Rudolf Steiner - Andar, Falar, Pensar
Rudolf Steiner - Andar, Falar, Pensar
Rudolf Steiner - Andar, Falar, Pensar
A ATIVIDADE LÚDICA
Tradução de
Jacira Cardoso
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A explanação efetuada até agora 1 não pretende meramente formular uma
teoria sobre a necessidade de uma nova estrutura na educação, mas provocar o
surgimento de algo como um tipo de mentalidade educacional. Nas palestras
anteriores eu quis falar menos ao intelecto e muito mais ao coração humano. E
justamente isto é, para o educador, para o mestre, o mais importante e o mais
essencial — pois, como já vimos, a arte da educação deve ter por base um
conhecimento mais penetrante do homem.
Há muito tempo se ouve, quando o assunto é educação, sobre este ou aquele
procedimento para com a criança. O preparo pedagógico consiste freqüentemen-
te em mandamentos e regras, de certa forma teóricas, a respeito de como tratar
o aluno.
Desta maneira, porém, nunca é cultivada a plena dedicação do docente e
educador a seu ofício; tal só ocorre quando ele tem a possibilidade de realmente
penetrar na entidade humana inteira, constituída de corpo, alma e espírito.
Para quem, neste sentido, tem idéias vívidas acerca do homem, diante da
realidade profissional essas idéias se convertem em vontade imediata. Aprende-
se, a cada momento, a responder de forma prática a uma pergunta de peso.
Quem faz essa pergunta? A própria criança. Assim, o mais importante é
aprender a ler na criança. E um verdadeiro e prático conhecimento humano
orientado segundo os princípios corpo, alma e espírito conduz realmente a tal
aprendizado.
Por esta razão é tão difícil falar sobre a chamada Pedagogia Waldorf — pois
a Pedagogia Waldorf não é exatamente algo que se possa aprender, sobre o qual
se possa discutir: é pura prática, e pode-se realmente apenas relatar, através de
exemplos, como a prática é utilizada em cada caso ou necessidade. A própria
prática surge a partir da experiência imediata, pois é imprescindível haver o
conhecimento humano adequado quando se parte dessa convicção. Ora,
pedagogia e didática já constituem, em certo sentido, uma questão social
marcadamente ampla — pois a educação da criança deve realmente começar
logo após o nascimento. Isto nada mais significa senão que a educação é atri-
buição de toda a Humanidade, de cada família, de cada comunidade humana.
Mas justamente isto nos ensina, no mais intenso grau, o conhecimento da pró-
pria natureza infantil antes do início da troca dos dentes, ao redor dos sete anos.
Um escritor alemão, Jean Paul — Friedrich Richter —, fez uma esplêndida afir-
mação ao dizer: “Nos três primeiros anos o homem aprende muito mais para a
vida do que nos três anos acadêmicos” (em sua época havia apenas três).
De fato, antes de mais nada os três primeiros anos de vida — e
conseqüentemente os demais até o sétimo — são de suma importância para o
desenvolvimento integral do homem, pois a condição humana da criança é
totalmente diversa de uma condição posterior. A criança é de fato, nos primeiros
anos, um organismo totalmente sensorial. E necessário recorrer a expressões
drásticas quando se quer realmente desvendar toda a verdade.
Na vida posterior o homem experimenta o sabor do alimento com a boca,
com o palato, com a língua. Na criança isto não ocorre, especialmente nos três
primeiros anos, quando o sabor atua através de todo o organismo. A criança
saboreia até com os membros o leite materno e a primeira alimentação. O que
em idade posterior ocorre na língua, na criança se processa em todo o
organismo. A criança vive, por assim dizer, saboreando tudo o que ingere. Neste
aspecto há algo de fortemente animalesco. Nunca devemos, porém, igualar o
elemento animalesco da criança ao do animal. O animalesco na criança é
sempre, por assim dizer, elevado a um nível superior. O homem nunca é animal,
nem mesmo como embrião — aí muito menos. Mas pode-se tornar as idéias mais
claras fazendo uma comparaçao.
Alguém que, com verdadeira consideração pelos processos da Natureza,
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tenha visto alguma vez um rebanho em repouso após a pastagem — digamos, um
rebanho de vacas no prado, estando cada uma das vacas maravilhosamente
entregue ao Cosmo, ocupada no processo digestivo —, recebe uma impressão do
que realmente acontece no animal. Todo um universo, todo um extrato do
suceder cósmico se processa no animal, e enquanto digere este experimenta as
mais maravilhosas visões. O processo digestivo é o mais importante processo
cognitivo no animal. E ao digerir este está entregue, de uma forma onírico-
imaginativa, a todo o Cosmo.
Isto parece extravagante, mas por estranho que pareça corresponde
exatamente à verdade. E se o elevarmos um grau acima, captaremos a vivência
da criança em suas funções físicas. O sabor acompanha todas essas funções, e da
mesma forma se estende a todo o organismo da criança algo que normalmente se
localiza apenas nos olhos e nos ouvidos.
Imagine-se o que de maravilhoso há num olho: como este capta o colorido do
mundo exterior, formando interiormente uma imagem que nos permite ver. Isto é
localizado, estando à parte de nossa vivência global. E então compreendemos
com o intelecto aquilo que o olho cria de forma admirável e do qual é elaborada
uma silhueta mental.
Igualmente maravilhosos são os processos localizados no ouvido do homem
adulto. Porém, tudo o que no adulto está localizado nos sentidos distribui-se, na
criança, por todo o organismo. Conseqüentemente inexiste, na criança, qualquer
separação entre espírito, alma, corpo; tudo o que atua do exterior é reproduzido
interiormente. A criança reproduz, pela imitação, tudo o que a circunda.
Tendo isto em mente, observemos como são adquiridas pela criança, nos
primeiros anos, três atividades — três faculdades — que condicionarão toda a
sua vida: andar, falar, pensar.
O andar é — poderíamos dizer — uma abreviatura, uma curta expressão de
algo muito mais abrangente. Dizemos que a criança aprende a andar pelo fato de
este aspecto ser o mais evidente. Mas este aprender a andar implica colocar-se
em posição de equilíbrio diante do mundo espacial. Enquanto crianças pro-
curamos a postura ereta, procuramos colocar as pernas em tal relação com a
força da gravidade que com isto possamos obter o equilíbrio. Tentamos o mesmo
com os braços e as mãos. Todo o organismo se orienta. Aprender a andar
significa encontrar as direções espaciais do mundo e nelas engajar o próprio
organismo.
Trata-se aqui de observarmos da maneira correta como a criança é um ser
sensorial imitativo — pois nos primeiros anos de vida tudo tem de ser aprendido
através da imitação, captado pela imitação do meio ambiente.
Ora, é evidente a maneira como o organismo faz brotar de si próprio as
forças orientadoras, como o organismo do homem está apto a colocar-se em
posição vertical, não permanecendo, como ao engatinhar, em posição horizontal,
e a utilizar os braços de forma adequada, em equilíbrio diante do mundo
espacial. Tudo isto é inerente à criança, originando-se, por assim dizer, dos
próprios impulsos do organismo.
Quando começamos, como educadores, a introduzir coação, por mínima que
seja, naquilo que a natureza humana individual quer, quando não compreen-
demos ser necessário deixá-la livre e sermos apenas os guias auxiliares,
prejudicamos então a organização humana para toda a vida terrena.
Quando, portanto, obrigamos erroneamente a criança a andar através de
métodos externos, não nos limitando a ajudá-la — querendo, ao contrário,
pressioná-la a andar, a ficar de pé, — prejudicamos sua vida até à morte —
especialmente na idade mais avançada. Pois numa verdadeira educação não se
trata de simplesmente olhar para o momento presente da criança, mas de
considerar toda a vida humana até à morte. Precisamos saber que na idade
infantil se encontra o germe de toda a vida humana terrena.
Ora, a criança, por ser um organismo sensorial extraordinariamente
delicado, é sensível não somente às influências físicas de seu meio ambiente,
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mas principalmente às influências mentais. Por mais paradoxal que possa
parecer a mentalidade materialista, a criança sente o que pensamos à sua volta.
E é importante não somente que, como pais ou educadores, evitemos atitudes
impróprias visíveis, mas que sejamos interiormente verdadeiros e permeados de
moral em nossos pensamentos e sentimentos — os quais a criança sente e capta.
É que ela estrutura seu ser não somente de acordo com nossas palavras ou
ações, mas segundo nossa atitude moral, nosso desempenho mental e afetivo. E
para a primeira época da educação infantil até o sétimo ano, é sumamente
importante o ambiente à sua volta.
Surge então a pergunta: o que podemos mesclar à nossa ajuda no
aprendizado do andar e da auto-orientação? Trata-se, aqui, de observar as
conexões da vida por meio de uma ciência espiritual, e não mediante uma ciência
morta e desespiritualizada.
Tomemos uma criança que, por quaisquer meios coercitivos considerados
corretos, tenha sido obrigada a andar, a orientar-se no espaço; e observemo-la
então depois, aos cinqüenta anos — entre os cinqüenta e os sessenta. Se nada
diferente houver interferido durante a vida, nós a veremos, a essa altura,
padecendo de todas as possíveis enfermidades metabólicas, incontroláveis por
ela: reumatismo, gota, etc.
Tudo o que de anímico-espiritual exercemos sobre a criança — sim, é algo
anímico-espiritual querermos induzi-la forçadamente à posição vertical e ao
andar, mesmo que o façamos de modo inadvertido — chega a atuar nela em
âmbito físico. As forças que produzimos através de medidas altamente
questionáveis perduram por toda a vida humana, e, não tendo sido corretas,
manifestam-se em enfermidades físicas.
Toda educação é, no caso da criança, educação física. Não se pode educar o
aspecto físico em separado, pois toda educação anímico-espiritual na criança é
fisicamente atuante — é educação física. Quando se vê, numa criança, o
organismo orientar-se para ficar ereto, para andar; quando se atenta com íntimo
sentimento de amor para esse maravilhoso segredo do organismo humano, que é
capaz de progredir da posição horizontal para a vertical; quando se tem o senti-
mento religioso de postar-se com tímida veneração diante das forças criadoras
divinas que orientam a criança no espaço; quando, em outras palavras, lá se está
como guia auxiliar no andar, no aprender a orientar-se, como quem ama
intimamente a natureza humana no ser infantil à medida que acompanha com
amor cada manifestação dessa natureza humana, produzem-se na criança forças
sadias, ainda visíveis justamente num metabolismo sadio entre os cinqüenta e os
sessenta anos, quando é necessário controlar esse metabolismo.
Este é, pois, o segredo da evolução humana: aquilo que em certa etapa da
vida é anímico-espiritual torna-se posteriormente físico, manifesta-se fisicamente
depois de muitos anos.
Isto basta sobre aprender a andar. Uma criança amorosamente conduzida a
andar torna-se uma pessoa sadia. E empregar o amor no aprendizado do andar
contribui consideravelmente para a educação corporalmente sadia da criança.
O falar desenvolve-se a partir da orientação no espaço. A fisiologia moderna
não sabe muito a respeito; porém, já sabe alguma coisa. Sabe que, ao
realizarmos nossos afazeres com a mão direita, uma circunvolução no lado
esquerdo do cérebro provoca o movimento da fala. Tal fisiologia já estabelece
uma correspondência entre o movimento da mão direita e o denominado “órgão
de Broca”, localizado na metade esquerda do cérebro. A maneira como a mão se
move, como faz gestos, como a energia se derrama nela — tudo se transmite ao
cérebro e plasma o aspecto motor da fala. O que se sabe cientificamente é
apenas um fragmento,pois a verdade é a seguinte: a fala não provém unicamente
do movimento da mão direita, correspondente à circunvolução do lado cerebral
esquerdo, mas de todo o organismo motor do homem. A maneira como a criança
aprende a andar, a orientar-se no espaço, como aprende a converter os primeiros
e indeterminados movimentos dos braços em gestos conseqüentes, relacionados
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com o mundo exterior, tudo isso se transporta através da misteriosa organização
interna do homem para a organização da cabeça, manifestando-se na fala.
Quem é capaz de discernir estas coisas sabe que cada som, especialmente
cada som palatal, soa diferentemente numa criança que tropeça ao andar e numa
criança que caminha firme. Todo o matizado da fala é devido à organização
motora. A vida se manifesta primeiramente em gestos, e os gestos transformam-
se interiormente no elemento motor da fala. Assim, o falar é um resultado do
andar, isto é, do orientar-se no espaço. E do fato de levarmos amorosamente a
criança a andar é que muito dependerá sua maneira de dominar a fala.
Estas são as sutis correlações fornecidas por um real conhecimento do
homem. Não foi sem razão que nos dias anteriores eu descrevi detalhadamente
esse processo de trazer o espírito à organização humana. Assim se traz o espírito
ao corpo — pois o corpo segue o espírito a cada passo quando este é trazido da
maneira correta.
Ora, a criança aprende também a falar primeiramente através de todo o seu
organismo. Considerando o assunto desta forma, temos em primeiro lugar o
movimento exterior, o movimento das pernas, que provoca o contorno forte; o
articular dos braços e das mãos, que produz a flexão, a plasticidade das palavras.
Vemos como é transformado interiormente, na criança, o movimento exterior em
movimento da fala.
E se no aprendizado do andar a ajuda que prestamos como guias auxiliares
deve ser impregnada de amor, em nossa ajuda no aprendizado da fala é neces-
sário sermos interiormente verdadeiros. A maior falsidade da vida se engendra
enquanto a criança aprende a falar, pois aí a veracidade da fala é captada pelo
organismo físico.
Uma criança diante da qual, como educadores e mestres, nos expressamos
sempre sinceramente como seres humanos, ao imitar o meio ambiente assimilará
a linguagem de tal forma que nela se intensificará a atividade realizada no
organismo enquanto inspiramos e expiramos.
Naturalmente, estas coisas não devem ser compreendidas grosso modo, mas
em suas sutilezas — pois em sutilezas se constituem e se manifestam por toda a
vida. Nós inspiramos oxigênio e expiramos gás carbônico. Em nosso organismo,
pelo processo da respiração, o oxigênio tem de ser transformado em gás car-
bônico. O mundo nos fornece o oxigênio, tomando-nos o gás carbônico. O fato de
transformarmos de maneira correta, em sutis e íntimos processos vitais, o oxi-
gênio em gás carbônico, depende de termos sido tratados sincera ou falsamente
por nosso meio ambiente, durante o aprendizado da fala. O elemento espiritual
transforma-se, aí, totalmente em processo físico.
E uma das falsidades consiste no fato de acreditarmos fazer bem à criança
reduzindo-nos, pela fala, ao nível infantil. Em seu inconsciente, porém, a criança
não quer ser interpelada em linguagem infantil —quer ouvir, isto sim, algo que
corresponda à autêntica linguagem do adulto. Falemos, portanto, à criança como
estamos habituados, e evitemos uma linguagem infantil especialmene dirigida.
Por causa de suas limitações, a criança inicialmente apenas imita
balbuciando aquilo que se lhe diz; mas não devemos, nós próprios, imitá-la —
pois este é o máximo deslize. E quando acreditamos dever empregar o balbucio
da criança, sua linguagem imperfeita, prejudicamo-lhe os órgãos da digestão. E
que todo elemento espiritual se toma físico, penetra formativamente na
organização física. E tudo o que fazemos espiritualmente à criança é — porque a
criança em si é absolutamente nada — também um treinamento físico. Muitos
órgãos digestivos defeituosos na vida posterior devem-no a um errôneo
aprendizado do falar.
Exatamente como o falar surge do andar, do apalpar, do movimento humano,
surge depois o pensar a partir da fala. E é necessário que, durante a orientação
auxiliar para o andar, embebamos tudo em amor; que nos dediquemos — porque
a criança imita interior-mente o que se realiza ao seu redor —, durante o
aprendizado da fala, à mais sólida veracidade; e que, assim, façamos predominar
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a clareza em nosso pensar ao redor da criança, para que esta, sendo toda ela um
órgão sensorial, reproduza interiormente, no organismo físico, também o
elemento espiritual, com o qual possa extrair da fala um pensar correto.
O maior prejuízo que podemos causar à criança ocorre quando, à sua volta,
damos qualquer ordem que depois revogamos dizendo algo diverso, confundindo
então as coisas. Provocar confusão pelo pensar em presença da criança é a
verdadeira raiz daquilo que, na atual civilização, chamamos de nervosismo.
Por que tantas pessoas de nossa época são nervosas? Simplesmente pelo
fato de os adultos não haverem pensado de forma clara e precisa ao seu redor,
quando elas, após haverem aprendido a falar, aprenderam também a pensar.
Cada geração, ao evidenciar seus mais graves defeitos, é fisicamente uma
cópia fiel da geração precedente. E quando se observam certas falhas dos pró-
prios filhos numa época posterior da vida, essa observação deve constituir um
pouquinho de razão para um autoconhecimento — pois é por um processo muito
íntimo que tudo o que ocorre ao redor da criança se expressa na organização
física. Amor no aprendizado do andar, veracidade no aprendizado da fala, clareza
e determinação durante o aprendizado do pensar transformam-se, nessa fase da
infância, em organização física. Os vasos e órgãos se estruturam da mesma
forma como se desenvolvem o amor, a veracidade e a clareza no meio ambiente.
As enfermidades metabólicas são a conseqüência da ausência de amor no
aprendizado do andar. Os distúrbios digestivos podem ser o resultado de um
tratamento insincero quando a criança começa a falar. O nervosismo resulta, na
vida, do pensar confuso ao redor da criança.
Quando se observa como predomina o nervosismo nesta terceira década do
século XX, só se pode deduzir que deve ter reinado uma forte confusão nos edu-
cadores por volta do início do século. Pois tudo o que então era comportamento
confuso através do pensar constitui o nervosismo atual. E, por sua vez, o nervo-
sismo que as pessoas tiveram na virada do século nada mais era senão a imagem
da confusão por volta de 1870. Estas coisas podem ser observadas de tal forma
que nem a fisiologia, a higiene ou a psicopedagogia estejam isoladas, e que o
professor não necessite chamar o médico a cada ocasião relacionada com saúde;
tais coisas podem ser tratadas de forma que a pedagogia fisiológica e a higiene
escolar, a fisiologia escolar sejam um todo, assumindo o professor em sua mis-
são, em sua tarefa, também aquilo que a atuação espiritual representa para o
organismo sensorial físico.
Porém, visto que todas as pessoas são educadores para a idade entre o
nascimento e o sétimo ano de vida, situamo-nos também diante da tarefa social
decorrente do fato de ser absolutamente necessário um verdadeiro
conhecimento do homem para que a Humanidade empreenda um caminho
ascendente, e não uma descida.
A atividade lúdica
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necessário presentear a menina em idade lúdica com uma linda boneca, com a
qual ela possa brincar. Esta “linda” boneca, não obstante, é sempre horrível, por
ser anti-artística; mas é, como às vezes se conceitua, uma linda boneca, com
cabelos “legítimos”, corretamente pintada e com olhos móveis — quando é
abaixada fecha os olhos, e quando erguida nos olha.
Assim como tais bonecas móveis, amiúde são introduzidos nas brincadeiras
das crianças brinquedos que, de forma horrível e anti-artística, mas suposta-
mente imitando a vida, são-lhes oferecidos. A boneca é meramente um exemplo
característico; temos moldado todos os nossos brinquedos da mesma forma, em
nossa civilização. Tais brinquedos são a mais terrível tortura para as crianças. E
assim como se mostram comportadas no seio da família e da comunidade mesmo
sendo castigadas, segundo é exigido pelas convenções, as crianças tampouco
expressam, por gentileza, aquilo que se enraíza verdadeiramente no mais
profundo de sua alma: a antipatia por essa linda boneca. Por mais que insistamos
junto à criança que ela lhe deva ser simpática, suas forças inconscientes e
subconscientes têm forte desempenho, sendo-lhe profundamente antipático tudo
o que se apresenta na aparência da “linda boneca” — pois esta constitui, como
mostrarei a seguir, um flagelo interior para a criança.
Suponha-se, porém, que seja levado em consideração aquilo que a criança
experimentou em sua simples atividade pensante até o quarto, quinto ano, e ain-
da até o sexto, sétimo ano, no processo de ficar de pé, de colocar-se
verticalmente, de procurar andar; confecciona-se então uma boneca com um
pedaço de pano, tendo uma cabeça na parte de cima e, quando muito, duas
manchas de tinta como olhos. Tem-se então nessa boneca tudo o que a criança
pode compreender, e também amar. Aí existem, de forma primitiva, as
características da figura humana na extensão em que a criança pode observá-las
em sua idade.
Nada mais sabe a criança acerca do homem, a não ser que está de pé, que
tem uma parte em cima e outra embaixo, que lá em cima há uma cabeça com um
par de olhos; a boca — encontraremos isto nos desenhos infantis —, elas a
desenham muitas vezes na testa, pois seu lugar não lhes é definidamente claro.
Tudo o que a criança realmente vivencia está contido na boneca feita de pano,
com um par de manchas de tinta. Na criança trabalha uma força plástica interna.
Tudo o que lhe vem do meio ambiente se transporta para um processo formativo
interior, e também para a formação dos órgãos.
Quando a criança, digamos, tem ao seu lado um pai que a todo momento se
mostra colérico, vivendo portanto num ambiente onde a toda hora acontecem
vivências exteriores diretas, ela participa dessas vivências — e com tal
intensidade que isto se manifesta em sua respiração e em sua circulação. A
medida que tal ocorre, plasmam-se os pulmões, o coração e todo o sistema
vascular; e a criança leva consigo, por toda a vida, interiormente moldado, aquilo
que formou plasticamente em si por presenciar os atos de um pai colérico.
Com isto eu quis apenas indicar como a criança tem a seu dispor uma força
plástica interior maravilhosa, e como trabalha continuamente em seu íntimo
como um escultor. E se lhe dermos a boneca de pano, penetrarão suavemente no
cérebro as forças plasmadoras do organismo — principalmente aquelas que, a
partir do sistema rítmico, da respiração e da circulação sangüínea, moldam o
órgão cerebral. Elas plasmam o cérebro infantil da mesma maneira como
trabalha um escultor que elabora a escultura com mão firme, flexível,
compenetrada de espfrito e alma: tudo ocorre em caráter formativo, em evolução
orgânica. A criança observa esse pedaço de pano transformado em boneca, e isto
se torna força plasmadora humana, força verdadeira que, a partir do sistema
rítmico, intervém no sistema cerebral.
Quando damos à criança uma das chamadas lindas bonecas — a boneca
articulada, que pode mover os olhos, de faces tingidas e belos cabelos —
entregando-lhe esse horrível fantasma do ponto de vista artístico, forças
plásticas que modelam o sistema cerebral atuam do sistema rítmico, partindo da
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respiração e do sistema sangüíneo como chicotadas: tudo o que a criança ainda
não pode compreender açoita o cérebro. Este é terrivelmente golpeado e
flagelado.
É este o segredo da linda boneca. Mas é também o segredo da vida lúdica
infantil em muitos aspectos.
É preciso ter bem claro, quando se deseja conduzir amorosamente a criança
ao brinquedo, o quanto de forças internamente construtivas entram em cena. A
este respeito toda a nossa civilização tem uma visão errônea. Ela inventou, por
exemplo, o chamado “animismo”. A criança que se choca contra a mesa golpeia o
canto da mesma. Nossa época diz que a criança dá vida à mesa, imagina-a viva,
um ser vital, concebe a vida dentro dela, golpeia-a.
Isto não é verdade. A criança não visualiza nada dentro da mesa; imagina
vida somente a partir dos seres vivos, dos seres que realmente vivem. Não trata
de imaginar vida dentro da mesa, e sim de extrair vida dos seres realmente
vivos. E, tendo-se machucado, golpeia a mesa por uma espécie de movimento
reflexo; tudo ali permanece sem vida para a criança — esta não imagina vida
dentro da mesa — e ela se comporta da mesma forma diante do vivo e do não-
vivo.
Destas idéias totalmente distorcidas se conclui como nossa civilização não
está em condições de abordar a criança. Assim, trata-se de podermos comportar-
nos amorosamente diante dela, de apenas orientarmos carinhosamente aquilo
que ela mesma quer. Não devemos, pois, flagelá-la interiormente através de
lindas bonecas, mas poder conviver com ela e moldar a boneca que ela própria
vivencia interiormente.
E assim ocorre com relação a toda a atividade lúdica. A brincadeira requer,
de fato, que realmente se perscrute a natureza infantil. Quando balbuciamos co-
mo o pequenino, quando reduzimos nossa linguagem à da criança, quando não
falamos tão sinceramente quanto a criança o deve ouvir, como algo verdadeiro
advindo de nosso ser, comportamo-nos falsamente diante dela. Por outro lado,
podemos colocar-nos no nível infantil quando se trata do elemento volitivo que
entra na brincadeira. Então se nos tornará claro que a criança não possui, em
seu ser orgânico, aquilo que é muito apreciado em nossa civilização: a
intelectualidade. Não devemos, portanto, introduzir na brincadeira infantil nada
que seja predominantemente intelectual.
Ora, a criança imitará naturalmente, ao brincar, o que ocorre a seu redor;
mas poucas vezes se terá experimentado o fato de uma criança querer tornar-se
— digamos — um filólogo. Raramente se ouvirá tal coisa de uma criança de
quatro anos; mas um chofer, por exemplo, ela talvez queira ser. Por quê? Porque
se pode ver tudo o que um chofer aparenta. É visível, produz uma impressão
pictórica imediata. O que o filólogo faz não produz impressão alguma. Não é
pictórico, passando desapercebido à criança. Passa inadvertidamente em sua
vida. Na brincadeira, entretanto, só devemos introduzir o que não é
desapercebido para ela. Todo elemento intelectual, porém, passa assim por sua
vida. O que, portanto, necessitamos para poder orientar corretamente, como
adultos, a brincadeira infantil? Nós aramos, fazemos chapéus, costuramos rou-
pas etc., etc. Em tudo isto há uma orientação para o objetivo, no qual está
implícito o elemento intelectual. Tudo o que na vida implique meta está
permeado de intelectualismo.
Ora, tudo o que faz parte da vida, seja arar ou qualquer outra coisa, como
fabricar carros, atrelar cavalos, além do fato de estar orientado para uma meta,
possui algo que vive em sua forma exterior — em sua mera forma exterior.
Observando-se um camponês conduzindo o arado no campo — abstraindo-se
totalmente a meta de tal atividade —, pode-se sentir, se assim posso exprimir-me,
o elemento plástico daquilo que vive no quadro, e que vem a ser o próprio
quadro. Se alguém se propõe, como pessoa — levado pelo senso estético —,
captar o elemento plástico à parte de um objetivo, será então capaz de vir
realmente de encontro à criança em matéria de brinquedos. Preterindo o
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conceito de beleza cada vez mais intelectualista, aspirado nas atuais “lindas
bonecas”, por aquilo que se exprime na atitude e em todo o sentimento humano,
somos justamente conduzidos à boneca primitiva, realmente encantadora, muito
mais real2 do que a tal “linda” boneca. Mas isto já é para crianças mais velhas!
Trata-se, portanto, de podermos observar, para tornar-nos educadores, esse
elemento estético do trabalho no trabalho, aplicando-o na confecção de brin-
quedos. Desta forma nos aproximaremos daquilo que a criança deseja em seu
íntimo. Em nossa civilização tornamo-nos pessoas quase que exclusivamente
utilitaristas, isto é, intelectualistas, levando portanto à criança tudo o mais
possivelmente elucubrado. Porém a questão é não levarmos à criança aquilo que
está pensado por uma vida madura, mas o que puder ser sentido e vivenciado
numa vida madura. Isto deverá estar implícito no brinquedo. Podemos dar um
arado a um menino, mas o importante é que possamos imbuí-lo do caráter
plástico e estético do ato de arar. É isto que pode conduzir a plenitude do ser
humano a desabrochar.
A este respeito, alguns jardins-de-infância, extraordinariamente dignos de
reconhecimento sob outros aspectos, têm cometido grandes falhas. Os jardins-
de-infância fundados por Fröbel e outras pessoas com um verdadeiro e íntimo
amor pela criança devem ter bem claro que esta é um ser imitativo, mas só quem
ainda não está intelectualizado pode exercer a imitação. Assim, não devemos
introduzir no jardim-de-infância toda sorte de trabalhos infantis já mentalmente
elaborados. Atividades como combinar palitos, trançar papel e outras similares,
freqüentemente de grande importância nos jardins-de-infância, não passam de
invenções. Só devemos ter, no jardim-de-infância, a imagem daquilo que os
adultos também fazem, e não o que é especialmente engendrado.
Freqüentemente aquele que possui um conhecimento do homem é invadido por
um sentimento trágico ao entrar num desses jardins-de-infância modelares, onde
há trabalhos tao lindamente engendrados — pois, de um lado, esses jardins-de-
infância surgem de uma infinita boa vontade, de muito amor pela criança, e de
outro lado não se considera que todo conteúdo intelectual, toda elucubração nos
trabalhos infantis deve ser excluída do jardim-de-infância, e que apenas a
imitação exterior da imagem externa da atividade adulta deve ser aí cultivada.
Uma criança treinada intelectualmente antes do quarto, quinto ano de idade
leva para a vida algo de terrível, que poderá torná-la materialista. Quanto mais
intelectualmente ensinamos uma criança até essa idade, um maior materialista
estamos produzindo para a vida. Pois o cérebro é, por um lado, tão estimulado
que o espfrito já vive em suas formas, e o ser humano recebe interiormente a
intuição de que “tudo é apenas material” — por seu órgão cerebral ter sido tão
prematuramente impregnado de intelectualismo.
Se quisermos educar o homem para a compreensão do espiritual, devemos
propiciar-lhe o mais tardiamente possível o chamado elemento espiritual externo
em sua forma intelectualista. Embora justamente em nossa civilização seja
sumamente necessário que o homem se torne plenamente lúcido na vida madura,
devemos deixar que a criança permaneça o mais longamente possível naquela
agradável e sonhadora vivência na qual ela cresce em direção à vida — o mais
demoradamente na imaginação, na atividade pictórica, na ausência de
intelectualidade. Se fortalecermos seu organismo no aspecto não-intelectual, ela
crescerá de maneira correta para o intelectualismo necessário na atual
civilização.
Se açoitarmos seu cérebro da forma já aludida, prejudicaremos sua alma
para toda a vida. Assim como prejudicamos a digestão através do balbucio, tal
como prejudicamos o metabolismo para a vida posterior através de um errôneo
aprendizado desamoroso do andar, prejudicamos também a alma flagelando
interiormente a criança. Assim sendo, deveria ser um ideal de nossa educação
2 N. da edição original: Neste ponto o Dr. Steiner mostrou uma boneca confeccionada por alunos da Escola
Waldorf.
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eliminar antes de tudo os castigos anímicos, mas, pelo fato de a criança ser um
ente totalmente físico-anímico-espiritual, também os castigos físicos internos —
isto é, a “linda” boneca —, para, antes de mais nada, levar o brinquedo ao nível
correto.
Quero encerrar estas considerações de hoje dizendo que indiquei aqui como
se deve evitar o falso aspecto espiritual, para que o espiritual autêntico, ou seja,
o homem integral, possa manifestar-se em idade posterior.
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