prática, também monástica, da Lectio Divina.
agora. Ao nome de Jesus, perdão seu povo implora” (1ª Urge, contudo, que tais iniciativas sejam aprofundadas
136
por peritos em liturgia e lideranças comunitárias, sem os CONCÍLIO VATICANO II. Sacrosanctum
quais qualquer reflexão teológico-pastoral fica Concilium. Constituição sobre a sagrada liturgia.
comprometida, e por pastores verdadeiramente Petrópolis: Vozes, 1968.
comprometidos com as comunidades cristãs.
CONGREGAÇÃO DO CULTO DIVINO E
Contudo, adverte-se que seria totalmente ilusório DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Liturgia das
esperar do cristão contemporâneo um grau de Horas. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Paulinas/Paulus,
comprometimento semelhante ao dos cristãos dos 1995.
primeiros séculos da vida da Igreja. Contudo, é neste
LEIKAM, R. M. La Liturgia delle Ore nei primi
mundo, através de avanços tecnológicos gigantescos que
quattro secoli. In: CHUPUNGCO, A. J. Scientia
oferecem às pessoas diversões de todo o tipo, que a
Liturgica. Manuale di liturgia V. Casale Monferrato:
Igreja continua sendo enviada a anunciar, testemunhar e
Piemme, 2000. p. 90-130.
celebrar o Evangelho de Cristo.[3]
RAFFA, V. Liturgia das Horas. In; SARTORE,
D.; TRIACCA, A. M. Dicionário de Liturgia. São
Considerações conclusivas Paulo: Paulus, 2004. p. 651-670.
Ao longo do texto, procuramos conceituar, TAFT, R. F. Teologia della Liturgia delle Ore. In:
mostrar a evolução histórica, apresentar a teologia CHUPUNGCO, A. J. Scientia Liturgica. Manuale di
simbólica e os desafios pastorais da Liturgia das Horas. liturgia V. Casale Monferrato: Piemme, 2000. p. 150-
Com isso, esperamos ter conseguido mostrar o 165.
verdadeiro espírito dessa forma de oração da Igreja, que
lhe é essencial. Chegamos à conclusão de que se trata de [1] Veja-se a este respeito a breve, porém
algo verdadeiramente evangélico e vital para o caminho profunda, exposição de TABORDA, F. O Memorial da
dos cristãos, apesar de todas as suas vicissitudes. Uma Páscoa do Senhor. Ensaios litúrgico-teológicos sobre a
vez que é o exercício sacerdotal de Cristo que une a si eucaristia. São Paulo: Loyola, 2009, p. 21-37.
sua dileta Esposa, a Igreja, sob a ação do Espírito Santo, [2] Sobre o Ofício Divino das Comunidades, veja-
a Liturgia das Horas conserva sua força de santificar o se o verbete nesta mesma Enciclopédia.
ser humano e consagrar o tempo e todas as atividades
humanas ao Deus da vida, banhando o mundo, a cada [3] Muito se investiu nos últimos anos na criação
hora, com uma onda de Oração. de aplicativos, que disponibilizam, em formato digital, o
conjunto da Liturgia das Horas. Outros formatos, ligados
Marco Antonio Morais Lima, SJ. Universidade à Leitura Orante, também estão disponíveis, como
Católica de Pernambuco. Texto original Lecionaltas, Passo a Rezar, Prayer walking etc.
português. Submetido: 15/11/2021. Aprovado:
15/12/2021. Publicado: 30/12/2021.
138
ofícios diários em honra da Virgem Maria e dos se o povo se torna sujeito orante, no exercício do
defuntos, entre outros. sacerdócio batismal oferecendo o sacrifício de louvor
(cf. GARCIA, 2015, p.78).
O povo, em sua grande maioria entregue, muitas
vezes, à própria sorte, sem qualquer oportunidade de A verdade das horas. A reforma do Concílio
uma verdadeira iniciação à fé e de celebração do Vaticano II chamou a atenção para a finalidade
mistério, buscou criativamente nas devoções o alimento específica do Ofício Divino: “consagrar, pelo louvor a
da fé cristã como atesta o Diretório sobre liturgia e Deus, o curso diurno e noturno do tempo” (SC n.84).
piedade popular: Enfatizou a verdade das horas (SC n.94), destacando,
como horas principais, Laudes, rezadas ao chegar a luz
Do século VII até a metade do século XV, determina-se
do dia, em memória da ressurreição de Jesus,
e acentua-se, progressivamente, a diferenciação entre
e Vésperas, celebradas ao pôr-do-sol, hora que lembra a
liturgia e piedade popular, até se criar um dualismo
última Ceia de Jesus e a cruz (Lc 22,53). A Liturgia das
celebrativo: paralelamente à liturgia, oficiada em latim,
Horas é a Oração da Igreja, unida ao Cristo em sua
desenvolve-se uma piedade popular comunitária, que se
oração de louvor, ação de graças e intercessão, fazendo
expressa em língua vernácula. (CONGREGAÇÃO
memória da sua páscoa.
PARA O CULTO DIVINO, 2003, n.29)
Foi o próprio Salvador quem vinculou o nosso
Em relação ao Ofício, o rosário, com 150 Ave-
tempo à redenção: “Hoje se cumpriu esta palavra das
Marias, substitui os 150 salmos; o Angelus, rezado três
Escrituras” (Lc 4,21), em outras palavras, hoje a Palavra
vezes ao dia, ocupa as horas do Ofício; o Ofício de
proclamada transforma o tempo em libertação e graça
Nossa Senhora reúne os hinos de todas as horas do
(cf. GARCIA, 2015, p.77). Na Liturgia das Horas, a
Ofício da Mãe do Senhor e é rezado numa hora só,
palavra de Deus pronunciada, proclamada, ouvida,
imitando o clero na desconexão com a hora.
vivida e atualizada, interpreta o tempo como kairós,
2.2 A reforma da Liturgia das Horas evento de salvação, tempo favorável, memorial da nova
O propósito da reforma do Concílio Vaticano II a aliança (cf. GARCIA, 2015, p.72). Há, no ato de
respeito do Ofício Divino foi o de fazer essa prática celebrar, uma profunda relação entre as horas de Jesus e
voltar à condição de “oração pública e comum do povo as horas da comunidade que ora, entre a sua paixão e as
de Deus” (IGLH, n.1), recuperando sua dimensão de marcas da paixão que as pessoas trazem em seus corpos
ação comunitária, oração de Cristo ao Pai e oração da (cf. SC n.12; 2Cor 4,10-11).
Igreja com Cristo (e a Cristo, segundo santo Agostinho), Fonte de piedade. A intenção da reforma do
fazendo memória da sua páscoa. Além disso, o Concílio Ofício Divino foi a de torná-lo fonte de piedade e
mudou a linguagem rubricista e clerical da Liturgia das alimento da oração pessoal (SC n.90). A liturgia das
Horas para uma linguagem eclesial e pascal, gratuita e horas é expressão de aliança e, consequentemente, fonte
espiritual. de transformação pascal. É glorificação e santificação.
Destacamos, a seguir, quatro aspectos da reforma. Por isso é determinante que participemos com inteireza e
acompanhemos com a mente [e o coração] as palavras [e
O Ofício Divino é liturgia. Como toda a liturgia, o os gestos], e cooperemos com a graça divina para não a
Ofício Divino é uma ação ritual, comunitária, eclesial, e recebermos em vão (cf. SC n.11 e 90).
não uma ação particular (cf. SC n.26). Trata-se, de uma
lit-URGIA (lit = povo; urgia = ação, ofício, trabalho): Apesar desses avanços, a liturgia das horas se
ação do povo e ação de Deus (divina) a serviço do povo. manteve bastante “monástica” em sua forma. Há quem
É ação litúrgica como qualquer outra. Nela, os mesmos diga que dos pontos fracos da reforma litúrgica o mais
elementos que fazem parte das demais celebrações da evidente é a reforma da Liturgia das Horas. No
Igreja (hinos, salmos, leituras bíblicas, silêncio, orações, movimento de volta às fontes, a reforma não conseguiu
música, gestos simbólicos) foram organizados levando restaurar a simplicidade e a ritualidade da prática
em conta a sua peculiaridade: a memória do mistério primitiva do Ofício das Catedrais, com toda a riqueza de
pascal ligado às horas no ritmo diário, articulando-se ministérios, de símbolos e ritos, celebrada com a
também com o ritmo semanal e anual. participação do povo, como observado acima. A reforma
levou mais em conta o clero e a vida consagrada do que
O povo como sujeito. O Concílio Vaticano II quis o povo. Além disso, devido ao peso histórico da
devolver a todo o povo o direito de celebrar o Ofício obrigação, na prática, há dificuldade em passar da
Divino, embora tenha ficado mais no âmbito do clero e recitação à celebração. A versão brasileira da Liturgia
da vida consagrada. Mas recomendou que os leigos das Horas (LH) é primorosa do ponto de vista da
“recitem o Ofício Divino, quer juntamente com os tradução, sobretudo dos salmos, adaptados ao canto.
sacerdotes, quer reunidos entre si, e até cada um em Mas carrega em si esses limites da edição típica, como o
particular” (SC n.100). A Instrução Geral sobre a fato, inclusive, de não ter avançado em direção à
Liturgia das Horas enfatiza que “o louvor da Igreja não é inculturação, tão desejada pelo próprio Concílio (cf. SC
reservado aos clérigos e monges, nem por sua origem, n.37-40).
nem por sua natureza, mas pertence a toda comunidade
cristã” (IGLH n.270). O Ofício Divino é ação litúrgica
139
3 Da Liturgia das Horas ao Ofício Divino das defensores da vida em nosso continente. Cabe lembrar,
Comunidades ainda, o cuidado com a dimensão ecumênica no ODC,
expresso em elementos como o Pai-nosso ecumênico, os
3.1 Alguns princípios norteadores
hinos das Igrejas irmãs, a inclusão de imagens de Deus
O Ofício Divino das Comunidades (ODC), (de ternura, bondoso, compassivo).
tomando como referência imediata para a sua elaboração
O grande mérito do Ofício das Comunidades é que
a Liturgia das Horas renovada, buscou oferecer ao povo
ele conseguiu viabilizar, na prática, o que a Liturgia das
uma versão popular da tradição de oração da Igreja.
Horas propõe: que o ofício, como qualquer outra ação
De um lado, foi fiel à Liturgia das Horas (LH), litúrgica, não é ação particular, mas ação comunitária,
porque obedeceu a mesma estrutura, a mesma teologia e celebração.
a mesma sequência ritual. Como na LH, toda a
Nas culturas populares brasileiras, o jeito para dar a cada
elaboração ritual do ODC se destina a expressar o
ofício um caráter mais celebrativo, é integrar todo o
mistério do crucificado-ressuscitado nas horas do dia,
corpo e o universo que nos cerca na oração. Na Bíblia os
seguindo o ritmo diário, semanal e anual, com hinos,
salmos contêm muitas atitudes corporais de oração,
salmos, cânticos bíblicos, preces e orações.
como voltar-se para a montanha, elevar o olhar e as
De outro lado, tomando como ponto de partida a mãos, se curvar, se ajoelhar, caminhar em procissão
experiência eclesial do Brasil, o ODC foi capaz de (BARROS, 1994, p. 30).
deixar de lado o que pesa na estrutura da Liturgia das
Mesmo sem que estivesse determinado por escrito,
Horas e ousou ser criativo na medida em que incorporou
a prática foi criando um estilo de celebrar que prima pela
elementos novos: o jeito novo de celebrar das
valorização do espaço, do canto, dos ministérios, dos
Comunidades Eclesiais de Base e o anseio de oração do
gestos (acender velas, reunir-se ao redor do ambão para
catolicismo popular.
a escuta do evangelho, ofertar incenso…). Tudo para
Não se trata de propor às comunidades o ofício tal qual conduzir ao silêncio e favorecer a participação externa e
no Rito Romano, mesmo simplificado ou abreviado. interna, consciente e frutuosa. Nesse sentido, a grande
Trata-se de um estilo brasileiro novo no campo mais pérola no ODC é o lucernário na vigília dos domingos e
amplo da família litúrgica romana. Não bastaria também solenidades. Esse rito que, nas comunidades das origens,
repetir ou publicar as costumeiras orações e cânticos da pertencia ao Ofício cotidiano das Vésperas, foi colocado
religião popular, ou mesmo dos encontros de oração dos na abertura do Ofício de Vigília, enfatizando o domingo
grupos da caminhada. O Ofício Divino das como páscoa semanal, em analogia com o rito da luz na
Comunidades quer ser uma síntese real e inteligente, fiel vigília pascal.
à grande tradição litúrgica e à sensibilidade e cultura do
A respeito da interação com o catolicismo popular,
nosso povo (BARROS, 1988, p.30).
o ODC é um exemplo bem-sucedido da “mútua
Da tradição eclesial latino-americana, o ODC fecundação” entre liturgia e piedade popular, tão
herdou a Recordação da Vida, que é expressão mais desejada pela reforma litúrgica (cf. SC n.13) e tão
sensível da relação entre a liturgia e a vida. Segundo evocada pelos documentos do CELAM e da CNBB
Libanio, as liturgias que emergiram no cenário de Igreja (CNBB, 1984, p.30). O trabalho não consistiu tanto em
de Medellín respondem ao desafio de vincular liturgia agregar elementos externos do catolicismo popular, mas
com práxis libertadora “sem quebrar a coluna vertebral em fazer com que o Ofício corresponda à “piedade”’ do
da gratuidade, da liberdade e da beleza contemplativa” povo, ao seu “anseio de oração e de vida cristã”, à “sede
(LIBANIO, 2001, p.107-108). O Ofício começa sem de Deus, que somente os pobres e os simples podem
nenhum comentário, com uma invocação de Deus e experimentar” (cf. Evangelii Nuntiandi, n48). Destaca-
convite ao louvor. Só então, quem preside convida os se, nessa sintonia com a piedade popular, o estilo orante,
participantes a trazerem experiências que marcaram suas a forma de repetição nos cantos, sobretudo nas aberturas,
vidas. a linguagem simples e afetuosa, a ausência de
A vida, os acontecimentos de cada dia, as pessoas, suas comentários, o que facilita a participação e estabelece
angústias e esperanças, suas tristezas e alegrias, as uma relação amorosa, de aliança entre Deus e o seu
conquistas e revezes da caminhada, as lembranças povo.
marcantes da história, da comunidade, das Igrejas e dos 3.2 A sacramentalidade do Ofício Divino das
povos, os próprios fenômenos da natureza são sinais de Comunidades
Deus para quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir.
O Concílio Vaticano II apresenta toda a liturgia –
Por aí começa a nossa escuta da Palavra de Deus.
não somente os sete sacramentos – como evento
Recordar a vida, trazê-la de volta ao coração, partilhar
sacramental, em que Jesus Cristo se faz presente, no
lembranças e preocupações, é ajudar a tornar a oração
exercício do seu sacerdócio, para glorificar o Pai e
verdadeira (ODC, 2018, p.11).
santificar a humanidade.
Mas a vida está latente em todo o ofício: na
No artigo 7 da Constituição litúrgica entre os
linguagem das orações e das preces, nos salmos, nos
sinais sensíveis que significam e que realizam o que
hinos da caminhada, na memória dos mártires
140
significam, está a assembleia que ora e salmodia, porque – És a luz do mundo, és a luz da vida! (bis)]
nela Cristo se faz presente e age com a força do seu
Cristo Jesus resplende: és nossa alegria! (bis)
Espírito. Podemos dizer que a assembleia reunida, o
tempo, a música, os salmos e cânticos, a oração, os Oferta-se incenso ou ervas cheirosas
gestos e as palavras, são sinais sensíveis que atingem a – Suba nosso incenso a ti, ó Senhor! (bis)
corporeidade dos participantes, evocam o mistério
invisível de Jesus Cristo e pelo agir do Espírito realizam Este louvor pascal, oferta de amor. (bis)
a transformação pascal. – Nossas mãos orantes para os céus subindo! (bis)
3.3 A santificação do tempo Cheguem como oferenda ao som deste hino! (bis)
Tomemos a categoria tempo, tão importante para a – Glória ao Pai e ao Filho e ao Santo Espírito. (bis)
compreensão da liturgia horária do Ofício Divino. Nas
Escrituras, os termos chronos, kairós e aiôn relacionam Glória à Trindade Santa, glória ao Deus bendito. (bis)
respectivamente o tempo da vida humana em curso, o – Aleluia, irmãs, aleluia, irmãos! (bis)
tempo da atuação de Deus na história da humanidade e o
tempo humano como intercessão entre o dado histórico e Povo de sacerdotes, a Deus louvação. (bis)
o seu sentido escatológico. Em todas as acepções, o As primeiras palavras da abertura são convocação
tempo é uma noção fortemente identificada ao ser para o louvor, com versos do salmo 117. Nestas palavras
humano (AUGÉ, 2019, p.36-38). De tal modo que a ouvimos o próprio Cristo chamando a comunidade a
noção de santificação de tempo, outra coisa não diz, participar de sua oração ao Pai, como tantas vezes ele
senão a santificação do próprio ser humano pela sua fez em sua vida terrena (cf. Mc 6,30-31). Traçamos o
inserção memorial na própria experiência temporal do sinal da cruz sobre o corpo no primeiro verso,
Verbo encarnado, a história da salvação. O tempo é recordando o nosso batismo, pelo qual Cristo nos associa
santificado pela Liturgia das Horas porque, juntamente ao seu mistério pascal e à sua oração. O canto da
com o Ano Litúrgico, ela contribui para dar novo sentido abertura continua, com palavras que se juntam ao gesto
ao tempo da vida humana (PINELL, 2005, p.216). do acendimento do círio e das velas para narrar a vitória
O tempo como sinal sensível torna-se mais da luz sobre as trevas que correspondem às aflições do
evidente no amanhecer e no entardecer por causa da povo. A função da oração das horas é gritar, é colocar
incidência da luz. Esses momentos foram estabelecidos sob o olhar de Deus o que acontece no mundo. Deus
como memória e renovação da aliança. Sem a palavra, a escuta o clamor, olha o coração dos que sofrem, e desce
luz não significa; sem a luz, o verbo não se faz visível para salvar (cf. Ex 3,7-8).
(cf. GARCIA, 2015, p.150). A palavra narra o mistério Um recipiente com brasas acesas está colocado
pascal de Cristo e da Igreja, na luz que ilumina o escuro sobre ao altar. Ainda na escuridão, mas agora iluminada
da noite, ou no sol que clareia o amanhecer. A palavra com as chamas acesas na mão da assembleia, faz-se a
invisível, mas audível nos salmos, nas leituras, nos oferta do incenso, sinal do sacrifício espiritual do povo
hinos, nas orações, interpreta o sinal sensível, tornando sacerdotal, acompanhada dos versos cantados.
visível o Verbo (cf. GARCIA, 2015, p.72). Por isso, o
cuidado com a verdade da hora é condição para que a Terminada a abertura, quem preside, convida os
Palavra possa interpretar a luz. participantes a trazerem as memórias que identificam as
luzes do caminho ou as noites que persistem…
3.4 O lucernário
Em seguida, entoa-se o hino “Luz Radiante”. Este
O rito do lucernário, na vigília do domingo e das hino, mais antigo que o Glória, remonta ao século II e é
festas maiores, compõe-se da abertura e do hino citado por São Basílio (BASÍLIO, 2003, p.403). No
lucernar. O ofício de vigília começa no escuro, em ODC (p.265), a versão é de Reginaldo Veloso, em forma
silêncio. Entoa-se, a meia voz, um refrão meditativo, responsorial, para garantir a participação da assembleia
para despertar no coração o anseio pelo Deus vivo. por meio de um refrão que se repete a cada estrofe.
Como de costume, sem qualquer comentário, quem
preside se levanta e começa os versos da Abertura, que a Luz radiante, luz de alegria,
assembleia repete: luz da glória, Cristo Jesus
– Venham, ó nações, ao Senhor cantar! (bis) –És do Pai imortal e feliz
Ao Deus do universo, venham festejar! (bis) o clarão que em tudo reluz!
– Seu amor por nós, firme para sempre! (bis) – Quando o sol vai chegando ao ocaso
Sua fidelidade dura eternamente. (bis) avistamos da noite a luz!
Acendem-se velas – Nós cantamos o Pai e o Filho
– Para ti, Senhor, toda noite é dia. (bis) e o Divino que nos conduz!
A escuridão mais densa logo se alumia. (bis)
141
– Tu mereces o canto mais puro, à oração que lhe pertence e possa participar ativa,
consciente e frutuosamente. Não só, mas tem
ó Senhor da vida, és a luz!
desencadeado um processo de aprender a rezar com a
– Tua glória, ó Filho de Deus, Igreja, de descobrir os salmos como escola de oração, de
o universo todo seduz! reconhecer neles a voz de Cristo e de fazer da oração
uma experiência de gratuidade e amorosa aliança. É algo
– Cante o céu, cante a terra e os mares, que não se dá automaticamente. É necessário aprender.
a vitória, a glória da cruz! São Bento oferece uma “regra de ouro”, que
As palavras do hino continuam a narrar o mistério a Sacrosanctum Concilium assumiu e aplicou a toda a
manifestado nas luzes que rompem o escuro. Fazem com Igreja: Que a mente concorde com a voz” (SC n.90; RB
que a assembleia reconheça, nessa imagem da noite n.19). A mente “não equivale somente à razão, mas à
iluminada, a presença do Cristo Ressuscitado, a quem o pessoa interior com seu conhecimento, sua vontade e seu
hino se dirige. Diante do dia que morre, a comunidade sentimento. É quase idêntica a coração, especialmente a
crente contempla a luz que não morre. O texto identifica parte dominante da alma (cf. GRÜN, 2019, p.30-31). A
no “clarão do Pai que tudo reluz”, o filho unigênito que voz refere-se à manifestação do Espírito, é a voz de
procede do Pai, que é fonte da vida. O canto mais puro é Deus que devemos ouvir. O coração deve estar em
devotado ao Cristo, Senhor da vida, que seduz o sintonia com a voz (cf. GRÜN, 2019, p.30-31).
universo com sua glória, pela qual o céu, a terra e os Pensemos no salmo.
mares entoam o seu cantar.
O critério geral de escolha de um salmo no ofício
A eficácia supõe a consciência da assembleia de é a hora. A pessoa não escolhe o salmo, ele é oferecido.
estar inserida em um evento de salvação, no qual o Tomemos o salmo 30(29) no ofício da tarde (ODC,
Cristo, pela atuação do Espírito, realiza nela o mistério p.52).
da sua páscoa. Ao transformar o tempo em kairós,
realiza-se, na Igreja, a passagem da morte à vida. Afinal, Cai a tarde, vem a noite
o fim último da liturgia é a santificação (SC n.10 e 33). a tristeza, o pranto a dor,
Assim, pouco a pouco, cada pessoa é levada à superação
de manhã renasce o sol,
de tudo o que é velho para alcançar a estatura da
“criatura nova” em Cristo. novo dia alegria.
3.5 Oração da Igreja 1. Senhor, grandes coisas direi eu de ti,
Reunir-se para rezar é uma ação primordial e uma Porque me livraste e não permitiste
exigência vital da comunidade cristã. Quando os pais da
Que os maus rissem, fazendo pouco de mim
Igreja enfatizam a importância da assembleia cristã não
pensam somente na eucaristia, mas também em outros 2. Senhor, eu por ti clamei e me curaste;
momentos comuns de oração e de louvor. Minha vida, do lugar onde os mortos residem,
O artigo 83 da Sacrosanctum Concilio faz uma Só tu me tiraste e me libertaste!
afirmação que retoma a LH como parte estruturante de
toda a liturgia da Igreja: 3. Cantai, santos todos, dai glória ao Senhor!
Jesus Cristo une a si toda a humanidade e a associa ao Sua raiva é um momento e logo acabou;
seu cântico de louvor. E continua exercendo este Bondade, toda a vida perdura o amor!
sacerdócio, na Igreja, que louva o Senhor sem cessar e
intercede pela salvação do mundo, não só com a 4. Seguro, eu dizia: Jamais tremerei!
celebração da Eucaristia, mas de vários outros modos, Favor, me cobriste de honra e poder.
especialmente pelo Ofício Divino.
Teu rosto escondeste e eu me apavorei…
O artigo 84 diz que nesta oração “Cristo se dirige
ao Pai, mediante o seu corpo”. Ou seja, esta oração 5. Piedade a meu Deus eu estou a implorar…
pertence a todo o corpo de Cristo. A oração da Vantagem, por acaso, na morte haverá?…
comunidade e de cada pessoa que ora é sacramento da
oração de Cristo. Ele é o mediador da nova aliança, por O pó dos meus ossos irá te louvar?!…
ele a humanidade tem acesso ao Pai. O Pai sempre 6. Senhor, piedade, vem me socorrer!
escuta a voz do Filho (Jo 11,42). “É necessário, pois,
que ao celebrarmos o Ofício Divino, reconheçamos o Minha dor e meu pranto mudaste em prazer;
eco de nossas vozes na voz do Cristo, e a sua em nós” Teu nome para sempre eu irei bendizer!
(PAULO VI, 1971, n.20).
O salmo está aí, com uma letra em versão popular
Um dos méritos do ODC é justamente o de em perfeita simbiose com a melodia. Tudo nele aponta
proporcionar que o povo das comunidades tenha acesso para o final de um dia de trabalho e de luta. Fala da
142
tristeza da noite que chega, mas promete a luz de um ______. Descolonizar a oração da igreja. Revista
novo dia: Cai a tarde, vem a noite, a tristeza, o pranto a de Liturgia, São Paulo, v.21, n.124, p.27-32, jul/ ago
dor, de manhã renasce o sol, novo dia alegria. Ao 1994.
cantar as estrofes, a pessoa encontra a expressão da sua
BASILIO DE CESAREIA. O Espírito Santo.
gratidão pelo dia que passou, pelas lutas superadas, pela
In: Antologia Litúrgica: textos litúrgicos, patrísticos e
firmeza apesar das dificuldades. A gratidão que já está
canônicos do primeiro milênio. Fátima: Secretariado
no seu coração, às vezes sufocada pelo cansaço, é
Nacional de Liturgia, 2003.
despertada pelas palavras do salmo. A pessoa se
identifica com o salmo como se ela própria o tivesse CASSIANO, João. Conferência X, sobre a oração.
gerado (cf. CASSIANO, 2003, p.984). In: Antologia Litúrgica: textos litúrgicos, patrísticos e
canônicos do primeiro milênio. Fátima: Secretariado
Ao encontrar no salmo a expressão da própria
Nacional de Liturgia, 2003.
ação de graças, une-se à ação de graças do Filho, que fez
de toda a sua vida uma oferta de louvor. Como não CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E
escutar a voz de Cristo quando se canta: Minha vida, do A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório
lugar onde os mortos residem, Só tu me tiraste e me sobre Piedade Popular e Liturgia; princípios e
libertaste (estrofe 2). Aí a voz do orante e a voz de orientações. São Paulo: Paulinas, 2003, n.29.
Cristo se faz uma só voz. Portanto “não sou eu que faço CNBB. Adaptar a Liturgia, tarefa da Igreja. São
algo com a palavra, mas é a palavra que faz algo Paulo: Paulinas, 1984.
comigo” (GRÜN, 2019, p.32), a palavra que é Cristo,
muda a voz de quem salmodia na sua própria voz, o ELBERTI, Arturo. Canto di Lodi per tuti i suoi
Espírito que renova todas as coisas o transforma naquilo fedeli. Milano: San Pablo, 2011.
que está rezando. ETÉRIA. Peregrinação de Etéria: Liturgia e
4 Uma palavra final catequese em Jerusalém no século IV. Petrópolis: Vozes,
1977.
No atual cenário de Igreja, de modo geral, a missa,
própria do domingo, que por tradição é o ápice de todas GARCIA LÓPES-TELLO, Eduardo. La liturgia
as ações litúrgicas, parece ter se tornado a única monástica dele ore: verso una sacramentalitá del verbo
celebração da Igreja: repetida todos os dias, em todo visibile. Roma: Edizioni liturgiche, 2015.
lugar e, muitas vezes, de qualquer jeito, quando não GRÜN, Anselm. Liturgia das Horas e
instrumentalizada para fins duvidosos. Ao lado da missa, contemplação. Petrópolis: Vozes, 2019.
está o terço, a devoção aos santos, a adoração ao
Santíssimo, sem falar da avalanche de práticas de um INSTRUÇÃO GERAL SOBRE A LITURGIA
catolicismo conservador, que nada tem a ver com a DAS HORAS (IGLH). Comentários de Aldazábal. São
piedade popular. A própria celebração da Palavra não se Paulo: Paulinas, 2010.
configura como parte orgânica da liturgia da Igreja, JOIN-LAMBERT, Arnaud. La Liturgie des
ocupando no máximo um lugar de suplência (por falta de Heures par tous les baptisés: l’expérience quotidienne
padre). O Ofício Divino sequer aparece nos du mystère pascal. Leuven: Peeters, 2009. Liturgia
planejamentos pastorais das Igrejas e paróquias. E bem Condenda.
que poderia ser uma alternativa de celebração da
comunidade cristã, a mais imediata depois da missa. O LEITE BASTOS, Geraldo. Entrevista. Revista de
Ofício das Comunidades se oferece como uma fonte no Liturgia, São Paulo, n.86, mar/abr 1988.
caminho, enraizada na tradição dos pais e mães da LIBANIO, João Batista. Cenários da Igreja. São
Igreja, com um jeito bem brasileiro, e fiel à eclesiologia Paulo: Loyola, 2001.
latino-americana. Não se impõe como obrigação, ou
como forma exclusiva, mas se oferece na gratuidade LIMA, Danilo César dos Santos. A
para as comunidades que vivem a fé em meio às lutas de sacramentalidade e o caráter celebrativo do Ofício
cada dia e anseiam por alimentar sua vida espiritual. Divino das Comunidades no Brasil. Roma: Thesis ad
Licentiam in Sacra Liturgia – Pontificium Athenaeum S.
Penha Carpanedo, PDDM. Texto original Anselmi de Urbe, 2010.
português. Postado em fevereiro de 2020.
OFÍCIO DIVINO DAS COMUNIDADES (ODC).
Referências 3.ed. São Paulo: Paulus, 2018.
AUGÉ, Matias. Ano litúrgico: é o próprio Cristo PEREIRA SILVA, Jeronimo. Semana de estudo
presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019. Fonte sobre a liturgia das Horas. Revista de Liturgia, n.252,
Viva. nov/dez 2015.
BARROS de SOUZA, Marcelo. Caminhada PINELL, Jordi. Liturgia delle ore. Genova-Milão:
popular e Ofício Divino. Revista de Liturgia, São Paulo, Casa Editrice Marietti, 2005. Anàmnesis, 5.
v.15, n.86, p.30-36, mar/abr 1988.
143
PAULO VI. Constituição Apostólica “Laudis TAFT, Robert. Oltre l’oriente e l’occidente: per
Canticum”. In: Instrução Geral sobre a Liturgia das una tradizione liturgica viva. Roma: Lipa Edizioni,
Horas. Comentários de José Aldazabal. São Paulo: 1999.
Paulinas, 2010.
145
sacramentos conforme a variedade das coisas, tempos e celebração do mistério pascal de Cristo. Por sua vez, o
lugares (DH 1728). Do ponto de vista canônico, quando Missal de Pio V é ortodoxo por conservar e expressar
um papa escreve perpetuo concedimus, deve-se sempre cabalmente a teologia do sacrifício expiatório de Cristo,
entender “até que seja ordenado de outro modo”. É perpetuado de forma incruenta sobre os altares. O então
próprio da autoridade soberana do Pontífice Romano não cardeal Ratzinger classificou como estranha e
ser limitado pelas leis meramente eclesiásticas, muito despropositada a oposição lançada entre as categorias
menos pelas disposições dos seus predecessores. Um “mistério pascal” e “sacrifício” (RIFAN, 2007, p.53-54).
papa está limitado, evidentemente, pela imutabilidade Essa anômala oposição é o argumento central, defendido
das leis divina e natural, além da própria constituição da pela Fraternidade São Pio X, de que existe uma
Igreja (cf. RIFAN, 2007, p.45-46). verdadeira ruptura dogmática entre a liturgia renovada a
Foi essa compreensão que tiveram os vários partir do Concílio Vaticano II e a liturgia anterior
sucessores do papa Pio V quando modificaram ou (FSSPX a, p.55-68). Em outros termos, a acusação de
introduziram elementos no missal por ele promulgado heterodoxia lançada sobre o Missal de Paulo VI se funda
em 1570. Fizeram isso sem contradizer a bula Quo no julgamento de que agora tudo se interpreta a partir do
primum tempore. Assim, a título de exemplificação, em mistério pascal, que usurpou o lugar do sacrifício
1604, Clemente VIII aboliu uma oração prescrita para o expiatório de Cristo. Tal acusação não se sustenta e é
sacerdote ao entrar na igreja, a palavra omnibus nas duas evidente o mal-entendido. A categoria mistério pascal
orações posteriores ao Confiteor e a eventual menção do não substitui, abole ou relativiza a importância e a
nome de um imperador no Cânon Romano. Leão XIII realidade do sacrifício de Cristo. A Páscoa de Cristo é o
acrescentou, ao término da missa, as orações leoninas, e mistério salvífico em toda a sua amplitude e onde o seu
outras adições foram feitas por Pio X, em 1904, e Pio sacrifício verdadeiramente se situa.
XI, em 1929. Todavia, foi Pio XII que, em 1951 e 1955, O termo mistério pascal conduz claramente às
empreendeu a maior modificação litúrgica anterior ao realidades que se deram entre a quinta-feira santa e a
Vaticano II com uma notável reforma das celebrações da manhã de Páscoa: a ceia como antecipação da cruz, o
Semana Santa. Por fim, João XXIII, já nos albores do drama do gólgota e a ressurreição do Senhor. A
Concílio, inseriu, em 1960, o nome de São José no categoria mistério pascal compreende esses eventos
Cânon Romano. como um acontecimento unitário que manifesta toda a
Outra objeção frequente que opõe indevidamente obra de Cristo. Obra salvífica que possui um eminente
o Missal de Pio V ao Missal de Paulo VI é a “questão do lugar histórico, mas simultaneamente o transcende. Uma
ofertório”. No Missal de Pio V, a preparação e a vez que esse acontecimento único e transcendente é o
apresentação das oblatas são acompanhadas por longas mais perfeito culto prestado a Deus, pode se tornar culto
orações que realçam claramente o caráter sacrifical da divino e estar presente em todos os instantes da história
missa. O Missal de Paulo VI optou por orações mais pois foi assumido pelo próprio Deus em seu mistério de
breves em que se bendiz Deus pelos dons do pão e do salvação. A teologia pascal do Novo Testamento dá a
vinho que se tornarão corpo e sangue do Senhor. A entender isso: o episódio aparentemente profano da
objeção tradicionalista afirma que a mudança do crucificação de Cristo é um sacrifício de expiação, um
ofertório destruiu o caráter sacrifical da missa que, com ato reconciliador realizado pelo Deus feito homem. A
isso, deixou de ser católica e, portanto, se tornou ilícita teologia da páscoa é uma teologia da redenção, uma
ou mesmo inválida. Tal objeção, eivada de preconceitos, liturgia do sacrifício expiatório situado no centro do
é refutada com a constatação de que a principal menção mistério pascal (RIFAN, 2007, p.54). Demonstra-se
do sacrifício tem seu lugar próprio não no ofertório, mas assim que a oposição entre o sacrifício e mistério pascal
na anamnese do próprio Cânon. O chamado “ofertório” é artificial e inconsistente.
originalmente era uma singela preparação das oblatas 4 Das controvérsias à separação
sobre o altar. Até o século X, predominou o gesto A polêmica em torno do Missal de Pio V conheceu
realizado em silêncio. Nos séculos seguintes elaboraram- um crescendo de tensões e rupturas, sobretudo em torno
se as orações que posteriormente foram incluídas no da Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX), fundada
Missal de Pio V (BOROBIO, 1996, p.335-338). Após o pelo arcebispo francês Marcel Lefèbvre. Esta
Concílio Vaticano II, vários liturgistas advogaram a fraternidade foi aprovada em 1970 pelo bispo de
eliminação das palavras desse rito, retomando a simples Lausanne (Suíça) e recebeu uma carta laudatória da
elevação em silêncio, mas Paulo VI insistiu na Congregação para o Clero em 1971. O posicionamento
recuperação de fórmulas breves e enraizadas nas mais extremamente crítico em relação ao Concílio Vaticano II
antigas fontes da liturgia cristã e que revelam a e a rejeição do novo rito da missa, pejorativamente
verdadeira natureza desse momento: a apresentação das taxada como “missa nova”, ocasionou um afastamento
oblatas sobre o altar (TABORDA, 2009, p.142-144). progressivo de Lefèbvre e seus seguidores em relação a
A chamada “questão do mistério pascal” é Roma.
provavelmente a mais forte objeção tradicionalista Suas declarações programáticas são incisivas. A
levantada contra o Missal de Paulo VI. Afirmam que o FSSPX adere “de todo o coração, de toda a alma, à
novo missal é heterodoxo, pois sua teologia enfatiza a Roma católica, guardiã da Fé católica e das tradições
146
necessárias à manutenção desta Fé, à Roma eterna, da “filosofia perene”, a postura combativa e apologética
mestra da sabedoria e da verdade”. Mas recusa, “ao diante do mundo contemporâneo e da secularização. Em
contrário, e sempre [se recusará] a seguir a Roma de suma: uma mudança radical da cosmovisão católica
tendência neomodernista e neoprotestante que se existente desde o Concílio Vaticano II. O instaurare
manifestou claramente durante o Concílio Vaticano II e, omnia in Christo, interpretado dentro dessa lógica, tem
após o Concílio, em todas as reformas que dele se esse escopo radical. O polo irradiador dessa restauração
originaram” (FSSPX a). Tamanho distanciamento é a Missa de São Pio V com todas as consequências que
culminou com Dom Marcel Lefèbvre sendo suspenso a se tiram dela nesse horizonte de compreensão. Começa-
divinis, em 1976, por insistir em formar e ordenar padres se pela liturgia tradicional e conclui-se com o derrube do
dentro dessa perspectiva de rejeição ao Vaticano II. Vaticano II.
Posteriormente, em 1988, a situação se agravou com a Todavia, nem todos os adeptos da liturgia
sua excomunhão latae sententiae em virtude da tradicional se sentiram identificados com o radicalismo
ordenação de quatro bispos sem o necessário mandato dessa proposta, sobretudo a ampla e veemente rejeição
pontifício, evento que ficou conhecido como o “cisma do Concílio Vaticano II. O risco por eles antevisto era
tradicionalista”. não só de uma mentalidade reacionária e cismática, mas
A Missa de São Pio V tornou-se, desde então, uma também das piores formas de sectarismo e isolamento
verdadeira bandeira de luta. A sua conservação, defesa e voluntário, promovendo uma equivocada defesa e a
expansão converteu-se não somente na razão da preservação da fé católica. Daí o surgimento de várias
existência da FSSPX, mas em verdadeiro princípio iniciativas de diálogo com Roma e de acolhida e
operativo em relação à Igreja atual, sempre avaliada inclusão dos fiéis tradicionalistas na plena comunhão
negativamente e reconhecida como inclinada ao eclesial.
modernismo apóstata. Dessa forma, não se trata apenas Em 1984, João Paulo II concedeu que, mediante
de conservar a missa tridentina, mas de se engajar num um indulto e sob condições específicas, o Missal de São
programa de restauração da Igreja a partir do paradigma Pio V pudesse ser usado regularmente. Através do Motu
compreendido pela FSSPX como a “autêntica Tradição Proprio Ecclesia Dei afflicta (1988) o mesmo papa
da Igreja”. O retorno à tradição conformada ao modelo normatizou a recepção dos tradicionalistas que
tridentino é assumido como o único caminho de romperam com Dom Marcel Lefèbvre em virtude da
superação da profunda crise da Igreja. As palavras do excomunhão em que esse arcebispo e os bispos por ele
padre Davide Pagliarini, Superior da FSSPX, são ordenados incorreram. Tal fato mergulhou a FSSPX
significativas e reveladoras; “devemos ter a coragem de numa complicada situação canônica que perdura até
reconhecer que mesmo uma boa postura doutrinária não hoje, apesar da retirada da excomunhão em 2009. É de
será suficiente, se não vier acompanhada de uma vida 1988 o surgimento da Fraternidade Sacerdotal São
pastoral, espiritual e litúrgica coerente com os princípios Pedro, fundada a partir de egressos da fraternidade
que queremos defender” (FSSPX b). A missa tradicional lefebvriana, e vinculada diretamente à Santa Sé,
pedirá uma reconfiguração da Igreja a partir do modelo dedicando-se ao apostolado junto aos fiéis
supostamente tridentino e interpretado como a melhor tradicionalistas que desejaram manter a plena comunhão
expressão da Tradição. Prossegue Pagliarini: com Roma. Também nessa perspectiva surgem outras
“concretamente, é preciso que passemos para a missa agremiações centradas no uso exclusivo da liturgia
tridentina e a tudo o que ela significa; é preciso irmos à tradicional: o Instituto Cristo Rei e Sumo Sacerdote
missa católica e tirar dela todas as consequências” (1990) e o Instituto Bom Pastor (2006). Com a
(FSSPX b). Estas consequências abrangem todo o proximidade do Grande Jubileu do ano 2000,
conjunto da vida eclesial contemporânea e formam um intensificaram-se os diálogos e as tratativas de vários
verdadeiro programa de restauração: “não se trata de grupos tradicionalistas com a Santa Sé. No Brasil, este
restaurar a missa tridentina porque é a melhor opção movimento de superação da ruptura resultou na criação
teórica; é uma questão de restaurá-la, de vivê-la e de de uma circunscrição eclesiástica que possui bispo
defendê-la até o martírio, porque somente a Cruz de próprio em plena comunhão com Roma e conserva para
Nosso Senhor pode tirar a Igreja da situação catastrófica o seu clero e fiéis a liturgia romana tradicional. É
em que ela se encontra” (FSSPX b). Compreendido Administração Apostólica São João Maria Vianney,
dessa forma, o pretendido retorno à tradição implica em erigida em 2001 e sediada em Campos dos Goytacazes,
rompimento com numerosas realidades tidas como as RJ.
grandes conquistas do último Concílio. Tais conquistas
são interpretadas como grandes males que devem ser O “mundo tradicionalista” não é uniforme e
expurgados. As consequências lógicas dessa restauração monolítico, mas amplo e diversificado. Abriga em si
seriam a rejeição total da reforma litúrgica pós-conciliar, desde as posições mais radicais de oposição e rejeição ao
a suspensão da caminhada ecumênica, a reinterpretação Concílio Vaticano II até posturas mais abertas ao
da liberdade religiosa, o questionamento da diálogo e à interação. Seu ponto de convergência é o
colegialidade episcopal e das conferências episcopais, a Missal de Pio V. Seu eixo de tensão, conflito e dispersão
suspeita generalizada em relação ao magistério e sínodos passa pela hermenêutica do Vaticano II.
pós-conciliares, a recuperação da teologia escolástica e
147
5 Em busca da reconciliação e da paz litúrgica: prudência. Nessa carta ao episcopado, Bento XVI
Bento XVI e a Summorum Pontificum reconheceu que diante de sua iniciativa “há reações
Dentro do processo acima delineado, já no muito divergentes entre si que vão de uma entusiasta
pontificado de Bento XVI, merece especial destaque a aceitação até uma férrea oposição a um projeto cujo
Carta Apostólica sob a forma de Motu conteúdo na realidade não era conhecido”. Ressaltou que
Proprio Summorum Pontificum, sobre o uso da liturgia deve ser afastado o temor de uma negação da autoridade
romana anterior à reforma realizada em 1970. Partindo do Concílio Vaticano II e de uma de suas decisões
da afirmação de que o Missal de Paulo VI é a expressão essenciais que é a reforma litúrgica, porque o Missal de
ordinária da lex orandi da Igreja Católica de rito latino, Paulo VI permanece como a forma normal ou ordinária
admite-se o Missal de São Pio V (em sua edição de da liturgia eucarística. Afirmou que o Missal de São Pio
1962) como a expressão extraordinária da mesma lex V nunca foi ab-rogado e juridicamente sempre continuou
orandi. Em seu venerável e antigo uso deve gozar da permitido. Aludiu também à divisão causada pelo
devida honra, mas sem que tal disposição gere a divisão arcebispo Lefèbvre em que “a fidelidade ao missal
da liturgia da Igreja pois são dois usos (ordinário e antigo apareceu como um sinal distintivo externo, mas
extraordinário) do único rito romano (SP n.1). Assim, as razões da divisão, que então nascia, encontravam-se
Bento XVI estabeleceu que “é lícito celebrar o Sacrifício em maior profundidade”. Por essa razão, “muitas
da Missa segundo a edição típica do Missal Romano pessoas que aceitavam claramente o caráter vinculante
promulgada pelo Bem-Aventurado João XXIII, em do Concílio Vaticano II e eram fiéis ao papa e aos
1962, e nunca ab-rogada como forma extraordinária da bispos, mas desejavam reaver a forma que lhes era cara
liturgia da Igreja” (SP n.1). Estabelece também que todo da Sagrada Liturgia”. Isto aconteceu, principalmente,
sacerdote católico, nas missas celebradas sem o povo e porque em muitos lugares não se celebrava mais de
excetuados os dias do tríduo pascal, pode celebrar maneira fiel às normas do novo missal, o que levou
conforme esse missal sem necessidade de nenhuma frequentemente a deformações da liturgia no limite do
permissão da Sé Apostólica ou do seu Ordinário (SP suportável. De forma autobiográfica, acrescenta Bento
n.2). Os religiosos, em suas comunidades individuais ou XVI: “falo por experiência, porque também eu vivi
como institutos ou sociedades, podem ter tais aquele período com todas as suas expectativas e
celebrações frequente, habitual ou permanentemente, confusões. E vi como foram profundamente feridas,
mediante aprovação dos superiores maiores e seguindo pelas deformações arbitrárias da liturgia, pessoas que
as normas do direito e as leis e estatutos particulares (SP estavam totalmente radicadas na fé da Igreja”.
n.3). Fiéis podem ser admitidos às celebrações desde que Nessa mesma Carta aos Bispos, após uma série de
o peçam espontaneamente e sejam observadas as normas ponderações canônicas e pastorais, Bento XVI vislumbra
do direito (SP n.4). Nas paróquias onde haja um grupo a possibilidade de uma fecunda interação das duas
estável de fiéis que prefira a forma extraordinária, que os formas, o que chamou de mútuo enriquecimento. “As
párocos ou reitores de igrejas acolham tal pedido, duas formas do Rito Romano podem enriquecer-se
harmonizando o bem desses fiéis com a atenção mutuamente. No missal antigo poderão e deverão ser
ordinária da paróquia, sob a direção do bispo, porém inseridos novos santos e alguns dos novos prefácios”.
“evitando a discórdia e favorecendo a unidade de toda a Por outro lado, “na celebração da missa segundo o
Igreja” (SP n.5 §1). Se tal grupo de fiéis não obter o que Missal de Paulo VI, poder-se-á manifestar, de maneira
pede, informe o bispo diocesano sobre o fato. “Pede-se mais intensa do que frequentemente tem acontecido até
vivamente que o bispo satisfaça o desejo deles. Se ele agora, aquela sacralidade que atrai muitos para o uso
não puder prover tal celebração, seja o assunto referido à antigo”. A garantia mais segura de que o Missal de
Pontifícia Comissão Ecclesia Dei” (SP n.7). Da mesma Paulo VI una as comunidades paroquiais e seja amado
forma, o pároco pode conceder licença para o uso do por elas é a sua celebração “com grande reverência em
ritual mais antigo na administração dos sacramentos do conformidade com as rubricas; isso torna visíveis a
batismo, matrimônio, penitência e unção dos enfermos riqueza espiritual e a profundidade teológica desse
“se requer o bem das almas” (SP n.9 §1). “Aos missal”. Portanto, concluiu Bento XVI, não existe
Ordinários concede-se a faculdade de celebrar a nenhuma contradição entre uma edição e outra do Missal
Confirmação usando o Pontifical Romano antigo” (SP Romano, pois na história da liturgia há crescimento e
n.9 §2) e aos clérigos é igualmente lícito usar o progresso, mas nenhuma ruptura.
Breviário Romano promulgado em 1962 (SP n.9 §3). O 6 Desafios que permanecem
Ordinário do lugar, se considerar oportuno, pode erigir
uma paróquia pessoal “para as celebrações, segundo a O caminho proposto por Bento XVI
forma mais antiga do Rito Romano, ou nomear um na Summorum Pontificum corresponde perfeitamente a
capelão” (SP n.10). um dos eixos do seu magistério, isto é, a “hermenêutica
da continuidade”. Porém, os movimentos de ruptura no
Junto da Summorum Pontificum, Bento XVI campo litúrgico existiram e continuam existindo. De um
enviou uma “Carta aos Bispos”, também datada de 7 de lado, a postura negacionista do tradicionalismo de corte
julho de 2007, pormenorizando as razões de sua decisão, lefebvriano que não concede qualquer valor à reforma
esclarecendo pontos controversos e estimulando uma litúrgica pós-conciliar e advoga a ruptura mais drástica
generosa acolhida mediante a caridade pastoral e a justa
148
com o seu completo banimento da vida da Igreja. De assunto é o Concílio Vaticano II só se trabalha com a
outro lado, os defensores do legado litúrgico oriundo do perspectiva de sua rejeição. Por isso, rompeu
Vaticano II, conscientes de suas conquistas e avanços, violentamente com a FSSPX em 2012, levando consigo
mas firmemente decididos a não recuar nem ceder em um certo número de padres e leigos e fundando uma
nada (ISNARD, 2008, p.20). Posições extremas, por vez nova vertente tradicionalista. Desde 2015, por ter
vezes carregadas de paixão pelas respectivas bandeiras, ordenado bispos sem mandato pontifício, reincidiu na
resultando num clima tenso que agrava as divisões excomunhão latae sententiae. Os partidários de
existentes. Williamson no Brasil ligam-se ao Mosteiro da Santa
Ainda permanece desafiante e dificultosa a via do Cruz em Nova Friburgo, RJ. Reabriu-se assim a ferida
crescimento e progresso na liturgia, mas sem rupturas, cismática de outro tradicionalismo fora da plena
tal como idealizou Bento XVI. Mais do que formas comunhão eclesial.
litúrgicas e peculiaridades dos seus ritos, existe uma Longe de qualquer conduta cismática, é reveladora
realidade mais profunda antecedendo a todas essas a situação do catolicismo tradicional nos Estados
questões. Trata-se da tensão conflitante entre duas Unidos, país onde a Summorum Pontificum encontrou
formas de compreensão da Igreja e do seu grandes entusiastas. Poderia se pensar num notável
posicionamento diante do mundo contemporâneo. O avanço tradicionalista nesse país, mas não é o que se
debate e as polêmicas em torno do uso do Missal de São constata em termos de realidade. Pesquisas revelam que
Pio V apenas manifestam um drama e uma luta muito o catolicismo tradicionalista avançou nos Estados
mais profundos e que estão ainda longe de uma Unidos, não de forma generalizada, mas pontual e
resolução pacífica e integradora. restrita. Dos mais de 70 milhões de católicos
A década que transcorreu após a Summorum estadunidenses, frequentam a missa tradicional somente
Pontificum merece ser melhor analisada. Posturas e uns 0,3%. A expressiva maioria do clero de rito romano
opiniões razoavelmente tolerantes e dialogantes se (95%) celebra exclusivamente segundo o Novus
tornaram mais frequentes em ambos lados, mas os Ordo. Num artigo em que se analisa a mencionada
núcleos duros de crítica e rejeição seja em relação à pesquisa, encontramos o testemunho interpelante do
missa tradicional seja em relação à Missa de Paulo VI monsenhor Charles Pope sobre esse retumbante fracasso
permanecem intactos tanto nos vários grupos pastoral:
tradicionalistas quanto nos seguidores da renovação Em minha própria Arquidiocese, apesar de oferecermos
litúrgica pós-conciliar. As entrevistas e escritos de seus a missa tradicional em cinco lugares diferentes, nunca
expoentes ou defensores atesta esse fato abundantemente fomos capazes de atrair mais que mil pessoas. Isso é
(KWASNIEWSKI, 2018, p.133-144; GRILLO, 2007, somente metade do 1% do número total de católicos que
p.103-120). assistem à missa nesta Diocese a cada domingo. Isso não
Não se pode falar de uma vitória tradicionalista convence os bispos de que a missa nova não é a liturgia
após a Summorum Pontificum (KWASNIEWSKI, 2018, do futuro e que o retorno da missa tradicional é o melhor
p.223-231). A liturgia de Paulo VI não foi ab-rogada caminho a seguir. Se nós que amamos a missa
como ainda almejam os mais extremados e inexiste a tradicional pensamos que a missa faria sozinha a sua
possibilidade próxima ou remota de tal ab-rogação própria evangelização, estamos equivocados. Ela é bela
acontecer. Por sua vez, o papa Francisco não cancelou o e digna de Deus de muitas maneiras, mas num mundo de
caminho aberto por Bento XVI em relação aos prazeres e diversões instantâneas, nós devemos
seguidores da liturgia tradicional nem se fechou ao demonstrar o valor perene de uma liturgia tão bela. A
diálogo com a Fraternidade São Pio X. Permanece, verdade do assunto é que uma liturgia antiga, falada num
porém, o impasse em relação à valoração e significado idioma antigo e, a maior parte do tempo, falada em
do Concílio Vaticano II. Um possível acordo teológico sussurros, não é algo que a maioria da gente moderna
sobre este Concílio, simultaneamente aceitável por apreciaria de forma imediata (BANKE, 2019).
Roma e pelos lefebvrianos, é condição indispensável Os ambientes constituídos em torno da missa
para a regularização canônica da fraternidade tradicional também têm os seus grandes desafios.
tradicionalista. Tal acordo ainda não foi alcançado Provavelmente o maior deles se refere à mentalidade de
apesar de todo esforço de Bento XVI e das gueto, de grupo seleto, de constituição dos únicos
demonstrações de acolhimento e benevolência no lugares onde é possível subsistir o verdadeiro
pontificado de Francisco, com a concessão de faculdades catolicismo. Na prática, essa mentalidade se perverteu
canônicas em relação aos sacramentos do matrimônio e em isolamento em relação aos demais membros do
da penitência ministrados pelo clero da Fraternidade São corpo eclesial, quase sempre avaliados pejorativamente.
Pio X. Reação extrema diante dessa aproximação inicial Um isolamento em que, por causa de um certo “espírito
entre Roma e os tradicionalistas da FSSPX se deu com a de elite”, é muito frequente a crítica amarga e os
clamorosa saída do bispo Richard Williamson, um dos posicionamentos ofensivos, carregados de desprezo por
sagrados por Dom Marcel Lefèbvre em 1988. tudo que se relacione com a Igreja pós-conciliar. Tal
Williamson interpretou a incipiente aproximação com perversão gera antipatias e resistências e acentua ainda
Roma como traição à causa da Tradição. Quando o mais o fracasso pastoral acima aludido.
149
Por sua vez, avalia-se que a Summorum paradoxalmente tomando como ponto de partida
Pontificum não logrou efetivar suficientemente a a Summorum Pontificum.
hermenêutica da continuidade no âmbito litúrgico. Pelo Esse quadro preocupante manifesta a necessidade
contrário, abriu espaço para um estado anômalo de de aprofundarmos a compreensão sobre a verdadeira
contradição na práxis celebrativa da Igreja com a identidade da tradição litúrgica. O Missal de Paulo VI,
coexistência de duas formas do mesmo rito cujos fruto eminente da reforma litúrgica, longe de apartar-se
adeptos nem sempre primam pela harmonia fraterna. Na da verdadeira Tradição, aproximou a celebração
opinião do teólogo Andrea Grillo, há um “efeito eucarística das suas origens que são eminentemente
perigosamente desorientador” desse documento que bíblicas e patrísticas. A reforma litúrgica pós-conciliar
paira sobre todos. Segundo Grillo (2011), por meio de ampliou notavelmente o acesso à Palavra de Deus,
uma “ficção jurídica”, tornam-se artificialmente enfatizou o protagonismo do Espírito Santo na ação
contemporâneas duas formas diferentes de celebração da eucarística e ressaltou a natureza ministerial e a
missa. Por ser objeto de escolha, “cria-se uma situação participação ativa de toda a Igreja em oração.
híbrida e anômala, que logo revela ser uma confusão,
com a qual se introduz uma grave descontinuidade na Quando analisadas mais detidamente as duas
tradição do rito romano”. O que é mais paradoxal e mais formas do rito romano, os estudiosos constatam que o
grave é a “absoluta liberdade” concedida ao padre ou ao Missal de Paulo VI é efetivamente mais tradicional que
bispo, na “celebração sem povo”, que agora podem o seu antecessor tridentino. O missal vigente manifesta
escolher entre a forma ordinária ou extraordinária, sem com maior evidência sua vinculação com a “norma dos
ter que prestar contas a ninguém. O resultado é que “a Santos Padres”, tão valorizada por São Pio V e seus
reforma litúrgica se torna, assim, um mero ‘opcional’ da contemporâneos, mas não totalmente acessível a eles no
própria identidade ministerial. Isso também é século XVI. Daí o surpreendente reconhecimento de
um monstruum inédito com relação à Tradição da que o rito tridentino é um rito moderno quando situado
Igreja”. E conclui: “Surpreende que o papa Bento no contexto mais amplo da longa história da liturgia
XVI tenha assumido uma teoria tão inconsistente no romana (CASSINGENA-TRÉVEDY, 2007, p.89-95).
plano jurídico e com consequências tão incontroláveis A passagem dessa primeira forma moderna do rito
no plano litúrgico, eclesial e espiritual”. Em suma: “uma romano à segunda forma, pós-conciliar, comunitária,
pretensão de paralelismo ritual que instaura uma relacional, simbólico-ritual, aconteceu por meio de um
convivência entre o rito ordinário e o rito extraordinário, Concílio e de uma longa fase de reforma, que foi
o que – já à primeira vista – se revela incoerente, causada pelos limites, pelas lacunas, pelas
ineficaz e gravemente perigoso para a comunhão unilateralidades do rito tridentino, dos quais a Igreja
eclesial” (GRILLO, 2011). havia se dado conta progressivamente, a partir do século
Com a pretensão de permitir uma dupla vigência de XIX. A passagem que a reforma quer promover refere-se
formas diferentes e não harmônicas do mesmo rito ao sujeito que celebra (do padre individual à relação
romano, determina-se progressivamente um conflito assembleia/ministros), ao rito (que não é mais só para
indomável entre tempos, espaços, hábitos, ritos, ser observado por um indivíduo, mas deve ser celebrado
calendários, ministérios, códigos, competências diversas. por uma comunidade), à relação com Deus (que, de
A extensão refere-se tanto às habilitações subjetivas ao monológica, se torna dialógica), à Palavra de Deus (que
rito, ou seja, os critérios com que os sujeitos podem agora tem espaço, visibilidade sacramental e riqueza
reivindicar direitos a respeito, quanto às finalidades muito mais significativa), ao papel da comunhão (que
objetivas do rito, que, mais explicitamente, são definidas agora é feita por todos como uma ação ritual da missa e
como “pastorais”. Na realidade, esse documento, apesar não mais como devoção privada) (GRILLO, 2011).
das boas intenções, corre o risco de tornar impossível A evolução histórica do rito romano é verificada
qualquer pastoral litúrgica, já que tem um efeito mediante a passagem dos seus diversos estágios. Nessa
perigosamente desorientador sobre todos: passagem há uma evolução pautada pela fidelidade
principalmente sobre os bispos, que perdem o controle criativa, como bem explicou Paulo VI na Constituição
das dioceses, depois sobre os padres e, enfim, também Apostólica Missale Romanum e no proêmio da Instrução
sobre os leigos, pelo fato de subtrair da reforma a sua Geral do Missal Romano. As duas formas só podem ser
necessidade (GRILLO, 2011). corretamente compreendidas em sua continuidade se
A relativização e até o menosprezo da reforma situadas numa sucessão diacrônica (GRILLO, 2011).
litúrgica oriunda do Vaticano II foi um dos efeitos não Porém, quando formas diferentes se tornam
desejados por Bento XVI ao publicar a Summorum artificialmente contemporâneas e objeto de livre escolha,
Pontificum. Abusando da hermenêutica da continuidade com o agravante de um contexto de velhas
emergiram críticas tão radicais que até a reforma da incompreensões e preconceitos não superados, o que se
Semana Santa realizada por Pio XII, na década de 1950, tem é o grande o risco de descontinuidade e ruptura
passou a ser questionada. Não só questionada, mas litúrgica e graves ameaças à própria unidade eclesial.
nalguns lugares retomou-se a celebração da Semana Na verdade, os maiores desafios ultrapassam os
Maior, como no tempo de São Pio V. Tais fatos revelam limites da práxis litúrgica. São desafios da própria vida
até onde o grau de rigidez litúrgica pode chegar, eclesial, assinalada por tensões e esperanças, conflitos e
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possibilidades de crescimento e recuo. A liturgia é “o ______ . Por uma Ecclesia verdadeiramente
cume para o qual tende a ação da Igreja” e, ao mesmo Universal. Entrevista. IHU, 28 mai 2011. Disponível em:
tempo, é “a fonte de onde emana toda a sua força” (SC >http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/43708-por-uma-
n.10). Ocupando essa posição central e vital é evidente %60%60ecclesia%60%60-verdadeiramente-
que tudo o que a Igreja vive se manifeste também, sob %60%60universa%60%60-entrevista-especial-com-
variadas formas, em sua liturgia. Inclusive seus andrea-grillo Acesso em: 10 dez 2019.
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