Formalismo Russo - Arnaldo Franco JR

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Y Edição 2009

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Revisão textual e gramatical: Maria Regina Pante. Antôl110 Augusto de Assis


Nonnalização: Ana Cmtll1a Hintze Jaeger
Projeto gráfico e diagramação: Marcos Cipriano da SIlva, Marctls Kazuyosh! Sassaka
Capa - ilustração: Tânia Machado
Capa - arte final: Luciano Wilian da Silva
Imagens: Fornecidas pelos autores
Ficha catalográfica: Edilson Damasio (CRB 9-1123)
Fonte: A1dine401 BT
Tiragem (versão impressa): 500 exemplares

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


(Eduem - VEM, Maringá - PR., Brasil)

T314 Tpuria literária: abordagens hi:l lcas e tendências contemporâneas / Thomas


Ronn~ci, Lúcia Osana Zolin. 3. ed. rev. e amplo Maringà : Eduem, 7009.
406 P il.

ISBN 978-85-7628-162-7

1. Terria literária. 2. Poesia - Narrativa. 3. Estudos culturais. 4. POS-M0dcII:


(Literatura). S. Texto literário. 6. Critica literária. 7. Artes. I. Bonnici, Thomas, 11
Zolin, Lúcia Osana, org. 111. Titulo.

CDD 21. ed.

Editora filiada à

Assodaçlo Brastl,""
das Editoras Universitárias

Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá


Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 - Campus Universitário - 87020-900 - Maringá-ParalLí
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F ORMALISMO RUSSO E
NEW CRITICISM

Arnaldo Franco Junior

INTRODUÇÃO

o Formalismo Russo e o New Crítícism caracterizam-se pela defesa de uma abordagem


imanente da literatura, ou seja, definem seus princípios e seu instrumental teóricos e, também,
suas propostas metodológicas limitando o seu objeto de estudo e investigação à materialidade do
texto literário.
Separados geográfica e culturalmente - o Formalismo desenvolveu-se na Rússia entre 1915­
17 e 1923-30; a Nova Crítica teve origem nos anos 1920-30, afirmando-se na América do Norte
entre as décadas de 1940 e 1950 - esses dois movimentos foram quase contemporâneos um do outro,
marcando, na primeira metade do século xx, uma ruptura radical com a herança da tradição da crítica
e da historiografia literárias do século XIX (crítica impressionista, psicologismo biografista; rigidez
retoricista).
Cada um à sua maneITa, os dois movimentos foram, em seus respectivos contextos de
manifestação e áreas de influência, decisivos para que a teoria literária se firmasse como
disciplina pautada por parâmetros científicos ao lado da linguística e das demais Ciências
Humanas.
Tanto num movimento como no outro, ainda que por perspectivas próprias e diferentes
entre~i,é visível a base positivista que exige que as hipóteses de investigação de um determinado
objeto de estudo - a literatura, no caso - só se convertam em teses se a argumentação e a
exemplificação que as sustentam puderem ser empiricamente comprovadas e demonstradas.
Isso significa que tanto o Formalismo Russo como o New Criticism elegem o texto literário
como limite e objeto privilegiado de suas reflexões, considerando os demais campos aos quais o
texto literário se vincula como campos de investigação secundária e/ou suplementar.
N este capítulo, vamos abordar essas duas tendências da teoria e crítica literárias, destacando alguns
de seus principais aspectos e contribuições para o estudo da literatura.
<PR A N C O J l' N I II E

1 o FORMALISMO Russo

Entre 1914 e 1917, na Rússia, alguns estudantes fundaram o Círculo Linguístico de Moscou
(1914-15) e a Associação para o Estudo da Linguagem Poética (OPOIAZ - 1917), instituindo, com
isso, um campo para o desenvolvimento de estudos da língua e da literatura, livre dos compromissos
com a tradição acadêmica vigente na época e marcado pelo entusiasmo para com o cientificismo que
caracterizava a então emergente disciplina de Linguística na Rússia e, também, em outros núcleos
í
universitários europeus.
o Formalismo Russo desenvolveu-se contemporaneamente às pesquisas e inovações estéticas do
Futurismo Russo, que teve na poesia a sua ponta de lança de afirmação dos valores de vanguarda
modernista em arte. Seu contexto de eclosão está marcado por uma forte turbulência social ligada à
crise do regime czarista e à emergência da revolução russa, que projetava a utopia de uma 'Sociedade
livre de classes sociais, capaz de abolir a propriedade privada e as limitações, estruturas e hierarquias
estopim
do formalismo comprometidas com a velha ordem econômica, sociocultural e política - uma sociedade regulada
por um Estado democrático comprometido com os interesses coletivos da sociedade e regulado, em
suas ações, pela racionalidade e pela ciência. Revolução, igualdade, liberdade, sociedade sem classes,
democracia, participação ativa na construção da sociedade e da história não são meras palavras ou
ideias nesse contexto; são ideais que caracterizaram a ação de muitos dos que se comprometeram com
o obje':ivo de transformar a sociedade, de mudar a história.
Pode-se dizer que o período heroico de combate e afirmação dos valores, ideias e propostas
dos formalistas russos (1914-17 e 1923-25) coincidiu com o período heroico de afirmação das
utopias ligadas ao projeto de construção de uma sociedade comunista na - após a revolução de
1917 - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). A ascensão de Josef Stálin ao poder
a partir de 1924, a consolidação do stalinismo e a extensão de seus efeitos a todas as instituições
da então URSS (1924-1953) significou, para os formalistas e, também, para toda a URSS, a
distorção e o dilaceramento de boa parte das utopias projetadas como ideais durante a fase heroica
anteriormente citada.
o Fonnalismo Russo pode ser, portanto, dividido em duas fases. A primeira compreende mais
precisamente os anos de 1917 a 1923, momento de afirmação agressiva das novas ideias em relação à
abordagem científica da literatura diante de uma tradição acadêmica conservadora e resistente; a segunda
compreende os anos de 1923-25 e 1930, período de radicalização dos conflitos entre os partidários de uma
abordagem sociológica da literatura (e ideologicamente comprometida com os ideais da revolução socialista
Fases do e, também, com determinados interesses ligados ao exercício do poder pelo Estado) e os membros do grupo
Formalismo Russo
formalista, que recusavam e/ou negavam certos princípios e pressupostos de tal abordagem sociológica. O
ano de 1930 marca, segundo Schnaiderman "a condenação pública e categórica do 'formalismo' [... ] e
sua virtual interdição" (1976, p. xviii), tendo, como efeito, o abandono do país por alguns dos membros
do grupo e a limitação dos que pennaneceram "a estudos literários em âmbito mais estreito, e que não
implicassem em teorização" (1976, p. xviii).
Feito esse breve histórico, vamos nos deter em alguns dos princípios e conceitos teóricos
fundamentais do Formalismo Russo.
Segundo Eikhenbaum (1976), o Fonnalismo Russo marcou-se mais propriamente pela afirmação
de detenninados princípios na abordagem da literatura do que pela proposição de um modelo
sistematizado de teoria de caráter dogmático. Nesse sentido, para os membros do grupo formalista,
a metodologia sempre ocupou posição secundária diante da literatura como objeto de estudo. Os
princípios formalistas, segundo Eikhenbaum (1976), nunca hesitaram em transformar seus princípios e conceitos,
caso tal necessidade se impusesse, em razão do estudo de detenninado texto ou problema literário. Isso
explica o fato de que, lidos em conjunto, os estudos formalistas apresentam certas nuances e diferenças
no que se refere à utilização de alguns mesmos princípios e conceitos teóricos na abordagem de textos
e problemas literários distintos.

116 - T E o H I A LITERÁHIA
~
--"-"" ·"~FORMALISMO RUSSO E NEW CRITICISM

Dentre os mais importantes princípios formalistas, destaca-se a preocupação com a abordagem


da materialidade do texto literário, que recusa, num primeiro momento, às explicações de base
extraliterária:

A filosofia, a sociologia, a psicologia etc., não poderiam servir de ponto de partida para a
abordagem da obra literária. Ela poderia conter esta ou aquela filosofia, refletir esta ou aquela
opinião política, mas, do ponto de vista do estudo literário, o que Importava era o priom, ou
processo, isto é, o princípio da organização da obra como produto estético, pmais um fator
externo (SCHNAlDERMAN, 1976, p. ix). "

Os formalistas preocupavam-se em investigar e explicar o que faz de determinada obra uma obra
literária. Nos termos de Jakobson:

A poesia é linguagem em sua função estética.


Deste modo, o objeto do estudo literário não é a literatura, mas a literariedade, Isto é, aquilo que
torna detenninada obra uma obra literária. [ ... ] Tudo servia para os historiadores da literatura:
os costumes, a psicologia, a política, a filosofia. Em lugar de um estudo da literatura, criava­
se um conglomerado de disciplinas mal-acabadas. Parecia-se esquecer que estes elementos
pertencem às ciências correspondentes [... J e que estas últimas podiam, naturalmente, utilizar
também os monumentos literários corno documentos defeituosos e de segunda urdem. Se o
estudo da literatura quer tornar-se urna ciência, ele deve reconhecer o "processo" como seu
único "herói" GAKOBSON, 1921 apud SCHNAlDERMAN, 1976, p. ix-x).

O termo príom, que Schaidcrman traduz como processo, ficou mais conhecido entre nós como
procedimento. Trata-se de um dos mais importantes conceitos dos estudos formalistas, e foi definido
num famoso ensaio de Chklovski (1976): A arte como procedimento.
Nesse ensaio, Chk10vski (1976) reitera a ideia de Jakubinski de que há uma distinção entre a
natureza da linguagem poética e a natureza da linguagem cotidiana, que ele nomeia, respectivamente,
como língua poética e língua prosaica. A linguagem poética seria distinta da linguagem cotidiana porque nela
a função referencial não se reduziria ao utilitarismo pragmático nem ao automatismo que caracterizam
Linguagem esta última. A linguagem poética se caracterizaria exatamente pela ênfase na desautomatização da
poética percepção que se encontra como que adormecida pelo hábito e pela economia e pragmatismo que
caracterizam a linguagem cotidiana:

E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é
pedra, existe o que se chama arte. O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão
e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização
dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a fomu, aumentar a dificuldade
e a duração da percepção; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto, o que é Já
"passado" não importa para a arte (CHKLOVSKI, 1976, p. 45).

Note-se, na distinção entre recoflhecimento e visão, a oposição entre automatismo e percepção


desautomatizada. Segundo Chklovski (1976), a arte se caracteriza por procedimentos de construção que
visam, por meio da desautomatização da percepção adormecida pelos hábitos cotidianos, oferecer ao seu
destinatário uma percepção mais rica em informações sobre os temas ou assuntos de que trata. Tal visão
é construída pelo artista por meio de recursos de linguagem que se constituem em procedimentos de
singularização cuja função é oferecer novas informações sobre temas e objetos que integram a experiência
cotidiana, mas se encontram como que neutralizados pelo automatismo da percepção.
Os procedimentos de singularização promovem algo como uma "crise" nos hábitos que regulam
o comportamento humano regido pelas leis da linguagem cotidiana, dificultando, deslocando ou
transtornando tais hábitos de modo que o receptor da obra seja obrigado a rever as suas expectativas
e pré-conceitos e, também, a sua própria percepção do mundo. São, portanto, os procedimentos de
singularização que, segundo Chklovski (1976), definem a especificidade da linguagem poética ou
artística. Comparem-se, por exemplo, os seguintes textos:

Tl10;.,.1A:-' BONNICI / LUCIA OSANA Z~HJN (nl~{;ANJZA!)Unrs) -- 117


C?R A N C O JUNIOR

! ,----------------------­ Meio-dia na Sé
I
Alessandra P. Caramori
Ainda me lembro daquele beijo em plena praça central oculto e
direto e claro
da cidade quando os sinos da igreja anunciavam o Nossas bocas unidas poético
meio-dia. Nossas línguas
Um sino
E dois badalos.

No primeiro texto, a referência ao beijo é direta e, portanto, como que transparente à leitura e
à compreensão de todo e qualquer leitor (embora a intensidade e o valor afetivo desse beijo sejam
diferentes para aqueles que o realizaram, como demonstra a autora do bilhete). No segundo texto,
a referência ao beijo torna-se opaca à leitura e à percepção do leitor, que tem de ler a existência de
um beijo na relação estabelecida entre as bocas unidas e o sino com dois badalos (metáfora do beijo
apaixonado, erótico, de língua). No primeiro texto, as funções referencial e emotiva GAKOBSON,
1984) são as mais importantes, e não há necessariamente destaque para a função poética; no segundo
texto dá-se o inverso: a função poética se destaca e subordina as demais.
Os procedimentos adotados pela autora do segundo texto - a "descrição" haseada numa gradação
que vai do mais externo ao mais interno - tornam o referente (beijo) algo muito particular: (a) Já no
título, que indica a posição exterior e tensa dos ponteiros do relógio passando, por sugestão, à indicação
da posição das línguas que "badalam"; ou (b) na apresentação dos signos que compõem o beijo
(bocas; línguas), a escolha de uma metáfora (um sino, e dois badalos) para representar o movimento
e a intensidade das línguas e das emoções no beijo apaixonado; a ênfase onomatopaica conferida às
nasais [n], às linguodentais [d] e às bilabiais [b] que contribui para a percepção de uma cadência
relacionada com o caráter arrebatador da experiência do eu-lírico e afirma uma associação entre o
beijo e o bimbalhar dos sinos ao meio-dia. Tais procedimentos singularizam esse beijo, tornando-o
distinto de todos os demais beijos presentes em outros textos, sejam literários ou não. Esse processo
de singularização confere ao segundo texto uma densidade maior no que se refere à Iiterariedade, e é
ele que, dando ênfase ao apelo estético do texto, universaliza a experiência ali registrada, tornando-a
artisticamente próxima da experiência de vida do leitor - o que não acontece com o primeiro texto. Por
tais razões, pode-se dizer que Meio-dia na Sé é um texto literário, enquanto que o outro texto é apenas
um bilhete trocado entre enamorados.
Os procedimentos de singularização visam, segundo Chklovski, a "criar uma percepção particular
do objet~, criar uma visão e não o seu reconhecimento" (CHKLOVSKI, 1976, p. 50). Já o caráter
estético da linguagem poética (artística) "é criado conscientemente para libertar a percepção do
singularização
automatismo; sua visão representa o objetivo do criador e ela é construída artificialmente de maneira
que a percepção se detenha nela e chegue ao máximo de sua força e duração" (CHKLOVSKI, 1976,
p. 50). O discurso poético é, para Chklovski, um "discurso elaborado" (1976, p. 55) ao passo que o
discurso prosaico (cotidiano) é "ordinário, econômico, fácil" (1976, p. 55).
Concebendo a linguagem poética (artística) como fundamentalmente comprometida com a
desautomatização da percepção, o autor afirmará aexistênciade um estreito vínculo entre oprocedimento
estranhamento de singularização e o efeito de estranhamento. É porque causa um efeito de estranhamento que a arte
desautomatiza a percepção, dificultando-a e prolongando-a ao exigir do receptor uma atenção mais
intensa e.demorada do que aquela conferida cotidianamente aos demais textos e mensagens.
Ao conceber a arte como algo marcado por um conjunto de procedimentos de singularização,
os formalistas russos contribuíram para um questionamento do modo como, até então, a crítica e a
historiografia literárias eram feitas.
A periodização literária canônica, que circunscreve autores e obras a determinados recortes
histórico-culturais e a determinadas escolas estéticas, organizados de modo sucessivo e linear, sofre,
a partir da noção de procedimento de singularização, um abalo. Pode-se, por exemplo, reescrever a
história da literatura a partir da identificação das séries literárias que tenham em comum um mesmo
conjunto de procedimentos dominantes.

118 - T E o ]( I A LITEHÁI<IA
~FORMALfSMO RUSSO E NEW CRfTfC1SM

Nesse sentido, a importância dada a distinções que se baseiam em valores extraliterários torna-se
secundária em relação ao valor das distinções calcadas em valores exclusivamente literários. Certos
distanciamentos estabelecidos entre textos vinculados a escolas estéticas diversas tornam-se menos
importantes do que o reconhecimento de que, independentemente da vinculação ideológica a esta
ou àquela doutrina filosófica, política, religiosa etc., os textos podem ser reagrupados numa história
da literatura que privilegie o reconhecimento, neles, de procedimentos de construção comuns. Vale o
mesmo para uma redefinição da noção de gênero em literatura, tão complexa e marcada por contradições
como a própria literatura em decorrência da heterogeneidade dos saberes que tradiçionalmente
sustentam a sua definição. '
A ênfase conferida ao estudo dos traços específicos do discurso literário pelos formaiistas fez com
que eles recusassem a distinção entre "forma" e "fundo" (forma x conteúdo) na abordagem crítica do
texto literário. Tal distinção, além de inadequada, dava origem a uma série de distorções e preconceitos
no que se refere à abordagem crítica da literatura. Os formalistas estabeleceram um conceito deforma
que integra tanto os procedimentos e recursos construtivos da linguagem como a própria escolha dos
temas a serem tratados pelo artista, a partir do uso de tal ou qual recurso ou procedimento linguístico.
Isso equivale a dizer que, em arte e literatura, o assunto ou tema nãopode ser dissociado do conjunto
de procedimentos construtivos que o constituem e o singularizam numa determinada obra, e vicc­
versa.
Segundo Eik.henbaum, Chklovski demonstrou, num estudo sobre a teoria do enredo e do romance,
"a existência de procedimentos próprios para a composição e sua ligdção com procedimentos estilísticos
gerais, baseando-se em exemplos muito diferentes: contos, novelas orientais, Dom Quixote de Cervantcs,
Tolstoi, Tristram Shandy de Sterne" (EIKHENBAUM, 1976, p. 16).
A afirmação da existência de procedimentos próprios para a composição da trama narratíva
(enredo) possibilitou que os formalistas deslocassem a concepção da trama narrativa (enredo), que era
tradicionalmente concebida como combinação de vários motivos (unidades temáticas), para uma visão
que a concebe como combinação de elementos de elaboração.

Assim, a noção de trama adquirira um novo sentido, sem todavia coincidir com a noção de
fábula [a história contada em uma narrativa] e as duas regras de composição [a fábula e a
trama] entraram lOgicamente na esfera do estudo formal enquanto qualidades intrínsecas das
obras literárias (EIKHENBAUM, 1976, p. 17) .

. Eikhenbaum (1976) destaca, ainda, nesse estudo de Chklovski, a importância da noção de motivação
para o estudo do romance e, acrescentaríamos nós, para o estudo da narrativa. A motivação pode ser
definida como a articulação, em um sistema marcado pela unidade estética, de motivos que constituem
a temática de uma obra. Segundo Eikhenbaum,

A descoberta de diferentes procedimentos utilizados ao longo da construção do enredo (a


construção em plataformas, o paralelismo, o "enquadramento", a enumeração etc.) nos levou
3 conceber a diferença entre os elenlentos da construção de uma obra e os elementos que

formam o seu material: a fábula, a escolha dos motivos, as personagens, as ideias etc. [ ... 1A
noção de motiv:Jção ofereceu aos formalistas a possibilidade de se aproximar mais das obras
literánas, em particular do romance e da novela, e de observar os detalhes de construção
(EfKHENBAUM, 1976, p. 20).

Chklovski (1976) define afábula como descrição dos acontecimentos de uma narrativa e a trama como
a elaboração desses acontecimentos e sua disposição numa narrativa. Correndo o risco de apresentar
uma definição redutora, podemos dizer que a fábula compreende a história contada em uma narrativa,
fábula e trama
ao passo que a trama compreende o modo como tal história é construída e organizada sob a forma de
narrativa. A fábula é, portanto, "um material que serve à construção da trama" (CHKLOVSKI, 1921
apud EIKHENBAUM, 1976, p. 22).
Tomachevski retoma em "Temática", ensaio escrito em 1925, as noções de fábula, trama, motivo
e motivação, para investigar a relação entre a escolha do tema e a permanência, ao longo do tempo,

TfI()l\l,,\~ BON~"Jt'l,1 L(;CI,\ OSt\NA ZULfN (t)HC;AN17ADOIHS) - 119


1>' A N C O J U N , O R •

I
do interesse por determinadas obras literárias. Segundo ele, o "tema apresenta uma certa unidade. E
. constituído de pequenos elementos temáticos dispostos numa certa ordem" (TOMACHEVSKI,
TEMA
1976, p. 172). Tais elementos que constituem o tema são os motivos, definidos como unidades temáticas
mínimas (TOMACHEVSKI, 1976, p. 177).

A noção de tema é uma noção sumária que une a matéria verbal da obra. A obra inteira pode
* Uma obra pode ter vários temas; ter seu tema, ao mesmo tempo que cada parte da obra. A decomposição da obra consiste em
* Motivos são partes indecompostas; isolar suas partes caracterizadas por urna unidade temática específica. [... ].
* Através desta decomposição da obra em unidades temáticas, chegamos enfim !s p;utes
indecompostas, até às pequenas partículas do material temático: "a noite caiu", "Ra~kolnikov
matou a velha", "o herói morreu", "uma carta chegou" etc. O terna desta parte indecomposta
chama-se um motivo. No fundo, cada proposição possui seu próprio motivo. [::.]. .
Os motivos combinados entre si constituem o apoio temático da obra. Nesta perspectiva, a
fábula aparece como o conjunto dos motivos em uma sucessão cronológica de causa e efeito;
a trama aparece como o conjunto desses mesmos motivos, mas na sucessão ~m que surge
dentro da obra. No que conceme à fábula, pouco importa que o leitor tome conhecimento
de um acontecimento nesta ou naquela parte da obra e que este acontecimento lhe seja
comunicado diretamente pelo autor, através do escrito de um personagem ou através de
alusões marginais. Inversamente, só a apresentação dos motivos participa da trama. Um fato
qualquer não inventado pelo autor pode servir-lhe como fábula. A trama é uma construção
inteiramente artística (TOMACHEVSKI, 1976, p. 173-174).

Uma vez mais, note-se, o Formalismo diverge de concepções características da tradição acadêmica
dos estudos literários dominantes nas primeiras décadas do século:xx. O que explica a sobrevivência
de determinadas obras literárias ao longo do tempo e em contextos socioculturais e políticos distintos
não é a simples escolha do tema pelo autor ou sua suposta atualidade para o interesse do leitor, mas
o modo como tal tema é elaborado na construção da trama narrativa. Eis o que explica que, apesar de
apresentarem o(s) mesmo(s) tema(s), certas obras sobrevivam à passagem do tempo e à transplantação
para contextos culturais diversos dos que lhe deram origem, e outras morram no esquecimento. Se
a fábula é o material de que se alimenta a trama, é preciso estudar os procedimentos específicos de
composição da trama - o que, se não impõe, sugere uma revisão das bases tradicionais que sustentavam
a história e a teoria do romance e da narrativa.
Vejamos como Tomachevski define o conceito de motivação:

O sistema de motivos que constituem a temática de uma obra deve apresentar uma unidade
estética. Se os motivos ou o complexo de motivos não são suficientemente coordenados na
obra, se o leitor fica insatisfeito com as ligações entre esse complexo e a obra inteira, dizemos
motivação que este complexo não se integra na obra. Se todas as partes da obra são mal coordenadas,
esta se dissolve.
Eis por que a introdução de todo motivo particular ou de cada conjunto de motivos deve ser
justificada (motivada). O sistema de procedimentos que justifica a introdução dos motivos
particulares e seus conjuntos chama-se "motivação" (TOMACHEVSKI, 1976, p. 184).

Segundo Tomachevski (1976), há três tipos distintos de motivação, a saber: motivação


composicional, motivação realista e motivação estética.
A motivação composicional é regida por um princípio de economia e utilidade dos motivos.
Como os'motivos podem tanto caracterizar as ações das personagens, constituindo os episódios, como
os objetos colocados no campo visual do leitor (os acessórios), é preciso que sua utilização tenha um
caráter funcional. "Nenhum acessório deve ficar inutilizado pela fábula. Tchekov pensou na motivação
motivação
composicional composicional dizendo que, se no início da novela diz-se que há um prego na parede, é justamente
neste prego que o herói deve se enforcar" (TOMACHEVSKI, 1976, p. 184-185).
Há outros dois casos de motivação composicional, a saber: a introdução de motivos como
procedimentos de caracterização e a falsa motivação. No primeiro caso, os motivos introduzidos
devem se harmonizar com a dinâmica da fábula. Tal harmonização pode se dar por meio de analogia
psicológica ou por contraste. Pense-se, quanto à analogia, no modo como o Romantismo constrói uma

120 - T E o R I A LITERÁRIA
--~~.~
~t:\ F o R M .~ l [ , M Cl R U S S O F. N I W C R I T I C [ S M

correspondência entre os sentimentos e situações dramáticas vividas pelas personagens e o espaço,


fazendo com que a paisagem natural seja bela ou tétrica, agradável ou assustadora, acolhedora ou
agressiva. Já quanto ao contraste, pense-se na relação irõnica construída por meio da dissonância entre
um fato e o espaço em que ele ocorre, como, por exemplo, em Senhora, de José de Alencar, quando, na
noite de núpcias, Aurélia humilha Fernando, recusando-se a ele e mandando-o ir dormir num quarto
ricamente mobiliado que reitera, no caso dele, os motivos do interesse e da ganância. No caso da falsa
motivação, muito usada, por exemplo, no romance policial e na narrativa de mistério e suspense,
alguns acessórios e episódios podem ser introduzidos com a função de despistar o leitor, qiando falsas
expectativas ou compreensões que se revelam, numa reviravolta que faz com que a verdad~ venha à
tona num determinado momento, falsas, enganosas.
A motivação realista pauta-se pela exigência de que a obra seja verossímil. A. verossimilhança
caracteriza-se, geralmente, pela criação da ilusão de que os fatos dos quais o leitor toma conhecimento
sejam reais, quando, na verdade, são ficcionais. Segundo Tomachevski (1976), a ilusão realista exige
motivação que cada motivo seja introduzido como um provável motivo para a situação dada. No entanto, é preciso
realista
ter em mente que a ilusão realista é criada por meio das convenções que regem, num determinado
momento, a literatura e a arte. Nesse sentido, ela sofre mudanças conforme as convenções artísticas
e literárias; com o passar do tempo, mudam. Isso impõe, para o horizonte das reflexões sobre arte e
literatura, a necessidade de se pensar no realismo da obra como algo mais complexo do que o'resultado
de uma aproximação linear e simplória da obra com a realidade, pois

o matenal realista não representa em si uma construção artística e, para que ele venha a sê­
lo, é necessário aplicar-lhe leis específicas de construção artística que, do ponto de vista da
r~alidade, serão sempre convenções (TOMACHEVSKl, 1976, p. 188).

A motivação estética exige que a introdução de motivos obedeça ao caráter estético da obra literária,
motivação harmonizando-se com ele. A distinção entre o "verdadeiro" e o "verossímil" evidencia o fato de que
estética este último responde a uma adequação entre a motivação realista e a motivação estética. Segundo
Tomachevski,

Cada motIVO real deve ser introdUZIdo por uma certa forma da construção do relato e deve
beneficiar-se de um esclarecimento particular. A própria escolha dos temas realistas deve ser
Justificada esteticamente.
As discussões entre as amigas e novas escolas literárias surgem a propósito da motivação
estética. A antiga corrente, tradicional, nega a existência do caráter estético das novas formas
hteránas (TOMACHEVSKl, 1976, p. 190-191).

Os procedimentos de singularização, vinculados, segundo Chklovski (1976), à criação de um ifeito


de estranlwmento, capaz de perturbar a recepção amortecida pelo hábito e pelas práticas cotidianas da
linguagem, são, segundo Tomachevski (1976), uma evidência da motivação estética.
Por fim, lomachevski concebe as personagens como uma espécie de suportes uivos para os diferentes
motillOS (1976, p. 193), afirmando que sua apresentação "é um procedimento coerente para agrupar
e coordenar" os motivos. A caracterização de uma personagem é um procedimento que a torna
personagens reconhecível, facilitando a compreensão do leitor. A característica de uma personagem é "o sistema
de mDtivos que lhe está indissoluvelmente ligado. Num sentido mais restrito, entende-se por
característica os motivos que definem a psiquê da personagem, seu caráter" (TOMACHEVSKI, 1976,
p.193).
A caracterização de uma personagem pode ser: a) direta, realizada pelo "autor"/narrador, por
outras personagens ou por meio de uma autodescrição; b) indireta, realizada por meio das ações da
personagem. Numa obra literária, a "personagem que recebe a carga emocional mais viva e acentuada
chama-se herói. O herói é o personagem seguido pelo leitor com a maior atenção" (TOMACHEVSKI,
1976, p. 195). Tomachevski destaca o fato de que a relação emocional com o herói está contida na
obra:
A N C O JUNIOR

o autor pode atrair a simpatia para um personagem cujo caráter na vida real poderia provocar
no leitor um sentimento de repugnância e desgosto. A relação emocional com um herói
releva da construção estética e, apenas nas formas primitivas, coincidirá obrigatoriamente
com o código tradicional da moral e da vida social (TOMACHEVSKl, 1976, p. 195).

No que diz respeito à poesia, os formalistas russos efetuaram uma crítica à supervalorização da
poesia métrica na tradição dos estudos acadêmicos. Opondo o ritmo ao metro, defenderam que o ritmo
é o elemento que constitui a unidade do verso e, a partir daí, propuseram uma teoria do verso que
o concebe como "uma forma particular do discurso, tendo suas próprias qualidades linguísticas
(sintáticas, léxicas e semânticas)" (EIKHENBAUM, 1976, p. 37-38).
Segundo Eikhenbaum, Ossip Brik demonstrou que

No verso existem construções sintáticas indissoluvelmente ligadas ao ritmo. Assim, a própria


noção de ritmo perdia seu caráter abstrato e ligava-se com a substância Iinguí;t;{ca do verso,
com a frase. A métrica recuava a um segundo plano, guardando um valor de convenção
poética mínima, de alfabeto. Esse passo era tão importante para o estudo do verso quanto o
estabelecimento da ligação entre o enredo e a construção para o estudo da prosa. A revelação
das figuras rítmicas e sintáticas derrubou definitivamente a noção de ritmo como suplemento
exterior que fiea na superfície do discurso. A teoria do verso pôs-se a estudar o ritmo como
fundamento construtivo do verso que determina todos os seus elementos, acústicos -e não­
acústicos. A perspectiva para uma teoria do verso estava largamente aberta, e esta teoria se
situava a um nível bastante mais elevado, enquanto que a métrica devia tomar o lugar de uma
propedêutica elementar (EIKHENBAUM, 1976, p. 24).

"O movimento rítmico é anterior ao verso. Não podemos compreender o ritmo a partir da linha
do verso; ao contrário, compreender-se-á o verso a partir do movimento rítmico" afirma Brik (1976,
p. 132). Isso, porque o ritmo preexiste ao verso, que nada mais é do que o registro das "marcas"
de um percurso rítmico realizado pelo poeta na construção do poema. Essa concepção desloca, no
estudo da poesia, o lugar e a importância atribuídos à divisão silábica que se presta à caracterização do
metro e às classificações da métrica. Ela afirma que o ritmo não pode ser reduzido à identificação das
sílabas acentuadas dispostas no verso, e, além disso, que a leitura dos versos não pode ser realizada de
modo isolado,pois, sendo o ritmo anterior ao verso, é ele quem determina o modo como os versos
devem ser lidos - o que explica, por exemplo, como determinados versos dispostos ao longo de um
poema mantêm a regularidade rítmica que domina o conjunto apesar de, se lidos isoladamente,
apresen~arem alterações no que se refere à identificação das sílabas acentuadas (cesura).

Teoricamente, cada sílaba pode ser acentuada ou não, tudo depende do impulso rítmico. Por
isso, distinguir as fortes, as semifortes, as levemente fortes, as fracas etc., e tentar penetrar
assim, na diversidade do movimento rítmico, não poderia ser senão uma empresa estéril.
Tudo depende do ritmo do discurso poético que tem como consequência a distribUição em
linhas e sílabas.
Os experts tentam fixar a intensidade de cada sílaba e devem admitir que diferentes pronúncias
do verso levam a resultados diferentes. O permanente mal-entendido tem como única causa a
contusão que se fez entre Impulso rítmico e verso pronto.
Se colocarmos de saída a primazia do movimento rítmico, o fato de que obtemos ao
curso de diferentes leituras resultados diferentes não terá nada de espantoso; não nos
surpreenderemos ao obter, no decorrer de leituras diferentes de um mesmo poema, uma
alternância diferente das unidades rítrmcas (BRIK, 1976, p. 133).

Para se ter uma aproximação concreta dos problemas apontados por Brik (1976), basta, por exemplo,
que dois leitores façam leitura em voz alta do mesmo texto, pois o ritmo está ligado ao sentido, que,
por sua vez, está ligado ao contexto, à interpretação e ao discurso, fatores que desencadearão mudanças
nos pontos de pausa (CHACON, 1998, p. 24).
Para Brik, "o verso é um complexo necessariamente linguístico, mas que repousa sobre leis
particulares que não coincidem com as da língua falada" (BRIK, 1976, p. 139). Nesse sentido, há
dois erros a serem evitados quando do estudo da poesia: a) a redução do verso às questões linguísticas
122 I E o R I A L ! T E R Á !( [ A
~Fo R M A L IS M O R U , S () E N E W c: I, I T I C I S M

(sintáticas), que negligenciam o valor e a importância do som e do ritmo para a construção do poema;
b) a redução do verso ao domínio dos sons convencionais e das imagens rítmicas, desprezando o valor
e a importância da estrutura semântica para a construção do poema (tal como faziam os futuristas
russos em sua fase mais radical). O estudo da poesia deve equilibrar um e outro aspectos, pois o ritmo
e a sintaxe "não existem separadamente, mas aparecem simultaneamente, criam uma estrutura rítmica
e semântica específica, tão diferente tanto da língua falada quanto da sucessão transracional dos sons"
(BRIK, 1976, p. 138).
Além de Brik, Tomachevski contribuiu, ao escrever A versificação russa (1942), para ;l construção
de uma teoria do verso que o concebe como elemento constitutivo de um "discurso específico, onde
todos os elementos contribuem para o caráter poético" (EIKHENBAUM, 1976, p. 26)..

o discurso poétIco é um discurso organizado quanto a seu efeito fônico. Mas, já que o efeito
fônico é um fenômeno complexo, só um de seus elementos sofie a carronização. Assim, na
métrica clássica, o elemento canonizado é representado pelos acentos que ela submeteu a uma
sucessão e regulou com leis [ ... ] Mas é suficiente que a autoridade das fonnas tradicionais seja
abalada para que apareça com insistência este pensamento: a essência do verso não se combina
com seus traços primeiros, o verso vive também pelos traços secundários de seu efeito fônico;
ao lado do metro, existe o ritmo que é também apreensível; pode-se escrever versos em que
só se observam estes traços secundários, o discurso pennanece poético sem que se mantenha
o metro (TOMACHEVSKl, 1922 apud EIKHENBAUM, 1976, p. 26-27). •

Os formalistas russos, por fim, efetuaram uma crítica ao modo como a questão da evolução
literária era tradicionalmente abordada. Partindo de uma concepção de forma como algo que resulta
da escolha de um tema e do conjunto de procedimentos que o singularizam como obra, os formalistas
reconhecerão a existência de um diálogo entre as formas literárias, já que, para eles, uma nova forma
sempre dialoga com as anteriores,justificando a sua emergência em razão do desgaste das formas que a
precederam. Desse modo, a chamada "evolução literária" passa a ser abordada por um prisma dialético,
que nega as bases a partir das quais ela erá estudada pela história da literatura e, também, pela crítica
literária, vigentes até as duas primeiras décadas do século XX. Segundo Eikhenbaum,

a história acadêmica da literatura se limitava de preferência ao estudo biográfico e psicológico


dos escritores isolados (que eram tão só e certamente "os grandes") [ ... J compreendia-se a
evolução como a ostentação passiva de uma herança que se transmitia de pai a filho, enquanto
a literatura como tal não existia: era substituída por um material tomado emprestado da
história dos movimentos sociais, da biografia dos escritores etc. [ ... ].
Deveríamos destruir as tradições acadêmicas e nos desembaraçar das tendências da ciência
jornalística. Para os primeiros, seria necessário opor à ideia de evolução literária a da literatura
em si, fora das noções de progresso e de sucessão natural dos movimentos literários, fora das
noções de realismo e romantismo, fora de toda matéria exterior à literatura que consideramos
como série específica de fenômenos. Para os segundos, deveríamos opor aos fatos históricos
concretos, a instabilidade e a variabilidade da forma, a necessidade de levar em consideração
as funções concretas deste ou daquele procedimento, isto é, de contar com a diferença entre
a obra literária tomada como um certo fato histórico e sua livre interpretação do ponto de
vista das exigências contemporâneas, dos gostos e dos interesses literários (EIKFIENBAUM,
1976, p. 32-33).

fo.s reflexões de Tynianov em Dostoievski e CagaI (1921) destacaram os problemas fundamentais da


evolução literária, concebendo a existência de uma "substituição dialética que se opera entre as escolas
literárias" (EIKHENBAUM, 1976, p. 33):

Quando se fala da tradição ou da sucessão literária, imagina-se geralmente uma linha reta que
encadeia novas folhas de um certo ramo literário a seus mais velhos. Entretanto, as coisas são
muito mais complexas. Não é a linha direta que se prolonga, mas assiste-se antes a uma partida
que se organiza a partIr de um certo ponto que se refuta [... ] Toda sucessão literária é antes de
tudo um combate, é a destruição do todo já existente e a nova construção que se efetua a partir
dos antigos elementos (TYNIANOv, 1921 apud ElKH~NBAUM, 1976, p. 33).

TIIOMA' BllNNil' / LU(IA O'ANA ZULlN (ClI1C;ANIZAD()Rb) - 123


Cf' A N C O J U N , " ,

Note-se que tal afirmação concebe a história da literatura como sucessão de formas literárias
marcada por uma contínua ruptura das novas formas com as antigas. Tal concepção, eminentemente
moderna, confina com a noção de tradição da ruptura (PAZ, 1984) ou tradição do novo, que, segundo
alguns críticos, é típica do modo como a história é vista a partir dos paradigmas da Modernidade.
Os formalistas russos vão privilegiar, em sua concepção da história literária como algo marcado
pela dialética das formas novas e antigas, o estudo dos elementos que, segundo a sua abordagem
imanentista da literatura, caracterizam a especificidade do discurso literário. Recusando-se a
comprometer o rigor de sua proposta de abordagem da literatura com hase na materialidasfe dos
signos e estruturas que constituem o texto literário, eles vão recusar as explicações e abordag~ns-que
subordinam a especificidade do discurso literário a fatores extraliterários (sociologia, psicotogia do
autor etc.). Os formalistas valorizam a investigação da formação dos gêneros literários e o estudo
das substituições que resultam do conflito entre o domínio de um gênero e a emergência de novos
gêneros que o contestam. Nesse sentido, eles se marcarão por uma maior abertura no que se refere
à valorização dos chamados gêneros "marginais", "menores" ou "subliterários", pois, para eles, "a
literatura de segunda ordem, a literatura de massa, tem então também valor, pois ela participa deste
processo" (EIKHENBAUM, 1976, p. 35).
Essa recusa à abordagem da literatura em seus aspectos não-linguísticos e eÀ'1raliterários pretendeu,
nos estudos mais radicais dos formalistas, afirmar uma autonomia que o fenômeno literário, na ver?ade,
não tem. A literatura não se define, como alguns de seus estudos sugerem, apenas a partir da "autocriação
dialética de novas formas". A própria noção de literariedade é construída histórica e culturalmente - o
que significa que ela resulta de uma interação complexa que envolve tanto os aspectos imanentes do
fenômeno literário como os aspectos normalmente considerados como extraliterários. No entanto, a
contribuição dos formalistas não pode ser ignorada ou menosprezada por apresentar, como qualquer
outra proposta de abordagem teórica da literatura, limitações ou, eventualmente, "erros". O privilégio
por eles concedido ao estudo dos elementos específicos que constituem a natureza do fenômeno
literário foi um dos mais importantes passos dados pela teoria literária no século XX, constituindo-se
numa herança que não pôde ser ignorada por nenhuma das propostas teóricas posteriores.

O NEW CRITICISM

O New Críticism é um "movimento" de crítica literária que se desenvolveu, considerando-se os seus


precursores, no sul dos Estados Unidos da América, entre os anos 20-30 do séculox:x, vindo a ocupar,
nos anos 40-50, uma posição dominante nos estudos literários. A utilização do termo movimento entre
aspas na frase anterior explica-se pelo fato de que não houve propriamente um movimento organizado
por parte dos chamados novos críticos, bem como não houve, em seus estudos, algo como uma reflexão
que se constituísse em um sistema fechado de princípios e conceitos teóricos seguidos por todos os
seus membros. A diversidade de posições c, mesmo, a existência dc divergências significativas entre as
posiçõeS e ideias defendidas pelos new crítics são características do "movimento".
Junqueira afirma que

o New Criticism está longe de constituir um bloco homogêneo, abrigando tendências das
mais divergentes, embora todas revelem um ponto comum: a origem na contribuição crítica de
Samuel Taylor Coleridge, a partir de cuja Biographia literária (1817) reaparece como exigência
basilar a necessidade de se ler, cada vez mais exatamente, as "palavras da página", o que se
prestou até para pesquisas estatísticas sobre a freqüência de certas expressões e imagens em
determinado poeta. [ ... ] De acordo com a lição de Coleridge, deve ser dispensada a mesma
atenção à estrutura do conjunto de palavras e à técnica de sua organização em estruturas
poéticas. Assim, a crítica literária passa a ser entendida como uma ciência autônoma que se
dedica ao estudo dessa técnica, sem qualquer preocupação com os elementos biográficos,
psicológicos ou históricos OUNQUElRA, 1989, p. 13).

124-- T E O f{ I A LITEHÁRlA
----.~-.~ F o R MAL I S IV! O R U S S O E N E W C R I T I C I S M

Segundo Cohen (1983, p. 3), a designação New Criticism já fora empregada por Joel Spingarn
em 1910, mas passou a restringir-se a um grupo de críticos influenciados por John Crowe Ramson,
que, além de batizar oficialmente o movimento com a publicação do livro The New Critícism, em
1941, combatia por uma crítica concebida em bases profissionais, mais voltada para a abordagem dos
aspectos técnicos da poesia do que preocupada com a exibição de erudição histórica. Cohen considera
importante, também, o fato de o New Criticism ter se desenvolvido "no final dos anos 30, num
momento em que a crítica marxista, até então muito influente, encontrava-se desacreditada e posta de
lado" (COHEN, 1983, p. 4). ,
Lobo afirnu que o New Criticism

marca, no contexto mundial, a passagem da crítica hterána para o âmbito do meio universitário, o
que caracteriza a crítica" científica" ou metodológica e epistemológica do século XX - isto é, aquela
que segue um método e uma teoria do conhecimento - com a superação da ~ritica impressionista
ou intuitiva. Inaugura-se o ciclo de publicações sistemáticas de revistas universitárias, e o professor
deixa de ser mero veiculador de ideias para tomar-se também pesquisador em equipe e escritor de
ideias (LOBO, 1998, p. 102).

Cohen aponta John Crowe Ramson, Allen Tate e Cleanth Brooks como os principais [tomes do
New Críticism, destacando, também, o importante papel de "colaboradores, colegas e outras figuras
que, sem pertencerem ao movimento, a ele se ligaram" (COHEN, 1983, p. 4): Robert Penn Warren,
Kenneth Burke, R P. Blackmur, Austin Warren, W Stallman e William K. Wimsatt Jr. Dentre os
precursores e teóricos que forneceram aos new [fities contribuições significativas, destacam-se, segundo
Cohen (1983), T. E Hulme, T. S. Eliot, Ezra Pound, I. A. Richards e William Empson.
Tomemos, para os fins deste capítulo, algumas das influentes ide ias de Eliot OUNQUEIRA,
1989) sobre a criação e a crítica literárias. No ensaio "Tradição e talento individual", escrito em 1917 e
republicado em 1920 e 1932, Eliot:

a) contrapõe à tendência de valorizar um poeta a partir dos "aspectos de sua obra nos quais ele
menos se assemelha a qualquer outro" a leitura que, livre desse preconceito, descubra "que não
apenas o melhor mas também as passagens mais individuais de sua obra podem ser aquelas em
que os poetas mortos, seus ancestrais, revelam mais vigorosamente sua imortalidade" (ELIOT,
1917 In: JUNQUElRA, 1989, p. 38);
°b) defende que a apreciação crítica deve estruturar-se em bases comparativas que considerem o
talento individual em suas relações com a tradição da qual ele emerge, pois

nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação complet1 sozinho. Seu significado e a
apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas
mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo, para contraste e comparação, entre os
mortos. Entendo isso como um princípio de estética, não apenas histórica, mas no sentido crítico
(ELIOT, 1917 In: JUNQUEIRA, 1989, p. 39);

c) destaca o sentido histórico da tradição artística e literária, essencial tanto para a atividade de
criação como para a de crítica de arte, pois
..'

o que ocorre quando uma nova obra de arte aparece é, às vezes, o que ocorre simultaneamente
com relação a todas as obras de arte que a precedem_ Qs monumentos existentes formam
uma ordem ideal entre si, e esta só se modifica pelo aparecimento de uma nova (realmente
nova) obra entre eles. A ordem existente é completa antes que a nova obra apareça; para que
a ordem persista após a introdução da novidade, a totalidade da ordem existente deve ser [... ]
alterada: e desse modo as relações, proporções, valores de cada obra de arte rumo ao todo são
reajustados; aí reside a harmonia entre o antigo e o novo [ ... ]. Neste sentido, em arte não
é absurdo que o passado deva ser modificado pelo presente tanto quanto o presente esteja
orientado pelo passado (ELIOT, 1917 In: JUNQUEIRA, 1989, p. 39-40);

TlIl))'vlr\~ BnNNI( I I LtH IA O\I\NA ZOl IN (Cl!{(;ANlll\J)O!U \) - 125


r
R A :) :e:en:e ::a :ti:i;ade critica voltada paca o "tudo da obra e deliberadamente desvencilhada
do apego positivista às abordagens extrínsecas (históricas, biográficas, sociológicas etc.), pois
"a crítica honesta e a sensibilidade literária não se interessam pelo poeta, e sim pela poesia"
(COHEN, 1983, p. 6). Desse modo, a arte é concebida como o resultado de uma atividade
mental capaz de transfigurar em obra as experiências vividas pelo artista:

A mente do poeta [...] pode, parcial ou exclusivamente, atuar sobre a experiência do próprio
homem, mas, quanto mais perfeito for o artista, mais inteiramente separado estará nele
o homem que sofre e a mente que cria; e com maior perfeição saberá a mente áig~rir e
transfigurar as paixões que lhe servem de matéria-prima (ELIOT, 1917 In: JUNQUEIRA,
1989, p. 43);

e) afirma que um poeta não deve ser avaliado senão por sua capacidade de produzir obras capazes
de suscitar no leitor os sentimentos e emoções que pode ou não ter experimentado em sua vida
particular, pois o

objetivo do poeta não é descobrir novas emoções, mas utilizar as corriqueiras e, trabalhando­
as no elevado nível poético, exprimir sentimentos que não se encontram em absoluto nas
emoções como tais. E emoções que ele jamais experimentou servirão [...] tanto quanto,as que
lhe são familiares (ELIOT, 1917 In: JUNQUElRA, 1989, p. 47).

A poesia, portanto, não consiste numa liberação das emoções ou numa expressão da personalidade
do poeta; ela consiste na capacidade deste para elaborar tais dados sob a forma de poema. Nesse sentido,
sugere, a crítica deve interessar-se pela poesia, e não pela vida individual do poeta que a criou, já que
"a emoção da arte é impessoal" (ELIOT, 1917 In: ]UNQUEIRA, 1989, p. 48), produto do trabalho
efetuado com a linguagem e, portanto, construída artificialmente a partir do domínio de determinado
conjunto de técnicas de composição.
Tais ide ias serão importantes para o desenvolvimento e a fundamentação das atividades do New
Criticism, já que elas afirmam uma ruptura para com os modelos oitocentistas de crítica literária,
até então fortemente calcados na exploração de dados extrínsecos ao próprio texto literário.
Segundo Teixeira, o conceito de correlato objetivo, teorizado por Eliot no ensaio "Hamlet and
his problems", tem origem na concepção da poesia como o resultado de uma "apropriação pessoal
da tradição literária, em que a visão individual das coisas deve, essencialmente, se transformar em
sabedoriã técnica" (TEIXEIRA, 1998, p. 34). Esse conceito terá enorme importância para o New
Criticism e, também, para as demais linhas de crítica e teoria literárias.

[O correlato objetivo corresponde à] criação de um co~unto de objetos, de uma série de


eventos, de uma situação ou de uma paisagem com poder de despertar no leitor a emoção
desejada. O poeta seleciona e dispõe os elementos de tal forma, que, uma vez vislumbrados
na leitura, desencadeiam imediata reação emocional. Quanto mais íntima a relação entre os
elementos do correlato objetivo e a vivacidade da emoção, tanto maior a eficácia do texto.
[ ... ]
Entendido como fórmula particular responsável por uma emoção específica, o correlato
objetivo pode indicar não apenas um determinado procedimento artístico, mas também o
conjunto acabado de uma obra (TEIXEIRA, 1998, p. 34-35).

Retomemos, aqui, o bilhete e o poema cujo referente é um beijo dado na praça central
de determinada cidade, que pode ser ou não São Paulo, dependendo do modo como se lê e
se interpreta o título "Meio-dia na Sé". No caso do bilhete, temos o registro de uma emoção
individual que funde amor e saudade na afirmação de uma experiência que não foi partilhada
pelo leitor. Naturalmente, não é impossível que o leitor compartilhe dessa experiência, mas, se
o fizer, isso se deverá ao fato de ser ele próprio o destinatário do bilhete ou de o tema remetê-lo
à memória de fatos que lhe aconteceram. Num caso e no outro, não é propriamente o texto que
lhe propicia a experiência de uma emoção particular, mas sim uma experiência vinculada a um

126 - T E o H I A L I T E R Á n I A
---~FORMALISMO RUSSO E NEW CRITICISM

evento que o inclua_ Logo, é bastante possível que muitos leitores não venham a compartilhar
dessa emoção, reconhecendo-a, pelo contrário, como algo que pertence exclusivamente à autora
do texto_ No caso do poema, dá-se o contrário: a articulação dos elementos que o compõem cria
um efeito emocional que é experimentado pelo leitor no momento da leitura e, desse modo, ele
sente-se como que compartilhando com o eu-lírico o prazer e a intensidade da paixão amorosa
- trata-se, pois, de uma emoção estética. Note-se que, no caso do poema, o beijo não se reduz a
uma lembrança de um momento de amor-paixão, instalando-se, no horizonte da leitura e da
interpretação, também como algo que acontece num aqui-agora da experiência eróticp-amorosa.
Por suas características, podemos vincular o poema "Meio-dia na Sé" a alguns dos traços
da poesia moderna e contemporânea brasileira, a saber: a utilização do verso livre ~ branco, a
abolição da pontuação, a concisão, a valorização do fragmento, a exploração dos_~spectos plásticos
da disposição do texto no papel, característica da poesia concreta. Além disso, o poema também se
aproxima da forma haicai, introduzida no Brasil no século XIX e muito cultivadã"no século XX,
por poetas como Guilherme de Almeida e Paulo Leminski_ Se considerarmos o seu plano sonoro,
veremos que o poema apresenta 18 sílabas gramaticais e 17 sons (já que ocorre uma contração, no
plano da leitura em voz alta, entre a última sílaba de "sino" e o "E" que dá início ao último verso).
Ora, 17 é o número de sons que caracteriza o modelo do haicai tradicional. Além disso, "Meio­
dia na Sé" marca-se pela apreensão poética do sujeito lírico que enfatiza um instante s~ngular da
experiência pretendendo anular, em seus efeitos, o tempo histórico - traço comum ao haicai. No
entanto, o poema apresenta diferenças em relação ao modelo tradicional do haicai, já que, como
os haicais de Guilherme de Almeida, tem título e, além disso, faz uso de quatro versos em vez
dos três que caracterizam o haicai tradicional. Observe-se, portanto, que "Meio-dia na Sé" dialoga
com a tradição na qual se insere, valendo-se dela para constituir-se como obra nova.
O correlato objetivo da emoção estética é, no poema, o modo como a imagem do beijo apaixonado é
construída: por meio de 4 versos curtos que enfocam as bocas, privilegiando uma "descrição" que vai
do mais exterior (as bocas unidas) para o mais interior (a imagem das línguas entrelaçadas, construída
por meio da metáfora "um sino e dois badalos"). A isso, somam-se o título, que situa geográfica e
circunstancialmente o beijo, contribuindo para a afirmação de sua importância e de sua intensidade,
os efeitos sonoros que, por associação, criam uma onomatopeia e sugerem uma sinestesia na ideia de
que o beijo se realiza como uma experiência marcada por uma multiplicidade de elementos táteis e
sonoros tanto ex'ternos quanto internos - o que se evidencia na densidade metafórica dos dois últimos
versos, em que as bocas transformam-se num único sino composto por dois badalos (línguas), que,
por sugestão, fazem o corpo e os sentidos "badalarem" na paixão.
A metáfora do beijo afirmada nos dois últimos versos constitui-se no correlato objetivo do estado
passional do eu-lírico, que, por sua vez, é uma voz que se universaliza, não se reduzindo à pessoa
individual da autora do poema. Por fim, note-se que a própria forma gráfica que caracteriza a disposição
dos versos no poema cria, como na poesia concreta, a imagem de um sino com duas bocas "atravessado"
pela língua compartilhada:

Nossas bocas unidas


Nossas línguas
Um sino
E dois badalos

Amais importante contribuição do NeuJ Criticism é a defesa do exercício de leitura e crítica de uma
obra com base no estudo minucioso de seus elementos internos, caracterizando o chamado dose reading.
Nesse sentido, os novos críticos regem-se por um princípio metodológico semelhante àquele defendido
pelos formalistas russos, privilegiando o estudo das técnicas que atuam sobre a materialidade linguística
da obra em detrimento dos demais aspectos a ela associados e concebendo, portanto, a literatura como
um fenômeno autônomo, "livre das supostas relações determinantes da sociedade com o artista e deste
com o texto" (TEIXEIRA, 1998, p. 34).

TllliMAI" BONNICI / LLCIA O\!\NA ZUl iN (Cl[U;ANI/i\J)ORf-\) - 127


<f R A
NCO JUNIOR

o dose reading pressupõe que a leitura de um texto deva


I
fundar-se em pressupostos objetivos, consagrados pelo sistema de uma teoria aplicável a
qualquer texto e à disposição de qualquer pessoa com um mínimo de condições técnicas para o
exercício da leitura. Esse exercício consiste no exame minucioso [... ] do poema, cuja forma os
novos críticos entendem como um organismo dinâmico, regido por tensões e ambiguidades.
Entender o poema equivale a resolver essas tensões e ambiguidades, estabelecidas pela relação
entre as diversas unidades semânticas do texto, que independem do sentimento da composição
(TEIXEIRA, 1998, p. 36).

Outros importantes conceitos a partir dos quais o New Criticism vai elaborar a sua metodologia de
abordagem do texto literário são: afalácia da intenção, afalácia da emoção, a heresia da panifrasee a busca de
((ensinamentos". A falácia da intenção e a falácia da emoção foram definidas em dois ensaios escritos por W
K Wimsatt e Monroe C. Beardsley.
No primeiro caso, nega-se o valor do reconhecimento das intenções ou dos sentimentos do autor
para a atividade de leitura crítica da obra por ele produzida, pois "o desígnio ou a intenção do autor
não é nem acessível nem desejável como padrão para julgar-se o êxito de uma obra de arte literária"
(WIMSATT; BEARDSLEY, 1983, p. 86).
Incorre-se na falácia da intenção quando se subordina a apreciação da obra à investigação, sempre
precária e pouco confiável, das possíveis intenções do autor ao escrevê-la ou, ainda, das possíveis
emoções experimentadas pelo autor no momento da criação da obra.
Wimsatt e Beardsley defendem um conjunto de ideias que consideram fundamentais para a
realização da leitura crítica, a saber:
a) Um poema não existe por acaso, mas nasce de um intelecto. Não se deve, entretanto, "conceder
ao desígnio ou intenção [desse intelecto J o papel de um padrão pelo qual o crítico pode julgar
o valor da realização do poeta" (WIMSATT; BEARDSLEY, 1983, p. 87 - colchete nosso);
b) "Se o poeta teve êxito em realizá-lo, então o próprio poema mostrará o que ele tentava realizar.
E, se o poeta não foi bem-sucedido, então o poema não é uma prova adequada e o crítico deve
extrapolar o poema, na busca de evidenciar uma intenção que não se efetivou no poema"
(WIMSATT; BEARDSLEY, 1983, p. 87);
c) "Julgar um poema é como julgar um pudim ou uma máquina. Exige-se que ele funcione. Só
ÍI!ferimos a intenção do artesão porque seu produto funciona. [ ... ] A poesia é uma operação
do estilo pela qual um complexo de significado é apreendido de um só golpe. A poesia triunfa
porque tudo ou quase tudo que nela se diz ou se encontra implícito é relevante; o que não
importa foi excluído, como os caroços de um pudim ou os enguiços de uma máquina. A este
respeito, a poesia difere das mensagens práticas, que são bem sucedidas se e apenas se inferimos
corretamente sua intenção" (WIMSATT; BEARDSLEY, 1983, p. 87);
d) "O significado de um poema por certo pode ser pessoal [ ... ] Mas até mesmo um poema lírico
curto é dramático, sendo a resposta de um falante (por mais abstrata que se lhe conceba) a uma
situação (por mais universal que seja). Devemos atribuir os pensamentos e atitudes do poema
de imediato ao falante dramático [eu-lírico - nota nossa] e, se de algum modo ao autor, apenas
p~r um ato de inferência biográfica" (WIMSATT; BEARDSLEY, 1983, p. 87-88);

e) "O poema não pertence ao crítico, nem ao autor (desliga-se do autor ao nascer e percorre
o mundo subtraindo-se ao poder ou ao controle do criador sobre ele). O poema pertence
ao público. Corporifica-se na linguagem, posse peculiar do público, e trata do ser humano,
objeto de conhecimento público. O que se diz sobre o poema é sujeito à mesma indagação
que qualquer afirmativa em linguística ou na ciência geral da psicologia" (WIMSATT;
BEARDSLEY, 1983, p. 88).
A falácia da emoção resulta da ideia de que a análise de um poema se reduz à análise da
emoção que ele produz. A emoção sus.citada na leitura é um efeito do poema, e não deve ser
128 -- T E o R I A LITERÁRIA
~~-'-~FOR."l'LI\MO RUo"O F NEW CRlrICISM

confundida com ele. Segundo Teixeira,

o poema é entendido como uma forma particular de conhecimento, mediante o qual se pode
aprimorar e intensltlcar o contato com a vlda~ Mas a função do analista é examinar o texto,
e não o seu efeito. A crítica deve procurar no texto as propriedades que o transformam em
poesia, caracterizando os componentes que o convertem em instrumento de conhecimento e
emoção estética, sem jamais perder de vista a ideia de que a emoção do texto é ficcional e não
se confunde com a emoção vivida (TEIXEIRA, 1998, p. 36).
"
A heresia da par4frase consiste no equívoco de se tomar por análise crítica a mera "tradução,r do texto
literário em termos simples. Incorre-se na heresia da panifrase quando se reduz a abordagem. do texto à
decodificação de seu significado referencial. Embora eventualmente útil como recurso de construção da
leitura crítica, a paráfrase não pode constituir-se em fim último desta, pois "o verdadeiro entendimento de
uma imagem não consiste na captação de seu significado lógico, e sim na percepção de súa configuração
estética, na fruição de seu valor expressivo" (TEIXEIRA, 1998, p. 36).
Finalmente, deve-se evitar, também, conceber o teÀi:o literário como mero veículo de mensagens
morais, pedagógicas, religiosas, políticas ou como fonte de "sabedoria" prática. Fazer isso é reduzir a
apreciação da literatura à message-h.untíng (busca de mensagens ou "de ensinamentos"). Segundo Teixeira,
para a "perspectiva da 'nova crítica', a sabedoria da arte decorre, não da apreensão das mensa'gens, mas
do convívio desinteressado com as formas que engendra" (TEIXEIRA, 1998, p. 37).

LIMITES DA TEORIA

Tanto o Formalismo Russo como o New Criticísm privilegiam, em sua abordagem da literatura, a
materialidade do texto e seus limites. São, portanto, correntes textualistas de teoria e crítica literárias.
Essa ênfase, embora muito importante para o desenvolvimento da crítica e da teoria literárias no século
xx, tende a desconsiderar os aspectos ligados à recepção do texto.
Se compreendermos a leitura como o resultado de uma articulação entre a materialidade do texto
(qu~ projeta um conjunto de possibilidades de sentido) e a recepção (que se marca pela escolha, pela
seleção e pela ênfase em determinados sentidos em detrimento de outros, além de ser potencialmente
afetada pelos planos emocional e afetivo do receptor, bem como por sua memória individual e histórica),
identificaremos com clareza os limites tanto do Formalismo Russo como do New Criticism.
Para essas duas correntes de teoria e crítica literárias, a verdade do texto (seus possíveis sentidos)
prescinde do polo da recepção para afirmar-se. Sabemos hoje, a partir da contribuição das teorias da
recepção, que serão expostas no Capítulo 9, que a leitura não é construída com base exclusivamente
nos elementos que constituem a materialidade sígnica e estrutural do texto, seja este literário ou não­
literário. A leitura crítica é o resultado de uma interação entre o texto e o leitor, e ela afirma uma
verdade possível (um sentido) a partir da articulação das informações de um e outro polos.

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