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A missão de Senar
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A missão de Senar
E-book435 páginas8 horas

A missão de Senar

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Sobre este e-book

Um mago à procura de um povo perdido. Uma guerreira incansável que enfrenta os próprios demônios. A esperança de um mundo inteiro está nas mãos desses dois jovens.
Não resta muito tempo para salvar o Mundo Emerso do avanço do Tirano e de seu exército de monstros criados através de magia. Cada vez mais novas cidades são conquistadas pelo inimigo. As Terras Livres estão sendo rapidamente vencidas. O medo e a incerteza dominam os corações de todos.
Vendo tudo aquilo que ama ruir diante de seus olhos, Senar, o mago mais jovem do Conselho, decide tentar uma façanha inesperada: sair em busca do Mundo Submerso, a nação submarina fundada por um povo que precisava fugir de uma antiga guerra. Ninguém sabe se, no entanto, o Mundo Submerso realmente existe e há uma velha lenda segundo a qual o único caminho para se chegar a esse mundo é um imenso redemoinho no meio do Oceano, onde nenhum ser humano pode sobreviver.
Enquanto isso, Nihal, a jovem guerreira de cabelos azuis, última descendente dos semi-elfos, povo aniquilado pelo Tirano, precisa enfrentar duas provas extremamente difíceis: a tentativa de ganhar o título de Cavaleiro do Dragão, vencendo a desconfiança das altas esferas militares, e o ataque do melhor combatente do Tirano, um homem de armadura negra que voa montado num poderoso dragão. Um guerreiro que ninguém jamais conseguiu derrotar.
A missão de Senar é o segundo volume da trilogia de fantasia Crônicas do Mundo Emerso da italiana Licia Troisi.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de ago. de 2012
ISBN9788581220789
A missão de Senar

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    A missão de Senar - Licia Troisi

    LICIA TROISI

    CRÔNICAS

    DO MUNDO

    EMERSO

    Tradução de Mario Fondelli

    SUMÁRIO

    Para pular o Sumário, clique aqui.

    Entre Terra e mar

    1 - Antes de partir

    2 - Piratas

    3 - Um prodígio

    4 - Tempestade

    5 - Laio torna-se escudeiro

    6 - O segredo da Lágrima

    7 - As Ilusivas

    8 - A batalha de Laio

    9 - Na voragem

    Os prisioneiros

    10 - O Mundo Submerso

    11 - Um velho na floresta

    12 - O conde

    13 - Salvamento

    14 - A guerra chega a Zalênia

    15 - O homem nas sombras

    16 - Despedida do mar

    A busca

    17 - O novo Cavaleiro

    18 - O inimigo

    19 - A convalescência de Nihal

    20 - A descida ao inferno

    21 - A tentação da morte

    22 - O segredo de Ido

    23 - Ido da Terra do Fogo

    24 - Novamente juntos

    25 - A morte do traidor

    26 - Reis

    27 - Um exército de mortos

    Personagens

    Créditos

    A Autora

    O meu nome é Nihal. Nasci e cresci em Salazar, uma cidade-torre na Terra do Vento. A minha família era Livon, o melhor armeiro das oito Terras do Mundo Emerso. Era o meu pai adotivo. Foi ele quem me ensinou a usar a espada e também explicou-me o sentido da vida. Devo-lhe tudo. Passei a minha infância ao seu lado, entre espadas, escudos, couraças e o desejo de tornar-me um guerreiro.

    Passei anos serenos, ignorando o que significassem os meus cabelos azuis e orelhas pontudas.

    E mesmo assim, desde o primeiro momento de que possa me lembrar, ouvi vozes, tinha contínuos pesadelos. Rostos retorcidos de dor sussurravam-me palavras incompreensíveis.

    O exército do Tirano chegou de repente, numa tarde de outono. Vi-o avançar na planície de Salazar como uma maré negra que tudo atropelava e arrasava.

    Nada sobrou da minha vida de antes.

    A cidade foi tomada e incendiada, os meus amigos mortos, o meu pai abatido a fio de espada diante dos meus olhos. Morreu para proteger-me de dois fâmins, os monstros combatentes criados pelo Tirano. Matei ambos. Estava com dezesseis anos.

    Eu era habilidosa com a espada, mas não o suficiente. Fui ferida e quando despertei do torpor da convalescência renasci para a dor e o desespero.

    Descobri ser o último sobrevivente do povo dos semielfos. Ainda era uma criancinha recém-nascida quando Soana, a irmã de Livon, encontrou-me numa aldeia da Terra do Mar. O corpo sem vida da minha mãe protegera-me da fúria dos fâmins. Eu era o único semielfo sobrevivente.

    A partir daquele momento comecei a mudar. Já não era uma alegre menina, mas sim uma jovem que crescera depressa demais. Os pesadelos atormentavam-me todas as noites. Jurei que lutaria com todas as minhas forças contra o Tirano até vencê-lo. Foi então que decidi tornar-me um Cavaleiro de Dragão.

    Entrar na Academia não foi nada fácil, tive de conquistar o meu lugar com a espada. O próprio Raven, o Supremo General da Ordem dos Cavaleiros de Dragão, escolheu os dez guerreiros contra os quais eu teria de lutar para tornar-me aluna. Derrotei-os um depois do outro.

    Na Academia vivi um ano de total solidão: os outros alunos me evitavam porque eu era mulher e, além do mais, diferente. Seus olhares cheios de desconfiança acompanhavam-me para qualquer lugar aonde eu fosse.

    No começo sofri muito. Depois tornei-me impermeável ao ódio deles, ao sofrimento, a tudo. A única coisa que interessava era vingar meu pai e o meu povo.

    As noites eram habitadas por espíritos que me incitavam à vingança. Os dias eram uma contínua sequência de duros treinamentos. Queria transformar-me em uma arma, sem sentimentos nem dor.

    Queria esvaziar-me, aniquilar-me.

    Depois de superar a fase inicial do adestramento, tive de enfrentar a prova da primeira batalha. Naquele dia, frente a frente com o inimigo, a minha mente ficou vazia, a aflição desapareceu. Só havia a minha espada de cristal negro, o derradeiro presente de Livon, e o sangue dos fâmins. Combati, matei, deixei correr solta a minha fúria. Os generais felicitaram-me abertamente e eu acreditei ter conseguido o que queria.

    Mas não foi nada disto. Naquele mesmo dia morreu Fen. Era um Cavaleiro de Dragão, o companheiro de Soana. Um verdadeiro herói para mim. Estava apaixonada por ele, o único sentimento que ainda me mantinha ligada à vida. Quando vi o seu cadáver decidi consagrar-me à guerra.

    Para completar o meu adestramento, fui confiada a Ido, o único representante do povo dos gnomos na Ordem dos Cavaleiros de Dragão. Ele acabou insinuando uma dúvida na minha mente: aquilo que eu estava fazendo era realmente justo? É correto lutar apenas por vingança?

    Finalmente recebi o meu dragão. Foi muito difícil conquistá-lo: era um veterano, já pertencera a outro cavaleiro. Não deixava que eu me aproximasse, não queria mais voar. O desejo de entrar em combate apagara-se com a morte do seu amo, mas eu sentia que era como eu, desnorteado e sozinho. Era o meu dragão. É o meu dragão. O nome dele é Oarf.

    Senar sempre ficou ao meu lado. Quando nos conhecemos ainda éramos quase crianças. Crescemos juntos, partilhamos risadas, sonhos, sofrimentos. Lutamos pela mesma causa.

    Penso muito nele.

    Senar é o meu melhor amigo. Senar, o mago. Senar, o conselheiro.

    Não sei se conseguiu chegar ao Mundo Submerso, também não sei se voltarei a vê-lo.

    O nosso último encontro conclui-se com uma despedida que não posso esquecer.

    A sua ausência é uma dor que nunca me deixa.

    ENTRE TERRA E MAR

    Durante a Guerra dos Duzentos Anos, muitos habitantes do Mundo Emerso, cansados de tantos combates, deixaram as suas Terras para ir viver no mar. O último contato com eles remonta a cento e cinquenta anos atrás, quando os reinos unidos da Terra da Água e do Vento tentaram invadir o Mundo Submerso graças a um mapa conseguido de um habitante daquele reino que voltara a morar em terra firme. A expedição teve um fim trágico: nenhum sobrevivente voltou para contar o que aconteceu. Desde então, nada mais se soube daquele continente e perdeu-se a memória de como alcançá-lo.

    Anais do Conselho dos Magos, fragmento

    Outorga-se portanto o direito de o rei da Terra do Vento guardar cópia do mapa náutico com o qual (...) O mapa original será usado (...) campanha militar contra o Mundo Submerso.

    Pergaminho com o selo da Terra da Água, da Biblioteca Real da cidade de Makrat, fragmento

    1

    ANTES DE PARTIR

    Um alforje com uns poucos livros e algumas roupas era tudo o que levava consigo. Senar jogou-o em cima dos ombros e saiu.

    Embaixo da capa vestia uma túnica preta que lhe chegava aos pés, ornada com complicados desenhos vermelhos que emolduravam um grande olho arregalado na altura do estômago. Ainda não se acostumara com o clima de Makrat. Quando morava na Terra do Mar as primaveras eram brandas e na Terra do Vento fazia sempre calor. Na Terra do Sol, por sua vez, escolhida como sede do Conselho dos Magos naquele ano, a primavera era quase tão gelada quanto o inverno e o calor estafante do verão chegava de repente. Senar estremeceu e cobriu os longos cabelos ruivos com o capuz da capa.

    Estava com dezenove anos e era um mago. Um ótimo mago. Mas não um herói. Quem enfrentava a morte sem a menor hesitação era Nihal. Ele elaborava estratégias na retaguarda, longe da primeira linha. E agora que tinha a possibilidade de fazer alguma coisa para o povo daquele pobre mundo aflito, estava com medo. Depois de muitos meses de assembleias com os magos do Conselho e reuniões com os chefes militares, a hora chegara. Iria partir e singrar os mares rumo a um continente que, pelo que se sabia, podia até ter deixado de existir.

    Sozinho, como deliberara o Conselho.

    Não passo de um covarde.

    Já fazia cento e cinquenta anos que não se tinha notícia do Mundo Submerso. A sua missão era encontrá-lo e convencer o rei a ajudar o Mundo Emerso numa guerra cujo fim ninguém podia prever: a longa luta contra o Tirano. Na luz incerta do alvorecer pareceu-lhe uma missão sem esperança.

    O seu cavalo já estava pronto. Senar hesitou antes de montar. Ainda dá tempo. Posso voltar ao Conselho. Dizer que estava errado, que mudei de ideia.

    Olhou a sua volta. Não havia vivalma. As pessoas e as coisas ainda estavam adormecidas. Tinha de partir daquele jeito, sem qualquer despedida. Levou instintivamente a mão à cicatriz na face. Então esporeou o cavalo e pôs-se a caminho.

    A primeira etapa seria a Terra do Mar, onde iria procurar alguém disposto a enfrentar o oceano com ele.

    Era a Terra onde tinha nascido. Saíra de lá com oito anos de idade, para acompanhar Soana, a sua professora, até a Terra do Vento. Só poucas vezes voltara para casa, pois a viagem era longa e perigosa.

    Já fazia dois anos que estava ausente.

    Agora que se encontrava mais uma vez diante de um desafio na sua vida, sentia a necessidade de rever a mãe.

    Chegou ao seu vilarejo, Phelta, no fim da manhã. O céu estava negro e carregado de chuva, um céu de tempestade que dominava ameaçador as poucas casas da sua aldeia natal. As ruas estavam desertas. Deviam estar todos trancados em casa à espera do temporal. Havia umidade no ar e Senar respirou o perfume do mar que chegava penetrante terra adentro.

    A aldeia era um conjunto de pequenas casas em alvenaria com telhado de palha, as moradas típicas daquele território, cercadas por uma sólida paliçada de madeira. Era um vilarejo muito pequeno, com não mais de duzentos habitantes ao todo, e a sua aparência era bastante modesta. As casas ficavam amontoadas umas em cima das outras, como um grupo de crianças amedrontadas numa terra estrangeira. Senar não tinha muitas lembranças daquele lugar. Nascera ali, mas ele e sua família tiveram de mudar para os campos de batalha. Voltavam raramente, aproveitando justamente as licenças do pai, e só nestas ocasiões Senar tinha a oportunidade de reatar os contatos interrompidos, de rever os amigos. Mas afinal aquela era a sua casa. A sua pátria, a sua Terra.

    Antes de ir ver a mãe decidiu dar uma volta; sentia a necessidade de tomar novamente posse daquele lugar, de pisar nas pedras das calçadas, sentir os cheiros, passar a mão nos muros das casas corroídos pela maresia. Perdeu-se vagueando pelos becos estreitos e tortuosos, demorou-se na minúscula praça central, onde nos dias de festa havia o mercado, perambulou pelo cais, uma esguia língua de madeira suspensa sobre o oceano.

    De repente voltou a ver tudo com os olhos de um menino e foi arrebatado por uma multidão de lembranças adormecidas: imagens fugazes de brincadeiras entre as casas, de amigos perdidos, de pequenas alegrias. Coisas esquecidas, talvez depressa demais.

    A ideia de voltar a ver a mãe emocionava-o. Quando chegou diante da porta, Senar ouviu lá dentro o barulho de pratos.

    Veio abrir uma mulher miúda e sardenta, envelhecida desde a última vez que se encontraram. Usava um simples vestido preto, de gente pobre que remenda ao infinito a única roupa que tem, mas amenizado por um gracioso colarinho de renda. Antigamente ela também tinha os mesmos cabelos rubros como chamas do filho, mas agora sua cabeleira, presa num macio coque, já estava marcada por largas estrias brancas. Os seus olhos, no entanto, continuavam os mesmos de quando era jovem, de um verde alegre e vivaz, e iluminaram-se logo que viram Senar.

    – Você voltou. – Abraçou-o com força.

    As flores viçosas na mesa, os panos rendados sobre os móveis, a limpeza impecável. Senar reconheceu os cuidados e as pequenas atenções da mãe.

    A mulher precipitou-se logo para a cozinha e aprontou o fogão a lenha.

    – Por que não avisou que viria? Não tenho nada para lhe dar, só o pouco que tenho na despensa. Esta é uma ocasião especial, precisaríamos festejar. – Nesse meio-tempo ia de um lado para outro sem parar, abria portas e gavetas, pegava panelas.

    – Não se preocupe, mamãe – tentou tranquilizá-la Senar.

    Dava prazer vê-la toda atarefada em cima do fogão e ele fingiu ser novamente um menino, quando o pai ainda era vivo e a família estava unida.

    Enquanto cozinhava, a mulher não parou um só momento de falar, quis saber da vida dele e falou da própria, mas também conversaram sobre coisas fúteis, corriqueiras, justamente daquilo de que Senar mais sentia falta.

    Quando o almoço ficou pronto, sentaram-se à mesa. A mãe sempre fora uma ótima cozinheira, até mesmo com os ingredientes mais humildes conseguia inventar régios acepipes. Tinha preparado uma sopa de peixe com verduras na qual boiavam fatias de pão com nozes.

    Diante dos pratos fumegantes, no tranquilo aconchego da casa, a mulher pôde finalmente olhar para o filho com calma.

    – Como você cresceu...

    Senar corou.

    – Já é um homem... um conselheiro... – Os olhos da mulher encheram-se de orgulho. – Ainda não consegui me acostumar com a ideia, sabe? Conte-me como é a sua vida, como passa os seus dias.

    Senar contentou-a, embora o remorso fosse para ele um verdadeiro nó na garganta. Apesar de já se terem passado muitos anos, apesar de a mãe nunca lhe ter feito pesar a sua escolha, lá no fundo da alma Senar ainda se sentia como se a tivesse abandonado e a sua irmã. Não tinha deixado, afinal, aquela casa para perseguir os seus sonhos, permitindo que Soana o levasse para longe, para uma terra ainda não atingida pela guerra? A saída dele sempre se parecera demais com uma fuga. Quando parou de contar, apertou com força as mãos dela.

    – E você, mamãe? Como vai levando?

    – Tudo na mesma. Continuo vendendo bem os meus bordados, embora não tão bem quanto antigamente. Dá para sentir a guerra mesmo aqui. Mas não me queixo, ganho o suficiente para sobreviver e passo muito melhor do que muita gente. Tenho uma vida cheia, sabia? A casa está sempre apinhada de amigas que me vêm visitar.

    Senar baixou os olhos.

    – E Kala?

    – Kala está bem. Sinto a sua falta, é claro, mas vez por outra vou até a casa dela. – A mulher segurou o rosto do filho entre as mãos. – Senar, olhe para mim. Seja o que for que sua irmã pensa a respeito, você fez a escolha certa. Fico feliz em ver o homem no qual se transformou.

    – Preciso vê-la – disse Senar.

    A mãe fitou-o séria.

    – O que há, meu filho? Está parecendo... sei lá... estranho, preocupado.

    – Não é nada, só que... preciso fazer uma viagem, para uma terra muito longe daqui. É por isto que vim. Vou demorar para voltar.

    Não queria contar-lhe a verdade. O importante era vê-la mais uma vez. O resto não importava.

    A mãe ficou um bom tempo olhando para ele, tentando ler no seu rosto o que o estava atormentando. Aí baixou os olhos.

    – Agora ela mora numa casa do outro lado da aldeia, à beira-mar – murmurou.

    Senar foi a pé. O céu estava lívido de nuvens e não demorou para começar a chover. O mar surgiu imenso e escuro diante dele.

    As ondas quebravam com força contra o embarcadouro, passando por cima de tudo aquilo que encontravam. Era o mar poderoso da sua infância, o mesmo mar do qual ele e o pai tiravam os peixes nos dias de festa. O mesmo mar onde ele mergulhava feliz. Mas agora parecia estar zangado com ele.

    Senar continuou andando ao longo do cais. Os vagalhões abatiam-se contra as tábuas de madeira feito montanhas, mas ele não estava com medo. Deixou-se atropelar por uma onda e saiu incólume, envolvido num halo azulado: uma barreira mágica, um mero encantamento defensivo. Ganhei de você, disse sorrindo. Então divisou a casa ao longe. Estremeceu de frio, totalmente encharcado, e sentiu a sua coragem falhar.

    Parou e olhou a sua volta. Talvez fosse melhor dar antes um pulo na hospedaria. Mais cedo ou mais tarde tinha de passar por lá. Adiou o encontro com a irmã e desviou-se do caminho.

    Um homem idoso, de barba branca e rosto queimado de sol, empurrava com esforço um tonel para a entrada da estalagem e praguejava contra a chuva.

    Senar reconheceu-o logo: só Faraq conhecia tantas maneiras diferentes de praguejar contra alguma coisa. Quando chegou perto perguntou:

    – Está precisando de ajuda?

    O homem teve um sobressalto e virou-se de repente.

    – Ficou louco? Quer que eu tenha um troço? Quem diabo você é?

    Senar conteve um sorriso. O hospedeiro continuava sendo o velho rabugento de sempre.

    – Não está se lembrando de mim?

    Faraq esquadrinhou-o com olhar crítico, aí deu uma palmada na testa.

    – Mas sim, claro! Você é Senar, o mago. Puxa vida, devo mesmo estar ficando velho. A última vez que o vi, você não passava de um garoto, e agora está mais alto do que eu. – Riu e deu-lhe dois fortes tapas nos ombros. – Vamos sair da chuva, estaremos mais confortáveis lá dentro.

    A hospedaria era muito diferente de como Senar se lembrava, parecia ter ficado bem menor. O mago sentou-se a uma das mesas de madeira maciça enquanto Faraq desaparecia atrás do balcão.

    – Temos que festejar. Com esta chuva fria precisamos de algo bem forte – disse o velho, e então trouxe para a mesa uma garrafa cheia de um líquido roxo e dois copos. – Bem-vindo de volta, garoto.

    Faraq levantou o copo e esvaziou-o de um só gole. Senar ficou olhando para ele. A última vez que estivera na estalagem o homem tinha os cabelos só um pouco grisalhos e quando ria a teia de rugas em volta dos olhos mal aparecia. Pelos deuses, quanto tempo já passou? O jovem só deu um gole. Foi suficiente para ele tossir e ficar com a garganta em chamas.

    – Como é que é? Um homem como você não aguenta o Tubarão? – perguntou Faraq rindo.

    – É a primeira vez que experimento. Onde estou morando agora não há nada parecido.

    Era um licor bem forte, o Tubarão. A tradição exigia que quando um rapaz completasse dezesseis anos, para festejar a sua passagem à idade adulta, os homens da aldeia o levassem à estalagem para deixá-lo bêbado.

    – Perdeu muita coisa, indo embora – brincou Faraq. – Mas ouvi dizer que subiu na vida. Conselheiro, não é?

    Senar anuiu.

    – Parabéns para o nosso mago! – Faraq deu-lhe mais uma violenta palmada nas costas.

    Senar estava feliz ao reencontrar a franca simplicidade da sua gente, seus modos rudes, a alegria. Amava a Terra que o tinha visto nascer.

    Depois de um número de copos que o rapaz não foi capaz de contar, Faraq perguntou-lhe o motivo da volta. Senar, o rosto vermelho de álcool, contou tudo.

    Faraq ficou pasmo.

    – Mas é uma loucura, Senar. Muitos já tentaram chegar lá, ao Mundo Submerso. E sabe de uma coisa? Nunca mais voltaram.

    – Eu sei, eu sei. Mas é a minha missão, não posso não cumpri-la. Só preciso de alguém muito louco para levar-me até lá. Gostaria que você me ajudasse a encontrá-lo.

    – Ninguém vai querer fazer uma coisa dessas.

    – Então terei de ir sozinho.

    Faraq observou-o com atenção.

    – Não consigo entender se você é um louco ou um herói.

    Senar riu.

    – Um louco. Quanto a heroísmo, não tenho a menor ideia do que seja. Nem tive a coragem de confessar à minha mãe aquilo que tenciono fazer. Eu lhe peço, aliás, não lhe conte nada. Não quero que fique preocupada.

    Faraq meneou a cabeça.

    – Como quiser.

    Senar levantou-se.

    – Vai ajudar-me?

    O velho engoliu o último trago e levou-o até a porta.

    – Não vou garantir nada, mas volte amanhã.

    A chuva caía sem parar. Senar dirigiu-se à casa de Kala sem hesitar. Bateu. Nenhuma resposta. Bateu de novo. A porta abriu-se de repente.

    – Quem diabo está aí?

    Kala. Era sem dúvida ela. Senar guardava da irmã a imagem de uma jovem com mais ou menos vinte anos, ainda imatura, mas agora via diante de si uma mulher formosa, quase opulenta, com o rosto emoldurado por uma série de caracóis cor de cobre. Por uma fração de segundo ficaram olhando um para o outro imóveis. Senar viu a ira subir pouco a pouco aos olhos extremamente claros da irmã, azuis como os dele. Então a porta bateu na sua cara.

    – Kala, Kala, abra. – Senar começou a martelar com os punhos a porta enquanto sua roupa pingava água. – Preciso falar com você, em nome de todos os deuses! Talvez seja a última vez que nos vemos!

    – Queira o céu que não nos vejamos nunca mais! – gritou Kala do interior da casa.

    – Está bem. Então ficarei aqui fora até você me atender.

    A porta voltou a abrir-se com fúria.

    – Se você não for embora, juro que vou chamar os guardas.

    – Faça isso. Eu não tenho nada a perder.

    Kala ia fechar mais uma vez a porta na cara dele, mas Senar a deteve com o braço.

    – Tire logo esse braço daqui se não quiser que o corte.

    – Só quero falar com você.

    Por trás da saia de Kala apareceu a cabeça encaracolada de uma menina.

    – Quem é, mamãe?

    – Volte logo para dentro – ordenou Kala. – Vá logo embora. Aqui não tem lugar para você – sibilou ao irmão.

    Senar tinha ficado de queixo caído.

    – Eu tenho uma sobrinha. Tenho uma sobrinha e você não me contou!

    – Danação! – bufou Kala exasperada. – Então entre, entre logo.

    Senar entrou na casa, pingando no soalho de madeira da ampla sala central. Olhou a sua volta. A lareira acesa esquentava o ambiente e na mesa havia um vaso com flores brancas. A menina, parada diante dele, fitava-o de olhos arregalados.

    – Man, já lhe disse para sair daqui! Ficou surda? – repreendeu-a a mãe.

    A criança desapareceu troteando.

    – Qual é a idade dela? – murmurou Senar.

    – E para você faz alguma diferença? – respondeu Kala com raiva.

    Agora que tinha a irmã bem na sua frente e podia falar com ela, Senar sentia-se exausto, esvaziado.

    – Afinal, o que quer, Senar?

    – Não sei. – O que podia dizer, depois de tantos anos de silêncio? Suspirou ruidosamente. – Eu ainda era um menino, quando fui embora, Kala. Então papai morreu. E Soana continuava dizendo que se eu queria combater contra o Tirano tinha de seguir o meu caminho, precisava tornar-me mago.

    Kala fitou-o com desprezo.

    – Igualzinho a papai.

    Estas palavras machucaram-no.

    – Papai queria dar a sua contribuição na luta pela liberdade. Só merecia admiração.

    – A sua contribuição, não é? Forçou a nossa mãe a viver nos campos de batalha e a criar suas crianças no meio da guerra. Sacrificou a felicidade de três pessoas só para continuar a ser o escudeiro do seu amado cavaleiro. Você é como ele, foi embora para bancar o herói, para salvar sabe lá o quê. Mas você não é um herói, Senar. Deveria ter ficado com a gente, precisávamos de você. A mãe teve de trabalhar a vida inteira como uma mula porque o dinheiro nunca dava para o gasto. E eu tive de casar sem nem mesmo ter dote. – Kala baixou a voz. – Eu gostava de você, Senar. Quando foi embora com aquela bruxa ainda era pequeno, não sabia o que estava fazendo. Mas já faz onze anos que partiu para estudar sabe lá o quê em algum lugar. Chegou mesmo a pensar que uma visita de vez em quando poderia realmente compensar a sua ausência?

    – Eu também senti muita falta de vocês.

    – Não me diga. Toda vez que você vinha, a mãe ficava feliz como uma menina diante de um presente. E aí, quando você partia de novo, ficava chorando. Eu ficava uma fúria. Por que não o forçava a ficar? Por que não dizia bem na sua cara que você era apenas um egoísta. Mas não, nada disso, sempre o admirou, sempre o defendeu. – Os olhos de Kala ficaram cheios de lágrimas. – Eu não sou como ela. E agora saia da minha frente e não volte mais.

    Senar tinha um nó apertando sua garganta.

    – Amo você do mesmo jeito de quando era menino, Kala. E a sua filha é linda, muito linda.

    Aproximou-se da irmã para beijá-la no rosto, mas ela esquivou-se.

    – Por que veio? – perguntou.

    – Vou viajar. Não sei quando nem se irei voltar. Queria despedir-me de você.

    Kala fitou o irmão em silêncio.

    – Estou com medo desta viagem – disse Senar, como se falasse consigo mesmo. – Se fosse ouvir o conselho das minhas pernas, sairia correndo. Mas ao mesmo tempo sinto que devo tentar. Engraçado, não é? Parece que a minha vida inteira funciona deste jeito.

    Duas lágrimas escorreram pelas faces de Kala.

    – Posso despedir-me da minha sobrinha? – perguntou Senar.

    Kala anuiu e enxugou rapidamente o rosto.

    – Man!

    A menina chegou correndo e parou meio assustada no meio do aposento.

    – Está com quatro anos – sussurrou Kala.

    Senar afagou sua cabeça, em seguida abriu a porta e fechou-a atrás de si.

    Na tarde do dia seguinte, a taberna estava cheia de gente. Senar passou entre as mesas e foi direto falar com Faraq.

    – Encontrou? – perguntou baixinho.

    Faraq olhou em volta e puxou-o para mais perto.

    – Não é tão simples assim...

    – Se não houver ninguém, só preciso de um barco, de um bote, de qualquer coisa que possa boiar; irei sozinho – interrompeu-o Senar.

    – Calma, calma! Ainda nem completou vinte anos e já está tão ansioso para morrer? O meu filho tem um contato, mas vai custar muito caro.

    – O dinheiro não falta.

    – Hoje à noite, no cais ocidental.

    – Estarei lá.

    Senar saiu furtivo da casa da mãe, todo enroupado num balandrau que o cobria da cabeça aos pés. Era uma noite sem nuvens e o mar estava calmo. Não havia vivalma no cais. Sentou-se com os pés pendurados no vazio. A delgada foice da lua refletia-se trêmula no espelho de água abaixo dele e criava um ambiente espectral.

    – É você? – perguntou uma voz feminina. O timbre era baixo, quase rouco.

    Senar virou-se. Atrás dele havia uma figura delgada, envolvida numa longa manta. Não percebera a sua chegada.

    – Como assim?

    – Você é bobo ou o quê? – perguntou ela enfastiada. – É ou não é o sujeito que quer ir ao Mundo Submerso?

    – Eu mesmo.

    A mulher sentou-se sem tirar o capuz.

    – Um milhão de dinares – disse com fleuma.

    Senar teve um momento de hesitação.

    – Quanto?

    – Você ouviu muito bem. Tem?

    Senar fez um rápido cálculo; pondo alguma coisa também do próprio bolso podia chegar lá.

    – Está me parecendo um tanto caro, como preço.

    A mulher riu.

    – Um tanto caro, não é? O último que tentou a façanha desapareceu no mar sem deixar rastro. Do seu barco só voltou o mastro. Dois anos mais tarde.

    – Quando podemos partir? – perguntou Senar.

    – Depende. Disseram-me que você tem um mapa.

    Senar chamou a si mesmo de idiota.

    – Não está comigo – respondeu constrangido. Como conspirador era um verdadeiro fracasso.

    A mulher levantou-se para ir embora.

    – Amanhã, aqui, a mesma hora.

    – Não poderíamos nos encontrar durante o dia? Gostaria de conhecer o resto da tripulação, de ver o navio.

    Ela se encostou até o seu rosto ficar bem perto do rapaz. Na luz do luar, Senar vislumbrou dois olhos negros como piche. Quando a mulher falou, sentiu no rosto a sua respiração.

    – Está pretendendo demais. Procure não me fazer mudar de ideia. Até amanhã, benzinho.

    Manteve os olhos cravados nele por mais um instante, depois virou-se e desapareceu na noite.

    Quando na noite seguinte Senar chegou ao cais, ela já o estava esperando. Vestia mais uma vez a longa capa.

    – Venha, não é prudente ficarmos ao ar livre.

    Ele a acompanhou um tanto inquieto. Tinha a impressão de estar se metendo numa enrascada. Percorreram toda a praia guardando alguma distância entre si. Ela mandou que ele andasse na água e ele obedeceu apesar do gélido mar invernal. Caminharam por um bom tempo, até chegarem a uma pequena enseada escondida entre os rochedos.

    Senar lembrou que na infância o proibiam de ir até lá. Era muito perigoso, diziam. Enfiaram-se a duras penas numa fenda na rocha, que logo se alargou formando uma gruta iluminada com velas.

    – Aqui ninguém poderá nos incomodar – disse ela.

    Senar olhou em volta. A gruta parecia um lugar habitado. No meio havia uma tosca mesa cheia de copos e garrafas de Tubarão, enquanto nas paredes abriam-se corredores que presumivelmente levavam a outros aposentos.

    – Sente-se.

    Senar obedeceu sem dar um pio, de olhos fixos nela.

    Então, finalmente, a mulher desatou a capa e deixou-a cair para trás com gesto teatral.

    Aparentava estar mais perto dos trinta do que dos vinte. Tinha longos cabelos pretos e lisos que lhe chegavam à cintura, quadris sinuosos e um peito macio, apertado numa espécie de corpete de veludo. A não ser pelo generoso decote, estava vestida como um homem: calças de couro, botas e um punhal preso no cinto. Senar ficou de queixo caído.

    – O que foi? Nunca viu uma mulher antes? – perguntou ela.

    Em seguida, sem tirar os olhos dele, desencostou uma cadeira da mesa e sentou-se de pernas cruzadas. Pegou então uma garrafa e encheu dois copos. Botou um na frente de Senar e esvaziou o outro como se fosse água.

    – Então? Qual é o seu nome?

    Senar respondeu com um fio de voz:

    – E o seu?

    – Direi no fim desta nossa conversa. Se eu quiser, é claro. Vamos ver esse seu mapa.

    Senar revistou os bolsos. Aquela mulher deixava-o confuso. Procurou nervosamente entre as suas coisas até que a mão dela roçou no seu flanco.

    – Não será por acaso esse pedaço de papel? – disse com voz persuasiva.

    Ele baixou os olhos.

    – Desculpe, ando um tanto confuso. Sim,

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