Financiamento Isl Mico e Subcapitaliza o 1694466829
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1 Introdução
Sabe-se que as operações de financiamento islâmico estão sendo difundidas
com enorme celeridade no mundo não islâmico, para atender a demandas espe-
cíficas do mercado em diversos segmentos de negócio, como bancário, mercado
de capitais, administração de ativos e seguros. Essas operações têm recebido a
atenção do mercado tradicional de “países não islâmicos” (i.e., regiões que não
seguem a religião islâmica e cujos habitantes não são, em sua maioria, muçul-
manos), que procuram oportunidades alternativas de investimento e fontes de
financiamento flexíveis e customizáveis.
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A maior parte dos países muçulmanos (v.g., Catar, Egito, Emirados Ára-
bes Unidos, Iraque, Marrocos e Turquia), cujos habitantes professam, em sua
maioria, a fé islâmica, utiliza as operações de financiamento islâmico como
produtos financeiros compatíveis com as leis da Sharia. No entanto, essas ope-
rações de financiamento estruturadas estão crescendo exponencialmente em
“países não islâmicos”, o que recomenda o estudo de suas possíveis repercussões
no sistema tributário brasileiro.
Nesse contexto, o presente artigo pretende apresentar breves considerações
a respeito da aplicação, ou não, das regras de subcapitalização previstas na Lei n.
12.249/2010 às operações de financiamento islâmico.
Para tanto, será preciso apresentar, inicialmente, considerações gerais sobre
as operações de financiamento islâmico, com o objetivo de delimitar as caracte-
rísticas dos principais tipos de arranjos utilizados no mercado. Na sequência, o
artigo abordará os aspectos contábeis envolvidos no reconhecimento, na men-
suração e na divulgação das operações de financiamento islâmico, para então
seguir para a análise do tema sob o enfoque da Lei n. 12.249/2010, que disciplina
o controle da subcapitalização no Direito Tributário brasileiro.
Capítulo II, v. 276: Deus permitiu a venda, proibiu a usura. Aqueles que voltarem
para a usura serão entregues ao fogo, onde ficarão eternamente.
Capítulo XXX, v. 38: O dinheiro que dais a juros para o aumentardes com o bem dos
outros, não aumentará perante Deus.
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Murabaha
1. Instituição financeira 2. Instituição financeira
adquire o produto do revende o produto a prazo
fornecedor com pagamento à para o cliente por 120
vista de 100
Fornecedor Cliente
100 120
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4. IBRAHIMA, Hasmiene Diocolano; LINGA, Ding Xiao. An appraisal of the financial reporting
practices of Islamic banks: the case of Murabahah contract. Scientific Journal of PPI-UKM,
v. 3, n. 3, p. 113-118, 2016.
5. ROSMAN, Romzie; HAMID, Mohamad Abdul; AMIN, SITI Noraini; AHMED, Mezbah Uddin. Fi-
nancial Reporting of Murabaha Contracts: IFRS or AAOIFI Accounting Standards? MEI Insight
– Islamic Finance Special. Singapure: National University of Singapure, 2016. p. 2016.
6. “Art. 481. Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o
domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”.
7. “Art. 492. Até o momento da tradição, os riscos da coisa correm por conta do vendedor, e os
do preço por conta do comprador.”
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8. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: contratos. 17. ed. atual. por Caitlin
Mulholland. Rio de Janeiro: Forense, 2013. v. III, p. 106.
9. RODRIGUES, Silvio. Direito civil: dos contratos e das declarações unilaterais da vontade. 28.
ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 3, p. 145.
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10. OECD. Limiting Base Erosion Involving Interest Deductions and Other Financial Pay-
ments. Action 4: 2015 Final Report. Paris: OECD Publishing, 2015. p. 29-31.
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11. MONTEIRO, Washington de Barros; MALUF, Carlos Alberto Dabus. Curso de direito civil:
direito das obrigações – 1ª parte. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 4, p. 381.
12. Item 32 do Pronunciamento Técnico CPC n. 12.
13. MUNIZ, Ian; MONTEIRO, Marco. Tributos federais e o novo padrão contábil: comentários à
Lei n. 12.973/2014. São Paulo: Quartier Latin, 2016. p. 72-76.
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14. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídico e declaração negocial: noções gerais
e formação de declaração negocial. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1986. p. 124. O
tema foi abordado de forma detida no texto: SANTOS, Ramon Tomazela. A dedutibilidade de
despesas com o pagamento de propina à luz das leis internas e das convenções internacionais
celebradas pelo Brasil. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 48, p. 727-728, 2021.
15. Eis a precisa lição de Orlando Gomes: “Não é possível qualificar uniformemente o pagamento.
Sua natureza depende da qualidade da prestação e de quem o efetua. Feito por terceiro é um
negócio jurídico e, igualmente, se, além de extinguir a obrigação, importa transferência de
propriedade da coisa dada pelo solvens ao accipiens, admitida em algumas legislações. Em
outras modalidades, é ato jurídico stricto sensu” (GOMES, Orlando. Obrigações. 15. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2002. p. 92).
16. MIRANDA, Custódio da Piedade Ubaldino. Teoria geral do negócio jurídico. São Paulo: Atlas,
1991. p. 156.
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17. GOMES, Orlando. Obrigações. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 52.
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18. BIANCO, João Francisco. Aparência econômica e natureza jurídica. In: MOSQUERA, Roberto
Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coord.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproxima-
ções e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010. p. 175-176.
19. Ibidem.
20. TORRES, Heleno Taveira. Direito tributário e direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2003. p. 141.
21. Veja-se o entendimento do autor: “O problema é que não existe uma realidade econômica que
não seja aquela reconhecida e institucionalizada pelo Direito Civil. É preciso esclarecer: não há
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Essa visão é reforçada pelo tradicional alerta de Eros Grau no sentido de que
“não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços. A interpretação de qualquer
texto de direito impõe sempre ao intérprete, em qualquer circunstância, o cami-
nhar pelo percurso de que projeta a partir dele – do texto – até a Constituição”22.
Disso decorre que o intérprete deve considerar as regras tributárias no contexto
do ordenamento jurídico e da realidade jurídico-civil e que a abertura do Direito
Tributário para a ciência contábil deve observar os pressupostos extraídos da teo-
ria dos sistemas. A noção de prevalência da essência econômica sobre a natu-
reza jurídica, que orienta a nova contabilidade, reflete apenas o seu objetivo de
oferecer informações úteis, comparáveis e compreensíveis aos seus usuários23,
não tendo o condão de afastar conceitos basilares do direito privado.
É bem verdade que a essência econômica a ser refletida na contabilidade
é extraída a partir do exame das cláusulas contratuais e das circunstâncias
envolvidas no negócio jurídico, e não de maneira abstrata e arbitrária pelo
contador24. Não se trata, portanto, de um processo de reconhecimento, men-
suração e divulgação integralmente subjetivo. No entanto, a contabilidade não
está vinculada à natureza jurídica e pode, no intuito de refletir de forma mais
fidedigna determinados eventos, levar em consideração elementos estranhos à
conformação jurídica dos atos ou negócios. Ocorre que essa forma de processa-
mento de dados extraídos da realidade fenomênica, que visa a atingir propósitos
contábeis, não pode subverter a realidade jurídico-institucional.
Diante disso, não parece ser possível, com base na visão contábil de pre-
valência da substância econômica sobre a natureza jurídica na contabilidade,
requalificar as operações de financiamento islâmico, sem que haja qualquer vício
de existência ou de validade no negócio jurídico praticado pelas partes.
No campo do Direito Tributário, o princípio da legalidade tributária exige que
o fato gerador do tributo e os seus elementos sejam veiculados, com clareza e
exaustividade, por meio de lei em sentido estrito. Assim, a legalidade tributária
substância econômica fora do direito que regula o patrimônio. Não existe riqueza, se ela não
gera nenhum poder de disponibilização, de troca, de compra. Que riqueza seria esta que não
poderia ser cobrada, trocada, segundo o Direito Civil? A forma e a substância, nesse sentido,
são dadas pelo Direito Civil” (ÁVILA, Humberto. Contribuições e imposto sobre a renda:
estudos e pareceres. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 269).
22. GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e
os princípios. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2018. p. 86.
23. FARRIS, Pedro Gasparetto. O objetivo da contabilidade e a sua validade para o direito. Revista
de Direito Contábil Fiscal, São Paulo, v. 3, n. 6, p. 166, 2021.
24. FERNANDES, Edison Carlos. Convergências jurídico-contábeis: as demonstrações financeiras
como base da tributação. In: MURCIA, Fernando Dal-Ri et al. (org.). Controvérsias jurídico-
-contábeis. São Paulo: Altas, 2022. v. 2, p. 173.
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requer que todos os aspectos do fato gerador da obrigação tributária sejam es-
tabelecidos por meio de lei formal, enquanto ato normativo emanado por órgão
com competência legislativa25.
Daí não se concordar com a ideia de que uma noção contábil possa alterar
a qualificação jurídica das operações de financiamento islâmico, transformando,
por exemplo, uma compra e venda a prazo em financiamento corporativo, como
se competisse à contabilidade qualificar os fatos ocorridos na realidade social,
não apenas para fins contábeis, mas também para fins fiscais.
Diante disso, conclui-se que, no âmbito do Direito Tributário brasileiro, a
substância do negócio jurídico deve advir da interpretação da lei e do fato ne-
gocial, sem qualquer recurso à interpretação econômica, pois o intérprete deve
laborar exclusivamente com base nas categorias jurídicas, sendo a realidade
econômica aquela reconhecida e institucionalizada pelo Direito Civil. Esse cri-
tério de qualificação de atos ou negócios jurídicos deve orientar a definição do
tratamento jurídico-tributário aplicável às operações de financiamento islâmico,
inclusive para fins de controle da subcapitalização.
5 Conclusões
As principais ideias expostas neste artigo podem ser assim resumidas:
25. BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. O “princípio da tipicidade tributária” e o mandamento de mini-
mização das margens de discricionariedade e de vedação da analogia. In: MANEIRA, Eduardo;
TORRES, Heleno Taveira (coord.). Direito tributário e a Constituição: homenagem ao
Professor Sacha Calmon Navarro Coêlho. São Paulo: Quartier Latin, 2012. p. 653.
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sua entrega ao cliente, o que pode ensejar seu reconhecimento como uma
compra e venda a prazo ou como um instrumento financeiro;
• para fins de controle da subcapitalização, o termo “juros” deve ser com-
preendido em seu sentido técnico-jurídico, que consiste na remuneração
pela utilização de capital alheio durante certo lapso temporal, para posterior
devolução ao seu titular, não havendo fundamento para a consideração de
juros implícitos;
• a noção de prevalência da substância econômica sobre a natureza jurí-
dica, que orienta a nova contabilidade, não afasta a aplicação de conceitos
basilares do direito privado, tais como o conceito de “juros”, que deve ser
interpretado à luz do Direito Civil, uma vez que a realidade fática subjacente
deve ser aquela reconhecida e institucionalizada pelo direito;
• no âmbito do Direito Tributário, a substância do negócio jurídico deve
advir da interpretação da lei e do fato negocial, sem qualquer recurso à in-
terpretação econômica, pois o intérprete deve laborar exclusivamente com
base nas categorias jurídicas, sendo a realidade econômica aquela reconheci-
da e institucionalizada pelo Direito Civil.
6 Referências
ÁVILA, Humberto. Contribuições e imposto sobre a renda: estudos e pareceres. São
Paulo: Malheiros, 2015.
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídico e declaração negocial: noções ge-
rais e formação de declaração negocial. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1986.
BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. O “princípio da tipicidade tributária” e o mandamento de
minimização das margens de discricionariedade e de vedação da analogia. In: MANEIRA,
Eduardo; TORRES, Heleno Taveira (coord.). Direito tributário e a Constituição: home-
nagem ao Professor Sacha Calmon Navarro Coêlho. São Paulo: Quartier Latin, 2012.
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berto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coord.). Controvérsias jurídico-contábeis
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FERNANDES, Edison Carlos. Convergências jurídico-contábeis: as demonstrações finan-
ceiras como base da tributação. In: MURCIA, Fernando Dal-Ri et al. (org.). Controvérsias
jurídico-contábeis. São Paulo: Altas, 2022. v. 2.
GOMES, Orlando. Obrigações. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: a intepretação/aplicação do direito
e os princípios. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2018.
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Caitlin Mulholland. Rio de Janeiro: Forense, 2013. v. III.
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TAVALERA, Glauber Moreno. Aspectos jurídicos controversos dos juros e da comissão
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Tribunais, 2003.
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