03 Pereira-Sentimentos No Exultet-Rev3-Ok

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O EXULTET COMO EXPRESSÃO DOS

SENTIMENTOS DE UM POVO REDIMIDO

THE EXULTET AS AN EXPRESSION OF A REDEEMED PEOPLE’S


FEELINGS

Jerônimo Pereira*
Olinda, PE

Síntese: A primeira parte da Vigília Pascal encontra seu ponto culminante no canto

diaconal do Exultet. O presente artigo tem como escopo apresentar, de forma


sintética, os elementos do affectus fidei da Igreja redimida, presentes no lirismo da
narração melódico-textual expressa pelo diácono. Parte-se da análise antropológica
dos sentimentos humanos e de sua dimensão intersubjetiva; apresenta-se o contexto
histórico e litúrgico do Exultet e, finalmente, analisam-se as expressões dos
sentimentos. Os resultados, mesmo que sumários, evidenciam, sobretudo, a
importância da lex orandi na transmissão-expressão da fé/salvação experimentada
per ritus et preces.

Palavras-chave: Exultet; Sentimentos; Liturgia; Vigília Pascal; Igreja.

Abstract: The first part of the Easter Vigil has its climax in the diaconal chanting of
the Exultet. The objective of the present article is to present, in a synthetic form, the

*. Dom Jerônimo Pereira é monge beneditino do Mosteiro de São Bento de Olinda, desde
1996. Mestre em Teologia com especialização em Liturgia Pastoral, pelo Instituto de Liturgia
Pastoral de Santa Justina (Pádua – 2012) e doutor em Sagrada Liturgia pelo Pontifício Instituto
Litúrgico de Roma, Santo Anselmo (2016). É membro da Equipe de Reflexão teológico-pastoral
da Comissão Episcopal Pastoral para a Liturgia da CNBB e do Centro de Liturgia Dom Clemente
Isnard. Atualmente é docente de liturgia nos Institutos italianos de Liturgia, de Pádua e de Roma,
na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e nos Cursos de Pós-graduação Lato Sensu
em Liturgia, Arquitetura e Arte Sacra e Música, do Centro Universitário Salesiano
(UNISAL)/Campus Pio XI, São Paulo. O autor tem várias publicações no Brasil (na Revista de
Liturgia) e na Itália. Entre elas destacam-se: “O paradigma Lectio cum cantico no Ordo
Pænitentiæ”. Ecclesia Orans, Roma, v. 32, p. 361-386, 2015; ‘“Quod ore sumpsimus, Domine,
pura mente capiamus’. A sacramentalidade do aparato bucal nos sacramentos da iniciação
cristã”. Roma: CLV-Ed. Liturgiche, 2017; “O culto dos santos no Ofício Divino das Comunidades”.
Revista de Liturgia, São Paulo, v. 46, n. 272, p. 18-22, 2019.

1
elements of the affectus fidei of the redeemed Church, present in the lyricism of the
melodic-textual narration expressed by the deacon. We begin with the
anthropological analysis of human feelings and their inter-subjective dimension; we
introduce the historical and liturgical context of the Exultet and finally analyse the
expression of these feelings. The results, even if summarized, make evident, clearly
and above all, the importance of the lex orandi in the transmission-expression of the
faith/salvation experienced per ritus and preces.

Keywords: Exultet; Feelings; Liturgy; Easter Vigil; Church.

Introdução

Nos últimos anos muito se tem usado os termos lex orandi, lex credendi para
dizer como a oração é a expressão normativa da fé, daquilo em que realmente
acreditamos.

A celebração do Tríduo Pascal poderia apresentar-se como o mapa de nossa


convicta adesão ao Mistério da gloriosa morte e ressurreição de nosso Senhor Jesus
Cristo, testemunhada por uma participação ativa e cuidadosa em nossas celebrações,
um esplêndido sinal de uma comunidade cristã que alcança, pronta e “cintilante”, sua
meta, no vértice do ano litúrgico.

Sabemos bem que os ritos não podem ser improvisados e que, como em todas
as festas bem-sucedidas, eles devem ser preparados de modo que até mesmo a forma
externa exprima a grandeza e a profundidade do que se celebra.

Tendo dito isso como uma reflexão entre o já sabido e o desejado, entramos no
tríptico da Páscoa,1 três momentos de uma única ação salvadora a que estão ligados,

1. Nos fins do IV século, Santo Ambrósio usa a expressão Triduum sacrum para indicar
os dias nos quais fazemos a memória da paixão de Cristo, de seu repouso no sepulcro e de seu
ressurgir dos mortos (AMBROSIUS. Epistula 23,13: Triduum illum sacrum... intra quod et passus
est et quievit et resurrexit). Santo Agostinho, alguns anos depois, o chama de Sacratissimum
triduum crucifixi, sepulti suscitati (Augustinus. Epistula 55, 24). Cf. SCICOLONGE. La
celebrazione del triduo pasquale; CATELLA; REMONDI. Celebrare l’unità del Triduo Pasquale. v.
I: Il Triduo oggi e il Prologo del Giovedì santo; ID. Celebrare l’unità del Triduo Pasquale. v. II:
Venerdì santo; ID. Celebrare l’unità del Triduo Pasquale. v. III: Una Veglia illuminata
dall’Assente. Para os ritos ocidentais não romanos – Rito Ambrosiano, cf. VALLI. La santa messa
in Cena Domini nella liturgia ambrosiana; ID. Passione e deposizione del Signore nel rito
ambrosiano; ID. La vigilia pasquale nel rito ambrosiano. I: I riti lucernali; ID. La vigilia pasquale
nella liturgia ambrosiana. II: La catechesi veterotestamentaria; ID. La veglia pasquale nella
liturgia ambrosiana. III: Dall'anuncio della risurrezione ai riti conclusivi; ID. I formulari eucaristici
del giorno di pasqua nella liturgia ambrosiana; ID. Il triduo pasquale ambrosiano. Rito Moçárabe
ou visigótico, cf. PINEL. La semana santa en el antiguo rito hispânico, p. 237-275.

2
graças à restauração litúrgia iniciada com Pio XII2 e concluída pelo Vaticano II,3 da
Missa in coena Domini à Grande Vigília Pascal, a única desse tríptico, se olharmos
atentamente, que termina com a despedida. Mesmo o pequeno detalhe enfatiza essa
unidade, dado que, na Quinta e na Sexta-Feira Santas, a Assembleia se dissolve em
um silêncio orante que continua, no indivíduo, a adoração da Igreja.

Três dias intensos e preciosos nos quais seguimos os passos de Jesus nos lugares
e acontecimentos que caracterizaram os últimos três dias de sua vida terrena, a partir
da Eucaristia no Cenáculo até a grande vigília pascal.

A vigília pascal

Por antiquíssima tradição, essa é “a noite de vigília em honra do Senhor” (Ex


12,42), justamente chamada de “vigília mãe de todas as vigílias” (Santo Agostinho), a
“noite mais santa”.4 Nessa noite, o Senhor “passou” para salvar e libertar seu povo
oprimido pela escravidão; nessa noite, Cristo “passou” à vida, vencendo a morte; essa
noite é uma celebração-memorial de nossa “passagem” em Deus, através do Batismo,
da Confirmação e da Eucaristia. Vigiar é uma atitude permanente da Igreja que, embora
consciente da constante presença viva de seu Senhor em seu meio, aguarda a sua vinda
definitiva, quando a Páscoa será celebrada nas núpcias etarnas com o Esposo e no
banquete da vida (cf. Ap 19,7-9).

Toda a Igreja a vive em escuta atenta da Palavra e na participação nos


sacramentos.5 Tudo nessa noite é cheio de sinais, símbolos e lirismo. Um dos pontos
altos desta noite é, sem sombra de dúvidas, o canto do Praeconium Paschale ou Exultet.

Qualquer pessoa que participa à Liturgia da luz, ou Lucernário, que abre a solene
Vigília Pascal na noite santa, se encontra extasiado diante do canto de louvor à luz, o
Precônio Pascal, entoado pelo diácono. Quem escuta atentamente o canto do anúncio

2. Cf. BRAGA. La riforma liturgica di Pio XII, p. 49-79.


3 . Cf. CALENDARIUM Romanum, p. 11-22; LESSI-ARIOSTO; VITALI. Il calendario
litúrgico; REGAN. Dall’Avvento alla Pentecoste.
4. Cf. AMIET. La veillée pascale dan l'église latine. v. I. p. 9.
5. “Fratres caríssimi, hac sacratíssima nocte, in qua Dóminus noster Iesus Christus de
morte transívit ad vitam, Ecclésia invítat fílios dispérsos per orbem terrárum, ut ad vigilándum
et orándum convéniant. Si ita memóriam egérimus Páschatis Dómini, audiéntes verbum et
celebrántes mystéria eius, spem habébimus participándi triúmphum eius de morte et vivéndi
cum ipso in Deo”. Exortação ao início da Vigília Pascal. In: MISSALE Romanum, p. 338.

3
da Páscoa, não pode negar que seu conteúdo exprime abundantemente a presença de
uma linguagem carregada de sentimentos. Tal constatação é o ponto de partida desta
nossa exposição.

Pensando teologicamente, o fato de enfatizar o uso de expressões de sentimentos


dentro de um texto litúrgico apresenta-nos pelo menos uma questão: quão importantes
são essas expressões para a transmissão da fé e sua celebração? Durante um longo
período histórico, os elementos mais importantes da fé cristã, não foram baseados no
sentir, mas no uso da razão. A linguagem noética pareceu a mais apropriada para a
expressão da fé em fórmulas de alta carga racional, iluminadas pela “objetividade” da
revelação.

No entanto, a Liturgia sabe de si mesma que suas expressões, sem abandonar o


campo do racional, transcendem à linguagem meramente teológica para expressar o
indizível. Este horizonte nos permite perguntar a nós mesmos: a presença dos
sentimentos e suas expressões dentro de um texto litúrgico como o da Páscoa é
fundamental? Ou talvez essas expressões sejam importantes, mas não fundamentais?
Ou se poderia objetar que elas poderiam ser removidas ou alteradas no texto sem afetar
seu valor?

Antes de entrarmos em nossa exposição, advertimos que, por causa de nosso


escopo e espaço, nossa pesquisa não se move em campo especificamente litúrgico-
ritual, limitando-se apenas a fazer pequenos acenos, mas litúrgico-pastoral-espiritual.
Pela mesma razão, ao longo do texto, não dedicamos uma análise patrística do tema.

1. Uma parte complexa do aparato psíquico do ser humano: emoções e


sentimentos

Desde a descrição do homem feita por Aristóteles, onde, além da razão, existem
pulsações que o levam a agir com um impulso diferente,6 passando por Pascal com seu
famoso axioma “O coração tem razões que a razão não compreende”7 até chegar aos
tempos modernos, onde filósofos, psicólogos, pesquisadores da neurociência
procuraram dar um nome, um motivo, uma classificação exata às emoções e aos
sentimentos, tão óbvios e tão complexos para todo ser humano, que não há nenhum

6. Cf: ARISTÓTELES. Ética nicomáquea.


7. PASCAL. Pensieri, p. 58-59.

4
estudo que comporte um consenso importante. Fato é que emoções e sentimentos
desempenham um papel de máxima relevância na concepção integral do ser humano.
Mesmo assim, segundo as palavras de Fehr e Russell, “todo mundo sabe o que é uma
emoção, até que lhe seja solicitado defini-la; nesse momento, parece que ninguém
sabe”. 8 A melhor evidência desta falta de unidade pode ser encontrada no uso
indiscriminado desses termos, sem mais detalhes e tão frequentemente intercambiáveis
uns com os outros, nas obras filosóficas e psicológicas, do passado e dos nossos dias.
No entanto, em geral, alguns pontos comuns são aceitos, o que pode ser suficiente para
nosso estudo.9 Com base nisso, delineamos algumas definições orientadoras, capazes
de nos conduzir a uma interpretação adequada das mesmas, no campo litúrgico.

1.1 As emoções

O termo “Emoção” vem do latim “emotionem”, e é formado pela partícula “e”,


que adiciona força à ação expressa pela palavra à qual está unida, e pelo verbo
“movere” que significa “mover”, “agitar”, “transportar para fora”. 10 Desse vocábulo
torna-se possível entender sua natureza básica: situação que afeta a química corporal
e conduz a uma determinada ação.11 Esta abordagem induz ao conceito de emoção
como “perturbação intensa”, desencadeada por um “evento originador”, que “modifica
o estado do organismo”12 e que exige uma “avaliação subjetiva”, que determina uma
certa “reação como resposta” à dita situação.

Apesar do fato de que as combinações de elementos apontem um número


indeterminado de emoções, a reação intensa é geralmente identificada com as
chamadas “emoções fundamentais”, ou seja, com “o medo, a raiva, a tristeza e a
alegria, reconhecidas em todas as culturas do mundo”. 13 Por sua vez, as emoções
fundamentais podem se relacionar facilmente com os princípios freudianos14 de eros

8. CHERUBINI. Psicologia Generale, p. 494.


9. Seguimos, em linhas gerais, o quanto indicado por CHERUBINI. Psicologia Generale,
p. 494-495; GALIMBERTI. Emozione, p. 332-337, 866-867; GOLEMAN. Intelligenza Emotiva;
LUCAS LUCAS. Explícame la persona; PALUZZI. Manuale di Psicologia; REBER.
Emotiva/Emotività/Emozione, p. 275-279.
10 Cf. PIANIGIANI. Emozióne, p. 464; GOLEMAN. Intelligenza emotiva, p. 24.
11. Cf. DAMASIO. Emozione e coscienza.
12. Cf. Por causa dessa mudança no estado do organismo, provocada por fatores ligados
à corrente sanguínea (DALLA VOLTA. Emozioni, p. 208), há quem sustente que “emoção” poderia
estar ligada etimologicamente também ao termo grego antigo αἷµα, αἵµατος (hàima, hàimatos =
sangue). Cf. REBER. Emotiva/Emotività/Emozione, p. 275.
13. GOLEMAN. Intelligenza emotiva, p. 462.
14. Cf. FREUD. L’Io e L’Es e atri scritti 1917-1923.

5
(alegria, em todas as suas variantes) e thanatos (o medo, a raiva e a tristeza, em suas
diferentes possibilidades); esse pensamento se torna mais claro em Goleman, ao
afirmar que as emoções “realmente representam a diferença entre a vida e a morte”.15

1.2 Os sentimentos

Etimologicamente, podemos decompor o termo “sentimento” em duas palavras,


sentidos e mente, que bem descrevem sua natureza: algo que, vindo dos sentidos, é
assimilado pela capacidade mental do sujeito. Como sublinhado, o termo foi usado,
muitas vezes, para determinar estados de ânimo e processos de pensamento facilmente
intercambiáveis pelas emoções; de fato, sua gênese requer contato com uma emoção
e sua estrutura é muito semelhante, respeitando certas nuances.16

Uma definição possível de sentimento poderia ser: “uma sensação menos intensa
e mais duradoura que uma emoção”, desencadeada por um “evento originador ou sua
memória”, que “modifica o humor e, por vezes, o organismo de um sujeito” e que requer
uma “avaliação subjetiva”, que determina um certo “comportamento como resposta ao
objeto associado” à dita situação. A dependência de memórias e julgamentos subjetivos
fortalece a natureza privada dos sentimentos. Mesmo com essas nuances, sua relação
com as emoções fundamentais e os princípios da vida e da morte permanecem intactos,
criando “sentimentos de alerta”, como mecanismo básico de sobrevivência psíquica.17

1.3 Diferenças entre emoções e sentimentos

A linha de separação entre esses dois conceitos não é muito clara; entretanto,
em todos os estudos analisados, há concordância em diferenciá-los nos seguintes
elementos:

• Intensidade e duração: a emoção é sempre mais intensa, porém menos


duradoura; o sentimento, mais duradouro, porém menos intenso.

• Evento originador: na emoção, de tipo objetivo; no sentimento, sempre com


um traço mais subjetivo.

15. GOLEMAN. Intelligenza Emotiva, p. 24.


16. Cf. IZARD. Human emotions; LAZARUS. Thoughts on the relations between emotion
and cognition, p. 1019-1024; STRONGMAN. The psychology of emotion; BUCK. Human
motivation and emotion; HAMILTON; BOWER; FRIJDA. Cognitive perspectives on emotion and
motivation; CLARK. Emotion.
17. Cf. LESTER. Attitudes devant la mort et conduites religieuses, p. 107-127.

6
• Modificações no sujeito: na emoção, principalmente de tipo fisiológica; no
sentimento, preferivelmente de tipo psicológico.

• Tipo de resposta: na emoção, a resposta é mais instintiva; no sentimento, a


resposta é direcionada para um objeto que é aceito ou rejeitado com maior capacidade
racional.

Estas diferenças estão tão intimamente ligadas entre si que, muitas vezes, as
emoções se tornam sentimentos; mas, quando estes mudam o valor dos objetos de seu
afeto, podem retornar ao estado de emoção e, novamente, gerar novos sentimentos.
Pode-se então concluir que toda emoção é potencialmente um sentimento e que este,
por sua vez, é uma emoção prolongada no tempo.

1.4 Teria lugar para os sentimentos na liturgia? A subjetividade e a intersubjetividade


dos sentimentos

Por causa de sua característica de subjetividade, parece que os sentimentos não


encontram espaço na liturgia, devendo, por isso, ser relegados à esfera da piedade
popular ou individual - já observamos que uma característica fundamental dos
sentimentos é o fato de ser subjetivo. Isso não significa, todavia, que eles não possam
extrapolar a dimensão pessoal. Ramón Lucas Lucas nos dá uma solução para este
problema, quando afirma:

Os sentimentos podem ser divididos em dois grandes grupos, dependendo se são


dirigidos para a mesma pessoa em que ocorrem ou para pessoas diferentes. No
primeiro caso, se tem sentimentos egocêntricos; no segundo, sentimentos altruístas.18

Nessa perspectiva, os sentimentos também deixam a esfera do privado e entram


no campo social. Mas, seria isso suficiente para que eles pudessem ser considerados
como uma expressão de uma comunidade celebrativa, como requerido para seu
possível ingresso na liturgia? G. Bonaccorso, em sua descrição da intersubjetividade,
nos fornece novos elementos de julgamento para ampliar o escopo dos sentimentos nas
relações sócio-culturais. Para o liturgista italiano existe uma maneira de tornar o
subjetivo algo intersubjetivo:

A pergunta mais obvia é como seja possível integrar os dois aspectos: o primeiro
[a primeira pessoa - subjetividade] e o terceiro [a terceira pessoa - objetividade]. Um
caminho a não desconsiderar é o segundo [a segunda pessoa], isto é, a possibilidade

18. LUCAS LUCAS. Explícame la persona, p. 133.

7
da parte do primeiro de confrontar suas próprias experiências subjetivas com as
experiências subjetivas dos outros.19

A característica altruísta e sua possibilidade intersubjetiva tornam certos


sentimentos verdadeiras expressões coletivas, capazes de celebrar os mistérios da fé.20
Outro ponto interrogativo se impõe: existe alguma emoção fundamental, que seja
celebrada pela Liturgia, capaz de envolver a intersubjetividade da Igreja, em torno dos
mesmos sentimentos? A Sagrada Escritura pode claramente nos dar a resposta.

2. A emoção primordial da salvação convertida em sentimento

Embora possa haver diversas abordagens sobre a procura do momento


fundacional do fato religioso, tanto do judaísmo como precursor do cristianismo, quanto
do próprio cristianismo, a leitura teológica, que parte dos dados revelados como uma
expressão de fé, direciona, principalmente, sua atenção para a intervenção salvadora
de Deus em favor de seu povo, evidenciada em diferentes momentos e intensidades,
mas sempre ligada a um dado primordial: a Páscoa.

2.1 A “Páscoa de Israel”

Sem entrar em maiores detalhes, é geralmente admitido que o evento


fundacional do povo de Israel tenha como referência o episódio Páscoa, como um evento
libertador e a fonte de todo seu desenvolvimento subsequente. Os elementos
fundamentais que apontamos para emoções e sentimentos estão presentes neste
momento iniciante e disto as Sagradas Escrituras constituem a mais fiel das
testemunhas. É suficiente nos referirmos a algumas passagens contidas no livro de
Êxodo, no contexto da Primeira Páscoa.

• Evento originador: Redução à escravidão (Ex 1,13), morte dos filhos dos
hebreus (Ex 1,16.22), trabalho escravo (Ex 1,14; 5,9), pragas contra o Egito (Ex 7,14-
12,36) e proteção dos israelitas (Ex 8,18; 9,4.7.26; 11,7), perseguição após a partida
(Ex 14,9), morte do inimigo (Ex 14,28).

19. BONACCORSO. L’emozione a livello antropologico e religioso, p. 11.


20. Cf. MANGANARO. Alterità e esperienza mistica.

8
• Estado de perturbação ou sensação do povo: vida insuportável com trabalhos
forçados (Ex 1,14), medo intenso (Ex 14,10.13), salvação (Ex 12,27; 14,30), contínua
companhia (Ex 13,22), segurança (Ex 14,8.19-20).

• Avaliação subjetiva: negativa diante da opressão (Ex 5,15), negativa a respeito


de Moisés (Ex 5,21; 14,11-12), positiva diante da possibilidade da saída da escravidão
e frente à morte do perseguidor (Ex 14,28).

• Variações de humor do povo: submissão (Ex 14,12), desânimo (Ex 6,9),


rejeição de Moisés (Ex 6,12), confiança em Yhwh e em Moisés (Ex 14,30).

• Reação ou comportamento: gemer e clamar a Deus (Ex 2,23-24; 3,20; 14,10)


com gritos de dor (Ex 3,7), prostrar-se para adorar (Ex 4,31; 12,27), lembrar e celebrar
(Ex 12,25; 13,10), cantar e dançar (Ex 15,1-19.21).

Diante da experiência da Páscoa, é fácil notar um movimento pendular entre


situações que arrastam o povo para experiências negativas, pulsão de morte, e
positivas, impulso de vida; cada evento desencadeia um sentimento diverso no povo,
que, de acordo com sua avaliação, altera seu estado de espírito e o leva a realizar
determinadas ações; quanto mais impactante a experiência negativa, tanto maior a
expressão de alegria que a segue.

2.2 A “Páscoa dos Cristãos”

Bento XVI recordou que “não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou
uma grande ideia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma pessoa”.21 Por
esta razão, também na Páscoa de Jesus, a partir da perspectiva do discípulo, podemos
encontrar uma série de sentimentos que constituem o momento fundamental do próprio
cristianismo e, ao mesmo tempo, da vida cristã pessoal:

• Evento originador: traição (Mt 26,25; Mc 14,18; Lc 22,21), negação (Mt 26,34;
Mc 14,30; Lc 22,55-60), captura (Mt 26,50; Mc 14,46; Lc 22,54), sentença de morte
(Mt 26,66; Mc 14,64), ultrajes (Mt 27,26-31; Mc 14,65; 15,15-20; Cf. Mt 26,69-74; Mc
14,66-72; Lc 22,55-60.63-65), crucifixão (Mt 27,35; Mc 15,24), morte (Mt 27,50; Mc
15,37; Lc 23,46), ressurreição (Mt 28,2.6), aparição (Mt 28, 9-10. 16-20; Mc 16, 9-19;
Lc 24, 13-52).

21. BENEDICTUS XVI. Literae Encyclicae Deus caritas est, p. 217.

9
• Perturbação ou sensação dos discípulos: aflição e tristeza (Mt 26,22; Mc 14,19;
16,10), remorso (Mt 27,3-4), surpresa (Mc 16,5), temor (Lc 24,5), admiração (Lc
24,12.32), ausência de medo (Mt 28,5; Mc 16,6), temor e alegria intensa (Mt 28,8; Mc
16,8; Lc 24,37), incredulidade (Mc 16,11.13; Lc 24,11).

• Avaliação subjetiva: negativa diante da paixão, perplexa em face da


ressurreição e imediatamente positiva.

• Modificações no humor dos discípulos: perplexidade (Lc 22,23; 24,12), coragem


(Mc 16,20; Lc 22,50), tristeza (Lc 24,17), amargura (Mt 26,75; Mc 14,72; Lc 22,62),
audácia e coragem para pedir o corpo (Mt 27,57; Mc 15,43; Lc 23,50-52), alegria
intensa (Lc 24,12).

• Reação ou comportamento: violência contra o sequestrador (Mt 26,51; Mc


14,47; Lc 22,50), abandono e fuga (Mt 26,56; Mc 14,50), mentira (Mt 26,69-75; Mc
14,66-72; Lc 22,55-60), choro amargo (Mt 26,75; Mc 14,72; Lc 22,62), lamentos (Lc
23,27.48), permanência (Mt 27,55-56.61; Mc 15,47; Lc 23,49), abraçar e adorar (Mt
28,9.17), anunciar (Mc 16,13.20; Lc 24,9-10).

Da mesma forma que os acontecimentos da Páscoa judaica foram fatos


desencadeadores de diferentes emoções e sentimentos no povo que os vivenciaram,
durante a paixão, a morte, a ressurreição e a manifestação do Senhor, os discípulos
experimentaram emoções e sentimentos ligados às pulsões de vida ou morte já
indicados. Mais uma vez, o movimento pendular nos permite observar que, quanto mais
se aproxima a possibilidade da morte, mais intensa é a resposta gerada.

Esses sentimentos não foram circunscritos apenas às testemunhas oculares do


evento. O testemunho de Egéria, consignado em seu diário de visita à Terra Santa (V
século), nos lembra que:

Em cada uma das leituras e orações, há tanto sentimento! O povo se emociona,


geme e soluça admiravelmente. Não há ninguém, grande ou pequeno, que não chore,
naquele dia, durante aquelas três horas, tanto quanto o que possa acreditar ter o
Senhor padecido tão grande sofrimento por nós.22

Ao mesmo tempo, podemos nos aventurar a pensar quais são os sentimentos de


um cristão que, em um movimento pendular em direção à morte física ou moral, tendo
sido capaz de ler em sua própria vida os instantes que desencadeiam sentimentos duros

22. EGERIA. Peregrinatio aetheriae, p. 54.

10
e difíceis, como o sofrimento, a traição, a dor, o abandono, o pecado, e o seu momento
posterior de graça e salvação, oferecido por Deus; ainda mais especificamente, a tensão
de um catecúmeno esperando para ser admitido, apesar de seus pecados; a ansiedade
de um penitente que espera a remissão dos pecados; a angústia de um moribundo que
se encontra às portas da morte, entre muitas outras situações. Todos eles, através da
recordação de um evento que desencadeia sentimentos, podem renovar a carga
emotiva e sentimental que os leva a expressar a alegria de uma salvação iminente.

2.3 A emoção da Páscoa e o sentimento dos cristãos

Na Páscoa, tanto a figura quanto o cumprimento, falando em termos tipológicos,


entram sem dificuldade no esquema referente à emoção que descrevemos e, portanto,
tem todo o potencial para ser a razão de um verdadeiro sentimento cristão, que tem
como objeto Cristo e o relacionamento com Ele (altruísmo), compartilhado com os
membros da Igreja (intersubjetivismo). Podemos acrescentar um último elemento de
máxima importância, seguindo o pensamento de Bonaccorso, que é a duração no tempo
de um sentimento muito importante que se transmite através da narração histórica da
experiência do mito, vivida sob a influência das emoções:

O mito é a modalidade religiosa que expressa o encontro entre a emoção e a história


[...]. Graças ao envolvimento das emoções, o mito promove a certeza [convicção de
que é real] do evento sagrado e graças à sua forma narrativa, o mito permite preservar
a certeza do evento sagrado [...]. O mito não é a memória do evento, mas a memória
das emoções ligadas a esse evento [...]. A narração é uma forma expressiva da
emoção que implica já o encontro entre vários indivíduos e a troca recíproca de
experiências.23

Sendo essencial para o crente os sentimentos que lhe permitem transmitir os


fundamentos da fé que professa, devemos nos perguntar como seria possível expressar
esses sentimentos tão elevados, e, ao mesmo tempo, tão próximos à própria realidade.
As realidades que não podem ser explicadas pela razão encontram seu veículo mais
apropriado na arte; a arte, o canto, a dança, a poesia, entre outras, se tornaram,
também, expressões litúrgicas.24

23. BONACCORSO. L'emozione a livello antropologico e religioso, p. 40-41.


24. Sobre o tema, cf. ROSS. Affect as cognition, p. 79-93; L'UOMO di fronte all'arte;
TOMATIS. Accende lumen sensibus; BONACCORSO. L'estetica del rito; PALAZZO. L’invention
chrétienne des cinq sens dans la liturgie et l’art au Moyen Âge; GIRARDI. Liturgia e emozione.

11
3. Um canto que expressa o sentimento de ser salvo

A emoção da salvação, operada por Deus e recebida pela humanidade, exalta a


alma humana a ponto de esta sentir necessidade de recorrer a expressões como a
música e a poesia para manifestar seus sentimentos. Esse pode ser o caminho mais
fácil e seguro para explicar a gênese da Proclamação da Páscoa (Praeconium Paschale),
que, no âmbito da celebração anual da única obra de salvação, forjado na ressurreição
de Cristo dentre os mortos, se torna a profissão de fé “de um povo em festa”25 por
causa do anúncio dessa boa nova.

3.1 O Exultet. Um pouco da sua história26

O canto do Exultet representa o ponto culminante da primeira parte da solene


Vigília da Páscoa: uma explosão de alegria na celebração da luz. Depois da bênção do
fogo novo e da procissão com o triplo Lumen Christi, o diácono pede a bênção e, depois
de incensar o livro, anuncia solenemente ao povo, a partir do ambão: esta é a noite em
que Cristo venceu as trevas do mundo, a noite em que Cristo, com seu sacrifício,
reconcilia seus filhos com Deus Pai e, em seu poder divino, os perdoa; é a noite em que
brilha a luz de Cristo.

O ambão, tradicional, simbólica e mistagogicamente, para além do nível de


praticidade funcional, apresenta-se ao longo da história como o jardim-esposa, o túmulo
vazio, o Monumentum resurrectionis, dedicado às miróforas e a Maria Madalena. 27

25. Cf. MISSALE Romanum, p. 347.


26. PINELL. La Benedicciò del Ciri pasqual i els sens textos; RIGHETTI. Storia Liturgica,
p. 255-264. v. II; BARGELLINI. L’Exsultet, Solenne benedizione a Dio sul cero pasquale, p. 65-
88, v. III; SUÑOL. Versione critica del “Praeconium Paschale” ambrosianum, p. 77-85; GAJARD.
Le chant de l’Exultet, p. 50-69; LATIL. De Praeconio paschali, p. 123-132; ID. Le miniature nei
rotoli dell’Exultet; AVERY. The Exultet Roll of south Italia; BERTAUX. L’Art dans l’Italie
méridionale, p. 213-240; VENTURI. Storia dell’arte italiana, p. 726s; CAPELLE. L’“Exultet” pascal
ouvre de saint Ambroise, p. 219-246; HUGLO. L’Auteur de l’exultet pascal, 7, p. 79-88;
MALHERBE. Les abeilles de l’Exsultet, p. 61-73. Infelizmente, nesse artigo não temos como nos
ocuparmos da melodia do Exultet; os que se interessarem pelo tema, ver: BENOIT-CASTELLI.
Le “praeconium paschale”, p. 309-334.
27. Sobre o ambão, cf. ORDO Benedictionis Occasione data auspicandi novum ambonem,
p. 345-350; BOSELLI. L’Ambone, tavola della parola di Dio; ID. Spazio liturgico e orientamento;
CAPOMACCIO. Il presbiterio, l’altare e l’ambone, p. 59-80; ID. Monumentum Resurrectionis.
GEMMA. Ambone e altare, p. 47-58; LETO. L’ambone, p. 135-168; MALACARNE; BALDESSERI.
Gli spazi liturgici della celebrazione rituale, p. 131-160; MILITELLO. La casa del popolo di Dio;
POZZO. Luoghi della celebrazione “sub specie iusti; VALENZIANO. L’Ambone, icona spaziale della
risurrezione, p. 11-26; ID. Ambone e candelabro, p. 67-125; VALENZIANO. L’ambone del duomo
di Pisa; ID. Architetti di chiesa, 2005.

12
Daquele lugar elevado e reservado para a proclamação da Palavra de Deus, o diácono,
segundo a mistagogia dos Padres do Oriente, representa o anjo que traz as boas novas
da ressurreição de Cristo.

O texto começa com a palavra Exultet, vocábulo do qual vem o nome dos rótulos
de pergaminho sobre o qual era escrito; ainda hoje esse hino é geralmente conhecido
com esse nome, em alternativa a Laus cerei, Benedictio cerei ou Praeconium Paschale.

O Precônio Pascal, que entrou no rito romano já na Baixa Idade Média, tem uma
origem muito remota: entre os exemplos mais antigos estão as fontes galicanas do
Missale Gothicum de Autun (século VII) e do Missale Gallicanum Vetus (séc. VII-VIII);
destes passou para os Sacramentários francos gelasianos, depois para os
Sacramentários gregorianos; e, finalmente, entrou definitivamente na liturgia romana,
como muitos outros cantos e ritos galicanos.

Na Itália central e, sobretudo, meridional, manteve-se uma tradição autônoma,


consolidada com a escrita beneventana, na qual o texto do Precônio era diferente das
versões galicanas. Nessas regiões, a Benedictio cerei era escrita em longos rolos de
pergaminho que o diácono colocava sobre o ambão.

Trata-se de um hino muito antigo, cujas origens se encontram no Laus Caerei,


que já no IV século o diácono cantava como uma solene bênção a Deus na vigília
pascal,28 que, por sua vez, tem suas raízes na tradição bíblico-judaica da bênção da luz
na vigília do Shabat; da bênção da luz da Festa da Dedicação, também chamada de
Festa das Luzes e da bênção das luzes do fogo, no final do sábado.29

O rito da luz desenvolveu-se tanto nas liturgias orientais quanto ocidentais; entre
as fórmulas cristãs mais antigas chegou até nós a da bênção da luz vespertina, confiada
ao diácono, contida na Traditio apostolica (século II) e nas Constituições Apostólicas
(século IV). Tal celebração litúrgica tornou-se a eucharistia lucernalis, nos ritos
ambrosianos e moçárabes. Em Roma (séc. I-II) celebrava-se o lucernário em grego,
para o qual foram compostos hinos, tais como o antiquíssimo Phôs ‘ilaròn, Luz alegre,
que remonta ao I século. A Peregrinatio Aetheriae testemunha o rito da luz celebrado

28. A luz sempre teve um valor simbólico central na teologia cristã (é suficiente recordar
o Evangelho de João). O ritual de acender a vela entrou na liturgia já no III século; antes não
havia o costume do uso de velas de cera na liturgia, mas o acendimento das luzes (lamparinas)
sempre teve grande importância ritual, especialmente quando a Eucaristia era realizada na
madrugada.
29. Cf. GIRAUDO. Questa è la notte di cui fu scritto.

13
em Jerusalém na Basílica do Santo Sepulcro. Durante esse tipo de liturgia, a tarefa de
acender as lâmpadas e iluminar a igreja era confiada aos diáconos; muito cedo este
ministério também foi enriquecido com a tarefa de compor e proclamar/cantar a relativa
oração.30

Somente no V século essa Laus cerei entrou em Roma, embora ainda não na
liturgia papal, mas na liturgia dos Títulus. Parece, no entanto, que em Milão esse canto
de louvor à luz já fosse conhecido no século IV, porque Santo Agostinho (413-426) diz
que compôs um deles, ainda que breve: “Eu expressei brevemente esses conceitos em
um elogio à vela (círio): estas coisas são Tuas e são boas porque Tu que és bom as
criaste. Nada de nós existe nelas, exceto que, ao violar a ordem, pecamos amando não
a Ti, mas o que por Ti é criado”.31

Os nomes do Pseudo-Hipólito (século II), de Astério Sofista (século IV) e Efrém


Sírio (século IV) atuam como fontes inspiradoras do Precônio, além de Santo Ambrósio
e Santo Agostinho.

30. Cf. PEREIRA SILVA. O “Lucernário” no Oficio Divino das Comunidades, p. 4-9.
31. AGOSTINHO. De Civitate Dei, XV, 22. Essa laus cerei foi escrita quando Agostinho
era diácono, de acordo com a epígrafe contida no Sacramentarium Gallicanum, publicado por J.
Mabillon (1632-1707) (Incipit benedictio cerei sancti padri Augustini episcopi quam adhuc
diaconus cum esset edidit e cecinit feliciter). Segundo o testemunho de Righetti (Storia Liturgica,
p. 268-270, v. I), a partir dessa passagem, os autores medievais acreditavam poder identificar
Agostino como o autor do Exultet. Não apenas Agostinho, mas outros também escreveram
Benedictio cerei: Ennodius (473-521), bispo de Pavia, mas de origem galicana, escreveu duas
Benedictiones cerei, compostas quando era diácono do bispo Lorenzo, em Milão. Enquanto o
texto de Agostino é evidentemente um resumo, as duas óperas ennodianas são integrais e,
portanto, muito interessantes e indicativas. Alguns estudiosos, tanto modernos quanto dos
séculos passados, também colocaram entre os testemunhos mais antigos um hino de Prudêncio
(348-405) Ad incensum lucernae, mas nem todos compartilham a opinião de que a oração se
referisse ao círio pascal. É certamente parte da família das Benedictiones a bênção do círio na
liturgia hispano-moçárabe, atribuída a Isidoro de Sevilha (560-636). O Precônio Pascal franco-
romano contido nos Sacramentários galicanos (Missal Gothicum de Autun e Missal Gallicanum
Vetus) foi incluído no Suplemento de Alcuíno e, depois, no Pontifical Romano-Germânico de
Magonza (século X), onde, no entanto, foram feitas algumas depurações de textos considerados
inadequados (em particular, a seção O certe necessarium ... redemptorem, onde se fala do
pecado de Adão e da felix culpa que foi causa de confusão). O Gallicanum Vetus o intitula com
a atribuição a Agostinho. A fonte celta, provavelmente compilada em Bobbio (final do século VII
– o Antifonário de Bangor), contém um Hymnum quando caeria benedicitur. O texto anônimo é
a versão completa de uma bênção atribuída a Santo Ambrósio e citada, em parte, em uma carta
de Alcuíno a Carlos Magno. A mais antiga evidência de uma laus cerei na liturgia de Roma (século
VII) encontra-se no Sacramentarium Gelasianum. O rito simples no Sacramentarium Gelasianum
usou a fórmula antigo-romana Deus mundi conditor, mas depois de algumas décadas,
juntamente com muitos outros elementos galicanos ou franco-romanos incluídos na liturgia, a
fórmula foi substituída pelo Exultet. Dos Ordines Romani (séc. VIII-IX) vêm outros testemunhos
importantes.

14
O texto pertence ao gênero literário da bênção de ação graças bíblica, muito
próximo à nossa Oração Eucarística. Como forma literária, temos uma narração dirigida
a Deus pelas obras que ele operou a nosso favor. Todo o texto explicita uma consciência
teológica de tipo sapiencial e contemplativa, nutrida pela admiração e adoração. O texto
nasce da contemplação da história da salvação, desde a criação do cosmos e do homem,
até o renascimento de todas as coisas através da Páscoa de Cristo, meditado, assimilado
na lectio divina, e, finalmente, escrito/traduzido em canto.

Em sua forma atual, o Precônio tem a seguinte estrutura: um invitatório inicial,


seguido de um protocolo, precedido por um diálogo similar, em todos os aspectos, ao
do Prefácio da Oração Eucarística; desenvolve-se, então, o texto que conta as
maravilhas de Deus, refazendo a história da salvação; canta um louvor à vela, à noite ...
Trata-se da primeira seção, anamnetico-celebrativa. A segunda seção, epiclética, se
divide em três momentos: o primeiro, em que se pede ao Pai que acolha o sacrificium
vespertinum; o segundo, em que se faz referência à coluna do Êxodo como prenúncio
do círio pascal; e o terceiro, em que se pede que a luz, Cristo, possa brilhar até a aurora.
É claríssimo o clímax ascendente desta seção: o sacrifício, que se cumpre no escuro,
com a luz que não conhece ocaso, ilumina a noite na qual está imerso. “Tudo expresso
com um alado lirismo poético, que, muitas vezes, dá rédeas soltas a emoções profundas
e sentimentos de alegria e fé”.32

3.2 Uma leitura dos sentimentos no Exultet

Sabemos que não existe uma maneira unívoca de abordar este argumento,
porque a riqueza do texto permite uma ampla gama de possibilidades: uma análise
semiológica, uma abordagem de tipo exegético, uma reconstrução evolutiva do texto...
para citar alguns. De nossa parte, vamos procurar sua estrutura narrativa, vinculada
às palavras que se referem à estrutura das emoções ou dos sentimentos, como até
agora temos abordado, e, então, desenvolver suas ideias no contexto da
intersubjetividade eclesial, dentro do espectro das pulsões de vida ou de morte. Para
tanto, dividimos o texto em cinco partes, a saber: convite à alegria e ao louvor;
recordação que motiva toda essa alegria; o louvor; o sacrifício do círio e a petição.33

3.2.1 Convite à alegria e ao louvor

32. BARGELLINI. L’Exultet, p. 79.


33. A tradução que apresentamos é uma tradução livre. Para a tradução oficial, cf.
MISSAL Romano, p. 274-276.

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Exsúltet iam angélica turba Exulte de alegria a multidão dos
cælórum: exsúltent divína mystéria et Anjos: exultem as assembleias celestes,
pro tanti Regis victória tuba ínsonet ressoem hinos de glória para anunciar o
salutáris. Gáudeat et tellus, tantis triunfo de tão grande Rei. Rejubile-se a
irradiáta fulgóribus et ætérni Regis terra, que em meio a tantas luzes
splendóre illustráta tótius orbis se séntiat resplandece, sabendo que o esplendor
amisísse calíginem. Lætétur et mater do eterno Rei dissipou a treva de todo o
Ecclésia tanti lúminis adornáta fulgóribus: mundo. Alegre-se a Igreja, nossa mãe,
et [magnis populórum vócibus hæc aula adornada com os fulgores de tão grande
resúltet]. luz e [ressoem neste templo as
aclamações do povo de Deus].

(E vós, irmãos caríssimos, aqui


(Quaprópter astántes vos, fratres
reunidos em torno da claridade dessa luz,
caríssimi ad tam miram huius sancti
invocai [comigo] a misericórdia de Deus
lúminis claritátem [una mecum], quæso
onipotente, para que, querendo Ele, sem
Dei omnipoténtis misericórdiam invocáte.
mérito algum da minha parte, admitir-me
Ut, qui me non meis méritis intra
no número dos seus levitas, infunda em
Levitárum númerum dignátus est
mim a claridade de sua luz, para que
aggregáre, lúminis sui claritátem
possa celebrar dignamente [os louvores
infúndens [cérei huius laudem implére
deste círio]).
perfíciat]).
V. O Senhor esteja convosco. R. Ele
V/ Dóminus vobíscum. R/ Et cum
está no meio de nós. V. Corações ao alto.
spíritu tuo. V/ Sursum corda. R/ Habémus
R. O nosso coração está em Deus. V.
ad Dóminum. V/ Grátias agámus Dómino
Demos graças ao Senhor, nosso Deus. R.
Deo nostro. R/ Dignum et iustum est.
É nosso dever e nossa salvação.

Quatro verbos, a saber, Exsúltet, gáudeat, séntiat e laetétur, determinam o


significado desta primeira parte: um evento que pode ser percebido (sentiat), isto é, o
desaparecimento da escuridão, muda o humor das criaturas que são nomeadas num
modo particular: de movimento descendente, começando com aquelas do Céu,
descendo em direção à Terra, da Igreja em geral para a comunidade local que celebra,
até alcançar o ministro que canta em primeira pessoa. Essas expressões determinam
os sujeitos dos sentimentos, bem como os sentimentos que devem acompanhá-los.

16
A escuridão que desaparece é o fato que desencadeia esses sentimentos e que
determina a ideia central, tanto nesta seção quanto do restante do texto. Essa é a
pulsão negativa de morte que abre o desenvolvimento do evento narrado: a escuridão,
percebida como o inimigo a ser vencido, foi derrotada por um poderoso Rei, pulsão
positiva, por meio de seu esplendor, que alcança toda a terra. Esta é a causa da alegria,
que se converte no mesmo momento na razão pela qual os louvores e as aclamações
do povo em comemoração devem ressoar, porque a luz que o círio traz é o mesmo
esplendor que pode vencer o mal, e sua causa eficiente é o próprio Deus, a quem os
pensamentos dos presentes devem ser dirigidos, com o convite do diálogo que conclui
essa parte.

3.2.2 Recordação que motiva toda essa alegria

Começa a seção anamnética, em que se distinguem narrativamente duas partes,


segundo o sujeito que o narrador está abordando: a comunidade e Deus. A primeira
parte enfatiza bem que esta reconstituição é feita “com todo o afeto do coração”. É
claro o movimento no âmbito da morte, do sacrifício, do sangue derramado como o
verdadeiro cordeiro pascal, e a memória do povo a respeito de sua maior experiência
no domínio do perigo de perder a vida, a Páscoa no Egito, bem como o pecado de Adão,
que trouxe a morte ao mundo.

Vere dignum et iustum est É verdadeiramente digno e justo


invisíbilem Deum Patrem omnipoténtem fazer soar os louvores do Deus invisível,
Filiúmque eius unigénitum, Dóminum Pai onipotente e do seu Filho Unigênito
nostrum Iesum Christum. Toto cordis ac Jesus Cristo, nosso Senhor com todo o
mentis afféctu et vocis ministério afeto da alma, do coração e com toda
personáre. Qui pro nobis ætérno Patri a nossa voz. Ele pagou por nós ao eterno
Adæ débitum solvit et véteris piáculi Pai a dívida por Adão contraída e com seu
cautiónem pio cruóre detérsit. Hæc sunt Sangue precioso dissolveu o débito do
enim festa paschália in quibus verus ille antigo crime. Estas são as festas pascais,
Agnus occíditur cuius sánguine postes em que o verdadeiro Cordeiro é imolado,
fidélium consecrántur. cujo Sangue consagra as portas dos fiéis.

A partir deste momento, como se pode deduzir pelo uso dos verbos, o
destinatário ao qual se dirige o ministro deixará de ser a Igreja congregada e passará
a ser Deus, que é o autor da ação admirável que mudou esta situação:

17
Hæc nox est, in qua primum patres Esta é a noite em que [libertastes]
nostros, fílios Israel [edúctos] de Ægypto do cativeiro do Egito os filhos de Israel,
Mare Rubrum sicco vestígio [transíre] nossos pais e os fizestes [atravessar] a pé
fecísti. Hæc ígitur nox est, quæ enxuto o Mar Vermelho. Esta é a noite em
peccatórum ténebras colúmnæ que a coluna luminosa as trevas do
illuminatióne purgávit. Hæc nox est, quæ pecado dissipou. Esta é a noite na qual
hódie per univérsum mundum in Christo por todo o mundo, [banidas] as trevas do
credéntes, a vítiis sæculi et calígine pecado, os crentes em Cristo são lavados.
peccatórum [segregátos], reddit grátiæ, Noite que os restitui à graça e os reúne
sóciat sanctitáti. Hæc nox est in qua, na sociedade dos santos. Esta é a noite na
destrúctis [vínculis mortis] Christus ab qual Cristo, destruindo as [cadeias da
ínferis victor [ascéndit]. Nihil enim morte] se [levantou] glorioso do túmulo.
nobis nasci prófuitnisi rédimi De nada nos serviria ter nascido se
profuísset. não tivéssemos sido resgatados.

Nesta seção, o juízo avaliativo dos eventos muda. A obra de Deus é


especialmente indicada por verbos de movimento – entre colchetes –, que geram o
acontecimento primordial: Jesus rompe as correntes que o aprisionavam,
transformando essas ações de movimento em atos salvíficos. No meio do relato
histórico do passado, a expressão que se refere a “esta noite” adquire um caráter
kairótico, em vez de temporal; por sua vez, a categoria do claro-escuro cósmica,
agregada à espiritual, indicadas pelas palavras que determinam sua presença material,
noite, escuridão, trevas, luz, iluminação, abre espaço também ao caráter moral,
pecado, graça, santidade. Esse duplo aspecto, kairótico e temporal, está unido em
Cristo, que determina a saída da situação de morte através da iluminação, que não é
apenas uma ação estética, mas, sobretudo, espiritual.

3.2.3 O louvor

O mira circa nos tuæ pietátis Ó, admirável condescendência da


dignátio! O inæstimábilis diléctio vossa graça! Ó, incomparável
caritátis: ut servum redímeres, Fílium predileção de caridade! Para redimir o
tradidísti! O certe necessárium Adæ servo, entregastes o Filho. Oh, necessário
peccátum, quod Christi morte delétum pecado de Adão, que foi destruído pela
est! O felix culpa, quæ talem ac tantum morte de Cristo! Ó, feliz culpa, que nos

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méruit habére Redemptórem! O vere mereceu um tão grande Redentor! Ó noite
beáta nox, quæ sola méruit scire tempus realmente bendita, somente tu
et horam, in qua Christus ab ínferis mereceste conhecer o tempo e a hora em
resurréxit! [Hæc nox est], de qua que Cristo ressuscitou do sepulcro! [Esta
scriptum est: et [nox sicut dies é a noite], da qual está escrito: a [noite
illuminábitur]: et nox illuminátio mea in iluminará como o dia] e me ilumina para
delíciis meis. Huius ígitur sanctificátio o meu deleite. Esta noite santa afugenta
noctis fugat scélera, culpas lavat et reddit os crimes, lava as culpas, restitui a
innocéntiam lapsis et mæstis lætítiam. inocência aos pecadores e aos tristes a
Fugat ódia, concórdiam parat et alegria. Dissipa os ódios estabelece a
curvat impéria. concórdia e dobra os poderosos.

O Pregão abriu-se convidando ao louvor e, nessa seção, o louvor se converte em


realidade. As expressões, carregadas de sentimentos, são abundantes e têm a mesma
estrutura: em torno da interjeição “Ó” o louvor se desenvolve. Os dados mais relevantes
fixam-se na valoração da palavra noite, que deixa de ser portadora de trevas, de
escuridão, das lembranças da traição, da rendição, da sepultura, e passa a ser “a noite
que é brilhante como o dia”, a “noite realmente bendita”. O efeito desta mudança de
valor na categoria "noturna” é uma interior transformação da antiga à nova condição,
onde os sentimentos positivos são abundantes. Esse tipo de relato da fé, pode explicar
a relação entre os cristãos e a noite, que se converteu no momento privilegiado para a
celebração dos grandes mistérios da fé: a Eucaristia comunitária, originariamente
noturna (cf.: At 20,7-12) e a celebração da Iniciação Cristã, típica da Vigília Pascal.34

3.2.4 O sacrifício do círio

O vere beáta nox in qua terrénis Ó, noite verdadeiramente feliz,


cæléstia, humánis divína iungúntur! In na qual a terra se une ao céu, e o homem
huius ígitur noctis grátia, [súscipe], se encontra com a divindade! Nesta noite
sancte Pater, laudis huius [sacrifícium] de graça, [recebei], Pai santo, o louvor
vespertínum, quod tibi in hac [cérei deste [sacrifício] vespertino que, na
oblatióne] solémni per ministrórum solene [oblação deste círio], fruto da
manus de opéribus apum, sacrosáncta operosidade da abelha, pelas mãos dos
reddit Ecclésia. Sed iam colúmnæ huius seus ministros vos apresenta a santa

34. Cf. RITUAL Romano. Ritual da Iniciação Cristã de Adultos.

19
præcónia nóvimus, quam in honórem Dei Igreja. Eis agora a coluna luminosa que,
rútilans ignis accéndit. Qui, [lícet sit em meio a cantos de louvor, uma chama
divísus in partes, mutuáti tamen lúminis de fogo acende em honra de Deus. Esta
detrimenta non novit]. Alitur enim [não perde o seu brilho ao ser dividida em
liquántibus ceris quas in substántiam partes]. Esta chama se alimenta de cera
pretiósæ huius lámpadis apis mater produzida pelo trabalho das abelhas para
edúxit. formar este precioso luzeiro.

Tendo a Louvação chegado ao seu ápice na seção anterior, essa de agora coroa,
magistralmente, a simbologia desta liturgia. A “noite verdadeiramente feliz”,
transformada pela luz que é o próprio Cristo, se concretiza na profissão de fé na
divindade encarnada, que se faz mistagogicamente visível no sinal sensível do círio,
portador do esplendor do Rei que rompeu os grilhões, que, todavia, se apresenta
revestido de uma natureza criada representada pela coluna de cera, que carrega em si
as chagas-marcas da paixão (cf.: Jo 20,24-29). Agora o sacrifício que é oferecido, não
é somente o fato de ver como se derrete a cera para manter viva a chama, mas a
significação de Cristo sacrificado que, mesmo após a oferta de si mesmo, continua vivo
em todo crente, sem diminuir sua natureza.

3.2.5 Apetição

Orámus ergo te, Dómine, ut céreus Nós Vos pedimos, Senhor, que este
iste in honórem tui nóminis consecrátus, círio, consagrado ao vosso nome [para
[ad noctis huius calíginem destruéndam], destruir as trevas da noite] arda
indefíciens persevéret. Et in odórem incessantemente e, aceito por Vós como
suavitátis accéptus, supérnis lumináribus suave perfume, misture a sua claridade à
misceátur. Flammas eius lúcifer das estrelas do céu. Que sua chama
matutínus invéniat: ille, inquam, lúcifer, (permaneça) até a chegada da luz
qui nescit occásum: Christus Fílius tuus, matutina: Aquela luz que não conhece
qui, regréssus ab ínferis, humáno géneri ocaso: Jesus Cristo, vosso Filho, que,
serénus illúxit, et vivit et regnat in ressuscitando de entre os mortos,
sæcula sæculórum. R/ Amen. iluminou o gênero humano com a sua
paz, e vive e reina pelos séculos dos
séculos. R / Amém.

20
Depois do movimento descendente do início da Louvação e a passagem pelas
realidades terrenas, a última petição voltou a levantar os olhos ao céu, implorando ao
Pai elevar ao mais alto a luz que gerou tanta glória na terra, para que de lá possa
cumprir sua principal função e repetir o motivo da alegria que agora sente a humanidade
toda, vendo destruídas as trevas que abraçavam o mundo. Encontramos apenas uma
palavra que se refere diretamente aos sentimentos expressos no exórdio deste rito:
Serénus. Não há, praticamente, uma palavra mais adequada para recolher todos os
sentimentos de um itinerário tão agitado, como este que foi escolhido pelo autor; os
cristãos, que são os que elevam a petição ao Pai, têm a certeza de que a presença de
Cristo, que venceu a morte e destruiu a escuridão com o esplendor de sua luz, já
encontrou a paz, a soma de todos os bens que podem ser alcançados e que todo homem
deseja abundantemente.

Uma palavra conclusiva

O Precônio Pascal ou Exultet, está intimamente ligado ao fogo, mas


especialmente ao círio e ao seu significado. O círio é o próprio Cristo, que leva a sua luz
(Lumen Christi) ao mundo inteiro. É por isso que o Precônio, na última parte, fala do
círio como sacrificium vespertinum; este sacrifício já iluminou a noite com sua imolação.
Consequentemente, o diácono não pode outra coisa senão extasiar-se e cantar as
mirabilia Dei diante de seu Senhor que, ferido, venceu as trevas e que, agora, se eleva
diante delas brilhando em luz admirável.

O tema do Praeconium é a vitória de Cristo sobre a morte e a escuridão, símbolos


do pecado. Introduzido por um breve exórdio, a chama do círio é oferecida a Deus como
um sacrifício vespertino, que irradia tanta alegria e esplendor sobre nossa mãe, a
Igreja; Cristo é exaltado, triunfante da morte e redentor da raça humana; celebra-se a
noite pascal, anunciada no Antigo Testamento e cheia de tantos acontecimentos
misteriosos, com a nova luz da salvação trazida por Cristo; faz-se o elogio das abelhas
industriosas, “arquitetas/construtoras do círio”, cuja castidade lembra a fecundidade
sobrenatural de Cristo e seu nascimento virginal.

O mundo das trevas é transpassado pela Luz, o Cristo ressuscitado, no qual Deus
realizou definitivamente seu plano de salvação. Nele, o primogênito dos que
ressuscitam dos mortos (Cl 1,18), o destino do homem e sua identidade de “imagem e
semelhança de Deus” (Gn 1,26-27), são iluminados. Nele, irrupção do divino no

21
humano, o caminho da história se abre à esperança de novos céus e nova terra. A
tradição cristã definiu os catecúmenos e os batizados como “iluminados”; por causa de
sua adesão vital a Cristo-Luz, eles sabem que sua existência mudou radicalmente. Deus
“os chamou das trevas para sua admirável luz” (1Pe 2,9) e abriu um horizonte de vida
e liberdade diante deles. É por isso que se eleva o “novo canto” (o Precônio pascal)
como memória das maravilhas operadas pelo Senhor em nossa história de “salvos”, e
como agradecimento por uma vida de luz.

Emoções e sentimentos são partes fundamentais do homem que celebra a


Liturgia. Apesar das características que podem parecer quase contrárias ao espírito da
própria liturgia, não se pode negar que um número significativo delas pode adquirir
características que equilibram sua subjetividade, porquanto são fundamentais para a
compreensão do fato religioso.35

A história da salvação não é apenas a transmissão de acontecimentos do


passado, onde Deus operou maravilhas em favor do seu povo; é, acima de tudo, a
transmissão dos sentimentos do povo durante as ações de Deus.36 Para toda religião,
esse recurso é fundamental, porque a transmissão dos conteúdos da fé, ratificados
pelos sentimentos, permite a verdadeira ação anamnética da liturgia: as ações não
ficam relegadas ao passado, mas se tornam realidade no meio dos crentes.

De todos os momentos da história da salvação, a Páscoa, especialmente a Páscoa


cristã, transmite uma forte carga emotiva e sentimental, que transforma sua
comemoração em memória (memorial), que, por meio do confronto dos sentimentos,
une o presente da vida individual dos crentes àqueles da paixão de seu Senhor, e lhes
permite sentir hoje a salvação, atualizada no contexto das celebrações litúrgicas.

A Proclamação da Páscoa é uma das mais eloquentes expressões da relação entre


os sentimentos e a liturgia. Por causa de sua riqueza, se torna um desafio: a liturgia
deve ser capaz de expressar, não só o conteúdo linguístico do texto, mas também, e
talvez ainda mais, seu conteúdo sentimental.

Endereço do Autor:
Mosteiro de São Bento de Olinda, s/n

35 . Cf. PAULUS. Linguaggio e funzione simbólica, p. 11-35, 121-178; STICKLER.


Dall'esperienza oggetuale all'esperienza simbolica e sviluppo della fede, p. 167-210; CHIMIRRI.
Psicologia del corpo, p. 117-125.
36. Sobre a memória afetiva, cf. CUCCI. Esperienza religiosa e psicologia, p. 103-112;
RICOUER. Tempo e racconto.

22
Varadouro
53020-080 Olinda – PE/BRASIL
E-mail: <[email protected]>

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