11 - PDFsam - Leitão e Gomes - Etnografia em Ambientes Digitais

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A inspiração nessa postura metodológica faz sentido também quando


tratamos de alguns ambientes e plataformas das mídias digitais, na medida
em que conseguimos identificar seus diferentes ritmos e topografias, e, assim
como as cidades, as formas como são habitados, os trânsitos e deslocamentos
percorridos por aqueles que neles (e deles) participam. Misturar-se ao ritmo
dos demais transeuntes se coloca algumas vezes como profícua possibilidade
para a participação dos pesquisadores nesses ambientes. Retomando a metá-
fora do flâneur, seu modo particular de apropriar-se da cidade residia justa-
mente no fato de não a observar de um ponto único e fixo, mas misturar-se
à multidão, adentrar seus fluxos, percorrer seus trajetos, deixando-se levar
por ela.

Acompanhamentos: rastreando espaços, viajando junto


Se em alguns ambientes, como mencionamos, o assunto do fluxo de
informações e imagens, materializado na hashtag, se sobrepõe à importância
do perfil do emissor, noutros, como as redes sociais contemporâneas, sites
e aplicativos de busca amorosa, o perfil ocupa papel central. Como apon-
ta Ramos (2015), nas redes sociais como Orkut e Facebook, por dinâmicas
associadas aos pânicos morais relativos ao fake, à fraude, a controles jurí-
dico-estatais e econômicos, haveria a predominância de uma convergência
identitária, sendo a presença no on-line do usuário, seu perfil, referida a sua
identidade fora da rede, seu nome, sua localização (endereço, CEP, telefone),
e mesmo seu gênero ou faixa etária, dados solicitados quando da criação de
perfis nessas plataformas.
Essa convergência proporcionada, e mesmo algumas vezes forçada
por determinadas plataformas, estabelece o realismo identitário como regra,
dificultando o uso dessas plataformas como espaço de experimentação. No
caso do Second Life, embora haja uma convergência em termos de platafor-
mas, sendo possível por exemplo postar fotos no Facebook diretamente do
viewer do SL, percebemos a contradição entre as dinâmicas que regem as
formas de identificação dos usuários. Muitos usuários do SL têm perfis no
Facebook para seus avatares, cujo registro na rede é feito com o nome e so-

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brenome dos avatares, não a identidade civil de seus criadores, e é neles que
postam fotografias desde o mundo virtual, mas amiúde seus perfis são objeto
de perseguição por parte do Facebook, sob acusação de serem fraudulentos,
e não perfis de “pessoas reais”. Embora em termos técnicos a convergência
das duas plataformas seja possível, em termos das características das socia-
lidades experienciadas em cada uma, a contradição é patente. No Facebook,
mais do que em qualquer outra plataforma digital anterior ou contemporâ-
nea, a convergência identitária é uma característica fundamental, tanto em
termos de identificação com nome e dados identitários “off-line” dos indiví-
duos quanto em termos cruzamentos com outras identidades que possam vir
a ter noutros ambientes, como o Instagram, o Flickr e o Twitter.
O Facebook é uma rede social criada em 2004, tornando-se bastan-
te popular, sobretudo a partir do ano de 2010 (MILLER, 2011), e utilizada
por cerca de 1,8 bilhão de pessoas contemporaneamente. O exemplo do uso
desse ambiente por avatares do SL é uma exceção, bem marcada enquanto
tal inclusive pelas contendas que gera, sendo a forma de socialidade mais
comum no Facebook aquela que segue a lógica imposta pela plataforma, de
convergência identitária, associação com as identidades civis dos sujeitos e
correspondência entre rede de amizades off-line e on-line. Mesmo em casos
nos quais as redes de amizades são estabelecidas em torno de interesses co-
muns específicos, não coincidindo com relações prévias off-line, como na
sociabilidade estabelecidas dentro de alguns grupos, os trânsitos entre on e
off são frequentes. É o que vem demonstrando a pesquisa que desenvolvemos
atualmente sobre sociabilidade feminina em grupos da plataforma Facebook
que giram em torno de temáticas de moda e consumo. Nesses grupos, é co-
mum que sejam organizados encontros off-line, almoços, passeios, mesmo
entre pessoas que moram em diferentes regiões do Brasil. Diante dessa di-
nâmica própria do ambiente pesquisado, o tipo de esforço etnográfico a ser
empreendido pelo pesquisador é diverso daquele descrito na seção anterior
desse artigo e, em nossa pesquisa nesses grupos, nossa etnografia se estendeu
também a encontros presenciais promovidos por nossas interlocutoras de
pesquisa nas cidades de São Paulo e Porto Alegre.

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Em sua dissertação de mestrado, Gaige (2017) também demonstra a


importância de levar a etnografia para ambientes off-line quando estava pes-
quisando o uso cotidiano e o significado desta rede social por pessoas idosas.
Tendo iniciado uma primeira etapa de sua pesquisa no Facebook, optou por
estendê-la a um espaço presencial, passando a realizar observação partici-
pante no curso de “Informática para a Melhor Idade” promovido pelo La-
binfo-UFSM, em Santa Maria (RS), local de encontro, aprendizado de uso de
mídias digitais e espaço de sociabilidade entre pessoas idosas na cidade. Em
sua pesquisa, a autora dá ênfase ao processo de aprendizado da tecnologia
por idosos que só tiveram acesso às mídias digitais contemporaneamente, e
mostra como o Facebook, embora seja um fenômeno global, é usado de mo-
dos muito diferenciados de acordo com o local (país, região, cidade) e com
pertencimentos dos usuários a determinadas classes sociais, grupos etários,
gêneros etc. Nesse sentido, aproxima-se muito do argumento de Miller e
Horst (2012) sobre o “princípio do relativismo” para o entendimento das mí-
dias digitais em contextos locais específicos.
Desde seus primeiros trabalhos sobre Internet (MILLER e SLATER,
2004), o autor vinha apontando para a necessidade de atentarmos para os
contextos off-line dos grupos pesquisados, incluindo na pesquisa inclusive
observações presenciais de como tais tecnologias são usadas, por exemplo
em cibercafés, lan houses, escolas, ou menos na residência de nossos interlo-
cutores de pesquisa. Essa posição não faz sentido em alguns ambientes digi-
tais, por exemplo aqueles nos quais o encontro off-line entre os participantes/
usuários não faz parte das práticas do próprio grupo. A noção de que encon-
trar seus interlocutores de pesquisa fora do on-line traria maior respaldo à
pesquisa ou seria condição de sua realização nos parece no mínimo ingênua,
para não dizer desrespeitosa, quando o encontro off-line não é algo que os
participantes dos grupos que estudamos normalmente fazem. No entanto,
em ambientes que se caracterizam pelos trânsitos mais estreitos on/off, como
é o caso do Facebook, dentre outras plataformas, ela se justifica plenamente.
Nesse caso, o pesquisador estaria seguindo o fluxo das socialidades já exis-
tentes nesse ambiente, quase como um etnógrafo-stalker, já que dessa vez

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estaria acompanhando os passos de perfis/pessoas na própria plataforma e


fora dela, viajando junto com seus interlocutores.
Essa abordagem etnográfica em si mesma não chega a ser nova na antro-
pologia e se aproxima das propostas feitas já há algumas décadas por Hannerz
(2003) e por Marcus (1995) para uma etnografia plurilocal ou multissituada
que permitiria seguir o fluxo de pessoas, em se tratando de estudos migrató-
rios, mas também de objetos e ideias. A diferença, que convém ressaltar, é que
o pesquisador deve estar atento ao fato de que essas conexões que está perse-
guindo não são apenas agenciadas por seus interlocutores de pesquisa, mas
resultado tanto das práticas destes quanto dos agenciamentos tecnológicos
proporcionados pelos ambientes digitais. Mark Zuckerberg, um dos fundado-
res do Facebook, afirmou que “we are building toward a web where the default
is social” (apud MILLER, 2011, p. X), mas, parodiando a expressão de língua
inglesa, “o diabo se esconde nos detalhes”, bem indica Van Dijck (2016) que
“o diabo se esconde no default”. Como a autora aponta, a retórica do Facebook
é a da conexão, da abertura e da transparência, promovendo sua imagem en-
quanto espaço público, de uso coletivo, mas é uma empresa com fins lucrati-
vos, e que cujos ganhos com publicidade paga, por exemplo, estão fundados
no rastreamento e comoditificação de dados fornecidos nos perfis, metadados
(como as tags criadas pelos usuários) e em traçar e reduzir a algoritmos as
interações “sociais” entre os usuários. Produzindo a partir deste input um ou-
tput de novas possibilidades de interação, através dos algoritmos que definem,
por exemplo, as publicações que vemos, de quem, a plataforma transforma
conexão (humana) em conectividade (automática, algorítmica). Da mesma
forma, podemos pensar na identificação automática de pessoas em fotogra-
fias, marcadas pela própria plataforma, a não ser que o usuário desabilite essa
funcionalidade, como parte do default, que produz conectividade e parte das
interações que, etnografando nesse ambiente, estaremos perseguindo. Além
da marcação de imagens dos usuários, a geolocalização é outro ponto impor-
tante do default da plataforma. Através da ferramenta check-in, ou de mar-
cação automática de lugares de fotografias e postagens, esta atua de maneira
incisiva na produção de um modo específico de continuidade on-line/off-line.

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As tecnologias móveis, o acesso a partir de conexão 3G/4G e a partir dos


smartphones, além do incremento da velocidade de conexão, foram transfor-
madores de nossa relação com a Internet. As pesquisas mais contemporâneas
sobre aplicativos de busca de parcerias afetivas e sexuais têm demonstrado o
quanto estão calcados em mecanismos de convergência identitária pela centra-
lidade dada a imagem (BELELI, 2015) e, sobretudo, pela geolocalização. Exis-
tem diversos aplicativos desse tipo disponíveis, todos tendo como caracterís-
tica comum a geolocalização, ou seja, permitindo buscar parceiros em áreas
próximas. No caso do Tinder, o raio é de até 160 km, podendo ser alterado
para menos pelos usuários, de acordo com a distância máxima que desejam
encontrar parceiros. A proximidade física é, assim, requisito desses aplicativos
móveis. Existe a possibilidade de configurar o Tinder para uso numa cidade
diferente da sua, e distante desta em mais do que 160 km, mas esse recurso não
é o default do aplicativo. Sendo o uso default gratuito, tal recurso de busca re-
mota é um serviço extra, pago. Assim, esse aplicativo promove sobretudo bus-
cas amorosas e sexuais localmente baseadas. Outro aplicativo concorrente do
Tinder e bastante popular é o happn. Neste, além da geolocalização determinar
o raio do radar no qual se procura parceiros, tem-se a informação daqueles
cadastrados no site que cruzaram seus caminhos ao longo do dia, que esti-
veram especialmente próximos, frequentaram os mesmos lugares da cidade,
sendo possível, aos usuários e pesquisadores, mapear as áreas da cidade com
maiores trânsitos no mercado afetivo e erótico (PELÚCIO, 2016). Assim, nes-
ses aplicativos, os fluxos urbanos não surgem apenas enquanto metáfora, mas
são apreendidos em sua literalidade pelo pesquisador, que pode não apenas
mapeá-los e seguir os deslocamentos no espaço urbano de interlocutores, mas
buscar compreender como são alterados pelo digital os modos de experienciar
a cidade, quando a seu mapa é sobreposto outro, conectado, uma espécie de
malha de trânsitos de possíveis parceiros amorosos.
Estratégias metodológicas semelhantes têm sido adotadas na pesquisa
em aplicativos desse tipo2. Em primeiro lugar, a importância da construção

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Cf. Beleli (2015) sobre o Tinder, Pelúcio (2016) sobre o happen, e Miskolci (2017) sobre Grindr.

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