KANT, I. Sobre A Pedagoria - Introdução
KANT, I. Sobre A Pedagoria - Introdução
KANT, I. Sobre A Pedagoria - Introdução
Sobre a Pedagogia
O homem é a única criatura que precisa ser educada. Por educação entendesse o cuidado
de sua infância1, a disciplina e a instrução com a formação. Conseqüentemente, o homem é
infante, educando e discípulo.
Os animais, logo que começam a sentir alguma força, usam-na com regularidade, isto é, de
tal maneira que não se prejudicam a si mesmos. É de fato maravilhoso ver, por exemplo, como os
filhotes de andorinhas, apenas saídos do ovo e ainda cegos, sabem dispor-se de modo que seus
excrementos caiam fora do ninho. Os animais, portanto, não precisam ser cuidados, no máximo
precisam ser alimentados, aquecidos, guiados e protegidos de algum modo. A maior parte dos
animais requer nutrição, mas não requer cuidados. Por cuidados entendem-se as precauções que
os pais tomam para impedir que as crianças façam uso nocivo de suas forças. Se, por exemplo, um
animal, ao vir ao mundo, gritasse, como fazem os bebês, tornar-se-ia com certeza presa dos lobos
e de outros animais selvagens atraídos pelos seus gritos.
A disciplina transforma a animalidade em humanidade. Um animal é por seu próprio
instinto tudo aquilo que pode ser; uma razão exterior a ele tomou por ele antecipadamente todos
os cuidados necessários. Mas o homem tem necessidade de sua própria razão. Não tem instinto, e
precisa formar por simesmo o projeto de sua conduta. Entretanto, por ele não ter a capacidade
imediata de realizá-lo, mas vir ao mundo em estado bruto, outros devem fazê-lo por ele.
A espécie humana é obrigada a extrair de si mesma pouco a pouco, com suas próprias
forças, todas as qualidades naturais, que pertencem à humanidade. Uma geração educa a outra.
Pode-se buscar o começo da
humanidade num estado bruto ou num estado perfeito de civilização. Mas, neste último caso, é
necessário admitir que o homem tenha caído depois no estado selvagem e no estado de natureza
rude.
A disciplina é o que impede ao homem de desviar-se do seu destino, de desviar-se da
humanidade, através das suas inclinações animais. Ela deve, por exemplo, contê-lo, de modo que
não se lance ao perigo como um animal feroz, ou como um estúpido. A disciplina, porém, é
puramente negativa, porque é o tratamento através do qual se tira do homem a sua selvageria; a
instrução, pelo contrário, é a parte positiva da educação.A selvageria consiste na independência
de qualquer lei. A disciplina submete o homem às leis da humanidade e começa a fazê-lo sentir a
força das próprias leis. Mas isso deve acontecer bem cedo. Assim, as crianças são mandadas cedo
à escola, não para que aí aprendam alguma coisa, mas para que aí se acostumem a ficar sentadas
tranquilamente e a obedecer pontualmente àquilo que lhes é mandado, a fim de que no futuro
elas não sigam de fato e imediatamente cada um de seus caprichos.
Mas o homem é tão naturalmente inclinado à liberdade que, depois que se acostuma a ela
por longo tempo, a ela tudo sacrifica. Ora, esse é o motivo preciso, pelo qual é conveniente
recorrer cedo à disciplina; pois, de outro modo, seria muito difícil mudar depois o homem. Ele
seguiria, então, todos os seus caprichos. Do mesmo modo, pode-se ver que os selvagens jamais se
1
KANT, I. Sobre a pedagogia. Ed. Monkey Books.
habituam a viver como os europeus, ainda que permaneçam por muito tempo a seu serviço. O que
neles não deriva, como opinam Rousseau e outros, de uma nobre tendência à liberdade, mas de
uma certa rudeza, uma vez que o animal ainda não desenvolveu a humanidade em si mesmo
numa certa medida. Assim, é preciso acostumá-lo logo a submeter-se aos preceitos da razão.
Quando se deixou o homem seguir plenamente a sua vontade durante toda a juventude e não se
lhe resistiu em nada, ele conserva certa selvageria por toda a vida. Tampouco uma afeição
materna exagerada é útil aos jovens, uma vez que mais tarde lhes surgirão obstáculos de todas as
partes e receberão golpes de todos os lados, logo que tomarem parte nos afazeres do mundo.
Um erro, no qual se cai comumente na educação dos grandes, é o de não se lhes opor
nenhuma resistência durante a juventude, porque estão destinados a comandar. No homem, a
brutalidade requer polimento por causa de sua inclinação à liberdade; no animal bruto, pelo
contrário, isso não é necessário, por causa do seu instinto.
O homem tem necessidade de cuidados e de formação. A formação compreende a
disciplina e a instrução. Nenhum animal, quanto saibamos, necessita desta última, uma vez que
nenhum deles aprende dos seus ascendentes qualquer coisa, a não ser aqueles pássaros que
aprendem a cantar. De fato, os pássaros são treinados no canto por seus genitores; e é admirável
ver, como se fosse numa escola, os pais cantarem com todas as forças diante dos filhotes,
enquanto estes se esforçam por tirar os mesmos sons das suas pequenas goelas. Para convencer-
se de que os pássaros não cantam por instinto, mas que aprendem a cantar, vale a pena fazer a
prova: tire dos canários a metade dos ovos e os substitua por ovos de pardais; ou tambémmisture
aos canarinhos filhotes de pardais bem novinhos, Coloque-os num cômodo onde não possam
escutar os pardais de fora; eles aprenderão dos canários o canto e assim teremos pardais
cantantes. É estupendo o fato de que toda espécie de pássaros conserva em todas as gerações
certo canto principal; assim, a tradição do canto é a mais fiel do mundo.
O homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo
que a educação dele faz. Note-se que ele só pode receber tal educação de outros homens, os
quais a receberam igualmente de outros. Portanto, a falta de disciplina e de instrução em certos
homens os torna mestres muito ruins de seus educandos, Se um ser de natureza superior tornasse
cuidado da nossa educação, ver-se-ia, então, o que poderíamos nos tornar. Mas, assim como, por
um lado, a educação ensina alguma coisa aos homens e, por outro lado, não faz mais que
desenvolver nele certas qualidades, não se pode saber até aonde nos levariam as nossas
disposições naturais. Se pelo menos fosse feita uma experiência com a ajuda dos grandes e
reunindo as forças de muitos, isso solucionaria a questão de se saber até aonde o homem pode
chegar por esse caminho. Uma coisa, porém, tão digna de observação para uma mente
especulativa quanto triste para o amigo da humanidade é ver que a maior parte dos grandes não
cuida senão de si mesma e não toma parte nas interessantes experiências sobre a educação, para
fazer avançar algum passo em direção à perfeição da natureza humana.
Não há ninguém que, tendo sido abandonado durante a juventude, seja capaz de
reconhecer na sua idade madura em que aspecto foi descuidado, se na disciplina ou na cultura2.
Quem não tem cultura de nenhuma espécie é um bruto; quem não tem disciplina ou educação é
um selvagem. A falta de disciplina é um mal pior que falta de cultura, pois esta pode ser
remediada mais tarde, ao passo de que não se pode abolir o estado selvagem e corrigir um defeito
de disciplina. Talvez a educação se torne sempre melhor e cada uma das gerações futuras dê um
passo a mais em direção ao aperfeiçoamento da humanidade, uma vez que o grande segredo da
perfeição da natureza humana se esconde no próprio problema da educação. A partir de agora,
isso pode acontecer. De fato, atualmente se começa a julgar com exatidão e a ver de modo claro o
que propriamente pertence a uma boa educação. É entusiasmante pensar que a natureza humana
será sempre melhor desenvolvida e aprimorada pela educação, e que é possível chegar a dar
àquela forma, a qual em verdade convém à humanidade. Isso abre a perspectiva para uma futura
felicidade da espécie humana.O projeto de uma teoria da educação é um ideal muito nobre e não
faz mal que não possamos realizá-lo. Não podemos considerar uma ideia como quimérica e como
um belo sonho só porque se interpõem obstáculos à sua realização.
Uma ideia não é outra coisa senão o conceito de uma perfeição que ainda não se encontra
na experiência. Tal, por exemplo, seria a ideia de uma república perfeita, governada conforme as
leis da justiça. Dir-se-á, entretanto, que é impossível? Em primeiro lugar, basta que a nossa ideia
seja autêntica; em segundo lugar, que os obstáculos para efetuá-la não sejam absolutamente
impossíveis de superar. Se, por exemplo, todo mundo mentisse, o dizer a verdade seria por isso
mesmo uma quimera? A ideia de uma educação que desenvolva no homem todas as suas
disposições naturais é verdadeira absolutamente.
Com a educação presente, o homem não atinge plenamente a finalidade da sua existência.
Na verdade, quanta diversidade no modo de viver ocorre entre os homens! Entre eles não pode
acontecer uma uniformidade de vida, a não ser na medida em que ajam segundo os mesmos
princípios, e seria necessário que esses princípios se tornassem como que outra natureza para
eles. Podemos trabalhar num esboço de uma educação mais conveniente e deixar indicações aos
pósteros, os quais poderão pô-las em prática pouco a pouco. Vê-se, por exemplo, nas flores
chamadas "orelhas de urso" que, quando as arrancamos pela raiz, têm todas a mesma cor;
quando, ao invés, plantamos suas sementes, obtemos cores diferentes e variadíssimas. A
natureza, portanto, depôs nelas certos germes da cor e, para desenvolvê-los, basta semear e
transplantar de modo conveniente estas flores. Acontece algo semelhante com o homem.
Há muitos germes na humanidade e toca a nós desenvolver em proporção adequada as
disposições naturais e desenvolver a humanidade a partir dos seus germes e fazer com que o
homem atinja a sua destinação. Os animais cumprem o seu destino espontaneamente e sem o
saber. O homem, pelo contrário, é obrigado a tentar conseguir o seu fim; o que ele não pode fazer
sem antes ter dele um conceito. O indivíduo humano não pode cumprir por si só essa destinação.
Se admitirmos um primeiro casal, realmente educado, do gênero humano, é preciso saber
também de que modo ele educou os seus filhos. Os primeiros genitores dão a seus filhos um
primeiro exemplo; estes o imitam e assim se desenvolvem algumas disposições naturais, Mas não
podem todos ser educados desse modo, uma vez que as crianças veem os exemplos
ocasionalmente. Normalmente os homens não tinham ideia alguma daperfeição de que a natureza
humana é capaz. Nós mesmos ainda não a temos em toda a sua pureza. É certo igualmente que os
indivíduos, ao educarem seus filhos, não poderão jamais fazer que estes cheguem a atingir a sua
destinação.
Essa finalidade, pois, não pode ser atingida pelo homem singular, mas unicamente pela
espécie humana.
A educação é uma arte, cuja prática necessita ser aperfeiçoada por várias gerações. Cada geração,
de posse dos conhecimentos das gerações precedentes, está sempre melhor aparelhada para
exercer uma educação que
desenvolva todas as disposições naturais na justa proporção e de conformidade com a finalidade
daquelas, e, assim, guie toda a humana espécie a seu destino. A Providência quis que o homem
extraísse de si mesmo o bem
e, por assim dizer, desse modo lhe fala: "Entra no mundo. Coloquei em ti toda espécie de
disposições para o bem. Agora compete somente a ti desenvolvê-las e a tua felicidade ou a tua
infelicidade depende de ti".
O homem deve, antes de tudo, desenvolver as suas disposições, para o bem; a Providência
não as colocou nele prontas; são simples disposições, sem a marca distintiva da moral. Tornar-se
melhor, educar-se e,se se é mau, produzir em si a moralidade: eis o dever do homem. Desde que
se reflita detidamente a respeito, vê-se o quanto é difícil. A educação, portanto, é o maior e o mais
árduo problema que pode ser proposto aos homens. De fato, os conhecimentos dependem da
educação e esta, por Sua vez, depende daqueles. Por isso, a educação não poderia dar um passo à
frente a não ser pouco a pouco, e somente pode surgir um conceito da arte de educar na medida
em que cada geração transmite suas experiências e seus conhecimentos à geração seguinte, a qual
lhes acrescenta algo de seu e os transmite à geração que lhe segue. Que grande cultura e que
experiência, portanto, esse conceito supõe? Na verdade, tal conceito não poderia ter surgido
senão muito tarde e nós mesmos ainda não
o elevamos ao seu mais alto grau de pureza. Deve a educação do indivíduo imitar a cultura que a
humanidade em geral recebe das gerações anteriores?
Entre as descobertas humanas há duas dificílimas, e são: a arte de governar os homens e a
arte de educá-los. Na verdade, ainda persistem Controvérsias sobre esses assuntos.
Ora, de onde começaríamos a desenvolver as disposições naturais dos homens?
Deveremos começar pelo estado rude ou pelo estado já culto? Não é fácil conceber um
desenvolvimento, partindo do estado rude3; e vemos que, sempre que se partiu desse estado, o
homem sempre recaiu na rudeza e novamente se levantou a partir daí. Até nos povos bastantes
civilizados reencontramos ausência de limites para a rudeza, o que é atestado pelos mais antigos
monumentos escritos que nos foram legados - e que grau de cultura a escrita já não supõe? -, de
tal modo que se poderia propor a invenção da escrita como o começo do mundo com respeito à
civilização.
Uma vez que as disposições naturais do ser humano não se desenvolvem por si mesmas,
toda educação é uma arte. A natureza não depositou nele nenhum instinto para essa finalidade. A
origem da arte da educação, assim como o seu progresso, é: ou mecânica, ordenada sem plano
conforme as circunstâncias, ou raciocinada. A arte da educação não é mecânica senão em certas
oportunidades, em que aprendemos por experiência se uma coisa é prejudicial ou útil ao homem.
Toda arte desse tipo, a qual fosse puramente mecânica, conteria muitos erros e lacunas, pois que
não obedeceria a plano algum. A arte da educação ou pedagogia deve, portanto, ser raciocinada,
se ela deve desenvolver a natureza humana de tal modo que esta possa conseguir o seu destino.
Os pais, os quais já receberam certa educação, são exemplos pelos quais os filhos se regulam.
Mas, se estes devem tornar-se melhores, a pedagogia deve tornar-se um estudo; de outro modo,
nada se poderia dela esperar e a educação seria confiada a pessoas não educadas corretamente. É
preciso colocar a ciência em lugar do mecanicismo, no que tange à arte da educação; de outro
modo, esta não se tornará jamais um esforço coerente; e
uma geração poderia destruir tudo o que outra anterior tivesse edificado.
Um princípio de pedagogia, o qual mormente os homens que propõem planos para a arte
de educar deveriam ter ante os olhos, é: não se deve educar as crianças segundo o presente
estado da espécie humana, mas segundo um estado melhor, possível no futuro, isto é, segundo a
ideia de humanidade e da sua inteira destinação, Esse princípio é da máxima importância. De
modo geral, os pais educam seus filhos para o mundo presente, ainda que seja corrupto. Ao
contrário, deveriam dar-lhes uma educação melhor, para que possa acontecer um estado melhor
no futuro. Mas aqui se deparam dois obstáculos: os pais não se preocupam ordinariamente senão
com uma coisa, isto é, que seus filhos façam uma boa figura no mundo; e os príncipes consideram
os próprios súditos apenas como instrumento para os seus propósitos.
Os pais cuidam da casa, os príncipes, do Estado. Uns e outros deixam de se propor como
fim último o bem geral e a perfeição a que está destinada a humanidade e para a qual esta tem as
disposições. O estabelecimento de um projeto educativo deve ser executado de modo
cosmopolita. Mas o bem geralé uma ideia que pode tornar-se prejudicial ao nosso bem particular?
Nunca! Já que, ainda que pareça que lhe devamos sacrificar alguma coisa, na verdade trabalhamos
desse modo melhor para o nosso estado presente. E, então, quantas consequências nobres se
seguem! Uma boa educação é justamente a fonte de todo bem neste mundo. Os germes que são
depositados no homem devem ser desenvolvidos sempre mais. Na verdade, não há nenhum
princípio do mal nas disposições naturais do ser humano. A única causa do mal consiste em não
submeter à natureza a normas. No homem não há germes, senão para o bem.
Assim sendo, de quem deve provir o melhoramento do estado social? Dos príncipes, ou dos
súditos, no sentido de que estes se aperfeiçoem antes por si mesmos e façam meio caminho para
ir ao encontro de bons governos? Se, pelo contrário, esse aperfeiçoamento deve partir dos
príncipes, então, comecese por melhorar a sua educação; esta sempre teve graves erros, uma vez
que não resistiu jamais aos príncipes durante a sua juventude. Uma árvore que permanece isolada
no meio do campo não cresce direito e expande longos galhos; pelo contrário, aquela que cresce
no meio de uma floresta cresce ereta por causa da resistência que lhe opõem as outras árvores, e,
assim, busca por cima o ar e o Sol. Com os príncipes acontece o mesmo. Mais vale que sejam
sempre educados por algum dos seus súditos do que pelos seus pares. Não se pode esperar que o
bem venha do alto, a não ser no caso em que lá a educação seja primorosa. Aqui é necessário,
portanto, contar mais com os esforços Particulares do que com a ajuda dos príncipes, como
julgaram Basedow e outros; uma vez que a experiência ensina que os príncipes, para atingir seus
objetivos, se preocupam não com o bem do mundo, mas com o bem do seu Estado. Se prestam
auxílio à educação com dinheiro, reservam-se o direito de estabelecer o plano que lhes convém. O
mesmo diga-se de tudo aquilo que diz respeito à cultura do espírito humano e ao incremento dos
conhecimentos humanos. Estes dois resultados não são conseguidos pelo poder e pelo dinheiro,
mas são no máximo por eles facilitados. Na verdade poderiam fazê-lo, se o Estado não arrecadasse
impostos unicamente destinados ao interesse do seu erário. Nem mesmo as academias
produziram estes resultados, e hoje em dia, mais que nunca, não se vislumbra o menor sinal de
que essas os produzirão.
A direção das escolas deveria, portanto, depender da decisão de pessoas competentes e
ilustradas. Toda cultura começa pelas pessoas privadas e depois, a partir destas, se difunde. A
natureza humana pode aproximar-se pouco a pouco do seu fim apenas através dos esforços das
pessoas dotadas degenerosas inclinações, as quais se interessam pelo bem da sociedade e estão
aptas para conceber como possível um estado de coisas melhor no futuro.
Entretanto, alguns poderosos consideram, de certo modo, o seu povo como uma parte do
reino animal e têm em mente apenas a sua multiplicação. No máximo desejam que eles tenham
certo aumento de habilidade, mas unicamente com a finalidade de poder aproveitar-se dos
próprios súditos como instrumentos mais apropriados aos seus desígnios. As pessoas particulares
devem em primeiro lugar estar atentas à finalidade da natureza, mas devem, sobretudo, cuidar do
desenvolvimento da humanidade, e fazer com que ela se torne não somente mais hábil, mas ainda
mais moral e, por último – coisa muito mais difícil -, empenhar-se em conduzir a posteridade a um
grau mais elevado do que elas atingiram.
Na educação, o homem deve, portanto:
1. Ser disciplinado. Disciplinar quer dizer: procurar impedir que a animalidade prejudique o caráter
humano, tanto no indivíduo como na sociedade. Portanto, a disciplina consiste em domar a
selvageria.
2. Tornar-se culto. A cultura abrange a instrução e vários conhecimentos. A cultura é a criação da
habilidade e esta é a posse de uma capacidade condizente com todos os fins que almejamos. Ela,
portanto, não determina
por si mesma nenhum fim, mas deixa esse cuidado às circunstâncias.
Algumas formas de habilidade são úteis em todos os casos, por exemplo, o ler e o escrever; outras
são boas só em relação a certos fins, por exemplo, a música, para nos tornar queridos. A
habilidade é de certo modo infinita, graças aos muitos fins.
3. A educação deve também cuidar para que o homem se torne prudente, que ele permaneça em
seu lugar na sociedade e que seja querido e tenha influência. A essa espécie de cultura pertence
aquela chamada propriamente de civilidade. Esta requer certos modos corteses, gentileza e a
prudência de nos servirmos dos outros homens para os nossos fins. Ela se regula pelo gosto
mutável de cada época. Assim, prezavam-se, faz já alguns decênios, as cerimônias sociais.
4. Deve, por fim, cuidar da moralização. Na verdade, não basta que o homem seja capaz de toda
sorte de fins; convém também que ele consiga a disposição de escolher apenas os bons fins. Bons
são aqueles fins aprovados necessariamente por todos e que podem ser, ao mesmo tempo, os fins
de cada um.O homem pode ser ou treinado, disciplinado, instruído, mecanicamente, ou ser em
verdade ilustrado. Treinam-se os cães e os cavalos; e também os homens podem ser treinados.
Entretanto, não é suficiente treinar as crianças; urge que aprendam a pensar. Devem-se
observar os princípios dos quais todas as ações derivam. Fica claro, portanto, quantas coisas uma
verdadeira educação requer! Contudo, na educação privada, o quarto ponto - que é o mais
importante - é, de modo geral, descuidado, pois que ensinamos às crianças aquilo que julgamos
essencial e deixamos a moral para o pregador. Mas como é infinitamente importante ensinar às
crianças a odiar o vício por virtude, não pela simples razão de que Deus o proibiu, mas por ser
desprezível por si mesmo!
De outro modo, elas pensariam facilmente que o vício poderia ser praticado e que seria
permitido, se Deus não o houvesse proibido, e que Deus bem poderia fazer uma exceção em seu
favor. Deus é o ser soberanamente santo e não quer senão o que é bom, e exige que pratiquemos
a virtude pelo seu valor intrínseco e não porque Ele o ordena.
Vivemos em uma época de disciplina, de cultura e de civilização, mas ela ainda não é a da
verdadeira moralidade. Nas condições atuais pode dizer-se que a felicidade dos Estados cresce na
mesma medida que a infelicidade dos homens. E não se trata ainda de saber se seríamos mais
felizes no estado de barbárie, no qual não existiria toda essa nossa cultura, do que no atual
estado. De fato, como poderíamos tomar os homens felizes, se não os tomamos morais e sábios?
Desse modo, a maldade não será diminuída.
É necessário fundar escolas experimentais antes de poder criar escolas normais. A
educação e a instrução não devem ser puramente mecânicas, mas devem apoiar-se em princípios.
Entretanto, não devem fundar-se no raciocínio puro, mas, num certo sentido, também no
mecanicismo. A Áustria não tem quase senão escolas normais, instituídas segundo um propósito
contra o qual se levantaram muitas objeções, com fundamento, e ao qual se reprochava
sobretudo um mecanicismo cego. Todas as outras escolas deviam regular-se
por aquelas e chegava-se a recusar promoção a quem não as havia freqüentado.
Tais prescrições demonstram com quanta influência o governo se imiscui em certos
assuntos; e não se pode chegar a nada de bom com tais coações.
Crê-se geralmente que não é preciso fazer experiência em assuntos educacionais e que se
pode julgar unicamente com a razão se uma coisa seráboa ou má. Quanto a isso erra-se muito e a
experiência nos ensina que as nossas tentativas produziram de fato resultados opostos àqueles
que esperávamos. Vê-se, pois, que, sendo nesse assunto necessária a experiência, nenhuma
geração pode criar um modelo completo de educação. A única escola experimental que até agora
começou de algum modo a trilhar esse caminho foi o Instituto de Dessau. Apesar dos muitos
defeitos que se lhe podem assacar, defeitos que se encontram em todas as obras pioneiras,
cabelhe essa glória: ele não cessou de fazer novas tentativas. De certo modo, essa foi a única
escola em que os mestres tiveram a liberdade de trabalhar segundo seus próprios métodos e
intentos, e na qual estiveram unidos entre si e mantiveram relações com todos os sábios da
Alemanha.
A educação abrange os cuidados e a formação. Esta é: 1. Negativa, ou seja, disciplina, a
qual impede os defeitos; 2. Positiva, isto é, instrução e direcionamento e, sob esse aspecto,
pertence à cultura. O direcionamento é a condução na prática daquilo que foi ensinado. Daqui
nasce a diferença entre o professor - que é simplesmente um mestre - e o governante, o qual é um
guia. O primeiro ministra a educação da escola; o segundo, a da vida.
O primeiro período para o educando é aquele em que deve mostrar sujeição e obediência
passivamente; no segundo, lhe é permitido usar a sua reflexão e a sua liberdade, desde que
submeta uma e outra a certas regras. No primeiro período, o constrangimento é mecânico; no
segundo, é moral.
A educação é privada ou pública. Esta última se refere às informações, e pode permanecer
sempre pública. A prática dos preceitos fica reservada à primeira. Uma educação pública completa
é aquela que reúne, ao mesmo tempo, a instrução e a formação moral. Seu fim consiste em
promover uma boa educação privada. Uma escola na qual isto é praticado chama-se Instituto de
Educação. Não é possível haver um grande número desses institutos, nem poderiam admitir um
grande número de alunos; na verdade, são caríssimos e a simples montagem desses colégios
acarreta grandes despesas. O mesmo se diga das Casas de Misericórdia5 e dos hospitais. Os
edifícios necessários, o pagamento dos diretores, dos supervisores e dos serviçais absorvem a
metade do orçamento; e já está provado que, se esse dinheiro fosse distribuído aos pobres em
suas casas, eles seriam muito melhor cuidados. Por isso também é difícil conseguir que outras
crianças, que não as dos ricos, participem nesses institutos.
A finalidade desses institutos públicos é o aperfeiçoamento da educação doméstica. Se os
pais, ou aqueles que lhes assistem na educação dos seusfilhos, tivessem recebido uma boa
educação, poderia não ser mais necessária a despesa com os institutos públicos. Estes devem se
prestar a realizar certas experiências e a formar pessoas aptas para que possam dar uma boa
educação doméstica.
A educação privada é dada pelos próprios pais ou, caso não tenham tempo, capacidade ou
não o queiram, por outras pessoas que os ajudem nessa tarefa, mediante uma recompensa.
Mas tal educação, ministrada por auxiliares, tem a gravíssima circunstância de dividir a
autoridade entre os pais e esses governantes, A criança deve regular-se pelos preceitos de seus
governantes e, ao mesmo tempo, seguir os caprichos de seus pais. Nesse tipo de educação é
necessário que os pais deponham toda a sua autoridade nas mãos dos governantes.
Até onde, porém, deve-se preferir a educação privada à educação pública, ou vice-versa?
Em geral, à educação pública parece mais vantajosa que a doméstica, não somente em relação à
habilidade, mas também com respeito ao verdadeiro caráter do cidadão. A educação doméstica,
além de engendrar defeitos do âmbito familiar; os propaga.
Quanto tempo deve durar a educação? Até o momento em que a natureza determinou que
o homem se governe a si mesmo; ou até que nele se desenvolva o instinto sexual; até que ele
possa se tornar pai e seja obrigado, por sua vez, a educar: até aproximadamente a idade de
dezesseis anos. Passada essa idade, poder-se-á recorrer a expedientes culturais e especializá-lo,
submetê-lo a uma disciplina especial; mas não se trata mais de uma educação regular.
A sujeição do educando pode ser positiva: enquanto deve fazer aquilo que lhe é mandado,
enquanto não pode ainda julgar por si mesmo, tendo apenas a capacidade de imitar. Negativa:
enquanto o educando deve fazer aquilo que os outros desejam, se quer que eles, por sua vez,
façam algo que lhe seja agradável. No primeiro caso, está sujeito a ser punido; no segundo, a não
conseguir o que deseja: e aqui, se bem que já possa refletir, ele não fica menos dependente dos
outros quanto à própria satisfação.
Um dos maiores problemas da educação é o poder de conciliar a submissão ao
constrangimento das leis Com o exercício da liberdade. Na verdade, o constrangimento é
necessário! De que modo, porém, cultivar a liberdade? É preciso habituar o educando a suportar
que a sua liberdade seja submetida ao constrangimento de outrem e que, ao mesmo tempo, dirija
corretamente a sualiberdade. Sem essa condição, não haverá nele senão algo mecânico; e o
homem, terminada a sua educação, não saberá usar sua liberdade. É necessário que ele sinta logo
a inevitável resistência da sociedade, para que aprenda a conhecer o quanto é difícil bastar-se a si
mesmo, tolerar as privações e adquirir o que é necessário para tornar-se independente.
Aqui se deve ter presente as seguintes regras: 1. É preciso dar liberdade à criança desde a
primeira infância e em todos os seus movimentos6, com a condição de não impedir a liberdade
dos outros, como no caso de gritar ou manifestar a sua alegria alto demais, incomodando os
outros. 2. Deve-se-lhe mostrar que ela pode conseguir seus propósitos, com a condição de que
permita aos demais conseguir os próprios; por exemplo, nada se fará que lhe seja agradável, se
não fizer o que desejamos, ou seja, aprender o que lhe é ensinado, e assim por diante. 3. É preciso
provar que o constrangimento, que lhe é imposto, tem por finalidade ensinar a usar bem da sua
liberdade, que a educamos para que possa ser livre um dia, isto é, dispensar os cuidados de
outrem. Esse pensamento é o mais tardio, porque as crianças nos primeiros anos não imaginam
que deverão um dia providenciar por si mesmas sua própria manutenção. Elas acreditam que mais
tarde acontecerá como no lar
paterno, onde elas têm o que comer e beber sem preocupação. Sem esse tratamento, as crianças,
sobretudo as dos ricos e os filhos dos príncipes, permanecerão a vida toda como os habitantes do
Tahiti, isto é, como crianças. A educação pública tem aqui manifestamente as maiores vantagens:
aí se aprende a conhecer a medida das próprias forças e os limites que o direito dos demais nos
impõe. Aí não se tem nenhum privilégio, pois que sentimos por
toda parte resistência, e nos elevamos acima dos demais unicamente por mérito próprio. Essa
educação pública é a melhor imagem do futuro cidadão.
Há ainda uma dificuldade que não deve ser aqui esquecida, e se refere à experiência
precoce do sexo, a fim de preservar do vício os adolescentes, antes da idade madura. Tornaremos
a esse assunto.
A pedagogia, ou doutrina da educação, se divide em física e prática. A educação física é
aquela que o homem tem em comum com os animais, ou seja, os cuidados com a vida corporal. A
educação prática ou moral7 é aquela que diz respeito à construção8 do homem, para que possa
viver como um ser livre. Esta última é a educação que tem em vista a personalidade, educação de
um ser livre, o qual pode bastar-se a si mesmo, constituir-se membro da sociedade e ter por si
mesmo um valor intrínseco.
Portanto, a educação consiste: 1. Na cultura escolástica ou mecânica, a qual diz respeito à
habilidade: é, portanto, didática9; 2. Na formação pragmática, a qual se refere à prudência; 3. Na
cultura moral, tendo em vista a moralidade.
O homem precisa da formação escolástica, ou da instrução, para estar habilitado a
conseguir todos os seus fins. Essa formação lhe dá um valor em relação a si mesmo, como
indivíduo. A formação da prudência, porém, o prepara para tornar-se um cidadão, uma vez que
lhe confere um valor público. Desse modo ele aprende tanto a tirar partido da sociedade civil para
os seus fins como a conformar-se à sociedade. Finalmente, a formação moral lhe dá um valor que
diz respeito à inteira espécie humana.
A formação escolástica é a mais precoce. Com efeito, a prudência pressupõe a habilidade.
A prudência é a capacidade de usar bem e com proveito a habilidade própria. Por último vem a
formação moral, enquanto é fundada sobre princípios que o próprio homem deve reconhecer;
mas, enquanto repouso unicamente no senso comum, deve ser praticada desde o princípio, ao
mesmo tempo que a educação física, pois, de outro modo, se enraizariam muitos defeitos, a ponto
de tornar vãos todos os esforços da arte educativa. Com respeito à habilidade e à prudência, tudo
deve acontecer a seu tempo com o passar dos anos. Mostrar-se hábil, prudente, paciente, sem
astúcia como um adulto, durante a infância, vale tão pouco como a sensibilidade infantil na idade
madura.