Revista de Informação Legislativa: Julho A Setembro de 2021

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ISSN 0034‑835X

e-ISSN 2596-0466

REVISTA DE
INFORMAÇÃO
LEGISLATIVA

Ano 58

231
julho a setembro de 2021
SENADO FEDERAL
Mesa
Biênio 2021 – 2022

Senador Rodrigo Pacheco


PRESIDENTE

Senador Veneziano Vital do Rêgo


PRIMEIRO-VICE-PRESIDENTE

Senador Romário
SEGUNDO-VICE-PRESIDENTE

Senador Irajá
PRIMEIRO-SECRETÁRIO

Senador Elmano Férrer


SEGUNDO-SECRETÁRIO

Senador Rogério Carvalho


TERCEIRO-SECRETÁRIO

Senador Weverton
QUARTO-SECRETÁRIO

SUPLENTES DE SECRETÁRIO
Senador Jorginho Mello
Senador Luiz do Carmo
Senadora Eliziane Gama
Senador Zequinha Marinho
ISSN 0034‑835X
e-ISSN 2596-0466

REVISTA DE
INFORMAÇÃO
LEGISLATIVA
Brasília – DF

Ano 58

231
julho a setembro de 2021
MissÃo
A Revista de Informação Legislativa (RIL) é uma publicação trimestral, produzida pela Coordenação
de Edições Técnicas do Senado Federal. Publicada desde 1964, a Revista tem divulgado artigos
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Sua missão é contribuir para a análise dos grandes temas em discussão na sociedade brasileira
e, consequentemente, em debate no Congresso Nacional.

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Isaac Brown, Secretário‑Geral da Presidência – 1946‑1967
Leyla Castello Branco Rangel, Diretora – 1964‑1988

Diretora-Geral: Ilana Trombka


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iMPressa na seCretaria De eDitoraÇÃo e PuBliCaÇÕes
Diretor: Rafael André Chervenski da Silva
ProDuZiDa na CoorDenaÇÃo De eDiÇÕes tÉCniCas
CoorDenaDor: Aloysio de Brito Vieira
eDitor resPonsÁVel: Aloysio de Brito Vieira. eDitor eXeCutiVo: Raphael Melleiro. GestÃo De
suBMissÃo: Glaucia Cruz. reVisÃo: Vilma de Sousa e Walfrido Vianna. eDitoraÇÃo: Gilmar Rodrigues.
Não são objeto de revisão artigos ou segmentos de texto redigidos em língua estrangeira.

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Bibliotecas, Ulrichsweb.

Revista de Informação Legislativa / Senado Federal. – Ano 1, n. 1 (mar. 1964). – Brasília,


DF : Senado Federal, 1964‑.
Trimestral.
Ano 1‑3, n. 1‑10, publicada pelo Serviço de Informação Legislativa; ano 3‑9, n. 11‑33,
publicada pela Diretoria de Informação Legislativa; ano 9‑50, n. 34‑198, publicada pela
Subsecretaria de Edições Técnicas; ano 50‑, n. 199‑, publicada pela Coordenação de
Edições Técnicas.
ISSN 0034‑835X (Impresso)
ISSN 2596‑0466 (Online)
1. Direito – Periódico. I. Brasil. Congresso. Senado Federal, Coordenação de Edições
Técnicas.
CDD 340.05
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Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil / Dr. José Levi Mello do Amaral Júnior, Universidade
de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil / Dr. Luis Fernando Barzotto, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil / Dr. Luiz Fux, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, RJ, Brasil / Dr. Marcelo Dias Varella, UniCEUB, Brasília, DF, Brasil / Dr. Marco
Bruno Miranda Clementino, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil /
Dra. Maria Tereza Fonseca Dias, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG,
Brasil / Dr. Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, Universidade de Fortaleza, Fortaleza, CE,
Brasil / Dr. Octavio Campos Fischer, Centro Universitário Autônomo do Brasil, Curitiba, PR,
Brasil / Dr. Roger Stiefelmann Leal, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil / Dr. Sérgio
Antônio Ferreira Victor, Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasília, DF, Brasil / Dr. Wremyr
Scliar, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil

Pareceristas
Dr. Adalberto de Souza Pasqualotto, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, RS, Brasil / Dr. Adrualdo de Lima Catão, Universidade Federal de Alagoas, Maceió,
AL, Brasil / Dr. Alexandre Coutinho Pagliarini, Centro Universitário Internacional UNINTER,
Curitiba, PR, Brasil / Dr. Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia, Universidade Federal
de Ouro Preto, Ouro Preto, MG, Brasil / Dra. Aline Sueli de Salles Santos, Universidade Federal
do Tocantins, Palmas, TO, Brasil / Dr. Álvaro Augusto Camilo Mariano, Universidade Federal de
Goiás, Goiânia, GO, Brasil / Dr. Álvaro José Bettanin Carrasco, Procuradoria-Geral Federal,
Canoas, RS, Brasil / Dra. Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave, Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, Natal, RN, Brasil / Dra. Ana Claudia Santano, Centro Universitário Autônomo
do Brasil, Curitiba, PR, Brasil / Dra. Ana Virginia Moreira Gomes, Universidade de Fortaleza,
Fortaleza, CE, Brasil / Dr. André Felipe Canuto Coelho, Faculdade Damas, Recife, PE, Brasil /
Dr. André Guilherme Lemos Jorge, Universidade Nove de Julho, São Paulo, SP, Brasil / Dr. André
Saddy, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil / Dr. André de Souza Dantas Elali,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil / Dra. Anelise Coelho Nunes,
Rede Metodista de Educação, Porto Alegre, RS, Brasil / Dr. Antonio Celso Baeta Minhoto,
Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, SP, Brasil / Dr. Antonio Henrique Graciano Suxberger,
UniCEUB, Brasília, DF, Brasil / Dr. Antonio Sergio Cordeiro Piedade, Universidade Federal de
Mato Grosso, Cuiabá, MT, Brasil / Me. Antonio de Holanda Cavalcante Segundo, Leandro
Vasques Advogados Associados, Fortaleza, CE, Brasil / Dr. Artur Stamford da Silva, Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil / Dra. Bárbara Gomes Lupetti Baptista, Universidade
Veiga de Almeida, Rio de Janeiro, RJ, Brasil / Dra. Beatriz Schettini, Universidade Federal de
Ouro Preto, Ouro Preto, MG, Brasil / Dr. Benedito Cerezzo Pereira Filho, Universidade de Brasília,
Brasília, DF, Brasil / Dr. Benjamin Miranda Tabak, Universidade Católica de Brasília, Brasília, DF,
Brasil / Dra. Betina Treiger Grupenmacher, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil /
Dra. Betânia de Moraes Alfonsin, Fundação Escola Superior do Ministério Público, Porto Alegre,
RS, Brasil / Dr. Bruno Camilloto Arantes, Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, MG,
Brasil / Dr. Bruno Cavalcanti Angelin Mendes, Universidade Federal de Roraima, Boa Vista, RR,
Brasil / Dr. Bruno Meneses Lorenzetto, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, PR,
Brasil / Me. Caio Alexandre Capelari Anselmo, Ministério Público Federal, São Paulo, SP, Brasil /
Dr. Caio Gracco Pinheiro Dias, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil / Dr. Camilo
Zufelato, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil / Dr. Carlos Augusto Daniel Neto,
Centro de Estudos de Direito Econômico e Social, São Paulo, SP, Brasil / Dr. Carlos Eduardo
Silva e Souza, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, MT, Brasil / Me. Carlos Henrique
Rubens Tomé Silva, Senado Federal, Brasília, DF, Brasil / Dr. Carlos Magno Spricigo Venerio,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil / Ma. Caroline Somesom Tauk, Tribunal
Regional Federal da 2ª Região, Rio de Janeiro, RJ, Brasil / Dr. Celso de Barros Correia Neto,
Universidade Católica de Brasília, Brasília, DF, Brasil / Dr. Cesar Rodrigues van der Laan,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil / Dr. Cláudio Araújo Reis,
Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil / Dr. Claudio Ferreira Pazini, Universidade Federal de
Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil / Dr. Cristiano Gomes de Brito, Universidade Federal de
Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil / Dr. Cristiano Heineck Schmitt, Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil / Dr. Cristiano Lange dos Santos,
Laboratório de Análise de Políticas Públicas e Sociais, Porto Alegre, RS, Brasil / Dra. Cynthia
Soares Carneiro, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil / Ma. Daiana Fagundes
dos Santos Carboni, Universidade de Santiago de Compostela, Santiago de Compostela,
Espanha / Dr. Dani Rudnicki, Universidade La Salle, Canoas, RS, Brasil / Dra. Daniela de Melo
Crosara, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil / Dra. Danielle Annoni,
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil / Dra. Danielle Souza de
Andrade e Silva Cavalcanti, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil / Me. Danilo
Augusto Barboza de Aguiar, Senado Federal, Brasília, DF, Brasil / Dr. Danilo Fontenele Sampaio
Cunha, Centro Universitário 7 de Setembro, Fortaleza, CE, Brasil / Dr. Davi Augusto Santana de
Lelis, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil / Me. Devanildo
Braz da Silva, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, Brasil /
Dr. Dircêo Torrecillas Ramos, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, SP, Brasil / Dr. Edinilson
Donisete Machado, Universidade Estadual do Norte do Paraná, Jacarezinho, PR, Brasil /
Dr. Eduardo Modena Lacerda, Senado Federal, Brasília, DF, Brasil / Dr. Eduardo Rocha Dias,
Universidade de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil / Dr. Elias Jacob de Menezes Neto, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil / Dra. Eneida Desiree Salgado, Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil / Dr. Eriberto Francisco Bevilaqua Marin, Universidade
Federal de Goiás, Goiânia, GO, Brasil / Dr. Eugênio Facchini Neto, Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil / Dra. Fabiana Santos Dantas,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil / Me. Fábio Feliciano Barbosa,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil / Dra. Fabíola Albuquerque Lobo,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil / Dr. Federico Nunes de Matos,
Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, MG, Brasil / Dr. Felipe Lima Gomes,
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil / Dra. Fernanda Dalla Libera Damacena,
Ambrósio e Dalla Libera Advogados Associados, Porto Alegre, RS, Brasil / Dr. Fernando Angelo
Ribeiro Leal, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil / Dr. Fernando Antonio
Nogueira Galvão da Rocha, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil /
Dr. Fernando Boarato Meneguin, Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasília, DF, Brasil /
Dr. Fernando Gaburri de Souza Lima, Universidade Estadual do Rio Grande do Norte, Mossoró,
RN, Brasil / Dr. Fernando Laércio Alves da Silva, Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, MG,
Brasil / Dr. Fernando Nagib Marcos Coelho, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR,
Brasil / Dr. Fernando de Brito Alves, Universidade Estadual do Norte do Paraná, Jacarezinho, PR,
Brasil / Dr. Flávio Barbosa Quinaud Pedron, Faculdade Guanambi, Guanambi, BA, Brasil /
Dr. Francisco Antônio de Barros e Silva Neto, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE,
Brasil / Me. Frederico Augusto Leopoldino Koehler, Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, PE, Brasil / Dr. Guilherme Tanger Jardim, Fundação Escola Superior do Ministério
Público, Porto Alegre, RS, Brasil / Me. Guilherme da Franca Couto Fernandes de Almeida,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil / Dr. Gustavo Costa
Nassif, Instituto de Defesa da Cidadania e da Transparência, Belo Horizonte, MG, Brasil /
Dr. Gustavo Ferreira Ribeiro, UniCEUB, Brasília, DF, Brasil / Dr. Gustavo Schneider Fossati,
Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil / Me. Gustavo Silva Calçado, Universidade
Tiradentes, Aracaju, SE, Brasil / Dra. Heloisa Fernandes Câmara, Centro Universitário Curitiba,
Curitiba, PR, Brasil / Dr. Henrique Aniceto Kujawa, Faculdade Meridional, Passo Fundo, RS,
Brasil / Dr. Henrique Fernando de Mello, Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, São José do
Rio Preto, SP, Brasil / Dra. Iara Antunes de Souza, Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro
Preto, MG, Brasil / Dr. Ilzver Matos de Oliveira, Universidade Tiradentes, Aracaju, SE, Brasil /
Dr. Ivar Alberto Martins Hartmann, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil / Dr. Jahyr-
Philippe Bichara, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil / Dr. Jailton
Macena de Araújo, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil / Dr. Jair Aparecido
Cardoso, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil / Ma. Janaína Gomes Garcia de
Moraes, Tilburg University, Haia, Países Baixos / Dr. Jayme Benvenuto Lima Junior, Universidade
Federal da Integração Latino-Americana, Foz do Iguaçu, PR, Brasil / Dr. Jefferson Aparecido
Dias, Procuradoria da República de São Paulo, Marília, SP, Brasil / Me. Jordan Vinícius de
Oliveira, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil / Dr. Jorge Luís
Mialhe, Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, SP, Brasil / Dr. José Carlos Evangelista
Araújo, Faculdades de Campinas, Campinas, SP, Brasil / Dr. José Filomeno de Moraes Filho,
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil / Dr. José Tadeu Neves Xavier, Fundação
Escola Superior do Ministério Público, Porto Alegre, RS, Brasil / Dr. José dos Santos Carvalho
Filho, Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasília, DF, Brasil / Dra. Josiane Rose Petry
Veronese, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil / Dr. João Aparecido
Bazolli, Universidade Federal do Tocantins, Palmas, TO, Brasil / Me. João Pedro Kostin Felipe de
Natividade, Natividade Sociedade de Advogados, Curitiba, PR, Brasil / Me. João Vicente
Rothfuchs, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil /
Dra. Julia Sichieri Moura, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil /
Dra. Juliane Sant’Ana Bento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS,
Brasil / Dr. Júlio César Faria Zini, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG,
Brasil / Ma. Larissa Lauda Burmann, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, MT, Brasil /
Dr. Lauro Ishikawa, Faculdade Autônoma de Direito, São Paulo, SP, Brasil / Dra. Leila Giandoni
Ollaik, Ministério da Economia, Brasília, DF, Brasil / Dra. Leila Maria da Juda Bijos, Universidade
Católica de Brasília, Brasília, DF, Brasil / Me. Leonardo Geliski, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil / Dr. Leonardo Martins, Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, Natal, RN, Brasil / Dr. Leonel Pires Ohlweiler, Tribunal de Justiça do Estado do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil / Ma. Lilian Barros de Oliveira Almeida, Advocacia-
Geral da União, Brasília, DF, Brasil / Ma. Lorena Abbas, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, RJ, Brasil / Dr. Lucas Rodrigues Cunha, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, MG, Brasil / Dra. Luciana Cordeiro de Souza Fernandes, Universidade Estadual
de Campinas, Campinas, SP, Brasil / Dra. Luciana Cristina de Souza, Faculdade Milton Campos,
Nova Lima, MG, Brasil / Dra. Luciana de Souza Ramos, Centro Universitário de Ensino Superior
do Amazonas, Manaus, AM, Brasil / Dr. Luciano Santos Lopes, Faculdade Milton Campos, Nova
Lima, MG, Brasil / Dr. Luiz Caetano de Salles, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia,
MG, Brasil / Dr. Luiz Carlos Goiabeira Rosa, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia,
MG, Brasil / Me. Luiz Eduardo Diniz Araújo, Advocacia-Geral da União, Brasília, DF, Brasil /
Dr. Luiz Felipe Monteiro Seixas, Universidade Federal Rural do Semi-Árido, Mossoró, RN, Brasil /
Dr. Luiz Fernando Afonso, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil /
Dr. Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São
Paulo, SP, Brasil / Dr. Luís Alexandre Carta Winter, Pontifícia Universidade Católica do Paraná,
Curitiba, PR, Brasil / Dra. Lídia Maria Lopes Rodrigues Ribas, Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, Campo Grande, MS, Brasil / Dr. Marcelo Casseb Continentino, Procuradoria-
Geral do Estado de Pernambuco, Recife, PE, Brasil / Dr. Marcelo Schenk Duque, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil / Dr. Marciano Seabra de Godoi, Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil / Dr. Marcilio Toscano Franca
Filho, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil / Dr. Márcio Alexandre da Silva
Pinto, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil / Dr. Marcio Iorio Aranha,
Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil / Dr. Marco Bruno Miranda Clementino, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil / Dr. Marco Félix Jobim, Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil / Dr. Marcos Augusto de Albuquerque
Ehrhardt Júnior, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, AL, Brasil / Dr. Marcos Jorge Catalan,
Universidade La Salle, Canoas, RS, Brasil / Dr. Marcos Roberto de Lima Aguirre, Verbo Jurídico,
Porto Alegre, RS, Brasil / Ma. Maria Angélica dos Santos, Universidade Salgado de Oliveira, Belo
Horizonte, MG, Brasil / Dra. Maria Auxiliadora Minahim, Universidade Federal da Bahia, Salvador,
BA, Brasil / Dra. Maria Inês Caetano Ferreira, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia,
Cachoeira, BA, Brasil / Dra. Mariah Brochado Ferreira, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, MG, Brasil / Ma. Marina Soares Marinho, Advocacia-Geral da União, Belo
Horizonte, MG, Brasil / Me. Martin Pino, Escola Superior de Advocacia da OAB, São Paulo, SP,
Brasil / Dra. Maurinice Evaristo Wenceslau, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
Campo Grande, MS, Brasil / Dr. Mauro Fonseca Andrade, Fundação Escola Superior do
Ministério Público, Porto Alegre, RS, Brasil / Me. Maximiliano Vieira Franco de Godoy, Senado
Federal, Brasília, DF, Brasil / Dra. Micheli Pereira de Melo, Universidade Federal do Sul e Sudeste
do Pará, Marabá, PA, Brasil / Dra. Monica Paraguassu Correia da Silva, Universidade Federal
Fluminense, Niterói, RJ, Brasil / Dra. Mônica Herman Salem Caggiano, Universidade de São
Paulo, São Paulo, SP, Brasil / Dr. Nestor Eduardo Araruna Santiago, Universidade de Fortaleza,
Fortaleza, CE, Brasil / Dr. Neuro José Zambam, Faculdade Meridional, Passo Fundo, RS, Brasil /
Dr. Nilson Tadeu Reis Campos Silva, Universidade Estadual do Norte do Paraná, Jacarezinho,
PR, Brasil / Dra. Nina Trícia Disconzi Rodrigues, Universidade Federal de Santa Maria, Santa
Maria, RS, Brasil / Dr. Osvaldo Ferreira de Carvalho, Pontifícia Universidade Católica de Goiás,
Goiânia, GO, Brasil / Dr. Pablo Georges Cícero Fraga Leurquin, Universidade Federal de Juiz de
Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil / Dr. Patryck de Araujo Ayala, Universidade Federal de Mato
Grosso, Cuiabá, MT, Brasil / Dra. Patrícia Borba Vilar Guimarães, Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, Natal, RN, Brasil / Dr. Paul Hugo Weberbauer, Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, PE, Brasil / Dr. Paulo César Busato, Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, PR, Brasil / Dr. Paulo César Pinto de Oliveira, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, MG, Brasil / Dr. Paulo Fernando Soares Pereira, Advocacia-Geral da União, São
Luís, MA, Brasil / Dr. Paulo Henrique da Silveira Chaves, Universidade Federal de Uberlândia,
Uberlândia, MG, Brasil / Dr. Paulo Lopo Saraiva, Faculdade Maurício de Nassau, Natal, RN,
Brasil / Dr. Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, Universidade Santa Cecília, Santos, SP, Brasil /
Me. Pérsio Henrique Barroso, Senado Federal, Brasília, DF, Brasil / Ma. Priscilla Cardoso
Rodrigues, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal / Me. Rafael Diogo Diógenes Lemos,
UniFanor, Aracaju, RN, Brasil / Me. Rafael Reis Ferreira, Universidade Federal de Roraima, Boa
Vista, RR, Brasil / Me. Rafael Santos Soares, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, MG, Brasil / Dr. Rafael Silveira e Silva, Instituto Legislativo Brasileiro, Brasília, DF,
Brasil / Dr. Rafael Lamera Giesta Cabral, Universidade Federal Rural do Semi-Árido, Mossoró,
RN, Brasil / Dr. Raoni Macedo Bielschowsky, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia,
MG, Brasil / Dr. Raphael Peixoto de Paula Marques, Advocacia-Geral da União, Brasília, DF,
Brasil / Dra. Regina Stela Corrêa Vieira, Universidade do Oeste de Santa Catarina, Chapecó, SC,
Brasil / Dra. Renata Rodrigues de Castro Rocha, Universidade Federal do Tocantins, Palmas, TO,
Brasil / Dr. Ricardo Sontag, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil /
Dra. Rita de Cássia Corrêa de Vasconcelos, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba,
PR, Brasil / Dra. Roberta Correa de Araujo, Faculdade de Olinda, Olinda, PE, Brasil / Dr. Roberto
Gomes de Albuquerque Melo Júnior, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil /
Dr. Roberto Henrique Pôrto Nogueira, Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, MG,
Brasil / Dr. Rodrigo Grazinoli Garrido, Universidade Católica de Petrópolis, Petrópolis, RJ, Brasil /
Dr. Rodrigo Leite Ferreira Cabral, Ministério Público do Estado do Paraná, Curitiba, PR, Brasil /
Dr. Rodrigo Nóbrega Farias, Universidade Estadual da Paraíba, Guarabira, PB, Brasil /
Me. Rodrigo da Silva Brandalise, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal / Dra. Rosalice
Fidalgo Pinheiro, Centro Universitário Autônomo do Brasil, Curitiba, PR, Brasil / Dr. Rubens
Beçak, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil / Dr. Rubens Valtecides Alves,
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil / Dra. Rubia Carneiro Neves,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil / Dra. Salete Oro Boff,
Faculdade Meridional, Passo Fundo, RS, Brasil / Dra. Sandra Mara Campos Alves, Fundação
Oswaldo Cruz, Brasília, DF, Brasil / Dr. Sandro Marcelo Kozikoski, Universidade Federal do
Paraná, Curitiba, PR, Brasil / Dr. Saulo Nunes de Carvalho Almeida, Centro Universitário Católica
de Quixadá, Fortaleza, CE, Brasil / Dra. Sônia Letícia de Méllo Cardoso, Universidade Estadual
de Maringá, Maringá, PR, Brasil / Dr. Tarsis Barreto Oliveira, Universidade Federal do Tocantins,
Palmas, TO, Brasil / Dr. Thiago Rodrigues Silame, Universidade Federal de Alfenas, Alfenas, MG,
Brasil / Dr. Tiago Cappi Janini, Universidade Estadual do Norte do Paraná, Jacarezinho, PR,
Brasil / Dr. Tiago Ivo Odon, Senado Federal, Brasília, DF, Brasil / Dr. Túlio Chaves Novaes,
Universidade Federal do Oeste do Pará, Santarém, PA, Brasil / Dra. Valéria Ribas do Nascimento,
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil / Dr. Vallisney de Souza Oliveira,
Justiça Federal, Brasília, DF, Brasil / Dr. Valter Rodrigues de Carvalho, Universidade Cruzeiro do
Sul, São Paulo, SP, Brasil / Dra. Vanessa Spinosa, Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Natal, RN, Brasil / Dra. Veridiana Pereira Parahyba Campos, Fundação Carlos Chagas, Caxingui,
SP, Brasil

Autores
Alejandro Knaesel Arrabal é doutor em Direito Público pela Unisinos, São Leopoldo, RS, Brasil;
professor titular e pesquisador dos programas de pós-graduação em Direito e em Administração
da Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB), Blumenau, SC, Brasil; professor do
programa de graduação em Direito da FURB, Blumenau, SC, Brasil. / Álvaro Ricardo de Souza
Cruz é doutor e mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, MG, Brasil; professor adjunto III dos programas de graduação e pós-graduação
(mestrado e doutorado) da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte,
MG, Brasil; procurador federal do Ministério Público Federal, Belo Horizonte, MG, Brasil. / André
de Carvalho Ramos é doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), São Paulo,
SP, Brasil; professor da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, SP, Brasil; professor titular do
programa de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) da Faculdade Autônoma
de Direito, São Paulo, SP, Brasil; procurador regional da República, Ministério Público Federal,
São Paulo, SP, Brasil. / André Saddy é doutor em Problemas actuales de Derecho Administrativo
pela Universidad Complutense de Madrid, Madri, Espanha; pós-doutor pela Universidade de
Oxford, Oxford, Reino Unido; mestre em Administração Pública pela Universidade de Lisboa,
Lisboa, Portugal; professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, Rio
de Janeiro, RJ, Brasil; professor do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil; consultor e parecerista. / Bruno Lamenha é mestre
em Direito pela Universidade Federal de Alagoas, Maceió, AL, Brasil; doutorando em Direito
na Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil. / Érica Ribeiro Guimarães Amorim
é mestra e graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil;
advogada atuante em Salvador, BA, e Brasília, DF, Brasil. / Fabiano de Figueirêdo Araujo é
mestre em Direito e Políticas Públicas pelo UniCEUB, Brasília, DF, Brasil; doutorando em Direito
Constitucional no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), Brasília, DF, Brasil; professor do
programa de graduação em Direito do IDP, Brasília, DF, Brasil; procurador da Fazenda Nacional,
Brasília, DF, Brasil. / Flávia Danielle Santiago Lima é doutora e mestra em Direito Público pela
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil; professora permanente do programa
de pós-graduação (mestrado) em Direito da Faculdade Damas, Recife, PE, Brasil; professora
da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco, Recife, PE, Brasil; advogada da
União, Procuradoria Regional da União na 5a Região, Recife, PE, Brasil. / Francisco Antônio
de Barros e Silva Neto é doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE), Recife, PE, Brasil; professor associado dos programas de graduação e pós-graduação
(mestrado e doutorado) da Faculdade de Direito do Recife da UFPE, Recife, PE, Brasil; juiz
federal, Recife, PE, Brasil. / Guilherme Scodeler de Souza Barreiro é mestre em Administração
Pública pela Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG, Brasil; doutorando em Direito Público
na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil; professor do
curso de Direito do Centro Universitário de Lavras, Lavras, MG, Brasil; bolsista da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). / Ilana Trombka é mestra em
Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
RS, Brasil; doutoranda em Administração na Fundação Getulio Vargas, São Paulo, SP, Brasil;
professora do programa de graduação em Comunicação Social do UniCEUB, Brasília, DF,
Brasil; professora do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito Legislativo
do Instituto Legislativo Brasileiro, Brasília, DF, Brasil; diretora-geral do Senado Federal. / José
Levi Mello do Amaral Júnior é doutor pela Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP,
Brasil; livre-docente da USP, São Paulo, SP, Brasil; professor associado de Direito Constitucional
da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, SP, Brasil. / Juliana Rodrigues é mestra em
Administração pela Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo
(FEA-USP), São Paulo, SP, Brasil; doutoranda em Administração Pública na Fundação Getulio
Vargas, São Paulo, SP, Brasil; pesquisadora colaboradora do Centro de Empreendedorismo
Social e Administração em Terceiro Setor da FEA-USP, São Paulo, SP, Brasil; membra e
consultora do Programa Academia do Instituto de Cidadania Empresarial, São Paulo, SP,
Brasil; consultora e pesquisadora de temas relacionados a inovação social, empreendedorismo
social e negócios de impacto. / Marco Aurélio Gumieri Valério é doutor em Sociologia pela
Universidade Estadual Paulista, São Paulo, SP, Brasil; doutorando em Direito na Universidade
de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil; professor do programa de graduação da Faculdade
de Economia, Administração e Contabilidade da USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil; professor do
programa de pós-graduação em Integração da América Latina da USP, São Paulo, SP, Brasil;
advogado; membro da Comissão Especial de Ensino Jurídico da Ordem dos Advogados do
Brasil, seção de São Paulo, SP, Brasil. / Marcos Antônio Mattedi é doutor em Ciências Sociais
pela Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil; pós-doutor pelo Centre de
Sociologie de l’Innovation, Paris, França; professor titular e pesquisador do programa de pós-
graduação em Desenvolvimento Regional da Fundação Universidade Regional de Blumenau,
Blumenau, SC, Brasil. / Wilson Engelmann é doutor em Direito Público pela Unisinos, São
Leopoldo, RS, Brasil; pós-doutor em Direito Público-Direitos Humanos pela Universidade de
Santiago de Compostela, Santiago de Compostela, Espanha; professor titular e pesquisador
do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Unisinos, São Leopoldo,
RS, Brasil; bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq).
Sumário

Autoras convidadas

11 Formação de agenda legislativa para os Contratos de Impacto Social


Análise de um projeto de lei em tramitação
Ilana Trombka
Juliana Rodrigues

Artigos

41 A performatividade da linguagem computacional e seu impacto na advocacia


Alejandro Knaesel Arrabal
Marcos Antônio Mattedi
Wilson Engelmann

55 Direito financeiro da crise


A modulação da legislação orçamentário-financeira
para o combate aos efeitos da Covid-19
José Levi Mello do Amaral Júnior
Fabiano de Figueirêdo Araujo

71 O caso Abaporu e as restrições à livre circulação de obras de arte no Direito brasileiro


Francisco Antônio de Barros e Silva Neto

87 Mobilizando a agenda dos direitos coletivos, assegurando espaço institucional


Ministério Público e Defensoria Pública na transição democrática
Flávia Danielle Santiago Lima
Bruno Lamenha

109 Sem sentir e sem querer


A era colonial do Brasil à luz do Direito Internacional
André de Carvalho Ramos

133 O controle de convencionalidade da Reforma Trabalhista de 2017


Érica Ribeiro Guimarães Amorim

Os conceitos emitidos em artigos de colaboração são de


responsabilidade de seus autores.
151 Composição do Conselho de Administração de organizações sociais
quanto aos membros natos representantes do Poder Público
André Saddy

181 Última palavra e diálogos constitucionais


Caminhos e descaminhos na jurisdição constitucional brasileira
Guilherme Scodeler de Souza Barreiro
Álvaro Ricardo de Souza Cruz

201 Atos notariais por meios eletrônicos


A quarentena trouxe o futuro aos cartórios e tabelionatos
Marco Aurélio Gumieri Valério
Formação de agenda legislativa para
os Contratos de Impacto Social
Análise de um projeto de lei em tramitação

ILANA TROMBKA
JULIANA RODRIGUES

Resumo:  Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado


no 338/2018, que dispõe sobre o Contrato de Impacto Social como alternativa
para a prestação de serviços públicos por meio de um acordo de vontades
no qual uma entidade pública ou privada, com ou sem fins lucrativos, se
compromete a atingir determinadas metas de interesse social. O presente
artigo estuda os aspectos que determinaram o ingresso do tema na pauta
pública e estatal. Por ser um processo em andamento a envolver diversos
atores internos e externos à estrutura governamental, o caso configura-se
como uma rica oportunidade para compreender os aspectos visíveis e
ocultos relativos ao projeto de lei, com base na análise da confluência entre
os fluxos do problema, da política e da política pública, a fim de contribuir
para o conhecimento da formação de agenda no atual contexto brasileiro.

Palavras-chave:  Contratos de Impacto Social. Negócios de impacto. Agenda


setting. Formação de agenda. Políticas públicas.

Setting up a legislative agenda for Social Impact Contracts:


analysis of a bill in progress

Abstract:  The Senate Bill n. 338/2018, which addresses the Social Impact
Contract as an alternative for the provision of public services through a
will agreement in which a public or private entity, with or non-profit, is
committed to achieving certain goals of social interest. This article studies
the aspects that determined the inclusion of the theme in the public and
state agenda. As it is an ongoing process involving several actors internal
and external to the governmental structure, the case is a rich opportunity
to understand the visible and hidden aspects related to the bill, based on
the analysis of the confluence between the problem flows, of politics and
public policy, to contribute to the knowledge of agenda formation in the
Autoras convidadas current Brazilian context.

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Keywords:  Social Impact Contracts. Impact business. Agenda setting.
Agenda formation. Public policies.

1 Introdução

O presente estudo focaliza o Projeto de Lei do Senado (PLS) no 338/2018


com o objetivo de examinar o modo como o tema dos chamados negócios
de impacto social (NIS) ingressou na agenda pública legislativa e o papel
dos diferentes atores na formação dessa agenda.
Trata-se de um estudo de caso que busca contribuir para a realização
de mais pesquisas relativas à formação de agenda pública no atual contexto
histórico (CAPELLA, 2020). Mais especificamente, alinha-se com estudos
que intentam unir conceitos teóricos a uma situação empírica a fim de
concorrer para o entendimento dos processos pré-decisórios no âmbito
do Estado brasileiro (RIBEIRO, 2020). Examinar o processo com base
numa proposição de lei oriunda do Senado visa também a aprofundar o
entendimento da atuação do Legislativo brasileiro na inserção de assun-
tos na agenda decisória (ALMEIDA, 2017; VIEIRA; BATISTA, 2018),
como contraponto à concentração anterior da formação de agenda pelo
Executivo (SILVA; ARAÚJO, 2013).
Tendo como referência o trabalho de Ribeiro (2020), que também
explora a formação de agenda no Brasil com base num estudo de caso
descritivo fundado essencialmente em dados secundários, este artigo
alicerça-se num estudo de caso único (YIN, 2001), de caráter exploratório-
-descritivo (SELLTIZ; WRIGHTSMAN; COOK, 1967), elaborado com
suporte na análise documental e na observação participante de suas
autoras, envolvidas direta e indiretamente nos trabalhos da Estratégia
Nacional de Investimentos e Negócios de Impacto (Enimpacto) e no
ecossistema de NIS brasileiros. As principais fontes de informações foram:
documentos relacionados ao projeto de lei e sua tramitação, tais como
o projeto em si, além de ofícios e pareceres do Senado Federal; o site e
relatórios da Enimpacto; notícias e relatórios de organizações do campo
de NIS, como o Instituto de Cidadania Empresarial (ICE) e a Aliança pelos
Investimentos e Negócios de Impacto (Aliança); o site Aupa Jornalismo,
de comunicação especializada no segmento de NIS; o estudo de caso da
Enimpacto publicado pela Comissão Econômica para a América Latina
e o Caribe (Cepal); e o mapeamento de mídia sobre o tema.
Fundamentado essencialmente em dados secundários, bem como em
entrevistas com o autor da proposição legislativa e com outros partici-

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pantes do processo, este estudo está organizado mas sociais e ambientais até então endereçados
em cinco seções além desta introdução e das exclusivamente por iniciativas filantrópicas ou
considerações finais. Na primeira delas, depois pelos órgãos do governo” (MACIEL, 2020, p. 4).
de se examinarem as particularidades dos NIS e A centralidade da missão social no modelo de
dos contratos de impacto social (CIS), traça-se negócio frequentemente leva a um perfil de
um breve histórico da sua implementação em al- prestação de serviços públicos, tornando comum
guns países. A seção seguinte aborda o contexto a contratação ou o financiamento de negócios de
nacional relativamente à criação da Enimpacto, impacto por meio de recursos governamentais
seus antecedentes e desdobramentos. A terceira (ROSOLEN; TISCOSKI; COMINI, 2014).
expõe o enquadramento dos NIS no Brasil com Desse modo, os NIS implicam o acesso a
o intuito de nele posicionar o advento do PLS mecanismos inovadores de financiamento, em
no 338/2018. A quarta seção apresenta o referen- paralelo com a prestação de serviços públicos. O
cial teórico relativo à formação da agenda com financiamento baseado em resultados é definido
base nas contribuições de John W. Kingdon, como qualquer programa em que o contratante
autor de estudos sobre os múltiplos fluxos, e estabelece incentivos, financeiros ou não, para
nas de Frank R. Baumgartner e Bryan D. Jones, que se entreguem produtos ou resultados prede-
que desenvolveram conceitualmente o modelo finidos e recompensa seu alcance após a verifica-
do equilíbrio pontuado. Na quinta seção, em ção (MUSGROVE, 2011). Sob o ponto de vista
cotejo com essa literatura relativa à formação da gestão do orçamento pelo Poder Público, tem
de agenda, analisa-se mais detidamente o pro- crescido o interesse na criação de mecanismos
cesso de ingresso do tema na pauta de debates que privilegiem os pagamentos por desempe-
do Poder Legislativo. Encerram este trabalho nho (QUÉLIN; KIVLENIECE; LAZZARINI,
algumas considerações que delineiam sugestões 2017). Essa é a lógica dos CIS (FONSECA;
de pesquisas futuras. VASCONCELLOS; ARAÚJO, 2018), tema que
ganhou a atenção do Poder Legislativo, mais es-
pecificamente do Senado Federal, onde se origi-
2  Negócios e Contratos nou o projeto de lei objeto deste estudo. Nos CIS,
de Impacto Social os financiadores de resultados comprometem-se
a fazer pagamentos com base na obtenção de
Os NIS (também denominados negócios resultados predeterminados: assumindo o risco
sociais) caracterizam-se como propostas de financeiro, os investidores de impacto fornecem
organizações que mesclam diferentes lógicas financiamento antecipado aos prestadores de
institucionais e que até há poucos anos eram serviços, e os pagamentos aos investidores são
vistas como dissociadas – a da iniciativa privada definidos com base nos resultados alcançados
(com fins lucrativos) e a do terceiro setor (sem pelos prestadores de serviços.
fins lucrativos) (BATTILANA; LEE; WALKER; Por serem modelos novos, os NIS pressu-
DORSEY, 2012). Além disso, ao combinarem põem a criação de mecanismos, inclusive no
diferentes identidades e formas organizacionais âmbito das políticas públicas, que lhes possibili-
e ao amalgamarem múltiplas lógicas de níveis tem o desenvolvimento e a operação, porquanto
sociais, os NIS atuam de modo a complementar operam em ambientes legais e de financiamento
políticas públicas, por agregarem “às atividades originalmente estabelecidos para lógicas apar-
da iniciativa privada soluções para os proble- tadas – a de mercado e a social (BATTILANA;

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 11-39 jul./set. 2021 13


LEE; WALKER; DORSEY, 2012). Ademais, o rio para o governo implementar políticas públicas
envolvimento de organizações híbridas na esfera e oferecer serviços à comunidade.
pública tem sido considerado importante fonte O primeiro projeto-piloto, o programa de-
de inovação para os serviços públicos (VICKERS; nominado Peterborough Social Impact Bond,
LYON; SEPULVEDA; MCMULLIN, 2017), pois foi lançado no Reino Unido em 2010 como um
a interação criativa de lógicas distintas, ainda que empreendimento cooperativo entre o Ministério
possa criar tensões, também contribui para a da Justiça daquele país e uma organização de
construção de formas alternativas que mobilizem investimentos de impacto, a Social Finance2.
recursos para fins sociais. Desde o lançamento, tinha o objetivo de, num
Define-se um CIS1 como uma avença com prazo de 12 meses, reduzir em 7,5% a reincidên-
o setor público ou autoridade governamental cia criminal de libertos do sistema penitenciário
a fim de alcançar melhores resultados sociais de Peterborough. O programa ajudou-os a en-
em determinadas áreas e entregar aos respec- contrar empregos e residências permanentes,
tivos investidores parte das economias obtidas além de lhes ter oferecido serviços de apoio fa-
(HARRIS, 2019). Gustafsson-Wright, Gardiner e miliar, aconselhamento psicológico e terapias de
Putcha (2015) descrevem os CIS como mecanis- abandono de álcool e outras drogas (principais
mos que utilizam o capital privado para serviços causas da detenção). As partes acordaram que,
sociais e incentivam a realização de resultados, se a meta estabelecida fosse atingida, o governo
tornando o reembolso dependente do sucesso. Os reembolsaria aos investidores o montante do in-
CIS configuram-se, pois, como um mecanismo vestimento inicial, acrescido de uma percentagem
de financiamento inovador no qual os governos de juros anuais. Os resultados foram positivos: o
e outras entidades responsáveis acordam com empreendimento reduziu em 9% a reincidência
investidores e prestadores de serviços sociais de infratores com sentença curta, superando a
(tais como empresas sociais ou organizações sem meta de 7,5% estabelecida pelo contrato com o
fins lucrativos) um pagamento pela entrega de Ministério da Justiça. Como resultado, os inves-
resultados sociais predefinidos. tidores receberam em pagamento único o valor
Para o Estado, esse instrumento tem vanta- do capital acrescido de cerca de 3% ao ano para
gens específicas tanto por estimular a experimen- o período de investimento (HARRIS, 2019).
tação de soluções potencialmente mais eficientes Na América Latina, também se realizaram ex-
na resolução de problemas sociais (ficando para periências com CIS em quatro países: Colômbia,
o investidor social o risco dessa experimentação), Peru, Chile e Argentina. No Peru, implantou-se o
quanto por promover uma cultura de inovação no primeiro projeto em janeiro de 2015; com ações
âmbito da Administração Pública e ensaiar uma voltadas para os indígenas Asháninka, seu obje-
nova lógica de investimento público baseada no tivo era incrementar a qualidade do cultivo do
pagamento em função de resultados mensuráveis, café e do cacau a fim de aumentar a inserção do
e não no financiamento da capacidade instalada produto no mercado internacional, promover
(HARRIS, 2019). Desse modo, a utilização de um um aumento de vendas e, consequentemente,
CIS reduz a quantidade de investimento necessá-
2
 A área de Finanças Sociais do programa arrecadou
de 17 investidores cinco milhões de libras esterlinas para
financiar um consórcio de várias organizações que durante
1
 A denominação Contrato de Impacto Social (CIS) é seis anos trabalharam com três mil libertos da penitenciária
oriunda do inglês Social Impact Bond (SIB). Outra tradução de Peterborough, cidade do condado de Cambridgeshire
possível é Título de Impacto Social. situada a 121 quilômetros ao norte de Londres.

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melhorar a qualidade da saúde, da educação e tratégia nacional para estimular o campo de
da infraestrutura na localidade onde vivem. No investimentos e negócios de impacto social – a
Chile, há uma iniciativa destinada a mulheres de Enimpacto. Seu advento e sua implementação
baixa renda, desempregadas e reincidentes em resultaram da articulação e do envolvimento
questões de negligência infantil. Por sua vez, em de diferentes atores do Poder Público, da ini-
março de 2017 a Colômbia abriu títulos com o ciativa privada e do terceiro setor engajados em
objetivo de empregar 514 pessoas pobres e desa- movimentos que, no Brasil e no mundo, têm
brigadas em Bogotá. E na Argentina foi lançado proposto novos modelos de soluções de mercado
um projeto em março de 2019, com duração com o objetivo declarado de resolver problemas
prevista de 24 meses e um duplo objetivo: testar sociais ou de ao menos contribuir para sua ate-
a eficiência do instrumento e, a longo prazo, nuação (BARKI; RODRIGUES; COMINI, 2020;
impulsionar a empregabilidade de desfavorecidos MCMULLEN, 2018).
entre 17 e 24 anos em cinco bairros do sul de Assim, em 2017 o Brasil tornou-se um dos
Buenos Aires (IMPACT…, [2019?])3. países pioneiros na estratégia de estímulo aos NIS,
Segundo dados da Sitawi Finanças do Bem4 em cujo escopo se inclui o PLS no 338/2018. A
(CERQUEIRA; LETELIER, [202-]), com base Enimpacto resultou da articulação da Aliança – à
nos CIS já foram lançados na América Latina época chamada Força Tarefa de Finanças Sociais
138 projetos que juntos mobilizaram mais de 441 (FTFS) –5 com o então Ministério da Indústria,
milhões de dólares e geraram benefícios para um Comércio Exterior e Serviços (MDIC)6 e um
milhão de indivíduos; e outros 69 projetos estão grupo de trabalho com outros atores da gestão
em desenvolvimento, sobretudo nas áreas de pública federal. Por iniciativa do ICE7, uma arti-
trabalho e emprego, habitação, saúde e bem-estar culação de 20 organizações voltada à mobilização
infantil e familiar. de capital para NIS criou em maio de 2014 a
Aliança8, com o propósito de construir, fomentar

3  Contexto brasileiro: o movimento 5


 As denominações Força Tarefa de Finanças Sociais e
dos NIS e a Enimpacto Aliança pelos Investimentos e Negócios de Impacto podem
ser tomadas como sinônimas.
6
 O MDIC foi extinto em 1o/1/2019 e transformado na
Por meio do Decreto no 9.244, de 19/12/2017, Secretaria Especial de Comércio Exterior e Assuntos Inter-
nacionais (Secint), subordinada ao Ministério da Economia.
o Governo Federal criou oficialmente uma es- 7
 O ICE é uma organização social sem fins lucrativos
criada em 1999 por empresários brasileiros com os objeti-
vos de fortalecer o investimento social corporativo, buscar
3
 Segundo recente estudo (AGUSTI STRID; RONICLE, soluções inovadoras para os problemas sociais do País e
2021) do Laboratório de Inovação Financeira do Banco Inte- promover a articulação entre empresários, governo e so-
ramericano de Desenvolvimento – o BID Lab –, alguns países ciedade civil (QUEM…, [201-]).
como a Colômbia avançaram de forma mais consistente. 8
 A Aliança foi oficialmente lançada durante o primeiro
No entanto, para que o modelo amadureça e se dissemine, Fórum Brasileiro de Finanças Sociais e Negócios de Impacto,
é crucial o apoio contínuo à construção de mercado e ao evento realizado pelo ICE em parceria com a Vox Capital
desenvolvimento de capacidades junto a governos e atores (investimento de impacto) e a Artemisia (aceleradora de
interessados. Com base em distintas experiências dos países, negócios de impacto), que contou com 400 participantes.
a publicação identificou algumas dimensões relevantes que A Aliança – formada por representantes da oferta e da
podem contribuir para o êxito da implementação desses demanda de capital, facilitadores e governo – foi criada
mecanismos: a demanda dos governos, o marco regulatório com foco no estudo das Finanças Sociais em nível interna-
de apoio, o contexto econômico e político favorável, a dis- cional e na análise e proposição de temas que representem
ponibilidade de dados e a capacidade do mercado. obstáculos ou oportunidades para a evolução do campo
4
 O vocábulo sitawi significa “desenvolver” e “florescer” no País. A Diretoria Executiva, composta pelo ICE e pela
em suaíli (ou swahili), idioma usado predominantemente Sitawi Finanças do Bem, tinha a consultoria Delloite como
na África Oriental. parceira e o apoio técnico da Fundação Getulio Vargas

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 11-39 jul./set. 2021 15


e monitorar uma visão de futuro e recomenda- Nos anos seguintes, os trabalhos e as articu-
ções comuns e de impulsionar esse campo de lações continuaram a ampliar a participação e o
forma legítima, descentralizada e inovadora. engajamento de atores nesse campo. Em 2016
Sua criação foi inspirada em experiências in- a Aliança passou a contar com uma instância
ternacionais bem-sucedidas – como aquela do deliberativa formada por especialistas na área; e
Reino Unido, a qual se tornou uma das principais o Grupo de Apoio Contínuo, instância de con-
referências nesse âmbito, com avanços sulta e decisão sobre os conteúdos produzidos,
passou a congregar mais de 80 organizações de
na criação de regulamentações, novas orga- diferentes perfis, como academias, acelerado-
nizações intermediárias e novos negócios de ras, organizações de avaliação, governo e gran-
impacto, no fortalecimento do ecossistema de
des empresas (INSTITUTO DE CIDADANIA
Investimento de Impacto, e principalmente,
na […] captação de recursos privados para EMPRESARIAL, 2016). No mesmo ano, em
gerar impacto social combinado com retorno parceria com a Aoka Labs, a Aliança realizou um
financeiro (HISTÓRICO, c2018)9. Laboratório de Inovação reunindo lideranças de
organizações de diferentes setores para identifi-
O ano de 2015 representou um marco no car oportunidades no campo e cocriar protótipos
delineamento da agenda de NIS. Nele foram de ação colaborativa para a implementação das
lançados documentos que se tornaram referên- Recomendações. Um dos protótipos foi a am-
cia: a Carta de Princípios – primeiro esforço de pliação do InovAtiva Brasil, programa do MDIC
conceituação do que são NIS no Brasil e cons- que desde 2013 acelerava negócios inovadores
truída com base no olhar das organizações e para apoiar também startups de NIS11.
profissionais no campo – e as 15 Recomendações Em agosto de 2016, durante o Fórum de
para o fortalecimento dessa esfera de negócios Finanças Sociais e Negócios de Impacto (que na-
no Brasil (FORÇA TAREFA DE FINANÇAS quela segunda edição reuniu 700 participantes),
SOCIAIS, 2015). Notadamente, a Recomendação por meio do MDIC foi assinado com o Governo
no 13 tratava da integração do Governo Federal Federal o Acordo de Cooperação Técnica com o
na agenda de Finanças Sociais10.

como ponto focal no acompanhamento e articulação da


(FGV-SP). Desde o início já incluía o Poder Público, com agenda de Finanças Sociais, tanto para o contexto nacional
estudo sobre a atuação de bancos de desenvolvimento em quanto para o global.
diferentes países; em reunião posterior, passou a contar 11
 Em texto assinado pelo então representante do MDIC
também com o Banco Nacional para o Desenvolvimento
na Aliança, Marcos Vinícius Souza, a argumentação relativa
Econômico e Social (BNDES).
a um dos problemas da integração da agenda de NIS pelo
9
 Países como Canadá, Austrália, Estados Unidos e Índia governo concentrava-se nos desafios da imagem e da pres-
lançaram iniciativas semelhantes. A cena global ganhou tação de serviços públicos, marcados por uma percepção
força em 2015 com a constituição do Global Steering Group de “burocracia, corrupção, ineficiência no atendimento ao
for Impact Investment (GSG), reunindo representantes de cidadão, além de técnicas ultrapassadas de gestão e prestação
15 países na época e 33 países em 2021. O ICE representa de serviços” (FORÇA TAREFA DE FINANÇAS SOCIAIS,
o Brasil no GSG. 2016, p. 41). E mais adiante: “Os Negócios de Impacto surgem
10
 Com base em documento da Força Tarefa de Finanças como uma grande oportunidade para o próprio governo
Sociais (2015, p. 32), pode-se sucintamente afirmar que repensar sua atuação, já que abre uma nova possibilidade de
a FTFS recomenda ao Governo a incorporação do tema contratação e parceria. O grande diferencial desses negócios
finanças sociais na condução de políticas públicas, atuando é que reúnem o melhor das opções existentes hoje na esfera
com visão estratégica para impulsionar o campo, por meio pública: atendem uma demanda social e ambiental típicas
da viabilização de mecanismos financeiros de impacto e o de governo, possuem a lógica empresarial sem buscar lu-
fortalecimento de organizações intermediárias. Também cratividade máxima a qualquer custo e, finalmente, teriam
sugere que até 2016 o Governo Federal identifique uma a capilaridade de ONGs, mas com capacidade financeira
secretaria vinculada a um destes ministérios – Fazenda, e de gestão para expandir as operações em larga escala”
Planejamento ou Casa Civil – para ser responsável por atuar (FORÇA TAREFA DE FINANÇAS SOCIAIS, 2016, p. 41).

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objetivo de pactuar o desenvolvimento conjunto de ações para promover
as Finanças Sociais no Brasil, a ampliação dos NIS e o fortalecimento
do ecossistema. O acordo representava a formalização de uma interface
com o Governo Federal para o avanço no campo dos NIS (INSTITUTO
DE CIDADANIA EMPRESARIAL, 2016), criando as bases para que ao
longo de 2017 o MDIC e a Aliança liderassem um grupo de trabalho
interministerial responsável por elaborar as diretrizes que mediante o
Decreto no 9.244/2017 lançariam oficialmente a Enimpacto.
Ao longo de 2018, o Comitê da Enimpacto12 reuniu-se bimestralmente
e estruturou-se em quatro grupos de trabalho que mobilizaram outras
30 organizações para apoiar a implementação de 19 ações prioritárias
num universo de 69 ações elaboradas com base na Consulta Pública
empreendida em novembro de 2017 (COMITÊ DE INVESTIMENTOS
E NEGÓCIOS DE IMPACTO, 2018)13. Entre as ações do Comitê está a
ativa contribuição para a redação do PLS no 338/201814.
Contudo, embora tenha sido constituído para perdurar até 20/12/2027,
o Comitê da Enimpacto foi extinto pelo Ato Normativo no 9.759/2019 –
que ficou conhecido como “revogaço” –, expedido pelo presidente Jair
Bolsonaro nos primeiros cem dias de seu mandato. O ato extinguiu em
28/6/2019 todos os conselhos e colegiados subordinados à Administração

12
 O Comitê da Enimpacto era composto por 26 instituições públicas e privadas,
incluindo sete ministérios, três bancos públicos, outras seis organizações públicas e dez
organizações da sociedade civil. Em 2018 seus membros eram: Casa Civil; ministérios do
Planejamento, da Fazenda, do Desenvolvimento Social, das Relações Exteriores, da Ciên-
cia, Tecnologia, Inovações e Comunicações, e da Indústria, Comércio Exterior e Serviços;
Banco do Brasil; BNDES; Caixa Econômica Federal; Serviço Brasileiro de Apoio às Micro
e Pequenas Empresas (Sebrae); Financiadora de Estudos e Projetos (Finep); Comissão de
Valores Mobiliários (CVM); Apex Brasil; Escola Nacional de Administração Pública (Enap);
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); Associação
Brasileira de Private Equity e Venture Capital (ABVCAP); Anjos do Brasil; Associação
Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores (Anprotec); Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID); Confederação Nacional da Indústria (CNI);
Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife); ICE; Pipe Social; Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD); e Sistema B.
13
 Em 2018 o aumento do interesse pelo tema é evidenciado pelo significativo crescimento
do Fórum de Finanças Sociais e Negócios de Impacto, com mais de 1.050 participantes
presenciais, além de outros 2.300 que acompanharam on-line as sessões com 170 pales-
trantes brasileiros e seis internacionais (INSTITUTO DE CIDADANIA EMPRESARIAL,
2018). Ao lado do Reino Unido, o Brasil foi escolhido pela Organização para a Cooperação
e Desenvolvimento Econômico (OCDE) como modelo para outros países que desejam fo-
mentar o campo de investimentos e negócios de impacto (COMITÊ DE INVESTIMENTOS
E NEGÓCIOS DE IMPACTO, 2018). A Enimpacto também recebeu destaque no artigo
“Behind the scenes of impact investment policy-making” (“Nos bastidores da política de
investimento de impacto”) – documento assinado conjuntamente pelo Fórum Econômico
Mundial e pelo governo britânico.
14
 “A atuação do Comitê de Investimentos e Negócios de Impacto gerou maior integração
entre as diversas organizações públicas e privadas que dele participam e tem produzido
maior complexidade econômica, seja por meio da proposição de normas em articulação
com o Legislativo, seja por meio da criação de programas de aceleração de startups de im-
pacto, seja por meio da estruturação de fundo de investimento para negócios de impacto”
(MACIEL, 2020, p. 10).

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Pública federal direta, autárquica e fundacional e com participação
da sociedade civil (MELO, 2019). Com efeito, o Comitê rapidamente
protocolou um pedido de avaliação para sua permanência na Secint (ver
nota 6), assim como pedidos de outras instâncias. O Decreto no 9.977,
de 19/8/2019 (BRASIL, 2019a), recriou o Comitê da Enimpacto, com
a inclusão de dois novos integrantes: a Diretoria-Geral do Senado
Federal e a Diretoria-Geral da Câmara dos Deputados. Para muitos,
isso conferia mais estabilidade institucional à Enimpacto, “ao conectá-la
diretamente com as instituições formadas pelos representantes do povo
e dos estados, ampliando sua capacidade de influência e de interação
com importantes iniciativas e projetos no parlamento” (COMITÊ DE
INVESTIMENTOS E NEGÓCIOS DE IMPACTO, 2019, p. 7). Após sua
reconstituição, o Comitê realizou em 2/10/2019 uma primeira reunião
para discutir a continuidade do plano iniciado no ano anterior.

4  O Projeto de Lei de Contratos de Impacto Social

Concebido pelo senador Tasso Jereissati, o PLS no 338/2018 (BRASIL,


2018b) encontra-se em tramitação no Senado Federal, onde recebeu
parecer favorável da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), sob a
relatoria da senadora Lúcia Vânia; e em abril de 2021 estava sob análise
terminativa da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), tendo como
relator o senador Antonio Anastasia, que já tornara disponível seu re-
latório ao colegiado. Todavia, aprovou-se pedido de audiência pública,
de autoria dos senadores Humberto Costa e Rogério Carvalho, o que
sobrestou o curso da matéria até que se realize a sessão de discussão
requisitada (BRASIL, 2019b). Além disso, em razão da pandemia do
novo coronavírus, o Senado Federal entrou em regime especial de
deliberação em março de 2020, e seu funcionamento ficou restrito às
comissões temáticas15.

15
 Quanto ao perfil dos parlamentares que desde o início se destacaram na tramita-
ção do PLS no 338/2018, registre-se que se alinham com a escola liberal do pensamento
econômico. O autor do projeto, senador Tasso Jereissati, é membro do Partido da Social
Democracia Brasileira (PSDB-CE). Da mesma agremiação fez parte até o início de 2020
o senador Antonio Anastasia, que hoje representa o estado de Minas Gerais pelo Partido
Social Democrático (PSD-MG). A ex-senadora Lúcia Vânia também era filiada ao PSDB
até fevereiro de 2015; depois de breve passagem pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB-GO)
quando da relatoria do projeto na CAE, desde 2019 pertence aos quadros do partido Cida-
dania (Cidadania-GO). Ambos os senadores que solicitaram audiência pública são filiados
ao Partido dos Trabalhadores: Humberto Costa (PT-PE) e Rogério Carvalho (PT-SE). Ob-
serve-se que o autor da matéria representa o estado do Ceará, uma das primeiras unidades
da Federação a tentar implantar o modelo de CIS; porém, dada a ausência de um marco
regulatório específico, o programa não foi exitoso, o que provavelmente contribuiu para o
interesse do parlamentar em utilizar suas atribuições constitucionais com o fim de auxiliar
na facilitação da utilização do instrumento.

18 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 11-39 jul./set. 2021


Atinente à área de Direito Administrativo, a matéria foi classificada
como complementar aos normativos de licitação e contratos. Nesse
sentido, o texto do PLS no 338/2018 define CIS como um

acordo de vontades por meio do qual uma entidade pública ou privada,


com ou sem fins lucrativos, se compromete a atingir determinadas
metas de interesse social, mediante o pagamento de contraprestação
do poder público, condicionada à verificação, por agente independente,
do atingimento dos objetivos (BRASIL, 2018b, p. 1).

O texto inicial foi apresentado em 11/7/2018, data em que também


foi distribuído para a CAE, no âmbito da qual imediatamente se abriu
prazo para o recebimento de emendas16. A justificação do projeto informa
que a iniciativa é inspirada nos Social Impact Bonds, que permitem o
compartilhamento da implementação das políticas públicas por setores
diversos da economia, alinhando-se ao conceito de capitalismo social, e
sugerem sua utilização especialmente em projetos de gestão educacio-
nal. Segundo o autor do projeto, entre os principais impeditivos para
o sucesso do mecanismo no Brasil estão,

[e]m primeiro lugar, a falta de um arcabouço legislativo que lhe dê


segurança e estabilidade; em segundo plano, a falta de uma clara matriz
de riscos inclusive para o investidor, que pode evitar realizar o inves-
timento, quando da captação de recursos pela entidade contratada,
por temer ser responsabilizado em esferas trabalhistas e tributárias
(BRASIL, 2018b, p. 5).

Esses motivos explicariam o engajamento da iniciativa privada,


preferencialmente por meio da filantropia, que, se por um lado não
gera retorno financeiro direto nem permite reinvestimento do capital,
por outro não cria a responsabilização do doador17. De acordo com o

16
 Em sua versão original, a proposta compõe-se de quatro capítulos. O Capítulo I
trata das disposições gerais e informa sobre o assunto do texto e a definição geral dos CIS.
O Capítulo II refere-se à seleção do contratado e informa que a regra geral é a licitação
pública nas modalidades pregão ou concorrência para a seleção de entidade pública ou
privada; quando o caráter singular do objeto não permite a licitação, é possível efetivar a
contratação por meio de edital de chamada pública. O Capítulo III apresenta especificações
sobre o contrato e a matriz de riscos e responsabilidades, entre as quais se destacam: a
vedação ao demandante de assumir, a qualquer título, obrigação financeira pelos riscos de
não atingimento das metas; a duração máxima da ação; a inserção da obrigação financeira
nas leis orçamentárias; a descrição do instrumento de formalização dos CIS; a garantia de
liberdade de atuação para a entidade contratada, que inclui contratações, subcontratações
e recebimento de investimento de parceiros de risco (os quais não poderão ser responsa-
bilizados por obrigações cíveis, comerciais, trabalhistas, previdenciárias ou tributárias da
entidade contratada); e as condições para a contratação de avaliador externo. Por fim, o
Capítulo IV elenca as normas que se aplicam subsidiariamente aos CIS (BRASIL, 2018b).
17
 Sobre o tema, Monteiro e Rosilho (2017, p. 1.173-1.174) explicam que “[o] CIS quer
ampliar as possibilidades de engajamento da iniciativa privada em projetos sociais para
além dos limites da benemerência. É atrair capital privado que busca retorno financeiro via

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 11-39 jul./set. 2021 19


autor do PLS no 338/2018, a formalização de um instrumento de NIS
que estimule a parceria público-privada pode retirar os entraves que
têm não só trazido questionamentos legais como também impedido
que o Brasil se insira no rol das nações que já utilizam os CIS, além
de permitir a implementação do art. 3o da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 (CRFB) (BRASIL, [2021]). Essa opção de
apresentar lei autônoma para sua instituição justificar-se-ia por suas
peculiaridades, as quais não permitem que os CIS se amoldem com
precisão a nenhuma das formas previstas na atual legislação (BRASIL,
2018b).
Em 11/12/2019, o relatório apresentado pela senadora Lúcia Vânia
foi aprovado na CAE, colegiado então presidido pelo autor da iniciati-
va. Destaque-se que não foram apresentadas emendas ao texto inicial
e que o relatório se concentrou nas questões de mérito e impacto fi-
nanceiro, uma vez que a proposta seria analisada também pela CCJ, à
qual cabe verificar aspectos relativos a juridicidade, regimentalidade e
técnica legislativa. Em seu voto, a relatora destacou o caráter inovador
da proposta tanto por inserir uma nova modalidade de licitação no
arcabouço legal quanto por não estipular valores mínimo ou máximo
para os CIS. Ela considerou meritória a matéria e ressaltou que não há
impacto financeiro a ser destacado, pois apenas disciplina uma nova
modalidade de contratação18. Após essas observações iniciais, o relatório
apresentou uma emenda substitutiva em consonância com a Enimpacto:
a)  Inserção do novo art. 4o, com os elementos que devem integrar
o edital de licitação: “descrição da população ou localidade […] objeto
do ajuste; análise das possibilidades de geração de impacto sobre os
indicadores sociais ou ambientais”; “previsão dos recursos públicos
economizados ou da eficiência gerada”; e “metodologia adotada para
a definição do preço de referência da contratação”. Também se destaca

projeto público com potencial para gerar impacto social efetivo. Investimentos dessa natureza
não se confundem com filantropia. Não envolvem doação pura e simples, mas a criação de
estímulos econômicos para o mercado investir em atividades socialmente relevantes por
sua conta e risco (por exemplo, educação e segurança pública). Investimentos de impacto
social pressupõem a possibilidade de remuneração de capital privado alocado em projetos
sociais, gerando, a um só tempo, valor social (a ser auferido pela coletividade como um
todo) e valor pecuniário (a ser auferido pelo investidor privado). A premissa desse tipo
de contrato é a de que as intervenções possam simultaneamente gerar: (1) impacto social
positivo (isto é, aprimoramento de atividades e serviços sociais já prestados pelo Estado); (2)
retorno financeiro ao investidor privado (que auferirá lucro apenas na hipótese de sucesso
de intervenções sociais, o que justifica que o contrato autorize o investidor a ter governança
sobre o contrato); (3) economia ao Poder Público (que poderá ter custos reduzidos em caso
de sucesso de intervenções sociais)”.
18
 Salientou também que o tema é de interesse do Poder Executivo federal, já que os CIS
estão previstos no “Eixo I – Ampliação da Oferta de Capital, Macro Objetivo 3 – Estimular
a Compra/Contratação de Negócios de Impacto pelo Estado e Ação 4 – Incentivar, Conec-
tar e Apoiar a Estruturação de Contratos de Impacto Social (Social Impact Bonds – SIBs)”
(BRASIL, 2018a, p. 5-6).

20 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 11-39 jul./set. 2021


a necessidade de estudo técnico preliminar e simplificação do grau de
detalhamento da proposta orçamentária (BRASIL, 2018a, p. 7).
b)  Incorporação do novo art. 8o, que discrimina as cláusulas que
devem constar dos CIS19.
c)  Ainda no âmbito do art. 8o, autoriza-se “a entidade contratada
a se valer do mercado de capitais para obter financiamento por meio
da cessão dos eventuais direitos creditórios e recebíveis oriundos da
contratação com o Estado por meio dos CIS”. Prevê-se “que a CVM
possua competência para regular, infralegalmente, novas disposições
atinentes à tipologia desses títulos ou valores, assim como suas formas
de incentivo e distribuição” (BRASIL, 2018a, p. 8)20.
d)  Inserção do novo art. 9o, o qual estipula que

a parcela equivalente à redução ou baixa do valor do montante dos recur-


sos do CIS em caso de não atingimento das metas não será computada
na base de cálculo da Contribuição para o Financiamento da Seguridade
Social (Cofins), da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL),
do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e do Programa
de Integração Social (PIS) (BRASIL, 2018a, p. 8-9).

e)  O novo art. 10 determina

a incidência do imposto de renda à alíquota zero aos rendimentos


auferidos pelos investidores por meio dos valores mobiliários rela-
cionados ao CIS. […] os rendimentos tributados exclusivamente na
fonte poderão ser excluídos, quando for o caso, da apuração do lucro
real, enquanto eventuais perdas não serão dedutíveis. Por fim, serão
igualmente considerados rendimentos quaisquer valores que constituam
remuneração do capital aplicado, inclusive ganho de capital auferido
na alienação (BRASIL, 2018a, p. 9).

Além das questões de mérito, foram propostos ajustes redacionais21.


Ajustou-se também a previsão de processo para eventual impugnação,

19
 Também se passou “a reconhecer a possibilidade de o contrato prever a constituição
de Sociedade de Propósito Específico (SPE) […]. Tal dispositivo também permite ao poder
público autorizar a substituição da contratada ou a assunção do controle da SPE em favor
de seus financiadores. Como consequência, adequou-se o comando […] que isentava os
financiadores de qualquer responsabilidade quanto às obrigações tributárias e trabalhistas,
entre outras, apenas para deixar claro que tal isenção se refere ao período anterior à eventual
substituição da contratada ou transferência do controle da SPE” (BRASIL, 2018a, p. 7-8).
20
 Esse artigo também apresenta inovação ao determinar “(i) que o CIS permita rescisões
não apenas na hipótese de ‘falta contratual’, como o não atingimento de metas parciais,
ainda que a contratada se mostre diligente, e (ii) que o CIS possa prever sanções que não
importem rescisão, como quando a contratada atinge as metas fixadas, mas descumpre
alguma vedação legal ou contratual (ou seja, a obrigação de não fazer)” (BRASIL, 2018a, p. 8).
21
 Frisou-se no art. 2o que o texto trata somente de contratos, com remuneração e pre-
visão de margem de lucro, excluindo-se os convênios. De modo similar, como a expressão
metas de interesse social é bastante imprecisa, propôs-se a sua substituição por impactar

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 11-39 jul./set. 2021 21


o que é especialmente relevante, já que se vale Comitê e que tentaram implantar os CIS em São
de uma lei autônoma e disciplinada para a Paulo e no Ceará com base nas regras vigentes,
elaboração e a remuneração dos estudos de em especial na Lei no 8.666/1993.
viabilidade. A primeira iniciativa foi a do Governo
do estado de São Paulo, cuja Secretaria da
O art. 5o original vedava a assunção, pelo Educação lançou edital de contratação de ser-
poder público, de obrigação financeira pelo viços de gerenciamento e execução de ações
risco de não atingimento das metas. Tal re-
pedagógicas voltadas para o aumento da apro-
dação poderia dificultar a remuneração do
custo de financiamento, o qual naturalmente vação dos alunos e para a diminuição da eva-
contempla o risco de crédito ou de inadim- são escolar na rede estadual de ensino médio,
plemento. Assim, o novo art. 6o adota outra mas sem prejuízo à aprendizagem; o objeto
redação, mas deixa claro que o pagamento
da licitação seria executado e concluído em
da contraprestação do poder público será
integralmente vinculado ao atingimento das 54 meses, abrangendo 61 unidades escolares.
metas do CIS (BRASIL, 2018a, p. 11). Por sua vez, o Governo do estado do Ceará
assinou contrato com o BID, que pretendia
Por fim, foi inserida a possibilidade de destinar 123 milhões de dólares para financiar
recompensa para a entidade contratada em a segunda fase do Programa de Expansão e
caso de atingimento ou superação das metas Melhoria da Assistência Especializada à Saúde –
pactuadas. o Proexmaes II; o objetivo do programa era
As modificações efetivadas pela senadora contribuir para a melhoria da saúde da popu-
Lúcia Vânia em grande medida resultam de lação do estado por meio do incremento do
diálogo com a Enimpacto22. O Comitê propôs acesso e da qualidade dos serviços e por meio
a inclusão de aspectos referentes às questões da melhoria do desempenho do Sistema Único
de garantias, de ordem prática e de tributos de Saúde, com foco nas Redes de Atenção à
(não geração de impostos adicionais no caso Saúde (MIRANDA, 2019).
de não pagamentos pelo Estado). Boa parte das Na primeira quinzena de dezembro de
sugestões funda-se na experiência concreta de 2018 a proposição foi enviada para análise da
organizações da sociedade civil que compõem o CCJ. Seu relator, o senador Antonio Anastasia,
apresentou em 30/10/2019 relatório em cuja
introdução reforçou a experiência internacio-
positivamente indicador social ou ambiental, redação que
deixa claro que os CIS atuarão sobre um problema conhecido nal do instrumento proposto, ressaltando “as
e mensurável, conforme o indicador escolhido. Em relação diversas manifestações elogiosas à figura do
ao art. 3o, salientou-se a conveniência de as licitações serem
julgadas com base no maior impacto social ou ambiental CIS, tendo sido até mesmo constituída uma
ofertado, dado um preço fixado no edital – daí o ajuste
necessário. Um dos pressupostos dos CIS é a existência de
Organização da Sociedade Civil de Interesse
problema social ou ambiental sobre o qual o Poder Público Público (OSCIP) com a finalidade específica
tem dificuldade de atuar e cuja superação requer uma abor-
dagem inovadora. Nesse sentido, ao tratar da habilitação de captar investimentos para esse campo”23. No
técnica, o art. 3o, II, veda exigências de aptidão em técnicas entanto, reconheceu a existência de um vazio
específicas ou de instalações, equipamentos ou qualificações
profissionais, mas exige experiência prévia na área-objeto, à normativo que poderia causar insegurança
luz dos riscos presentes em esferas sensíveis como a saúde
(BRASIL, 2018a, p. 10).
na utilização dos CIS. Se, por um lado, alguns
22
 Isso pode ser comprovado no Ofício no  8/2018 entendem já existir arcabouço legal para a ce-
COEIN/DINPI/SIN, assinado pelo diretor Alessandro França
Dantas, coordenador de empreendedorismo inovador do
então MDIC.  Ver Letelier, Ribeiro e Pantojo (2016).
23

22 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 11-39 jul./set. 2021


lebração de CIS, citando o exemplo do estado tucionalidade, à regimentalidade e à técnica
de São Paulo, outros argumentam que “não legislativa e acolheu o substitutivo aprovado
há certeza sobre a suficiência da legislação na CAE com exceção dos arts. 9o e 10, por não
brasileira em vigor em relação à necessária observarem o estabelecido no art. 113 do Ato
segurança jurídica para que investidores, par- das Disposições Constitucionais Transitórias
ceiros privados e parceiros públicos celebrem da CRFB, o qual determina que “[a] proposição
CIS” (BRASIL, 2019b, p. [4])24. legislativa que crie ou altere despesa obrigatória
O grande problema, ressaltou o relator, ou renúncia de receita deverá ser acompanhada
da estimativa do seu impacto orçamentário e
é a falta de especificidade das previsões financeiro” (BRASIL, 2019b, p. [9]).
normativas, que podem gerar, inclusive, o
engessamento da atuação do parceiro pri-
vado – quando o que se deseja é justamente
deixá-lo livre para usar da criatividade e 5  Formação de agenda
da inovação, para melhorar os indicadores
sociais (BRASIL, 2019b, p. [5]). Brasil e Jones (2020, p. 1.486) explicam que
“os modelos de definição de agenda […] pro-
De qualquer modo, ainda que a atual le- põem abordagens analíticas sobre os processos
gislação seja suficiente, parece consensual o pré-decisórios para a análise e compreensão
entendimento de que de aspectos mais amplos na construção de
problemas e soluções em políticas públicas”.
a edição de legislação que institua um marco Por ser um processo em andamento, envol-
regulatório dos negócios de impacto, bem vendo diversos atores internos e externos à
como preveja a formatação de garantias
estrutura governamental, o caso torna-se uma
e a concessão de benefícios fiscais para
seus investidores, aparenta ser um bom rica oportunidade para analisar os aspectos
instrumento para disseminar a adoção de pré-decisórios relativos à inclusão na agen-
contratos de impacto social (FONSECA; da legislativa do PLS no 338/2018, bem como
VASCONCELLOS; ARAÚJO, 2018, p. 34).
compreender os aspectos visíveis e ocultos
relativos à conquista de atenção parlamentar
Admitindo a proposta, o senador Antonio para o tema com base na análise da confluência
Anastasia opinou favoravelmente à consti- entre os fluxos do problema, da política e da
política pública. A identificação dos elementos
24
 “Há quem entenda serem suficientes os marcos nor- teóricos de formação de agenda de políticas
mativos das parcerias – tais como as leis que tratam das
OSCIPs, das Organizações Sociais (OSs) e das Organizações públicas aplicados a uma situação específica
da Sociedade Civil (OSCs). O grande entrave, porém, à de caráter empírico contribui para um enten-
aplicação das leis sobre parcerias diz respeito à vedação à
parceria com entidades com fins lucrativos (por exemplo, dimento aprofundado dos processos decisórios
art. 2o da Lei no 13.019, de 31 de julho de 2014). Tal norma-
tização, se não excluir completamente a celebração do CIS,
no âmbito estatal (RIBEIRO, 2020).
certamente restringe de forma substancial sua aplicação. A Segundo Capella (2015), os estudos de
utilização do mercado de capitais para financiar o CIS, por
exemplo, poderia ser lida como uma fraude à vedação da formação de agenda (agenda setting) buscam
finalidade lucrativa prevista em lei. Por outro lado, defen- entender como algumas ideias se tornam impor-
de-se a aplicação das leis sobre contratos administrativos,
especialmente por meio da Lei de Licitações (Lei no 8.666, de tantes num determinado momento, chegando à
21 de junho de 1993) e da Lei de Parcerias Público-Privadas consideração efetiva dos formuladores de polí-
(PPPs, Lei no 11.079, de 30 de dezembro de 2004)” (BRASIL,
2019b, p. [4-5]). ticas. Dearing e Rogers (1996 apud CAPELLA;

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 11-39 jul./set. 2021 23


BRASIL, 2018) realizaram um extenso trabalho (KINGDON, 2006b) e o Modelo do Equilíbrio
de mapeamento dos estudos de agenda setting Pontuado (BAUMGARTNER; JONES, 1993).
e identificaram a existência de três linhas de
estudo fortemente desenvolvidas na área: 5.1  A Teoria de Análise dos Múltiplos
(1) media agenda setting (agenda midiática); Fluxos de John Kingdon
(2) public agenda setting (agenda pública); e
(3) policy agenda setting (agenda das políticas Kingdon desenvolve seus estudos com o
públicas). O presente trabalho alinha-se com a propósito de entender como algumas questões
terceira tradição, a qual se preocupa em estudar chegam à agenda governamental e por quais
o processo de percepção e hierarquização de razões elas se sobrepõem a outras na atenção da
problemas que chamam a atenção dos formu- esfera estatal. Para Kingdon (2006a), as ideias
ladores de políticas e de grupos próximos a eles têm um papel que pode suplantar os elementos
(CAPELLA; BRASIL, 2018, p. 124-125), em conhecidos no processo de relacionamento
especial os processos pré-decisórios (RIBEIRO, entre governo e sociedade, uma vez que elas
2020) e a forma como o tema ingressa na agenda auxiliam o “clima” ou “humor” em torno de
legislativa. uma questão em debate na dinâmica política.
As agendas institucional e governamental Ao aprofundar suas pesquisas, Kingdon
fazem parte dos processos pré-decisórios de (2006b) identifica três fluxos que possibilitam o
seleção dos assuntos que concorrerão para atrair ingresso de uma questão na agenda de governo:
a atenção dos agentes políticos e governamen- (1) o fluxo dos problemas (a forma como um
tais. Dessa forma, interesses da esfera privada problema é percebido); (2) o fluxo das alterna-
de grupos ou comunidades transformam-se tivas (o conjunto de alternativas disponíveis);
em temas que chamam a atenção das esferas e (3) o fluxo político (alterações na dinâmica
públicas estatais25. Os estudos de formação de política e da opinião pública). Em certo mo-
agenda também reconhecem maior complexi- mento, esses três fluxos confluem e criam-se
dade e uma visão menos objetiva no processo as condições para o ingresso de um assunto na
pré-decisório da agenda pública, uma vez que agenda de decisões políticas. Como explicam
entendem que elementos como instituições, ato- Capella e Brasil (2018), Kingdon diferencia a
res, ideias, fatores socioeconômicos e políticos agenda governamental e a agenda decisória
influenciam na tomada de decisão, adotando argumentando que as mudanças nesta resultam
um pensamento pós-positivista de políticas da combinação dos três fluxos, ao passo que
públicas (FARAH, 2018). Entre eles, destacam- as mudanças naquela requerem apenas o fluxo
-se a Teoria de Análise dos Múltiplos Fluxos dos problemas e o fluxo político. Uma política
pública somente se inicia se a questão chega à
25
 “O primeiro estágio é definido pela agenda sistêmica. agenda decisória, após ter passado pela agenda
Nela estão presentes todas as questões que recebem a atenção
da sociedade e que são percebidas como sendo problemas
governamental.
ou assuntos que devem ser tratados pelo governo ou pelos O primeiro fluxo percebido por ele diz res-
tomadores de decisão. O segundo estágio é a agenda gover-
namental, composta pela atenção dos próprios tomadores peito às condições para que um assunto seja
de decisão e governantes sobre os assuntos e temas que eles entendido como problema, o que fará com que
próprios consideram importantes. A formação da agenda
ainda passa por uma nova atualização com os estudos de seja reconhecido e facilitará sua entrada na
John Kingdon, em 1984, com a criação de uma nova di- agenda governamental. Isso ocorre quando
mensão chamada de agenda decisória” (BRASIL; JONES,
2020, p. 1.488). valores sociais importantes são colocados em

24 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 11-39 jul./set. 2021


xeque, por comparação com a realidade de ou- como aceitáveis. Os critérios nesse processo
tros países ou com outras unidades relevantes; podem incluir viabilidade técnica, congruência
ou também com a classificação de uma situação com os valores dos membros da comunidade de
em determinada categoria em vez de outra, que especialistas da área e antecipação de possíveis
pode defini-la como certo tipo de problema. limitações, incluindo restrições orçamentárias,
Se é possível elevar uma questão à categoria de aceitabilidade do público e receptividade dos
problema, também é factível fazer o inverso e políticos (KINGDON, 2006b, p. 232). Em con-
torná-lo opaco do ponto de vista do interesse traposição ao papel dos “participantes visíveis”,
público. Segundo ele, “[a]s chances de uma dada ganham destaque no fluxo das alternativas os
proposta ou de um certo tema assumir lugar de “participantes invisíveis”, caracterizados como
destaque em uma agenda são decididamente um grupo técnico formado não só por especia-
maiores se elas estiverem associadas a um pro- listas e burocratas mas também por analistas
blema importante” (KINGDON, 2006b, p. 228). que trabalham com os grupos de interesse de-
No fluxo da política, Kingdon (2006b) frisa dicados ao tema. Esse grupo atestará as diversas
que, independentemente do reconhecimento viabilidades para a efetivação da ação pública
de um problema ou do desenvolvimento de estatal e a transformação dos assuntos em can-
propostas de políticas, eventos políticos fluem didatos efetivos para políticas públicas.
consoante dinâmicas e regras próprias – parti- Momentos específicos permitem a junção
cipantes percebem mudanças na atmosfera po- dos três fluxos direcionados para um mesmo
lítica nacional, eleições trazem novos governos tema, o que aumenta enormemente a possibi-
e configurações partidárias ou ideológicas ao lidade de ele ser pautado na agenda de deci-
Congresso, e grupos de interesse de vários tipos sões. Por conseguinte, para garantir que isso
conseguem pressionar (ou não) o governo com ocorra, passa a atuar um terceiro grupo – os
suas demandas. Certos atores considerados “vi- entrepreneurs dispostos a investir recursos para
síveis” são importantes no fluxo dos problemas promover políticas. Eles são motivados por
e da política: são os representantes eleitos, os combinações de diversos elementos: preocu-
meios de comunicação e os partidos políticos, pação direta com certos problemas, busca de
que contribuirão para definir o que estará na benefícios próprios, reconhecimento por suas
pauta de discussão tanto na agenda institucional realizações, promoções de seus valores, bem
como na agenda governamental. Dessa forma, como o mero prazer de participar (KINGDON,
as chances de um tema ganhar visibilidade au- 2006b, p. 238). Os entrepreneurs podem ser gru-
mentam quando levantado por participantes pos de pressão que já atuaram em outros fluxos
do grupo visível, mas também diminuem se específicos e podem estar em consonância com
menosprezado por eles (KINGDON, 2006b). participantes visíveis ou invisíveis. A figura do
O fluxo das alternativas diz respeito ao pro- empreendedor de políticas públicas surge para
cesso de seleção das ideias mais adequadas para alinhar os interesses, as informações e o rela-
dar vazão aos problemas na estrutura política cionamento entre os agentes que participarão
favorável. Com suporte num campo de muitas da efetivação do assunto debatido ou – como
opções disponíveis, é feita uma seleção que pode explicam Capella, Soares e Brasil (2014) – para
tanto agrupar, organizar e integrar as possibi- conectar uma ideia do fluxo de soluções a uma
lidades, formando novas propostas, quanto questão do fluxo dos problemas de forma acei-
descartar as opções segundo padrões apontados tável do ponto de vista do fluxo político.

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 11-39 jul./set. 2021 25


5.2  O Modelo do Equilíbrio Pontuado de da estabilidade, restringindo o número de atores
Baumgartner e Jones e de ideias ao processo decisório (CAPELLA;
SOARES; BRASIL, 2014). No entanto, quando
O Modelo do Equilíbrio Pontuado é contem- fatos imprevistos, pressão da mídia ou mudan-
porâneo e complementar à Teoria dos Múltiplos ça dos agentes de decisão tornam impossível
Fluxos. Em suas análises, Baumgartner e Jones seguir isolando o subsistema de novos atores,
levam em consideração outros aspectos além a estabilidade é rompida e abre espaço para
dos racionais e técnicos e reconhecem o papel outras imagens e para a organização de um novo
central das ideias na explicação sobre o ciclo subsistema que, por sua vez, terá o monopólio
de políticas públicas. Ambos partem do prin- da política durante algum tempo. Os períodos
cípio de que há uma tendência à estabilidade e de estabilidade e mudança numa política pública
à melhoria incremental do sistema, ainda que podem ser compreendidos no plano das ideias,
em momentos específicos possam ocorrer mo- isto é, “na forma como uma questão é definida,
vimentos de rápidas e profundas mudanças, ex- considerando que esta definição se desenvolve
plicados pelo conceito de imagem política – isto dentro de um contexto institucional que pode
é, “o conjunto de entendimentos que os atores favorecer determinadas visões políticas em de-
compartilham sobre uma questão, elemento trimento de outras” (CAPELLA, 2015, p. 28).
considerado crucial na luta política” (CAPELLA;
BRASIL, 2018, p. 132). As imagens de políticas
são, portanto, as formas como uma política é 6  Análise e discussão dos
compreendida e discutida (BAUMGARTNER; resultados
JONES, 1993), construídas com fundamento
em informações, conceitos e apelos emocio- Nesta seção, serão aplicados ao PLS no 338/​
nais que facilitam o entendimento acerca da 2018 os principais conceitos da Teoria dos
política e atraem grupos que compartilham a Múltiplos Fluxos e do Modelo do Equilíbrio
mesma imagem mental, dando sustentação a Pontuado, com os dados que se puderam reunir
um “monopólio de políticas”. Por conseguin- até este momento de sua tramitação. Para isso,
te, o processo inverso também ocorre quando utilizou-se o texto inicial do PLS no 338/2018,
grupos concorrentes reconhecem divergência bem como os dois relatórios atinentes à ma-
no entendimento de uma política, concorrência téria que são de conhecimento público: o da
em relação a seus conceitos e dissensos causados CAE e o da CCJ do Senado Federal. Também
na situação que abalam a estabilidade política se fez um levantamento dos discursos sobre
e acabam por provocar o colapso do que até o tema proferidos no plenário da Casa e nas
então era monopólio. duas Comissões entre 1o/7/2018 e 20/3/2020,
Baumgartner e Jones (1993) lidam também período que abrange a apresentação da proposta
com o conceito de subsistemas políticos, que e a entrada em funcionamento do Sistema de
possibilitam ao sistema político-decisório pro- Deliberação Remota (SDR), que interrompeu
cessar as questões de forma paralela. Os diversos o funcionamento das comissões temáticas. Por
temas que surgem na agenda são abordados em fim, realizou-se uma busca na base de dados
subsistemas “temáticos” nos quais se procura de veículos da mídia nacional no mesmo pe-
assegurar um entendimento comum sobre as ríodo. As categorias de análise utilizadas foram
questões e influenciar a macropolítica por meio os fluxos apresentados por Kingdon (2006b):

26 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 11-39 jul./set. 2021


fluxo dos problemas, fluxo da política e fluxo no 338/2018 foi bastante acelerado, uma vez
das alternativas, bem como uma análise dos que a matéria foi lida em plenário e distribuída
atores visíveis e invisíveis que participaram do às comissões em 11/7/2018; e, exatamente cinco
processo. Sob a óptica da teoria de Baumgartner meses depois, já havia sido apreciada pela CAE –
e Jones (1993), destacaram-se os conceitos de o que pode ser explicado, em parte, pelo fato de
imagem política e subsistema político. o presidente do colegiado ser também o autor
O fluxo dos problemas permite que um as- da proposta. Também houve a aproximação
sunto se torne suficientemente significativo para entre a Enimpacto e o autor da matéria e sua
ser levado em consideração na agenda de deci- assessoria, o que acabou por envolver o Poder
são governamental. No caso dos CIS, as expe- Executivo na negociação do texto do relatório
riências internacionais de sucesso tiveram papel proveniente da CAE26.
preponderante, visto que, como se mencionou, Por fim, no quadro traçado por Kingdon
tal instrumento já está em funcionamento em (2006b) figura o fluxo das alternativas, momen-
24 nações; em contraposição, algumas tentativas to em que se consolidam as ideias formatadas
não obtiveram bons resultados dada a carência numa proposta que inclua a viabilidade técni-
de um marco normativo próprio. Além disso, ca, o apoio da comunidade de especialistas e a
conforme a justificação do PLS no 338/2018, o antecipação de possíveis entraves das diversas
instrumento pode diminuir os riscos da pres- ordens. Na tramitação do PLS no 338/2018, é
tação de serviços e transferi-los para o parceiro possível destacar dois movimentos relevan-
privado, em alinhamento com o problema de tes. Numa primeira análise técnica, pode-se
imagem e com a falta de confiabilidade do ser- comprovar a participação da Enimpacto, que
viço público usado como elemento de interesse agrega os principais segmentos e representan-
na agenda dos negócios de impacto. Nota-se tes dos interesses específicos sobre a temática.
também a narrativa de intenção de promover Propostas desse grupo de especialistas, constan-
inovações no serviço público ao viabilizar a tes no Ofício no 8/2018 (COEIN/DINPI/SIN),
participação de outros atores, em especial os foram agregadas ao relatório por ocasião de sua
de mercado e de investimento privado. Dessa apreciação pela Comissão de Assuntos Sociais.
forma, a discussão a respeito do CIS insere- No relatório a ser analisado em futura votação
-se no contexto de articulação para o fomento terminativa na CCJ, há algumas observações,
dos negócios de impacto como alternativa para
apoiar a resolução de problemas sociais e, por 26
 Como já se mencionou, o fomento das ações vincula-
consequência, como possibilidades de parceria das aos negócios e investimentos de impacto tem recebido
atenção não só na agenda institucional desde 2014 – graças
com o Poder Público. Assim, a ferramenta de à criação da Aliança e à articulação de diversos atores da
financiamento ganha destaque na agenda como iniciativa privada, sociedade civil e governo –, mas também
na agenda governamental desde 2016, com a assinatura do
um dos modos de fomentar esse tipo de negócio, acordo de cooperação entre a Aliança e o MDIC. Após a
extinção desse ministério em 2019, a Enimpacto foi recriada
com uma abordagem que valoriza parcerias com com ampliação de assentos para viabilizar a participação
o mercado e a iniciativa privada na prestação do Poder Legislativo. Pode-se notar, pois, que a temática
perpassa os mandatos de Dilma Rousseff, Michel Temer e
do serviço público. Jair Bolsonaro. Ao criar em 2017 a Enimpacto e confirmá-la
Por sua vez, o fluxo da política pode tanto em 2019 como instância de diálogo interministerial com a
participação de representantes das duas Casas do Congresso
acelerar quanto retroceder uma pauta, mesmo Nacional, o próprio Governo Federal demonstrou que era de
que ela seja reconhecida como um problema. interesse da agenda a promoção da temática alinhada com
empreendedorismo, inovação e participação do mercado e
Nesse caso, o início da tramitação do PLS organizações nos serviços sociais.

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 11-39 jul./set. 2021 27


como a retirada dos arts. 9o e 10 para evitar os Entre o final de outubro e início de novembro de
impactos relativos tanto à renúncia de recei- 2019, houve uma concentração de matérias com
tas quanto à oposição de áreas do Governo da o termo Contrato de Impacto Social em virtude
União responsáveis pela questão fiscal. do lançamento do projeto do Ministério da
Os participantes invisíveis têm papel relevan- Economia que visava à reintrodução de jovens
te para a viabilização das alternativas, incluindo adultos no mercado de trabalho por meio de
acadêmicos, burocratas de carreira, funcioná- cursos de capacitação, com recursos do Fundo
rios do Congresso e analistas que trabalham de Amparo ao Trabalhador (FAT)28.
para grupos de interesse. A atividade desses Por fim, em relação ao subsistema das polí-
participantes consiste em planejar e avaliar, ticas, a adoção dos CIS não chega a representar
ou então em realizar formulações orçamentá- um rompimento com o que é concebido no
rias junto à burocracia e seus funcionários. Foi Modelo do Equilíbrio Pontuado, uma vez que
exatamente o que ocorreu quando especialistas se caracteriza como um novo instrumento no
da Enimpacto do grupo 4 (Promoção de um subsistema de estímulo à participação de capital
ambiente institucional e normativo favorável privado em iniciativas públicas. Desse subsis-
aos investimentos e aos negócios de impacto) tema fazem parte, por exemplo, as iniciativas
participaram do desenho da norma no âmbito de privatizações, as parcerias público-privadas,
da CAE. Sob a coordenação dos representantes a recente lei dos fundos patrimoniais e os in-
do Sistema B e também com a contribuição da centivos às organizações sociais como adminis-
Sitawi Finanças do Bem, o grupo de especia- tradoras de serviços públicos. Desde a criação
listas fez-se representar no trâmite legislativo. da Enimpacto em 2017 – e coincidindo com a
Quanto ao fomento do tema, ressalte-se o papel tramitação do PLS no 338/2018 –, foram apro-
da Aliança, seja como membro da Enimpacto, vadas leis estaduais de criação de estratégias
seja como ator importante na articulação e locais de investimentos e negócios de impacto
crescimento. em quatro unidades da Federação29.
As imagens das políticas são formadas pelo É possível constatar, em suma, que a temá-
agregado de informações objetivas e por apelos tica dos investimentos e negócios de impacto
emocionais. Uma das engrenagens que pode ala- progressivamente tem ganhado força e ocupado
vancá-lo é a mídia. Entre 1o/7/2018 e 20/3/2020, espaços nos governos com diferentes platafor-
realizou-se um levantamento no banco de dados
Senado na Mídia27: foram localizadas 31 maté-
28
 Quanto a esse tema, saliente-se que os CIS contêm
rias, a maioria delas com viés bastante positivo, valores caros a distintas agendas políticas nacionais: por
relacionando o tema à melhora do ambiente um lado, a construção de instrumentos que facilitem a
participação de recursos privados em investimentos públi-
social e ambiental, à possibilidade de inves- cos e a própria operacionalização por entes não estatais na
timentos mais justos ou à melhor utilização implementação de políticas públicas alinha-se com o que
é usualmente caracterizado como uma escola liberal sob o
de recursos financeiros privados em prol da ponto de vista econômico; por outro lado, também granjeia
construção de uma sociedade mais equânime. a simpatia da esquerda e dos políticos mais progressistas
ou desenvolvimentistas, uma vez que o instrumento tem
atuação vocacionada para a busca de inovações em áreas
sociais e valoriza a atuação integrada com organizações e
27
 Mantido pela Biblioteca do Senado Federal, o banco movimentos da sociedade civil.
de dados Senado na Mídia abrange 1.708 veículos de co- 29
 No Rio Grande do Norte e no Rio de Janeiro as respec-
municação e monitora matérias de jornais diários, revistas tivas normas estão em vigor desde 2019; em Minas Gerais
semanais, blogues, emissoras de rádio e televisão relacio- passariam a vigorar a partir de julho de 2020; e na Paraíba
nadas a termos afetos aos CIS (ver Apêndice). aguardavam a sanção do governador.

28 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 11-39 jul./set. 2021


mas políticas, e que o envolvimento governamental, iniciado em 2016,
conheceu uma breve interrupção em 2019 – quando a Enimpacto foi
desarticulada –, mas depois fortaleceu o subsistema a que se vincula.

Quadro 1

PLS no 338/2018 e as teorias dos Múltiplos


Fluxos e do Equilíbrio Pontuado

PLS no 338/2018

Teoria dos Múltiplos Fluxos


· Por comparação com outros países ou com outras unidades relevantes:
24 países, quatro dos quais na América Latina.
· Transferência do risco do investimento de melhoria e resultados do
serviço público para a iniciativa privada.
· Mudança da imagem do serviço público, em busca de potenciais inova-
ções.
Fluxo dos
· A classificação de uma situação em dada categoria em vez de em outra
problemas
pode defini-la como um certo tipo de problema – caso do insucesso na
tentativa de implantação dos CIS nos estados de São Paulo e Ceará, o
qual entre outros motivos é justificado pela falta de uma norma específica.
· As agendas do Governo Federal não apenas definem os problemas mas
também podem fazê-los desaparecer – caso da criação da Enimpacto em
2017 e de sua confirmação com colegiado ampliado em 2019.

· Desdobramentos na esfera política são poderosos formadores de agenda:


a. O autor do PLS no 338/2018 acumulava, na ocasião, a presidência da
CAE, onde a matéria foi apreciada com celeridade.
b. O autor do PLS no 338/2018 é representante de um dos estados pionei-
ros na tentativa de utilização dos CIS.
Fluxo da
c. Os três senadores que participaram da tramitação e análise da matéria
política
de forma destacada já se alinharam a uma mesma plataforma parti-
dária.
d. Pioneirismo brasileiro na criação da Enimpacto em 2017.
e. Recriação da Enimpacto em 2019 com a inserção de representantes do
Poder Legislativo.

· Busca de critérios incluem viabilidade técnica, congruência com os valo-


res dos membros da comunidade de especialistas na área e antecipação
de possíveis limitações, incluindo restrições orçamentárias, aceitabilidade
do público e receptividade dos políticos:
Fluxo das
a. Inserção no relatório da CAE das sugestões do grupo de especialistas
alternativas
da Enimpacto.
b. Retirada – no relatório apresentado mas ainda não analisado na CCJ –
dos artigos que propunham renúncia fiscal, evitando futura oposição
das áreas que atuam na área fiscal no Governo Federal.
· São os que recebem considerável atenção da imprensa e do público e
Atores
têm grande poder de definição da agenda: senadores Tasso Jereissati e
visíveis
Antonio Anastasia e ex-senadora Lúcia Vânia.
· Alternativas, propostas e soluções são geradas por comunidades de es-
pecialistas. Esse grupo inclui acadêmicos, burocratas de carreira, funcio-
nários do Congresso e analistas que trabalham para grupos de interesse:
Atores participação dos membros da Enimpacto, especialmente dos que fazem
invisíveis parte do grupo 4 (Promoção de um ambiente institucional e normativo
favorável aos investimentos e aos negócios de impacto), coordenado
pelos representantes do Sistema B. Neste caso específico, os membros
da Sitawi Finanças do Bem também deram importante suporte.

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PLS no 338/2018
Teoria do Equilíbrio Pontuado
· As imagens das políticas são formadas pelo agregado de informações
objetivas e por apelos emocionais: 31 matérias sobre o tema dos CIS e
termos semelhantes no período de 1o/7/2018 a 20/3/2020, com con-
centração de notícias no período de final de outubro e início de setembro
Imagem
de 2019, quando houve o lançamento dos CIS, que prevê a utilização
política
de recursos do FAT para capacitação e reinserção de jovens adultos no
mercado de trabalho.
· Os CIS, por suas características, têm a capacidade de agregar valores e
discursos de diferentes segmentos do espectro político-partidário.
· Não há rompimento com o subsistema vigente; os CIS reforçarão a
tendência de estímulo à utilização de recursos privados na consecução de
objetivos públicos.
· Criação de estratégias locais de investimentos e negócios de impacto em
quatro unidades da Federação num período em que coincidem a criação
Subsistema
da Enimpacto e a tramitação do PLS no 338/2018.
político
· Aumento da participação do tema dos negócios e investimentos de
impacto na agenda nacional nos últimos anos. Desde 2016 o tema
ganha espaço na agenda governamental: primeiro, com a assinatura de
um termo de cooperação com o então MDIC; depois, com a criação e a
posterior ampliação da Enimpacto e a tramitação do PLS no 338/2018.

Fonte: elaborado pelas autoras.

7  Considerações finais

Situado no campo da formação de agenda em políticas públicas, este


trabalho fundamentou-se no arcabouço oferecido pela Teoria dos Múltiplos
Fluxos e pelo Modelo do Equilíbrio Pontuado para embasar um estudo de
caso sobre os CIS, instrumento que está em processo de inserção no arca-
bouço normativo brasileiro por meio do PLS no 338/2018. Hoje presentes
em 24 nações, quatro delas na América do Sul, e com 138 projetos em
desenvolvimento, os NIS visam instituir os contratos por resultado como
opção de inovação, com base na possibilidade de inserção de novos atores
privados para custear e implementar serviços públicos. Além de ampliar
o escopo de iniciativas do Poder Público, que poderá testar soluções sem
a utilização imediata de seu orçamento e estimular a participação dos
segundo e terceiro setores na agenda social, a regulamentação proposta
no PLS no 338/2018 busca trazer segurança para os investidores, que te-
rão outra opção que não a filantropia para colaborarem para a resolução
de complexos e aflitivos problemas – entre outros, a evasão escolar, a
ressocialização de presos e a inserção de mulheres vítimas de violência
no mercado de trabalho. Todavia, malsucedidas foram as duas primeiras
tentativas de internalizar os CIS, muito provavelmente em virtude da falta
de clareza na legislação e das incertezas que tal situação acarreta.
No caso analisado, foi possível identificar grande parte dos elementos
propostos na Teoria dos Múltiplos Fluxos e no Modelo do Equilíbrio

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Pontuado nas peças de tramitação do projeto – tanto aquelas a que se
teve acesso quanto as que se detectaram nos levantamentos realizados –,
reforçando o potencial alinhamento entre o pensamento de Kingdon e o
de Baumgartner e Jones no que diz respeito aos trâmites pré-decisórios. O
exercício de transposição dos elementos teóricos propostos por Kingdon
ao caso estudado permite concluir que a convergência do fluxo dos pro-
blemas, da política e das alternativas é capaz de acelerar a tramitação nas
Casas legislativas. Também propiciou a verificação de que determinadas
temáticas se tornam mais próximas de parlamentares com um mesmo perfil
ideológico-partidário. Com efeito, importa destacar a enorme influência
dos atores invisíveis, como a Enimpacto, na assessoria para a construção
de um texto normativo que torne possível a aproximação entre a pro-
blemática levantada e os agentes que lidam com ela rotineiramente. Em
relação às ideias de Baumgartner e Jones, pode-se afirmar que o desenho
político fundado nos CIS permite a convergência entre diversos discursos
políticos, mesmo que provenientes de espaços ideológicos distintos ou até
antagônicos. Na análise dos subsistemas a que pertence o tema, nota-se o
crescimento do interesse relativo aos negócios de impacto social e à absorção
do assunto pelo statu quo, não sendo possível identificar rompimentos no
equilíbrio das políticas públicas até então formuladas e implementadas.
Saliente-se que as limitações deste estudo resultam sobretudo do fato
de não se ter completado o trâmite do PLS no 338/2018 na Casa originá-
ria. Desse modo, não foi possível analisar a questão da chamada “janela
de oportunidade” e dos entrepreneurs que atuam nessa fase do processo,
segundo o conceito de Kingdon. Para estudos futuros, a continuidade da
tramitação da proposta enriquecerá o quadro já construído e provavel-
mente proporcionará novas possibilidades de aprofundamento da pesquisa
de mídia e de pronunciamentos dos parlamentares a respeito dos CIS.
Como principal contribuição, além do acompanhamento do debate sobre
a implementação de mecanismos de remuneração por resultados, como
os CIS, este artigo traz à luz não só elementos da agenda pré-decisória
como também a proposição de políticas públicas concebidas nas Casas
legislativas nacionais.

Sobre as autoras
Ilana Trombka é mestra em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil; doutoranda em Administração na Fundação Getulio
Vargas, São Paulo, SP, Brasil; professora do programa de graduação em Comunicação Social
do UniCEUB, Brasília, DF, Brasil; professora do programa de pós-graduação (mestrado e

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doutorado) em Direito Legislativo do Instituto Legislativo Brasileiro, Brasília, DF, Brasil;
diretora-geral do Senado Federal.
E-mail: [email protected]
Juliana Rodrigues é mestra em Administração pela Faculdade de Economia e Administração
da Universidade de São Paulo (FEA-USP), São Paulo, SP, Brasil; doutoranda em Administração
Pública na Fundação Getulio Vargas, São Paulo, SP, Brasil; pesquisadora colaboradora do
Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor da FEA-USP, São
Paulo, SP, Brasil; membra e consultora do Programa Academia do Instituto de Cidadania
Empresarial, São Paulo, SP, Brasil; consultora e pesquisadora de temas relacionados a inovação
social, empreendedorismo social e negócios de impacto.
E-mail: [email protected]

Como citar este artigo


(ABNT)
TROMBKA, Ilana; RODRIGUES, Juliana. Formação de agenda legislativa para os Contratos
de Impacto Social: análise de um projeto de lei em tramitação. Revista de Informação
Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 231, p. 11‑39, jul./set. 2021. Disponível em: https://
www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/231/ril_v58_n231_p11
(APA)
Trombka, I., & Rodrigues, J. (2021). Formação de agenda legislativa para os Contratos de
Impacto Social: análise de um projeto de lei em tramitação. Revista de Informação Legislativa:
RIL, 58(231), 11‑39. Recuperado de https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/231/
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https://doi.org/10.1016/j.respol.2017.08.003. Disponível em: https://www.sciencedirect.
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VIEIRA, Bhreno; BATISTA, Mariana. Sobre o que os deputados legislam?: um estudo sobre
a agenda política legislativa (1995-2014). Revista Eletrônica de Ciência Política, [Curitiba],
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https://revistas.ufpr.br/politica/article/view/63718. Acesso em: 7 maio 2021.
YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos. Tradução de Daniel Grassi. 2. ed.
Porto Alegre: Bookman, 2001.

Apêndice

Mapeamento e análise de mídia relativa aos CIS e ao PLS no 338/2018

Quadro 2

Período, palavras-chave e âmbito de pesquisa

Período 1o/7/2018 a 20/3/2020.


Contrato de Impacto Social (CIS), Contrato social, Contrato de impacto
Palavras-
social, Impacto social, Impact bonds, Social impact bonds, Investimento
chave
social, Investimento Social Privado (ISP), Investimento(s) de impacto.
· Pronunciamentos de parlamentares (discursos e apartes com tais palavras-
Âmbito -chave) nos plenários do Senado Federal, da CAE e da CCJ.
· Veículos de comunicação: jornais e revistas.
Fonte: elaborado pelas autoras.

Quadro 3

Resumo dos achados nos periódicos consultados

Veículo Data Viés Sobre CIS


1 Valor Econômico 30/8/2019 Positivo Quase nada
2 Valor Econômico 10/9/2018 Positivo Nada
3 ISTOÉ Dinheiro 14/2/2020 Positivo Nada
4 Valor Econômico 2/12/2019 Positivo Nada
5 Valor Econômico 7/1/2020 Positivo Nada
6 ISTOÉ Dinheiro 14/2/2020 Positivo Nada
7 O Estado de S. Paulo* 25/10/2019 Positivo Bastante
8 ISTOÉ* 26/10/2019 Positivo Bastante
9 Valor Econômico 11/12/2019 Positivo Nada
10 Veja 12/2/2020 Positivo Nada
11 Valor Econômico 8/7/2018 Positivo Nada
12 Correio Braziliense 14/9/2019 Neutro Nada
13 Estado de Minas 14/11/2018 Positivo Nada

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Veículo Data Viés Sobre CIS
14 A Crítica (Manaus)* 1o/11/2019 Positivo Bastante
15 Veja 25/12/2019 Positivo Nada
16 Valor Econômico 6/3/2020 Positivo Nada
17 Diário do Nordeste (Fortaleza)** 12/12/2018 Positivo Bastante
18 Jornal do Commercio (Recife)* 10/10/2019 Positivo Bastante
19 Estado de Minas* 10/10/2019 Positivo Bastante
20 O Estado de S. Paulo* 25/10/2019 Positivo Bastante
21 Valor Econômico** 10/10/2019 Positivo Bastante
22 O Estado de S. Paulo** 25/10/2019 Positivo Bastante
23 Diário do Nordeste (Fortaleza)* 27/8/2019 Positivo Bastante
24 Valor Econômico 14/11/2019 Neutro Nada
25 O Estado de S. Paulo 11/3/2019 Positivo Nada
26 Valor Econômico 11/11/2019 Positivo Nada
27 Valor Econômico 31/7/2018 Positivo Nada
28 Valor Econômico 8/7/2018 Positivo Nada
29 Valor Econômico 8/7/2018 Positivo Nada
30 Valor Econômico** 4/6/2019 Positivo Nada
31 O Globo** 26/10/2019 Positivo Bastante
Fonte: elaborado pelas autoras com base em notícias buscadas no banco de dados Senado na Mídia30 31.

Legenda:
Termos que aparecem: fundos patrimoniais, endowments, sistema B, investimento social privado, investimento
de impacto, filantropia, ESG, negócios sociais.
* (com um asterisco): vinculado ao lançamento dos CIS pelo Ministério da Economia com recursos do FAT.
** (com dois asteriscos): aprovação do PLS no 338/2018 na CAE.

1.  ADACHI, Vanessa. O novo normal dos negócios é aliar lucro a critérios mais sustentáveis
de aplicação. Valor Econômico, São Paulo, 30 ago. 2019. Seção Eu & fim de semana. Disponível
em: https://www12.senado.leg.br/senado-na-midia/clippings/2019/08/30/copy_of_o-novo-
normal-dos-negocios-e-aliar-lucro-a-criterios-mais-sustentaveis-de-aplicacao. Acesso em:
17 maio 2021.
2.  BARROS, Bettina. Não falta dinheiro para agricultura de impacto. Valor Econômico, [São
Paulo], 10 set. 2018. Seção Agronegócios, p. B10. Disponível em: https://www12.senado.leg.
br/senado-na-midia/clippings/2018/09/10/nao-falta-dinheiro-para-agricultura-de-impacto.
Acesso em: 17 maio 2021.
3.  BNDES anuncia foco na promoção de fundos patrimoniais filantrópicos. Revista
Istoé Online, [s. l.], 14 fev. 2020. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/senado-na-
midia/clippings/2020/02/14/bndes-anuncia-foco-na-promocao-de-fundos-patrimoniais-
filantropicos. Acesso em: 17 maio 2021.
4.  COLUCCI, Fernando; BACELLAR, Camila; MASCARENHAS, Carolina. “Endowment” e a
cultura da filantropia. Valor Econômico, [São Paulo], 2 dez. 2019. Seção Legislação & Tributos.
Disponível em: https://www12.senado.leg.br/senado-na-midia/clippings/2019/12/02/
fernando-colucci-camila-bacellar-e-carolina-mascarenhas-2018endowment2019-e-a-
cultura-da-filantropia. Acesso em: 17 maio 2021.
5.  COTIAS, Adriana; SCHINCARIOL, Juliana. Bancos começam a criar estruturas para
“endowments”. Valor Econômico, São Paulo, 7 jan. 2020. Seção Finanças. Disponível em:

30
 SENADO na mídia. Brasília, DF: Senado Federal, [2015-2021]. Disponível em: https://
www12.senado.leg.br/senado-na-midia. Acesso em: 17 maio 2021.
31
 Clipping passa a ser feito pelo Serviço de Processamento de Jornais da Biblioteca –
28/4/2016.

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 11-39 jul./set. 2021 37


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criar-estruturas-para-2018endowments. Acesso em: 17 maio 2021.
6.  EMPRESÁRIOS querem menos desigualdade, oportunidades iguais e eficiência estatal.
Revista Istoé Online, [s. l.], 14 fev. 2020. Seção Economia. Disponível em: https://www12.
senado.leg.br/senado-na-midia/clippings/2020/02/14/empresarios-querem-menos-
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7.  GOVERNO estuda seguro-desemprego para bancar programa. O Estado de S. Paulo,
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8.  GOVERNO lança edital para qualificar 800 desempregados de 18 a 29 anos. Revista Istoé
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9.  GREGORIO, Rafael. Investimento de impacto e filantropia ganham força. Valor Econômico,
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11.  INVESTIMENTO de impacto começa a despertar atenção no Brasil. Valor Econômico
Online, São Paulo, 8 jul. 2018. Seção Finanças. Disponível em: https://www12.senado.leg.
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atencao-no-brasil. Acesso em: 17 maio 2021.
12.  INVESTIMENTOS na Amazônia. Correio Braziliense, [Brasília, DF], 14 set. 2019. Seção
Brasil. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/senado-na-midia/clippings/2019/09/14/
investimentos-na-amazonia. Acesso em: 17 maio 2021.
13.  KARAM, Guilherme. Investir na natureza é um bom negócio. Estado de Minas, [Belo
Horizonte], p. 8, 14 nov. 2018. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/senado-na-
midia/clippings/2018/11/14/guilherme-karam-investir-na-natureza-e-um-bom-negocio.
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14.  NITAHARA, Akemi; MÁXIMO, Wellton. 12,5 milhões de desempregados. A Crítica,
[Manaus], 1o nov. 2019. Seção Política, p. A7. Disponível em: https://www12.senado.leg.
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15.  NÓBREGA, Maílson da. Privatização contra a pobreza. Veja, [s. l.], n. 2.666, 25 dez.
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16.  NUNES, Malu. Investimentos que mudam a realidade. Valor Econômico, [São
Paulo], 6 mar. 2020. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/senado-na-midia/
clippings/2020/03/06/malu-nunes-investimentos-que-mudam-a-realidade. Acesso em:
17 maio 2021.
17.  PARCERIA entre público e privado. Diário do Nordeste, [Fortaleza], 12 dez. 2018.
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clippings/2018/12/12/parceria-entre-publico-e-privado. Acesso em: 17 maio 2021.
18.  PRÊMIO a cursos que empregam. Jornal do Commercio, [Recife], 10 out. 2019.
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19.  QUALIFICAÇÃO para o mercado de trabalho. Estado de Minas, [Belo Horizonte], 10 out.
2019. Seção Economia, p. 8. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/senado-na-midia/
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20.  QUALIFICAÇÃO profissional terá de garantir emprego. O Estado de S. Paulo, [São
Paulo], p. 1, 25 out. 2019. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/senado-na-midia/
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21.  RITTNER, Daniel. Programa de qualificação profissional sai em 30 dias. Valor Econômico,
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22.  RODRIGUES, Lorenna. Requalificação terá de garantir novo emprego. O Estado de S.
Paulo, [São Paulo], 25 out. 2019. Seção Economia, p. B4. Disponível em: https://www12.
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emprego. Acesso em: 17 maio 2021.
23. SABER. Diário do Nordeste, [Fortaleza], 27 ago. 2019. Seção Negócios, p. 32. Disponível
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24.  SAFATLE, Amália. Sociedade em fragmentos. Valor Econômico, São Paulo, 14 nov. 2019.
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25.  SCHELLER, Fernando. Os jornais como investimento de impacto social. O Estado de S.
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26.  TAUHATA, Sérgio. AZ Quest e Artemísia criam aceleradora de startups da periferia. Valor
Econômico, São Paulo, 11 nov. 2019a. Seção Finanças. Disponível em: https://www12.senado.
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startups-da-periferia. Acesso em: 17 maio 2021.
27.  ______. Investidor de “impacto” encara falta de negócios. Valor Econômico, São Paulo,
31 jul. 2018a. Seção Finanças. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/senado-na-
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28.  ______. Mercado de impacto no Brasil pode alcançar R$ 50 bilhões. Valor Econômico
Online, São Paulo, 8 jul. 2018b. Seção Finanças. Disponível em: https://www12.senado.leg.
br/senado-na-midia/clippings/2018/07/08/08-07-2018-as-10h17-mercado-de-impacto-no-
brasil-pode-alcancar-r-50-bilhoes. Acesso em: 17 maio 2021.
29.  ______. Neto de fundador das Casas Bahia usa ensinamentos do avô para investir. Valor
Econômico Online, São Paulo, 8 jul. 2018c. Seção Finanças. Disponível em: https://www12.
senado.leg.br/senado-na-midia/clippings/2018/07/08/neto-de-fundador-das-casas-bahia-
usa-ensinamentos-do-avo-para-investir. Acesso em: 17 maio 2021.
30.  ______. Reguladores se unem para ativar mercado de capitais. Valor Econômico, São
Paulo, 4 jun. 2019b. Seção Finanças. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/senado-
na-midia/clippings/2019/06/04/reguladores-se-unem-para-ativar-mercado-de-capitais.
Acesso em: 17 maio 2021.
31.  VIEIRA, Renata. Governo vai qualificar 800 jovens desempregados. O Globo, [Rio de
Janeiro], 26 out. 2019. Seção Economia, p. 22. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/
senado-na-midia/clippings/2019/10/26/governo-vai-qualificar-800-jovens-desempregados.
Acesso em: 17 maio 2021.

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A performatividade da linguagem
computacional e seu impacto na
advocacia

ALEJANDRO KNAESEL ARRABAL


MARCOS ANTÔNIO MATTEDI
WILSON ENGELMANN

Resumo:  O artigo examina o impacto da performatividade da linguagem


computacional na advocacia. Parte dos pressupostos desenvolvidos no
campo da pragmática linguística, que reconhece o caráter performativo
da linguagem em relação aos objetos e às práticas operadas no mundo.
Com base na análise bibliográfica, sustenta que o conjunto de artefatos
e processos que constituem o universo das Tecnologias da Informação e
Comunicação, mais do que atuar como plataformas instrumentais para
as atividades jurídicas, representa instâncias de conformação de práticas
e valores. Por essa razão, conclui que a análise dos atores e processos que
integram o desenvolvimento de plataformas voltadas à inovação susten-
tável das profissões jurídicas pressupõe abordagens transdisciplinares.

Palavras-chave:  Linguagem Computacional. Performatividade.


Advocacia. Transdisciplinaridade.

The performativity of computational language and its


impact on advocacy

Abstract:  The article examines the impact of computational language


performance on advocacy. It starts from the assumptions developed
in the field of linguistic pragmatics in which the language assumes a
performative character in relation to objects and practices operated in
the world. Based on the bibliographic analysis, it maintains that the
set of artifacts and processes making up the universe of Information
and Communication Technologies, rather than acting as instrumental
platforms for legal activities, represents an instance of intellectual
conformation of practices and values performed by computational
Recebido em 8/12/20 language. Therefore, it comes to the conclusion that this process
Aprovado em 3/2/21 assumes transdisciplinary approaches in the articulation between the

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actors integrating the development of platforms aimed at the sustainable
innovation of the legal professions.

Keywords:  Computational Language. Performativity. Advocacy.


Transdisciplinarity.

1 Introdução

O desenvolvimento tecnológico da modernidade é tradicionalmente


descrito em termos dos fatores que revolucionaram os meios de produção.
Das máquinas a vapor, indústria têxtil e metalurgia, seguidas pelo domínio
da energia elétrica, motores a combustão e produtos químicos, o avanço
tecnocientífico integrado ao desdobramento de inovações resultou na
emergência da microeletrônica, “em contraste com as bases mecânica e
eletromecânica anteriores” (SROUR, 1998, p. 5). Desde então, computado-
res, smartphones e artefatos congêneres passaram gradualmente a compor
a vida cotidiana. Redes telemáticas encurtaram distâncias, romperam
barreiras, tornaram o tempo e o espaço diferentes. A internet alcançou
o status de serviço essencial1 ao lado da assistência à saúde, da geração,
transmissão e distribuição de energia elétrica, entre outros.
No transcurso desse processo, por vezes passa despercebido o papel
performativo que a linguagem computacional assume na produção de
valores. A performance aqui referida como atributo das linguagens diz
respeito ao protagonismo que elas assumem para além de instância codi-
ficada transmissora de sentidos. Afinal, mais do que um meio para operar
máquinas, a estruturação algorítmica, sua consequente sintaxe e projeção
semiótica modelam tudo quanto nela subjaz, tornando-se condição para
a conformação de práticas nos mais diversos contextos sociais. Nesse
sentido, não há como compreender a sociedade sem compreender seus
códigos, incluindo as estruturas constituintes das redes computacionais
que medeiam as relações contemporâneas.
O presente estudo procura avaliar o impacto da linguagem computa-
cional na advocacia. Parte dos pressupostos desenvolvidos no campo da
pragmática linguística, segundo a qual a linguagem assume um caráter

1
 Para efeito de regulamentação das medidas de enfrentamento da emergência de saúde
pública de importância internacional decorrente do coronavírus, integra o rol de serviços
essenciais a “produção, distribuição, comercialização e entrega, realizadas presencialmente
ou por meio do comércio eletrônico, de produtos de saúde, higiene, limpeza, alimentos,
bebidas e materiais de construção” (BRASIL, 2020a, grifo nosso).

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performativo em relação aos objetos e às prá- concepção instrumental, que oculta o efetivo
ticas operadas no mundo, e busca contribuir protagonismo da linguagem na conformação
com reflexões complementares aos resultados da realidade.
da pesquisa “O futuro das profissões jurídicas: Com frequência tem-se a convicção de que
você está preparad@?”, realizada pelo Centro os objetos disponíveis ao uso são dotados de
de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI) em existência autônoma. Mais precisamente, que
2018 (FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS, 2018a, independem do observador e dos processos des-
2018b). Além dessa pesquisa, a abordagem da critivos por meio dos quais assumem contornos
temática fundamenta-se na pesquisa bibliográfica de valor. Contudo, é na linguagem que o mundo
em livros e artigos de periódicos, especialmente ganha forma, sentido e estabilidade.
os do Portal de Periódicos Capes. O percurso me-
todológico foi orientado pelas seguintes fontes: O nome, ou a palavra, retém na nossa memó-
Booth, Colomb, Williams, Bizup e FitzGerald ria, enquanto ideia, aquilo que já não está ao
alcance dos nossos sentidos […]. O simples
(2016); Epstein e Martin (2014); Machado (2017).
pronunciar de uma palavra representa, isto é,
O texto se estrutura em duas partes princi- torna presente à nossa consciência o objeto
pais: a primeira explora os fundamentos para a a que ela se refere. Não precisamos mais da
compreensão da linguagem como instância cons- existência física das coisas: criamos, através da
linguagem, um mundo estável de ideias que
titutiva da realidade; a segunda analisa alguns
nos permite lembrar o que já foi e projetar o
dos efeitos da performatividade da linguagem que será. Assim é instaurada a temporalidade
computacional no campo do Direito, com es- no existir humano. Pela linguagem, o homem
pecial atenção às implicações para o exercício deixa de reagir somente ao presente, ao ime-
da advocacia. diato; passa a poder pensar o passado e o fu-
turo e, com isso, a construir o seu projeto de
vida (ARANHA; MARTINS, 1986, p. 11-12).

2  Linguagem e realidade
Nesse mesmo sentido, Berger e Luckmann
A linguagem assume um papel fundamental (2014, p. 60) afirmam que “a linguagem é capaz
na constituição de nossa humanidade. Gadamer de ‘tornar presente’ uma grande variedade de
(2011, p. 182) afirma que ela é “o centro do ser objetos que estão espacial, temporal e social-
humano, quando considerada no âmbito que só mente ausentes no ‘aqui agora’. Ipso facto uma
ela consegue preencher: o âmbito da convivência vasta acumulação de experiências e significações
humana, […] tão indispensável à vida humana podem ser objetivadas no ‘aqui e agora’”. Ocorre,
como o ar que respiramos”. Dentre as inúmeras contudo, que toda representação assume também
criações da humanidade, “a linguagem deve ocu- o protagonismo criativo. Quando se conside-
par um lugar de destaque. Outras invenções – a ra a linguagem apenas como representação do
roda, a agricultura, o pão fatiado – podem ter mundo, os objetos, as pessoas, as formas são
transformado nossa existência material, mas foi o percebidas como entidades cujos atributos já
advento da linguagem que nos tornou humanos” estão naturalmente dados. É como se as palavras
(DEUTSCHER, 2014, p. 13). Todavia, muitos apenas iluminassem uma realidade previamente
ainda reconhecem a linguagem apenas como estabelecida.
um “meio” que torna possível a expressão de Entretanto, usar a linguagem é mais do que
pensamentos e a comunicação. Trata-se de uma representar; é agir no mundo criando signifi-

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diária mas também de “fazer retornar” estes
cados, sentidos que engendram modos de ver a símbolos, apresentando-os como elementos
realidade (BEZERRA JUNIOR, 2015). Echeverría objetivamente reais na vida cotidiana. Desta
(2003, p. 21, tradução nossa) observa como é maneira, o simbolismo e a linguagem sim-
possível reconhecer o papel da linguagem frente bólica tornam-se componentes essenciais da
realidade da vida cotidiana e da apreensão
à realidade material: pelo senso comum da realidade.

Os seres humanos são seres linguísticos, seres A título de exemplo, na língua inglesa a pa-
que vivem na linguagem. […] É claro que lavra free é empregada para designar não apenas
os seres humanos não são apenas seres lin-
liberdade mas também gratuidade. Assim, há de
guísticos e que, portanto, a linguagem não
esgota a multidimensionalidade do fenômeno se supor que, do ponto de vista performativo,
humano. […] A existência humana reconhe- falantes de inglês tendem a reconhecer de for-
ce três domínios primários. […] São eles: o ma mais imediata a liberdade como liberdade
domínio do corpo, o domínio das emoções
econômica, diversamente do que ocorre com
e o domínio da linguagem. Cada um desses
domínios integra fenômenos diferentes que falantes de língua portuguesa, em que não há
não permitem ser reduzidos a outro, sem sa- uma associação léxica direta entre liberdade e
crificar com ele a especificidade dos fenôme- gratuidade, palavra de origem latina que no pen-
nos que têm lugar em cada um. A autonomia samento cristão foi radicada ao sentido de graça,
destes três domínios primários não impede
benesse ou bênção. O vínculo entre a realidade
estreitas relações de coerência entre eles. Isso
significa que os fenômenos que têm lugar, por humana, seus signos e linguagens é destacado
exemplo, no domínio emocional (emoções) por Lévy (1999b, p. 22):
são coerentes com os que podemos detectar
no nível do corpo (posturas) e da linguagem
É impossível separar o humano de seu am-
(o que se diz e escuta). […] Se reconhecemos
biente material, assim como dos signos e das
três domínios primários, […] por que então
imagens por meio dos quais ele atribui sentido
defendemos a prioridade da linguagem? […]
à vida e ao mundo. Da mesma forma, não
Porque é precisamente por meio da linguagem
podemos separar o mundo material – e menos
que conferimos sentido a nossa existência e é
ainda sua parte artificial – das ideias por meio
também com ela que nos é possível reconhecer
das quais os objetos técnicos são concebidos
a importância dos domínios existenciais não
e utilizados, nem dos humanos que os inven-
linguísticos. […] Não há um lugar fora da
tam, produzem e utilizam. Acrescentamos,
linguagem a partir do qual possamos observar
enfim, que as imagens, as palavras, as cons-
nossa existência.
truções de linguagem entranham-se nas almas
humanas, fornecem meios e razões de viver
No centro da concepção de linguagem das aos homens e suas instituições, são recicladas
por grupos organizados e instrumentalizados,
teorias pragmáticas está a noção de performa-
como também por circuitos de comunicação
tividade, segundo a qual as palavras não ape- e memórias artificiais.
nas representam ou servem para comunicar,
mas criam realidades e moldam a percepção No campo do pragmatismo linguístico, Silva
(BEZERRA JUNIOR, 2015). No que se refere a (1994, p. 19) destaca que “a linguagem trans-
esses aspectos, Berger e Luckmann (2014, p. 61) formou-se em modo de ‘compreensão’ do ser
assinalam: (Heidegger); modo de constituição do Outro e do
mundo (Lacan, Lévi-Strauss, Merleau-Ponty); em
A linguagem é capaz não somente de construir agir comunicativo (Habermas); em ação (Austin,
símbolos altamente abstraídos da experiência Wittgenstein)”. Austin (1975) destacou o caráter

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performativo da linguagem ao considerar que, a emergência do nascimento cíclico e constan-
além de dizerem algo, certos enunciados corres- te da produção do conhecimento. O processo
pondem a ações efetivas ao serem proferidos. todo é mediado pela linguagem, mas orientado
Para o filósofo, ao serem ditas em determinadas pela inventividade e criatividade próprias do
circunstâncias, inúmeras expressões não descre- ser humano. Talvez seja esse o grande ponto de
vem o ato, mas participam da constituição do distinção em relação à produção da linguagem
próprio ato. É o caso, exemplifica, do verbo “acei- computacional. Entretanto, como destaca Araújo
to” proferido pelos noivos em um casamento. (2020), sempre existe o “risco” de surgirem meios
Martino (2010, p. 98) considera que, nos rituais sofisticados “para a emulação do raciocínio ju-
religiosos, quando “um indivíduo é batizado, as rídico”, o que pode acarretar a substituição de
palavras de quem batiza são atos performativos juristas por outros profissionais vinculados à in-
que têm valor em si: eles representam uma ação teligência artificial e a simulação da objetividade
da linguagem sobre a realidade”. Para Flusser sempre pretendida pelo Direito – notadamente
(2007, p. 201), “a língua, isto é, o conjunto dos aquele de vertente positivista-legalista – por
sistemas de símbolos, é igual à totalidade da- meio da linguagem computacional.
quilo que é apreendido e compreendido, isto é,
a totalidade da realidade”.
O pragmatismo linguístico “trabalha com 3  Linguagem computacional e o
as palavras e seu sentido inseridos em um meio exercício da advocacia
de aplicação ou uso no qual produzirá efeitos
quanto à mensagem emitida” (GONÇALVES, O progressivo desenvolvimento da compu-
2002, p. 41). Ao considerar essa perspectiva, tação – com o incremento dos semicondutores,
observa-se que os idiomas são responsáveis por da informática, da telemática e especialmente
dividir o mundo em sujeitos e objetos, instruir com a rede mundial de computadores – colo-
sobre o tempo, o espaço e indicar quais eventos cou em evidência inúmeros recursos e serviços
devem ser vistos como processos ou coisas, de on-line. A relevância técnica e econômica da
modo que a realidade não é percebida como ela é, computação possibilitou o surgimento de em-
mas como as linguagens são (POSTMAN, 1993). presas e profissões dedicadas especificamente
Ao afirmar que “o meio é a mensagem”, à oferta de serviços mediados por tecnologias.
McLuhan (2013) alertou para o fato de que as Computadores permeiam todos os espaços da
estruturas simbólicas que oportunizam a comu- vida contemporânea, o que confere à indústria
nicação atuam na produção do sentido das men- da informática posição de destaque na cultura
sagens. Stein (1996, p. 16) considera que o acesso e na ordem econômica.
ao mundo “se dá via sentido, via significado, via A popularização da rede mundial de compu-
conceitos, via palavras, via linguagem”. Portanto, tadores permitiu a expansão não só do acesso dos
da perspectiva hermenêutica não se considera indivíduos a informações e conhecimentos como
viável retirar do texto um sentido, como se ele também sua participação ativa nesse processo.
estivesse adormecido, aguardando o desvela- Emergiram novos e diversificados modos de
mento. Pelo contrário, o processo é inverso: o interação colaborativa em rede, o que representa,
intérprete atribui sentido, fazendo emergir as na perspectiva de Lévy (1999a), o surgimento de
suas pré-compreensões. Esse movimento da lin- uma inteligência coletiva, expressa no século XXI
guagem e do processo (hermenêutico) promove por uma “possibilidade de expressão pública,

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de interconexão sem fronteiras e de acesso à informacionais invadem todos os espaços de
informação sem precedentes na história humana” produção.
(LÉVY, 2017, p. 29). Esse fato exigirá “alfabetiza- c) A lógica das redes, “para estruturar o
ção na inteligência coletiva”, de modo a permitir não-estruturado […], força motriz da inovação
a caminhada gradativa da “opinião pública à na atividade humana”. Castells (2010, p. 70-71,
inteligência coletiva”. Segundo Lévy (2017, p. 30), tradução nossa) considera que “a morfologia
haverá um novo bem comum: o conjunto de da rede parece estar bem adaptada à crescente
informações disponíveis on-line, que será “um complexidade de interação e aos modelos impre-
patrimônio coletivo da humanidade do qual nem visíveis do desenvolvimento derivado do poder
os indivíduos, nem as empresas privadas, nem criativo dessa interação. Esta configuração […]
mesmo os governantes (ainda que transnacio- pode ser implementada materialmente em todos
nais) podem se apropriar de modo exclusivo”. os tipos de processos e organizações”.
Analisando a perspectiva de Castells (2010, d) A flexibilidade organizacional, que opor-
p. 70-73) e considerando esse panorama um tuniza a mudança das estruturas. Para o filósofo,
verdadeiro dilema tecnológico-político (LÉVY, “o que distingue a configuração do novo para-
2017), podem-se apontar cinco aspectos-chave digma tecnológico é sua capacidade de reconfi-
relativos ao paradigma tecnológico da infor- guração, um aspecto decisivo em uma sociedade
mação: caracterizada por constante mudança e fluidez
a)  A instituição de uma dinâmica circular organizacional” (CASTELLS, 2010, p. 71, tra-
na relação entre tecnologia e informação. Isso dução nossa).
significa que, antes, a informação era emprega- e) A convergência de tecnologias específicas
da para o desenvolvimento de artefatos; agora, para um sistema altamente integrado. A con-
também são produzidos artefatos para lidar com vergência tecnológica induz a interdependência
a informação. Existe um claro movimento reti- crescente e a lógica compartilhada de geração de
cular, que coloca os diferentes atores em contato, informação. Desse modo, “a revolução tecnoló-
especialmente por meio das tecnologias digitais, gica da última geração tem florescido sobretudo
promovendo a emergência de conhecimentos e nas instituições menos presas a formas centra-
riscos ainda à margem do Direito. O contexto lizadas de controle” (SENNETT, 2006, p. 12).
gerado por ecossistemas informativos engendra A atuação integrada da circularidade, pe-
uma complexidade sistêmica potencializada ex- netrabilidade, imprevisibilidade, flexibilidade e
ponencialmente, em substituição ao crescimento convergência tem um efeito profundo sobre a
linear (DI FELICE; TORRES; YANAZE, 2012). linguagem em geral e a linguagem jurídica em
Tudo isso está desafiando o sistema jurídico, particular. Afinal, computadores e redes operam
que muitas vezes ainda se encontra na pretensa por meio de códigos articulados em linguagens
segurança da linearidade objetiva, quando a di- que performam estruturas lógicas para realizar
nâmica círculo-reticular projeta a provisoriedade funções e prover resultados operacionais deter-
e a necessidade de flexibilização e urgência em minados. Produzidas e orientadas a propósitos
encaminhamentos gerados tecnologicamente. estritamente funcionais, as linguagens de pro-
b) A penetrabilidade dos efeitos. Não há ati- gramação carregam na sua sintaxe os traços das
vidade humana alheia à informação, ou melhor, possibilidades técnicas e das pretensões de seus
a informação é um aspecto constitutivo de toda idealizadores. O “código” que molda a arquitetura
atividade humana, de modo que as tecnologias da rede global de computadores é reconhecido

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por Lessig (2006) como dimensão regulatória marcantes, afirma Schwab (2016, p. 13), consiste
que atua sobre as estruturas e os processos co- na combinação de várias tecnologias com base
municativos subjacentes. na revolução digital, o que leva “a mudanças
Para Lanier (2012), os profissionais da com- de paradigma sem precedentes da economia,
putação criam “extensões para o ser”, como olhos dos negócios, da sociedade e dos indivíduos. A
e ouvidos remotos e memória expandida. Nesse revolução não está modificando apenas o ‘o que’
sentido, ele reconhece que o desenvolvimento de e o ‘como’ fazemos as coisas, mas também ‘quem’
sistemas digitais é acompanhado por desafios de somos”. As tecnologias avançadas, com destaque
ordem moral, dados os efeitos que são capazes de para a computação cognitiva, prometem revo-
gerar. Disso resulta que as linguagens computa- lucionar o Direito, assumindo tarefas e atribui-
cionais não são neutras, elas “performam” refle- ções até então realizadas por juristas. Produto da
xamente a realidade. O sentido de liberdade que Ciência da Computação, a Inteligência Artificial
a internet oferece aos seus usuários é produto da compreende sistemas informatizados que exi-
performatividade da linguagem computacional, bem características semelhantes à inteligência
que alcança desde a modelagem dos protocolos comportamental humana, como a linguagem, o
primários que conectam os computadores até as aprendizado, o raciocínio, a resolução de proble-
funções, comandos e símbolos que integram a mas, entre outros aspectos (FERNANDES, 2003).
experiência dos internautas. Desdobram-se basicamente duas leituras
A popularização dos dispositivos móveis e a em relação ao papel da Inteligência Artificial no
implementação da Web 2.02 ofereceram as con- Direito: uma, de ordem incremental, confere às
dições básicas para que a Informática (suas lin- máquinas funções operacionais cognitivas buro-
guagens e valores existenciais) permeasse grande cráticas e repetitivas; outra, de caráter disruptivo,
parte da sociedade e permitisse o desenvolvimen- defendida por entusiastas da computação3, reco-
to de plataformas dedicadas à oferta de serviços nhece que os algoritmos poderão lidar inclusive
(privados e públicos) baseados em informação. com questões complexas, o que representaria
Disso resultou o reconhecimento legal da internet o fim da advocacia e demais ocupações jurídi-
como infraestrutura indispensável ao exercício cas, pelo menos do modo como são conhecidas
da cidadania, conforme estabelece o art. 7o do atualmente. Esses movimentos serão conduzidos,
Marco Civil da Internet (BRASIL, [2018]). em grande parte, pela utilização de algoritmos,
Do cenário presente para o futuro, vislumbra- que agilizarão trabalhos jurídicos repetitivos,
-se uma realidade tecnológica ainda em franco caminhando gradativamente até processos mais
desenvolvimento, e uma de suas características sofisticados de tomada de decisão (REIS, 2020).
Considerando todos esses fatores, é preciso
avaliar a caracterização e o papel da advocacia
2
 “Desde o início deste século, a internet ganhou novas
expectativas com o anúncio do modismo da web 2.0 […]. no século XXI e sua relação com as tecnolo-
Ficava para trás aquela internet mais passiva, consumista,
reprodutiva, marcada por menus fechados e copiados, e
gias emergentes. Estudo realizado em 2018 pelo
entrava em cena a ideia da interação colaborativa que su- CEPI, vinculado ao curso de Direito da Fundação
põe autoria individual/coletiva. […] Na web 1.0, a regra
era o consumo alinhado: a internet propõe conteúdos e os
usuários apenas ‘os usam’, de modo alinhado. Na web 2.0, 3
 Florão (2017, p. 52) observa que a computação cogni-
a internet monta plataformas que facultam autorias: para tiva diz respeito à capacidade de os computadores aprende-
utilizá-las é indispensável criar textos próprios que são, rem e evoluírem com base em novas informações. Afirma
ademais, provisórios e podem ser comentados/mudados. também que, segundo pesquisas, “até 2045, teremos acesso
Na web 2.0, os textos obedecem à regra da interatividade” barato a recursos computacionais equivalentes aos da capa-
(DEMO, 2010, p. 13). cidade cerebral de toda a raça humana reunida”.

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Getulio Vargas de São Paulo, aponta o emprego cialmente por aqueles que atribuem à revolução
ainda tímido de tecnologias de informação nos digital legitimidade para transformar realidades
escritórios de advocacia com destaque para opostas ao idealismo inovador. Importa obser-
aplicações básicas de organização e cadastro de var, contudo, que a integração das profissões
informações, o que revela a existência de um jurídicas com a tecnologia deve caminhar dia-
“amplo espaço para implementação de ferra- logicamente4.
mentas tecnológicas avançadas” (FUNDAÇÃO Há desafios a serem enfrentados, inclusive
GETULIO VARGAS, 2018a, p. 11). em relação ao quadro regulatório que disciplina
O estudo informa também que um fator de a advocacia. A norma de regência estabelece
destaque na adoção de soluções tecnológicas restrições ao seu exercício em comunhão com
consiste no contencioso de massa, caracterizado outras atividades5, assim como estabelece o
pelo “grande volume de processos, teses repe- caráter privativo da postulação judicial, das
tidas e baixo retorno financeiro por demanda”. atividades de consultoria, assessoria e direção
Soma-se a esse fator um gradual “processo de jurídicas (art. 1o, Lei no 8.906/1994) (BRASIL,
substituição de tarefas” relacionadas aos cargos [2020b]). Tais restrições decorrem, entre ou-
mais baixos das estruturas organizacionais dos tros fatores, do intuito de preservar o múnus
escritórios (FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS, público da profissão frente a valores e práticas
2018b, p. 18). Tal cenário revela um perfil ainda incompatíveis, em particular as de ordem mer-
conservador, dado que as linguagens computa- cantil. Estabelece o art. 133 da Constituição da
cionais oferecem possibilidades performativas República Federativa do Brasil de 1988 que “o
que vão além do modelo servil produtivista. advogado é indispensável à administração da
Por outro lado, a pesquisa do CEPI atesta justiça” (BRASIL, [2021]). No mesmo sentido
que “profissionais com formação na área de dispõem o art. 2o do Estatuto da Advocacia6
exatas e sem formação jurídica têm sido con- e o art. 2o do Código de Ética e Disciplina da
tratados para compor equipes em escritórios de Ordem dos Advogados do Brasil7.
advocacia”, assim como “há organizações que
adotam arranjos organizacionais peculiares com 4
 A dialógica, para Morin (2011), compreende uma
postura cognitiva que possibilita a articulação de ideias
o objetivo de obter maior integração tecnológica aparentemente antagônicas, na medida em que são consi-
aos serviços jurídicos”, envolvendo startups deradas, ao mesmo tempo, complementares.
5
 O art. 1o, § 3o, do Estatuto (BRASIL, [2020b]) veda a
jurídicas, incubação e acordos de cooperação divulgação de advocacia em conjunto com outra atividade.
(FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS, 2018b, Na constituição de sociedade profissional, não se admite
participação societária de quem não seja advogado (art. 16),
p. 18). Nesse contexto, o estudo aponta a emer- assim como nenhuma sociedade com propósitos diversos
gência de ecossistemas de inovação no campo (civis ou comerciais) pode incluir o exercício da advocacia
(art. 16, § 3o) entre as suas atividades.
jurídico cujos principais atores são escritórios 6
 “Art. 2o O advogado é indispensável à administração
e departamentos jurídicos, desenvolvedores de da justiça. § 1o No seu ministério privado, o advogado presta
serviço público e exerce função social. § 2o No processo
tecnologia, investidores, instituições de ensino judicial, o advogado contribui, na postulação de decisão
superior e entidades de fomento (FUNDAÇÃO favorável ao seu constituinte, ao convencimento do julgador,
e seus atos constituem múnus público. § 3o No exercício da
GETULIO VARGAS, 2018b, p. 16). profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifes-
tações, nos limites desta lei” (BRASIL, [2020b]).
Verifica-se uma evidente tendência des- 7
 “Art. 2o O advogado, indispensável à administração da
bravadora de integrar às atividades jurídicas o Justiça, é defensor do Estado Democrático de Direito, dos
protagonismo tecnológico. Esse quadro resulta direitos humanos e garantias fundamentais, da cidadania,
da moralidade, da Justiça e da paz social, cumprindo-lhe
de um movimento ainda maior liderado espe- exercer o seu ministério em consonância com a sua eleva-

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duziu a si mesmo e produziu ferramentas. A
A indispensabilidade atribuída à advocacia indagação quanto ao que teria existido antes,
decorre fundamentalmente do seu múnus pú- se o homem ou a ferramenta, é, portanto, pu-
blico, o que implica outorgar ao profissional do ramente acadêmica. Não há ferramenta sem
Direito responsabilidades que condicionam sua o homem, nem o homem sem a ferramenta:
os dois passaram a existir simultaneamente
atuação ao cumprimento de deveres equivalen- e sempre se acharam indissoluvelmente li-
tes aos que se impõem aos agentes públicos. Por gados um ao outro.
isso, Ramos (2003, p. 61-62) destaca as palavras
de Calamandrei ao afirmar que o advogado atua Assim, tanto a produção quanto o uso de
como “um elemento integrante da organização artefatos tecnológicos constituem os modos
judicial, como órgão intermediário entre o juiz e de ser e existir da humanidade, assumindo
a parte, no qual o interesse privado de alcançar sempre sentido, significado e valor. Apenas
uma sentença favorável e o interesse público em um plano metafísico abstrato é que se pode
de obter uma sentença justa se encontram e imaginar um estado de neutralidade e, portan-
se conciliam”. to, de indiferença em relação à realidade. De
A função pública da advocacia materializa- qualquer modo, existem estudos que apontam
-se como dialética mediadora, seja na pacifica- uma probabilidade de substituição de parcela
ção de conflitos, seja na orientação preventiva do trabalho desenvolvido por profissionais
no caminho da prudência. Soma-se à realidade do Direito, como os advogados e os juízes,
da advocacia a qualidade de profissão liberal e por um trabalho estruturado pela máquina
independente, o que amplia ainda mais o escopo (ENGELMANN; WERNER, 2019).
da responsabilidade pública, já que a atuação se Embora sob pressupostos distintos, advoca-
imiscui nos desafios que dizem respeito a certas cia e tecnologia apresentam identidades estru-
liberdades relacionadas à realidade econômica. turais: ambas são instâncias de ação mediadora;
É notório que nas dinâmicas de mercado estão assentadas em linguagem, informação e
predominam aspirações pautadas em resulta- normatividade; e são reconhecidamente indis-
dos, o que, não raras vezes, tende a compelir pensáveis. Apesar disso, por se tratar de questões
os atores econômicos ao emprego de quaisquer humanas, a inserção gradativa de elementos
meios. Em certa medida, o reconhecimento computacionais no cenário jurídico, especial-
equívoco da neutralidade tecnológica contri- mente na tomada de decisões, carrega desafios
bui para esse quadro. Impera a noção de que éticos que não poderão ser esquecidos, como
a legitimidade no uso de processos e artefa- os apontados por Nieva Fenoll (2018): a valo-
tos tecnológicos reside nos fins pretendidos, ração da prova e da argumentação jurídica, que
como se em nenhum aspecto os meios fossem sempre deve ser permeada pela preocupação
coadjuvantes na conformação dessas mesmas relativa aos direitos humanos; as questões rela-
pretensões finalísticas. Assim, Fischer (1979, tivas à imparcialidade do juiz e à presunção de
p. 21-22) considera que inocência. Como assegurar a ampla auditabili-
dade dos algoritmos movimentados na decisão?
[o] homem tornou-se homem através da Quem orienta a alimentação do algoritmo com
utilização de ferramentas. Ele se fez, se pro- os dados que serão fundamentais para a toma-
da de decisão? A essas e outras perguntas o
Direito deverá responder garantindo prioridade
da função pública e com os valores que lhe são inerentes”
(ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, 2015, p. 2). às questões humanas envolvidas nas decisões.

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No campo da ciência da computação, obser- densamente integradas a uma trama (uma rede)
va-se a tendência de atribuir às tecnologias com- constituída e constituinte de múltiplas comuni-
putacionais a qualidade de instrumento para a cações. O desenvolvimento das Tecnologias da
autonomia e liberdade individual. Tal concepção Informação e Comunicação (TICs) contribuiu
evidencia-se, por exemplo, na literatura que significativamente para essa complexidade ao
enfatiza a autonomia das moedas digitais (peer- oportunizar bens e recursos que retroalimentam
-to-peer) frente à regulação estatal8. Contudo, os meios de produção, gerando progressiva-
é preciso destacar que isso corresponde à pas- mente quantidade, qualidade e diversidade de
sagem da mediação regulatória do Estado para conhecimento e informação. A esse respeito,
a mediação performativa da linguagem com- Morin (2011, p. 69) observa que a
putacional. Esse trânsito da mediação baseada
em instituições9 para a mediação tecnológica, consciência da multidimensionalidade nos
embora seja difundido como um avanço, pode conduz à ideia de que toda visão unidimen-
sional, toda visão especializada, parcelada é
representar apenas a substituição incremental
pobre. É preciso que ela seja ligada a outras
do locus de legitimidade das instâncias de ação. dimensões; daí a crença de que se pode iden-
Em regra, o exercício da advocacia é marca- tificar a complexidade com a completude.
do pelo viés liberal, o que inicialmente favorece
o desenvolvimento de inovações tecnológicas Abordagens específicas ancoradas em mar-
no setor. Contudo, além da produtividade e cos dogmáticos são insuficientes para lidar com
eficiência que a tecnologia pode oferecer como a realidade contemporânea. Não cabe perceber
vantagens operacionais, importa promover o a tecnologia apenas como plataforma instru-
aperfeiçoamento do múnus público da profissão. mental, servil ao Direito, sob pena de o Direito
Para tanto, impõe-se o esforço de diálogo entre tornar-se uma instância servil à tecnologia.
especialidades a fim de transcender contornos Aqui se abrem desafios éticos para a pesqui-
sitiados e expandir as condições para a produção sa na área do Direito, a fim de ter bem claros
de raízes integradas. A complexidade social, em os limites desse desenvolvimento científico-
parte decorrente do próprio desenvolvimento -tecnológico (ÁLVAREZ ÁLVAREZ, 2013).
tecnológico, produz desafios que não encon- Urge caminhar para uma abordagem integrada
tram solução por meio de ações e epistemes que reconheça o Direito e a tecnologia como
unidimensionais. instâncias reciprocamente constituintes, o que
Reconhecer a complexidade social é admitir demanda aproximações que qualifiquem a per-
que todas as pessoas e instituições se encontram formatividade da linguagem computacional e
garantam a inovação sustentável das profissões
8
 Nesse sentido, Pinheiro (2016, p. 315, grifo nosso) jurídicas.
afirma que “[o] bitcoin permite a propriedade e transferência
anônima de valores, utilizando-se de um programa de código
aberto para geração, uso e transferência de moeda, onde a
rede é ponto a ponto (peer-to-peer), ou seja, diretamente entre
computadores, sem a necessidade de entidades centralizando
4  Considerações finais
e gerenciando a moeda”.
9
 Para efeito deste estudo, instituições representam “as As ferramentas tecnológicas não estão da-
restrições concebidas pelo homem que moldam a interação
humana. […] As restrições institucionais ditam aquilo que das, elas são produzidas. Assim, considerando
os indivíduos são proibidos de fazer e, por vezes, as condi- o caráter performativo das linguagens com-
ções sob as quais se permite que alguns indivíduos exerçam
determinadas atividades” (NORTH, 2018, p. 13-15). putacionais em relação à realidade, é preciso

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aproximar os saberes da Ciência da Computação dos saberes do Direito.
Aqui se terá um campo fértil de pesquisa, com destaque aos desafios
éticos da utilização da linguagem computacional, que é lógica e objetiva,
na condução de questões humanas sempre movidas por sentimentos,
interesses, ou seja, por subjetividades, talvez de difícil mensuração e
parametrização em algoritmos.
O desenvolvimento de plataformas tecnológicas aptas a prover con-
dições para lidar com os desafios profissionais presentes e futuros não
comporta abordagens fragmentadas, o que exige lidar com a tecnolo-
gia para além de sua conformação instrumental. É preciso caminhar
para uma abordagem dialógica transdisciplinar, que ofereça ao Direito
elementos das tecnologias de informação e que as tecnologias de in-
formação incorporem elementos do Direito. Nesse sentido, os espaços
universitários precisam prover condições para a constituição de redes e
interfaces (linguagens) que oportunizem a comunicação e a integração
de práticas e epistemologias.
Por certo o Direito e as especialidades no campo das TICs abarcam
muitos interesses comuns que só poderão emergir qualitativamente com
base em linguagens e ações transdisciplinares. Aqui se tem um duplo
desafio para o Direito: primeiro, perceber claramente a emergência das
questões computacionais e de inteligência artificial; segundo, avaliar e
normatizar esses avanços tecnológicos, que já não são futuros, mas se
materializam gradativamente no presente.

Sobre os autores
Alejandro Knaesel Arrabal é doutor em Direito Público pela Unisinos, São Leopoldo, RS,
Brasil; professor titular e pesquisador dos programas de pós-graduação em Direito e em
Administração da Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB), Blumenau, SC,
Brasil; professor do programa de graduação em Direito da FURB, Blumenau, SC, Brasil.
E-mail: [email protected]
Marcos Antônio Mattedi é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, SP, Brasil; pós-doutor pelo Centre de Sociologie de l’Innovation, Paris,
França; professor titular e pesquisador do programa de pós-graduação em Desenvolvimento
Regional da Fundação Universidade Regional de Blumenau, Blumenau, SC, Brasil.
E-mail: [email protected]
Wilson Engelmann é doutor em Direito Público pela Unisinos, São Leopoldo, RS, Brasil;
pós-doutor em Direito Público-Direitos Humanos pela Universidade de Santiago de
Compostela, Santiago de Compostela, Espanha; professor titular e pesquisador do programa
de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Unisinos, São Leopoldo, RS,
Brasil; bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq).
E-mail: [email protected]

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Como citar este artigo
(ABNT)
ARRABAL, Alejandro Knaesel; MATTEDI, Marcos Antônio; ENGELMANN, Wilson.
A performatividade da linguagem computacional e seu impacto na advocacia. Revista de
Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 231, p. 41‑54, jul./set. 2021. Disponível
em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/231/ril_v58_n231_p41
(APA)
Arrabal, A. K., Mattedi, M. A., & Engelmann, W. (2021). A performatividade da linguagem
computacional e seu impacto na advocacia. Revista de Informação Legislativa: RIL, 58(231),
41‑54. Recuperado de https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/231/ril_v58_n231_
p41

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54 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 41-54 jul./set. 2021


Direito financeiro da crise
A modulação da legislação orçamentário-
financeira para o combate aos efeitos da Covid-19

JOSÉ LEVI MELLO DO AMARAL JÚNIOR


FABIANO DE FIGUEIRÊDO ARAUJO

Resumo:  Este artigo objetiva investigar a modelagem da normatização


financeira e orçamentária para o enfrentamento dos efeitos da Covid-19,
configurada como um efetivo Direito Financeiro da Crise. Essa modelagem
acarretou a suspensão do paradigma normativo ordinário de controle fiscal
em favor de uma normatização extraordinária, evidenciada por três fatos:
o reconhecimento da calamidade fiscal da União, a concessão de medida
liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade no 6.357 e a Emenda
Constitucional no 106/2020. A construção de um Direito Financeiro da
Crise é um mecanismo adequado para o enfrentamento da Covid-19,
mas acaba demonstrando a tendência de preocupação mais conjuntural
que estrutural da legislação orçamentária brasileira.

Palavras-chave:  Direito Financeiro da Crise. Covid-19. ADI no 6.357.


Emenda Constitucional no 106/2020.

Budgetary crisis law: a change of Brazilian budgetary law


to face the effects of Covid-19

Abstract:  This paper aims to produce an investigation in a budgetary


regulation to face the effects of Covid-19 in Brazil, configured as an
effective Budgetary Crisis Law. This model causes a suspension of the
ordinary budgetary law, with the construction of extraordinary regulation,
evidenced by three facts: the recognition of the Union’s fiscal calamity,
a provisional remedy in Direct Action of Unconstitutionality n. 6.357,
and the Constitutional Amendment n. 106/2020. The construction of a
Budgetary Crisis Law ended up being an adequate mechanism to face the
effects of Covid-19, but it confirmed a tendency for Brazilian budgetary
law to be more concerned with immediate issues.
Recebido em 5/10/20
Aprovado em 11/1/21

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 55-70 jul./set. 2021 55


Keywords:  Budgetary Crisis Law. Covid-19. ADI n. 6.357. Constitutional
Amendment n. 106/2020.

1  Considerações iniciais: paradigma normativo e


contexto do Direito Financeiro da Crise

A recente pandemia da Covid-19 enseja um cenário fático-jurídico


desafiador. O contexto sem precedentes influencia diretamente o processo
de execução orçamentário-financeira no Brasil.
Afinal, não há dúvidas de que o Estado é instrumento essencial e
estratégico para o combate aos efeitos negativos da pandemia, como
sustentáculo de medidas de enfrentamento do grave problema sanitário
e das suas muito sensíveis consequências econômicas. É natural, pois, o
aumento de dispêndios públicos para dar a cobertura orçamentário-fiscal
necessária à confrontação dos efeitos da Covid-19. Isso é verificado à
saciedade nos últimos meses, em face da abertura de inúmeras ações
orçamentárias com o intuito de atender à ampliação da estrutura de
assistência pública à saúde e às políticas públicas de enfrentamento
das consequências econômicas da pandemia. Como rápidos exemplos,
podem-se citar:
(i)  as Medidas Provisórias (MPs) nos 924, de 13/3/2020, 940, de
2/4/2020, e 969, de 20/5/2020 (BRASIL, 2020f, 2020h, 2020i), que abri-
ram créditos extraordinários na casa de dezenas de bilhões de reais
para atender a políticas de assistência à saúde e enfrentar a emergência
decorrente da Covid-19;
(ii)  a MP no 937, de 2/4/2020 (BRASIL, 2020g), que abriu crédito
extraordinário no importe de 98 bilhões de reais para dar cobertura ao
pagamento do Auxílio Emergencial de Proteção Social a Pessoas em
Situação de Vulnerabilidade, Devido à Pandemia da Covid-19, instituído
pela Lei no 13.982, de 2/4/2020 (BRASIL, 2020e).
Tais exemplos estão longe de ser singulares no esforço fiscal em-
preendido no atual contexto. Há notícias de que o secretário do Tesouro
Nacional da Secretaria Especial da Fazenda do Ministério da Economia
explicitou que a previsão de déficit primário em 2020 ficaria na casa de
700 bilhões de reais, decorrente do alargado incremento de dispêndios
públicos relacionados, de forma direta ou indireta, ao combate à Covid-19
(COM DEFICIT…, 2020).
Muitas condutas estatais no primeiro semestre de 2020 consubstan-
ciaram empreendimento à margem de qualquer prognose recente, tais

56 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 55-70 jul./set. 2021


como a criação de linhas de crédito emergencial (MP no 944/2020 e Lei
no 13.999/2020), a concessão de subvenções sociais, aquisições imediatas
e urgentes de medicamentos e até despesas relacionadas com o resgate
de brasileiros no exterior.
Não há dúvidas de que todos os mecanismos de engendramento
orçamentários têm sido empregados, inclusive ferramentas que não
costumam ser utilizadas ordinariamente no âmbito orçamentário. Com
efeito, a própria institucionalidade jurídica tradicional ampara alguns
mecanismos de flexibilidade do orçamento necessários ao atendimento
de questões emergenciais e urgentes.
A título de ilustração, cita-se o próprio crédito extraordinário, que,
conforme o art. 167, § 3o, da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988 (CRFB) (BRASIL, [2021a]), é utilizado para atender a despesas
imprevisíveis e urgentes – única norma de caráter orçamentário que pode
ser formalizada por meio de medida provisória, inclusive. Além disso, o
Novo Regime Fiscal (NRF), instituído pela Emenda Constitucional (EC)
no 95/2016 (BRASIL, 2016), também logrou ter instrumentos de maleabi-
lidade fiscal quando acentuou que créditos extraordinários não estariam
incluídos no limite de despesa tratado no regime (art. 107, § 6o, II, do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias (BRASIL, [2021a])). Com
efeito, o modelo do NRF ampara condutas governamentais assertivas em
situações de fragilidade econômica, porquanto sua característica basilar é
a de instrumentalizar um mecanismo de autorização de dispêndio público
sem a necessária correlação com o total de receitas públicas. Goza, pois, de
caráter contracíclico uma política fiscal fomentada pelo Banco Mundial
para toda a América Latina (VÉGH; VULETIN; RIERA-CRICHTON;
FRIEDHEIM; MORANO; CAMARENA, 2018), visto que autoriza, de
forma clara, estável e prévia, um teto de gastos públicos, independente
do importe da arrecadação estatal, possibilitando que o Estado atue de
forma mais expansiva em situações de baixa receita estatal, com o intuito
de tentar diminuir os efeitos negativos de uma crise econômica.
Todavia, essas medidas por si sós não seriam suficientes para enfrentar
uma crise econômica e sanitária sem precedentes. Afinal, num cenário
de decréscimo sensível no âmbito das receitas da União e dos entes sub-
nacionais, não haveria dúvidas de que o grande lastro de recursos para
salvaguardar esse incremento de dispêndios seria o endividamento público,
utilizado para custear, em grande parte, despesas de caráter corrente (nos
termos da Lei no 4.320, de 1964 (BRASIL, [1982])), potencializando mais
ainda o descumprimento da conhecida regra de ouro entabulada pelo
art. 167, III, da CRFB.
Ademais, a eventual concessão emergencial de benefícios tributários
fatalmente só teria higidez normativa (art. 14 da Lei Complementar (LC)

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 55-70 jul./set. 2021 57


no 101/2000 (BRASIL, [2021c])) caso houvesse medidas de compensação
por aumento ou criação de tributos, cenário evidentemente proibitivo,
uma vez que a emergência derivada da Covid-19, sem que tivesse ne-
nhuma prognose, inviabilizaria atestar que a renúncia tributária teria
sido considerada na estimativa de receita da Lei Orçamentária Anual
(LOA) de 2020 – Lei no 13.978/2020 (BRASIL, 2020d).
Dessa forma, verifica-se que a ordem normativa financeira teria de
ser conformada a um novo paradigma, de efetivo Direito Financeiro da
Crise. Afinal, como rememora Mendes (2020), Konrad Hesse registrava
que “necessidade não conhece [limites]” e que, por isso, é importante a
criação de mecanismos normativos expressos para o tratamento da situa-
ção extraordinária de necessidade, sob pena de “antecipada capitulação do
Direito Constitucional diante do poder dos fatos” (HESSE, 1991, p. 32).1
A estruturação de um Direito de Necessidade2 ou Estado de Crise3
tem como escopo modelar uma liberdade de condutas e movimentos,
por meio de disciplinamento extraordinário com o intuito de superar
uma crise mediante a suspensão dos ordinários controles institucionais
sobre a temática.
Há nesse paradigma uma clara supremacia de um polo de poder
estatal em face de outro (LOEWENSTEIN, 1979, p. 285), como se vê,
por exemplo, na formatação do Estado de Sítio, o qual outorga ao Poder
Executivo um rol de poderes temporários não existentes em contexto nor-
mal, mediante prévia autorização congressual (arts. 138 e 139 da CRFB).
Em geral, situações de crise não logram obter a necessária previsibi-
lidade constitucional e, por isso, podem ensejar soluções à margem do
parâmetro normativo, tendo como consequências eventuais a perversão
e a arbitrariedade após o deslinde da querela geradora (LOEWENSTEIN,
1979, p. 286). Doutrinadores de renome acentuam inclusive a invia-
bilidade de tratamento expresso da questão, por essencialmente não
consubstanciar matéria que possa ser disciplinada (HESSE, 1991, p. 32)4.
Contudo, sabe-se que Estados modernos tendem a estruturar, em
suas respectivas Constituições, mecanismos que tratem de situações
de crises, com o fito de empreender uma juridicidade extraordinária
para reger a situação excepcional (SILVA, 2008, p. 618). A lógica por

1
 Hesse (1991), nesse ponto, esclarece que a Lei Fundamental de Bonn de 1949 não
apresentou mecanismos para tratamento de situações conflituosas institucionais (a exemplo
do Estado de Sítio no paradigma brasileiro), mercê dos abusos cometidos sob a égide do
art. 48 da Constituição de Weimar, havendo uma clara lacuna normativa sobre o assunto.
2
 Denominação utilizada por Canotilho (2003, p. 1.083).
3
 Denominação preferida por Loewenstein (1979, p. 285). Ressalte-se que o tratamento
da excepcionalidade normativa em contextos de crise é também denominado Estado de
Exceção; seu teórico mais conhecido é Carl Schmitt, famoso por declarar que “o Soberano
é quem decide sobre o estado de exceção” (SCHMITT, 2009, p. 12, tradução nossa).
4
 Por todos, Carl Schmitt (AGAMBEN, 2004, p. 22).

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trás de tal cenário é a de expurgar o incentivo (ii)  a instituição de regramentos expressos
a voluntarismos políticos fomentados por um no âmbito da ordem jurídica para o tratamento
sentimento extraconstitucional de necessidade do Direito de Necessidade, cenário corriqueiro
para a solvência de específica querela relevan- em Constituições do contexto europeu e latino-
tíssima (CANOTILHO, 2003, p. 1.086). -americano (CANOTILHO, 2003, p. 1.093); ou
Nessa perspectiva, engendra-se uma sus- (iii)  o polo de poder logra obter poderes
pensão rigorosamente transitória e pontual da delegados do parlamento para a solução do
normatização ordinária para reestabelecer a problema subjacente à crise.
regularidade institucional ou social existen- No atual cenário de crise, dada a dificul-
te antes da perturbação ensejadora da crise5. dade do emprego ordinário da legislação fi-
Como se vê, um pressuposto inerente à confi- nanceira para o enfrentamento da Covid-19,
guração institucional de superação de crise é a verifica-se que o mecanismo institucional aca-
sua temporariedade, com o fito específico de bou moldando um novo paradigma de ordem
solver aquela anormalidade, sob pena de efetiva jurídico-financeira claramente excepcional e
inauguração de um modelo de arbitrariedade suspensiva do modelo ordinário de tratamento
(SILVA, 2008, p. 618). Ademais, a excepciona- orçamentário-financeiro.
lidade tende a ser elemento inerente ao insti- Essa ilação pode ser evidenciada mediante o
tuto, visto que o uso constante de mecanismos exame de três fatos tematicamente pertinentes:
permitidos no contexto de jurisprudência de (i) o reconhecimento da calamidade pública
crise levaria a uma inadmissível fragilização do para fins do art. 65 da LC no 101/2000 (BRASIL,
regime democrático de governo (AGAMBEN, [2021c]), com a desnecessidade de cumpri-
2004, p. 19). mento da meta fiscal prevista ao exercício de
Loewenstein (1979, p. 286) registra que, em 2020; (ii) a concessão de medida cautelar no
geral, há três caminhos distintos para a supera- âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade
ção de situações de crises: (ADI) no 6.357 (BRASIL, 2020l), na qual foi
(i)  um polo de poder assume, de maneira realizada a interpretação conforme de disposi-
extraconstitucional e imediata, determinadas e tivos da LC no 101/2000 e da Lei de Diretrizes
excepcionais atribuições, muitas transferidas de Orçamentárias (LDO) de 2020, a fim de afastar
outro polo de poder, havendo eventual amparo a exigência de se demonstrar adequação e com-
normativo futuro para convalidar condutas pre- pensação orçamentárias em relação à criação/
viamente empreendidas (bill de indenidade)6; expansão de programas públicos destinados
ao enfrentamento do contexto de calamidade
5
 Registre-se que essa suspensão da normatização gerado pela Covid-19; e (iii) a edição da EC
ordinária configura um cenário menos invasivo institu-
cionalmente do que dispõe a teoria mais tradicional do no 106, de 7/5/2020 (BRASIL, 2020b), que insti-
Estado de Exceção. Com efeito, Schmitt (2009, p. 17-18) tui regime extraordinário fiscal, financeiro e de
consignava que numa situação excepcional a necessidade
de manutenção do Estado ostenta uma superioridade maior contratações para o enfrentamento da calami-
que a validade da norma jurídica, de modo que o Estado dade pública nacional decorrente da Covid-19.
suspende a própria ordem jurídica em virtude do direito à
sua própria conservação. É importante aduzir que a solução da atual
6
 Canotilho (2003, p. 1.094) conta que esse é o meca- crise orçamentário-financeira não ocorreu à
nismo utilizado pelo Direito Constitucional inglês. De fato,
“através do recurso ao Act of Indemnity ou Indemnity Bill, o
Parlamento legaliza as actuações do governo consideradas
ilícitas no momento da sua prática. O Bill de Indenidade dos membros do Executivo e seus subordinados quando,
serve, pois, para apagar a responsabilidade penal ou civil em casos de emergência, violem as constituições ou as leis”.

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margem do espectro normativo: deu-se prin- Entre as suas várias rígidas regras de cunho
cipalmente por força da muito elogiosa decisão fiscal está a de que a LDO deverá prever anual-
exarada no âmbito da ADI no 6.357, a qual per- mente metas de resultado fiscal (art. 4o, § 1o, da
mitiu, na prática, o adiantamento de medidas LRF), a fim de nortear o deslinde da execução de
supervenientes e corretamente entabuladas pela despesas confrontando-o com o desempenho de
EC no 106/2020. arrecadação fiscal para obter um equilíbrio fiscal.
Firmadas essas considerações, passa-se ao A própria LRF previu que deveria ser es-
exame desses três fatos inerentemente relacio- tabelecida normativamente a metodologia de
nados, que delinearam um modelo de Direito apuração dos resultados primário e nominal
Financeiro da Crise para o País. (art. 30, § 1o, IV (BRASIL, [2021c])), o que até
o presente não ocorreu. Por isso, no âmbito da
União, ordinariamente se prevê nas LDOs que
2  A crise orçamentário-financeira e a mensagem que encaminhar o projeto de lei
as etapas de superação orçamentária estabeleça a sistemática de ava-
liação do cumprimento das metas7.
O escopo deste tópico é evidenciar a supera- O método tradicional de cálculo do resultado
ção da crise orçamentário-financeira no contexto fiscal primário no âmbito da União é o Abaixo da
do combate aos efeitos da Covid-19 mediante Linha, o qual tem como norte aferir a variação
três fatos relacionados. do fluxo do endividamento público líquido ao
promover a subtração entre os ativos do setor
2.1  O reconhecimento da calamidade público não financeiro e o total de obrigações
pública para fins do art. 65 da LC no 101/2000 do setor público não financeiro, excluindo-se os
componentes financeiros do resultado fiscal do
A LC no 101/2000, comumente denomi- setor público (SILVA, 2019, p. 229-230).
nada “Lei de Responsabilidade Fiscal” (LRF), O resultado fiscal primário previsto na LDO
teve como finalidade disciplinar o disposto nos tem vigência anual e, por isso, consoante exigên-
arts. 163 e 169 da CRFB, a fim de dar unifor- cia do art. 9o da LRF, caso verificado – ao final
midade federativa quanto a finanças públicas, de um bimestre – que a realização da receita
regras de endividamento e concessão de ga- poderá não comportar o cumprimento das metas
rantias, limites para a celebração de operação de resultado primário ou nominal, os Poderes e
de créditos, transparência contábil e limites à o Ministério Público promoverão limitação de
despesa de pessoal (SCAFF, 2013, p. 44). empenho e movimentação financeira, segundo
A LRF adveio no contexto do Programa de os critérios fixados pela própria LDO. Como se
Estabilidade Fiscal, lançado ao final do primei- vê pela literalidade do preceito, em tal hipótese
ro governo do presidente Fernando Henrique os chefes das unidades autônomas orçamentárias
Cardoso, objetivando, conforme previa a devem realizar o referido controle de execução
Exposição de Motivos que acompanhou o pro- orçamentária e financeira, por consubstanciar
jeto de lei apresentado pelo Poder Executivo ao uma conduta vinculada (e não discricionária).
Congresso Nacional, “a drástica e veloz redução
do déficit público e a estabilização do montante
da dívida pública em relação ao Produto Interno
7
 Essa é a regra estabelecida, por exemplo, pela LDO
de 2020 (art.  10, IV, da Lei no  13.898, de 11/11/2019
Bruto da economia” (BRASIL, 1999, p. 10.145). (BRASIL, [2020c])).

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Firmada tal consideração, inexistiam dú- Por sua vez, o Congresso Nacional, por
vidas de que o cenário derivado da Covid-19 meio do Decreto Legislativo no 6, de 20/3/2020
seria perverso na economia nacional, uma vez (BRASIL, 2020a), reconheceu a ocorrência do
que as medidas de controle da enfermidade ge- estado de calamidade pública com efeitos até
rariam a necessidade de largo gasto público. 31/12/2020, exclusivamente para os fins do
Esse contexto inviabilizaria factualmente o cum- art. 65 da LRF, notadamente para as dispensas
primento do resultado fiscal previsto no art. 2o do atingimento dos resultados fiscais previstos
da Lei no 13.898/2019 (LDO 2020) (BRASIL, no art. 2o da LDO 2020 e para a limitação de
[2020c]), uma vez que a aplicação do contingen- empenho de que trata o art. 9o da LRF.
ciamento exigido bimestralmente pelo art. 9o da Observe-se que o Congresso Nacional foi
LRF ocasionaria a suspensão das atividades da atento ao fato de que os efeitos do art. 65 da LRF
Administração Pública federal, impossibilitan- deveriam adstringir-se até o final do exercício,
do inclusive a própria autorização de despesas independentemente de as medidas de gestão,
públicas para o enfrentamento da pandemia. ou eventuais efeitos econômicos negativos da
Assim, com lastro no art. 65 da LRF (BRASIL, calamidade decorrente do surto da Covid-19,
[2021c]) – o qual prevê que, em caso de reconhe- serem limitadas a específicos períodos de 2020.
cimento de calamidade pública pelo Congresso Afinal, o resultado fiscal entabulado pela
Nacional, a União estaria dispensada de cumprir LC no 101/2000, e tratado especialmente em seu
os resultados fiscais previstos na LDO e de reali- art. 9o, é construído normativamente como anual
zar limitações de empenho previstas pelo art. 9o (ou seja, o exercício financeiro coincide com o
da LRF enquanto perdurar a situação geradora inteiro ano civil), de sorte que as revisões bimes-
da calamidade –, a Presidência da República trais (com consequentes contingenciamentos ou
solicitou, por meio da Mensagem Presidencial recomposições, conforme o caso) configuram
no 93/2020, o aludido reconhecimento. apenas marcos temporais de controle para ba-
Em linhas gerais, a declaração de calamidade lancear a execução orçamentária e financeira a
tem como foco não ser um fim em si, mas ser fim de alcançar o resultado fiscal do exercício.
a qualificação de um estado que, quando reco- Caso se compreendesse que a dispensa de
nhecido, deflagre consequências previstas em atingimento dos resultados fiscais, com a con-
um determinado regime jurídico8. sequente desnecessidade de contingenciamento,
Na espécie, a expressão calamidade públi- fosse apenas adstrita a determinados períodos
ca, de semântica alargada, abarca não neces- de um ano, o escopo do art. 65 da LRF seria
sariamente catástrofe espacial momentânea fatalmente infirmado, uma vez que a União teria
decorrente de desastres naturais, mas também de fazer supervenientes limitações de empenho
dificuldades das mais diversas ordens, na qual bastante superiores, com o fito de compensar
se enquadra, sem nenhuma dúvida, a pandemia contingenciamentos não realizados, ensejando
em comento9. factualmente o efeito que pretensamente se de-
seja afastar pelo reconhecimento da calamidade
pública, que é o da paralisação do funciona-
8
 Havendo o reconhecimento de calamidade pública, por
exemplo, soa possível a contratação direta por emergência
mento do Estado.
(art. 24, IV, da Lei no 8.666/1993 (BRASIL, [2017])).
9
 Sob a égide da EC no 1/1969 (BRASIL, [1988]), havia
a interpretação de que o enfrentamento de calamidade pú- as endemias rurais e os desastres ‘fim preciso’ do Estado”
blica abarca o combate às “secas e inundações, a luta contra (MIRANDA, 1973, p. 36).

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 55-70 jul./set. 2021 61


2.2  A concessão da Medida Cautelar na Tal preceito configura uma condicionante
ADI no 6.357 para a higidez da constituição do benefício
tributário. Por sua vez, a estimativa de impac-
O reconhecimento da calamidade pública to orçamentário-financeiro tem como escopo
pelo Congresso Nacional outorgou ao Poder aferir o montante de renúncia tributária de-
Executivo federal a flexibilidade de não mais rivada da benesse normativa, de modo a ser
fazer limitações de execução às ações orçamen- recomposta por uma das formas articuladas
tárias já previamente autorizadas pelo Poder acima. No atual contexto, todavia, fica evidente
Legislativo. que a hipótese (i) soaria inaplicável, porquanto
Sem embargo, o art. 65 da LRF, em sua re- inexistia qualquer prognose sobre o contexto
dação original, a despeito de permitir a desne- da Covid-19 quando da elaboração da LOA,
cessidade de cumprimento do resultado fiscal de sorte que a única forma de outorgar um
primário entabulado pela LDO 2020, para fins benefício fiscal seria mediante compensação.
de deslinde da execução orçamentária e finan- Por outro lado, o art. 16 da LRF (BRASIL,
ceira, não autorizava o afastamento de outras [2021c]) estabelece que a criação, expansão ou
regras estruturadas pela própria LRF com o aperfeiçoamento de ação governamental que
objetivo de indicar medidas de compensação acarrete aumento da despesa serão acompanha-
para a construção legal de benefícios tributários dos, entre outros requisitos, de estimativa do
ou subvenções geradoras de despesas públicas. impacto orçamentário-financeiro no exercício
Em face desse contexto, a LC no 173, de em que deva entrar em vigor e nos dois subse-
27/5/2020 (BRASIL, [2021d]), modificou o quentes. Por sua vez, o § 2o do preceito regis-
art. 65 da LRF exatamente para alargar as me- tra que essa estimativa será acompanhada das
didas de cunho orçamentário-financeiro que premissas e metodologia de cálculo utilizadas.
podem ser empregadas no contexto de calami- Essas regras inclusive foram mais incisi-
dade. Por outro lado, a maioria das medidas vas no âmbito da LDO 2020. Seu art. 114 de-
de salvaguarda em face da Covid-19 necessitou termina que qualquer propositura legislativa
ser colocada em prática antes da nova redação que, direta ou indiretamente, gere aumento
do art. 65 da LRF. de despesa da União esteja acompanhada da
Segundo o art. 14 da LRF (BRASIL, [2021c]), estimativa financeira no exercício que vier a
para a concessão ou a ampliação de um bene- entrar em vigor e nos dois seguintes, bem como
fício de caráter tributário, deverá haver esti- indique a correspondente compensação para
mativa do impacto orçamentário-financeiro efeito de adequação orçamentária e financeira.
no exercício em que deva iniciar sua vigência, Outrossim, o § 14 do preceito prevê que as
e nos dois subsequentes será necessário seguir medidas de compensação devem ser implemen-
o disposto na LOA e atender a uma destas con- tadas mediante aumento de receita, proveniente
dições: (i) demonstrar na proposta normativa da elevação de alíquotas, ampliação da base de
que a renúncia tributária foi considerada na cálculo, majoração ou criação de tributo ou
estimativa de receita da LOA e que não afetará as contribuição (BRASIL, [2020c])10.
metas de resultados fiscais da LDO; ou (ii) estar
acompanhada de medidas de compensação, no 10
 Consoante a literalidade do art. 165, § 2o, da CRFB
período objeto da estimativa do impacto orça- (BRASIL, [2021a]), a LDO tem como mister estabelecer
as metas e prioridades da Administração Pública federal,
mentário, por aumento ou criação de tributos. incluindo as despesas de capital para o exercício financei-

62 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 55-70 jul./set. 2021


A prévia necessidade de indicação de medi- “de modo a afastar a exigência de demonstração
das compensatórias para a realização de despe- de adequação e compensação orçamentárias
sas públicas inviabilizaria a estruturação legal em relação à criação/expansão de programas
célere de políticas públicas de enfrentamento públicos destinados ao enfrentamento do con-
das consequências econômicas e sanitárias da texto de calamidade gerado pela disseminação
pandemia, cenário que não seria condizente do Covid-19” (BRASIL, 2020l, p. [9-61]). A
com o contexto da calamidade vivida. proposta da AGU, na espécie, é ponderar a
Coincidentemente, os preceitos em des- literalidade da LRF e da LDO, estruturadora de
taque na LRF foram julgados constitucionais uma rigidez fiscal relevante em um cenário or-
poucos meses antes da emergência da Covid-19, dinário, mas não em um contexto excepcional,
quando, em continuação do julgamento da ADI no qual o desembaraço decisório é imprescin-
no 2.238 (BRASIL, 2020k), proposta em face dível para o enfrentamento da crise. Em linhas
da LRF, dez ministros do Supremo Tribunal gerais, uma clara suspensão da normatização
Federal (STF) declararam a constitucionalidade ordinária de cunho financeiro em face do con-
dos arts. 14, II, 17 e 24 da LRF. texto aqui debatido.
Por outro lado, em cenário de crise e emer- O relator da ADI n o  6.357, ministro
gência excepcional, a aplicabilidade estrita Alexandre de Moraes, deferiu a liminar
desses preceitos poderia inviabilizar a cons-
trução de medidas tendentes a salvaguardar para CONCEDER INTERPRETAÇÃO
valores constitucionais de evidente impor- C ON FOR M E À C ONS T I T U IÇ ÃO
FEDERAL, aos artigos 14, 16, 17 e 24 da
tância, a exemplo da tutela à saúde (art. 6o)
Lei de Responsabilidade Fiscal e 114,
e ao trabalho (arts. 1o, IV, 7o e 193) (BRASIL, caput, in fine e § 14, da Lei de Diretrizes
[2021a]). Diante desse dilema, a Advocacia- Orçamentárias/2020, para, durante a emer-
Geral da União (AGU) propôs ADI, registrada gência em Saúde Pública de importância
nacional e o estado de calamidade pública
sob o no 6.357, pleiteando provimento liminar
decorrente de COVID-19, afastar a exigência
a fim “de conferir interpretação conforme à de demonstração de adequação e compen-
Constituição aos artigos 14, 16, 17 e 24 da Lei sação orçamentárias em relação à criação/
de Responsabilidade Fiscal (LRF), e ao artigo expansão de programas públicos destinados
114, caput, in fine, e § 14, da Lei de Diretrizes ao enfrentamento do contexto de calamidade
gerado pela disseminação de COVID-19
Orçamentárias do ano de 2020 (LDO/2020)”,
(BRASIL, 2020l, p. [9]).

ro subsequente, orientar a elaboração da lei orçamentária


anual, dispor sobre as alterações na legislação tributária e O ministro relator, após acentuar a juridici-
estabelecer a política de aplicação das agências financeiras dade dos preceitos da LRF e da LDO, inclusive
oficiais de fomento, de modo a servir como um parâmetro
de exame de validade da superveniente LOA. Sem embar- destacando as suas respectivas relevâncias no
go, há uma tendência de construção de regras dentro da
LDO à margem desta estrita previsão constitucional, tais
contexto da preservação do equilíbrio fiscal,
como regras sobre pagamento de subvenções ou auxílio, corroborou a excepcionalidade do cenário e
procedimentos de publicidade orçamentária e, inclusive,
metodologia de construções de normas legais materiais defendeu que a ponderação dos dispositivos
geradoras de despesas, a exemplo do preceito em comento. seria necessária para salvaguardar a própria
Sobre a possibilidade de utilização da matéria da LDO
prevista estritamente na Constituição, como parâmetro de competência constitucional de proteção à vida
validade de leis, por intermédio da Teoria das Leis Refor- e à saúde pública. Relevante é este excerto da
çadas, e discussão sobre o alargamento do uso da LDO e
consequentes críticas, ver Oliveira (2017). decisão liminar:

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 55-70 jul./set. 2021 63


O surgimento da pandemia de COVID-19 pensamento de possibilidades não é um fim em
representa uma condição superveniente ab- si, mas uma ferramenta para manter e reestru-
solutamente imprevisível e de consequências
turar a liberdade dos indivíduos, promover o
gravíssimas, que, afetará, drasticamente, a
execução orçamentária anteriormente plane- equilíbrio dos interesses em jogo e conservar a
jada, exigindo atuação urgente, duradoura e Constituição no deslinde temporal, sendo um
coordenada de todas as autoridades federais, meio para incrementar o caráter inovador das
estaduais e municipais em defesa da vida, da
normas jurídicas (HÄBERLE, 2003, p. 52-54)12.
saúde e da própria subsistência econômica
de grande parcela da sociedade brasileira, Todavia, importa que haja conjunção do pensa-
tornando, por óbvio, lógica e juridicamente mento de possibilidades com o pensamento da
impossível o cumprimento de determinados realidade e com o pensamento da necessidade
requisitos legais compatíveis com momentos como elementos de validade e conteúdo das
de normalidade (BRASIL, 2020l, p. [19]).
normas jurídicas – e, principalmente, que tais
pensamentos não estejam fora do horizonte
A relevância do contexto fático como ele- normativo. A propósito:
mento norteador da exegese jurídica é matéria
assaz acentuada na doutrina especializada11. À De entrada, el pensamiento de las
presente discussão importa lembrar que o relator posibilidades, las necesidades y la
realidad no puede ser aplicado de manera
reconheceu que o escorreito cumprimento dos
“independiente” frente la norma jurídica.
requisitos legais em comento é compatível com Se trata de la “valoración” de lo real, de
“momentos de normalidade”, mas não com a las posibilidades y de la incorporación
situação excepcional decorrente da Covid-19. de lo necesario; se trata de una tarea de
delimitación a partir de lo normativo. ¡No
O fundamento da decisão é coerente com a
es que la realidad, las posibilidades y las
lição de Häberle (2003, p. 48) sobre a lógica do necesidades existan sin valoración y sin
pensamento de possibilidades e sua necessária supuestos previos! Sería ilusorio suponer que
correlação com o pensamento da realidade e una “buena” política constitucional podría ser
o pensamento da necessidade. Como acentua la resultante de factores que no contuvieran
ya el “input” normativo que determina el
Mendes (2020), Häberle defende que, num con-
“buen” resultado. Las valoraciones ya
texto democrático, hão de se empreender alter- están en juego, incluso cuando se trata de
nativas para a solvência das querelas advindas diagnosticar empíricamente la realidad, y
no âmbito jurídico. aun tratándose de las posibilidades libres,
“desencadenadas”, frente a toda norma
Häberle argumenta que o pensamento das
(HÄBERLE, 2003, p. 56-57).
possibilidades concebe a delineação de várias
alternativas, induzindo, pois, a uma maior mag-
nitude de conformação jurídica. Essa ampliação Na espécie, o ministro relator da ADI
o
ocorre quanto maior for o rol de institutos funda- n  6.357 empreendeu uma exegese dos dispo-
mentais num cenário constitucional, a exemplo sitivos da LRF e da LDO 2020 com clara valo-
de pluralismo, espaço público ou direitos fun-
damentais e sociais (HÄBERLE, 2003, p. 49). O 12
 Nesse ponto, fica claro que o efeito potencializador
do pensamento de possibilidades não é o de apenas estru-
turar novos preceitos normativos, mas efetivamente o de
11
 Por todos, citam-se Müller (2011) e o próprio Hesse “oxigenar” a exegese jurídica relacionada com específica
(1991), que, a despeito de estruturar em famosa obra a norma jurídica, havendo, assim, bastante sintonia com a
autonomia do Direito Constitucional, não autorizou o me- lição de Chemerinsky (1987, p. 57) de que o significado e
noscabo da realidade. o sentido da Constituição devem evoluir por interpretação.

64 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 55-70 jul./set. 2021


ração da realidade e, em atenção ao processo de denominada regra de ouro, prevista pelo art. 167,
escolha de cenários de possibilidades, entendeu III, da CRFB, a qual estabelece a vedação de se
que a decisão mais consentânea com a solução realizarem operações de créditos que excedam
da espécie seria afastar pontualmente as regras o montante das despesas de capital, ressalvadas
fiscais. as autorizadas mediante créditos suplementares
Essa conduta do ministro Alexandre de ou especiais com finalidade precisa, aprovados
Moraes, além de evidenciar uma interpreta- pelo Poder Legislativo por maioria absoluta
ção constitucional dos preceitos legais já tanto (BRASIL, [2021a]). O enfrentamento da pan-
referidos, objetivou trazer solução a uma crise demia geraria decerto um amplo incremento de
verificada dentro do Direito Financeiro posi- despesas correntes, oriundas principalmente de
tivo: a então inexistência de amparo objetivo- endividamento público, ensejando ainda mais o
-normativo expresso para tratar da construção desequilíbrio cujo preceito tenta evitar. Como
de disposições legais concessivas de benefícios se vê, tal mandamento é constitucional e, por
em âmbito emergencial. Além disso, aspecto isso mesmo, não foi afastado pelas duas medidas
relevante desse provimento jurisdicional é ob- anteriormente tratadas por este artigo.
jetivar a solução de uma querela – de resposta Assim, como houve consenso político em se
não clara e óbvia no ordenamento jurídico, com afastar a avaliação da regra de ouro no presente
base no próprio Direito – com clara preservação exercício, somado à necessidade de modelar uma
da institucionalidade, evitando-se a lembrança maleabilidade orçamentária contextual, adveio
de Loewenstein (1979) de superação de crise a aludida EC. Ela não prevê expressamente a
por via extraconstitucional. alteração de dispositivo do corpo principal da
Finalmente, saliente-se que em 13/5/2020 CRFB; dispõe apenas sobre regras transitórias,
o STF referendou a medida cautelar deferida, modelando um sistema jurídico-orçamentário
mas extinguiu a ação por perda superveniente específico para tratar do cenário.
de objeto, em face da promulgação da EC no 106, Entre as suas regras, encontram-se: (i) a dis-
de 7/5/2020, que instituiu regime extraordiná- pensa de observância do § 1o do art. 169 da CRFB
rio fiscal, financeiro e de contratações para o (autorização prévia em LDO e disponibilidade
enfrentamento de calamidade pública nacional orçamentária) para a contratação por tempo
decorrente de pandemia. determinado a fim de atender à necessidade
temporária de excepcional interesse público,
2.3  A EC no 106/2020 para fins de enfrentamento do contexto da ca-
lamidade e de seus efeitos sociais e econômi-
Como terceiro alicerce da sistemática do cos (art. 2o, caput, da EC); (ii) as proposições
Direito Financeiro da Crise, aponta-se a pro- legislativas e os atos do Poder Executivo com
mulgação da EC no 106/2020, conhecida como propósito exclusivo de enfrentar a calamida-
“Emenda do Orçamento de Guerra”, que es- de e suas consequências sociais e econômicas,
truturou um regime extraordinário fiscal com com vigência e efeitos restritos à sua duração,
o intuito de implementar uma maior flexibili- ficam dispensados da observância das limita-
zação para o combate aos efeitos econômicos e ções legais quanto à criação, à expansão ou ao
sanitários oriundos da Covid-19. aperfeiçoamento de ação governamental que
É evidente que antes mesmo da pandemia acarrete aumento de despesa e à concessão ou à
havia dificuldade de cumprimento pela União da ampliação de incentivo ou benefício de natureza

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tributária da qual decorra renúncia de receita pretação sufragada pelo STF no âmbito daquela
(art. 3o, caput, da EC), constitucionalizando ADI. Ademais, trouxe um preceito expresso em
expressamente o entendimento sufragado pelo convalidar condutas administrativas praticadas
ministro Alexandre de Moraes na ADI no 6.357; antes mesmo da promulgação da EC.
(iii) a dispensa, durante o exercício financeiro
de 2020, da necessidade de cumprimento da
regra de ouro (art. 4o da EC); (iv) os recursos 3  Considerações finais
decorrentes de operações de crédito realizadas
para o refinanciamento da dívida mobiliária, os Sem dúvidas, no primeiro semestre de 2020
quais são legalmente vinculados à amortização confrontaram-se os limites da estrutura jurí-
do principal da dívida pública (art. 29, V, da dico-orçamentária brasileira que motivaram
LRF), poderão ser utilizados também para o soluções dentro da institucionalidade.
pagamento de seus juros e encargos (art. 6o da A proposta de solução de uma crise acaba
EC); e (v) a convalidação dos atos de gestão ensejando a natural ampliação dos poderes da
praticados a partir de 20/3/2020, desde que função executiva de governo (LOEWENSTEIN,
compatíveis com o teor da EC (BRASIL, 2020b). 1979, p. 284-285). Isso foi o que se extraiu do
A tramitação da EC, de iniciativa parla- contexto examinado, em que se ponderou a
mentar, foi bastante expedita no âmbito do função de controle do Congresso Nacional em
Congresso Nacional. O relator da propositura no relação à modelagem orçamentária brasileira,
Senado Federal foi o senador Antonio Anastasia. não se podendo olvidar que o próprio controle
Em seu relatório, houve a explicitação de que a político foi a razão primordial da instituição da
forma adequada de tratamento da matéria no lei orçamentária, mormente sob a concepção
aspecto legístico deveria ser uma normatização do Estado liberal (GIACOMONI, 2012, p. 55).
autônoma, e não uma alteração no corpo prin- A formatação de respostas ao deslinde do
cipal da Constituição, uma vez que, “[e]m uma Direito Financeiro da Crise foi subordinada ao
situação normal, nenhum parlamentar defen- rito da institucionalidade, como se demons-
deria a flexibilização de regras administrativas, trou, o que não deixa de evidenciar uma elevada
fiscais, financeiras e monetárias presentes na maturidade das funções de poder no País, que
Constituição”. Sem embargo, registou o senador não autorizaram um enfrentamento da crise à
que o momento estava sob a égide de uma “si- margem da modelagem constitucional.
tuação excepcional sobre a qual – mesmo não De qualquer forma, a estruturação de me-
tendo sido prevista pela Constituição – temos o canismos jurídico-orçamentários suficientes
dever de dar uma resposta concreta” (BRASIL, para a solução da atual crise evidencia mais
2020j, p. [8-9]). uma vez que a preocupação, no âmbito do
Verifica-se, pois, que mais uma vez o Direito Financeiro, é muito mais conjuntural
background subjacente à propositura foi a que propriamente a formatação de um regime
emergência de uma crise na qual a normati- jurídico-financeiro consentâneo com os obje-
zação jurídica positiva ordinária não bastava tivos originários da Constituição13.
para o seu deslinde. Assim, o poder constituinte Essa ilação pode levantar a discussão sobre
derivado modelou um paradigma normativo a própria necessidade de aprofundamento das
reputado adequado para infirmar a rigidez fiscal-
-orçamentária, procurando consolidar a inter-  Esse processo é bem explicitado em Silveira (2019).
13

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reformas da modelagem jurídico-orçamentária no País, agora com viés
efetivamente estrutural, dado que as recentes modificações operadas pela
LC no 173/2020 na LRF são apenas um primeiro exercício – muito válido,
diga-se – com vistas a esse empreendimento. Nesse sentido, a também
muito oportuna EC no 109, de 15/3/2021 (BRASIL, 2021b), aponta de-
sejáveis elementos estruturais que, em breve, certamente serão objeto de
devida regulamentação.

Sobre os autores
José Levi Mello do Amaral Júnior é doutor pela Universidade de São Paulo (USP), São
Paulo, SP, Brasil; livre-docente da USP, São Paulo, SP, Brasil; professor associado de Direito
Constitucional da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, SP, Brasil.
E-mail: [email protected]
Fabiano de Figueirêdo Araujo é mestre em Direito e Políticas Públicas pelo UniCEUB,
Brasília, DF, Brasil; doutorando em Direito Constitucional no Instituto Brasiliense de Direito
Público (IDP), Brasília, DF, Brasil; professor do programa de graduação em Direito do IDP,
Brasília, DF, Brasil; procurador da Fazenda Nacional, Brasília, DF, Brasil.
E-mail: [email protected]

Como citar este artigo


(ABNT)
AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do; ARAUJO, Fabiano de Figueirêdo. Direito financeiro
da crise: a modulação da legislação orçamentário-financeira para o combate aos efeitos da
Covid-19. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 231, p. 55‑70, jul./set.
2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/231/ril_v58_n231_p55
(APA)
Amaral, J. L. M. do, Jr., & Araujo, F. de F. (2021). Direito financeiro da crise: a modulação
da legislação orçamentário-financeira para o combate aos efeitos da Covid-19. Revista de
Informação Legislativa: RIL, 58(231), 55‑70. Recuperado de https://www12.senado.leg.
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do art. 65 da Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de
calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 55-70 jul./set. 2021 67


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O caso Abaporu e as restrições
à livre circulação de obras de
arte no Direito brasileiro

FRANCISCO ANTÔNIO DE BARROS E SILVA NETO

Resumo:  O ensaio aborda as restrições à circulação internacional de


obras de arte portadoras de referência à ação, à identidade e à memória
dos grupos formadores da sociedade brasileira, com ênfase no Decreto-
lei no 25/1937 e nas Leis nos 4.845/1965 e 5.471/1968, a partir do caso
Abaporu, quadro de Tarsila do Amaral.

Palavras-chave:  Patrimônio cultural. Obras de arte. Circulação inter-


nacional.

The Abaporu case and restrictions on the free movement of


works of art under Brazilian law

Abstract:  The essay addresses the restrictions on the international


circulation of works of art bearing reference to the action, identity and
memory of the groups that form Brazilian society, with emphasis on Laws
25/1937, 4.845/1965 and 5.471/1968, based on the case of the painting
Abaporu, by Tarsila do Amaral.

Keywords:  Cultural heritage. Works of art. International circulation.

1  Introdução: o caso Abaporu

Idos de 1928. Tarsila do Amaral pinta uma pequena tela, de 85 por


73 cm, e oferece-a como presente de aniversário ao marido, o poeta
Oswald de Andrade. A tela tem o fundo azul; na parte superior, um disco
amarelo, de feição solar, com núcleo mais escuro e halo mais claro; uma
Recebido em 16/12/20 estrutura fitomórfica, que remete a um cacto; no primeiro plano, um ser
Aprovado em 6/5/21 humano sentado numa planície, visto sob uma perspectiva em que as suas

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 71-86 jul./set. 2021 71


extremidades (pé e mão) se apresentam com volumes desproporcionais,
dominando a tela. A posição inclinada da cabeça (como se apoiada numa
das mãos), a solução de luz e sombra utilizada na face e a ausência de
lábios conferem-lhe um tom melancólico, que se acentua pela solidão
desértica da paisagem em si.
A paleta de cores – tons de verde, amarelo e azul, como nos símbolos
nacionais – não dista muito das suas obras anteriores, da fase chamada
Pau-Brasil, em que também se podem ver estruturas vegetais e solares
semelhantes. O traço marcante dessa tela, porém, é a distorção da figura
humana, de volumes surreais, aberta a várias interpretações1.
Conforme a narrativa tradicional (AMARAL, 2015, p. 46), após aquele
aniversário, Oswald de Andrade e o escritor Raul Bopp decidiram batizar
a tela com o nome Abaporu, com base na junção de três palavras em tupi,
significando “o homem que come gente”. Em torno dessa ideia, cria-se o
movimento antropofágico, uma vertente do Modernismo, com a fundação
do Clube de Antropofagia e a publicação, por Oswald de Andrade, do
Manifesto Antropófago, metáfora desse processo criativo de “digerir” os
elementos estrangeiros para a formação da arte nacional2.
Nos anos seguintes, Tarsila participa desse projeto com uma sequên-
cia de obras, entre as quais a tela Antropofagia, de maior porte (126 por
142 cm), em que dá continuidade à criação desses elementos humanos
e vegetais, previamente vertidos no Abaporu. Fala-se, então, da fase an-
tropofágica da sua pintura, que se estenderia até a fase social, a partir da
tela Operários, de 19333. Conquanto não tenha participado da Semana
de Arte Moderna de 1922 – por óbvia cronologia –, o Abaporu ficaria
indelevelmente associado ao Modernismo paulista e, diante do histórico
processo de sobreposição desse movimento aos modernismos regionais4,
entronizado como peça-chave do Modernismo brasileiro.
Na sequência dos fatos, a pintora sofre um revés: descobre o envolvi-
mento do marido com a escritora Patrícia Galvão, a Pagu, que os levaria
ao divórcio em 1929. Como relata sua sobrinha-neta (AMARAL, 2015,
p. 72), no processo de separação o escritor devolve-lhe o Abaporu em troca
da obra O enigma de um dia, de Giorgio de Chirico, que hoje se encontra
no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.

1
 Por exemplo, um autorretrato da artista nua ou uma releitura de O pensador, de Rodin,
deslocando-se a ênfase para os membros e as suas extremidades.
2
 “Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única
lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos.
De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi, that is the question”
(ANDRADE, 2017, p. 45).
3
 Há quem fale em uma fase intermediária, a neo-Pau-Brasil, mas os seus limites não
nos parecem muito claros.
4
 Mais amplamente sobre o tema, ver Azevedo (1996).

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Décadas depois, Tarsila vende o Abaporu a o universo da cultura, outros valores lhes são
Pietro Maria Bardi, um dos fundadores do Museu atribuídos nos processos de troca simbólica na
de Arte de São Paulo (Masp), que o repassa ao sociedade7.
colecionador Érico Stickel. Deste, o quadro segue A obra de arte, além dos efeitos produzidos
às mãos do galerista Raul Forbes, com quem per- por suas virtudes estéticas, pode ser lugar de
manece até ser levado em 1995 à casa de leilões memória de um povo; entronizar sentimentos
Christie’s, em que seria arrematado pelo empre- religiosos, na relação entre o humano e o divino;
sário argentino Eduardo Constantini, fundador funcionar como chave de acesso a determina-
do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos do status social; servir como instrumento de
Aires (Malba) (AMARAL, 2015, p. 76). exibição de poder, político, econômico e assim
Desde a arrematação e integração ao acervo por diante8.
do Malba, o Abaporu retornou algumas vezes Fora, portanto, dos domínios econômico
ao Brasil, tendo sido exposto na Pinacoteca do e estético, há uma série de outros valores que
Estado de São Paulo, no Masp e no Palácio do podem ser atribuídos às obras de arte, razão
Planalto. Nessas idas e vindas, não raramente sur- pela qual podemos falar – mais do que de sua
ge a pergunta: por que uma obra tão significativa ambivalência – de sua plurivalência9.
para a cultura brasileira não permaneceu no País? Não por acaso, durante a Revolução Francesa
É a essa pergunta que se pretende responder no assistiu-se à vandalização de monumentos his-
presente ensaio, mediante a análise da legislação tóricos e artísticos que simbolizavam valores e
vigente e de suas deficiências. relações de poder associados ao Antigo Regime,
como na célebre tomada da Bastilha. O mesmo
espírito iconoclasta, que na Reforma Protestante
2  A plurivalência das obras de arte se direcionara às imagens do culto católico, per-
sistiu na supressão de objetos das culturas ameri-
As obras de arte possuem, obviamente, uma canas durante o seu processo de catequização, na
dimensão econômica5 e integram o universo de destruição de imagens de Buda pelo movimento
coisas submetidas ao comércio, inclusive o in-
ternacional. Diante do seu potencial de agregar 7
 Conforme enfatiza Vilanova (2003, p. 284), “a cultura é,
significativos valores econômicos, prestam-se assim, um fato de três dimensões: aos objetos físicos se con-
ferem significações, que partem de sujeitos (seus criadores ou
como instrumentos para a acumulação e a cir- receptores), que entre si, por causa ou consequência dessas
culação de riquezas6. Entretanto, por integrarem significações, estendem uma teia de inter-relações sociais”.
8
 Dessa forma, por exemplo, na Florença de Ferdinando
de’ Médici, “na virada do século XVII, [surgiu] uma lista de
18 pintores célebres cujas obras não podiam ser vendidas
5
 O Abaporu foi arrematado em 1995 por cerca de US$ no exterior” (BENHAMOU, 2016, p. 28).
1,3 milhões, o que representou um recorde para obras bra- 9
 No plano das relações internacionais, essa plurivalência
sileiras. Mais recentemente, em 2019, A Lua, também da dos bens culturais se evidencia na inserção do tema tanto nos
fase antropofágica de Tarsila, foi adquirida pelo Museu de debates realizados no âmbito do GATT (General Agreement
Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) por cerca de US$ on Tariffs and Trade; em português, Acordo Geral de Tarifas
20 milhões, alcançando um novo recorde para a categoria. e Comércio) e do GATS (General Agreement on Trade in
6
 Pelas mesmas razões, prestam-se também à evasão Services; em português, Acordo Geral sobre Comércio e
de divisas e à lavagem de dinheiro, o que justifica a impo- Serviços), ligados à WTO (World Trade Organization; em
sição de algumas obrigações às pessoas físicas e jurídicas português, Organização Mundial do Comércio ou OMC),
que comercializam objetos de arte, como a identificação quanto nas conferências e convenções patrocinadas pela
de seus clientes, o registro e a comunicação de operações Unesco (United Nations Educational, Scientific and Cultural
ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras, entre Organization; em português, Organização das Nações Unidas
outras, nos termos da Lei no 9.613/1998 (BRASIL, [2020]). para a Educação, a Ciência e a Cultura). Sobre o tema, ver
Mais amplamente sobre o tema, ver Sanctis (2015). Amorim (2013).

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Talibã e, numa versão laica e mais recente, na mutilação de estátuas de
personagens associados ao escravagismo e ao colonialismo, em solo
americano, africano e europeu. Esses movimentos têm como denomi-
nador comum o ataque ao suporte físico da obra com a finalidade de
atingir algo que o transcende, algo que lhe foi atribuído nessa teia de
relações humanas e que se pretende vilipendiar ou mesmo suprimir.
Em sentido inverso, a atribuição de valores que transcendem a sua
substância física pode justificar a adoção de mecanismos excepcionais de
proteção às obras de arte, repercutindo em sua circulação internacional.
Historicamente, na experiência colhida a partir da Revolução Francesa,
“o valor nacional é o primeiro, fundamental” (CHOAY, 2001, p. 116), a
justificar esse tratamento conferido excepcionalmente a alguns objetos
de caráter histórico ou artístico.
No contexto de criação e afirmação dos Estados nacionais, o culto a
certa categoria de objetos culturais10 surge como elemento formador da
identidade nacional: integram-se esses objetos a uma narrativa oficial
destinada a reforçar o sentimento de nação, com base na construção
de uma história comum.
Os objetos culturais, em razão dos sentidos que lhes são atribuídos nas
relações sociais, contêm uma dimensão documental11, ou seja, preservam
sua capacidade de linguagem: são objetos que “falam”, que contam algo.
Aproveitando-se dessa característica, que os delimita no confronto com
os objetos naturais, o Estado nacional seleciona os objetos cujo depoi-
mento se ajusta ao discurso oficial – de mártires, heróis e efemérides – e
confere-lhes um regime de preservação e de fruição coletiva.
Mesmo com o declínio das identidades nacionais e o reconhecimento
das diversidades (e de seus conflitos)12, os objetos culturais permanece-
ram como ferramentas utilizadas para a construção de narrativas sociais.
“Se as identidades se fazem mais flexíveis, obviamente os símbolos que
as representam também. […] Mas as identidades coletivas apresentam
também um certo grau de persistência que consequentemente se dá
também no campo dos bens culturais” (ARRIETA URTIZBEREA, 2018,
p. 15, tradução nossa).
Essa plurivalência das obras de arte (como espécies do gênero dos
objetos culturais) representa uma peculiaridade diante de outras mer-
cadorias, submetidas às regras gerais do comércio, o que nos conduz

10
 Tomados pelo gênero, do qual as obras de arte são espécie.
11
 Ver, por exemplo, Riegl (2014).
12
 Como resume Bauman (2013, p. 37), vivemos um “ponto de interrogação no vínculo
incipiente e inquebrantável entre identidade e nacionalidade, o indivíduo e seu lugar de
habitação, sua vizinhança física e sua identidade cultural (ou, de maneira mais simples,
sua proximidade física e cultural)”.

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ao tema das restrições à sua livre circulação no nacional, sem permissão especial do Governo
plano internacional. Federal”, conforme regulamentação a ser feita,
“ouvido o Conselho Superior de Belas Artes”.
Segundo a justificativa apresentada pelo autor,
3  A legislação brasileira: o “o patrimônio artístico retrospectivo não deve
tombamento desaparecer do país, como vem acontecendo,
mormente quando são raros e escassos os ele-
No Brasil, a importação de obras de arte mentos de representação de épocas passadas”
foi objeto de preocupações antes mesmo dos (CAMPOS, 2020, p. 9-10).
debates sobre a sua exportação. Como lembra Outro antecedente significativo remonta ao
Miranda (2012, p. 199), no governo do mare- anteprojeto elaborado em 1925 por Jair Lins,
chal Deodoro da Fonseca, o Decreto no 879, de como relator da comissão designada pelo go-
18/10/1890, isentou de tributos o ingresso de verno de Minas Gerais para tratar do tema,
obras “de artistas nacionais fora do país”. O mes- o qual se mostra mais abrangente que o de
mo regime legal foi aplicado às obras de artistas Augusto de Lima, embora não tenha chega-
estrangeiros, quando “introduzidas no país por do a ser submetido ao Poder Legislativo. O
estabelecimentos de instrução de belas artes, ponto de partida do anteprojeto de Jair Lins
existentes na República”, e, no mais, àquelas consistia na catalogação dos bens “móveis e
que “pudessem servir de modelo e contribuir imóveis […] cuja conservação [pudesse] inte-
para o estudo, progresso e desenvolvimento ressar à coletividade” (art. 1o), ressalvados os
da arte nacional”. bens de estrangeiros e das pessoas jurídicas de
Quanto à restrição à circulação de obras de direito público externo (art. 2o) (SERVIÇO DO
arte, percebe-se certo silêncio nas primeiras PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO
propostas legislativas destinadas à defesa do NACIONAL, 1963, p. 65-68).
patrimônio histórico e artístico nacional. O Uma vez catalogados esses bens, o antepro-
anteprojeto de Alberto Childe, feito em 1920 a jeto atribuía à União ou ao estado (a depender
convite da Sociedade Brasileira de Belas Artes, da iniciativa da catalogação) o direito de pre-
enfatizou apenas a preservação dos bens ar- ferência na sua aquisição (arts. 1o e 3o), condi-
queológicos e paleontológicos (CAMPOS, cionando-se a exportação à prévia notificação
2020, p. 1-4), ao passo que o projeto de lei do ente público, oportunidade em que poderia
apresentado ao Congresso Nacional em 1923 exercer o direito de preferência ou mesmo de-
pelo deputado pernambucano Luiz Cedro se sapropriar o objeto. Autorizava-se também o
ateve ao patrimônio imobiliário (SERVIÇO DO sequestro preventivo do bem (art. 9o), evitando-
PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO -se a tentativa de evasão do território nacional
NACIONAL, 1963, p. 63-64). (SERVIÇO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO
A primeira proposta concreta para obstar a E ARTÍSTICO NACIONAL, 1963, p. 65-68).
evasão de obras de arte do Brasil veio por ini- Um dado relevante nessas iniciativas históri-
ciativa do deputado (e poeta) mineiro Augusto cas relaciona-se ao estado de origem dos autores
de Lima, em 1924, em caráter complementar ao do projeto e do anteprojeto, ambos nascidos em
projeto de Luiz Cedro. Conforme o art. 1o da Minas Gerais, o que denota a particular preo-
proposta, seria “expressamente proibida a saída, cupação com a evasão de artefatos históricos
para o estrangeiro, de obras de arte retrospectiva e artísticos, sobretudo a partir do desmonte de

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capelas, igrejas e outros locais constituídos por (BRASIL, [2015a]), ressalvados os que perten-
influxo barroco. çam às representações diplomáticas e consulares,
A primeira Constituição republicana, po- e outros em poucas situações.
rém, representou um óbice ao andamento dessas Uma vez tombados provisória ou defini-
propostas legislativas13, pois garantia de forma tivamente, os bens móveis não podem sair do
ampla o direito de propriedade (e, assim, a li- País, “senão por curto prazo, sem transferência
vre circulação dos bens), reservando ao Estado de domínio e para fim de intercâmbio cultu-
apenas a prerrogativa da desapropriação, mui- ral, a juízo do Conselho Consultivo do Serviço
tas vezes prejudicada pela respectiva demanda do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”
financeira. (art. 14) (BRASIL, [2015a]). Não obstante a sua
O caminho para a institucionalização de no- vetustez, o Decreto-lei no 25/1937 foi recepciona-
vas formas de atuação do Estado nesse setor foi do quase que integralmente pela Constituição da
aberto pela Constituição de 1934, que restringiu República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB)
o direito de propriedade quando exercido “con- (BRASIL, [2021])15, sendo norma geral aplicável
tra o interesse social ou coletivo” (art. 113, no 17) também aos estados e municípios.
(BRASIL, [1937]), reportando-se expressamente Em tese, o regime legal do tombamento mos-
à proteção ao patrimônio histórico e artístico tra-se adequado para obstar a evasão de obras
do País, concepção mantida pela Carta de 1937. de arte nacionais e estrangeiras consideradas
Na sequência, o governo Vargas editou o significativas para a preservação e a difusão da
Decreto-lei no 25, de 30/11/1937 (BRASIL, memória dos vários grupos integrantes da socie-
[2015a]), ainda em vigor, nitidamente inspi- dade brasileira. Embora o Decreto-lei no 25/1937
rado naquelas propostas anteriores. Como seja conciso, disciplina as tarefas básicas de:
mecanismo central de proteção ao patrimônio 1) localizar os bens culturais; 2) selecionar aque-
histórico e artístico nacional, criou a figura do les que apresentam elevada importância para a
tombamento14, em tudo similar à catalogação cultura brasileira; 3) dar efetiva publicidade a
prevista no anteprojeto de Jair Lins. essa escolha; 4) vedar, em regra, a exportação
O tombamento, ou seja, a inscrição do bem dessas obras; e 5) autorizar, excepcionalmente,
cultural em Livros do Tombo e o regime jurídico a sua saída do território nacional para fins de
daí decorrente, recai sobre os “bens móveis e intercâmbio cultural.
imóveis existentes no país e cuja conservação Considerando que pelo menos desde o ad-
seja de interesse público, quer por sua vincu- vento da CRFB se aplica o princípio da parti-
lação a fatos memoráveis da história do Brasil, cipação popular aos mecanismos de triagem
quer por seu excepcional valor arqueológico ou inerentes à seleção de bens culturais16, haveria
etnográfico, bibliográfico ou artístico” (art. 1o) um filtro suficientemente permeável às neces-

13
 Também houve outras, como o projeto de lei apre- 15
 O art. 216 da CRFB não reproduz expressões como
sentado pelo deputado baiano José Wanderley de Araújo excepcional valor ou fatos memoráveis ao qualificar os bens
Pinho em 1930 (SERVIÇO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO integrantes do patrimônio cultural, referindo-se a eles como
E ARTÍSTICO NACIONAL, 1963, p. 79-88). “portadores de referência à identidade, à ação, à memória
14
 A terminologia representa uma concessão ao ante- dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”
projeto elaborado pelo escritor Mário de Andrade em 1936, (BRASIL, [2021]). Desse modo, hoje, “patrimonializar é
a convite do ministro Gustavo Capanema (SERVIÇO DO selecionar um bem cultural (objetos e práticas) por meio
PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, de atribuição de valor de referência cultural para um grupo
1963, p. 90-106). Desse anteprojeto, porém, pouco foi apro- de identidade” (CHUVA, 2012, p. 73).
veitado na redação do Decreto-lei no 25/1937. 16
 Sobre o tema, ver Miranda (2006, p. 39).

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sidades dos vários grupos sociais a permitir a proteção aos bens imóveis, em detrimento dos
livre circulação internacional dos objetos não móveis, coaduna-se “com a tradição que remonta
tombados, ou seja, do restante desse universo ao Direito Romano de que os ‘bens de raiz’ são
de artefatos e obras de arte. mais importantes”.
Entretanto – parafraseando-se Fernando Outra conjectura gira em torno da própria
Pessoa, em verso musicado por Chico Buarque –, seleção e formação do quadro de pessoal dos
a história do instituto demonstra uma grande órgãos ligados à proteção do patrimônio his-
“distância entre intenção e gesto”: há enorme tórico e artístico nacional. Conforme Chuva
descompasso entre a previsão legal do art. 14 (2017, p. 209), “os anos iniciais de consolidação
do Decreto-lei no 25/1937 e o efetivo óbice à do SPHAN [(Serviço do Patrimônio Histórico
circulação não autorizada de obras de arte sig- e Artístico Nacional)] foram também funda-
nificativas para o País. mentais para o reconhecimento ou mesmo
O enviesamento dos filtros adotados pelos para a naturalização da ideia de que seriam os
órgãos de proteção contribuiu para o enfra- arquitetos os profissionais mais ‘adequados’ ao
quecimento desse mecanismo de controle, de trabalho de seleção de bens para tombamento”.
que resultou uma ínfima gama de bens móveis Inclusive, um dos grandes responsáveis pela
sujeitos ao regime protetivo do tombamento. definição dos marcos teóricos aplicáveis ao pro-
Conforme se pode observar da listagem dos cesso de tombamento foi o arquiteto Lúcio Costa,
bens tombados em nível nacional17, a grande por muitos anos diretor da Divisão de Estudos
maioria dos processos de qualificação foi aberta e Tombamentos da Diretoria do Patrimônio
para a tutela do patrimônio imobiliário, inclusive Histórico e Artístico Nacional (Dphan)18. Como
aqueles em que, ao final, por uma razão ou outra “Narciso acha feio o que não é espelho”, a própria
qualquer, o tombamento não foi aprovado. formação profissional do grupo pode ter contri-
Várias hipóteses podem ser levantadas para buído para o enviesamento de seus processos de
explicar as causas desse fenômeno. Fenelon escolha, deslocando o foco dos trabalhos para a
(1992, p. 30) sugere a possibilidade de um viés defesa do patrimônio arquitetônico, edificado.
político, de modo a se enfatizarem simbolica- Outra hipótese plausível é a da intuitiva cria-
mente as sedes de poder: “a predominância do ção de uma ordem de prioridades para fins de
patrimônio edificado é avassaladora: igrejas, atuação daqueles órgãos de proteção. Uma vez
capelas, quartéis, fortes, cadeias, palácios, casas que o patrimônio imobiliário estava diretamente
de câmara, imponentes casarões”; assim, teriam ameaçado pelo processo de urbanização com a
sido “consagrados e definidos os elementos sim- abertura de ruas, a construção de estacionamen-
bólicos dignos de preservação e de integrarem tos e de edifícios de elevado gabarito, além de
este patrimônio – as sedes do poder político, outros marcos da modernidade – o que ensejou
religioso, militar, da classe dominante com seus o tombamento in extremis de vários imóveis
feitos e modos de vida”. sob o risco iminente de demolição –, os bens
Dantas (2010, p. 151), por outro lado, su- móveis em geral como pinturas, gravuras, escul-
gere que a primazia atribuída pelos órgãos de turas, mobiliário etc. poderiam ser integrados
diretamente ao acervo de instituições museo-

17
 Ver Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan) (2015) para a relação dos bens tombados 18
 Sobre a influência de Lúcio Costa na definição das
pelo Iphan desde a criação do serviço. diretrizes do tombamento em nível federal, ver Pessôa (2004).

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lógicas, gozando de (alguma) proteção contra restringir a circulação internacional de objetos
a destruição imediata, independentemente de históricos e artísticos relevantes para o Brasil:
seu tombamento. as Leis nos 4.845/1965 e 5.471/1968.
Registre-se que o tombamento das edifica- A primeira delas proíbe a saída “de quaisquer
ções implicou acessoriamente o tombamento obras de artes e ofícios tradicionais, produzi-
dos chamados bens integrados, assim entendidos das no Brasil até o fim do período monárquico,
aqueles aplicados à estrutura física do imóvel abrangendo não só pinturas, desenhos, escultu-
(painéis, esquadrias, talhas etc.), além de, por ras, gravuras e elementos de arquitetura, como
vezes, outros bens móveis que se encontravam também obra de talha, imaginária, ourivesa-
vinculados ao seu uso tradicional (por exemplo, ria, mobiliário e outras modalidades” (art. 1o)
imagens, alfaias, turíbulos e objetos semelhantes (BRASIL, 1965).
nas igrejas), mesmo que nem sempre inventa- A vedação foi estendida às “obras da mesma
riados19. Essa possibilidade, porém, não trouxe espécie oriundas de Portugal e incorporadas ao
qualquer proteção aos objetos previamente des- meio nacional durante os regimes colonial e
tacados do patrimônio imobiliário, nem obvia- imperial” (art. 2o) e às “obras de pintura, escul-
mente aos que nunca guardaram referência ao tura e artes gráficas que, embora produzidas no
seu acervo. Com a ressalva desses bens móveis estrangeiro no decurso do período mencionado
e integrados, em dezenas de anos de atuação do nos artigos antecedentes, representem personali-
Iphan (e dos órgãos que o antecederam), foram dades brasileiras ou relacionadas com a História
tombados em nível nacional apenas os acervos do Brasil, bem como paisagens e costumes do
de algumas instituições e outros (poucos) ob- País” (art. 3o) (BRASIL, 1965).
jetos esparsos. A saída desses objetos apenas se permite
Em síntese, o tombamento, como prática “para fins de intercâmbio cultural”, de modo
administrativa, cobriu apenas pequena parte a participarem de “exposições temporárias”,
do universo de obras de arte que, diante de sua mediante autorização do órgão competente e
relevância para a cultura nacional, são dignas fixação do prazo máximo para retorno (art. 4o)
da proteção do Estado. (BRASIL, 1965)21. À semelhança do anteprojeto
de Jair Lins, autorizou-se, em caso de tentativa
de evasão, o sequestro das obras e a sua reversão
4  A legislação brasileira: as Leis “em proveito dos respectivos museus” (art. 5o)
nos 4.845/1965 e 5.471/1968 (BRASIL, 1965)22. Diante da possibilidade de

Nos anos seguintes ao Golpe de 1964, o tema 21


 A Portaria no 262/1992 do então Instituto Brasileiro do
Patrimônio Cultural ([1994]) regulamentou o dispositivo e
voltou ao cenário jurídico nacional20 com a edi- fixou o prazo máximo de seis meses para o retorno do bem
ção de dois diplomas normativos destinados a cultural ao Brasil, salvo quanto às exposições itinerantes, nas
quais o limite foi elevado para dois anos. Previu também a
necessidade de avaliação das obras, de apólice de seguro “pa-
19
 Sobre o conceito de bens móveis e integrados, ver rede a parede” e de acompanhamento por técnico habilitado.
Costa (1987, p. 146). 22
 Observe-se que o sequestro não se confunde com a
20
 O art. 20 da Lei no 3.924/1961 vedou a transferên- medida preventiva prevista no art. 676, I, do Código Nacional
cia ao exterior, sem autorização da Dphan, de objetos que de Processo de 1939, então em vigor, nem com a cautelar
apresentassem “interesse arqueológico ou pré-histórico, regulada pelos arts. 822 a 826 do Código de Processo Civil
numismático ou artístico” (BRASIL, 1961). Entretanto, de 1973, embora utilizem a mesma terminologia. Cuida-se
como a Lei se destinava a dispor sobre os “monumentos de providência administrativa, no âmbito do poder de polícia
arqueológicos e pré-históricos”, tal vedação não se aplicava dos órgãos de controle, de modo a dispensar a atuação do
às obras de arte em geral, mas apenas àqueles gêneros. Poder Judiciário.

78 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 71-86 jul./set. 2021


dúvidas sobre a classificação dos bens, previu-se no 4.845/1965 não arrolou itens das chamadas
que “a respectiva autenticação será feita por artes menores, como o vestuário, a tapeçaria e
peritos designados pelas chefias dos serviços a produção de objetos cotidianos, inclusive os
competentes da União, ou dos Estados se fal- dotados de funções decorativas (copos, pratos,
tarem no local da ocorrência representantes talheres etc.), o que pode gerar ruídos na sua
dos serviços federais” (art. 6o) (BRASIL, 1965). aplicação.
O segundo diploma normativo proíbe especi- De modo ainda mais grave, o dispositivo
ficamente “a exportação de bibliotecas e acervos legal não impôs restrições à exportação de obras
documentais constituídos de obras brasileiras ou de arte “não erudita”, como o acervo dos mes-
sobre o Brasil, editadas nos séculos XVI a XIX” tres populares, incidindo em eloquente silêncio,
(art. 1o), estendendo-se a vedação às “coleções também, sobre objetos que não se inserem na
de periódicos que já tenham mais de dez anos tradição europeia, como os referentes às culturas
de publicados, bem como quaisquer originais e de matriz indígena e africana, cujas caracterís-
cópias antigas de partituras musicais” (BRASIL, ticas podem não se ajustar adequadamente à
1968). previsão legal.
Confrontando-se esses diplomas legais com Além da escolha das tipologias submetidas
o Decreto-lei no 25/1937, percebe-se que ado- à restrição, outra chave de leitura problemática
taram técnica distinta: dispensaram o procedi- desses diplomas consiste em delimitar a prote-
mento prévio de qualificação dos bens, baseado ção segundo a data de produção dos objetos. A
na análise de sua relevância, fazendo incidir a proibição de circulação abrange apenas os fabri-
proibição de exportação sobre gêneros de ob- cados até a Proclamação da República (1889),
jetos, identificados com base na sua tipologia, no caso da Lei no 4.845/1965, e os editados até
data e local de produção. Essa técnica torna o final do século XIX (1900), segundo a Lei
prescindível a inscrição dos bens em cadastros no 5.471/196823.
públicos ou qualquer outro tipo de prévio re- À semelhança do projeto de Augusto de
gistro. Embora à primeira vista, justamente por Lima, que se dedicava à “arte retrospectiva
sua maior abrangência, a solução se mostre po- nacional”, entendida como “representação de
tencialmente mais eficaz que a sistemática do épocas passadas”, predominou nesses diplomas
tombamento, na delimitação dos gêneros sub- o valor de antiguidade, que não se confunde
metidos à restrição está o calcanhar de aquiles necessariamente com o valor cultural, apto a
da redação desses diplomas. justificar o regime protetivo.
Quanto à Lei no 5.471/1968, não está claro se A adoção de uma idade mínima para a pro-
a vedação se reporta apenas aos bens tomados teção legal, quando não se encontra associada
como universais (bibliotecas, acervos, coleções) a outros critérios de seleção, presta-se a graves
ou também aos livros e periódicos individual- inconvenientes. De um lado, nem todo objeto
mente considerados, sendo certo que a evasão “antigo” se mostra necessariamente digno de
de volumes importantes para a História nacional regime diferenciado de tratamento. Diante das
deve ser proibida de per si, independentemente peculiaridades da sua produção e do seu uso, é
de sua pertinência a determinado acervo.
Embora se utilize da cláusula “e outras
modalidades” ao se referir a “obras de artes e
23
 Ressalvadas as coleções de periódicos com mais de
“dez anos de publicados” e os “originais e cópias antigas de
ofícios tradicionais”, a tipologia descrita na Lei partituras musicais”, conforme dantes mencionado.

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possível, em abstrato, que tenham sobrevivido fins lucrativos, de natureza pública ou privada
quantidades relevantes de objetos dotados de (art. 1o),
características semelhantes, o que recomenda
a incidência da técnica da exemplaridade (ou que conservam, investigam, comunicam, in-
seja, estender-se a proteção apenas a algumas terpretam e expõem, para fins de preservação,
estudo, pesquisa, educação, contemplação e
amostras do respectivo grupo).
turismo, conjuntos e coleções de valor históri-
De outro lado, produzindo consequências co, artístico, científico, técnico ou de qualquer
ainda mais gravosas, a adoção isolada da idade outra natureza cultural, abertas ao público,
mínima nega proteção às peças recentes, sem a serviço da sociedade e de seu desenvolvi-
mento (BRASIL, [2015b]).
qualquer consideração sobre as trocas simbólicas
de que participam, como se o valor histórico
ou artístico pudesse habitar apenas no passado No que interessa ao tema deste ensaio, os
distante. Não há dúvidas de que a atribuição de bens culturais integrados aos museus podem ser
valores e sentidos às obras de arte é fruto de um “declarados como de interesse público, no todo
processo social, que demanda tempo e não se ou em parte”, quando sua “proteção e valoriza-
faz de imediato24. Entretanto, qualquer intervalo ção, pesquisa e acesso à sociedade representar
temporal previamente estabelecido como con- um valor cultural de destacada importância
dicionante dessa atribuição mostra-se artificial. para a Nação, respeitada a diversidade cultural,
Registre-se o caso paradigmático de Brasília, regional, étnica e linguística do País” (art. 5o,
erigida a Patrimônio Cultural da Humanidade § 3o) (BRASIL, [2015b]).
quando a sua fundação ainda não havia sequer A Lei não estabeleceu o regime jurídico
completado trinta anos. Não fosse o tombamento desses bens de interesse público, o que foi feito
do seu conjunto urbano e dos bens integrados apenas quando da regulamentação pelo Decreto
às suas edificações monumentais, seria lícita, no 8.124, de 2013. Em síntese, cabe ao proprietá-
por exemplo, a exportação das esculturas de rio: 1) adotar medidas de proteção e preservação
Alfredo Ceschiatti ou dos vitrais de Marianne do bem, comunicando ao Instituto Brasileiro
Perreti, uma vez que produzidos em data recente, de Museus (Ibram) possíveis dificuldades de
segundo os parâmetros estabelecidos pela Lei ordem econômica ou material; 2) informar
no 4.845/1965. anualmente ao Ibram sobre o seu estado de
conservação; 3) informar de imediato os casos
de danos, furto, extravio, entre outros sinistros;
5  A legislação brasileira: o Estatuto 4) solicitar prévia anuência ao Ibram antes de
dos Museus intervir no bem; 5) assegurar ao Ibram direito
de preferência em caso de alienação onerosa
Mais recentemente foi aprovada a Lei do bem; 6) não proceder “à saída permanente
no 11.904/2009, que instituiu o Estatuto dos do bem do país, exceto por curto período, para
Museus, assim entendidas as instituições sem fins de intercâmbio cultural”, salvo mediante
prévia autorização do Conselho Consultivo do
Patrimônio Museológico ou, em caso de alie-
24
 Não se olvide, porém, que o serviço do patrimônio his-
tórico já opinou favoravelmente ao tombamento “preventivo” nação, “comprovada a observância do direito
de edificações ainda não concluídas, como no caso da Igreja de preferência do Ibram” (art. 40, VI) (BRASIL,
de São Francisco da Pampulha, em Belo Horizonte/MG,
e da Catedral de Brasília/DF (PESSÔA, 2004, p. 67-212). 2013).

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Percebe-se um nítido paralelo entre o regime instituído para esses
bens, integrantes do acervo de instituições museológicas e declarados
de interesse público, e o previsto para os bens tombados, na forma do
Decreto-lei no 25/1937. Entretanto, aos primeiros foi permitida a “saída
permanente do país” (leia-se: em caráter não transitório nem eventual)
quando forem alienados e o Ibram não exercer oportunamente o seu di-
reito de preferência. Trata-se, portanto, de uma restrição menos rigorosa
no que diz respeito à circulação internacional dessas peças.
De um modo ou de outro, é de se criticar a instituição desse regime
jurídico mediante decreto regulamentar, quando a matéria se submete à
reserva legal, nos termos do art. 5o, II, da CRFB. Considerando que a Lei
no 11.904/2009 não trouxe qualquer restrição à livre circulação das peças
integrantes dos acervos museológicos, a norma regulamentar tende a ser
alvo de controle jurisdicional, o que pode resultar em sua inépcia para
atingir a finalidade proposta.

6  A legislação brasileira: últimas considerações

O tema da restrição à evasão de obras de arte significativas para a me-


mória nacional não finda com o exame da estrutura do Direito brasileiro,
sendo necessário refletir sobre o cenário de aplicação dessas normas.
Como visto, duas categorias são protegidas pela lei: as obras tombadas
pelo Poder Público (ou declaradas de interesse público, se admitida a va-
lidade do Decreto no 8.124/2013) e as inseridas nos gêneros delimitados
pelas Leis nos 4.845/1965 e 5.471/1968. A eficácia desses comandos legais
está condicionada a pelo menos dois fatores: 1) a existência de controle
em todos os níveis de acesso ao território extramuros, inclusive pela via
postal; e 2) a disponibilidade dos recursos humanos e materiais neces-
sários à identificação e ao sequestro das obras sujeitas à permanência
obrigatória no território nacional.
É hora, enfim, do lasciate ogni speranza. Qualquer um que tenha
passado pela Tríplice Fronteira, entre o Brasil, Paraguai e Argentina, sabe
que o controle é praticamente inoperante. Pessoas entram e saem a pé
do território nacional sem qualquer tipo de abordagem, normalmente
limitada à movimentação de cargas ou de grupos. Um livro antigo, uma
pequena escultura, várias telas sem a respectiva moldura, tudo isso pode
circular livremente, digamos assim, naquele espaço fronteiriço.
Mesmo nos portos e aeroportos, onde se presume que o controle é
exercido com maior rigor, o cenário é preocupante. Não existe no Brasil
um inventário completo dos bens móveis sujeitos ao tombamento, inclusive
no nível federal. A par das mudanças na forma de catalogação dos bens,

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 71-86 jul./set. 2021 81


da década de 1930 ao presente, e dos esforços dos setores administrativos
competentes, a inscrição nos Livros do Tombo muitas vezes se deu com o
mero registro da universalidade (acervo de determinada instituição, por
exemplo) ou da edificação (ainda que no escopo de abranger acessoria-
mente os seus bens integrados), sem a indicação individual de cada objeto
digno de proteção. Quando se recorda que o tombamento também pode
resultar da atividade de cada um dos estados e municípios, a insuficiência
de registros avulta-se.
Um adequado sistema de controle pressupõe o acesso imediato e
remoto, pela autoridade competente, ao cadastro eletrônico de todos os
bens sujeitos à permanência obrigatória em território brasileiro, com
registro fotográfico e descrição de suas características25, auxiliado por
ferramentas capazes de detectar similaridades e divergências com o ob-
jeto que se pretende deslocar para fora do território nacional. Sistemas
similares existem em outros países, mas não há no Brasil algo equivalente.
Quanto à aplicação da Lei no 4.845/1965, os problemas não são me-
nores. Parte expressiva dos objetos indicados não costuma mencionar a
data de produção. Isso vale para as pinturas e esculturas antigas, imagens
religiosas, itens de ourivesaria, talha, mobiliário etc. Como dificilmente
se encontrará o registro de data em algum desses objetos, ou o agente
responsável pelo controle recebe treinamento adequado para identificar
características que associem a peça ao período colonial ou imperial (fabri-
cante, detalhes do acabamento, material empregado etc.), ou se confiará
apenas na pátina, na aparência de antiguidade que o objeto vier a despertar
em seus sentidos. Sem isso, não há sequer o sentimento de dúvida, que
pode justificar o envio da peça ao quadro de peritos (se houver).
Fatos recentes demonstram que o treinamento desses agentes está
longe do adequado. Tatiana Alves Torres, então chefe do Departamento de
Repressão aos Crimes contra o Meio Ambiente e o Patrimônio Histórico,
da Polícia Federal, narra o resultado de um teste aplicado junto aos
agentes de proteção da aviação civil treinados pela Empresa Brasileira de
Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) e supervisionados pela Polícia
Federal:

chegamos ao aeroporto com o professor Luiz Souza, da Escola de Belas-


Artes da UFMG, e alguns colegas da computação, juntamente com técnicos
do IPHAN. O professor Luiz Souza levava uma maleta com alguns objetos e
uma imagem. Passamos pelo aparelho de raios X e perguntamos à mocinha
que estava na inspeção, o que ela via. Ela afirmou: “um broche!” Essa foi,

25
 Nesse sentido, “jamais se enfatizará o suficiente a importância e a utilidade de se
estabelecer uma documentação completa e detalhada dos objetos que se consideram bens
culturais. A existência desse tipo de documentação se relaciona diretamente com o êxito na
proteção dos bens culturais de um país” (ASKERUD; CLÉMENT, 1999, p. 37, tradução nossa).

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portanto, a percepção. Agora, imagine uma pessoa que passa com uma
mala cheia, é tranquilo demais (TORRES, 2012, p. 108).

Enfim, ainda que se conclua pela irregularidade de sua saída do terri-


tório nacional e se possam acionar os mecanismos jurídicos para a busca,
apreensão e devolução, após a evasão da obra de arte não há qualquer
garantia do seu retorno26.

7 Conclusões

O Abaporu habitou um limbo, formado pelo espaço além dos limites


dos diplomas legais e das práticas administrativas de restrição à circulação
internacional de obras de arte: não era suficientemente antigo para ser
amparado pelas leis da década de 1960, nem despertou a atenção dos
órgãos encarregados do tombamento de bens culturais, quer no nível
federal, quer nos níveis estadual e municipal. Assim como ele, outras
obras significativas para a identidade das várias culturas brasileiras que
hoje integram acervos e coleções particulares podem ser alienadas e
livremente remetidas ao exterior.
A legislação brasileira parou no tempo, como se tivesse sido, ela mesma,
alvo de tombamento e pretendesse, assim, tornar-se imune ao passar dos
anos. As práticas administrativas também não foram além, bem como as
estratégias de controle e os cenários de aplicação das normas em vigor.
O caso nos lembra aquele pássaro fantástico, o Goofus Bird, descrito
por Borges (2008, p. 100), que “constrói seu ninho ao inverso” e “voa
para trás”, porque não se importa em saber para onde vai, mas apenas
onde esteve.

Sobre o autor
Francisco Antônio de Barros e Silva Neto é doutor e mestre em Direito pela Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE, Brasil; professor associado dos programas de
graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado) da Faculdade de Direito do Recife da
UFPE, Recife, PE, Brasil; juiz federal, Recife, PE, Brasil.
E-mail: [email protected]

26
 É possível que, de mão em mão, o ordenamento jurídico do seu endereço atual
atribua primazia à defesa dos interesses do adquirente de boa-fé, negando a apreensão e a
devolução da obra de arte. Nesse sentido, ver Ody (2018, p. 223).

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Como citar este artigo
(ABNT)
SILVA NETO, Francisco Antônio de Barros e. O caso Abaporu e as restrições à livre circulação
de obras de arte no Direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF,
v. 58, n. 231, p. 71‑86, jul./set. 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/
edicoes/58/231/ril_v58_n231_p71
(APA)
Silva, F. A. de B. e, Neto (2021). O caso Abaporu e as restrições à livre circulação de obras
de arte no Direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa: RIL, 58(231), 71‑86.
Recuperado de https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/231/ril_v58_n231_p71

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86 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 71-86 jul./set. 2021


Mobilizando a agenda dos direitos
coletivos, assegurando espaço
institucional
Ministério Público e Defensoria Pública na
transição democrática

FLÁVIA DANIELLE SANTIAGO LIMA


BRUNO LAMENHA

Resumo:  Como a tutela coletiva se converteu numa plataforma para o


fortalecimento institucional na transição institucional à democracia no
Brasil? O presente artigo aborda a reformatação do Ministério Público e a
criação da Defensoria Pública como frutos da mobilização na Assembleia
Nacional Constituinte entre 1987 e 1988, considerada a proteção dos
direitos transindividuais, com repercussões na ordem jurídica subse-
quente. Para tal fim, a pesquisa adota o método dedutivo: com base na
teoria neoinstitucional, elege o institucionalismo histórico como marco
teórico para a abordagem proposta. Como resultado, verificou-se uma
trajetória comum partilhada entre as instituições a partir do longo pro-
cesso de liberalização do regime civil-militar (1964-1985) e consolidação
constitucional, em que a Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988 se tornou ponto de chegada para o Ministério Público e de par-
tida para as pretensões da Defensoria Pública, com o estabelecimento
de competições em relação à titularidade da tutela coletiva.

Palavras-chave:  Ministério Público. Defensoria Pública. Tutela coletiva.


Transição democrática. Institucionalismo histórico.

Mobilizing the collective rights agenda, assuring


institutional space: the Public Prosecutor’s Office and the
Public Defender’s Office in the democratic transition

Abstract:  How the protection of collective rights (collective redress)


became an agenda for institutional strengthening in the transition to
Recebido em 9/12/20 democracy in Brazil? This article addresses the normative reorganization
Aprovado em 21/3/21 of the Public Prosecutor’s Office and the creation of the Public Defender’s

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 87-108 jul./set. 2021 87


Office, as a result of the mobilization in the 1987-1988 National
Constituent Assembly, considered the protection of collective rights,
with repercussions in the coming legal order. In order to this goal, the
research adopts the deductive method, starting from the neoinstitutional
theory, choosing historical institutionalism as a theoretical framework for
the proposed approach. As a result, there was a common trajectory shared
between the institutions, based on the long process of liberalization of the
civic-military regime from 1964-1985 and constitutional consolidation,
in which 1988 Constitution proved to be the point of arrival for current
normative configuration of the Public Prosecutor’s Office and the point
of departure for the claims of the Public Defender’s Office, with the
development of competitions between these institutions regarding the
legal standing and the responsibility to act in collective redress themes.

Keywords:  Public Prosecutor’s Office. Public Defender’s Office. Collective


redress. Democratic transition. Historical institutionalism.

1  Introdução: o sistema de Justiça na nova


ordem constitucional

O fortalecimento das instituições judiciais foi uma agenda comum


aos países inseridos na chamada terceira onda de democratização1 dos
anos 1970 e 1980, em especial na América Latina (TATE; VALLINDER,
1995; VERONESE, 2009). A aposta na forma jurídica e nas instituições
judiciais esteve associada, entre outros aspectos, à busca de um locus de
estabilização da vida pública e de garantia de segurança e perenidade
às relações econômicas após décadas de tensões políticas e sucessivos
golpes militares. Tomando-se em conta sua expertise, a atribuição de
maior poder de intervenção pública a juristas não eleitos teria o condão
de controlar os riscos de eventuais arbitrariedades por meio de balizas
objetivas e técnicas (KOERNER, 2018, p. 307).
Esse ideário encontrou terreno fértil em certas especificidades da
formação do Estado e da cultura político-burocrática brasileira, carac-
terizadas pela associação histórica entre elites políticas, elites jurídicas
e funcionalismo público (CARVALHO, 2010, p. 95-117), que permitem
discutir uma “república dos bacharéis” (DA ROS; INGRAM, 2019, p. 339).

1
 Expressão cunhada por Huntington (1994) e amplamente difundida no estudo da
transição e consolidação democrática nas últimas décadas.

88 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 87-108 jul./set. 2021


Apesar de seu caráter paradigmático em relação às Cartas precedentes,
a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB) não
deixa de constituir expressão de um certo “arquétipo da conciliação”,
característico de todos os processos transicionais brasileiros (PINHEIRO,
2001, p. 264). Nesse aspecto particular, à semelhança do que ocorrera no
âmbito dos poderes tanto políticos (em sentido estrito) quanto militares,
os atores do sistema de Justiça, mesmo aqueles dos órgãos de cúpula,
como o Supremo Tribunal Federal (STF), mantiveram na democracia
as posições ocupadas no período ditatorial, sem qualquer descontinui-
dade ou questionamentos pelo envolvimento com o regime de exceção.
Essa ambiência específica de transição democrática e de fortalecimen-
to do sistema de Justiça como projeto de estabilização político-econômica
permeou um processo de reacomodação das elites jurídicas pré-1988
que culminou – como resultado das atividades da Assembleia Nacional
Constituinte (ANC) entre 1987 e 1988 – não só na reconfiguração do
Poder Judiciário e do Ministério Público mas também na criação da
Defensoria Pública e da Advocacia-Geral da União, além da garantia
de espaço privilegiado à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), entre
outras instituições da sociedade civil.
No plano material, a CRFB inovou ao garantir expressamente os
direitos transindividuais. No âmbito institucional, promoveu uma trans-
formação do perfil do Ministério Público, atribuindo-lhe a tutela judicial
e extrajudicial dos direitos de natureza coletiva, mas também constitucio-
nalizou a Defensoria Pública como função essencial à Justiça, cujo papel
é promover a orientação jurídica e a defesa judicial dos necessitados,
assegurando-lhes as condições materiais de acesso ao sistema de Justiça.
Nesse contexto, a presente pesquisa tem como objeto a identificação
dos aspectos institucionais e elitários que podem oferecer explicações
para a aposta, pelo Constituinte de 1987-1988, no papel das instituições
do sistema de Justiça, em particular o Ministério Público e a Defensoria
Pública, para implementar o robusto catálogo de direitos fundamentais
previstos na CRFB, em especial os direitos difusos, coletivos e indivi-
duais homogêneos2, posteriormente agregados sob a expressão tutela
coletiva (sic).

2
 Apesar de existir significativa discussão na literatura especializada a respeito, é sufi-
ciente para os propósitos deste texto diferenciar direitos difusos, direitos coletivos e direitos
individuais homogêneos no marco do art. 81, parágrafo único, do Código de Defesa do
Consumidor. Assim: (i) direitos difusos são direitos transindividuais, “de natureza indivi-
sível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”;
(ii) direitos coletivos são direitos “de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria
ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base”;
e (iii) direitos individuais homogêneos são direitos individuais equiparados à condição de
direitos transindividuais em razão da “origem comum” que conecta todos os seus titulares
(BRASIL, [2017]).

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A pesquisa emprega o método dedutivo, consequências não intencionais nos processos de
adotando como marco teórico a abordagem desenvolvimento institucional; e (iv) associação
neoinstitucionalista, que oferece uma perspec- entre análise institucional e outros fatores que
tiva geral sobre as implicações entre ordem, podem gerar resultados políticos.
continuidade e mudança política, assumindo Com base nesses elementos, seria possível
que as transformações são um elemento presente construir explicações históricas fundadas em
nas instituições e que os arranjos repercutem no métodos de análise qualitativa e abordagens
surgimento, na reprodução e na transformação interpretativas dos fatos, empregando fon-
institucional (MARCH; OLSEN, 2006, p. 11). tes secundárias, como documentos e jornais
Nesse sentido, regras, normas e identidades são (ROWLINSON; HASSARD, 2013, p. 113). Desse
não apenas instrumentos de estabilidade como modo, a presente pesquisa é bibliográfica, com
também constituem as arenas de mudança3. amparo na revisão de literatura produzida no
A análise da consolidação do Ministério Direito e na Ciência Política sobre o tema.
Público e da criação da Defensoria Pública na Documentos (legislação, atas e discursos) tam-
transição à democracia representada pela ANC bém servirão como base da investigação, sobre-
ampara-se na compreensão de que as instituições tudo os referentes aos trâmites da ANC, em sua
representam um legado dos processos históricos, Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério
em que elementos como timing e temporalidade Público, de modo a visualizar a mobilização
dos processos políticos são importantes, como dos grupos durante os trabalhos constituintes.
sugere a abordagem do institucionalismo histó- Assim, o texto inicia-se com a descrição
rico (THELEN, 1999, p. 382). Adotar esse marco do processo de construção institucional do
teórico implica também a avaliação desse proces- Ministério Público em 1988, situando a tutela
so de reconformação normativa como processo coletiva como o elemento principal para com-
político, considerando-se os seguintes elementos preender a reengenharia de atribuições e prer-
do institucionalismo histórico, na caracterização rogativas confiadas ao órgão. Posteriormente,
de Hall e Taylor (1996, p. 938): (i) conceitua- aborda as dificuldades de viabilização da agenda
ção mais ampla das relações entre instituições e dos defensores públicos para a constitucionaliza-
comportamentos individuais; (ii) atenção às as- ção da Defensoria Pública. Ao final, pretende-se
simetrias de poder associadas ao funcionamento articular os elementos que permitiram a recon-
e desenvolvimento das instituições; (iii) ênfase formação dessas duas instituições e eventuais
nas noções de path dependence (trajetórias) e nas desdobramentos dessa interação na trajetória
ulterior à promulgação do texto constitucional.
A hipótese geral é que a reformatação dessas
3
 Embora seja possível identificar metodologias e estraté- instituições reflete a mobilização, pelas elites
gias de explicação compartilhadas entre os diversos enfoques
analíticos para a observação das instituições (THELEN, 1999, jurídicas, de importantes elementos da agenda
p. 370-371), fala-se de três correntes ou três tipos de neoins-
titucionalismo: institucionalismo sociológico, escolha racio-
democratizante, notadamente a expressão de
nal (rational choice) e institucionalismo histórico (HALL; várias dessas demandas mediante a afirmação
TAYLOR, 1996). Para Hall e Taylor (1996), institucionalismo
sociológico corresponde às pesquisas voltadas às explicações de uma agenda de direitos num ambiente de
da adoção, pelas organizações, de um específico conjunto franca ebulição com diferentes manifestações
de formas, procedimentos ou símbolos institucionais, além
da difusão dessas práticas. De acordo com Thelen (1999), as da sociedade civil nessa direção. Haveria, nes-
teorias de escolha racional, por sua vez, abordam as “regras se sentido, um percurso compartilhado entre
do jogo” e as “soluções” de equilíbrio que oferecem para os
dilemas da ação coletiva. Ministério Público e Defensoria Pública – a

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partir do longo processo de liberalização do às relações de consumo e à questão ambiental
regime civil-militar de 1964-1985 –, que teve na (ALONSO; COSTA; MACIEL, 2007; MACIEL;
CRFB seu marco inicial, mas que se consolidou KOERNER, 2014). Um dos primeiros frutos
na institucionalização do arranjo constitucional legislativos desse processo, a Lei no 6.938/1981
nas décadas seguintes, entre avanços pontuais, (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente),
competições e reconformações normativas. conferiu ao Ministério Público – e não a entes
da sociedade civil, por exemplo – a legitimidade
exclusiva para promover a responsabilização
2  Redesenhando o novo parquet: a civil e criminal por danos ambientais (BRASIL,
tutela coletiva como motor do desenho [2013b]; CARVALHO; LEITÃO, 2010).
institucional do Ministério Público Um antecedente legislativo importante,
após 1988 embora não exatamente associado à tutela co-
letiva, foi a previsão no art. 82, III, do Código
Se há um ponto de convergência na cres- de Processo Civil de 1973 da intervenção obri-
cente literatura nacional sobre o Ministério gatória do Ministério Público em questões re-
Público, ele consiste no perfil institucional ab- lativas ao interesse público (BRASIL, [2015a];
solutamente singular que a instituição assumiu a CARVALHO; LEITÃO, 2010, p. 400). A des-
partir da promulgação da CRFB (SADEK, 2000; peito de a intenção original da proposta estar
ARANTES, 2002; KERCHE, 2009; RIBEIRO, orientada à fiscalização judicial do interesse
2017). A gênese dessa ampla reengenharia de patrimonial das pessoas jurídicas de Direito
atribuições e prerrogativas legadas em 1988 ao Público (ARANTES, 2002, p. 32-33), o esta-
Ministério Público estaria associada ao desenvol- belecimento de uma categoria aberta e sem
vimento gradual de um aparato normativo mais qualquer delimitação semântica, como “inte-
robusto no campo da tutela coletiva (ARANTES, resse público”, permitiu que setores reformistas
2002, p. 50). Do longo processo de conformação da literatura jurídica e, sobretudo, a própria
de um microssistema de proteção dos direitos agenda corporativa dos órgãos do Ministério
transindividuais no ordenamento brasileiro, o Público – que tinha a sua principal expressão,
Ministério Público surgiu como legitimado prin- à época, na Associação Paulista do Ministério
cipal, arrogando-se como instituição promotora Público (APMP) – propusessem a categoria
por excelência da defesa judicial e extrajudicial como relacionada à defesa de interesses sociais
dos direitos difusos, coletivos e individuais ho- e individuais indisponíveis (e não apenas do
mogêneos. Poder Público), conferindo paulatinamente ao
Apesar de algumas experiências preceden- Ministério Público o seu papel de “fiscal da lei”.
tes, com destaque para a ação popular (Lei Essa virada discursiva é considerada por
no 4.717/1965), foi a partir de meados da déca- Arantes (2002, p. 35) o “ponto de inflexão na vi-
da de 1970, em meio à ebulição da sociedade rada histórica do Ministério Público” em direção
civil no contexto da gradual liberalização do ao atual perfil institucional e tornou possível que,
regime ditatorial, que a demanda por reconhe- nos anos seguintes, seus membros afirmassem
cimento de direitos de titularidade difusa ou a posição de instituição vocacionada à proteção
coletiva, até então sem expressão jurídica no dos nascentes direitos transindividuais. Esse po-
campo político, ganhou maior mobilização, sicionamento também impulsionou as pretensões
especialmente em torno de agendas associadas políticas de maior independência e autonomia

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para o órgão (ARANTES, 2002, p. 37), uma vez a essa altura o Ministério Público estava insti-
que a defesa desses interesses, para ser eficiente, tucionalmente vinculado ao Poder Executivo;
exigiria maior blindagem da instituição e de e, notadamente no âmbito federal, acumula-
seus membros. Ressalte-se que a construção de va a função de advocacia de governo, o que à
uma nova imagem do Ministério Público, para época implicava a estratégica prerrogativa de
além da clássica função de persecução criminal, deter legitimidade ativa exclusiva para acionar
deu-se na articulação não apenas com as elites o controle concentrado de constitucionalidade4.
políticas e jurídicas da época mas também com Traçado esse breve cenário, é compreensível que
a sociedade civil organizada em agendas mais a Emenda Constitucional (EC) no 7/1977, então
específicas, como a ambiental, e mais amplas, chamada de reforma do Judiciário, tenha alterado
caso dos movimentos pró-democracia (MACIEL; a Constituição de 1967 (art. 96, parágrafo único)
KOERNER, 2014, p. 107-110). e estabelecido, entre outros pontos, a previsão
Nesse sentido, Maciel e Koerner (2014, de uma Lei Orgânica Nacional do Ministério
p. 113-114) destacam que Público (BRASIL, [1985]).
Cerca de um ano antes, em agosto de 1976,
[a]s estratégias e alianças adotadas pelo mo- a Confederação das Associações Estaduais do
vimento associativo do MP, a partir de 1974, Ministério Público (Caemp), antecessora da
foram relevantes para a conquista da inde-
Associação Nacional dos Membros do Ministério
pendência institucional e do novo papel da
Constituição de 1988. Em primeiro lugar, a Público (Conamp), apresentou ao Ministério da
construção doutrinária da noção de interesse Justiça um Projeto de Emenda Constitucional
público, acompanhada do engajamento nas para a regulamentação do Ministério Público.
mobilizações ambientalistas, foi transforman-
Entre as quatro atribuições do órgão previstas
do o MP numa alternativa institucional viável
e disponível, naquele momento, para cana- no texto estava a “iniciativa para a ação civil
lizar os novos problemas e conflitos sociais. pública”, refletindo a pretensão ministerial de
Em segundo lugar, a interação com as redes assumir uma função do campo da defesa de
pró-democracia contribuiu para ampliar o interesses transindividuais (CABRAL NETTO,
padrão tradicional de alianças, bem como
2009, p. 40).
as estratégias de mobilização para além do
lobby. Nesse processo, o MP atraiu para si Embora o texto da Caemp não tenha sido
visibilidade pública inédita que se converteu aprovado nesse ponto, a Lei Complementar (LC)
no apoio político de grupos, movimentos no 40/1981, primeira Lei Orgânica do Ministério
sociais, comunidade científica e meios de
Público (BRASIL, 1981), incorporou uma sé-
comunicação ao perfil potencialmente po-
litizado de atuação profissional. rie de atribuições e prerrogativas que seriam
reproduzidas anos depois pelo Constituinte de
Paralelamente ao diálogo crescente com a 1987-1988. No caso específico da tutela coletiva,
sociedade civil organizada, a postura ambígua assegurou-se a defesa da ordem jurídica e dos
da ditadura civil-militar, tentando normalizar interesses indisponíveis da sociedade como uma
as medidas de exceção por meio da institucio- das funções do Ministério Público (art. 1o, caput)
nalização do regime, acabou favorecendo a e, entre as atribuições do órgão, foi inserida
agenda corporativa do Ministério Público na
direção do fortalecimento e estabelecimento 4
 Entre 1965 (EC no 16/1965) e a promulgação da CRFB,
de maiores atribuições ao órgão (ARANTES, o procurador-geral da República era o único ator capaz
de provocar a jurisdição do STF em sede de controle con-
2002, p. 39-44). Não se pode perder de vista que centrado de constitucionalidade (BRASIL, 1965, [2021]).

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justamente a promoção da “ação civil pública, (2002, p. 54), demonstra “claramente como o
nos termos da lei” (art. 3o, III). Ministério Público estava disposto a se trans-
Posteriormente, a Lei no 7.347/1985 disci- formar no defensor desses novos direitos, nem
plinou a ação civil pública (ACP). Apesar da que para isso tivesse que afastar a própria socie-
previsão explícita no citado art. 3o, III, da LC dade civil do seu caminho”. A própria exposição
no 40/1981, houve intenso debate na comunidade de motivos do projeto de lei apresentado ao
jurídica nacional acerca do modelo adequado de Congresso Nacional consignou a “colaboração
legitimação ativa daquele que se tornaria o prin- prestimosa” de membros do Ministério Público
cipal instrumento da tutela coletiva no Direito de São Paulo ao texto submetido ao Parlamento
Processual Civil. Como descreve Grinover (1984, (ARANTES, 2002, p. 61).
p. 290-291), à época eram três as soluções engen- Assim, apesar de a redação original da Lei
dradas pela literatura jurídica quanto à questão no 7.347/1985 ter previsto uma legitimação ativa
da legitimidade ativa: (i) atribuição universal a concorrente – do Ministério Público com outros
todos os indivíduos, separadamente; (ii) atri- entes da Administração Pública direta e indireta
buição a grupos e associações finalisticamente e associações civis –, já era possível antever que
orientados à tutela de interesses supraindivi- a presença do Ministério Público no rol faria
duais; e (iii) atribuição ao Ministério Público. com que, em termos práticos, o órgão passasse
Sobre este último ponto, vocalizando a posição a gozar de hegemonia no campo do manejo
de importante parcela dos processualistas na- das ACPs, como efetivamente aconteceu nos
cionais, Grinover (1984, p. 291) pontuava que anos seguintes.
seria reconhecida a inadequação do Ministério Os motivos para isso são variados. Em re-
Público como titular de ações de caráter coleti- lação ao Ministério Público, além da sua ampla
vo em razão da própria “índole” da sua função capilaridade no território nacional, a Lei da ACP
institucional principal (a atividade persecutória viabilizou a instauração do inquérito civil prévio
penal), da sua vinculação ao Poder Executivo e, à ação (art. 8o, § 1o), dotando o órgão de poder
consequentemente, da sua falta de especialização requisitório e permitindo uma instrução prévia
no campo dos direitos coletivos. ao ajuizamento da ação mais qualificada e que
Na esteira do trabalho de Cappelletti e Garth não estava à disposição dos outros legitimados
(1988), esse grupo de processualistas sustentava ativos. Ademais, nas ACPs propostas por outro
que outras soluções seriam mais adequadas, autor civil público, ao Ministério Público foi
como a criação de órgãos altamente especiali- assegurada a obrigatória atuação como “fiscal
zados, a exemplo do “ombudsman do consumi- da lei”; e, em caso de desistência por legitimado
dor” sueco, para a atuação na tutela coletiva ou diverso, ele passou a ter a obrigação legal de
a extensão da legitimidade a pessoas privadas assumir o feito (art. 5o, §§ 1o e 3o). Não fosse
(indivíduos e pessoas jurídicas) ainda que não suficiente todo esse quadro normativo, deve-se
pessoalmente prejudicadas pela questão em reforçar que a ocupação do campo da tutela
concreto. coletiva fazia parte do núcleo duro do projeto
Apesar do contraponto doutrinário, o forte político da instituição nos anos 1970 e 1980
trabalho de articulação do Ministério Público (BRASIL, [2014b]).
desde meados da década de 1970 também esteve Quanto às associações civis, os requisitos
presente no texto final da Lei da ACP (BRASIL, formais exigidos pela lei – regularidade por no
[2014b]), num processo que, segundo Arantes mínimo um ano e interesse institucional esta-

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belecido para a proteção de certos interesses transindividuais – acabaram
constituindo um desestímulo ao efetivo exercício da legitimidade ativa
na ACP. Por fim, os demais entes legitimados da Administração Pública
direta e indireta, além de frequentemente apontados como violadores dos
interesses transindividuais nessas ações, têm suas atividades condicionadas
pelas agendas governamentais, podendo valer-se das escolhas formuladas
nas suas próprias políticas públicas para insular ou promover prioridades,
o que desestimula a busca da tutela judicial de interesses difusos, coletivos
e individuais homogêneos.
Portanto, longe de ser o ponto de partida de um novo Ministério
Público, a ANC foi o ponto de chegada de um longo processo de mudança
institucional que teve como motor principal a tutela coletiva (ARANTES,
2002, p. 76). Até mesmo a então polêmica divisão das funções persecutórias
entre o Ministério Público e a Advocacia Pública – um dos grandes temas
relacionados ao órgão na ANC – foi mediada pela pauta da nova atribuição
nos direitos de natureza coletiva. Em março de 1985, Sepúlveda Pertence – o
primeiro procurador-geral da República no período posterior à ditadura
civil-militar –, embora não se tivesse posicionado explicitamente acerca
da controvérsia5, asseverou em seu discurso de posse que

as duas funções [advocacia de governo e tutela coletiva] possam trilhar


uma rota tendente à harmonização porque na democracia, a defesa da
sociedade e dos direitos humanos, dos interesses indisponíveis dos opri-
midos, assim como a exigência de responsabilização flexível dos abusos,
deixam de ser uma postura de necessário confronto com o Estado, mas,
ao contrário, hão de constituir a inspiração maior da ação conjugada de
todos os poderes (PERTENCE apud LAMENHA, 2019, p. [6]).

Assim, com influência significativa do lobby das associações do


Ministério Público – especialmente a Carta de Curitiba, aprovada em
junho de 1986 no 1o Encontro Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça
e Presidentes de Associações de Ministério Público6 –, o texto final da
ANC sobre o Ministério Público consolidou a adoção definitiva de um
modelo que transformou a instituição num órgão autônomo, independen-

5
 Contudo, em depoimento ao projeto História Oral do Supremo Tribunal Federal
(FONTAINHA; SILVA; NUÑEZ, 2015, p. 67), Sepúlveda Pertence declarou que “era essencial”
ao Ministério Público de 1988 libertar-se da função de advogado da União.
6
 A Carta de Curitiba de 1986 foi um documento corporativo produzido pela Conamp
e que sintetizava as “linhas mestras do posicionamento do Ministério Público” para a ANC
que logo seria instalada. Continha cerca de 70 disposições, entre as quais quinze artigos e
vários parágrafos, incisos e alíneas, todos relacionados ao novo desenho institucional do
Ministério Público (CABRAL NETTO, 2009, p. 75-76; SABELLA; DAL POZZO; BURLE
FILHO, 2013, p. 31-32). Apesar de existirem divergências na literatura quanto ao nível de
adesão dos constituintes ao texto da Carta (KERCHE, 2009, p. 19-21), sua influência no
texto final da CRFB é inegável.

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te em relação ao Executivo e com funções que te, da orientação jurídica e defesa judicial dos
ultrapassam a clássica atribuição persecutória necessitados, a CRFB foi a primeira a instituir,
no âmbito penal, com destaque justamente para em nível constitucional, um órgão público de
a defesa dos direitos difusos, coletivos e indivi- abrangência nacional com essa atribuição es-
duais homogêneos. Assegurou-se também uma pecífica (MARONA, 2013).
identidade nacional consolidada à instituição Até então, como prevista nas Constituições
(SAUWEN FILHO, 1999, p. 165-169). de 1934, 1946 e 1967-1969 (MARONA, 2013), a
Não há consenso na literatura em relação assistência judiciária aos necessitados era orga-
às razões do sucesso do projeto político do nizada como uma concessão do Poder Público.
Ministério Público em capitanear seu fortaleci- Cabia ao Estado, no plano infraconstitucional,
mento institucional com base na atribuição de estabelecer políticas públicas para tal finalidade,
tutela coletiva (CARVALHO; LEITÃO, 2010, o que não necessariamente envolvia a criação
p. 404-408). Lamenha (2019) propõe o reco- de um órgão público específico. No âmbito dos
nhecimento da complexidade e os múltiplos estados da Federação, os modelos de assistência
aspectos a serem considerados na questão, re- judiciária abrangiam três soluções: (i) a criação
jeitando modelos monológicos de explicação. de um serviço público específico, caso do Rio de
Nessa perspectiva, a construção institucional Janeiro, onde os primeiros cargos de defensor
do Ministério Público de 1988 parece combinar público foram criados em 1954; (ii) a disponi-
fatores como: (i) o lobby institucional bem orga- bilização de um serviço público de assistência
nizado (ARANTES, 2002, p. 77); (ii) a conjuntura judiciária vinculado a outro órgão público já
político-ideológica favorável a uma instituição existente, notadamente as procuradorias esta-
distante do jogo partidário-eleitoral com inde- duais, como ocorria em São Paulo7 e no Rio
pendência e amplos poderes para promover os Grande do Sul, e também ao Ministério Público,
interesses da sociedade (KERCHE, 2009, p. 23); e caso do extinto estado da Guanabara; e (iii) a
(iii) a articulação extrainstitucional junto à socie- designação e o custeio de advogados dativos ou
dade civil organizada durante o longo processo de o estabelecimento de parcerias e convênios com
transição política, num esforço de reacomodação a OAB (MOREIRA, 2016, p. 70-72).
da carreira baseada na mobilização de elementos Paralelamente a isso, a Lei no 1.060/1950,
da agenda democratizante então em evidência ainda hoje em vigor no que toca à isenção de
(MACIEL; KOERNER, 2014, p. 113-114). custas judiciais para pessoas hipossuficientes (a
chamada Justiça gratuita), organizou, à época do
início de sua vigência, a legislação dispersa sobre
3  Disputas corporativas e o tema da assistência judiciária aos necessitados,
competições institucionais: a assegurando-lhes, entre outros direitos, o de ter
construção da Defensoria Pública na constituído um advogado dativo custeado pelo
ordem de 1988 Estado8. Embora relevante o serviço, deve-se

Embora um marco normativo nacional para 7


 Segundo Marona (2013), o primeiro serviço público
de assistência judiciária gratuita do Brasil foi organizado
o Ministério Público só tenha advindo com a pelo governo paulista em 1935.
LC no 40/1981, referências constitucionais ao 8
 Curiosamente, o art. 18 dessa lei, nunca expressamente
órgão remontam à Constituição de 1934. No revogado, dispõe sobre a possibilidade de que, a partir do 4o
ano, acadêmicos de Direito possam ser indicados para auxi-
caso da Defensoria Pública e, mais propriamen- liar o patrocínio das causas dos necessitados. O dispositivo,

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ponderar que, na maior parte dos casos, o pró- Não surpreende, pois, que o desenvolvimento
prio usuário precisava identificar uma demanda de uma agenda corporativa em torno da pauta da
judicial em potencial e procurar o auxílio estatal expansão de um modelo de instituição especifica-
para a nomeação de um advogado dativo. A mente vocacionada à orientação jurídica e defesa
quase inexistência da atividade de orientação judicial dos necessitados se tenha aglutinado
jurídica no contexto de uma população majo- em torno das associações corporativas do novo
ritariamente pobre e pouco informada sobre a estado9: a Associação da Assistência Judiciária
legislação de regência comprometia a qualidade do Estado do Rio de Janeiro (Aaerj), criada em
tanto do serviço de assistência judiciária ofere- 1976, e a Associação dos Defensores Públicos
cido pelo Estado quanto do próprio acesso à do Estado do Rio de Janeiro (Adperj), criada em
Justiça (MARONA, 2013). 1982 como uma dissidência da Aaerj10.
Aliás, a trajetória da defensoria fluminense A experiência fluminense motivou a cria-
merece destaque não só por seu pioneirismo e ção de outros serviços autônomos de assistência
por ter espelhado o futuro modelo de Defensoria judiciária, como no caso do Mato Grosso do
Pública adotado em 1988 como também por Sul. Em 1984, defensores oriundos de serviços
indicar que a vida institucional do primeiro ór- autônomos e outros servidores públicos respon-
gão específico de assistência judiciária ocorreu sáveis pela atividade de assistência judiciária de
dentro da estrutura do Ministério Público. Assim, diferentes locais do País fundaram uma entidade
quando criado em 1954, o serviço de Assistência de caráter nacional, a Federação Nacional dos
Judiciária do estado do Rio de Janeiro foi vincu- Defensores Públicos (Fenadep), antecessora
lado ao Ministério Público estadual, ainda que da atual Associação Nacional dos Defensores
constituído por quadro próprio de funcionários. Públicos (Anadep). Foi a Fenadep a principal ar-
Em 1975, com a fusão dos estados do Rio ticuladora da agenda referente à criação nacional
de Janeiro e da Guanabara – na qual a posição e em âmbito constitucional de um órgão público
de defensor público era curiosamente o cargo específico na ANC (MOREIRA, 2016, p. 75-76).
inicial da carreira de membro do Ministério Embora o lobby dos defensores públicos e
Público –, a Constituição do novo estado do Rio dos assistentes judiciários nos trabalhos na ANC
de Janeiro passou a prever a Assistência Judiciária não se tenha diferenciado significativamente, em
como órgão específico, mas não sem um inten- termos de estratégia e nível de pressão, do desem-
so debate sobre uma possível vantagem para a penhado pelas associações do Ministério Público
carreira no caso de permanência à sombra do e de outras carreiras vinculadas ao sistema de
Ministério Público. A autonomia administrativa Justiça (e apesar da efetiva constitucionalização
só veio em 1987, mediante a criação do cargo da Defensoria Pública), a agenda corporativa da
de procurador-geral da Defensoria Pública, com Defensoria Pública não logrou o êxito obtido por
seu titular escolhido pelo governador por meio
de lista tríplice elaborada pela carreira, o que 9
 Fenômeno semelhante também se deu com o Ministé-
coincidiu com a alteração do nome de Assistência rio Público antes de 1988, quando uma associação estadual,
a APMP, teve grande protagonismo na agenda corporativa,
Judiciária para Defensoria Pública (MOREIRA, sobretudo na década de 1970.
2016, p. 71-74).
10
 Segundo Moreira (2016, p. 73), a dissidência ocor-
reu em razão de uma decisão governamental que em 1981
restringiu a autonomia da Assistência Judiciária do estado
do Rio de Janeiro, vinculando-a à Secretaria de Justiça.
todavia, parece ter sido tacitamente revogado pelo art. 1o Aqueles que se insurgiram contra essa decisão saíram da
da Lei no 8.906/1994 (BRASIL, 1950, [2020]). Aaerj e formaram a Adperj.

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outras corporações, notadamente o Ministério defensor público do estado do Rio de Janeiro e
Público. O principal motivo para esse cenário representante da Fenadep perante a Subcomissão:
parecem ter sido as disputas institucionais, sobre-
tudo frente a outras corporações jurídicas que – É importante, também, declinar aqui a condi-
localmente e com base em diferentes arranjos – já ção da Defensoria Pública do ponto de vista
da necessidade social. Temos, para nós, que
desempenhavam a função de assistência jurídica
a instituição só é legítima na medida em que
ao pobre. Apesar disso, o principal contraponto nasce de uma necessidade social. Hoje, sem
firmado pelo lobby da Defensoria Pública teve dúvida nenhuma, o homem do campo e as
lugar no estabelecimento de fronteiras claras en- pessoas mais humildes da cidade necessitam
urgentemente de advogados competentes, do
tre as suas funções e as atribuições do Ministério
mesmo nível, por exemplo, dos promotores
Público, instituição que orientou a agenda dos de Justiça, dos procuradores de Estado, que
defensores e assistentes jurídicos. ingressem na carreira após percorrer o curso
Os debates iniciais sobre a Defensoria Pública normal de Direito, através de um concurso de
na ANC ocorreram na Subcomissão do Poder provas e títulos. Cabe ao defensor público,
essencialmente, a defesa desses interesses da
Judiciário e do Ministério Público. Na 5a reunião
grande maioria do povo brasileiro, tanto do
ordinária da Subcomissão, a representação da campo quanto da cidade.
Fenadep teve a oportunidade de expor sua pro-
É importante procurar distinguir o Ministério
posta para a constitucionalização da Defensoria Público e a atuação dos membros do
Pública. Em síntese, a agenda consistia nos se- Ministério Público, a atuação dos defenso-
guintes pontos: (i) uma instituição com marco res públicos ou dos membros da Defensoria
Pública. Enquanto o Ministério Público pro-
normativo nacional; (ii) estruturada por meio
cura atuar como fiscal da lei – e atua como
de concurso público; (iii) orientada por princí- fiscal da lei – e em defesa dos direitos indis-
pios institucionais que assegurassem autonomia poníveis da sociedade, o defensor público atua
financeira e administrativa, unidade e indepen- em defesa dos interesses individuais, se bem
dência; e (iv) direitos, garantias e prerrogativas que sempre do ponto de vista do interesse
social (BRASIL, 1987, p. 100).
dos seus membros equiparadas às conferidas
aos membros do Ministério Público (BRASIL,
1987, p. 110). Embora no âmbito da Subcomissão todos os
Moreira (2016, p. 81) destaca que, em diversas itens da agenda da Fenadep tenham sido contem-
passagens do debate público na Subcomissão, plados pela Emenda no 4, de autoria do consti-
os representantes da Fenadep procuraram per- tuinte Sílvio de Abreu, a proposta não resistiu às
suadir os constituintes ao estabelecerem simul- demais etapas do processo deliberativo. Após os
taneamente tanto um paralelo entre Ministério debates e as votações na Comissão Temática de
Público e Defensoria Pública relativamente à Organização dos Poderes e Sistema de Governo –
importância da função no âmbito do sistema à qual estava vinculada a Subcomissão do Poder
de Justiça quanto uma diferenciação entre o es- Judiciário e do Ministério Público –, na Comissão
copo de suas respectivas atuações. O elemento de Sistematização e no Plenário a redação final
distintivo está justamente no fato de que a tutela do art. 134 e de seu parágrafo único da CRFB
coletiva ficaria a cargo do Ministério Público, ao atribuíram à Defensoria Pública apenas: (i) o ca-
passo que a Defensoria Pública ficaria restrita à ráter de instituição essencial ao sistema de Justiça;
tutela de interesses individuais. Essa dicotomia (ii) a função de orientação jurídica e defesa, em
fica explícita na fala de Roberto Vitagliano, então todos os graus, dos necessitados, concretizan-

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do o direito fundamental ao acesso à Justiça duais e a OAB – esvaziou significativamente
(CRFB, art. 5o, LXXIV); (iii) a previsão de LC o projeto institucional considerado adequado
que serviria de marco normativo nacional da pelos defensores e assistentes judiciários. Nesse
Defensoria Pública no âmbito da União, Estados contexto, outro aspecto a ser considerado é o
e Distrito Federal e Territórios, assegurado o fato de que – diferentemente do Ministério
ingresso por concurso público; e (iv) a garantia Público, por exemplo – o lastro associativo
da inamovibilidade e a vedação do exercício da dos defensores e assistentes judiciários ainda
advocacia (MOREIRA, 2016, p. 79-97). era muito incipiente, ao passo que a agenda
Segundo Moreira (2016, p. 78), a agenda dos política do Ministério Público coroada pela
defensores e assistentes judiciários encontrou CRFB datava de meados da década de 1970
resistência na ANC por três motivos funda- (MOREIRA, 2017, p. 675).
mentais. Em primeiro lugar, o conflito entre De mais a mais, essa resistência de outras
a ideia de institucionalização da Defensoria corporações é um relevante aspecto explicativo
Pública e outras corporações jurídicas, como das dificuldades para a instalação e a estrutura-
as procuradorias estaduais e a OAB, que àquela ção das Defensorias Públicas em alguns estados
altura desempenhavam a função de assistên- nos anos que se seguiram à promulgação da
cia judiciária aos necessitados e não queriam CRFB (MADEIRA, 2014, p. 58). Com efeito,
abrir mão dessa atividade. Em segundo lugar, em 2012 Santa Catarina foi o último estado da
os estados resistiam à criação de uma nova Federação a promulgar lei estadual criando a
corporação jurídica, defendendo a autonomia sua Defensoria Pública. Isso somente foi possí-
de cada unidade federativa para encontrar o vel com a declaração de inconstitucionalidade
melhor arranjo a fim de assegurar o serviço do art. 104 da sua Constituição estadual e da
de assistência judiciária aos necessitados e, em LC estadual no 155/1997, que regulavam um
menor medida, buscando prestigiar os interes- serviço de “defensoria pública dativa” mediante
ses corporativos das carreiras jurídicas neles já um convênio com a OAB local. Na prática,
existentes. Por fim, o esforço de equiparação de portanto – e Santa Catarina foi apenas o último
prerrogativas em relação ao Ministério Público exemplo desse tipo de “resistência” –, alegava-se
encontrou forte resistência dos promotores e a desnecessidade de criação de uma instituição
procuradores desse órgão. da Defensoria Pública, uma vez que a assistên-
A trajetória da Defensoria Pública na ANC, cia jurídica aos necessitados já era promovida
mais até que a experiência do Ministério Público por meio de um convênio entre aquele estado
discutida no tópico anterior, é reveladora do ati- e a OAB e desempenhada pela advocacia pri-
vismo político de agentes do sistema de Justiça vada. A impugnação daquele dispositivo da
com a finalidade de maximizar seu poder na Constituição estadual e da própria LC estadual
ordem constitucional no contexto particular de que o disciplinava foi objeto das Ações Diretas
fortalecimento das instituições judiciais, como de Inconstitucionalidade (ADIs) nos 3.892 e
o verificado a partir da promulgação da CRFB 4.270, ajuizadas respectivamente pela então
(LIMA, 2018, p. 158). Associação Nacional dos Defensores Públicos
Assim, apesar do sucesso inicial da agenda da União (Andpu)11 e pela Anadep (MOREIRA,
da Defensoria Pública, a articulação de outros
atores do sistema de Justiça – especialmente 11
 Atualmente, a Andpu denomina-se Associação Na-
o Ministério Público, as procuradorias esta- cional dos Defensores Públicos Federais (Anadef).

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2016, p. 199), ambas julgadas procedentes persecutória no âmbito penal e acumulando
(BRASIL, 2012b, 2012c). múltiplas funções que permitiram ao órgão, nas
décadas seguintes, ter a capacidade de interferir
virtualmente em qualquer questão de relevo
4  Entre chegadas e partidas: as público. A temática associada aos direitos tran-
trajetórias espelhadas do Ministério sindividuais abriu uma imensa frente de trabalho
Público e da Defensoria Pública na para o Ministério Público no âmbito da atuação
tutela coletiva extrajudicial, por meio do manejo de ferramen-
tas procedimentais, como as recomendações e os
O marco normativo original da CRFB esta- termos de ajustamento de conduta, e de outras
beleceu uma divisão de tarefas bem delimitada soluções não formatadas previamente e tenden-
entre Ministério Público e Defensoria Pública. tes à resolução de conflitos e ao atendimento
No âmbito penal, funcionariam em polos clara- de demandas13. Foi esse quadro normativo que
mente opostos: o Ministério Público, o titular levou, nos anos que se seguiram à promulgação
da ação penal pública; e a Defensoria Pública, da CRFB, autores como Arantes (2002, p. 17) a
na defesa dos que, por razões econômicas, não relacionarem os promotores e procuradores a
pudessem contratar os serviços de um advo- um papel de “agente político da lei”.
gado privado. No âmbito cível, a atuação do Essa reconfiguração institucional concluída
Ministério Público estaria majoritariamente na CRFB também tornou possível uma mu-
associada à defesa de direitos transindividuais, dança significativa da imagem do Ministério
ao passo que a Defensoria Pública atuaria na tu- Público perante a sociedade e, associado a isso,
tela individual dos necessitados. Parece correto, um acúmulo progressivo de capital político
pois, afirmar que ambas as instituições foram pela instituição. Nessa perspectiva, nos pri-
eficientes em reivindicar para si um campo meiros anos da década de 2010, o Ministério
importante de um movimento mais amplo, Público figurava como uma das instituições
de cariz internacional, de fortalecimento das mais confiáveis aos olhos dos brasileiros, como
instituições judiciais, de acesso à Justiça e de o demonstraram os dados do último trimestre
coletivização de direitos. de 2014 do Índice de Confiança na Justiça, da
O caso do Ministério Público é particular- Fundação Getulio Vargas (CUNHA, 2014).
mente bem-sucedido, uma vez que o campo da Segundo a pesquisa, o Ministério Público
tutela coletiva foi central para que a instituição figurava à época como a terceira instituição mais
pudesse reivindicar, ainda nos anos anteriores confiável, com 50% de manifestações positivas
à ANC, uma reengenharia completa de seu de-
senho institucional, com mais prerrogativas e tuição, por exemplo, do Poder Judiciário, que é submetido
garantias para o órgão e seus membros, nota- ao chamado princípio da inércia (LAMENHA, 2019).
13
 É paradigmático, nesse sentido, o art. 1o, § 2o, da Reco-
damente a chamada independência funcional 12, mendação no 54/2017 do Conselho Nacional do Ministério
colocando-se muito além da clássica função Público (2017, p. 3), órgão de controle externo do Ministério
Público, que estabelece: “Sempre que possível e observadas
as peculiaridades do caso concreto, será priorizada a reso-
12
 Em linhas gerais, a independência funcional, um dos lução extrajudicial do conflito, controvérsia ou situação de
três princípios institucionais do Ministério Público (CRFB, lesão ou ameaça, especialmente quando essa via se mostrar
art. 127), assegura uma ampla margem de discricionariedade capaz de viabilizar uma solução mais célere, econômica,
aos membros do Ministério Público no desempenho de implementável e capaz de satisfazer adequadamente as le-
suas atribuições, autorizando em certas situações a atuarem gítimas expectativas dos titulares dos direitos envolvidos,
inclusive de ofício – o que distingue sensivelmente a insti- contribuindo para diminuir a litigiosidade”.

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dos cidadãos entrevistados, atrás apenas das no conteúdo da primeira lei de organização
Forças Armadas e da Igreja Católica (CUNHA, nacional da instituição, a LC no 80/1994, na qual
2014). Em se tratando de um órgão formalmen- a primeira investida da agenda corporativa da
te integrado ao sistema de Justiça e formado Defensoria Pública em direção à tutela coletiva
por uma das elites do serviço público, esse alto foi vetada14 (BRASIL, [2009a]).
índice de confiança em face a outras instituições Por fim, registre-se que, ao tratar de
da República é um dado intrigante e que tem Ministério Público e Defensoria Pública numa
mobilizado uma série de pesquisas acerca do perspectiva única ou nacional, deve-se ter a
Ministério Público nos últimos anos (RIBEIRO, cautela de rememorar que na realidade exis-
2017, p. 51-52). tem dezenas de órgãos do Ministério Público
Embora constitua uma agenda de pesquisa e da Defensoria Pública, dada a sua estrutu-
a desenvolver, pode-se propor, a título espe- ração específica em cada uma das unidades
culativo, que este tripé – amplas atribuições da Federação (LEMGRUBER; RIBEIRO;
e prerrogativas, ampla margem de discricio- MUSUMECI; DUARTE, 2016, p. 9-14). No
nariedade e amplo capital político – configu- caso particular do Ministério Público, afora
ra um quadro analítico importante para en- os 26 órgãos estaduais, o Ministério Público
tender como se tornou possível que, a partir da União desdobra-se – além do Ministério
de meados da primeira década deste século, Público Federal e do Ministério Público do
o Ministério Público iniciasse uma trajetória Distrito Federal e Territórios – em dois órgãos
gradual de mudança na prioridade de atuação ministeriais de temática particular: o Ministério
institucional da tutela coletiva para o controle Público do Trabalho e o Ministério Público
da Administração Pública, sobretudo o “com- Militar15. No caso da Defensoria Pública, são
bate à corrupção” (ARANTES, 2011, p. 99; 28 órgãos ao todo: uma Defensoria Pública
AVRITZER; MARONA, 2017, p. 366), inclu- da União (DPU) e 27 Defensorias Públicas
sive mimetizando certo voluntarismo típico da estaduais.
atuação em tutela coletiva também no campo Embora esses distintos órgãos possam es-
do Direito Penal anticorrupção (LAMENHA, pelhar infraestruturas, regramentos de carreira
2017, p. 52-54). e culturas institucionais variadas, a existência
Em relação à Defensoria Pública, ressalte-se de um perfil normativo único nas respectivas
que uma das premissas estabelecidas na pers- legislações de regência, além de instâncias as-
pectiva analítica do presente texto é compro- sociativas de caráter nacional capazes de pro-
vada nos anos que se seguiram à promulgação
da CRFB: a de espelhamento da trajetória do
14
 A LC no 80/1994 foi promulgada para regulamentar
Ministério Público na disputa e construção o art. 134, parágrafo único, da CRFB e estabeleceu, por
do seu perfil institucional. De início, quando exemplo, a unidade, a indivisibilidade e a independência
funcional como princípios institucionais da Defensoria Pú-
da constitucionalização do órgão em 1988, o blica (art. 3o), reproduzindo o teor do art. 127 da CRFB sobre
forte bloqueio exercido pelo lobby de outras o Ministério Público. Vários vetos presidenciais, contudo,
foram opostos a dispositivos da LC no 80/1994, especialmente
corporações, entre as quais o próprio Ministério no campo da tutela coletiva (art. 4o, XII), por intervenção
direta do então procurador-geral da República, Aristides
Público, atrasou significativamente a criação de Junqueira (BRASIL, [2009a], 1994).
unidades do órgão em todo o território nacional 15
 Foram excluídos os chamados Ministérios Públicos
e a afirmação de sua autonomia administrativa de Contas, uma vez que se trata de órgãos inseridos na
estrutura dos Tribunais de Contas, e não de instituições
e funcional. Esse bloqueio também se refletiu ministeriais autônomas.

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mover a coordenação e a articulação de uma possíveis. Assim, o recurso à leitura na chave
agenda institucional única16, permite que seja do novo institucionalismo demonstra ser um
possível e útil mapear uma trajetória institu- enfoque analítico útil para – diferentemente
cional comum tanto a um modelo nacional de de uma tradição apenas descritiva do estudo
Ministério Público quanto ao seu corresponden- das instituições judiciais no Brasil – promover
te no campo da Defensoria Pública (MADEIRA, uma discussão sobre os pontos de contato, os
2014, p. 56). diálogos e as disputas entre diferentes órgãos do
sistema de Justiça (DA ROS; INGRAM, 2019,
p. 339-346).
5  Considerações finais Sob o prisma estritamente normativo, ao
menos três evidências dão suporte às conclu-
A despeito da reformulação de todo o siste- sões expostas nos dois últimos parágrafos: (i) a
ma de Justiça, a literatura especializada sobre o CRFB foi o primeiro texto constitucional a fazer
desenho e funcionamento dessas instituições – expressa menção a direitos transindividuais;
nos mais distintos campos (Ciência Política, (ii) o perfil institucional do Ministério Público
Sociologia Política, Direito) – debruça-se foi totalmente reformulado, com a retirada da
prioritariamente sobre o Poder Judiciário, com sua função de advocacia de governo e o esta-
especial atenção ao STF. À luz do princípio da belecimento, ao lado da atribuição de perse-
inércia no qual se funda a atividade judicante, é cução criminal, da tarefa de tutela judicial e
curioso que haja uma lacuna de estudos sobre as extrajudicial dos direitos de natureza coletiva;
instituições de Estado cuja função, entre outras, e (iii) pela primeira vez foi constitucionalizada
é justamente o acionamento dos tribunais (DA a Defensoria Pública como instituição à qual se
ROS, 2017, p. 58-59; DA ROS; INGRAM, 2019, atribui a tarefa de promover orientação jurídica
p. 340). Além disso, tais instituições têm nos e defesa judicial aos necessitados, isto é, a tutela
mecanismos extraprocessuais amplo espaço de individual dos que não têm condições materiais
interferência nas relações políticas e sociais, o para acessar o sistema de Justiça.
que pode redundar em eventuais competições A conjuntura comum compartilhada condu-
e superposição de atuações, viabilizadas por ziu a uma interação do Ministério Público com a
mecanismos institucionais formais e consoli- Defensoria Pública nas décadas que se seguiram
dação de práticas informais. à promulgação da CRFB: de um terreno com
Nesse sentido, a pesquisa aqui apresentada atribuições bem demarcadas no texto original
confirma a relevância de se recorrer ao marco da Constituição, verifica-se atualmente um es-
normativo original da CRFB como estratégia paço de superposição de funções e, até mesmo,
para compreender melhor as instituições do certa competição institucional entre Ministério
sistema de Justiça e algumas de suas interações Público e Defensoria Pública numa tarefa en-
tão estratégica no contexto político e jurídico
da ANC – a tutela coletiva. Um dos exemplos
16
 A título de exemplo, vejam-se a Conamp e a Anadep,
associações civis de caráter nacional que agregam, respectiva- mais bem acabados dessa competição institu-
mente, membros de todas as carreiras do Ministério Público cional presente é a ADI no 3.943 – proposta
e da Defensoria Pública; e também o Conselho Nacional de
Procuradores-Gerais e o Colégio Nacional de Defensores pela Conamp –, que impugnou o texto da Lei
Públicos-Gerais, entidades associativas que reúnem os chefes no 11.448/2007 e foi julgada improcedente pelo
de carreira dos diferentes órgãos do Ministério Público e da
Defensoria Pública em todo o território nacional. STF em 2015 (BRASIL, 2015b).

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Consideradas essas disputas, importa pon- § 1o, do Ato das Disposições Constitucionais
tuar que, desde a aprovação da EC no 45/2004 – Transitórias, prevendo que até 2022 todas as co-
que assegurou a autonomia funcional e admi- marcas e seções judiciárias do País deverão con-
nistrativa, além de iniciativa orçamentária, às tar com defensores públicos (BRASIL, 2014a).
Defensorias estaduais (CRFB, art. 134, § 2o) –, No campo da tutela coletiva, a Lei
o
o sucesso dos bloqueios à agenda corporativa n   11.448/2007 assegurou à Defensoria
da Defensoria Pública parece ter arrefecido, Pública legitimidade ativa para a propositu-
sendo possível verificar diversas mudanças le- ra, autorizando-a, formalmente, a atuar nesse
gislativas na direção justamente da reivindicação âmbito, com a inclusão do art. 5o, II, da Lei
da tutela coletiva e da promoção dos direitos no 7.347/1985 (BRASIL, 2007). Em linhas ge-
humanos. Nesse aspecto, o êxito do lobby cor- rais, a LC no 132/2009 alterou radicalmente a
porativo da Defensoria é significativo: desde LC no 80/1994, consolidando um movimento
2004, pelo menos três emendas constitucionais que buscava descolar a Defensoria Pública do
(EC nos 69/201217, 74/201318 e 80/2014), uma campo da tutela individual dos necessitados
lei complementar (LC no 132/2009) e uma lei em direção a outras atribuições, notadamente
ordinária (Lei no 11.448/2007) foram aprovadas no campo da tutela coletiva e da promoção de
com agendas totalmente relacionadas à expansão direitos humanos (BRASIL, [2009a], 2009b).
das atribuições e das prerrogativas do órgão. Embora a questão mereça ser desenvolvi-
Neste aspecto particular, destaque-se que a da com atenção em pesquisas posteriores, o
EC no 80/2014 erigiu no próprio texto constitu- espelhamento da trajetória institucional do
cional uma série de mudanças de perfil institu- Ministério Público pela Defensoria Pública
cional da Defensoria Pública já explícitas nas LCs parece revelar uma estratégia de consolidação
nos 132/2009 e 174/2013 e na Lei no 11.448/2007, do órgão no quadro institucional do sistema de
estabelecendo o caráter permanente da institui- Justiça, livre do risco de reversão incitado pelo
ção e ampliando sua função institucional para lobby de outras corporações (como a OAB, por
contemplar “a orientação jurídica, a promoção exemplo), especificamente em relação à função
dos direitos humanos e a defesa, em todos os primeira de orientação e defesa judicial dos ne-
graus, judicial e extrajudicial, dos direitos indivi- cessitados, questão objeto de disputa por quase
duais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos 15 anos, até que Santa Catarina se tornasse o
necessitados” (novo caput do art. 134 da CRFB) último estado da Federação a instituir sua pró-
(BRASIL, [2021]), além do reconhecimento da pria Defensoria Pública por força de decisão do
unidade, indivisibilidade e independência fun- STF no julgamento das ADIs nos 3.892 e 4.270
cional como princípios institucionais (novo § 4o (BRASIL, 2012b, 2012c). Tal como aconteceu
do art. 134). Além disso, foi incluído o art. 98, com o Ministério Público na ANC, a amplia-
ção das atribuições da Defensoria Pública no
âmbito da tutela coletiva, em virtude das várias
17
 A EC no 69/2012 transferiu da União para o Distrito alterações constitucionais e legislativas, cami-
Federal a organização da Defensoria Pública do Distrito
Federal (DPDF), tornando possível, finalmente, a sua insti- nhou em paralelo a um processo de reforço de
tuição naquela unidade federativa por meio da Emenda à Lei
Orgânica do Distrito Federal no 61/2012 (BRASIL, 2012a).
prerrogativas e garantias institucionais.
18
 A EC no 74/2013 estendeu à DPU e à DPDF as prer- Feito o paralelo entre os marcos normati-
rogativas de autonomia financeira e administrativa, além de vos originais decorrentes de uma conjuntura
iniciativa orçamentária, conforme estabelecido no art. 134,
§ 3o, da CRFB (BRASIL, 2013a). político-ideológica comum e sinalizada a hipó-

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tese de um espelhamento da trajetória da Defensoria Pública em relação
ao Ministério Público, o texto aponta para a relevância de se debruçar, à
luz do institucionalismo histórico, sobre a interação e a competição entre
instituições do sistema de Justiça nacional para melhor compreender os
processos de construção e de mudança institucional. Espera-se que pes-
quisas futuras sejam capazes de desenvolver as implicações decorrentes
da superposição de funções no âmbito da tutela coletiva entre Ministério
Público e Defensoria Pública.

Sobre os autores
Flávia Danielle Santiago Lima é doutora e mestra em Direito Público pela Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil; professora permanente do programa de pós-
graduação (mestrado) em Direito da Faculdade Damas, Recife, PE, Brasil; professora da
Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco, Recife, PE, Brasil; advogada da
União, Procuradoria Regional da União na 5a Região, Recife, PE, Brasil.
E-mail: [email protected]
Bruno Lamenha é mestre em Direito pela Universidade Federal de Alagoas, Maceió, AL,
Brasil; doutorando em Direito na Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil.
E-mail: [email protected]

Como citar este artigo


(ABNT)
LIMA, Flávia Danielle Santiago; LAMENHA, Bruno. Mobilizando a agenda dos direitos
coletivos, assegurando espaço institucional: Ministério Público e Defensoria Pública na
transição democrática. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 231,
p. 87‑108, jul./set. 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/231/
ril_v58_n231_p87
(APA)
Lima, F. D. S., & Lamenha, B. (2021). Mobilizando a agenda dos direitos coletivos, assegurando
espaço institucional: Ministério Público e Defensoria Pública na transição democrática.
Revista de Informação Legislativa: RIL, 58(231), 87‑108. Recuperado de https://www12.
senado.leg.br/ril/edicoes/58/231/ril_v58_n231_p87

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108 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 87-108 jul./set. 2021


Sem sentir e sem querer
A era colonial do Brasil à luz do
Direito Internacional

ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS

Resumo:  Este artigo visa estudar o Direito Internacional como instru-


mento de compreensão da formação do Brasil a partir da era colonial com
foco em três elementos sobre os quais as regras jurídicas internacionais
tiveram papel de relevo: o território, o povo e a soberania. O arco do
tempo do presente artigo é a era colonial, na qual esses elementos for-
madores do futuro Estado brasileiro foram analisados sob a perspectiva
dos interesses heterogêneos que resultaram nas potencialidades e limites
do projeto de colonização e influenciaram a independência. A escolha
do passado colonial brasileiro tem como objetivo dar visibilidade a um
Direito Internacional assimétrico, pautado por uma regulação internacio-
nal desigual, como se vê na complexa relação de Portugal com as demais
potências europeias e seus reflexos no Brasil.

Palavras-chave:  Direito Internacional. Colônia. Brasil. Portugal. Formação


do Estado.

Without feeling and without wanting: Brazil’s colonial era


under international law

Abstract:  This article aims to study international law as an instrument for


understanding the formation of Brazil from the colonial era with a focus
on three elements on which international legal rules played an important
role: territory, people and sovereignty. The arc of time of this article is
the colonial era, in which these elements that formed the future Brazilian
state were analyzed from the perspective of heterogeneous interests which
resulted in the potentialities and limits of the colonization project and
influenced independence. The choice of Brazil’s colonial past aims to
give visibility to an asymmetrical international law, guided by unequal
international regulation, as seen in Portugal’s complex relationship with
Recebido em 10/8/20 the other European powers and their reflexes in Brazil.
Aprovado em 8/9/20

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 109-132 jul./set. 2021 109


Keywords:  International law. Colony. Brazil. Portugal. Creation of State.

Introdução

A formação do Brasil é retratada sob os mais diferentes ângulos, uti-


lizando os saberes da história, da economia, da política, da diplomacia,
da religião, da literatura, entre outros, desde a era colonial até os dias
de hoje. Este artigo destaca o ângulo do Direito Internacional e como
suas normas, na fase anterior à independência formal (1822), incidiram
na formação dos principais elementos do futuro Estado brasileiro. Com
o enfoque precípuo no Direito Internacional, evita-se eclipsar o papel
que as normas internacionais desempenharam no intrincado jogo de
interesses entre os diversos Estados da época e indivíduos da sociedade
colonial, especialmente os colonizadores europeus (incluindo os não
portugueses), povos originários e as vítimas do tráfico de escravos.
Esse olhar do Direito Internacional revela a articulação entre as normas
internacionais e a evolução da sociedade colonial, em movimentos de
(i) convergência (a norma internacional é cumprida) e (ii) dissonância (a
norma internacional contraria determinados grupos e é descumprida).
De toda forma, mesmo nos casos de dissonância, a norma internacional
é tida como baliza que necessita ser contornada ou alterada.
Como esse ângulo de Direito Internacional permite um olhar vasto,
foram necessários recortes de ordem temporal e material. Este artigo
propõe-se ao estudo do Direito Internacional como instrumento de
compreensão da formação do Brasil a partir da era colonial com foco em
três elementos sobre os quais as regras jurídicas internacionais tiveram
papel de relevo: o território, o povo e a soberania.
A divisão do artigo obedeceu a essa tríade, uma vez que o próprio
Direito Internacional a entende como indispensável para o reconhe-
cimento do Estado no plano internacional1. Por sua vez, a escolha do
passado colonial brasileiro tem como objetivo dar visibilidade a um
Direito Internacional assimétrico, pautado por uma regulação inter-
nacional desigual, como se vê na complexa relação de Portugal com as
demais potências europeias e seus reflexos no Brasil. A perspectiva aqui
proposta não isola a norma internacional do mundo envolvente, em

1
 Conforme o art. 1o da Convenção sobre os Direitos e Deveres dos Estados, firmada em
Montevidéu, em 1933 (BRASIL, 1937). Segundo Dugard (2013, p. 10), apesar de ser uma
convenção regional americana (ratificada por 17 Estados, incluindo o Brasil e os Estados
Unidos), é tida como reflexo da prática dos Estados.

110 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 109-132 jul./set. 2021


seus aspectos políticos, econômicos e sociais; Tais impactos diretos e indiretos mostram a
ao contrário, expõe sua inserção na época em faceta ativa do Direito Internacional, afastando
que foi produzida2. o risco da despolitização do estudo da disci-
Essa interação do Direito Internacional na plina apontado por Becker Lorca3. O Direito
era colonial com a formação dos elementos bá- Internacional não é neutro4, não evolui linear-
sicos do futuro Estado brasileiro independente mente e a análise da era colonial desnuda não
permite expor os seus impactos diretos sobre só suas já conhecidas assimetrias, mas também
território, povo e soberania, mas também seus como os Estados e indivíduos afetados forjaram
impactos indiretos no modo como o Direito modos de adaptação e mesmo de violação de
Internacional foi percebido em meio a relações seus dispositivos.
desiguais entre as potências europeias e, depois, A abordagem do presente artigo é atual e
com a vinda da Família Real para o Brasil, com busca preencher lacuna na formação do es-
a manutenção da subordinação do Reino Unido tudo brasileiro sobre o Direito Internacional,
de Portugal, Brasil e Algarves. em complemento aos estudos já realizados
O presente artigo não visa encontrar raízes sobre a importância da história do Direito
descontextualizadas do passado para justificar Internacional, os quais foram centrados, não
as práticas presentes (o que seria anacronismo), sem razão, na contribuição de juristas euro-
nem tem a ambição de ser um estudo historio- peus desde o tempo medieval até épocas mais
gráfico, pois seu foco é o Direito Internacional. recentes5.
A especificidade da análise da história para o Como aponta Galindo (2015, p. 352), a aná-
Direito consiste em reconhecer que o passa- lise histórica do Direito Internacional permite
do não pode ser esquecido, uma vez que gera explorar diferentes alternativas de compreensão
obrigações para o presente e futuro, conforme do Direito Internacional presente e futuro, por
Orford (2012, p. 6-7). meio da “necessária prestação de contas devida
Também não se trata de analisar, de modo para com as gerações passadas”.
reducionista, somente as opções normativas
do Direito Internacional (soberania, igualdade
formal entre os Estados, pacta sunta servanda) 1  O Direito Internacional imposto
e seu uso como ferramentas de poder, mos- antes mesmo de Cabral
trando as relações políticas entre Estados da
época. Cumpre demonstrar de que modo tais O Direito Internacional praticado na Europa
opções normativas foram impostas em especial impactou o atual território brasileiro antes mes-
aos povos originários, à migração forçada dos mo da chegada dos portugueses em 1500. O
escravizados e aos habitantes em geral das terras catalisador dessa incidência precoce foi a viagem
que formariam o Brasil, impactando na consti-
tuição da nacionalidade e território “brasileiros”. 3
 Para Becker Lorca (2006, p. 305), “[t]he contemporary
production of a narrative of professional appeasement at the
cost of depoliticization makes the Latin American discipline
of international law irrelevant”.
2
 Para Craven (2007, p. 7), a concepção da relação da
história com o Direito Internacional aqui defendida resu-
4
 Para Veçoso (2017, p. 99), na América Latina (e no
me-se em termos de um Direito Internacional na história Brasil, foco do presente artigo), “o Direito Internacional
(“international law in history”), em vez da tradicional his- parece ser visto como algo politicamente neutro, em que a
tória do Direito Internacional (“history of international América Latina poderia somente contribuir com teorias e
law”) ou mesmo de uma história no Direito Internacional doutrinas para o progressivo desenvolvimento do campo”.
(“history in international law”). 5
 Ver as obras de Casella (2012, 2014, 2015).

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 109-132 jul./set. 2021 111


oceânica de Cristóvão Colombo, a serviço do papa Júlio II. De qualquer modo, o tratado foi
reino de Castela, e seu desembarque na ilha de essencial para evitar uma guerra precoce entre
São Salvador, nas Bahamas, em 12/10/1492. as duas potências ibéricas, abrindo um espaço
Tal evento estimulou disputa sobre tais mínimo de cooperação entre elas. Calógeras
terras entre dois Estados europeus em plena (1998, p. 48) conclui que o pacto de Tordesilhas
ascensão na navegação marítima: Portugal e não foi cumprido, já nos seus primeiros anos,
Espanha (em vias de unificação). Para evitar tanto pelos espanhóis quanto pelos portugueses,
conflito entre os reinos católicos, em 1493 o abrindo-se um “longo período de atritos e de
papa Alexandre VI adotou a bula Inter Coetera tensão diplomática”, resultando em guerras nas
(“entre outros”, em latim), pela qual reconheceu novas possessões.
o domínio português sobre as terras a leste de Assim, ao aportar em Porto Seguro, na
um meridiano traçado a 100 léguas a oeste do Bahia, em 22/4/1500, em aparente desvio da
arquipélago de Cabo Verde, cabendo à Espanha rota para as Índias, a frota de doze caravelas de
as terras situadas para além daquele meridia- Pedro Álvares Cabral envolveu definitivamente
no. Contudo, a bula não encerrou a polêmica, os povos originários e suas terras, que formaram
porque Portugal entendeu que essa divisão o o Brasil nos litígios, nas guerras e no Direito
prejudicava, em virtude da provável ausência Internacional europeu.
de terras na hipotética faixa traçada.
Por isso, as negociações prosseguiram e foi
celebrado em 1494 o Tratado de Tordesilhas 2  O povo
(cidade da Espanha, próxima de Valladolid),
cuja denominação oficial é “Capitulação da 2.1  Os europeus
Partição do Mar Oceano”. Nesse tratado, o reino
de Portugal (do rei João II) e os reinos de Castela A partir de 1500, os portugueses passaram a
e Aragão (por meio dos reis católicos Fernando interagir com os povos originários, buscando a
de Aragão e Isabel de Castela) definiram um exploração dos recursos naturais das terras, com
novo traçado divisor, pelo qual Portugal teria uso da escravidão e conversão ao cristianismo,
direito às novas terras até 370 léguas a oeste de não se descartando, eventualmente, a busca de
Cabo Verde. apoio indígena contra outros europeus.
O impacto do Direito Internacional no Brasil Na mesma época, as ambições francesas
é único, pois, conforme resumiu Corrêa (1994, fizeram-se sentir nas terras brasileiras. Nas pri-
p. 5), a América lusitana já tinha uma linha meiras décadas do século XVI, navios franceses
de demarcação de seus limites com a América realizaram mercancia com os povos originários,
castelhana antes mesmo da chegada das pri- buscando madeira (pau-brasil, usado na tintura
meiras caravelas. de tecidos) e artigos considerados exóticos na
Mostrando os limites do Direito Interna­ Europa. Também foi frequente a vinda de navios
cional da época, o tratado é omisso e ambíguo de corsários ingleses, com invasões e saques.
(qual ilha do arquipélago seria usada para dar Os espanhóis, por seu turno, exploraram o rio
início à medição? Qual tipo de légua seria uti- Amazonas (o “mar dulce”) a partir da viagem
lizada?) e nunca foi reconhecido pelos demais de Francisco de Orellana, bem como o rio da
Estados europeus com ambições coloniais, ape- Prata, mas seus esforços foram concentrados
sar de ter sido confirmado pela bula de 1506 do na produção mineira dos altiplanos dos Andes,

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especialmente após a descoberta das reservas çaram por outras partes do nordeste e norte da
de prata de Potosí (na atual Bolívia) em 15456. colônia, tendo sido expulsos somente em 165411.
Após a implantação das capitanias hereditá- Garcia (2018, p. 34) relata que um dos prin-
rias em 1530 por ato de dom João III, criou-se cipais resultados do longo conflito com os Países
o governo-geral em 1549, o que significou, na Baixos pelo controle do nordeste luso-brasileiro
leitura de Vianna (1948), uma vontade de for- foi o aumento da “feição atlântica” do império
mar um único território na América lusitana, colonial, o que despertara o interesse das elites
sob constante ameaça de rivais europeus. Quase portuguesas pela manutenção do Brasil. De
em sequência, em 1555 franceses ocuparam a modo precoce, em 1735 foi proposta pelo di-
baía de Guanabara, na tentativa de criar uma plomata português Luís da Cunha a mudança
colônia protestante7. Os franceses da região do do rei de Portugal para o “imenso continente do
Rio de Janeiro foram expulsos em 1567, fracas- Brasil”, sagrando-se “Imperador do Ocidente”.
sando a tentativa de formar na região a França Essa proposta de transmigração, ainda que fra-
Antártica8. cassada, demonstrava a fragilidade e decadência
Após a morte do rei português Sebastião I do Portugal metropolitano.
na batalha de Alcácer-Quibir (em 15789), hou- Essas disputas seriam o primeiro reflexo
ve uma crise sucessória, assumindo o trono das guerras e embates europeus em terras que
de Portugal o rei espanhol Felipe II. Durante formariam o Brasil.
a União Ibérica (1580-1640), expandiram-se
os movimentos de portugueses para além do 2.2  Os povos originários
fixado no Tratado de Tordesilhas, em especial
pelas incursões dos bandeirantes paulistas10, o Após a chegada dos portugueses, portugue-
que contribui para a ampliação posterior do ses e povos indígenas interagiram por meio de
futuro território brasileiro por meio do Tratado trocas, recebendo os indígenas bens em troca
de Madri. do auxílio no extrativismo (em especial do pau-
Por outro lado, os diversos inimigos da -brasil). A relação do português com os povos
Coroa espanhola passaram a atacar o territó- indígenas foi essencial após a criação das capita-
rio colonial português. Destaca-se a invasão nias hereditárias, cuja maioria fracassou; as duas
do Maranhão por franceses em 1612, na ten- que mais prosperaram contaram com estreitos
tativa de criação da França Equinocial, até sua laços de aliança com as lideranças indígenas
expulsão definitiva em 1615. Por sua vez, os de suas regiões. Com o aumento do contato,
holandeses invadiram a região de Pernambuco, aumentou a incidência de doenças contagiosas e
conquistaram Recife e Olinda em 1630, e avan- das guerras intertribais estimuladas pelos com-
petidores europeus. O avanço da colonização
6
 Ver Varnhagen (1877, p. 93). com a criação do governo-geral resultou no
7
 Ver Vianna (1948, p. 33). aumento da necessidade de mão de obra pelo
8
 Holanda (2007, p. 181) relata chacinas feitas pelos
portugueses contra os indígenas (os “Toüopinambaoults”) colonizador, gerando resistência e guerra.12
na expulsão dos franceses. Ver também Fausto (1995, p. 43). Nesse contexto, os povos originários resis-
9
 Ver Boxer (1969, p. 348-349).
tiram aos portugueses, em cenário de guerra
10
 Há vários ciclos das bandeiras: desde o da busca
do apresamento e escravidão de indígenas até o ciclo de
povoamento. Na sua fase final, as bandeiras tornaram-se
“povoadoras e [vinculadas] à abertura de novas vias de
11
 Ver Abreu (1998, p. 65-105).
comunicação” (GOES FILHO, 2015, p. 117). 12
 Ver Almeida (2010, p. 27-46).

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familiar ao Direito Internacional clássico. A resistência armada mais
emblemática do início da colonização portuguesa foi a da Confederação
dos Tamoios, revolta liderada pelos indígenas tupinambás na região
litorânea da atual Baixada Santista (à época, capitania de São Vicente),
resultando na Paz de Iperoig, de 1563. O sucesso foi efêmero e parcial.
Para Fernandes (2007, p. 97), as fontes de funcionamento eficiente das
sociedades dos povos originários impediram a formação de um sistema
estável de solidariedade tribal, exigido pela invasão europeia. As alianças
eram fragmentadas e a luta contra o europeu adotava padrão dispersivo,
de “índios contra índios”, em óbvio benefício do branco.
Do ponto de vista do Direito Internacional, a relação dos portu-
gueses e demais europeus com os povos originários foi fundamental
na formação do território brasileiro, com destaque para a expansão e
garantia das fronteiras portuguesas com o auxílio indígena. As guerras
indígenas integraram-se com as guerras coloniais, demonstrando o
papel ativo das populações indígenas na conformação futura do País.
Combatendo a visão dos povos indígenas como vítimas passivas
(altivas, mas vítimas) do invasor europeu, Almeida, M. (2017, p. 23)
retrata a busca da satisfação própria de interesses pelos diferentes gru-
pos indígenas em suas disputas. Assim, em vez de derrota de “índios
selvagens” por portugueses apoiados por “índios fiéis e submissos”, a
autora revela a existência de grupos étnicos e sociais distintos, que nego-
ciavam e lutavam por seus interesses. Não eram “tolos ou manipulados”:
suas ações eram fruto de escolhas condizentes com as lógicas de suas
respectivas sociedades; foram agentes históricos essenciais na formação
da sociedade colonial e pós-colonial.
Na era colonial, não existia respeito à pluralidade étnica e cultural,
como se reconhece nos dias de hoje13. Pelo contrário, foi predominante
a lógica da assimilação dos povos originários à cultura da sociedade
envolvente.

2.3  Os escravos africanos

O tráfico transatlântico de escravizados africanos ganhou no Brasil


uma dimensão inédita pelo seu porte. Do século XVI até 1850, a colônia
(e depois o País) transformou-se no maior importador de escravizados
africanos das Américas14. Para Klein (2012, p. 107), em nenhuma outra

13
 Sobre o Estado pluriétnico estabelecido pela Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988, ver Ramos (2020, p. 925).
14
 Ver Eltis e Richardson (2008, p. 21). Entre 1550 e 1850, o número total de africanos
escravizados desembarcados no Brasil atinge 4,8 milhões de pessoas. Foram consultados
os números fornecidos por Alencastro e também o banco de dados organizado por Eltis e

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sociedade escravagista foram os escravos “tão face do poder britânico. A frota naval britânica
numerosos e tão importantes quanto no Brasil”. foi utilizada para apreender navios de escravi-
A incidência do Direito Internacional para zados inimigos (direito de presa), mas também
restringir e depois suprimir a migração forçada navios portugueses, o que foi suspenso em 1814.
de africanos ocorreu no final da era colonial No tratado de 1810 consta que o combate ao
graças à ação do Reino Unido, por meio de atos comércio de escravos seria uma “causa de hu-
unilaterais e pela celebração de tratados para manidade”, sustentada pela Inglaterra16.
pôr fim ao tráfico. Apesar dos lucros com o tráfico transatlân-
Em que pesem os ideais iluministas e a tico de escravizados, Portugal, em situação de
promoção da liberdade e igualdade no final crescente fragilidade após anos de ocupação
do século XVIII, não foi a defesa de direitos francesa e inglesa, não teve como evitar celebrar
humanos que motivou o Reino Unido a agir com o Reino Unido novo tratado em janeiro
no plano internacional, transformando-se no de 1815, pelo qual foi proibido o tráfico de
século XIX no líder das campanhas (com uso da escravizados ao norte do Equador e permitido
marinha de guerra, inclusive) contra o tráfico ao sul apenas o comércio oriundo de portos do
de escravizados. Klein (2010) sugere inclusi- seu já reduzido império colonial. Tal tratado foi
ve que os líderes britânicos a favor do fim do celebrado no âmbito do Congresso de Viena,
tráfico eram racistas. A campanha britânica tendo Portugal recebido indenizações, inclusive
contra o tráfico de escravizados era fundada pelos navios irregularmente apreendidos até
na crença de que o trabalho assalariado e o 1814. Foi parcial a vitória portuguesa, pois a
livre-comércio deveriam ser os pilares da nova menor parte do tráfico à época era realizada na
sociedade da época, o que a distinguia tanto do faixa proibida17. Após o Congresso de Viena,
passado medieval quanto da era mercantilista entre as potências europeias somente Portugal
e seus pactos coloniais15. e Espanha opunham-se ao fim do tráfico de
A partir da invasão francesa e da fuga da escravizados.
Família Real para o Brasil em 1808, o Reino Contudo, a proibição não significou a com-
Unido obteve diversas concessões da Coroa pleta eliminação do tráfico, mesmo ao norte da
portuguesa, agora dependente totalmente da linha do Equador. Faltava à marinha de guerra
proteção militar britânica, tanto na metrópole britânica o direito de busca em tempos de paz
quanto nos territórios coloniais. Em 1810, no nos navios mercantes portugueses para detectar
Tratado de Aliança e Amizade entre Portugal e apreender os navios com escravizados.
e o Reino Unido, o príncipe regente dom João Por isso, Portugal cedeu novamente e foi
concordou em adotar medidas para a abolição celebrada convenção adicional em 1817 para
gradual do comércio de escravizados em seus permitir a navios de guerra dos dois Estados
domínios (art. 10), mas não concordou com (obviamente, somente o lado britânico, na prá-
sua extinção, em uma obstinada resistência, tica, tinha poder de fiscalizar os mares) abordar
mesmo diante da impotência portuguesa em e efetuar buscas em navios mercantes suspeitos
de terem a bordo escravizados embarcados nas
Richardson (Transatlantic Slave Trade Database – TSTD).
áreas proibidas no tratado de 1815.
Para Alencastro (2018), o número do TSTD referente ao
Brasil (5,8 milhões) é sobre-estimado, devendo ser utilizada
a cifra de 4,8 milhões.  Ver Goulart (1975, p. 221).
16

15
 Ver Klein (2010, p. 190).  Ver Bethell (2002, p. 34).
17

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Com o direito de visita e busca, o Direito colônia (mazombos), que seriam educados pela
Internacional concedia ao Reino Unido instru- cartilha acadêmica da metrópole, mesmo após
mento para suprimir o tráfico de escravizados. a independência18.
Lima (1908, p. 435) relata que lorde Castlereagh, Quanto às forças armadas, elemento im-
ministro de relações exteriores do Reino Unido à portante para a formação de um ideal comum
época, entendeu a importância desse precedente (“morrer pela pátria”), a transferência da Família
para o Direito Internacional. O fato de ter sido Real em 1808 fortaleceu a divisão entre os oficiais
concedido por tratado não concretizou nenhum vindos com a Corte e os oficiais mazombos. Além
direito prático à Portugal, dada a diferença de disso, o absolutismo português não vislumbrava
poder armado naval entre os dois países, sendo introduzir o recrutamento militar geral, dado o
mais uma reciprocidade ilusória do que real. risco de armar a população, tendo o serviço mili-
Contudo, apesar desses esforços – utilizando tar um caráter de controle social, arregimentando
o Direito Internacional –, o tráfico continuou a criminosos ou também indivíduos desprovidos
existir durante toda a era colonial. de recursos ou outras opções.
No final do século XVIII, nos estertores da era
2.4  A comunidade imaginada na era colonial colonial, o núcleo luso-brasileiro contava aproxi-
madamente quatro milhões de pessoas dispersas
É precoce reconhecer na colônia a existência em vilas e cidades espalhadas pelo hoje território
de raízes de um futuro povo brasileiro. Entre brasileiro. Imperava a violência e era imposto
os portugueses, há distinção adicional entre os trabalho penoso em condições de vida precárias
nascidos no território colonial (os mazombos) e insalubres, sendo os escravizados “brutaliza-
e os nascidos na metrópole (os reinóis), bem dos por seus donos e tratados como animais”
como entre a elite fundiária e os demais. Parte (LOPEZ; MOTA, 2008, p. 30). Schwartz (2000,
importante do povo era composta de escravizados p. 110) aponta que, apesar do reconhecimento
e libertos excluídos. do potencial econômico do Brasil, a maioria dos
Como assinala Anderson (2008, p. 30), em portugueses o via como “lugar de exílio e perigo”,
vários países a condição nacional e o naciona- propício para enriquecer e retornar para gozar o
lismo são produtos culturais específicos, criados descanso na pátria.
a partir do final do século XVIII. No Brasil, o Falar de identidade comum é desprezar esse
Estado também construiu a nação. cenário de tensão e violência permanente no qual
Em 1822, o Brasil nasce formalmente para viviam os habitantes da colônia. A imagem de
o Direito Internacional, mas o Estado indepen- uma nação preexistente ao Estado brasileiro foi
dente foi anterior à consolidação de uma iden- uma invenção do século XIX, em pleno império,
tidade brasileira. A ausência de investimento fundada na “pureza” e “heroísmo” dos povos ori-
português na educação da colônia inviabilizou ginários que habitavam o território “brasileiro” e
o uso da educação para forjar elos de pertença que se encontraram com os portugueses e, quase
a uma única comunidade. Era necessária a ida à ignorados, com os africanos, como se vê em obras
metrópole para a aquisição de conhecimento, na
chamada “peregrinação à Coimbra”. A diferença
18
 As primeiras universidades espanholas nas Améri-
cas foram fundadas em 1551 (México e Peru), conforme
com a América espanhola é brutal: nela foram Carvalho (2008, p. 39-42). Sobre o número e localização
criadas 25 universidades. Entre 1772 e 1872, das universidades nas colônias espanholas, ver Carvalho
(2008, p. 70). Sobre o número dos estudantes matriculados
Coimbra recebeu 1.242 estudantes nascidos na em Coimbra de 1772 a 1872, ver Carvalho (2008, p. 72).

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românticas como “A Confederação dos Tamoios”, de Espanha na América Meridional”, denominado
de Magalhães (1856), entre outras19. “Mapa das Cortes”. Tal mapa foi o instrumento
A era colonial, então, apresenta uma popu- da diplomacia portuguesa para, na ausência de
lação, e não um povo como uma comunidade mapas produzidos pela Espanha, demonstrar o
imaginada20, que apenas surgiu no Império. acerto do que havia sido estipulado em projeto
de tratado enviado por Portugal21.
Para consagrar esses limites da ocupação
3  O território: submissão e expansão real de território foi utilizado por Alexandre de
Gusmão o princípio da ocupação efetiva (uti
3.1  Os tratados possidetis, oriundo do Direito Privado romano),
o qual determinava que o domínio acompanhava
No século XVII, as disputas europeias favore- a posse do território (quem possui de fato deve
ceram a expansão do futuro território brasileiro, possuir de direito)22.
pois o fim da Guerra da Sucessão espanhola com Assim, aceitou-se o abandono do Tratado de
a derrota francesa permitira a fixação da fronteira Tordesilhas, o que beneficiou a Espanha no caso
do rio Oiapoque com a Guiana Francesa (renún- das Filipinas. Também ficou acordada a cessão
cia de pretensão francesa, graças ao Tratado de da Colônia do Sacramento à Espanha, tendo
Utrecht, de 1713). Houve ainda a devolução da Portugal recebido as missões jesuítas espanholas
Colônia do Sacramento a Portugal pela Espanha dos Sete Povos das Missões. O Tratado de Madri
(1715). revogou todas as avenças anteriores sobre esses
Para Prado Júnior (1942, p. 69), tal fixação limites e também, curiosamente, permitiu que
expandida da fronteira norte foi fruto da preo- as colônias americanas permanecessem em paz
cupação britânica em afastar a França do rio mesmo quando as metrópoles estivessem em
Amazonas, cuja importância estratégica era mais guerra (VARGAS, 2017, p. 128).
bem compreendida pelo Reino Unido do que por Essas trocas de território, comuns ao Direito
seu aliado português. Isso mostra, mais uma vez, Internacional de então – pautado pela soberania
o reflexo das disputas entre os Estados europeus de Estados dinásticos e sem vínculos com povos
na futura fronteira territorial norte brasileira. ou nacionalidades (conceito posterior à época) –,
Num momento de relação pacífica entre as
Coroas portuguesa e espanhola, em 1750 foi ce-
21
 Ferreira (2007, p. 66) aponta a clara ousadia e mani-
pulação da cartografia portuguesa com a finalidade óbvia
lebrado o Tratado de Madri, que redefiniu limites de estender ao máximo os limites coloniais no “Mapa dos
entre as colônias americanas desses dois Estados Confins do Brazil com as terras da Coroa de Espanha na
América Meridional”, bem como a incrível falta de estrutura
europeus. Destacou-se a atuação de diploma- administrativa da Espanha (potência colonial em tese de
maior calibre) em apresentar, em defesa de seus próprios in-
ta português nascido em Santos, Alexandre de teresses, um mapa confiável com suas ambições na América
Gusmão, que de modo estratégico utilizou mapa do Sul, mostrando “desconhecimento da geografia da região”.
22
 Alexandre de Gusmão nasceu em Santos, em 1695.
feito unilateralmente pelos portugueses em 1749 Aos 15 anos, foi para Portugal, onde cursou Direito em
sobre os “confins do Brasil com as terras da Coroa Coimbra. Foi secretário particular de dom João V e sua
influência é considerada vital para a elaboração da política
desse monarca para o Brasil. Em 1743, foi designado mem-
bro do Conselho Ultramarino, participando da negociação
19
 A obra de Magalhães fora financiada por dom Pedro e redação do Tratado de Madri (1750), contribuindo para
II e, assim, “a literatura cede espaço ao discurso oficial” a fixação dos limites do domínio colonial português na
(SCHWARCZ, 1998, p. 132-134). América do Sul, os quais foram decisivos para a delimitação
20
 Sobre o conceito de comunidade imaginada, ver do território brasileiro. Ver Fundação Alexandre de Gusmão
Anderson (2008, p. 32-34). (2009, p. 10) e Haickel (2007, p. 5).

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gerou resistência na Colônia, como se viu na foi celebrado o Tratado de Badajoz (1801) – uma
“guerra guaranítica” (1753-1756)23. O uso de parte celebrada com a França e outra com a
missões religiosas para assegurar a posse efetiva Espanha (GARCIA, 2018, p. 49). Por esse acordo,
foi uma tática comum a portugueses e espanhóis, a Espanha incorporou a cidade de Olivença, na
fazendo nascer o que Goes Filho (2016, p. 36) fronteira europeia entre os dois países (hoje par-
denominou “uti possidetis religioso”. te da comunidade espanhola de Estremadura).
No Tratado de Santo Ildefonso, de 1777, Portugal, por sua vez, manteve as suas possessões
entre Portugal e Espanha sobre os limites do na América, tal como existiam até aquela data
Brasil, houve novas modificações na frontei- (VARGAS, 2017, p. 135).
ra sul da colônia portuguesa, com a cessão da Com a Revolução Francesa e a ascensão de
Colônia do Sacramento (que não havia sido Napoleão, Portugal tornou-se potencial inimigo
ainda devolvida) e dos Sete Povos das Missões na luta francesa contra a hegemonia britânica,
para a Espanha, e com a devolução da ilha de uma vez que era aliado tradicional do Reino
Santa Catarina ao controle português após ocu- Unido. Houve vários tratados de relevo que
pação espanhola24. impactaram a colônia: (i) os Tratados de 1801
Essa busca da expansão para o sul do territó- entre Portugal e França sobre a fronteira com a
rio colonial foi ambição duradoura de Portugal, Guiana Francesa (depois declarados nulos por
de modo a estabelecer domínio sobre a mar- dom João VI); (ii) o Tratado de Fontainebleau
gem esquerda do rio da Prata, participando entre França e Espanha, para regular a invasão de
dos lucros do comércio de escravizados, gado Portugal e partilha de suas colônias em 1807; e,
e alimentos na região, a qual prosperava com o no mesmo ano, (iii) a Convenção Secreta entre o
intercâmbio com centros mineiros no interior Reino Unido e Portugal, pela qual o Reino Unido
da América do Sul (GOES FILHO, 2015, p. 162). se comprometeu a transferir a Corte portuguesa
Outro tema de Direito Internacional que para o Brasil (VIANNA, 1958, p. 78-81).
impactou na formação do território do futu- Em 1809, tropas portuguesas, com apoio bri-
ro Estado brasileiro foi o protesto português tânico, ocuparam Caiena (MENDONÇA, 2013,
contra a ocupação da ilha de Trindade, feita, p. 112). A partir de 1811, com o crescente colap-
ironicamente, pelo seu aliado britânico, que a so do domínio da Coroa espanhola na América
desocupou depois em 178225. do Sul, os vínculos e relações de reciprocidade
Para fechar o ciclo das disputas entre Por​tu- entre proprietários de terras e comerciantes da
gal e Espanha com impacto territorial no Brasil, colônia lusitana com a região oriental do antigo
Vice-Reinado do Prata levaram à intervenção
23
 Sobre a guerra guaranítica e, em especial, a batalha portuguesa na região, ocupada militarmente
de Caiboaté (1756), na qual foram vencidos os indígenas
que desejavam preservar as missões, ver Reis (2007, p. 406). em 1820, cumprindo a doutrina da existência
24
 Goes Filho (2015, p. 162) considera que o tratado de “fronteiras naturais” para estender a colônia
seria inválido, pois tratar-se-ia de um acordo preliminar,
dependente de tratado posterior e que teria sido anulado brasileira até o Prata26. Em 1821, um congresso
pela guerra de 1801. De toda forma, a defesa da nulidade reunido em Montevidéu declarou formalmente
do Tratado de Santo Ildefonso auxiliou a narrativa imperial
de ausência de fronteiras bem delimitadas, o que resultaria a união da região oriental do rio Uruguai ao
no uso do princípio do uti possidetis (claramente favorável
ao Brasil).
Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves,
25
 Conforme relata Arraes (2002, p. 245), essa desocupa-
ção no século XVIII foi uma das justificativas utilizadas, de
modo bem-sucedido, pela República no final do século XIX 26
 Sobre a doutrina das fronteiras naturais, ver Magnoli
contra a nova e breve ocupação britânica da ilha (1895-1896). (1997, p. 21).

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sob o nome de Província Cisplatina. O apoio à incorporação, porém,
foi circunstancial em face de disputas internas na região. A união terri-
torial com nítida heterogeneidade não era incompatível com o Direito
Internacional da época, que orbitava em torno da fidelidade dinástica
e da obediência a um monarca, detentor da soberania. Contudo, após a
independência do Brasil, ficou evidente que o vínculo dinástico ao estilo
do Antigo Regime era frágil, encerrando-se em 1828 com a criação da
República Oriental do Uruguai (SLEMIAN; PIMENTA, 2003, p. 65-68).
Mesmo com a queda de Napoleão em 1814, dom João insistiu em
permanecer no Brasil, renunciando à possibilidade de participar mais
incisivamente, como chefe de Estado de potência vencedora, das nego-
ciações de paz com a França.
Para Pereira (2016, p. 91), essa situação enfraqueceu sobremaneira a
representação portuguesa no primeiro Tratado de Paz de Paris (1814),
conhecido por prever a convocação do Congresso de Viena no mesmo
ano. Os interesses portugueses contra a França derrotada foram geridos
pelo Reino Unido, que, contudo, estava mais interessado em manter o
equilíbrio de poder na Europa continental, não enfraquecendo dema-
siadamente a França. Por sua vez, no Tratado de Paz (Tratado de Paris)
foi determinada a devolução da Guiana Francesa (então sob domínio
português), retornando a colônia luso-americana aos limites anteriores
a 1792. Por isso, dom João VI recusou-se a ratificar tal tratado.

4  A soberania: a construção do Estado brasileiro na era


das revoluções

4.1  O longo processo de emancipação: as inconfidências


do século XVIII

A superexploração da colônia resultou, no século XVIII, em revoltas


contra o domínio português. Mostrando a insatisfação com o uso abusivo
dos recursos da colônia por uma metrópole já totalmente dependente
do Reino Unido, eclodiram conflitos como a chamada Inconfidência de
Curvelo (Minas Gerais, 1777) indicando, nas palavras de Lopez e Mota
(2008, p. 280), as “mudanças estruturais que estavam por vir”.
A insatisfação dos colonos com o peso da carga tributária, ineficiência
da máquina administrativa, exigências impostas por monopólios e pri-
vilégios da Coroa deu-se com mais força após o arrefecimento do ciclo
do ouro já em meados do século XVIII, quando Portugal se recusou a
rever suas políticas de tributação. Segundo Boxer (1969, p. 196-197), a
Coroa alimentava o sentimento de possuir uma colônia “vaca leiteira”

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com muito a contribuir, e que quase já havia que fosse pleiteada a abolição da escravidão.
alcançado a população da metrópole. Tentou-se implantar uma república escravo-
A crise do Antigo Regime europeu vivida crata, buscando-se apoio nos Estados Unidos,
por Portugal resultou numa política de Estado cuja independência em 1776 inspirou o fracas-
voltada a reformas (reformismo ou despotismo sado movimento. Conforme Maxwell (2001,
esclarecido) nos reinados de José I (1750-1777) p. 211), em vez de apoiar eventual insurgência,
e Maria I (1777-1816). Esse reformismo foi os Estados Unidos preferiram à época celebrar
aplicado à colônia para obter maior eficiência acordo comercial com Portugal. Em carta escrita
do aparato estatal, inclusive com aprimoramento por Thomas Jefferson em março de 1789 em
da fiscalização sobre a arrecadação dos tributos. Paris, fica claro o desejo de Portugal de cele-
Porém, as reformas só revelaram as contradições brar o acordo para afastar os Estados Unidos
do Império que fizeram eclodir a resistência da “tentação de cooperar na emancipação de
dos colonos: como exigir maior eficiência e ao suas colônias”. Não havia maior reflexão dos
mesmo tempo manter uma estrutura marca- insurgentes em relação à situação de exclusão
da por desigualdades, com uma das partes (a da maior parte da população submetida ao re-
colônia) em situação de eterna inferioridade? gime de escravidão. A paradoxal situação de
(SLEMIAN; PIMENTA, 2003, p. 13). se lutar pela liberdade do jugo colonial e, ao
Além disso, o reformismo do velho absolu- mesmo tempo, utilizar maciçamente a mão de
tismo português não afetou o consagrado pelo obra escrava não foi enfrentada na época. Em
Direito Internacional no Tratado de Methuen 1792, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o
(1703)27: a subordinação portuguesa (e de suas Tiradentes, foi executado pelo seu envolvimento
colônias) ao Reino Unido. Os colonos sofriam na Inconfidência.
com essa intermediação da metrópole na se- Enquanto os insurgentes da Inconfidência
gunda metade do século XVIII, sendo conco- Mineira pertenciam em sua maior parte à elite
mitantemente estimulados por experiências re- da colônia, os insurgentes da Conjuração Baiana
volucionárias contra o absolutismo, em especial (ou Revolta dos Alfaiates), em 1798, pertenciam
a Revolução Americana (1776) e a Revolução aos estratos de artesões e escravizados, com as-
Francesa (1789). pirações mais igualitárias e libertárias. Também
Para delimitar o impacto das insurgências sufocada, foi uma insurgência social, mas tam-
e sua influência na futura conquista da sobe- bém colonial. De acordo com Ruy (1942, p. 221),
rania pelo Brasil, destacaram-se três principais tratou-se do último marco das inquietações
insurgências: a Inconfidência Mineira (1789), nativistas do século XVIII, que a princípio não
a Inconfidência Baiana (1798) e a Revolução tinham uma unidade nacional que as distâncias
Pernambucana (1817). e os meios de transporte retardavam. Porém,
No caso da Inconfidência Mineira, tratou- destaca-se a influência das ideias iluministas
-se de insurgência de motivação mais colonial da Revolução Francesa, além do objetivo de
que social (LOPEZ; MOTA, 2008, p. 280), sem abolir a escravidão e as desigualdades sociais,
bem como a forte repressão portuguesa, o que
fez fracassar o levante. Mesmo assim, não se
27
 Assinado no contexto da guerra de sucessão espanhola,
assegurou o mercado português aos “panos ingleses, em tratou de uma revolta que se amparava na le-
troca de ouro, vinho e de uma base naval na confluência gitimidade de direito à emancipação da totali-
do Atlântico e do Mediterrâneo”, nas palavras de Lopez e
Mota (2008, p. 278). dade do povo brasileiro; o confronto foi entre

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a comunidade com configuração específica, os superando a proibição de estabelecimento a
baianos (o povo baiense), e uma monarquia homens livres que não fossem portugueses. Para
absolutista, e não contra uma nação estrangeira. Almeida, P. (2017, p. 106-138), mesmo antes
A irresignação era contra a Coroa, e não contra da independência, terminara o pacto colonial.
a nação portuguesa, como se esta fosse uma A situação aguda de fragilidade de Portugal
potência ocupante. (com seu território europeu sob ocupação es-
Com o insucesso dessas iniciativas, a entrada trangeira) impactou ainda mais seu poder de
do século XIX propiciou um processo de inde- negociação. Foram celebrados dois tratados
pendência peculiar, forjando o futuro Estado com o Reino Unido em 1810: o primeiro, de
brasileiro em 1822 (GARCIA, 2018, p. 52). “comércio e navegação”, e o segundo, de “alian-
ça e amizade”, ambos com conteúdo típico de
4.2  Vingar e crescer: a vinda tratados desiguais, nos quais as condições são
da Família Real extremamente benéficas para um dos lados,
sem reciprocidade real.
Em 1808, a chegada ao Brasil da Família Pelo tratado de comércio e navegação, para
Real e de membros da Corte portuguesa (apro- os produtos britânicos foram concedidos privi-
ximadamente quinze mil pessoas), escoltados légios alfandegários superiores até aos produtos
por frota britânica, demonstrou a decadên- portugueses: taxa de 15% ad valorem para a
cia de Portugal e o fortalecimento imediato Grã-Bretanha, contra 16% para Portugal e 24%
da colônia, agora centro do império lusitano, para os demais países. Concedeu-se também
numa verdadeira “inversão colonial”, marcando extraterritorialidade judicial para os súditos
um novo período na vida da colônia (LOPEZ; britânicos no Brasil, sem reciprocidade aos por-
MOTA, 2008, p. 313). Se por um lado a vinda tugueses no Reino Unido (estabelecimento da
da Família Real manteve Portugal na órbita figura do “juiz conservador da nação inglesa”),
de influência britânica, por outro atendeu ao além de liberdade religiosa para os protestan-
desejo de retomada da grandeza perdida pela tes britânicos e proibição da implantação da
decadência da metrópole: seria uma estratégia Inquisição no Brasil, com acesso irrestrito de
de “vingar e crescer”, conforme Cunha (2007, navios de guerra britânicos aos portos portu-
p. 157). gueses (sem reciprocidade também).
Os primeiros atos no plano do Direito Inter­ No tratado de aliança e amizade, destaca-
nacional e nacional romperam parcialmente a -se o uso do Direito Internacional na temática
posição subalterna do Brasil, destacando-se da escravidão por meio da anuência da Coroa
nesse sentido: (i) o ato unilateral determinan- portuguesa em realizar a gradual abolição do
do a abertura dos portos brasileiros às nações tráfico de escravos. O tratado previu que o prín-
amigas, estabelecendo o comércio direto entre cipe regente concordava em cooperar com a
o Brasil e Reino Unido, sem a intermediação de Grã-Bretanha “pela adoção das medidas mais
Portugal (agora ocupado por tropas francesas); eficazes para levar a cabo a gradual abolição do
(ii) a revogação do alvará régio de 1785, que comércio de escravos em todos os seus domí-
proibia indústrias manufatureiras no Brasil, nios” e também prometia proibir o comércio
favorecendo a diversificação da economia lo- oriundo “da costa da África que então não per-
cal; (iii) a permissão do ingresso no Brasil de tencesse aos domínios de Sua Alteza Real” e que
estrangeiros que nele quisessem se estabelecer, não mais vigorasse tal tráfico (BETHELL, 2002,

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p. 29-30). Dom João ganhou tempo, pois a Grã-Bretanha havia (ainda)
consentido que Portugal continuasse o comércio dentro de seus domínios.

4.3  Sem sentir e sem querer: o Reino Unido de Portugal, Brasil


e Algarves

Foi celebrado em janeiro de 1815, no bojo das negociações do


Congresso de Viena, tratado de Portugal com o Reino Unido pelo qual
ficou estabelecido o dever da Coroa portuguesa de eliminar o tráfico
de escravizados da costa da África ao norte do Equador. Essa limitação
geográfica do dever de abolição do tráfico foi considerada pequena
vitória de Portugal, interessado nos lucros do tráfico de escravizados
para o Brasil (PEREIRA, 2016, p. 91).
Outro impacto relevante do novo concerto europeu para o Brasil foi
o fim (formal) do seu estatuto colonial. Com base em ofícios enviados
pelos representantes portugueses no Congresso de Viena, Mendonça
(2013, p. 120) fez meticulosa reconstrução do ocorrido. Inicialmente, foi
no Congresso de Viena que o representante francês Talleyrand sugeriu
aos representantes portugueses28 que fossem estreitados os laços entre
Portugal e o Brasil, para “lisonjear seu povo” e, assim, afastar o risco
da independência. Após sugestão de Talleyrand, o conde de Palmela,
representante de Portugal, sem ter instruções oriundas da Corte no Rio
de Janeiro, consultou-se com o representante britânico lorde Castlereagh,
que deu a aprovação britânica. Com tal aprovação (mostrando o papel
subalterno de Portugal diante do Reino Unido), elevou-se a colônia à
condição de reino. Mesmo na falta de anuência expressa de dom João,
na denominação do signatário na ata final do Congresso, em 9/6/1815,
foi utilizado pelos representantes brasileiros o esclarecedor tratamen-
to “Sua Alteza o Príncipe Regente do Reino de Portugal e do Brasil”
(MENDONÇA, 2013, p. 120). Nas palavras bem-humoradas de Mendonça
(2013, p. 121), “[d]essa forma, sem sentir e sem querer, o Brasil se vira
elevado à categoria de Reino Unido com Portugal, na memorável reu-
nião de Viena”. Somente em 16/12/1815, por meio de carta régia, dom
João ordenou a utilização do título de príncipe regente do “Reino Unido
de Portugal, Brasil e Algarves”, pondo fim – apenas formalmente – ao
estatuto colonial do Brasil.
Para o Direito Internacional, não houve “independência” com a
modificação do estatuto brasileiro, mas no plano simbólico o novo reino
transformou um conglomerado de capitanias vinculadas diretamente a

28
 Foram três representantes: o conde Palmela, Antônio Saldanha da Gama e Joaquim
Lobo da Silveira.

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um centro europeu numa entidade política dotada de territorialidade
específica (o “reino”). A antiga identidade luso-americana, que vinculava
portugueses da Bahia ou de São Paulo aos de Portugal, transformou-se em
identidade brasileira, possibilitando a ascensão de uma nação brasileira
(JANCSÓ; PIMENTA, 2000, p. 154). O Brasil era agora um “reino” per se.
Pouco menos de dois anos depois, representando já um desejo de
emancipação, eclodiu a Revolução Pernambucana, de 1817 (a “revolução
dos padres”). Foi fruto da insatisfação de setores mercantis e agrários
de Pernambuco, bem como de agrupamentos urbanos empobrecidos,
contra o governo imperial no Rio de Janeiro, em especial contra medidas
de arrecadação de impostos pelo Real Erário a partir de 1812, com forte
impacto nas exportações da região e no consumo interno. A tomada
do poder e a adoção do sistema republicano foram efêmeros, durando
aproximadamente 70 dias (entre março e maio de 1817). Buscou-se
unir as capitanias vizinhas e instalaram-se governos republicanos na
Paraíba e no Rio Grande do Norte, mas a falta de apoio dos senhores de
engenho escravocratas (temerosos da possível abolição da escravidão)
facilitou a reação monárquica, que sufocou a rebelião (CAMPOS, 2020,
p. 78-80; MELLO, 2007).

4.4  A Revolução de 1820 e o fim do sonho da igualdade no Reino

Após a morte da rainha dona Maria I em 1816, somente em 1818


o regente foi sagrado como rei João VI na cidade do Rio de Janeiro;
mesmo assim, não retornou a Portugal. Em 1820, eclodiu a Revolução
Constitucionalista do Porto, que exigiu o seu retorno e a adoção de uma
Constituição liberal.
Em janeiro de 1821, instalaram-se as “Cortes Gerais, Extraordinárias
e Constituintes da Nação Portuguesa”, sem representantes do Brasil. Em
fevereiro de 1821, iniciou-se o processo de escolha de representantes
brasileiros nas Cortes de Lisboa e, em abril do mesmo ano, dom João
VI retornou a Portugal. O risco da recusa ao retorno do rei seria a inde-
pendência de Portugal do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves,
em curioso caso de metrópole tornando-se independente da ex-colônia
(GARCIA, 2018, p. 87).
No Brasil, houve a adesão à Revolução do Porto por alguns governos
locais (como os do Pará e Bahia), que criaram juntas provisórias e pas-
saram a usar o termo “Província”, vinculando diretamente a respectiva
região ao governo central lisboeta, desfigurando parcialmente a unidade
conseguida com a vinda da Família Real (LEAL, 2014, p. 29-30). Apesar
do reconhecimento da importância da participação de delegados do
Brasil na elaboração do formato da nova monarquia constitucional, não

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se acatou a igualdade entre os reinos de Portugal e Brasil: na convocatória
das eleições para as Cortes Constituintes de Lisboa, Portugal teve direito
a mais que o dobro de delegados que o Brasil29.
O movimento vintista, que surgiu no Porto, foi singular, pois resultou
da junção de tradições distintas: do liberalismo iluminista ao desejo de
superexploração colonial absolutista. Os revolucionários almejaram o
reformismo liberal (por meio de uma nova monarquia constitucional),
o retorno da Família Real à metrópole e o fim das franquias comerciais
dadas às colônias, o que significava a restauração do pacto colonial
(GOMES, 2018, p. 25).
Para Cunha (2007, p. 198), havia excessiva confiança (“cegueira”)
dos revolucionários portugueses no regionalismo e desunião entre as
províncias do “reino” do Brasil, o que concretizaria o sonho de reesta-
belecer Lisboa como centro, em torno do qual as regiões americanas
orbitariam. Tratou-se de uma situação rara nas relações entre metrópole
e colônia: a metrópole declarou sua “independência” da colônia em
1820 e, depois, a colônia (Brasil) declarou sua independência formal
da metrópole (MAXWELL, 2000, p. 187).

4.5  A escravidão e a aceitação da monarquia

A formação da nova soberania brasileira, distinta da existente no


Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, foi um processo que refletiu as
assimetrias e os diversos graus de vínculo das províncias luso-americanas
a Lisboa. Com a Revolução do Porto, de 1820, tal processo de ruptura
concluiu-se em dois anos.
O apoio final a um Estado independente comandado pelo príncipe
regente foi feito pelo manifesto de dom Pedro, de 1o/8/1822, no qual
acusou as Cortes de Lisboa de quererem “libertar a escravatura, e ar-
mar seus braços contra seus próprios senhores”30. A associação entre o
apoio à manutenção da escravidão e a construção da unidade soberana
do Brasil foi fruto do contexto internacional das primeiras décadas do
século XIX, com a oposição britânica ao tráfico de escravos. As pro-
víncias luso-americanas controladas pelo poder fundiário escravocrata
necessitavam de um governo central que organizasse a resistência aos
britânicos31. A monarquia ainda oferecia a vantagem de inserção mais
suave no sistema do concerto europeu, dado o atendimento à legiti-

29
 A regra foi de 1 deputado por cada 30.000 cidadãos livres. Conforme Cunha (2007,
p. 180), ao Brasil coube “representação aproximada de 70 deputados (cerca de 50 chegaram
a exercer o mandato) contra 130 de Portugal”.
30
 Ver Slemian e Pimenta (2003, p. 82).
31
 Nesse sentido, ver Magnoli (1997, p. 86).

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mação dinástica pela figura de dom Pedro, o que facilitaria a busca de
sobrevida ao tráfico. Assim, a consolidação da soberania brasileira foi
feita seguindo a linha do absolutismo da época em torno da figura do
príncipe regente, em especial entre 1822 e 1823.
Sob o ângulo do Direito Internacional, em 6/8/1822 foi anunciado
um longo manifesto aos governos e nações amigas, enviado a todo
corpo diplomático do Rio de Janeiro. O “Manifesto às Nações Amigas”
(cuja redação é atribuída a José Bonifácio de Andrada e Silva) é ambí-
guo, pois, ao mesmo tempo em que proclama, “em face do universo”, a
independência política diante da exploração da colônia, da quebra de
confiança com as intenções das Cortes de Lisboa e do risco de o Brasil
se transformar em um novo Haiti (uma referência à insurreição de
escravizados), mencionou também o desejo de “não cortar os laços de
união e fraternidade” (embaixo de um só rei), bem como a missão de
dom Pedro de salvar dom João dos insurgentes de Lisboa, reivindicando
a condição de “reino irmão” (SILVA, 1939, p. 220-235).
Em 14/8/1822, houve nova circular ao corpo diplomático estran-
geiro, repetindo-se a proclamação da independência política do Brasil,
mas ressalvando a “união com Portugal”. Assim, ao mesmo tempo em
que pretendia assegurar a emancipação do Brasil, o príncipe regente
considerava-se delegado e herdeiro do rei, incumbido de salvar a nação
portuguesa, em “devida e decorosa união” com Portugal (circular de
14/8/1822) (CUNHA, 2007, p. 197).
Essa ambiguidade explica-se pela natureza da emancipação brasileira:
longe de ser um processo canalizador de uma aspiração nacionalista de
um povo sob ocupação estrangeira, a independência foi regulada por
orientações dinásticas de uma monarquia europeia em consonância
com interesses locais a favor da autonomia e manutenção do regime
escravocrata. Para Calógeras (1998, p. 463-467), nessa época ocorreu
um “divórcio de facto”, faltando apenas proclamá-lo oficialmente.
O momento da ruptura é controvertido. Para Lyra (1995, p. 197), a
declaração de 7 de setembro (o “grito do Ipiranga”) não seria o marco
da independência, pois passou despercebida aos jornais da época. Para
a autora, a decisão de ruptura e determinação de soberania plena do
Brasil teria ocorrido em carta de dom Pedro ao pai, datada de 22/9/1822,
na qual consta a frase “Triunfa, e triunfará a [Independência Brasílica],
ou a morte nos [há de] custar” (PEDRO I, 1823, p. 6)32. A carta de 22
de setembro foi resposta de dom Pedro à correspondência portuguesa

32
 Em 1823, a carta foi publicada. No original, em português da época: “Triunfa, e
triunfará a Independencia Brasilica, ou a morte nos hade custar”. Ao final, dom Pedro
pede a dom João VI que apresente a carta às Cortes de Lisboa, para tornar pública sua
crítica e irresignação.

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de agosto de 1822, que teria chegado às suas mãos no mesmo dia 22,
contendo decisões que visavam submeter administrativamente o Brasil
às Cortes de Lisboa33.
No plano interno, essa decisão de ruptura foi consolidada em
12/10/1822, em cerimônia solene no Rio de Janeiro, com a aclamação
de dom Pedro como “Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do
Império do Brasil” (LYRA, 1995, p. 189). Modificou-se a autodenomi-
nação do Brasil: de Reino Unido para Império do Brasil. Em 1o/12/1822,
o príncipe foi coroado formalmente, tornando-se Pedro I, imperador
do Brasil. Conforme Lima (1922, p. 365), foi utilizado um misto do ce-
rimonial da sagração de Napoleão na catedral de Notre-Dame de Paris
com o dos imperadores austríacos, com detalhe extraído da coroação
de reis da Hungria.
À luz do Direito Internacional da época, essa cerimônia de coroação
imitando aspectos cênicos de suas congêneres europeias seria um ato para
demonstrar o alinhamento do Brasil ao concerto das nações europeias,
o que não eliminou a necessidade de intensa articulação posterior do
Brasil para ser nele inserido, como se viu somente anos depois de sua
independência no reconhecimento por Portugal (1825) e pelo Reino
Unido (1825).
Essa forma de emancipação política desprezou, na prática, os ideais
libertários ecoados na Revolução Francesa e em insurgências posterio-
res. A independência resultou num Estado monárquico escravocrata
não liberal, com forte estratificação social e subordinado à potência
imperial da época – o Reino Unido – acatando normas internacionais
que o inferiorizavam (MOTA, 2000, p. 205).

Conclusão

A América lusitana foi objeto de um Direito Internacional voltado


às aspirações monárquicas e dinásticas de diversas Coroas europeias. A
decadência de Portugal como potência influenciou sua posição como
autoridade de Direito Internacional e provocou conflitos no território
do futuro país, como se viu na União Ibérica. A delimitação do território
brasileiro foi feita pelo uso de tratados que privilegiaram a expansão do
domínio português, utilizando a teoria do uti possidetis e, em menor
grau, a doutrina das fronteiras naturais.

33
 Essas decisões das Cortes de Lisboa são as mencionadas usualmente como tendo
justificado o “grito do Ipiranga”. Lyra (1995, p. 197) relata que, somente em 1823, na aber-
tura dos trabalhos da Assembleia Constituinte, dom Pedro referiu-se à independência no
“sítio do Piranga”.

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Por sua vez, o uso intensivo da mão de obra escrava e a resistência
portuguesa em abolir o tráfico (que perduraria na era imperial) também
influenciaram a formação do povo brasileiro, dificultando a identidade
nacional, que foi construída no Império, mostrando que o Estado inde-
pendente precedeu a nação.
A vinda da Família Real, em mais um movimento do xadrez europeu,
também afetou a formação do futuro Estado independente ao transfor-
mar o Brasil no “centro de peregrinação” dos domínios portugueses,
possibilitando uma centralização em torno do Rio de Janeiro, em vez
de Lisboa. A ameaça da existência de “brasis” esmoreceu, e lentamente
forjou-se a unidade nacional movida por três fatores: (i) centralização
administrativa trazida pelos instrumentos renovados de um poder público
metropolitano sediado, ironicamente, na colônia; (ii) autonomia dada
pela abertura (fim do pacto colonial) graças à celebração de tratado com
a Grã-Bretanha e pela cláusula da nação mais favorecida; e (iii) união
“pelo temor” do fim da escravidão, em face da pressão britânica.
A modificação do estatuto brasileiro após o Congresso de Viena
mostrou, novamente, o impacto do Direito Internacional na colônia.
Sem querer e sem sentir, o Brasil integrou o Reino Unido de Portugal,
Brasil e Algarves. Além disso, a permanência de dom João no Rio de
Janeiro, mesmo após a derrota napoleônica, fez nascer o sentimento de
se ter transformado Portugal em “colônia”.
Esse sentimento contaminou a Revolução Constitucional do Porto,
que buscou diminuir a autonomia brasileira. A confiança das Cortes
Gerais nas disputas internas entre as províncias demonstrou ser equi-
vocada: a centralização trazida pela monarquia tornava mais eficiente a
luta dos proprietários fundiários escravocratas contra os atos unilaterais
da Grã-Bretanha voltados à proibição do tráfico de escravos. Essa união
por um objetivo comum reforçou os laços entre as diferentes províncias
em torno da monarquia, facilitando a manutenção da unidade territorial.
O olhar do Direito Internacional da era colonial sob o ângulo da
formação do território, povo e soberania do futuro Brasil permite não
somente revelar a contribuição do Direito Internacional na construção
da independência brasileira, mas também aprofundar o entendimento
sobre o próprio Direito Internacional praticado no e pelo Brasil.
É ainda prematuro falar de uma “perspectiva brasileira de Direito
Internacional” ou de propor uma linearidade artificial entre a era co-
lonial e a era nacional (nas fases monárquica e republicana). Porém, é
preciso reafirmar a importância de se lançar luz em debates pretéritos
do impacto do Direito Internacional na história brasileira como atributo
fundamental para o estudo dos fundamentos da disciplina no contexto
brasileiro.

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Sobre o autor
André de Carvalho Ramos é doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), São
Paulo, SP, Brasil; professor da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, SP, Brasil; professor
titular do programa de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) da Faculdade
Autônoma de Direito, São Paulo, SP, Brasil; procurador regional da República, Ministério
Público Federal, São Paulo, SP, Brasil.
E-mail: [email protected]

Como citar este artigo


(ABNT)
RAMOS, André de Carvalho. Sem sentir e sem querer: a era colonial do Brasil à luz do
Direito Internacional. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 231,
p. 109-132, jul./set. 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/231/
ril_v58_n231_p109

(APA)
Ramos, A. de C. (2021). Sem sentir e sem querer: a era colonial do Brasil à luz do Direito
Internacional. Revista de Informação Legislativa: RIL, 58(231), 109-132. Recuperado de
https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/231/ril_v58_n231_p109

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132 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 109-132 jul./set. 2021


O controle de convencionalidade
da Reforma Trabalhista de 2017

ÉRICA RIBEIRO GUIMARÃES AMORIM

Resumo:  Este artigo propõe uma reflexão sobre o controle de conven-


cionalidade da Lei no 13.467/2017, com especial atenção às convenções
e recomendações da Organização Internacional do Trabalho. Por meio
de uma pesquisa descritiva e propositiva, procurou-se discutir as altera-
ções introduzidas na Consolidação das Leis do Trabalho pela Reforma
Trabalhista que direta ou indiretamente colidem com a Constituição
brasileira e as normas internacionais. O interesse no desenvolvimento
desta pesquisa revelou-se pelo caráter social que o tema apresenta. Trata-se
de uma investigação bibliográfica e documental, eminentemente quali-
tativa, sustentada em referenciais teórico-conceituais. Ao final, algumas
soluções são apresentadas para as possíveis inconformidades existentes
na referida lei.

Palavras-chave:  Reforma trabalhista. Tratados internacionais. Controle


de convencionalidade. Decisões.

Conventionality control of the 2017 Labor Reform

Abstract:  This article proposes a reflection on the control of conventionality


of Law n. 13.467/2017, with special attention to the conventions and
recommendations of the International Labor Organization. Through
descriptive and purposeful, we sought to discuss the changes introduced
in the Consolidation of Labor Laws by Labor Reform that directly or
indirectly conflict with the Brazilian Constitution and international
standards. The interest in the development of this article was revealed
by the social character that the theme presents. It is a bibliographical
and documentary investigation, eminently qualitative, supported by
theoretical references. In the end, some solutions are exposed for the
possible non-conformities existing in that law.

Recebido em 2/12/20 Keywords:  Labor reform. International treaties. Conventionality control.


Aprovado em 26/3/21 Decisions.

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 133-150 jul./set. 2021 133


1 Introdução

A Reforma Trabalhista (Lei no 13.467/2017) (BRASIL, 2017) alterou


drasticamente a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) (BRASIL,
[2019a]), com diversos dispositivos parcialmente ou totalmente refor-
mados e alguns suprimidos, e. g., trabalho in itinere (art. 58, § 2o, da
CLT). Foi a mais significativa transformação na legislação trabalhista
desde o advento da CLT em 1943, pois modificou toda a estrutura do
Direito do Trabalho.
Entretanto, importa notar que a Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988 (CRFB) e os tratados internacionais não sofreram
alterações e, portanto, não podem ser simplesmente ignorados. Desse
modo, todas as modificações realizadas na CLT devem submeter-se ao
crivo do controle de constitucionalidade e convencionalidade, uma vez
que quaisquer leis ou atos normativos devem ser compatíveis com a
CRFB e com as normas internacionais, notadamente as que tratam de
direitos humanos, como é o caso daquelas sobre relações de trabalho.
Em razão do recorte temático deste artigo, apenas o controle de
convencionalidade será abordado. Tem-se levantado a discussão acerca
da possibilidade ou não desse tipo de controle, uma vez que inexiste
normatividade específica no ordenamento jurídico brasileiro discipli-
nando o assunto.
Será averiguada a viabilidade de um controle de convencionalidade
das leis e atos normativos internos, especialmente da Lei no 13.467/2017,
à luz das convenções e recomendações internacionais. Antes, porém,
será feita uma breve exposição acerca da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), suas principais normas internacionais que confrontam
direta ou indiretamente a Reforma Trabalhista e seu papel no Direito do
Trabalho no Brasil. Além disso, este estudo propõe-se a delinear alguns
dos institutos que foram alvo de revisão mediante a Lei no 13.467/2017.

2  Noções basilares da Organização


Internacional do Trabalho

A OIT surgiu em 1919 como parte do Tratado de Versalhes, que pôs


fim à Primeira Guerra Mundial. Em 1944, sob o impacto da Grande
Depressão e da Segunda Guerra Mundial, a OIT definiu seus fins e
objetivos na Declaração de Filadélfia. Na Carta das Nações Unidas de
1945, notadamente em seu art. 2o, estão dispostos os princípios do Direito
Internacional do Trabalho (VILLATORE, 2009, p. 62-63). Em 1946, a OIT
tornou-se o primeiro organismo especializado da Sociedade das Nações.

134 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 133-150 jul./set. 2021


Compete à OIT prever padrões mínimos de nacionais e dos programas, projetos e atividades
proteção ao trabalhador na relação empregatícia, de cooperação técnica, como também consegue
uma vez que tal relação é desigual por sua pró- manter contato direto com representantes do
pria natureza. Dessa forma, tornou-se imperioso governo, dos empregadores e dos trabalhadores
criar um organismo internacional que fosse res- em diferentes localidades do globo terrestre.
ponsável por fixar e fiscalizar o cumprimento de A OIT é dirigida por um Conselho de Admi­
normas garantidoras trabalhistas. Vale lembrar nistração responsável pela elaboração e controle
que, com a Primeira Revolução Industrial e o de execução de políticas e programas do Direito
liberalismo econômico no continente europeu, Internacional do Trabalho. Todos os anos, em
a classe trabalhadora, que antes vivia no campo, junho, ocorre a Conferência Internacional do
deslocou-se para os grandes centros urbanos Trabalho, que funciona como uma Assembleia
e passou a laborar nas fábricas, com jornadas Geral para a qual cada Estado-membro tem di-
exaustivas, degradantes e ambientes de trabalho reito a enviar quatro delegados acompanhados
insalubres (VILLATORE, 2009, p. 62-63). por conselheiros técnicos – dois representantes
Após a Segunda Grande Guerra e anos de do governo, um dos trabalhadores e um dos
reivindicações dos sindicatos de operários, os empregadores –, todos com direito a voto in-
Estados-nação decidiram dialogar sobre a ne- dependente. Dessas conferências originam-se
cessidade de regulamentar a relação de trabalho as convenções, recomendações e resoluções que
no plano do Direito Internacional: se todos tratam das relações de trabalho.
obedecessem às mesmas regras, não haveria Dentre as várias atribuições da OIT, des-
prejuízo à livre concorrência, e as normas tacam-se as atuações: i) política, que visa a
protetivas ao trabalhador não prejudicariam a assegurar bases sólidas para a paz mundial;
competitividade dos produtos fabricados nos ii) econômica, que busca garantir a concorrên-
países integrantes da OIT. cia mundial; e iii) humanitária, que fiscaliza e
Martinez (2016, p. 102) destaca que “[a] denuncia os abusos e irregularidades relativas
Organização Internacional do Trabalho é um às condições de trabalho, sempre no intuito
órgão das Nações Unidas que procura fomentar de diminuir as injustiças (VILLATORE, 2009,
a Justiça Social e os direitos humanos e laborais p. 63). As normas internacionais produzidas
mundialmente reconhecidos”. A OIT é um or- pela OIT procuram definir padrões mínimos
ganismo tripartite, formado por representantes de respeito à classe trabalhadora que possam
de entidades de trabalhadores, empregadores e ser aceitos e praticados pelos países signatários.
governo, os três principais atores do mercado Em síntese, podem ser consideradas fontes
de trabalho. gerais do Direito Internacional do Trabalho: a
O escritório central da OIT fica em Genebra, Declaração Universal dos Direitos Humanos
na Suíça, onde trabalham os administradores da (DUDH), adotada pela Assembleia Geral das
Organização e ocorrem as reuniões tripartites Nações Unidas em 1948, na cidade de Paris;
setoriais, das comissões e comitês. Contudo, não o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
existe apenas o órgão permanente em Genebra, Políticos (PIDCP); e o Pacto Internacional
mas também uma ampla estrutura de escritórios de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
regionais que abrange todos os continentes. (PIDESC), ambos acatados na 21a Sessão da
Assim, a OIT pode realizar a execução e admi- Assembleia Geral das Nações Unidas, em
nistração de reuniões regionais, sub-regionais e 16/12/1966.

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 133-150 jul./set. 2021 135


Em relação às fontes específicas, as mais significativas são: i) a
Constituição da OIT, de 1919; ii) a Declaração Relativa aos Fins e
Objetivos da OIT, aprovada na Conferência de Filadélfia em 1944 e
incorporada à Constituição da OIT como anexo na revisão geral em-
preendida pela Conferência de Montreal em 1946; iii) a Declaração
sobre Direitos e Princípios Fundamentais no Trabalho, de 1988; iv) a
Declaração Tripartite de Princípios sobre Empresas Multinacionais e
Política Social, de 2000; e v) a Declaração da OIT sobre Justiça Social para
uma Globalização Equitativa, de 2008. Em síntese, consideram-se fontes
do Direito Internacional do Trabalho as convenções, recomendações e
resoluções da OIT. A seguir, serão analisadas as normas da OIT de maior
pertinência temática para a Reforma Trabalhista de 2017.

3  Convenções nos 98, 131, 151 e 154, e Recomendação


no 159

É necessário distinguir a convenção – também denominada convê-


nio – da recomendação: a primeira é um tratado internacional, de caráter
normativo, que demanda ratificação pelos países signatários para fins
de exigibilidade; a segunda, por não ser ratificada internamente pelos
Estados subscritores, é norma facultativa que apenas complementa
a interpretação das convenções e orienta a prática laboral, sem criar
qualquer direito ou obrigação (MARTINEZ, 2016, p. 103).
Nos termos do art. 19, V, da Constituição da OIT, após a convalidação
interna, a ratificação das convenções ocasiona dupla obrigação aos países
signatários: i) cumprir e aplicar o conteúdo das normas internacionais;
ii) aceitar os mecanismos de supervisão e de controle internacional, con-
forme procedimentos disciplinados pela própria Organização (BRASIL,
2019c).
Há de se perceber a importância da Convenção no 98 da OIT, que
dispõe sobre o direito de sindicalização e de negociação coletiva dos
trabalhadores. Essa Convenção foi aprovada em 1949 na 32a reunião
da Conferência Internacional do Trabalho, em Genebra, porém sua
vigência no plano internacional iniciou-se somente em 18/7/1951. No
Brasil, foi ratificada em 1952, definindo que nenhum trabalhador pode
ser prejudicado ou dispensado em decorrência da participação em
atividades sindicais em suas horas livres ou durante o trabalho quando
há o consentimento do empregador. Essa norma internacional combate
também a ingerência nas organizações de trabalhadores ao determinar
que os sindicatos não dependam financeiramente de um empregador
(BRASIL, 2019c).

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Por sua vez, a Convenção no 131 da OIT nas- no 151 se aplica a servidores públicos federais
ceu da 54a Sessão da Conferência Geral, realizada (regidos pela Lei no 8.112/1990 ou pela CLT),
em 22/6/1970, em Genebra, mas entrou em vigor bem como a servidores estaduais e municipais
no plano internacional em 29/3/1972, tendo sido disciplinados por suas respectivas legislações;
inserida no ordenamento jurídico brasileiro pelo ii) as organizações de trabalhadores abrangidas
Decreto no 89.686/1984. Essa Convenção dispõe por essa norma internacional são exclusiva-
sobre a fixação de salários mínimos e exige que mente as “constituídas nos termos do artigo 8o
os Estados signatários, em especial os países em da Constituição Federal” (BRASIL, [2019b]).
desenvolvimento econômico, estabeleçam um Também sobre o direito coletivo do traba-
sistema de fixação de salários de modo a ajustar lho, a Convenção no 154, firmada em Genebra
esse patamar mínimo periodicamente, de sorte na 67a Reunião da Conferência Internacional,
a garantir o poder de compra e a dignidade do foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto
trabalhador assalariado (BRASIL, 2019c). Legislativo no 22 de 12/5/1992. A norma prevê
A Convenção no 151 e a Recomendação que a negociação coletiva compreende a inte-
no 159 da OIT – incorporadas ao ordenamento ração entre trabalhadores e empregadores, ou
jurídico brasileiro em 2010 mediante o Decreto organizações que representem esses atores, para
Legislativo no 206 – trazem diretrizes para a ne- regular as condições de trabalho. Nesse sentido,
gociação coletiva dos trabalhadores do serviço a Convenção determina que medidas adequadas
público e dispõem sobre as garantias da orga- às condições nacionais de estímulo ao acordo
nização sindical que tenha por fim defender os coletivo sejam adotadas; a negociação coletiva
interesses dos servidores e empregados públicos. seja possibilitada a todos os empregadores e a
Entre as principais garantias estabelecidas pela todas as categorias de trabalhadores dos ramos
Convenção está a proteção contra os atos de dis- de atividade a que se aplique a norma interna-
criminação que acarretem violação da liberdade cional; e os órgãos e procedimentos de resolução
sindical. O documento também veda atos de dos conflitos trabalhistas sejam concebidos de
ingerência das autoridades públicas na formação, modo a contribuir para o estímulo ao acordo
funcionamento e administração das organiza- coletivo (BRASIL, 2019c).
ções de trabalhadores; possibilita a instauração Pela análise dessas convenções infere-se que
de processos para a negociação das condições o Brasil mantém representação na OIT desde
de trabalho entre as autoridades públicas e as 1950 e tem incorporado as normas interna-
organizações de trabalhadores; e determina a cionais ao ordenamento jurídico nacional. A
concessão de facilidades aos representantes das despeito disso, a Reforma Trabalhista de 2017
organizações sindicais dos trabalhadores do contraria uma sequência de avanços nos direitos
serviço público, como a permissão para cumprir trabalhistas e sociais, notadamente por privi-
suas atividades durante as horas de trabalho ou legiar o negociado sobre o legislado, obstar o
fora delas (BRASIL, 2019c). acesso à Justiça e prever retrocessos sociais em
A Recomendação no 159 aconselha especifi- vários aspectos do direito individual e coletivo
camente a adoção de procedimentos e critérios do trabalho.
objetivos e pré-estabelecidos a respeito do caráter Diferentemente do que ocorre com a Orga­
representativo das organizações sindicais. Ao nização Mundial do Comércio, a Cons­tituição
promulgá-las, o Congresso Nacional brasileiro da OIT não prevê sanções para os Estados-
trouxe dois esclarecimentos: i) a Convenção membros em caso de descumprimento de al-

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guma norma. Significa dizer que, no âmbito internacional, não existem
mecanismos sancionatórios para forçar os países signatários a cumprir
as normas das convenções e recomendações da OIT.
Conquanto a OIT não possa impor coercitivamente suas decisões, é
amplamente cabível ao Poder Judiciário – tanto no controle difuso quanto
no controle abstrato de constitucionalidade – fazer prevalecer os direitos
fundamentais previstos na CRFB e os direitos humanos consagrados
na DUDH, bem como os pactos internacionais e as convenções da OIT
ratificados pelo Congresso Nacional brasileiro, uma vez que ostentam
superior grau hierárquico quando em cotejo com a Lei no 13.467/2017.
Para tanto, os magistrados, advogados, procuradores do trabalho, entre
outros operadores do Direito, devem fundamentar de modo robusto
e racional suas decisões e petições, no intuito de preservar os direitos
sociais ainda existentes na legislação trabalhista brasileira.

4  A Reforma Trabalhista de 2017 e o controle


de convencionalidade

De início, há de se esclarecer que neste artigo não se pretende es-


gotar todas as reformas na legislação trabalhista realizadas pela Lei
no 13.467/2017. Assim, os temas abordados visam a esclarecer o objeto
principal em discussão: o controle de convencionalidade da Reforma
Trabalhista e a relevância das convenções e recomendações da OIT.
Contudo, importa discorrer sobre as noções essenciais do Direito do
Trabalho que foram alvo de alteração por meio da Lei no 13.467/2017,
como se demonstrará doravante.

4.1  Breve reflexão sobre algumas alterações da Consolidação das


Leis do Trabalho que contrariam normas internacionais

Para se compreender a viabilidade do controle de convencionalidade,


é imprescindível conhecer as mais importantes alterações efetuadas pela
Reforma Trabalhista que direta ou indiretamente confrontam trata-
dos, convenções e recomendações internacionais de direitos humanos.
Merecem destaque o direito sindical e os novos regramentos que obstam
o acesso à Justiça.

4.1.1  Direito coletivo do trabalho

A Reforma Trabalhista modificou diversos dispositivos que discipli-


navam os direitos coletivos dos trabalhadores, dentre os quais importa

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destacar: i) o término da contribuição sindical obrigatória (disciplinada
pelos arts. 578 a 610 da CLT) e ii) a prevalência do negociado sobre o
legislado (art. 611-A da CLT) (BRASIL, [2019a]).
Os dispositivos 578 e seguintes da Consolidação reformada passaram
a dispor que apenas mediante prévia e expressa autorização do empre-
gado será possível o desconto da contribuição sindical, extinguindo a
obrigatoriedade do recolhimento. Até mesmo os sindicalistas mais tra-
dicionais concordavam que era preciso uma reforma no direito sindical
brasileiro; contudo, a maneira como algumas questões foram tratadas
pela Lei no 13.467/2017 surpreendeu a todos.
Após quase três anos de vigência da Reforma, já se percebe que a
receita dos sindicatos caiu bruscamente com a facultatividade da contri-
buição, o que afetou uma série de serviços ofertados aos trabalhadores da
categoria representada. Além disso, a força organizacional do movimento
sindical também tem sido seriamente comprometida, uma vez que as
entidades representativas necessitam de recursos financeiros para manter
sua estrutura física e de pessoal.
Sobre essa questão, Delgado e Delgado (2017, p. 244) ressaltam que os
sindicatos devem utilizar-se da contribuição assistencial ou negocial (ou
cota de solidariedade) e das mensalidades dos trabalhadores associados
concedidas voluntariamente. Porém, os autores asseveram que

somente sindicatos muito bem estruturados, de categorias profissionais


muito bem organizadas, ostentando elevado número de trabalhadores
filiados, é que tendem a obter um montante substancial de arrecadação
econômico-financeira por intermédio do veículo das mensalidades
associativas.

Sucede que, em 1o/3/2019, com o objetivo de regulamentar todas


as formas de financiamento sindical, o presidente da República edi-
tou a Medida Provisória (MP) no 873/2019, conhecida como MP da
Contribuição Sindical, vedando o desconto em folha de pagamento
pelo empregador e impondo que a quitação fosse efetivada mediante
boleto bancário, após autorização individual expressa do trabalhador
(BRASIL, 2019d).
Essa MP foi editada porque, com a nova redação do art. 579 da CLT
reformada1, surgiram questionamentos acerca da possibilidade de os
sindicatos obterem a autorização prévia para o desconto da contribuição

1
 “Art. 579. O desconto da contribuição sindical está condicionado à autorização prévia
e expressa dos que participarem de uma determinada categoria econômica ou profissional,
ou de uma profissão liberal, em favor do sindicato representativo da mesma categoria ou
profissão ou, inexistindo este, na conformidade do disposto no art. 591 desta Consolidação”
(BRASIL, [2019a]).

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 133-150 jul./set. 2021 139


sindical via assembleia geral. Esse procedimento tegoria. Afinal, trata-se de uma forma legítima
já era adotado para a cota de solidariedade e, de custeio, pois os benefícios do acordo coletivo
após a entrada em vigor da Lei no 13.467/2017, estendem-se a todos os trabalhadores.
passou a ser utilizado por alguns sindicatos Com efeito, a retirada da contribuição sindi-
também para legitimar o desconto anual da cal obrigatória de modo repentino, sem permitir
contribuição dos trabalhadores. aos sindicatos um planejamento organizacional
Em face do alto risco de inviabilizar a exis- prévio, tem como escopo o enfraquecimento
tência das entidades sindicais, a MP no 873/2019 do direito sindical e coletivo do trabalho, uma
não foi convertida em lei pelo Congresso Na­ vez que as entidades representativas necessitam
cional no prazo determinado pela CRFB e per- de meios para prover o financiamento de suas
deu sua validade jurídica em 28/6/2019. atividades.
No mesmo dia, nos autos da Reclamação Em relação às novas possibilidades de nego-
Constitucional no  35.540, o ministro Luís ciação coletiva em detrimento da lei, importa
Roberto Barroso deferiu pleito liminar para notar que o art. 611-A da CLT reformada ex-
suspender uma decisão de primeira instância põe um rol não taxativo de hipóteses em que a
que havia autorizado a realização de desconto Convenção Coletiva de Trabalho (CCT) ou o
em folha de pagamento da contribuição sindi- Acordo Coletivo de Trabalho (ACT) têm pre-
cal, após a convocação da assembleia geral da valência sobre o texto legislado. Em seu caput,
categoria de trabalhadores que votou a favor o dispositivo traz a expressão entre outros, in-
do recolhimento anual. Segundo o ministro, dicando que os quinze incisos não esgotam as
possibilidades de preponderância do negociado
[a] leitura dos dispositivos declarados cons- sobre o legislado (BRASIL, [2019a]).
titucionais pelo Supremo Tribunal Federal Alguns incisos chamam a atenção pela sua
apontam ser inerente ao novo regime das
extrema relevância na vida dos trabalhado-
contribuições sindicais a autorização prévia e
expressa do sujeito passivo da cobrança. Tal res, como a redução do intervalo intrajornada,
ponto foi analisado na ADI 5.794, tendo a respeitado o mínimo de trinta minutos para
maioria do Plenário concluído pela extin- jornadas acima de seis horas diárias (inc. III);
ção da compulsoriedade da contribuição
o enquadramento do grau de insalubridade
(BRASIL, 2019e, p. 133).
(inc. XII); e a prorrogação de jornada em am-
bientes insalubres, sem licença prévia das auto-
Ao conceder o pedido liminar em relação ridades competentes do Ministério do Trabalho
à contribuição anual, o ministro ressaltou a (inc. XIII)2. Não que os demais incisos sejam
imprescindibilidade da prévia e expressa auto- irrelevantes, mas os mencionados causam es-
rização do empregado, que não pode ser subs- panto por sua audácia ao alargar em demasia
tituída pela deliberação da assembleia geral. as hipóteses de prevalência da CCT e do ACT
Todavia, a despeito de tudo, até este momento
o Supremo Tribunal Federal (STF) não se ma-
2
 “Art. 611-A. A convenção coletiva e o acordo coletivo
nifestou em relação à contribuição assistencial de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre ou-
aprovada em assembleia por ocasião da nego- tros, dispuserem sobre: […] III – intervalo intrajornada,
respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas
ciação coletiva. Logo, em razão da caducidade superiores a seis horas; […] XII – enquadramento do grau
da MP no 873/2019, é possível a sua fixação de insalubridade; […] XIII – prorrogação de jornada em
ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades
após decisão da maioria dos membros da ca- competentes do Ministério do Trabalho” (BRASIL, [2019a]).

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sobre as disposições de lei. Martinez (2016, de manter sua organização e, portanto, susce-
p. 184) coaduna desse entendimento e esclarece tíveis ao total desfalecimento. Noutra ponta,
que a Reforma Trabalhista de 2017 “realmente encontra-se a classe patronal que continua
ousou e inovou ao permitir que a negociação dispondo de uma vasta quantidade de pessoas
coletiva prevalecesse sobre a lei no tocante ao à procura de trabalho, tendo em vista os altos
enquadramento do grau de insalubridade, po- índices de profissionais desempregados. Não
dendo até mesmo, teoricamente, dizer mínima é difícil perceber o resultado dessa equação: a
a insalubridade de grau máximo”. crescente precarização das condições de tra-
Os parágrafos do art. 611-A da CLT igual- balho em todo o território nacional. De fato, o
mente merecem nota, porquanto tratam de Brasil tem alcançado recordes de violações às
questões até então inéditas no processo do convenções e recomendações da OIT.
trabalho. O § 1o restringe a atuação do Poder
Judiciário ao exame da conformidade legal dos 4.1.2  Novos obstáculos ao acesso à Justiça
elementos essenciais do negócio jurídico3, re- do Trabalho
portando-se ao § 3o do art. 8o da Consolidação.
A seu turno4, esse dispositivo estabelece que a Várias foram as alterações na CLT relativas
Justiça do Trabalho somente poderá efetuar o ao processo do trabalho. Em se tratando de aces-
controle de legalidade das negociações coletivas so à Justiça, merece maior destaque a reforma no
observando o princípio da intervenção mínima modelo de concessão da gratuidade de Justiça,
na autonomia da vontade entre as partes e nos especialmente a incidência dos honorários su-
restritos termos do art. 104 do Código Civil cumbenciais (advocatícios e periciais) e das
de 20025. custas processuais para o reclamante.
Ao mesmo tempo em que se alargam as Até a data em que a Lei no 13.467 passou a vi-
hipóteses legais nas quais o negociado pode pre- gorar (11/11/2017), a redação do § 3o do art. 790
valecer sobre o legislado, também se constatam da Consolidação dispunha que, a requerimento
tentativas de enfraquecimento das entidades ou de ofício, era facultado aos juízes, órgãos
sindicais, de modo que há de se refletir sobre julgadores e presidentes dos tribunais conce-
quais interesses estão por trás dessas recentes der a gratuidade de Justiça para aqueles que
alterações legislativas. possuíssem renda de, no máximo, dois salários
A redução dos meios de financiamento dos mínimos ou declarassem sua impossibilidade
sindicatos torna-os mais frágeis, sem condições de custear as despesas processuais sem prejuízo
do próprio sustento ou de sua família (BRASIL,
[2019a]). Logo, bastava a simples declaração de
3
 “§ 1o No exame da convenção coletiva ou do acordo co-
letivo de trabalho, a Justiça do Trabalho observará o disposto hipossuficiência financeira para a concessão do
no § 3o do art. 8o desta Consolidação” (BRASIL, [2019a]).
benefício na Justiça do Trabalho.
4
 “Art. 8o […] § 3o No exame de convenção coletiva ou
acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho analisará Com a Reforma Trabalhista, o §  3o do
exclusivamente a conformidade dos elementos essenciais art. 790 da CLT foi modificado, estabelecen-
do negócio jurídico, respeitado o disposto no art. 104 da
Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e do o novo patamar de até 40% (quarenta por
balizará sua atuação pelo princípio da intervenção mínima
na autonomia da vontade coletiva” (BRASIL, [2019a]).
cento) do maior benefício do Regime Geral
5
 “Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: de Previdência Social. Na redação anterior, o
I – agente capaz; II – objeto lícito, possível, determinado patamar para a concessão de ofício era menor
ou determinável; III – forma prescrita ou não defesa em
lei” (BRASIL, [2021b]). (dois salários mínimos) e bastava a declaração

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 133-150 jul./set. 2021 141


de hipossuficiência financeira para a pessoa física obter a gratuidade.
Acerca dessa novidade na legislação, Teixeira Filho (2017, p. 77, grifo
do autor) assevera:

A norma cria, portanto, um ônus formal – e, consequentemente, uma


dificuldade – para a pessoa que desejar ser beneficiária da justiça gra-
tuita, ao substituir a sua informal declaração de próprio punho pela
comprovação de insuficiência de recursos financeiros para o pagamento
de custas processuais. Cumpre-nos destacar que o CPC não exige essa
comprovação, admitindo, por força de presunção, ser verdadeira a mera
alegação feita por pessoa física.

Ocorre que a CRFB, no art. 5o, LXXIV, faz menção à “insuficiência de


recursos” (BRASIL, [2021a]), sem impor a exigência de miserabilidade
para a concessão da benesse. Souza (2011, p. 35) também compartilha
desse entendimento ao esclarecer que “não se exige que o postulante
esteja a depender de terceiros para sobreviver, como também não é o
caso de exigir alienação de pequeno patrimônio que dispõe ou colocar
em dificuldade sua sobrevivência pessoal ou da sua família”.
Cumpre notar que a não concessão do benefício pode ocasionar
uma litigiosidade reprimida. Noutras palavras, ao saberem dos custos
do processo, as pessoas detentoras de uma pretensão jurídica podem ser
desencorajadas a buscar o Poder Judiciário, pois o resultado da reclama-
tória trabalhista talvez não compense os dispêndios de dinheiro e tempo.
Por que aplicar regras mais rigorosas às demandas trabalhistas do
que às ações cíveis? Ora, a CLT reformada impõe uma exigência maior
do que a observada no Código de Processo Civil (CPC), pois o § 3o do
art. 99 do CPC6 reza que a pessoa natural tem presunção relativa de ve-
racidade de suas alegações quanto ao direito à gratuidade de Justiça. A
referida lei assegura que a presunção é relativa, sendo passível de prova
em contrário (BRASIL, [2021c]).
O CPC foi muito modificado em 2015, mas a lei processual civil foi
amplamente debatida nos meios jurídico e acadêmico, de sorte que o
instituto da Justiça gratuita foi disciplinado de modo ajustado com a
Constituição vigente. A reforma na CLT, ao contrário, foi realizada às
pressas, sem a necessária discussão acerca dos temas que seriam objeto
de mudanças.
Há de se notar que a relação jurídica cível é caracterizada pelo prin-
cípio da igualdade entre as partes, ao passo que a relação empregatícia

6
 “Art. 99. O pedido de gratuidade da justiça pode ser formulado na petição inicial,
na contestação, na petição para ingresso de terceiro no processo ou em recurso. […] § 3o
Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa
natural” (BRASIL, [2021c]).

142 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 133-150 jul./set. 2021


é marcada pela desigualdade entre o trabalha- tida no § 4o do art. 790-B, somente podem ser
dor e o detentor do capital. Dessa percepção é alvo de retenção valores a serem adimplidos,
que surgiu o princípio da proteção (in dubio uma vez que, se tais valores já houverem sido
pro operário) consagrado em vários dispositi- percebidos pelo reclamante, a coisa julgada e o
vos, jurisprudências e doutrinas do Direito do direito adquirido impedirão quaisquer cobran-
Trabalho. Assim, soa contraditório imputar- ças (CASTRO, 2017).
-se ao autor de uma reclamatória trabalhista Impõe-se relatar também as modificações
ônus maiores para a concessão da gratuidade introduzidas pela Reforma Trabalhista nos ho-
de Justiça do que aqueles observáveis nas re- norários advocatícios sucumbenciais, os quais,
lações cíveis. Castro (2017) coaduna com esse salvo as exceções que constavam na Súmula
pensamento ao afirmar que no  219 do Tribunal Superior do Trabalho
(BRASIL, [2016]), não eram aplicáveis na Justiça
[o] caráter protetivo do Direito do Trabalho do Trabalho. Nela prevalecia o jus postulandi,
não pode permitir amparo inferior ao tra- sendo opcional a presença de advogado nas
balhador que aquele alcançado ao cidadão
demandas trabalhistas. Em decorrência da fa-
no Direito comum. Seria reconhecer uma
“capitis diminutio” pelo fato de ser traba- cultatividade, defendia-se que não se poderia
lhador, o que contraria o básico princípio onerar o vencido com despesas que a lei con-
constitucional da isonomia. siderava dispensáveis.
Até o advento da Reforma, o entendimento
Até mesmo os que conseguirem o benefício consolidado no Direito Processual do Trabalho
da gratuidade poderão ser condenados a pagar era de que o princípio da proteção ao hipossufi-
honorários sucumbenciais (advocatícios e pe- ciente obstava a imposição do ônus da sucum-
riciais), porque a Lei no 13.467 alterou o caput bência ao reclamante, não sendo imputados os
do art. 790-B e acrescentou-lhe parágrafos. O honorários advocatícios sucumbenciais ao autor
novo dispositivo e o seu § 4o estabeleceram como da reclamatória vencido. A Lei no 5.584/1970
responsabilidade do beneficiário da gratuidade (BRASIL, [2018]) – que disciplinava a conces-
o dever de custear a perícia nas situações em são e prestação da assistência judiciária e da
que for vencido no objeto do exame, podendo gratuidade de Justiça no processo do traba-
inclusive o valor ser deduzido dos créditos do lho – estabelecia que as despesas processuais
reclamante, mesmo que em outro processo7. fossem devidas integralmente pelo reclamado,
Assim, somente nos casos em que o be- por menor que fosse a sua sucumbência.
neficiário da Justiça gratuita não tiver obtido Contudo, a Lei no 13.467/2017 acrescentou
em juízo créditos suficientes para arcar com o art. 791-A e seus parágrafos à CLT estabele-
os honorários periciais é que caberá à União a cendo honorários advocatícios sucumbenciais
responsabilidade do custeio. No que se refere em todas as ações trabalhistas, inclusive nas re-
à expressão ainda que em outro processo, con- convenções8. Acerca dessa novidade legislativa,
Schiavi (2017, p. 85) destaca que “a sucumbência
7
 “Art. 790-B. A responsabilidade pelo pagamento dos recíproca deverá ser vista com muita sensibili-
honorários periciais é da parte sucumbente na pretensão dade pelo Judiciário Trabalhista de modo a não
objeto da perícia, ainda que beneficiária da justiça gratuita.
[…] § 4o Somente no caso em que o beneficiário da justiça
gratuita não tenha obtido em juízo créditos capazes de
suportar a despesa referida no caput, ainda que em outro pro-  “§ 5o São devidos honorários de sucumbência na re-
8

cesso, a União responderá pelo encargo” (BRASIL, [2019a]). convenção” (BRASIL, [2019a]).

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obstar a missão histórica da Justiça Trabalhista relação de trabalho. Devido ao recorte temático,
que é facilitar o acesso à Justiça ao trabalhador”. não será possível tratar do controle de consti-
Vale ressaltar que, nos termos do § 4o do tucionalidade neste artigo, o que poderá ser
art. 791-A, o beneficiário da gratuidade de Jus­ feito em outra oportunidade. No tópico a seguir,
tiça somente estará dispensado do pagamento será analisada a possibilidade de um controle
dos honorários quando não obtiver em juízo de convencionalidade da Reforma Trabalhista
(ainda que em outro processo) créditos capazes e suas principais implicações.
de suportar a despesa, de sorte que o valor da
sucumbência ficará sob condição suspensiva de
exigibilidade9. O mesmo se aplica aos honorá- 5  Controle de Convencionalidade da
rios periciais, consoante o § 4o do art. 790-B da Lei no 13.467/2017
Consolidação reformada.
Se o beneficiário da gratuidade de Justiça for Segundo Mazzuoli (2009, p. 128), o controle
vencido, as obrigações oriundas de sua sucum- jurisdicional de convencionalidade é a condi-
bência permanecerão sob condição suspensiva ção de que as normas domésticas de um país,
de exigibilidade até dois anos após o trânsito em além de guardarem compatibilidade com a sua
julgado da decisão, tendo em vista que dentro Constituição, devem estar conforme os trata-
desse prazo o credor pode comprovar que ces- dos e convenções internacionais sobre direitos
sou a situação de hipossuficiência financeira. humanos ratificados pelo Estado e em vigência
Contudo, passados os dois anos, extingue-se a no ordenamento jurídico nacional. Em outros
exigibilidade do crédito. termos, é salutar que as normas internas de uma
Por fim, nos casos de sucumbência em parte nação estejam em harmonia com os tratados
mínima de um litigante, é admissível a aplicação internacionais aprovados pelo Estado. Para essa
da regra prevista no parágrafo único do art. 86 fiscalização, utiliza-se o controle de convencio-
do CPC10, uma vez que a Consolidação e as de- nalidade, normalmente efetuado pelo Poder
mais leis trabalhistas são omissas nesse aspecto. Judiciário.
Em face dessas alterações, tem-se questiona- Entre as diversas normas internacionais in-
do a compatibilidade da Lei no 13.467/2017 com corporadas no sistema jurídico brasileiro, as mais
a CRFB e com as normas internacionais sobre conhecidas e que dispõem sobre direitos huma-
direitos humanos, em especial as que tratam de nos são: a Declaração Universal dos Direitos do
Homem, de 1948; o Pacto Internacional sobre
9
 “Art. 791-A. […] § 4o Vencido o beneficiário da justiça
Direitos Civis e Políticos, de 1966; a Convenção
gratuita, desde que não tenha obtido em juízo, ainda que Americana sobre Direitos Humanos, de 1969
em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa,
as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob (Pacto de São José da Costa Rica); a Convenção
condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e
executadas se, nos dois anos subsequentes ao trânsito em
julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar seu Protocolo Facultativo, de 2007; as conven-
que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos ções e recomendações da OIT. Todos esses trata-
que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se,
passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário” (BRASIL, dos e convenções externos compõem o chamado
[2019a]).
bloco de constitucionalidade, isto é, o conjunto de
10
 “Art. 86. Se cada litigante for, em parte, vencedor e
vencido, serão proporcionalmente distribuídas entre eles as normas que servem como parâmetro de aferição
despesas. Parágrafo único. Se um litigante sucumbir em parte de constitucionalidade das leis e atos normativos
mínima do pedido, o outro responderá, por inteiro, pelas
despesas e pelos honorários” (BRASIL, [2021c]). internos estatais (MAZZUOLI, 2011, p. 25).

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No caso do Brasil, os §§ 2o e 3o do art. 5o da que disciplinam questões acerca dos direitos
CRFB determinam que os tratados e conven- humanos13.
ções internacionais integram o ordenamento Assim, a jurisdição constitucional pode ser
jurídico do País. Os relativos aos direitos hu- exercida pelo controle difuso-concreto (inter
manos aprovados em cada Casa do Congresso partes) ou abstrato-principal. Sob esse prisma,
Nacional, em dois turnos, por três quintos dos Mazzuoli (2009, p. 132-133, grifos do autor)
votos, equivalem às emendas constitucionais11. elucida que, “à medida que esses tratados passam
Em 2008, com sua tese de doutoramento, a ser equivalentes às emendas constitucionais,
Valerio Mazzuoli foi considerado o primeiro fica autorizada a propositura (no STF) de todas
jurista brasileiro a desenvolver a teoria do con- as ações constitucionais existentes para garantir
trole de convencionalidade aplicada ao sistema a estabilidade da Constituição e das normas a
jurídico nacional12. Ele defendeu que o controle ela equiparadas”.
jurisdicional de convencionalidade é cabível tan- Na segunda conjectura (normas internacio-
to para os tratados internacionais sobre direitos nais sobre direitos humanos não ratificadas pelo
humanos ratificados nos termos do § 3o do art. 5o Congresso Nacional), Mazzuoli (2011, p. 28)
da CRFB como para os tratados e convenções sustentou que, ainda assim, é admissível o con-
internacionais que, embora não tenham sido trole de convencionalidade e constitucionalidade
aprovados na forma do § 3o do art. 5o, disponham (apenas pelo meio difuso-incidental) com base
sobre direitos humanos. no § 2o do art. 5o da CRFB, porque a Constituição
Na primeira hipótese (normas externas ra- está apta a aderir a outros direitos e garantias
tificadas, em dois turnos, por três quintos dos fundamentais provenientes de normas externas,
votos, em cada Casa do Congresso Nacional), desde que ratificadas pelo governo brasileiro.
não pairam dúvidas de que é possível o controle Em suas próprias palavras:
de constitucionalidade e convencionalidade,
já que a CRFB assegurou caráter de emenda É dizer, se os direitos e garantias expressos
constitucional a esses tratados internacionais no texto constitucional “não excluem” outros
provenientes dos tratados internacionais em
que o Brasil seja parte, é porque, pela lógica,
11
 “Art. 5o […] § 2o Os direitos e garantias expressos nesta na medida em que tais instrumentos pas-
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais sam a assegurar outros direitos e garantias,
em que a República Federativa do Brasil seja parte. § 3o Os a Constituição “os inclui” no seu catálogo de
tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos direitos protegidos, ampliando o seu “bloco
que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional,
em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
de constitucionalidade” (MAZZUOLI, 2011,
membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” p. 28).
(BRASIL, [2021a]).
12
 A expressão controle de convencionalidade já havia Dessa forma, consoante Mazzuoli (2011,
sido referida por André de Carvalho Ramos, professor
da Universidade de São Paulo. Contudo, Mazzuoli foi o p. 28), os tratados e convenções sobre direitos
primeiro a desenvolver uma teoria completa sobre o tema. humanos internalizados no ordenamento bra-
Em suas próprias palavras, “os autores que, antes de nós,
fizeram referência à expressão ‘controle de convencionali- sileiro com quórum qualificado (art. 5o, § 3o,
dade’, versaram o assunto sob outro ângulo, notadamente
o da responsabilidade internacional do Estado por violação da CRFB) são normas materialmente cons-
de direitos humanos em razão de atos do Poder Legislativo.
Nesse sentido, o controle de convencionalidade seria o
método a impedir o Parlamento local de adotar uma lei 13
 A título exemplificativo vale citar a Convenção In-
que viole (mesmo que abstratamente) direitos humanos ternacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
previstos em tratados internacionais já ratificados pelo e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em
Estado” (MAZZUOLI, 2011, p. 76). 30/7/2007 (BRASIL, 2009).

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 133-150 jul./set. 2021 145


titucionais, ainda que não formalmente. Por venções internacionais sobre direitos humanos
esse motivo, é plenamente cabível o controle estão acima de leis e atos normativos internos,
de convencionalidade ou constitucionalidade. mas abaixo da Constituição.
Sem embargo, em face da ausência de consti- Essa tese prevalecente foi pensada pelo mi-
tucionalidade formal, somente o controle difuso nistro Gilmar Mendes em face do entendimento
é possível, porquanto qualquer juiz ou tribunal do ministro Celso de Mello, que conferiu valor
pode incidentalmente aplicar as normas in- constitucional às normas externas sobre direitos
ternacionais acerca dos direitos humanos em humanos, conquanto não ratificadas na forma
desfavor de leis ou atos normativos internos do § 3o do art. 5o da CRFB14. Assim, consoli-
proferidos pelo Estado. dou-se no sistema jurídico brasileiro a teoria da
Ao concluir, o mencionado autor esclarece “supralegalidade” dos tratados internacionais
que os tratados e convenções internacionais relativos a direitos humanos não aprovados com
não relacionados aos direitos humanos estão quórum qualificado. Desse modo, a pirâmide
em nível infraconstitucional, ou seja, abaixo da jurídica de Kelsen (1998) passa a ter uma nova
Constituição e acima das leis. Em decorrência camada, composta pelas normas internacio-
disso, o controle de legalidade ocorre entre as nais de direitos humanos não inseridas pelo
normas internas e os tratados e convenções ordenamento brasileiro nos termos do § 3o do
externos ratificados pelo Brasil, de modo que art. 5o da CRFB.
“não se trata de controle de convencionalidade A partir do julgamento do STF, passou-se a
pelo fato de se reservar esta última expressão exigir a dupla compatibilidade vertical e material
à compatibilidade vertical que devem ter as das leis e atos normativos internos, pois, além
normas infraconstitucionais com os tratados do controle de constitucionalidade, há de ser
de direitos humanos, que têm índole e nível examinada a conformidade entre as normas
constitucionais” (MAZZUOLI, 2009, p. 135, expedidas pelo Poder Público e os tratados so-
grifos do autor). bre direitos humanos incorporados pelo Brasil.
Apesar da relevância da teoria do controle Nessa oportunidade, o STF também escla-
de convencionalidade desenvolvida por Valerio receu seu posicionamento de que os tratados
Mazzuoli, o STF concordou apenas na primeira e convenções externos acolhidos pelo ordena-
hipótese, em que os tratados internacionais ra- mento brasileiro não relacionados aos direitos
tificados nos termos do § 3o do art. 5o da CRFB humanos ingressam no sistema jurídico na-
têm força de emenda constitucional e são sus- cional como lei ordinária ou complementar,
cetíveis ao controle concentrado e difuso de a depender da matéria. Com isso, o conflito
constitucionalidade. entre normas jurídicas deve ser solucionado
No que se refere à segunda possibilidade mediante a utilização dos critérios cronológico
(tratados internacionais relativos a direitos e de especialidade (RAMOS, 2009, p. 242).
humanos não aprovados com quórum qualifi- Embora passível de críticas, a decisão do STF
cado), o STF decidiu, por cinco votos a quatro, reconheceu o valor do Direito Internacional,
que essas normas externas merecem status de notadamente das normas relativas aos direitos
“supralegalidade” (Habeas Corpus no 87.585/TO humanos. Desse modo, Ramos (2009, p. 245)
e Recurso Extraordinário no 466.343/SP, julga-
mento em 3/12/2008 (BRASIL, 2008a, 2008b)). 14
 Voto do ministro Celso de Mello no Habeas Corpus
Isso significa afirmar que os tratados e con- no 87.585/TO (BRASIL, 2008a).

146 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 133-150 jul./set. 2021


destaca que o Brasil “já reconheceu a jurisdição internacionais introduzidas no ordenamento
obrigatória de órgãos internacionais, como a jurídico brasileiro – sejam elas consideradas
Corte Interamericana de Direitos Humanos, emendas constitucionais ou supralegais –, tais
que têm como tarefa fixar a interpretação do al- normas hão de prevalecer em detrimento da Lei
cance das obrigações internacionais de Direitos no 13.467/2017, na medida em que detêm supe-
Humanos contraídas pelo Estado”, o que é um rioridade hierárquica na pirâmide kelseniana.
avanço em termos de internacionalização das Além disso, o STF já consolidou o entendimento
normas jurídicas. de que os tratados e convenções internacionais
Tendo em vista o diálogo entre as fontes ratificados pelo Estado brasileiro servem de
normativas internas e externas, cumpre refletir paradigma tanto para o controle de constitu-
ainda acerca do princípio da norma mais favorá- cionalidade como para o de convencionalidade.
vel, uma vez que em caso de antinomia jurídica
deve preponderar a fonte que contém a norma
mais favorável aos direitos humanos (princípio 6  Considerações finais
internacional pro homine), porquanto “o que se
visa é a otimização e a maximização dos siste- Consoante demonstrado, a Lei no 13.467/2017
mas (interno e internacional) de proteção dos – assim como qualquer outra lei ou ato norma-
direitos e garantias individuais” (MAZZUOLI, tivo expedido pelo Poder Público – precisa ser
2011, p. 30). Por consequência, o ordenamento interpretada à luz da ordem constitucional e
jurídico interno precisa estar compatível com o dos tratados internacionais incorporados pelo
Direito Internacional, especialmente em relação ordenamento jurídico nacional.
aos tratados e convenções de direitos humanos. O Brasil incorporou ao seu sistema jurídico
Abramovich e Courtis (2002, p. 92-94) res- vários tratados e convenções internacionais
saltam que o sistema de proteção internacional relacionados à proteção da dignidade da pes-
instituiu a progressiva concretização dos direi- soa humana, de modo que essas normas têm
tos humanos por parte dos países signatários força cogente, servindo como paradigmas no
dos tratados e convenções, de maneira que, controle de convencionalidade das leis e atos
implicitamente, não se pode conceber o retro- normativos internos.
cesso dos direitos sociais. Os referidos autores Convém lembrar que os tratados e con-
aclaram que a Convenção Americana sobre venções internacionais que tratam de direitos
Direitos Humanos assegura a impossibilidade humanos, desde que aprovados pelo quórum
de retrocesso em matéria de direitos humanos. qualificado previsto no § 3o do art. 5o da CRFB
Nessa esteira, o princípio da dignidade da pessoa (em cada Casa do Congresso Nacional, em dois
humana atua como ponto de encontro entre o turnos, por três quintos dos votos dos respecti-
sistema jurídico interno dos Estados-nação e o vos membros), equivalem às emendas consti-
Direito Internacional. tucionais. Em decorrência disso, é indubitável
Infere-se, desse modo, que o controle ju- a sua superioridade hierárquica frente às leis e
risdicional de convencionalidade pode ser quaisquer atos normativos nacionais.
utilizado na averiguação da conformidade da Para o STF, as normas externas sobre direitos
Reforma Trabalhista com os tratados e conven- humanos não ratificadas pelo Estado brasileiro
ções internacionais. Por conseguinte, havendo na forma do § 3o do art. 5o da CRFB têm status
violação às cláusulas constantes nas normas de “supralegalidade”. Noutras palavras, estão em

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um nível inferior à Constituição, porém acima de leis e atos normativos
internos proferidos pelo Estado.
De toda sorte, os tratados e convenções internacionais que disciplinem
questões sobre direitos humanos recepcionados pelo ordenamento jurídico
brasileiro – seja ou não pelo quórum qualificado – estão em posição mais
elevada na pirâmide kelseniana do que a legislação comum interna. Por
esse motivo, quaisquer leis ou atos normativos estatais devem estar em
conformidade com essas normas internacionais, além de necessariamente
terem que guardar coerência com os preceitos constitucionais.
As normas externas relativas à proteção de direitos humanos incor-
poradas pelo Brasil – como é o caso das Convenções nos 98, 151 e 154 e
da Recomendação no 159 da OIT – merecem ser obedecidas, tendo em
vista sua superioridade hierárquica no ordenamento jurídico nacional.
Por conseguinte, os operadores do Direito não precisam curvar-se aos
retrocessos sociais observáveis na Lei no 13.467/2017: podem utilizar-se
dos instrumentos jurídicos disponíveis.
Não se pode olvidar que todas as alterações trazidas pela Reforma
Trabalhista de 2017 que direta ou indiretamente colidem com as normas
internacionais e com a Constituição brasileira devem ser submetidas à
verificação de convencionalidade (e de constitucionalidade), sob pena
de incoerência sistêmica grave.

Sobre a autora
Érica Ribeiro Guimarães Amorim é mestra e graduada em Direito pela Universidade Federal
da Bahia, Salvador, BA, Brasil; advogada atuante em Salvador, BA, e Brasília, DF, Brasil.
E-mail: [email protected]

Como citar este artigo


(ABNT)
AMORIM, Érica Ribeiro Guimarães. O controle de convencionalidade da Reforma Trabalhista
de 2017. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 231, p. 133‑150, jul./set.
2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/231/ril_v58_n231_p133

(APA)
Amorim, E. R. G. (2021). O controle de convencionalidade da Reforma Trabalhista de 2017.
Revista de Informação Legislativa: RIL, 58(231), 133‑150. Recuperado de https://www12.
senado.leg.br/ril/edicoes/58/231/ril_v58_n231_p133

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infiel – prisão. A subscrição pelo Brasil do Pacto de São José da Costa Rica, limitando a
prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia, implicou
a derrogação das normas estritamente legais referentes à prisão do depositário infiel.
Paciente: Alberto de Ribamar Ramos Costa. Impetrante: Alberto de Ribamar Ramos Costa.

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 133-150 jul./set. 2021 149


Relator: Min. Marco Aurélio, 3 de dezembro de 2008a. Disponível em: https://redir.stf.
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150 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 133-150 jul./set. 2021


Composição do Conselho de
Administração de organizações
sociais quanto aos membros natos
representantes do Poder Público

ANDRÉ SADDY

Resumo:  O presente artigo tem como objeto a análise da composição do


Conselho de Administração por pessoas jurídicas de direito privado que
ostentam a qualificação de organizações sociais quanto aos representan-
tes das entidades e dos órgãos públicos. Para isso, focou-se inicialmen-
te no conceito de organizações sociais para então entrar na questão da
(in)constitucionalidade ou (i)legalidade do Conselho de Administração
das organizações sociais conforme disciplinam os arts. 5o, III, e 15, § 2o, do
Decreto no 9.190/2017. Considerando esse diploma constitucional/legal,
passou-se a identificar que os diretamente responsáveis pela supervisão,
financiamento e controle da atividade são, na verdade, apenas o órgão
supervisor e, se houver, o(s) intervencionista(s). No entanto, apesar de
pouco factível e esdrúxula, não sendo ela a interpretação aqui defendida,
poder-se-iam interpretar os enunciados no sentido disjuntivo e, por con-
seguinte, supervisor, financiador e controlador seriam órgãos distintos.

Palavras-chave:  Terceiro setor. Organização social. Conselho de


Administração. Gestão. Membros.

The composition of the Board of Administration of social


organizations regarding the born members representing
public authorities

Abstract:  The purpose of this article is to analyze the composition of the


Board of Directors by legal entities of private law that boast the qualification
of social organizations with respect to representatives of entities and public
bodies. To this end, it initially focused on the concept of social organizations
and only then entered the question of (in)constitutionality or (i)legality of
Recebido em 23/11/20 the Board of Directors of social organizations as provided for in arts. 5, III,
Aprovado em 11/3/21 and 15, § 2, of Decree n. 9.190/2017. After such an analysis, considered such a

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 151-180 jul./set. 2021 151


constitutional/legal diploma, it was identified that those directly responsible
for the supervision, financing and control of the activity are, in fact, only
the supervisory body and, if any, the interventionist(s). However, although
not very feasible and weird, as it is not the interpretation advocated here,
one could interpret the statements in a disjunctive sense and, therefore,
supervisor, financier and controller would be different bodies.

Keywords:  Third sector. Social organization. Administrative Council.


Management. Members.

1 Introdução

A análise da composição do Conselho de Administração por pessoas


jurídicas de direito privado qualificadas como organizações sociais quanto
aos representantes das entidades e dos órgãos públicos é o objeto do presente
artigo, e seu ponto fulcral é a participação do Poder Público nos Conselhos
de Administração das organizações sociais, quando existe tal exigência.
Há questionamento relativo à possibilidade de participação de entidades
ou órgãos públicos no Conselho de Administração das organizações sociais
se aqueles forem financiadores de entidade privada, bem como se todo
financiador público de organização social deve ter assento no Conselho.
Na atualidade, há as duas situações: órgãos com assento no Conselho que
não são financiadores da organização social e órgãos financiadores que
não dispõem de interesse em ter assento no Conselho.
Todo debate gira em torno da interpretação conferida aos enunciados
normativos que tratam do tema: o art. 3o, I, a, da Lei no 9.637/1998 e os
arts. 5o, II, e 15, § 2o, do Decreto no 9.190/2017 (BRASIL, [2010], [2018]).
Há interpretações como a que identifica que a pretensão do art. 5o, III, desse
Decreto é estabelecer que apenas os financiadores podem ter participação
no Conselho de Administração de organizações sociais, e aquela segundo
a qual podem ser membros natos representantes do Poder Público pessoas
de qualquer ente ou órgão da Administração direta ou indireta.

2  Cooperação sem fins lucrativos com a


Administração Pública

Há muito se observa que fundações privadas ou associações civis têm


assumido nos últimos anos atividades de assistência social, saúde, pes-

152 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 151-180 jul./set. 2021


quisa, proteção ao meio ambiente, entre outras. público de modo que o Estado se isenta de montar
Utiliza-se a expressão terceiro setor, do chamado determinadas estruturas: o Estado não procura
Estado gerencial brasileiro, para a referência a um particular para exercer uma atividade social.
essas entidades sem fins lucrativos – ou, em tese, Assim, em princípio só serão considerados
economicamente desinteressadas – que desenvol- sujeitos por cooperação se o seu poder de controle
vem atividades privadas de interesses públicos. estiver na titularidade de particulares. Como não
Segundo Santos (2001, p. 250-251), terceiro existe um título habilitante para vincular o Poder
setor é o “conjunto de organizações sociais que Público a esses sujeitos, leis criaram instrumen-
não são nem estatais nem mercantis, ou seja, tos jurídicos específicos para que as fundações
organizações sociais que, por um lado, sendo privadas ou associações civis fossem investidas
privadas não visam fins lucrativos, e, por ou- de certas atribuições que pudessem configurá-
tro lado, sendo animadas por objetivos sociais, -las como integrantes desse segmento – nesse
públicos ou coletivos, não são estatais”. Por sua cenário, os sujeitos por cooperação. Foi o caso
vez, Paes (2000, p. 56) define o terceiro setor da Lei no 9.637/1998, que consagrou a figura das
como o “conjunto de organismos, organizações organizações sociais.
e instituições dotados de autonomia e adminis-
tração própria que apresentam como função e
objetivo principal atuar voluntariamente junto 3  Organizações sociais: conceito,
à sociedade civil visando seu aperfeiçoamento”. constitucionalidade e modelos
Esses sujeitos cooperam com o Poder Público, existentes
pois não têm fins lucrativos para a execução,
conjunta ou não, de atividades administrativas, as A qualificação organizações sociais foi cria-
quais necessariamente devem gravitar em torno da pela Lei no 9.637/19981 para atribuir a essas
de empreendimentos sociais, e não econômicos. pessoas (fundação privada ou associação civil) a
Distintamente dos sujeitos por colaboração, execução de atividades do Poder Público, fomen-
que têm fins lucrativos e atuam primordialmente tando a participação da sociedade na gestão dos
em atividades econômicas – constituintes do se- interesses públicos. Trata-se, portanto, de uma
gundo setor do Estado gerencial brasileiro –, uma qualificação jurídica conferida à pessoa jurídica
das peculiaridades do terceiro setor é a inexistên- de direito privado sem fins lucrativos em virtude
cia de uma vinculação legal típica, menos ainda de preenchimento de requisitos legais (atuação
de um título habilitante, como as concessões, discricionária), instituída para o desempenho
permissões e autorizações de serviços públicos,
mas suas ações são de alguma forma reconhecidas
como tal pelo Estado.
1
 “Os requisitos fixados pela Lei Federal 9.637/1998 para
fins de qualificação das organizações sociais e celebração,
Esses sujeitos têm em comum o fato de que execução e fiscalização do contrato de gestão constituem
um padrão mínimo de proteção do interesse público que
nenhum deles ‒ sejam eles sujeitos por cooperação deve estar assegurado em todo o território nacional na
ou por colaboração ‒ faz parte da Administração execução dos serviços transferidos a pessoas jurídicas de
direito privado sem fins lucrativos, constituindo, portanto,
Pública: realizam administração pública, mas normas gerais a serem observadas pelo legislador no âmbito
não a integram e, por isso, incidem sobre eles dos estados, do Distrito Federal e dos municípios” (BRASIL,
2015b). Significa dizer que essa lei não é nacional, aplicada
alguns princípios e regras próprios do Direito a todos os entes federativos, mas apenas federal, aplicada à
Público. Essas entidades privadas sem fins lu- União. Assim, para que possam qualificar pessoas jurídi-
cas como organizações sociais, Estados, Distrito Federal e
crativos implementam atividades de interesse Municípios deverão criar suas próprias leis.

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da CF, e nos termos do regulamento próprio
de serviços sociais não exclusivos do Estado, a ser editado por cada entidade; e (vi) para
mediante vínculo jurídico instituído por meio afastar qualquer interpretação que restrinja o
de contrato de gestão, e submetida a um regime controle, pelo Ministério Público e pelo TCU,
jurídico especial. da aplicação de verbas públicas (BRASIL,
2015a, p. 7-8).
Destaque-se que foram propostas duas
Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs)
em face da Lei no 9.637/1998: a ADI 1.923/DF, Segundo o Supremo Tribunal Federal (STF),
cujo relator foi o ministro Ayres Britto, e a a Corte não pode traduzir forma de engessa-
ADI 1.943/DF, de relatoria do ministro Teori mento e de cristalização de determinado modelo
Zavascki. Esta segunda foi extinta sem reso- preconcebido de Estado, impedindo que, nos
lução de mérito; sobrestada para aguardar o limites constitucionalmente assegurados, as
julgamento da primeira, ela perdeu seu objeto maiorias políticas prevalecentes no jogo demo-
porque nesse julgamento exauriu-se a discus- crático pluralista possam pôr em prática seus
são sobre a matéria impugnada. O acórdão projetos de governo, de forma a moldar o perfil
proferido na ADI 1.923/DF conferiu às Leis e o instrumental do Poder Público conforme a
nos  9.637/1998 e 8.666/1993 interpretação vontade coletiva. Deixa claro que o dever cons-
conforme a Constituição, definindo questões titucional de promover os serviços públicos
administrativas atinentes às relações entre as sociais, que correspondem às atividades de saú-
organizações sociais e o Estado e indicando que: de, educação, cultura, desporto e lazer, ciência
e tecnologia e meio ambiente, submete-se ao
(i) o procedimento de qualificação seja con- cumprimento efetivo dos deveres constitucio-
duzido de forma pública, objetiva e impes- nais de atuação e está invariavelmente atrelado
soal, com observância dos princípios do caput
à ideia de controle da Administração Pública
do art. 37 da CF, e de acordo com parâmetros
fixados em abstrato segundo o que prega o sob a perspectiva do resultado (BRASIL, 2015a).
art. 20 da Lei no 9.637/98; (ii) a celebração do Conquanto existam diversos modelos de or-
contrato de gestão seja conduzida de forma ganizações sociais que variam entre os distintos
pública, objetiva e impessoal, com obser-
entes federativos – visto que a Lei no 9.637/1998
vância dos princípios do caput do art. 37 da
CF; (iii) as hipóteses de dispensa de licitação pertence à esfera federal, e não à nacional, e
para contratações (Lei no 8.666/93, art. 24, impõe a cada unidade federada a criação de sua
XXIV) e outorga de permissão de uso de própria lei –, pode-se inferir que duas são as
bem público (Lei no 9.637/98, art. 12, § 3o) principais fontes de inspiração para os demais
sejam conduzidas de forma pública, objetiva
entes federativos: o modelo federal e o modelo
e impessoal, com observância dos princípios
do caput do art. 37 da CF; (iv) os contratos do estado de São Paulo.
a serem celebrados pela Organização Social Assim se podem diferenciar resumidamente
com terceiros, com recursos públicos, se- esses dois modelos: (i) a cogestão ou copartici-
jam conduzidos de forma pública, objetiva
pação, mediante participação minoritária do
e impessoal, com observância dos princí-
pios do caput do art. 37 da CF, e nos termos Poder Público nas decisões estratégicas da or-
do regulamento próprio a ser editado por ganização social, com assentos no Conselho de
cada entidade; (v) a seleção de pessoal pe- Administração fixados em lei como requisito de
las Organizações Sociais seja conduzida de
qualificação, acarretando corresponsabilidade
forma pública, objetiva e impessoal, com ob-
servância dos princípios do caput do art. 37 do Poder Público na gestão e nos resultados da
organização social; e (ii) a parceria, sem par-

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ticipação compulsória do Poder Público no ou não no exercício dos seus objetivos. Não se
Conselho de Administração, o que não gera está diante de uma nova espécie de sujeito de
uma corresponsabilidade.2 direito. É uma qualificação dada às fundações
O modelo (i) é adotado pela União para privadas e às associações civis: não são novas
as organizações sociais, em especial na área categorias de pessoas jurídicas, mas apenas uma
de ciência, tecnologia e educação e em alguns qualificação especial, um título jurídico con-
estados da Federação, como o Ceará. Por sua cedido por lei a determinadas entidades que
vez, o modelo (ii) é o adotado pelo estado de atendam às exigências naquela especificadas.3
São Paulo e pela maioria dos entes federativos Registre-se que o Superior Tribunal de Jus­
que o adotou como referência, principalmente tiça alega que a qualificação de entidades como
na área de saúde. organizações sociais e a celebração de contra-
Interessa no presente artigo apenas o mo- tos de gestão tiveram origem na necessidade
delo (i). Além disso, para compreender melhor de desburocratizar e otimizar a prestação de
o conceito de organização social, passa-se a serviços à coletividade, bem como viabilizar o
analisar o elemento ou parte do seu conceito fomento e a execução de atividades relativas às
que interesse ao caso. áreas especificadas na Lei no 9.637/1998 (ensino,
pesquisa científica, desenvolvimento tecnológi-
co, proteção e preservação do meio ambiente,
4  Qualificação jurídica conferida cultura e saúde) (BRASIL, 2005).
à pessoa jurídica de direito privado Nesse contexto, cabe fazer referência ao
sem fins lucrativos em virtude do Programa Nacional de Publicização (PNP),
preenchimento de requisitos legais disciplinado no art. 20 da Lei no 9.637/1998
(atuação discricionária) e regulamentado pelo Decreto no 9.190/2017
(BRASIL, [2010], [2018]). Apesar de críticas
Em princípio, a qualificação de organização quanto ao uso da expressão publicização4, a
social é conferida apenas às pessoas jurídicas ideia da publicização decorre do art. 3o, I, a,
de direito privado sem fins lucrativos ‒ assim da Lei no 9.637/1998, que prevê uma alteração
considerada aquela que não distribui entre no Conselho de Administração das pessoas
aqueles que compõem ou não sua estrutura
(diretores, conselheiros, empregados, doadores 3
 De acordo com o STF, “o procedimento de qualifica-
etc.) eventuais excedentes operacionais, brutos ção de entidades, na sistemática da lei, consiste em etapa
inicial e embrionária, pelo deferimento do título jurídico
ou líquidos, dividendos, bonificações, participa- de ‘organização social’, para que Poder Público e particular
ções ou parcelas do seu patrimônio, auferidos colaborem na realização de um interesse comum, não se
fazendo presente a contraposição de interesses, com feição
comutativa e com intuito lucrativo, que consiste no núcleo
conceitual da figura do contrato administrativo, o que torna
2
 Para o Tribunal de Contas da União (TCU), especifica- inaplicável o dever constitucional de licitar (CF, art. 37,
mente no que diz respeito à transferência do gerenciamento XXI)” (BRASIL, 2015a, p. 5).
de serviços de saúde para organizações sociais – mas que 4
 Carvalho Filho (2002, p. 279) afirma que o termo
se poderia ampliar para quaisquer serviços sociais –, deve publicização atribuído ao programa é inadequado e infeliz.
estar fundamentada em estudo detalhado que demonstre Primeiramente, porque parece antagonizar-se com o ter-
ser essa a “melhor opção”. Além disso, exige-se avaliação mo privatização, o que, como abordado, não é verdadeiro.
precisa dos custos do serviço e dos ganhos de eficiência Depois, porque de fato nenhuma atividade estará sendo
esperados, bem como de planilha detalhada com a estimativa “publicizada”, o que ocorreria somente se fosse ela deslocada
de custos da execução dos contratos de gestão, elementos da iniciativa privada para a área governamental. No caso,
que devem compor o respectivo processo administrativo sucede o inverso: pessoas governamentais darão lugar a
(BRASIL, 2013). entidades de direito privado.

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jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, Por sua vez, o inc. II do art. 2o da mesma Lei
quando de sua qualificação como organização trata da discricionariedade do Poder Público
social, passando a ter membros natos nomeados para escolher a pessoa jurídica a ser qualificada.
pelo Poder Público, o que gerou mudança numa O TCU entende que a qualificação de entidades
composição até então totalmente particular. sem fins lucrativos como organizações sociais
No que diz respeito ao percentual de re- deve ocorrer mediante processo objetivo em
presentantes do Poder Público no Conselho que os critérios para a concessão do título sejam
de Administração das organizações sociais, demonstrados nos autos do processo adminis-
para o STF tal previsão não configura violação trativo, em observância dos princípios da impes-
do art. 5o, XVII e XVIII, da Constituição da soalidade, moralidade e publicidade (BRASIL,
República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB) 2013). Assim, a discricionariedade mencionada
(BRASIL, [2021a]), que prevê o direito fun- é limitada pela realização desse processo seletivo
damental da liberdade associativa, uma vez e pela observância de tais princípios.
que, para concretizar-se, depende da adesão Ressalte-se que o STF também entende
voluntária das entidades privadas às regras do que a previsão de competência discricionária
marco legal do terceiro setor (BRASIL, 2015a). no mesmo dispositivo tem de ser interpretada
Quanto ao preenchimento de requisitos le- sob o influxo da principiologia constitucional,
gais para a obtenção dessa qualificação jurídica, em especial dos princípios da impessoalidade,
deve-se esclarecer que o então Ministério da moralidade, publicidade e eficiência (art. 37,
Administração Federal e Reforma do Estado caput, da CRFB (BRASIL, [2021a])).
era competente para supervisionar ou regular
a área de atividade correspondente ao objeto É de se ter por vedada, assim, qualquer forma
social que confere a qualificação como orga- de arbitrariedade, de modo que o indeferi-
mento do requerimento de qualificação, além
nização social. Os requisitos para isso constam
de pautado pela publicidade, transparência
no art. 2o da Lei no 9.637/1998. e motivação, deve observar critérios objeti-
O inc. I do art. 2o dessa Lei (BRASIL, [2010]) vos fixados em ato regulamentar expedido
elenca uma série de exigências relativas à respec- em obediência ao art. 20 da Lei no 9.637/98,
concretizando de forma homogênea as dire-
tiva habilitação jurídica, como a comprovação
trizes contidas nos inc. I a III do dispositivo
do registro de seu ato constitutivo, a comprova- (BRASIL, 2015a, p. 5).
ção da finalidade não lucrativa de seus objetivos,
a proibição de distribuição de bens ou parcelas
do patrimônio líquido, a publicação anual de
relatório financeiro no Diário Oficial da União, 5 (In)constitucionalidade
entre outros. Também deve ter Conselho de ou (i)legalidade do Conselho
Administração em cuja composição haja mem- de Administração das
bros natos representantes do Poder Público organizações sociais
e de entidades da sociedade civil, bem como
membros eleitos entre associados de entidade O Conselho de Administração das organi-
e outros eleitos que tenham notória capacidade zações sociais funciona como órgão colegiado
profissional e reconhecida idoneidade moral, de deliberação superior para dar o direcio-
tudo em conformidade com os percentuais fi- namento estratégico, zelar pelo cumprimen-
xados na Lei. to das finalidades estatutárias e primar pela

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sustentabilidade e longevidade da associação, dades da entidade elaborados pela diretoria; e
sem assumir funções executivas. A existên- a fiscalização do cumprimento das diretrizes e
cia de um Conselho de Administração nas metas definidas e aprovação dos demonstrativos
organizações sociais é obrigação legal, além financeiros e contábeis e das contas anuais da
de recomendável como boa prática de go- entidade, com o auxílio de auditoria externa
vernança (INSTITUTO BRASILEIRO DE (BRASIL, [2010]).
GOVERNANÇA CORPORATIVA, 2016, p. 33). Ainda no que diz respeito ao Conselho
O art. 3o da Lei no 9.637/1998 (BRASIL, de Administração, o art.  19 do Decreto
[2010]) dispõe sobre a composição do Conselho no 9.190/2017, em conformidade com deter-
de Administração. Vislumbra-se aqui o esforço minações do TCU (Acórdão no 8.683/2015,
do legislador em submeter a organização social itens 9.2 e 9.3) (BRASIL, 2015c), estabelece que
a um controle do Poder Público e da sociedade
civil. Membros natos representantes do Poder incumbe ao Conselho de Administração da
Público, bem como membros natos represen- organização social exercer as atribuições
previstas na Lei no 9.637, de 1998, além de
tantes de entidades da sociedade civil, podem
zelar pelo cumprimento dos resultados pac-
representar entre 40% e 70% da composição do tuados, pela aplicação regular dos recursos
Conselho, sendo o restante das vagas preenchido públicos, pela adequação dos gastos e pela
por membros eleitos. sua aderência ao objeto do contrato de gestão
(BRASIL, [2018]).
Por sua vez, o art. 4o da Lei determina exem-
plificativamente suas atribuições privativas: a
fixação do âmbito de atuação da entidade para Em vista dessas atribuições, pode-se inferir
a consecução do seu objeto; a aprovação da que o Conselho de Administração é o principal
proposta de contrato de gestão da entidade; a elemento do sistema de governança, na medida
aprovação da proposta de orçamento da entida- em que deve funcionar como um forte elo entre
de e o programa de investimentos; a designação a missão e a gestão, a orientar e supervisionar a
e dispensa dos membros da diretoria; a fixação relação desta com as demais partes interessadas.
da remuneração dos membros da diretoria; a Segundo o Instituto Brasileiro de Governança
aprovação e disposição sobre a alteração dos Corporativa (2016, p. 35, grifo nosso),
estatutos e a extinção da entidade por maio-
ria mínima de dois terços de seus membros; a [d]ada a sua natureza e características in-
aprovação do regimento interno da entidade, trínsecas, as atribuições do CA devem estar
relacionadas ao “governar”, e não ao “admi-
que no mínimo deve dispor sobre estrutura,
nistrar”, na medida em que este órgão deve
forma de gerenciamento, cargos e respectivas ter uma visão de todo o contexto da associa-
competências; a aprovação, por maioria míni- ção, assegurando e proporcionando decisões
ma de dois terços de seus membros, do regu- estratégicas que impulsionem a sua atuação.
Em termos práticos, isso significa dizer que
lamento próprio contendo os procedimentos
o CA deve deliberar sobre as estratégias,
que devem ser adotados para a contratação de mantendo-se atento às linhas gerais, longe
obras, serviços, compras e alienações e o plano dos detalhes operacionais e dos pequenos
de cargos, salários e benefícios dos empregados tópicos de decisão.
da entidade; a aprovação e o encaminhamento,
ao órgão supervisor da execução do contrato Os Conselhos de Administração nas orga-
de gestão, dos relatórios gerenciais e de ativi- nizações sociais têm como objetivo, portan-

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to, incorporar a missão da entidade, buscando Com o advento da Lei no 9.637/1998, além
alcançá-la. A gestão é realizada de forma a pro- de se tornar obrigatória a criação dos Conselhos
teger os interesses públicos e, por isso, é vista de Administração, passou-se a exigir a repre-
como o principal canal de ingerência do Poder sentação do Poder Público em sua composição
Público nas organizações sociais. Antes de o para que as fundações e associações fossem
STF decidir a ADI 1.923/DF, discutia-se se a qualificadas como organizações sociais. Essa
previsão de um Conselho de Administração e obrigação fez surgirem vozes contrárias à sua
de sua composição era constitucional. constitucionalidade5 e legalidade. Para quem
O debate jurídico relativo à previsão de um assim entende, tais previsões violam o art. 120
Conselho de Administração ocorre porque o da Lei dos Registros Públicos, bem como os
Código Civil (CC) (Lei no 10.406/2002) (BRASIL, arts. 54, V, e 59, I e II, do CC, que determinam
[2021c]), nos arts. 53 a 61, que regem a criação a competência privativa da Assembleia Geral
e o funcionamento das fundações privadas e para eleger e destituir administradores e alterar
das associações civis, não obriga à criação de tal o estatuto (BRASIL, [2021c]).
Conselho. Já era assim no Código Civil editado De acordo com Teixeira (2012, p. 135, grifos
em 1916 (arts. 16 a 23). E, segundo o CC, sob nossos),
pena de nulidade, os estatutos de tais entidades
deverão conter uma série de requisitos entre os [a] Lei n. 9.637/98 e outras estaduais e mu-
quais não se encontra a figura do Conselho de nicipais que são reproduções dela retiram
da competência da assembleia geral, que é
Administração. O art. 54, V, do CC exige que se
exclusiva (ou privativa), tais atribuições e as
identifique o modo de constituição e de funcio- transfere para o Conselho de Administração,
namento dos órgãos deliberativos. Não se impõe desprezando o comando do Código Civil, sem
expressa ou tacitamente quais sejam esses órgãos, revogá-lo expressamente. E nem poderia, haja
vista que aquela lei cuida de qualificação, ou
muito menos a sua composição. Não se exige que
seja, concessão de um título e não de regras para
a associação tenha no seu estatuto a previsão da criação de pessoa jurídica de direito privado
existência do Conselho de Administração, sua de fins não econômicos, que é o que preveem
composição e que parte dos seus componentes os dispositivos civilistas.
seja representante do Poder Público ou de entida-
des da sociedade civil (TEIXEIRA, 2012, p. 133). Também surgiram críticas à composição do
Além disso, a Lei dos Registros Públicos (Lei Conselho de Administração em razão de sua di-
o
n  6.015/1973) contém previsões parecidas e fícil operacionalização e de sua questionável efi-
que também são de cumprimento obrigatório, cácia. Modesto (1998, p. 82), por exemplo, iden-
igualmente não se verificando a obrigatorieda- tifica, na exigência de obrigatória previsão estatu-
de de criação de Conselhos de Administração tária da participação de representantes do Poder
(art. 120) (BRASIL, [2021b]). Deduz-se que, Público no Conselho de Administração, uma
para existirem e funcionarem, essas entidades onerosidade injustificada para a Administração,
prescindem da existência de quaisquer tipos de
Conselhos (administrativo, deliberativo, consul- 5
 Segundo Teixeira (2012, p. 135): “A leitura da Lei
tivo, fiscal, entre outros), simplesmente porque no 9.637/98 nos permite concluir que o Poder Público,
representado por seus membros, imiscuirá na adminis-
as leis de regência não impõem que no estatuto tração da entidade de direito privado surgida da extinção
haja especificação acerca de sua criação, sua de órgãos públicos, em afronta à proibição constitucional
de interferência estatal no funcionamento da associação, o
composição e seu funcionamento. que também colide com ditames previstos no Código Civil”.

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dado que se lhe impõe a cessão de pessoal qua- Administração, é apenas um requisito para um
lificado para compor o Conselho de todas as benefício a ser obtido voluntariamente mediante
organizações sociais qualificadas pelo Poder a parceria entre o setor público e a organização
Executivo federal. Opina o autor que essa exi- social, sem que ocorra ofensa ao art. 5o, XVII e
gência poderia ser aplicável apenas a entida- XVIII, da CRFB.6
des de grandes dimensões, o que garantiria um A retirada de atribuições privativas da
acompanhamento efetivo de organizações sociais Assembleia Geral e sua transferência ao Conselho
que movimentam recursos expressivos. Patrone de Administração não foram objetos das ADIs
Regules (2006, p. 100) entende que a estrutura 1.923/DF e 1.943/DF. Por isso, inclusive, a
do Conselho de Administração, como prevista Suprema Corte não se debruçou sobre o tema,
na Lei no 9.637/1998, enfraquece o exercício da o que leva a duas conclusões diferentes: pode-se
liberdade de associação prevista no art. 5o, XVII entender, por um lado, que implicitamente o
e XVIII, da CRFB. Segundo ele, causa estranheza STF julgou constitucional toda a lógica relativa
imaginar que, após os esforços dos particulares ao Conselho de Administração; por outro, que
em formar e consolidar a entidade, realizem estes tal tema ainda pode ser levado à apreciação do
a “entrega” da sua direção ao Poder Público. Por Judiciário, seja em sede de controle difuso/con-
fim, para Freitas (1999, p. 187), as exigências creto ou concentrado/abstrato.
relativas ao Conselho de Administração das Não é de hoje que a doutrina admite as limi-
organizações sociais são generalistas e podem tações e restrições a direitos fundamentais: trata-
inviabilizar operacionalmente a qualificação da -se da teoria dos limites dos limites (MENDES;
entidade. Trata também de uma possível incredi- BRANCO, 2018). Essa teoria respalda as limita-
bilidade de um Conselho de Administração que, ções/restrições com base na diferenciação entre
composto por representantes do Poder Público, aspectos formais e materiais.
tem por atribuição a aprovação da proposta do Formalmente, a limitação/restrição deve ser
contrato de gestão da entidade. estabelecida de acordo com autoridade compe-
Apesar dessas críticas, na ADI 1.923/DF o tente, consoante os processos e as formas pre-
STF declarou constitucionais tais previsões e vistas para sua realização. Deve-se respeito ao
estabeleceu que: princípio da reserva legal, uma vez que matérias
relacionadas a direitos fundamentais devem ser
19. A previsão de percentual de representantes aprovadas pelo Parlamento. Trata-se de uma
do poder público no Conselho de Administração garantia da instituição parlamentária frente ao
das organizações sociais não encerra viola-
poder regulamentar. Além desse princípio, de-
ção ao art. 5o, XVII e XVIII, da Constituição
Federal, uma vez que dependente, para con- ve-se respeito ao princípio da não retroatividade,
cretizar-se, de adesão voluntária das entidades pois qualquer limitação/restrição a um direito
privadas às regras do marco legal do Terceiro
Setor (BRASIL, 2015a, p. 7, grifos nossos).
6
 Moreira Neto (2007, p. 246) comenta a Medida Provi-
sória (MP) no 1.501/1997, posteriormente convertida na Lei
no 9.637/1998: “Como a livre associação está garantida na
Entendeu o STF que não existe interferência Constituição (art. 5o, XVII), as entidades vocacionadas ao
indevida do Estado em tal enunciado norma- interesse público poderiam ser constituídas sem mais for-
malidades que as exigidas para quaisquer outras; a diferença,
tivo: a interferência na atuação das fundações porém, oferecida pela Medida Provisória, está na possibi-
e associações, inclusive com o percentual de lidade de poderem as entidades criadas com atendimentos
aos requisitos nela previstos, se habilitarem à qualificação
representantes do Poder Público no Conselho de como organização social (art. 2o da MP)”.

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fundamental só pode ser estabelecida daquele momento em diante, sem
gerar efeitos retroativos.
Quanto ao aspecto material, essa teoria refere-se à proteção do núcleo
essencial, visto que nenhuma limitação/restrição a um direito fundamental
pode inviabilizar o exercício daquele direito porque, do contrário, não
será uma restrição adequada – motivo por que essas limitações/restrições
podem ser estabelecidas desde que baseadas no princípio da proporcio-
nalidade/razoabilidade. Ou seja, a limitação/restrição só será considerada
legítima se adequada, necessária e proporcional em sentido estrito.
Entende-se que a Lei no 9.637/1998, ao obrigar a criação dos Conselhos
de Administração da forma indicada, limitou/restringiu direitos funda-
mentais consagrados no art. 5o, XVII e XVIII, da CRFB, respeitando os
aspectos formais e materiais supracitados; por isso, foram declarados
constitucionais pelo STF.7
Interessa, aqui, centrar os esforços no que diz respeito à composição
do Conselho de Administração a fim de desenvolver o objeto do presente
artigo.

6  Membros natos representantes do Poder Público no


Conselho de Administração das organizações sociais

6.1  Análise do momento histórico (occasio legis), da vontade dos


idealizadores, do legislador, bem como da vontade objetiva e autônoma
da Lei no 9.637/1998 e do Decreto no 9.190/2017

Como se observou, o modelo federal das organizações sociais, quan-


do foi pensado, visou estabelecer o centro de poder no Conselho de
Administração.
Com a análise dos documentos que precederam a edição da MP
o
n  1.591/1997 – como o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado
(aprovado pela Câmara da Reforma do Estado em 21/9/1995), o caderno
Organizações sociais (Cadernos MARE da Reforma do Estado), a Exposição
de Motivos da referida MP –, pode-se compreender a vontade dos idea-
lizadores, do legislador, bem como a vontade objetiva e autônoma da lei,
revelando-se sua finalidade. O Plano Diretor da Reforma do Aparelho
do Estado estabelece que as organizações sociais terão Conselhos de
Administração, prevenindo-se, desse modo, a privatização ou a “feudaliza-

7
 Não se vê aqui necessidade de um aprofundamento na demonstração da constituciona-
lidade da Lei no 9.637/1998 por já ter sido ela declarada constitucional pelo STF, mas, como
se demonstrou, o fundamento último dessa declaração é a teoria dos limites dos limites.

160 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 151-180 jul./set. 2021


ção” dessas entidades. Esse documento (BRASIL, ticipação nos Conselhos de Administração dos
1995, p. 74, grifos nossos) determina que diversos segmentos representativos da sociedade
civil. Agora, não é apenas a questão do controle
[a]s entidades que obtenham a qualidade de que é ponto de convergência desse documento:
organizações sociais gozarão de maior auto- também é a questão da direção superior de tais
nomia administrativa, e, em compensação,
instituições. O documento (BRASIL, 1995, p. 15)
seus dirigentes terão maior responsabilidade
pelo seu destino. Por outro lado, busca-se revela a preocupação de “evitar a oligarquiza-
através das organizações sociais uma maior ção do controle sobre essas entidades”, assim
participação social, na medida em que elas são “os mandatos dos representantes da sociedade
objeto de um controle [direto] da sociedade
estarão submetidos a regras que limitam a re-
através de seus conselhos de administração
recrutado no nível da comunidade à qual a condução e obrigam à renovação periódica dos
organização serve. Adicionalmente se busca conselhos”. Além desse documento, é importante
uma maior parceria com a sociedade, que analisar a Exposição de Motivos da MP no 1.591,
deverá financiar uma parte menor mas sig- de 9/10/1997, que mostra a preocupação de es-
nificativa dos custos dos serviços prestados.
clarecer apenas aspectos do que seria o Conselho
de Administração das organizações sociais:
Aquele mesmo caderno (BRASIL, 1998,
p. 11, grifos nossos) também revela que 8. A composição do Conselho de Administração
das Organizações Sociais contemplará a par-
ticipação de representantes de entidades da
[a] estratégia da reforma do Estado se [apoia]
sociedade civil, bem como de pessoas de
na “publicização” dos serviços não-exclusivos
notória capacidade e reputação. Além disso,
do Estado, ou seja, na sua absorção por um
em se tratando de atividades fomentadas pelo
setor público não-estatal, onde, uma vez fo-
Estado, o Poder Público também estará pre-
mentados pelo Estado, assumirão a forma de
sente, de forma minoritária. Especial cuidado
organizações sociais. Essa forma de parceria
mereceu a previsão de regras inibidoras da
entre sociedade e Estado, além de viabilizar
oligarquização do controle deste Conselho,
a ação pública com mais agilidade e maior
com a obrigatoriedade de renovação de seus
alcance, torna mais fácil e direto o controle
integrantes e a observância de cuidadosa plu-
social, mediante a participação, nos conselhos
ralidade na sua composição (BRASIL, 1997,
de administração, dos diversos segmentos be-
grifos nossos).
neficiários envolvidos.

No mais, estabelece que um dos objetivos Ao analisar a Lei no 9.637/1998, percebe-se


relacionados a esses serviços não exclusivos é que à época órgãos públicos foram extintos e
“lograr um maior foco no cidadão-usuário e um houve a transferência de atividade para enti-
maior controle social direto desses serviços por dades privadas preexistentes. O Anexo I da Lei
parte da sociedade, por meio dos seus conselhos no 9.637/1998 (BRASIL, [2010]) elenca os órgãos
de administração” (BRASIL, 1998, p. 11, grifo públicos que foram extintos e que dariam lu-
nosso). gar a entidades de direito privado também nele
Ambas as citações também são encontradas mencionadas. A partir da criação dessas enti-
no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do dades privadas, a União firmou parcerias com
Estado (BRASIL, 1995, p. 43-47). Segundo esse elas por meio de contratos de gestão, visando
documento, as organizações sociais tornam mais ao desenvolvimento de atividades com menos
fácil e direto o controle social por meio da par- engessamento burocrático, com direcionamen-

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 151-180 jul./set. 2021 161


to do foco no resultado, entre outras vantagens em comparação com o
regime jurídico-administrativo aplicado à Administração Pública direta.
Segundo Teixeira (2012, p. 126, grifos nossos),

[a]o extinguir órgãos públicos e transformá-los em pessoas jurídicas de


direito privado, o legislador federal pretendeu continuar a participar e, de
certa maneira, manter o controle da nova entidade privada surgida, o que é
compreensível, já que ela nasceu justamente de dentro da Administração
Pública federal para fora. Para que fosse possível exercer este comando
ou essa participação, a Lei federal n. 9.637/98 previu a criação de um
Conselho de Administração, pela nova pessoa jurídica, cuja composição
exige a presença de determinado percentual (20 a 40%) de membros natos
do Poder Público que deu origem à nova pessoa jurídica.

Fica evidente que o raciocínio para a criação e composição do Conselho


de Administração foi desenvolvido com base no que a Lei no 9.637/1998
denominou publicização – ou seja, na extinção de órgãos públicos e na
criação de entidades privadas sem fins lucrativos que absorveriam as suas
atividades. Ao referir-se ao PNP, Pereira (1998, p. 246-249) afirma que
ele “constitui uma alternativa ao estatismo, que pretende tudo realizar
diretamente pelo Estado, e à privatização, pela qual se pretende tudo
reduzir à lógica do mercado e do lucro privado”. E aduz:

O processo de publicização começa com a decisão da entidade e do


ministro supervisor de caminhar nessa direção. Tomada de decisão, é
necessário para extinguir a entidade estatal que realiza as atividades a serem
publicizadas para que estas possam ser absorvidas por uma associação
ou fundação de direito privado, criada por pessoas físicas.

Fernandes (2009, p. 347), ao estudar as organizações sociais advindas


da publicização, assevera que são

designativos de pessoas jurídicas de direito privado, instituídas com fei-


ção nitidamente substitutiva de órgãos ou entidades de direito público,
cujas atribuições devem ser incorporadas pelos novos agentes privados,
através da celebração de contratos de gestão. Negou-se, por assim dizer,
às organizações sociais a espontaneidade de atuação da sociedade civil,
elemento que está na base teórica das noções de parceria entre o público
e privado e de Estado subsidiário.

Deduz-se que o objetivo inicial da criação dos Conselhos de Admi­


nistração das organizações sociais era manter o controle das pessoas
jurídicas de direito privado criadas em decorrência da extinção dos órgãos
públicos existentes. Foi uma fórmula elaborada para que a Administração
Pública mantivesse o controle quanto ao destino dos extintos órgãos

162 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 151-180 jul./set. 2021


públicos. A razão histórica, o pensamento do legislador à época da edi-
ção da Lei, era o controle parcial de extintos órgãos públicos, mesmo
sabendo que outras entidades sem fins lucrativos, já existentes ou ainda
por existir, desejariam obter a qualificação de organização social, ainda
que sua autonomia associativa fosse limitada por estar obrigada a dar
assento no Conselho de Administração ao Poder Público.
Como se pode perceber, a composição do Conselho de Administração
prevista na Lei no 9.637/1998 implica uma ingerência externa ao impor
uma limitação/restrição a um direito fundamental (art. 5o, XVII e XVIII,
da CRFB), visto que a entidade sem fins lucrativos terá de respeitar even-
tual decisão proferida por um Conselho constituído, em sua maioria,
por membros estranhos à entidade (RODRIGUES, 2012, p. 151). Sobre
a temática, Patrone Regules (2006, p. 99) afirma que

[a] ingerência do Poder Público nas Organizações Sociais alcança um


nível jamais visto no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente se
considerada a natureza jurídica das pessoas jurídicas assim qualificadas,
dotadas de autonomia própria das organizações privadas, assim como
instituídas e geridas sob o influxo do direito constitucional à liberdade
de associação.

Quanto ao Decreto no 9.190/2017, sua Exposição de Motivos assim


dispõe sobre o Conselho de Administração:

De modo a fomentar um modelo mais efetivo e sustentável de parceria, no


caso de atividades intersetoriais, será admitido o financiamento comparti-
lhado das respectivas atividades pelas entidades ou órgãos envolvidos, no
montante assumido por cada órgão ou entidade. Para tanto, tais órgãos ou
entidades deverão estar representados como membros natos no respectivo
Conselho de Administração, figurando, nesta hipótese, como intervenientes
no contrato de gestão, mantida a responsabilidade do órgão supervisor
na avaliação da execução do contrato (BRASIL, 2016, p. 4, grifos nossos).

Como se percebe, ao estabelecer a obrigatoriedade de um Conselho


de Administração com representantes do Poder Público e da sociedade
civil, o legislador intentava vincular essas entidades a uma função pú-
blica, mesmo não sendo elas integradas à Administração Pública. Isto
é, as fundações privadas e associações civis que desejassem manter sua
identidade não seriam bem-vindas ao terceiro setor do Estado gerencial
brasileiro, mas só poderiam fazer parte dele as que estivessem dispostas
a perder parte de sua identidade, admitindo pessoas estranhas à sua rea-
lidade, ao seu cotidiano, que não necessariamente estivessem em sintonia
com suas missões e que poderiam, visando aos interesses públicos – fim
maior da Administração Pública –, tomar decisões atinentes a atribuições

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 151-180 jul./set. 2021 163


privativas do Conselho de Administração conforme estabelece o art. 4o
da Lei no 9.637/1998. Essa interpretação fica evidente na defesa de Pereira
(1998, p. 249, grifo nosso):

no estatuto legal das organizações sociais, há toda uma série de exigências


para garantir seu caráter público e para evitar que a mesma seja feudali-
zada. O requisito principal é o de que, no estatuto da entidade, o poder
não esteja concentrado nos sócios (se se tratar de associação), mas no
Conselho de Administração.

Apesar de vozes na doutrina entenderem que, com a composição


prevista pela Lei no 9.637/1998, o Conselho de Administração retira
ilegalmente a autonomia associativa da entidade de direito privado já
existente ou a existir, que não decorreu da extinção do órgão público
(TEIXEIRA, 2012, p. 140), entende-se (como o STF) que não há ofensa
ao art. 5o, XVII e XVIII, da CRFB.

6.2  Análise da juridicidade do Decreto no 9.190/2017

Os decretos são atos administrativos editados privativamente pelo


chefe do Executivo, na forma do art. 84, IV, da CRFB (BRASIL, [2021a]),
com o objetivo de reger relações gerais ou individuais. Quanto ao con-
teúdo, eles podem ser divididos em duas categorias: regulamentares (ou
normativos) e individuais (ou concretos).
Os decretos regulamentares ou normativos fixam normas abstratas,
com fundamento na lei, explicando-as e dando-lhes exequibilidade – ou, de
outro modo, dando curso à fiel execução das leis. O Decreto no 9.190/2017,
que regulamenta o disposto no art. 20 da Lei no 9.637/1998, pertence a essa
categoria: é um instrumento do chefe do Executivo para regulamentar um
dos enunciados da Lei no 9.637/1998 como um complemento necessário
para que ela possa ser executada em sua plenitude.8
Em razão de serem regulamentos, caracterizam-se como atos emanados
pelo poder regulamentar da Administração Pública. Têm caráter secundá-
rio, subalterno, subordinado, inferior e complementar à lei. Sua submissão
à lei é, em princípio, absoluta: não cria direitos e obrigações, produz-se no
âmbito e nos limites da lei que visa regulamentar e não pode contradizer
nem tentar deixar sem efeitos os preceitos legais, não podendo suprir ou
regular, no lugar da lei, onde ela foi omissa ou lacunosa. Seu campo de
atuação, portanto, é residual e limitado. Por esse motivo, costuma-se dizer

8
 Esses tipos de decretos são conhecidos como regulamentos, mas as expressões decreto
e regulamento não se confundem: o regulamento refere-se ao conteúdo do ato, ao passo
que o decreto é a forma, o instrumento.

164 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 151-180 jul./set. 2021


que o regulamento densifica e pormenoriza as ponsáveis pela supervisão, pelo financiamento
normas da lei para a sua posterior aplicação e pelo controle da atividade” (BRASIL, [2018]).
concreta pela Administração Pública. A Lei inovou o Direito, isto é, criou uma
A lei ostenta, pois, uma situação de primazia: obrigação; contudo, o Decreto não pode inovar
(i) formal, porque disciplina matérias essenciais; o Direito: teoricamente seu conteúdo deve estar
(ii) material, já que os regulamentos não podem limitado ao conteúdo da Lei, dando-lhe fiel exe-
ter conteúdo contrários a ela; (iii) objetiva, uma cução. Há os que interpretam dessa forma, sem
vez que existe uma série de matérias reservadas vislumbrar vício de inconstitucionalidade e ile-
à lei, não havendo nenhum âmbito reservado ao galidade do Decreto no 9.190/2017. No entanto,
regulamento; e (iv) diretiva, dado que a lei osten- pode-se discordar desse entendimento. Ao esta-
ta pleno poder de disposição ou determinação belecer que o Conselho de Administração deve
vinculante quanto ao conteúdo do regulamento. possuir de 20% a 40% de membros natos repre-
Três princípios presidem essa relação entre sentantes do Poder Público, a Lei no 9.637/1998
lei e regulamento: (i) o princípio da suprema- conferiu liberdade para que as entidades priva-
cia da lei, que supõe a absoluta subordinação das estabelecessem, nesse percentual, membros
do regulamento à lei, e do qual se deduz que o de qualquer ente ou órgão da Administração
regulamento completa a lei; (ii) o princípio das direta ou indireta. Ao regulamentar essa Lei,
matérias reservadas à lei, o qual estabelece que o chefe do Executivo decidiu limitar/restringir
só por lei se podem adotar determinados temas; ainda mais tal possibilidade, definindo que ape-
e (iii) o princípio formal do congelamento da nas os diretamente responsáveis pela supervisão,
classificação, em virtude do contrarius actus financiamento e controle da atividade poderiam
necessário para inovar um tema existente – para fazer parte do Conselho.
estabelecer uma norma nova, a classificação da Nesse aspecto, poderia existir uma interpre-
que substituirá tem de ser igual ou superior à tação (com a qual se concorda) de que o Decreto
da substituída ou inovada. Essas relações são não poderia limitar/restringir ainda mais um
imprescindíveis para analisar a juridicidade do direito fundamental que já fora limitado/res-
Decreto no 9.190/2017, principalmente no que tringido por lei. Essa manobra seria violadora
diz respeito ao objeto dessa opinião – ou seja, se da teoria dos limites dos limites, que estabelece,
os arts. 5o, III, e 15, § 2o, desse Decreto (BRASIL, em seu aspecto formal, a necessidade de reserva
[2018]) minuciam ou não o art. 3o, I, a, da Lei de lei – e, se a Lei não decidiu restringir a tal
no 9.637/1998 (BRASIL, [2010]). ponto, não o poderia fazer o Decreto.
Desse modo, ao criar a obrigação de um Ora, se o legislador estabeleceu a obrigato-
Conselho de Administração nas organizações riedade de membros natos representantes do
sociais, bem como ao estabelecer a presença de Poder Público, questiona-se se é legalmente
membros natos representantes do Poder Público admissível que o chefe do Executivo limite esse
em tal Conselho, a Lei no 9.637/1998 inovou e, poder, fixando para o futuro os termos em que
como já mencionado, o STF declarou-o cons- se realizará. Segundo Ayala (1995, p. 173), não
titucional (ADI 1.923/DF). Agora cabe analisar é pacífica a ideia de autovinculação, mas o au-
se são juridicamente possíveis a explicação, a tor questiona se – e em que casos – é possível
exequibilidade, a densificação e o detalhamento desvirtuar a vontade legislativa de atribuir uma
propostos pelo Decreto ao estabelecer que esses margem de liberdade, pois esta pode configurar
representantes serão “aqueles diretamente res- uma fuga à margem conferida pela norma.

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No caso em questão, para quem assim o in- contratos de gestão em andamento. Apesar de
terpreta, o que se tem é a modificação de uma o art. 29 do Decreto no 9.190/2017 (BRASIL,
lei por uma fonte de valor inferior, isto é, por um [2018]) estabelecer que “a entidade privada
decreto. É como se ocorresse um esvaziamento qualificada como organização social somente
da liberdade associativa maior do que aquele que poderá celebrar um contrato de gestão com a
a lei estabelece e, por esse motivo, tal decreto Administração Pública federal”, nada impede
pode ser questionado em sua juridicidade. Assim que ela tenha contratos de gestão com outros
se pode interpretar, pois a Lei no 9.637/1998, ao entes federativos distintos – chamados interfede-
estabelecer o percentual mencionado, permitiu rativos –, desde que seu estatuto seja compatível
que essa composição, reservada a representantes com a legislação do ente federativo e que tenha
do Poder Público, fosse definida em ambiente sido qualificada em todas as localidades. Para
privado, nos termos do estatuto social registrado. isso, seu Conselho de Administração deve ser
Além desse argumento, pode-se apresentar único, pois diz respeito à entidade, e não ao
o de que o Decreto no 9.190/2017 inova quanto contrato de gestão ou a cada qualificação, mesmo
às exigências sobre a entidade privada. Pode-se que se exija a constituição de filial, sucursal ou
dizer que ele estabelece nova exigência, mais subsidiária na localidade, com conta bancária
de 20 anos após a edição da norma pelo Poder específica, bem como manutenção de registro,
Legislativo. Dessa maneira, exigir nova confi- documentações e contabilidade na localidade.
guração do Conselho de Administração im- A previsão de participação de representante
plica alterar a configuração do principal órgão do Poder Público no Conselho de Administração
deliberativo da entidade, de modo a modifi- da organização social restringe/limita a atração
car a composição que já se fez experiente no de organizações sociais interfederativas, pois
desempenho da atividade e, por conseguinte, na prática ter-se-iam de incluir todos os su-
atentatória à liberdade dos particulares exercida pervisores/intervencionistas em tal Conselho,
quando da edição de seu estatuto. Em outras o que poderia gerar um inchaço na gestão da
palavras, definir de tal maneira a composição organização. Ressalte-se que é apenas federal
do Conselho de Administração é permitir que a exigência de que os representantes do Poder
a Administração Pública, por meio de decreto, Público sejam os diretamente responsáveis pela
restrinja/limite direito fundamental. supervisão, financiamento e controle da ativida-
Atrelados a esses argumentos, outros po- de, mas poderia ser replicada em legislação – ou
dem ser apontados. É possível destacar que os até mesmo em decretos – em outras unidades
diretamente responsáveis pela supervisão, fi- federativas. Apesar de possível essa interpreta-
nanciamento e controle da atividade respondem ção, com os argumentos apresentados entende-se
pelo contrato de gestão, e não pela entidade. que outra interpretação pode existir: a de que o
Assim o é porque outros contratos que a entidade Decreto no 9.190/2017 não é uma inovação des-
realiza não são diretamente supervisionados, tituída de qualquer base legal no ordenamento
financiados e controlados pelos entes ou órgãos jurídico. O Decreto não exorbitou o âmbito da
públicos: não se podem confundir tais receitas “fiel execução” da Lei.
com as decorrentes de contratos administrativos, Nesse sentido, o Decreto regulamenta o dis-
por exemplo. positivo legal e não é inconstitucional ou ilegal,
Não há impedimento também quanto a de- porquanto se relaciona diretamente com o po-
terminada organização social ter dois ou mais der-dever da Administração de rever seus atos

166 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 151-180 jul./set. 2021


e visa dar fiel execução ao disposto no diploma para compor a Comissão de Acompanhamento e
legal em referência, segundo o art. 84, IV, da Avaliação; (iv) os recursos públicos transferidos
CRFB – afinal, nada mais sensato do que quem às organizações sociais serem mantidos como
será representado dizer quem serão seus repre- públicos (até para fins de impenhorabilidade,
sentantes. Para quem assim entende, não cabe por exemplo), entre outras características.9
afirmar que o Decreto limita/restringe aquilo Essas peculiaridades levam à interpretação
que a Lei prevê. Dentro de sua competência, o de que nada mais razoável e proporcional do que
chefe do Executivo tão somente regulamentou aquele que responde pela execução do contra-
sua execução. É seu dever esclarecer quais serão to de gestão indicar quem são os membros do
os representantes do Poder Público, minuciando Conselho de Administração e, por isso, a preten-
o texto legal nesse sentido.
Como a CRFB impõe e seu nome revela, a 9
 Para Marques Neto (2009, p. 194), bens públicos re-
função do decreto regulamentar não vai além passados às organizações sociais, por meio da celebração
de contratos de gestão, têm natureza pública. Segundo o
de regulamentar a lei, não podendo restringir autor, esses bens não integram o patrimônio da entidade,
que detém apenas seu direito a uso: “A Lei 9.637/98 prevê a
o que ela não restringe. Segundo essa possível possibilidade de serem transferidos às OSs bens públicos, de
interpretação, foi a Lei no 9.637/1998 que limi- modo a permitir que a entidade desempenhe as atividades
que lhe foram atribuídas por meio do Contrato de Gestão.
tou/restringiu a liberdade associativa, e não o Nestes casos, ainda que a posse e a gestão destes bens passem
Decreto; este apenas densificou e detalhou quem para a OS, eles não perdem a característica de bens públicos”.
O mesmo raciocínio é aplicado aos recursos orçamentários
serão os membros natos representantes do Poder e financeiros transferidos. De acordo com Mânica (2018),
Público. Por essa outra interpretação, conclui- as organizações sociais são meras gestoras de recursos re-
passados pelo Poder Público. Essa interpretação é reforçada
-se que, ao expedir o Decreto, o presidente da pela previsão constitucional (art. 70), que exige a prestação
de contas por toda entidade do terceiro setor que utilize,
República não extrapolou a determinação da arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiro, bens ou
Lei: apenas lhe conferiu fiel execução, expli- valores públicos. Ressalta-se que esse entendimento foi im-
plicitamente acolhido na ADI 1.923/DF, pois o voto vencedor
cando-a, facilitando sua execução, aclarando do ministro Luiz Fux tem passagens reconhecendo a natureza
seu mandamento e orientando sua aplicação pública: “Por receberem recursos públicos, bens públicos e
servidores públicos, porém, seu regime jurídico tem de ser
em consonância com o art. 84, IV, da CRFB. minimamente informado pela incidência do núcleo essencial
Essa interpretação apresenta como principal dos princípios da Administração Pública (CF, art. 37, caput),
dentre os quais se destaca o princípio da impessoalidade,
argumento o fato de o modelo federal de orga- de modo que suas contratações devem observar o disposto
em regulamento próprio (Lei no 9.637/98, art. 4o, VIII),
nização social ser de cogestão/coparticipação e, fixando regras objetivas e impessoais para o dispêndio de
por conseguinte, de corresponsabilização. Tal recursos públicos. […] Além disso, as Organizações Sociais
estão inequivocamente submetidas ao sancionamento por
modelo é evidenciado não apenas porque os improbidade administrativa, caso façam mau uso dos recur-
membros natos no Conselho de Administração sos públicos. […] (iv) os contratos a serem celebrados pela
Organização Social com terceiros, com recursos públicos,
são, em parte, representantes do Poder Público, sejam conduzidos de forma pública, objetiva e impessoal,
mas também pelo fato de (i) ser o ente ou o órgão com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF”
(BRASIL, 2015a, p. 6-83). Saliente-se, no entanto, que o
público aquele que provê de meios a organização entendimento de que são bens públicos os pertencentes às
pessoas de direito público ou de direito privado, integrantes
social mediante fomento (transferência de recur- ou não da Administração Pública, desde que os bens estejam
sos orçamentários e financeiros; cessão especial afetados à prestação de um serviço público ou a outra fina-
lidade pública, não é o único existente. Há quem defenda,
de servidores; e utilização e administração de por exemplo, que são bens públicos os bens pertencentes
patrimônio, bens móveis e imóveis); (ii) ter ele apenas às pessoas jurídicas de direito público, conforme
definição do art. 98 do CC; ao passo que para outros são
negociado o contrato de gestão; (iii) haver a pos- bens públicos os pertencentes à Administração Pública
sibilidade de o Poder Público indicar membros como um todo – logo, todas as pessoas jurídicas de direito
público e privado, desde que integrantes da Administração
com notória capacidade e adequada qualificação Pública. Ver Bacellar Filho (2007, p. 141).

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 151-180 jul./set. 2021 167


são do art. 5o, III, do Decreto é estabelecer que apenas os financiadores
(órgão superveniente e órgão interveniente) podem ter participação no
Conselho de Administração das organizações sociais. No conceito de
cogestão/coparticipação, não faz sentido a organização social escolher
quem vai promover a cogestão com ela: a escolha deve ser feita pelo próprio
Poder Público. Afinal, representante é aquele que age em nome de alguém.
Nesse sentido, confunde-se a entidade com o contrato de gestão que
ela detém, e como já se evidenciou, a entidade pode: (i) ser maior que o
contrato de gestão firmado; (ii) ter dois ou mais contratos; e (iii) realizar
outros tipos de pactos, convênios, acordos, contratos etc. Não se deve
confundir, portanto, a entidade com seu contrato de gestão, nem mesmo a
supervisão/financiamento/controle da entidade com a supervisão/finan-
ciamento/controle do contrato de gestão. Além disso, quem representa
não necessariamente representa alguém; pode também representar algo,
agindo em nome dessa pessoa ou coisa.

6.3  Princípio da inderrogabilidade singular dos regulamentos

Pelo princípio da inderrogabilidade singular dos regulamentos, os


atos administrativos unilaterais abstratos são dotados de superioridade
frente aos atos administrativos unilaterais concretos (atos administrativos
propriamente ditos), de tal forma que a observância daqueles é condição
de validez destes, assim como a força obrigatória do regulamento atua com
inteira independência da posição hierárquica dos órgãos que emanam o
ato administrativo em si e o regulamento.
Com efeito, esse princípio obriga a Administração a aplicar in concreto
o regulamento vigente, mesmo que ele seja inválido por afrontar uma fonte
normativa superior – seja ela a Constituição, a lei ou outro regulamento.
Uma autoridade deve cumprir um regulamento independentemente de
quem o ditou, seja este hierarquicamente inferior ou não. As exceções a
tal princípio são raras, relacionando-se apenas com o cometimento de
crimes, a salvaguarda de direitos fundamentais, a inexistência jurídica do
regulamento aplicado ou, quando muito, a circunstância do regulamento
enfermar de uma nulidade assaz agravada.
Além disso, por esse princípio, a autoridade que dita o regulamento – e
que, portanto, poderia igualmente derrogá-lo – não pode, mediante um
ato singular, excepcionar para um caso concreto a aplicação do regula-
mento, a menos que este naturalmente autorize a exceção ou dispensa
(OTERO, 2007, p. 382). Tal impossibilidade de exceção existe em apli-
cação ao princípio da igualdade, pois aplicar um regulamento a todos
os casos possíveis menos a um ou dois pode redundar em situações de
desigualdade. Nesse sentido, Amaral (2009, p. 197, grifos nossos) ensina:

168 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 151-180 jul./set. 2021


A Administração pode modificar, suspender ou revogar um regulamento
anterior por via geral e abstracta.
O que à Administração não é permitido fazer, no que toca a regulamentos
externos, é derrogá-los sem mais em casos isolados, mantendo-os em vigor
para todos os restantes casos. Os regulamentos externos obrigam não só os
particulares como a própria Administração que os elaborou. Chama-se
isto o princípio da inderrogabilidade singular dos regulamentos, expres-
são do princípio geral legem patere quam ipse fecisti. Por força dele, o
regulamento que derroga outro para um caso concreto e individual não é
um regulamento; é um acto administrativo e um acto administrativo ilegal
por violação de regulamento.
A que se deve esta proibição, que parece contrariar o princípio de que
quem pode o mais pode o menos?
Com efeito, parece contraditório permitir a derrogação, para todos os
casos possíveis, de um regulamento de caráter geral e, inversamente,
impedir a sua derrogação para um caso só. Ou, parafraseando Afonso
Queiró, como se pode entender que dois actos da Administração, um
geral e outro particular, praticados pela mesma autoridade e com a mesma
forma, tenham um valor jurídico diferente?
Existem várias respostas possíveis para esta questão.
A que nos parece mais convincente é a que radica a explicação da regra da
inderrogabilidade singular dos regulamentos no princípio da legalidade
da Administração. Ou seja: a Administração está, efectivamente, subme-
tida a todo o ordenamento jurídico e, portanto, também às regras que ela
própria elabora. Logo, os regulamentos não teriam sentido ou função se a
Administração, por qualquer dos seus órgãos, a começar pelo que os editou,
os pudesse sucessivamente deixar de observar.

Dessa forma, no caso em questão, como o Decreto no 9.190/2017 não


estabelece exceção à regra de composição do Conselho de Administração
em relação aos membros natos representantes do Poder Público, não po-
deria existir exceção, a menos que o Decreto fosse modificado para tal fim.

6.4  Análise da norma jurídica relativa aos membros natos


representantes do Poder Público

Superada a questão da juridicidade do Decreto no 9.190/2017, pode-


-se discutir sobre outras possíveis interpretações quanto aos enunciados
normativos relacionados aos membros natos representantes do Poder
Público no Conselho de Administração das organizações sociais.
Ao voltar a atenção apenas para o objeto da presente argumentação –
mais especificamente aos enunciados do art. 3o, I, a, da Lei no 9.637/1998
e do art. 5o, III, do Decreto no 9.190/2017 –, encontra-se a seguinte nor-
ma jurídica: a (a1 v a2 v a3) P b, em que: a seria a previsão da norma,
sendo esta = “quando o estatuto de entidade privada sem fins lucrativos

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 151-180 jul./set. 2021 169


prever como membros natos do Conselho de qual se tratará mais adiante. É possível interpretar
Administração pessoas diretamente responsáveis isso como disjunção porque o chefe do Executivo,
por determinadas atividades no percentual de se realmente desejasse que apenas o supervisor
20% a 40%”, e sendo tais pessoas de três tipos: e o interveniente fossem os representantes do
a1 = “diretamente responsáveis pela supervisão Poder Público no Conselho de Administração,
da atividade”; a2 = “diretamente responsáveis pelo teria apenas utilizado tal expressão, como usou
financiamento da atividade”; a3 = “diretamente “supervisor”, “financiador” e “controlador”; as-
responsáveis pelo controle da atividade”; v = dis- sim, pode-se considerá-los órgãos distintos.
junção, ou seja, “ou”; P seria o operador deôntico Esses enunciados normativos denotam uma
de permissão, sendo este = “poderá”, haja vista o norma jurídica de conduta permissiva. Como a
art. 2o, II, da Lei no 9.637/1998; e, por fim, b seria permissão é o modo deôntico que, em primeira
a estatuição da norma, sendo esta = “qualificar linha, confere discricionariedade – pois o seu
a entidade como organizações sociais caso os executor sempre terá, mesmo se apenas com um
demais requisitos estejam preenchidos”. efeito (como é o caso), a possibilidade de optar
Essa norma jurídica pode ser lida sem fór- ou não pela realização dele –, pode-se dizer que,
mula: 20% a 40% de membros natos represen- ao verificar a existência de membros natos re-
tantes do Conselho de Administração devem presentantes daqueles diretamente responsáveis
ser diretamente responsáveis pela supervisão, pela supervisão, financiamento e controle da
financiamento ou controle da atividade, con- atividade, definidos pelo estatuto da entidade,
forme definidos pelo estatuto da entidade, a fim o ministro ou o titular de órgão supervisor ou
de que a pessoa jurídica de direito privado sem regulador da área de atividade correspondente
fins lucrativos tenha um dos requisitos preen- ao seu objeto social e o ministro da pasta da
chidos para que ela possa vir a ser qualificada Administração Federal e Reforma do Estado
como organização social se houver conveniência terão permissão de qualificar a entidade sem fins
e oportunidade de sua qualificação como tal. Ou lucrativos como organização social, tendo eles
seja, para que a qualificação jurídica possa ser a opção de realizar ou não (discricionariedade
conferida à pessoa jurídica de direito privado sem de atuação).
fins lucrativos, deve seu estatuto, entre outros Na análise dos enunciados normativos apre-
requisitos, prever na composição do Conselho de sentados, em vista da existência de uma previsão
Administração um percentual de 20% a 40% de desdobrável em três ações disjuntivas, pode-se
membros natos representantes dos diretamente afirmar que, por serem consideradas conceitos
responsáveis pela supervisão, financiamento ou jurídicos indeterminados, essas ações são des-
controle da atividade, definidos pelo estatuto dobráveis em milhares de outras previsões – isto
da entidade. é, supervisão, financiamento e controle são con-
Perceba-se que o enunciado normativo usa siderados conceitos jurídicos indeterminados.
uma conjunção, no caso e, mas na interpretação São tratados como tais por serem vagos, pois se
anteriormente descrita, é possível afirmar que, caracterizam pela imprecisão: essas palavras não
por mais que o enunciado diga e, na verdade o delimitam o âmbito da extensão ao qual se repor-
chefe do Executivo quis dizer ou. Nada impede tam, gerando dúvida quanto à sua abrangência.
que se interprete que a norma realmente é um e, No caso, por estarem insertos nas previsões –
tendo, na verdade, uma conjunção. Neste caso, ou seja, por estabelecerem as condicionantes da
estar-se-ia diante de outra norma jurídica – da produção de efeitos –, esses conceitos jurídicos

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indeterminados instituem um universo potencialmente ilimitado, não
restringindo determinadas antecedências de um efeito por um rol restrito
de condições nelas descritas. Não há uma delimitação de toda e qualquer
ocorrência para um universo mais restrito. Aqui não haveria uma discri-
cionariedade proveniente da previsão, mas da incerteza de linguagem,
pois, não havendo a certeza da ocorrência da previsão, haveria incerteza
sobre aplicar ou não o efeito da estatuição, caindo esta na categoria da
margem de livre apreciação dos conceitos jurídicos indeterminados. Por
isso, quando o legislador – ou o Executivo, no seu poder regulamentar ou
normativo – utiliza termos vagos, está flexibilizando a tomada de decisão,
pois, assim como na discricionariedade, existe a impossibilidade de prever
toda e qualquer situação possível de ocorrência.10
Conceitos jurídicos indeterminados são, pois, os que não se podem
traçar precisamente, que não deixam ao seu intérprete a compreensão
exata de que significados têm o objeto e a realidade abarcados – ou seja,
deixam dúvidas relativas a duas ou mais compreensões de seu significado,
quando visualizados no caso concreto (SADDY, 2014).11 De outro modo: a
indeterminação jurídica decorre da impossibilidade de, no caso concreto,
identificar-se o único significado ou parte dele por meio da interpretação.
Por conseguinte, supervisão, financiamento e controle contêm margens
distintas de livre apreciação.
Com isso, deve-se analisar a estrutura dos conceitos jurídicos inde-
terminados. García de Enterría e Fernández (2001, p. 460) aduzem que,
na estrutura de todo conceito jurídico indeterminado,

es identificable un núcleo fijo (Begriffken) o “zona de certeza”, configurado


por datos previos y seguros, una zona intermedia o de incertidumbre o
“halo del concepto” (Begriffhof), más o menos precisa, y, finalmente,

10
 Na lição de Justen Filho (1997, p. 124), “[o] conceito indeterminado se configura
como ausência de regulação jurídica totalmente exaustiva em nível legislativo, mas com a
recusa do ordenamento jurídico de atribuir a solução dos casos práticos a critérios subjetivos
do aplicador do Direito. Reconhece-se a impossibilidade de formular, aprioristicamente, a
solução completa para certas situações, mas se vincula o aplicador à observância de certos
conceitos cuja determinação dependerá da avaliação concreta das circunstâncias. O aplicador
do Direito não é livre para adotar a decisão que melhor lhe pareça e deverá deduzi-la da
conjugação entre os princípios jurídicos, a satisfação do interesse público e da concretização
do conteúdo dos conceitos indeterminados”. Por sua vez, Moresco (1996, p. 79) explica:
“a) Conceito jurídico de conteúdo indeterminado é todo aquele cuja expressão de valor
possui textura variável e abertura a que o Direito confere significado próprio. Por isso,
afirma-se que a extensão e o conteúdo são em larga medida incertos; b) Fundamenta-se na
separação de fundações do Estado. O legislador não dispõe de competência (poder) para
emitir ordens concretas (atos administrativos), mas apenas ordens gerais e abstratas. Se o
fizer – expedir atos administrativos – estará invadindo – e usurpando – a competência da
Administração. Outra razão, de ordem prática, fundamenta a utilização desses conceitos:
a impossibilidade real, fática de prever-se toda e qualquer situação possível de ocorrência”.
11
 Para Engisch (2001), conceito jurídico indeterminado é um conceito de baixa den-
sidade normativa; é aquele instituto do Direito que exige, para sua completa eficácia, um
juízo de valor realizado pela aplicação do Direito ao caso concreto.

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una “zona de certeza negativa”, también segura en cuanto a la exclusión
del concepto.12

Logo, na norma jurídica mencionada pode-se intuir que em


a (a1 v a2 v a3) P b haverá previsões que compreendem casos de vaguezas
e que podem assim ser representados: a1 (c1 a c n Λ v Λ d1 a d n) ^ a2 (e1 a e n
Λ v Λ f 1 a f n) ^ a3 (g1 a g n Λ v Λ h1 a hn) P b, em que c1 a cn ou e1 a e n ou g1 a g n
se referem à zona de certeza; e v Λ d1 a d n ou f 1 a f n ou h1 a hn, à zona de
incerteza, ou seja, à possibilidade de os casos d1 a d n ou f 1 a f n ou h1 a hn
também serem inclusos no termo.
No que diz respeito ao supervisor, conforme o art. 2o, II, da Lei
no 9.637/1998, um dos responsáveis por qualificar determinada entidade
sem fins lucrativos como organização social é o ministro ou titular de
órgão supervisor ou regulador da área de atividade correspondente ao seu
objeto social. Além disso, o art. 6o da Lei no 9.637/1998 dita que o contrato
de gestão será elaborado de comum acordo entre a entidade ou órgão
supervisor e a organização social (BRASIL, [2010]). Supervisor, portanto,
é quem estabelece o vínculo jurídico entre as organizações sociais e o
Poder Público – é o órgão que se responsabiliza pela direção, inspeção e
orientação da organização social.
Ao órgão interveniente atribuem-se obrigações e responsabilidades
inseridas no contrato de gestão; entre tantas, podem-se citar: participar na
cogestão da organização social, inclusive quanto à execução da política pú-
blica fomentada; prover a organização social de meios e recursos financeiros
necessários à execução do objeto; fomentar as atividades da organização
social; negociar, em conjunto com o órgão supervisor, o contrato de gestão e
seus termos aditivos; indicar membros com notória capacidade e adequada
qualificação para compor a Comissão de Acompanhamento e Avaliação.
Essas atribuições, responsabilidades e obrigações só serão possíveis se tais
órgãos tiverem representantes no Conselho de Administração. Assim, ter-
-se-ia de incluir na previsão a1 = diretamente responsáveis pela supervisão
da atividade tanto o órgão supervisor como o órgão interveniente.
No que diz respeito ao financiador, o tema pode complicar-se porque é
possível fazer uma interpretação restrita ou ampla do seu conceito. Pode-
se inferir que o órgão supervisor e o interveniente se confundem com o
financiador, pois fazem a transferência de recursos financeiros à organi-
zação social como principal instrumento de fomento; ou, de forma ampla,
pode-se entender que financiadores são quaisquer pessoas que forneçam
dinheiro, fundos, capitais que custeiem despesas. Ora, a qualificação de
entidade privada sem fins lucrativos como organização social ocorre antes
de sua seleção para negociação e celebração do contrato de gestão; significa

12
 A concepção originária dessa ideia é de Engisch (2001, p. 209).

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dizer que, antes de negociar e assinar o contrato de Tal fato impossibilita qualquer organiza-
gestão com o órgão supervisor – e, caso haja, com ção social de exercer plenamente sua liberdade
o interveniente –, a entidade sem fins lucrativos associativa, incluindo qualquer ente ou órgão
deve qualificar-se e, para isso, precisa incluir em que tenha como atividade-fim o financiamento
seu estatuto os membros natos representantes do de ações atreladas ao objeto social da entidade
Poder Público. Desse modo, a entidade sem fins privada sem fins lucrativos. Essa interpretação
lucrativos que queira se tornar uma organização fica evidente quando se volta à previsão a2 = di-
social (ou mesmo alguma que já o seja) não tem retamente responsáveis pelo financiamento da
como saber quem será seu financiador; logo, não atividade. A expressão diretamente responsável
há como inserir o órgão financiador entre os mina a possibilidade de se manterem tais repre-
membros natos representantes do Poder Público, sentantes em seu Conselho de Administração.
pois esses se vão alternando ao longo dos anos. Como indicado, essa análise transforma o órgão
Ademais, pode-se afirmar que financiador supervisor (e até mesmo o interveniente) em
não é quem contrata, mas quem fomenta. Por sinônimo de órgão financiador.
conseguinte, tudo indica que, para a qualificação Entretanto, isso não significa que no momen-
de entidade privada sem fins lucrativos, o órgão to da sua qualificação – caso a entidade privada
supervisor, o interveniente e o financiador na tenha um ente ou órgão público diretamente
prática se confundem – isto é, para lograr qua- responsável pelo seu financiamento por meio de
lificação, a entidade precisará incluir apenas o convênio, contrato ou quaisquer outros ajustes
órgão que vier a ser o seu supervisor (e eventual firmados – ela poderá inseri-lo como membro
interveniente), sob risco de, em circunstância nato representante do Poder Público. Nesse caso,
concreta, inserir algum ente ou órgão público e entende-se que a entidade preencheria o requisito
não ser qualificada, ou até mesmo desqualificada para qualificar-se; mas, no momento de eventual
ou cassada.13 adição, alteração ou revisão (parcial ou total) do
contrato de gestão – que se dá por meio de termo
13
 A relação formada com base no ato de qualificação, aditivo ou, ao término de seu prazo de vigência,
destinada apenas à validade da celebração do contrato de em eventual renovação ou prorrogação –, pre-
gestão, cria uma relação jurídica especial que se completa
com a celebração do contrato de gestão. Por mais que seja cisará rever seu estatuto social ou, em qualquer
baseado em critérios discricionários, o vínculo formado com
o Poder Público não pode ser desfeito por juízos subjetivos
momento, que aquele que a qualificou faça o
do administrador, ainda que positivados em atos adminis- controle dos requisitos de qualificação. Seria
trativos abstratos posteriores ao ato de qualificação. Pode o
órgão supervisor retirar a qualificação de organização social; exigir demais da organização social mudar, de
nesse caso, ocorrerá uma cassação da qualificação, que deve tempo em tempo, sem provocação, seu estatuto
ser vista com máximo cuidado, pois o sistema exige que tal
ato de desqualificação seja precedido de regular processo social para inserir outros financiadores do Poder
administrativo composto por exercício do contraditório Público que sejam diretamente responsáveis por
e da ampla defesa, como se percebe na própria redação
do art. 16, § 1o, da Lei no 9.637/1998 (BRASIL, [2010]), tal atividade, pelo simples motivo de esses finan-
mencionado pelo próprio STF ao julgar a ADI 1.923/DF
(BRASIL, 2015a). Não é demais recordar que a desqualifi-
ciadores mudarem a todo momento.
cação só deve ocorrer por descumprimento das disposições Por fim, no que diz respeito ao controlador,
contidas no contrato de gestão, segundo a Lei no 9.637/1998;
mas o art. 21 do Decreto no 9.190/2017 (BRASIL, [2018]) pode-se entender que ele se confunde com aquele
estabelece outras hipóteses: (i) “por decisão fundamenta- que monitora e avalia. A Lei no 9.637/1998 impõe
da do órgão supervisor ou da entidade supervisora”; (ii)
“pelo encerramento do contrato de gestão”; (iii) “quando
constatado o descumprimento das disposições contidas no
contrato de gestão, na Lei no 9.637, de 1998”, e no Decreto justificada, às recomendações da comissão de avaliação ou
no 9.190/2017; e (iv) “pelo não atendimento, de forma in- do órgão supervisor ou da entidade supervisora”.

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que o contrato de gestão seja fiscalizado pelo a organização social é uma pessoa jurídica de
órgão ou pela entidade supervisora da área de direito privado sem fins lucrativos não integrante
atuação correspondente à atividade fomentada da Administração Pública direta e indireta que
(art. 8o) (BRASIL, [2010]). Agora, o âmbito cons- coopera com o Poder Público desenvolvendo
titucionalmente definido para o controle a ser atividades de relevância, essenciais à coletivi-
exercido pelo TCU (arts. 70, 71 e 74 da CRFB) dade e sujeitas ao incentivo, ao monitoramento,
e pelo Ministério Público (arts. 127 e seguintes à fiscalização e à avaliação regulares. Pode-se
da CRFB) (BRASIL, [2021a]) não é de qualquer interpretar a previsão a3 = diretamente respon-
forma restringido por esse art. 8o, “porquanto sáveis pelo controle da atividade como o órgão
dirigido à estruturação interna da organização supervisor/interveniente e, por conseguinte,
social, e pelo art. 10 do mesmo diploma, na medi- ter-se-ia a interpretação de que o órgão finan-
da em que trata apenas do dever de representação ciador e controlador coincidiriam com o órgão
dos responsáveis pela fiscalização, sem mitigar supervisor e o(s) órgão(s) intervencionista(s),
a atuação de ofício dos órgãos constitucionais” caso exista(m). Sem embargo, apesar de pouco
(BRASIL, 2015a, p. 7). provável, também poder-se-ia interpretar que
Significa que existe a figura do controle inter- os órgãos controladores são o TCU, o MPF, a
no exercido pelo órgão supervisor do contrato de CGU etc.
gestão. E esse controle objetiva principalmente Com efeito, percebe-se que a fórmula da
verificar se os atos oriundos do contrato de gestão norma jurídica apresentada poderia ser outra:
estão sendo executados em consonância com a estar-se-ia diante de uma norma jurídica a (a1 ^
legislação, cabendo-lhe a avaliação da correta a2 ^ a3) P b, em que a revisão, o operador deôntico
aplicação e uso dos diferentes tipos de fomento e a estatuição seriam os mesmos, com o diferen-
existentes no contrato de gestão: transferência de cial revelado pelo símbolo ^, que faz o papel da
recursos orçamentários e financeiros, cessão es- conjunção e. Neste caso, as três previsões (a1 ^
pecial de servidores, e utilização e administração a2 ^ a3) são tratadas como sinônimas; ou seja,
de patrimônio, bens móveis e imóveis – e única os diretamente responsáveis pela supervisão,
e exclusivamente destes. financiamento e controle da atividade são, na
Além desse controle interno, há o contro- verdade, apenas o órgão supervisor e, se houver,
le externo exercido pelo TCU, pelo Ministério o(s) intervencionista(s).
Público Federal (MPF), pela Controladoria-Geral Essa interpretação aparenta ser a mais acer-
da União (CGU), entre outros. Esses órgãos tada e a que parece coadunar-se com a intenção
limitam-se a controlar a correta aplicação dos expressa no art. 15, § 2o, do Decreto, que admite
recursos orçamentários e financeiros, a cessão que o financiamento das atividades da organi-
especial de servidores, e a utilização e adminis- zação social seja compartilhado pelas entida-
tração de patrimônio, bens móveis e imóveis. Eles des ou pelos órgãos representados no Conselho
monitoram, controlam e avaliam os contratos de de Administração da entidade privada como
gestão, e não a entidade. Outros órgãos avaliam membros natos; e que o órgão ou a entidade
a entidade em si, como o Ministério Público es- cofinanciadora deverá figurar como interve-
tadual, a Procuradoria-Geral da República, o niente no contrato de gestão e como partícipe
Congresso Nacional etc. da comissão de avaliação. Essa interpretação,
Os controles interno e externo devem analisar inclusive, harmoniza-se com o art. 26 do Decreto
apenas o contrato de gestão, além de verificar que no 9.190/2017 (BRASIL, [2018]): ele determina

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que serão designados pelo órgão supervisor os ao seu objeto social são os órgãos qualificado-
representantes dos órgãos e das entidades públicas res conforme estabelecido no art. 2o, II, da Lei
nos Conselhos de Administração de organiza- no 9.637/1998. Aquele que qualifica pode ser o
ções sociais. Ao que tudo indica, até mesmo os supervisor, mas pode não o ser – e pode não ser
membros do interveniente terão de ser nomea- o interveniente. O qualificador, relacionado à
dos por ele, o que demonstra existir uma norma primeira etapa, dita como será a qualificação,
com previsões conjuntivas na qual o chefe do o procedimento isolado e com um fim em si;
Executivo considerou supervisor, financiador e contudo, a entidade supervisora, financiadora
controlador como o mesmo órgão. Ressalte-se que e controladora sempre será – de acordo com o
os responsáveis pela supervisão, financiamento entendimento aqui defendido – a entidade que
e controle da atividade podem ser interpretados fomenta e que, por conseguinte, confunde-se
como distintos ou como os mesmos entes e órgãos com o financiador exclusivamente em relação
públicos, mas deve-se ter em consideração que ao contrato de gestão.
eles não se confundem necessariamente com o Desse modo, uma coisa é o órgão qualifica-
órgão qualificador. dor – que tem o dever de fiscalizar a entidade –,
De acordo com o STF (BRASIL, 2015a), na outra são os órgãos financiadores do contrato
sistemática da Lei, em etapa inicial o procedi- de gestão que se limitam a fiscalizar tais ins-
mento de qualificação de entidades consiste no trumentos. Apesar de poderem coincidir, não
deferimento do título jurídico de organização se podem confundir órgãos qualificadores com
social para que Poder Público e particular co- órgãos supervisores/financiadores/controladores.
laborem na realização de um interesse comum.
Para o STF, esse procedimento deve ser condu-
zido de forma pública, objetiva e impessoal, com 7 Conclusões
observância dos princípios do caput do art. 37 da
CRFB e de acordo com parâmetros fixados em Há três pontos a serem sintetizados nestas
abstrato em conformidade com o art. 20 da Lei considerações finais: (i) a permanência de ques-
no 9.637/1998. Por sua vez, a etapa seguinte – a tionamentos quanto à constitucionalidade da
seleção da organização social que negociará e previsão de representantes do Poder Público no
celebrará o contrato de gestão – também deve ser Conselho de Administração na Lei no 9.637/1998;
conduzida de forma pública, objetiva e impessoal, (ii) a juridicidade do Decreto no 9.190/2017, que
com observância dos princípios do caput do mes- estabelece que apenas poderiam fazer parte do
mo art. 37. Como se percebe, as três primeiras Conselho aqueles diretamente responsáveis pela
etapas do macroprocesso de gestão do modelo de supervisão, financiamento e controle da atividade;
organização social são: (i) qualificação de entida- e (iii) a superação dessas duas premissas, com
de privada sem fins lucrativos como organização as possíveis interpretações para o disposto nos
social; (ii) seleção, por meio de chamamento arts. 5o, III, e 15, § 2o, desse Decreto.
público, de organização social para negociar e Quanto ao primeiro ponto, apesar de o STF na
celebrar contrato de gestão; e (iii) negociação ADI 1.923/DF ter declarado constitucionais essas
e celebração propriamente ditas – renovações e previsões, entende-se que ainda é possível – em
alterações – do contrato de gestão. sede de controle difuso/concreto e até mesmo
O ministro ou titular de órgão supervisor ou concentrado/abstrato – questionar a constitu-
regulador da área de atividade correspondente cionalidade da Lei no 9.637/1998, mesmo com

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baixo índice de sucesso, em virtude de ela reti- capacidade e adequada qualificação para compor
rar atribuições privativas da Assembleia Geral, a Comissão de Acompanhamento e Avaliação; e
fixadas no CC, transferindo-as ao Conselho de (iv) os recursos públicos transferidos às organiza-
Administração, ainda que se interprete que im- ções sociais serem mantidos como públicos (até
plicitamente o STF julgou constitucional toda a para fins de impenhorabilidade, por exemplo),
lógica relativa ao Conselho de Administração. entre outras características. Quanto ao segundo
Por sua vez, no que diz respeito à juridicidade ponto, compreende-se que o índice de sucesso em
do Decreto no 9.190/2017, entende-se que ele eventual demanda judicial é indeterminado: não
limitou/restringiu ainda mais um direito fun- se pode mensurar como o Judiciário se posicio-
damental que já fora limitado/restringido pela nará, além de haver a possibilidade de se adotar
Lei. Essa manobra viola a teoria dos limites dos qualquer uma das duas posições.
limites, que em seu aspecto formal estabelece a Por fim, considerados tais diplomas consti-
necessidade de reserva de lei; logo, o Decreto tucionais/legais, restará ao aplicador do Direito
constitui uma inovação no ordenamento jurídico, interpretar desse modo os enunciados descritos,
mais de vinte anos após a edição da norma pelo podendo identificar que aqueles diretamente
Poder Legislativo, em desencontro com sua base responsáveis pela supervisão, financiamento e
legal por ter exorbitado o âmbito da “fiel execução” controle da atividade são, na verdade, apenas o
da Lei. Dessa maneira, exigir nova configuração órgão supervisor e, se houver, o(s) intervencio-
do Conselho de Administração implica alterar a nista(s). Essa interpretação coaduna-se com a
configuração do principal órgão deliberativo da intenção do art. 15, § 2o, do Decreto, que admite
entidade, mudando a composição que já se tornou que o financiamento das atividades da organiza-
experiente no desempenho da atividade e, por ção social seja compartilhado e que determina,
conseguinte, atentatória à liberdade constitucional conforme o art. 26, que os representantes dos
e ao direito fundamental dos particulares exerci- órgãos e das entidades públicas nos Conselhos
dos quando da edição de seu estatuto. de Administração de organizações sociais serão
Apesar de ser esse o entendimento jurídico designados pelo órgão supervisor.
aqui defendido, compreende-se que outra inter- No entanto, apesar de pouco factível e es-
pretação pode existir, pois cabe ao Poder Público drúxula, não sendo ela a interpretação aqui de-
esclarecer quais serão seus representantes públi- fendida, poder-se-iam interpretar os enunciados
cos, minuciando o texto legal. Por conseguinte, no sentido disjuntivo e, por conseguinte, super-
o Decreto no 9.190/2017 não constitui uma ino- visor, financiador e controlador seriam órgãos
vação do ordenamento jurídico; pelo contrário, distintos; afinal, como não se podem presumir
ele apenas dá “fiel execução” à Lei; afinal, existe palavras inúteis nos textos normativos, é possível
uma cogestão/coparticipação e, consequentemen- concluir que o uso dos termos tem o propósito
te, uma corresponsabilização evidenciada não de distinguir três conceitos jurídicos indetermi-
apenas porque os membros natos no Conselho nados. Neste último caso, considera-se elevado o
de Administração são, em parte, representantes índice de insucesso de eventual questionamento
do Poder Público, mas também pelo fato de (i) o judicial em face da União contestando apenas a
ente ou órgão público ser o provedor de meios interpretação de que os diretamente responsá-
para a organização social; (ii) ser ele o negociador veis pela supervisão, financiamento e controle
do contrato de gestão; (iii) o Poder Público ter a da atividade são somente o órgão supervisor e,
possibilidade de indicar membros com notória se houver, o(s) intervencionista(s).

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Sobre o autor
André Saddy é doutor em Problemas actuales de Derecho Administrativo pela Universidad
Complutense de Madrid, Madri, Espanha; pós-doutor pela Universidade de Oxford, Oxford,
Reino Unido; mestre em Administração Pública pela Universidade de Lisboa, Lisboa,
Portugal; professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, Rio de
Janeiro, RJ, Brasil; professor do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil; consultor e parecerista.
E-mail: [email protected]

Como citar este artigo


(ABNT)
SADDY, André. Composição do Conselho de Administração de organizações sociais quanto
aos membros natos representantes do Poder Público. Revista de Informação Legislativa:
RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 231, p. 151‑180, jul./set. 2021. Disponível em: https://www12.
senado.leg.br/ril/edicoes/58/231/ril_v58_n231_p151

(APA)
Saddy, A. (2021). Composição do Conselho de Administração de organizações sociais quanto
aos membros natos representantes do Poder Público. Revista de Informação Legislativa:
RIL, 58(231), 151‑180. Recuperado de https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/231/
ril_v58_n231_p151

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180 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 151-180 jul./set. 2021


Última palavra e diálogos
constitucionais
Caminhos e descaminhos na jurisdição
constitucional brasileira

GUILHERME SCODELER DE SOUZA BARREIRO


ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ

Resumo:  O objetivo geral do presente artigo é investigar os caminhos


e descaminhos da jurisdição constitucional brasileira e refletir sobre as
possibilidades e os entraves para uma jurisdição mais dialogal. Para isso,
analisam-se as recentes reformas no Poder Judiciário e busca-se inserir
no debate, entre a “última palavra” e os diálogos constitucionais, o papel
das reclamações constitucionais e a intensificação do fenômeno da mo-
nocratização no Supremo Tribunal Federal. Por um lado, com base nos
dados coletados em pesquisa bibliográfica e documental, percebeu-se
um aumento na incidência das reclamações constitucionais, o que pode
indicar um caminho para a implementação dos diálogos constitucionais.
Por outro, diante da crescente utilização de decisões monocráticas pelos
ministros, constata-se a dificuldade estrutural de inserção da jurisdição
constitucional brasileira em um ambiente mais dialógico.

Palavras-chave:  Jurisdição constitucional. Diálogos. Ativismo.


Monocratização.

Last word and constitutional dialogues: ups and downs in


the Brazilian constitutional jurisdiction

Abstract:  This article has as its theme the Brazilian constitutional


jurisdiction. The general purpose of the research is to investigate the
ups and downs of the Brazilian constitutional jurisdiction, reflecting the
possibilities and obstacles to a more dialogical jurisdiction. To this end,
through bibliographic and documentary research, the intention is to
insert the debate between the last word and the constitutional dialogues,
Recebido em 23/11/20 analyzing the recent reforms in the Judiciary, the role of constitutional
Aprovado em 17/2/21 complaints in this scenario and the intensification of the phenomenon

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 181-200 jul./set. 2021 181


of individual judicial review in the Supremo Tribunal Federal. On the
one hand, based on the data collected, there was an increase in the
incidence of constitutional complaints, which may indicate a path for
the implementation of constitutional dialogues. On the other hand, in the
face of the growing use of monocratic decisions by ministers, the political
and structural difficulty in inserting Brazilian constitutional jurisdiction
into a more dialogical medium is perceived.

Keywords:  Constitutional jurisdiction. Dialogues. Activism. Individual


judicial review.

“E assim chegar e partir


São só dois lados da mesma viagem
O trem que chega
É o mesmo trem da partida
A hora do encontro é também despedida”
(Encontros e despedidas. Fernando Brant e Milton Nascimento)

1 Introdução

A jurisdição constitucional é uma temática que tem despertado


interesse cada vez maior da doutrina nacional, principalmente após as
diversas alterações políticas e jurídicas promovidas pela Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB) no controle de cons-
titucionalidade e na atuação do Poder Judiciário. Aliado a isso, mais
recentemente, em 2004, o Poder Judiciário brasileiro passou por uma
grande reforma cujos resultados e consequências ainda carecem de
maiores estudos. Com as alterações, o papel do Judiciário expandiu-se, e
o Supremo Tribunal Federal (STF) ganhou mais relevância na sociedade
brasileira, o que tem motivado intensos debates.
O presente trabalho pretende inserir-se nesse debate, visando com-
preender o papel específico das reclamações constitucionais na atuação
do Supremo, notadamente após a reforma do Judiciário implementada
pela Emenda Constitucional (EC) no 45/2004 (BRASIL, [2009a]), que,
com o art. 103-A, inseriu entre as competências do STF a possibilidade
de editar súmulas vinculantes, cujos enunciados acerca de matéria cons-
titucional vinculariam todo o Poder Judiciário e toda a Administração
Pública dos três níveis federativos.

182 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 181-200 jul./set. 2021


Nesse mesmo dispositivo constitucional, estabeleceu-se que caberia
também ao Supremo controlar, por meio de reclamação, eventuais des-
cumprimentos dos enunciados sumulares vinculantes, seja por instâncias
inferiores do Judiciário, seja por quaisquer órgãos da Administração
Pública brasileira. Tal instrumento poderia levar à conclusão de que
mais uma vez a última palavra1 teria sido conferida ao STF.
No entanto, considerando a teoria do diálogo constitucional, é possí-
vel ver as reclamações constitucionais como uma reabertura do debate,
como ponto de partida para a instauração de uma jurisdição constitu-
cional mais democrática. Contudo, a monocratização da Suprema Corte
brasileira pode tornar distante esse diálogo.
Para analisar tanto as inevitáveis despedidas quanto os possíveis
encontros ocasionados pela jurisdição constitucional brasileira, inves-
tigaremos, ainda que brevemente, o fenômeno da ascensão do Poder
Judiciário, notadamente quanto ao papel da jurisdição constitucional, o
que alguns autores identificam como judicialização da política; outros,
como ativismo judicial.
Tomando esse cenário como ponto de partida, será apresentado
o debate em torno da supremacia judicial, com a posição dos críticos
daquilo que se denomina a última palavra. De imediato, as teorias dos
diálogos constitucionais – também denominados diálogos interinstitu-
cionais – serão apontadas como alternativa ao que consideramos um
problema da jurisdição constitucional.
Realizado esse primeiro aporte teórico, a reforma do Judiciário será
inserida no debate, em especial a criação das súmulas vinculantes e o
novo cabimento da reclamação contra a violação dessas súmulas. Em
seguida, serão apresentados os dados colhidos no banco do STF rela-
tivos ao grande aumento – que já esperávamos – na sua propositura e,
consequentemente, sua importância na agenda do STF. Esse fato, um
aparente desencontro em nosso caminho, será visto como promessa
dialógica, uma vez que a reclamação constitucional possibilita a reaber-
tura do debate em torno da interpretação constitucional sedimentada
pela súmula vinculante.

2  Sobre a ascensão da jurisdição constitucional

Atualmente, assiste-se à expansão do Poder Judiciário tanto nas


democracias ocidentais da Europa continental (Alemanha, Itália,

1
 Compreensão que parte da legitimidade conferida ao Poder Judiciário, sobretudo
a seu órgão de cúpula, para monopolizar a palavra final acerca da interpretação do texto
constitucional.

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 181-200 jul./set. 2021 183


França) quanto em países de tradição jurí- (BRANDÃO, 2013). Entre outros fatores, isso
dica da common law (Reino Unido, Estados se deve ao constitucionalismo da efetividade
Unidos da América, Canadá, Austrália) (TATE; social, segundo o qual o texto constitucional
VALLINDER, 1995). Essa expansão, hoje um traria consigo um conjunto de objetivos a serem
fenômeno mundial, ocorre também em recentes urgentemente concretizados, e as normas cons-
arranjos democráticos que se espalharam pelo titucionais deveriam ser diretamente aplicadas
globo da metade do século XX até os dias atuais, em demandas judiciais, sem a necessidade de
em países latino-americanos, africanos e do interveniência de normas infraconstitucionais.
Leste europeu (BARBOZA; KOZICKI, 2012). A par disso, o constitucionalismo da efetivida-
Sobre o estudo desse fenômeno no Brasil, de social consolida um rol de procedimentos
vale mencionar o trabalho teórico-empírico de- judiciais que contribuem para instrumentalizar
senvolvido por Luiz Werneck Vianna e seus co- a atuação do Judiciário na construção das po-
laboradores com enfoque no controle de cons- líticas públicas (CRUZ; GUIMARÃES, 2016).
titucionalidade exercido pelo STF e no papel É importante acrescentar que o paradigma
dos juizados especiais (VIANNA; CARVALHO; do Estado Democrático de Direito também con-
MELO; BURGOS, 1999). Inspirado nas lições tribui para esse papel mais ativo do Judiciário.
de Tate e Vallinder (1995), Brandão (2013, É nesse sentido que se resgata o estudo clássico
p. 616) resume o vínculo entre a expansão da de Menelick de Carvalho Netto acerca da tran-
jurisdição constitucional pelo mundo e o surgi- sição paradigmática do Estado liberal, passando
mento do fenômeno denominado judicialização pelo Estado social, para o que aqui se apresenta
da política: como Estado Democrático de Direito.

O fenômeno da “expansão global do poder Desse modo, no paradigma do Estado


judiciário” tem se traduzido não apenas na Democrático de Direito, é de se requerer do
globalização da jurisdição constitucional, Judiciário que tome decisões que, ao retraba-
mas, sobretudo, na judicialização da polí- lharem construtivamente os princípios e regras
tica, assim compreendido o processo pelo constitutivos do Direito vigente, satisfaçam,
qual as Cortes e os juízes passam a dominar a um só tempo, a exigência de dar curso e
progressivamente a produção de políticas pú- reforçar a crença tanto na legalidade, enten-
blicas e de normas que antes vinham sendo dida como segurança jurídica, como certeza
decididas (ou, como é amplamente aceito, do Direito, quanto ao sentimento de justiça
que devem ser decididas) por outros departa- realizada, que deflui da adequabilidade da
mentos estatais, especialmente o Legislativo decisão às particularidades do caso concreto
e o Executivo. (CARVALHO NETTO, 1999, p. 482, grifo
nosso).
O Brasil enquadra-se nessa situação,
principalmente quando o STF decide ques- Diante disso, a expansão da jurisdição cons-
tões políticas relevantes, como o processo de titucional, diretamente ligada ao fenômeno da
impeachment (Mandado de Segurança (MS) judicialização da política, tem como elemen-
21.689), questões relativas ao processo demo- tos facilitadores tanto aspectos políticos como
crático, como a infidelidade partidária (MS institucionais, além da questão de expansão
26.602), ou temas moralmente complexos, de direitos. Os aspectos políticos que favore-
como a pesquisa com células-tronco (Ação cem a ascensão da jurisdição constitucional
Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.510) são a democracia, a separação dos Poderes e o

184 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 181-200 jul./set. 2021


federalismo. Reunidos, esses aspectos geram derar que o ambiente criado pela judicialização
fragmentação do poder, dificuldades de coorde- da política oportunizaria a ocorrência do ati-
nação de ação e diversos pontos de veto, o que vismo judicial quando as Cortes aceitam ditar
faz desaguar os conflitos no Poder Judiciário. as soluções para as demandas políticas que
Como condições institucionais destacam-se o exsurgem (CAMPOS, 2012).
próprio catálogo de direitos e a ampliação do Corroboramos a percepção de que o ati-
controle de constitucionalidade, seja no au- vismo e a judicialização são aspectos inter-
mento do rol de legitimados, seja na ampliação -relacionados e centrados na questão da
dos atos impugnáveis pelas ações de controle efetivação de direitos por meio de posturas
de constitucionalidade (BRANDÃO, 2013). expansivas do Judiciário, tal como se verifi-
A essas condições políticas e institucionais cou na Corte norte-americana na era Warren
pode-se acrescentar uma terceira dimensão que (FERNANDES, 2012) ou na Corte sul-africana
contribuiu para a ascensão do Poder Judiciário no pós-Apartheid (CAMPOS, 2012).
e a consequente judicialização da política: o É interessante notar que a atuação da
denominado plano da teoria da argumentação. Suprema Corte brasileira não pode ser vista
Inspirada principalmente nas concepções prin- apenas como comprovação do ativismo judicial,
cipiológicas e no instrumental metodológico de visto que não há de forma clara uma caminhada
Ronald Dworkin e Robert Alexy, a academia linear, e sim pendular, que se manifesta ora
brasileira pavimentou o caminho para o ati- em posturas autocontidas, ora em condutas
vismo judicial (CRUZ; GUIMARÃES, 2016). ativistas (CRUZ; GUIMARÃES, 2016).
Surge então uma outra vertente de análise A perspectiva dual da atuação do STF é
ancorada na perspectiva da postura judicial também apontada por outros autores, com a
denominada ativismo judicial, outro termo de imagem de um Supremo ora se atribuindo uma
difícil conceituação, tal como judicialização. “retórica do guardião entrincheirado”, ora pra-
Para alguns, o cerne do ativismo advém de uma ticando uma posição de “guardião acanhado”
disfunção no exercício da função jurisdicional, (KOZICKI; ARAÚJO, 2015) – guardião en-
que vai além dos limites estabelecidos pelo trincheirado quando afirma sua condição de
ordenamento nas funções administrativa, de guardião último da Constituição, o que o libera
governo e, notadamente, legislativa (RAMOS, do ônus argumentativo; guardião acanhado
2015). Para outros, o ativismo judicial é um quando, no julgamento de casos delicados, re-
conceito multidimensional que compreende toma posturas tipicamente autocontidas, como
um exercício expansivo do Poder Judiciário em no caso Ama Fialho (CRUZ; GUIMARÃES,
detrimento dos demais atores, sendo necessário 2016). Mais que isso, não é possível identificar
considerar os diversificados desenhos institu- na atuação da Suprema Corte2 brasileira uma
cionais e fatores políticos, jurídicos e sociais de ação concertada em torno da consecução de
cada sociedade (CAMPOS, 2012). determinadas pautas políticas ou de políticas
O ativismo pode ser visto também como públicas. O que se vê é uma atuação volunta-
a tendência dos magistrados de realizar a
prestação jurisdicional impondo ao Estado a
2
 Não nos parece acertada a aproximação com a ex-
periência norte-americana proposta por alguns autores
efetivação de políticas públicas determinadas ao periodizar a história jurisdicional do STF em “Cortes”
(FERNANDES, 2012). Em relação ao debate (FERREIRA; FERNANDES, 2013), seja pela ausência de
uma clara coordenação, seja pela falta de dados empíricos
sobre judicialização e ativismo, pode-se consi- mais sustentáveis da ação do STF como Corte.

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 181-200 jul./set. 2021 185


rista, e não um ativismo. Essa postura voluntarista é fortemente criti-
cável e criticada, seja pela falta de legitimidade democrática (SOUSA;
TRAVASSOS, 2017), seja pela própria postura paternalista (MAUS,
2000) e personalista (LIMA, 2018).
Há quem posicione esse voluntarismo como a faceta mais intensa
do ativismo judicial (CARVALHO FILHO; CARVALHO, 2019). Não
comungamos desse entendimento, pois não se verifica qualquer atuação
concertada. Não há projeto, não há programa abraçado pela Corte em
torno de uma política de projeto econômico-social.

O próprio Luiz Werneck Vianna, entusiasta da judicialização, chegou a


chamá-los de “Tenentes de Toga”, fazendo uma referência ao movimento
tenentista de década de 1920:
“Essas Corporações tomaram conta do país (o Ministério Público e o
Judiciário) […] Tem uma metáfora […] a dos tenentes. […] a partir
de certo momento, os personagens começaram a ter comportamentos
bizarros. E que têm essa visão iluminada que os tenentes tiveram, nos
anos 20. Só que os tenentes tinham um programa econômico e social
para o País. E esses tenentes de toga não têm. São portadores apenas de
uma reforma moral. […] Este Judiciário que está aí ignora a existência
de Maquiavel. Ele se comporta apenas com um ímpeto virtuoso, um
ímpeto de missão” (VIANNA, 2016 apud FERNANDES, 2017, p. 88,
grifos nossos).

O que alguns, em tom preocupante, chamam de juristocracia


(HIRSCHL, 2004) ou supremocracia (VIEIRA, 2008, 2018) vemos na
verdade como uma atuação errática – e ainda mais preocupante –, muitas
vezes isolada dos ministros da Corte. Tanto que a expressão supremocracia
tem sido convertida por alguns em ministrocracia (ARGUELHES;
RIBEIRO, 2018) ou mesmo “onze ilhas”3.
Engana-se quem pensa que a monocratização advém tão somente
de uma reação à pletora de processos submetidos ao Supremo. Estudos
têm demonstrado que esse fato é utilizado deliberadamente pelos mi-
nistros (FALCÃO; ARGUELHES, 2017). Como falar em uma Corte
ativista se a maioria dos julgamentos do STF se dá monocraticamente?
Em pesquisa publicada no ano de 2008, verificou-se que aproximada-
mente 88% das decisões do Supremo não foram tomadas pelos órgãos
colegiados (Turmas e Plenário). No limite, no ano de 2006, somente
0,5% das decisões publicadas são acórdãos do Plenário (VERISSIMO,
2008). Apenas para lembrar um exemplo recente desse perfil, o ministro
Alexandre de Moraes proferiu polêmica decisão monocrática nos autos

3
 Expressão creditada a Mendes (2010), mas reivindicada por um ex-ministro da Corte,
Sepúlveda Pertence (FONTAINHA; SILVA; NUÑEZ, 2015).

186 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 181-200 jul./set. 2021


da Arguição de Descumprimento de Preceito A regra processual interna que permite o
Fundamental no 663, relacionada ao procedi- poder de veto ao pedir vista demonstra a falta
mento das medidas provisórias em tempos de de disposição para um trabalho em equipe, con-
pandemia da Covid-19 (CRUZ; SILVA, 2020). dição para uma Corte deliberativa e, portanto,
O desenho institucional do STF aponta para democrática (SILVA, 2013). Tal fragmentação
o exercício do poder judicial de forma indivi- revela-se como estratégia política, objeto de
dual e descentralizada tanto em relação aos disputas internas de poder entre os ministros.
mecanismos de decidir como de sinalizar ou “Um Supremo fragmentado abre as portas para
definir agenda. “[E]ssa combinação tem sido o comportamento político estratégico indivi-
funcionalmente equivalente ao que chamamos dual” (FALCÃO; ARGUELHES, 2017, p. 21)4.
de ‘judicial review individual’, com ministros
realizando o controle de constitucionalidade Essa atmosfera ministrocrática, de valentia
sem qualquer controle efetivo pelo plenário” constitucional e pouco apego à jurisprudên-
cia e às decisões colegiadas, produziu onze
(ARGUELHES; RIBEIRO, 2018, p. 15).
Supremos: ministros exercendo individual-
O fenômeno da monocratização não se deve mente o controle de constitucionalidade de
apenas a deliberadas decisões individuais dos leis aprovadas pelo Congresso via liminar,
ministros. Outras condutas também corrobo- ou paralisando, com pedidos de vista, de-
cisões tomadas pela maioria do plenário
ram esse fenômeno: entre elas, o poder discri-
(RECONDO; WEBER, 2019, p. 79).
cionário dos relatores de liberarem o processo
sob seu escrutínio para julgamento; o poder
também discricionário de pedir vista e inter- A monocratização da atuação do STF, tam-
romper o julgamento sem nenhum prazo para bém denominada judicial review individual,
a devolução do processo; o poder de pautar os revela um problema de teoria constitucional
processos incumbido ao presidente do Supremo maior, já que seria duplamente contramajori-
(FALCÃO; ARGULHES, 2017). tário, por atuar contra a maioria legislativa (ex-
Para que um processo seja levado a julga- terna) e contra a maioria do tribunal (interna)
mento, é necessária a conjunção de dois fatores: (ARGUELHES; RIBEIRO, 2018).
o relator liberar o caso para julgamento, e o O desenho institucional apresentado difi-
presidente do Tribunal ou da Turma incluí- culta qualquer análise propositiva como a aqui
-lo em pauta. Nisso se percebe a presença do pretendida. No entanto, apontaremos mais à
mecanismo de definição de agenda de forma frente a importância de o STF estar em per-
individual descentralizada (na figura do rela- manente diálogo com setores da sociedade,
tor) e centralizada (na figura do presidente). com os demais órgãos do Poder Judiciário e
Mesmo depois de atendidos esses dois meca- com os demais Poderes para uma construção
nismos, qualquer ministro pode pedir vista democrática do sentido da Constituição.
do processo (novamente poder judicial indivi-
dual descentralizado). Todos esses mecanismos
4
 Exemplifica esse comportamento estratégico individual
estão previstos regimentalmente (arts. 21, X, o relato de duas liminares concedidas pelo ministro Marco
128, § 2o, e 134 do Regimento Interno do STF Aurélio no último dia do ano judiciário de 2018: uma que
permitiria aos presos condenados em segunda instância
(BRASIL, 2020)) e demonstram como o poder recorrerem em liberdade, contrariando explicitamente de-
judicial se dilui fragmentariamente no STF cisão plenária; outra que determinava que a eleição para
a Presidência do Senado fosse realizada com voto aberto
(ARGUELHES; RIBEIRO, 2018). (RECONDO; WEBER, 2019).

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3  A jurisdição constitucional e a guardião no de monopolizador da última pala-
última palavra vra, a supremacia que seria da Constituição se
transmuta em supremacia do órgão jurisdicio-
Com o delineamento histórico do instituto nal – concepção equivocada da jurisdição cons-
do controle judicial de constitucionalidade, é titucional (STRECK; SANTOS JÚNIOR, 2014).
possível perceber o surgimento de uma concepção Um dos debates acerca da jurisdição constitu-
constitucional supremacista (RIBEIRO, 2017), cional diz respeito à dificuldade contramajoritária
segundo a qual o Poder Judiciário, vocalizado em decorrência do déficit democrático do Poder
principalmente por sua Corte Suprema, teria o Judiciário. Essa discussão é antiga e profícua na
monopólio da última palavra acerca do que a teoria norte-americana, mas chega ao Brasil
Constituição significa. mais recentemente, em grande parte devido à
Ilustra essa visão um julgado da Suprema importância que a jurisdição constitucional vem
Corte brasileira (MS 26.603), de relatoria do então ganhando pós-Constituinte de 1988. É impor-
ministro Celso de Mello, que na ocasião defendeu tante frisar que, no caso brasileiro, a discussão é
o que se segue: centrada na intensidade e na maneira como os
magistrados, principalmente o STF, empregam o
O exercício da jurisdição constitucional, que controle de constitucionalidade, já que sua pre-
tem por objetivo preservar a supremacia da visão é expressa em nossa Constituição (SOUZA
Constituição, põe em evidência a dimensão
NETO; SARMENTO, 2014).
essencialmente política em que se projeta a
atividade institucional do Supremo Tribunal
Federal, pois, no processo de indagação cons- A dificuldade contramajoritária não reside
titucional, assenta-se a magna prerrogativa tanto no fato de as constituições subtraírem
de decidir, em última análise, sobre a própria do legislador futuro a possibilidade de tomar
substância do poder. […] A interpretação decisões importantes. O cerne do debate está
constitucional derivada das decisões proferi- no reconhecimento de que, diante da vagueza
das pelo Supremo Tribunal Federal – a quem e abertura de boa parte das normas constitu-
se atribuiu a função eminente de “guarda da cionais, bem como da possibilidade de que
Constituição” (CF, art. 102, “caput”) – assume elas entrem em colisões, quem as interpreta
papel de fundamental importância na orga- e aplica também participa do seu processo
nização institucional do Estado brasileiro, a de criação. Daí a crítica de que a jurisdição
justificar o reconhecimento de que o modelo constitucional acaba por conferir aos juízes
político-jurídico vigente em nosso país confe- uma espécie de poder constituinte permanente,
riu, à Suprema Corte, a singular prerrogativa pois lhes permite moldar a Constituição de
de dispor do monopólio da última palavra em acordo com as suas preferências políticas e
tema de exegese das normas inscritas no texto valorativas, em detrimento daquelas adota-
da Lei Fundamental (BRASIL, 2007, p. 323- das pelo legislador eleito (SOUZA NETO;
324, grifos nossos)5. SARMENTO, 2014, p. 36).

Vale lembrar que esse MS se refere ao caso O verdadeiro problema apresenta-se quando
em que o Supremo definiu a interpretação cons- a jurisdição constitucional é concebida como
titucional da infidelidade partidária. Percebe- detentora do poder de ditar a última palavra so-
se com clareza que, ao se converter o papel de bre o significado da Constituição, o que mais
uma vez aponta para o fato de que a objeção de-
mocrática não está no uso do controle judicial
5
 Acórdão colhido como exemplo na obra de Souza
Neto e Sarmento (2014). de constitucionalidade como remédio, mas sim

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na dosagem de sua utilização (SOUZA NETO; vez que é “clara a insuficiência e a incapacidade
SARMENTO, 2014). do Supremo em tutelar de forma isolada a ordem
Os teóricos do denominado constitucionalis- constitucional, ao longo dos últimos 110 anos”
mo popular – que de forma geral se caracteriza por (CRUZ, 2004, p. 312). Por essa razão, a verticali-
enfrentar a supremacia judicial e a visão elitista zação da jurisdição democrática não coadunaria
de que os juízes são os melhores intérpretes da com o Estado Democrático de Direito, sendo
Constituição – têm como ponto-chave em comum difícil crer no STF com uma função iluminis-
a percepção dos limites da supremacia judicial ta (BARROSO, 2015) e esperar seu beneplácito
e a defesa da doutrina constitucional como uma (CRUZ, 2004).
agenda coletiva na qual o povo deve ser protago- As três formas de atuação descritas por
nista (ORTEGA apud NUNES JÚNIOR, 2017). Barroso tornam o STF um alvo móvel. Quando
Isso não significa que todos os teóricos dessa está contra o Congresso, está a favor da opinião
linhagem se oponham ao controle judicial, como pública (papel representativo); quando contra a
veremos neste trabalho. opinião pública, defende os direitos fundamen-
tais (papel contramajoritário); quando contrário
Com isso, postula-se a retirada da Constituição à opinião pública e ao Congresso, atua como
dos tribunais, na medida em que os mesmos vanguarda iluminista. Dessa forma, o Supremo
não teriam legitimidade para se manifestar
nunca erra ou, pelo menos, não há espaço para
de forma final (dar a última palavra) no que
tange à interpretação constitucional. Tushnet identificar seus erros e excessos (ARGUELHES,
é um dos críticos do Judicial Review não pelo 2017).
aspecto da “objeção contramajoritária” (ques- Mendes (2008 apud KOZICKI; ARAÚJO,
tionamento tradicional da legitimidade dos
2015, p. 120) aponta com acerto que essa “respon-
magistrados da Suprema Corte, em face de
sua origem não democrática, em decidirem sabilidade da última palavra em matéria consti-
questões complexas de conteúdo das normas tucional levou o Tribunal ao acanhamento frente
constitucionais), mas sim, pela tese da “supre- a oportunidades para decidir mais ativamente,
macia judicial” (ou seja, a consideração que apenas agindo desse modo em casos com baixo
o judiciário se torna poder condutor acima
e controlado potencial político”. Antecipando a
dos demais poderes). Nesses termos, Tushnet
apresenta-se como um crítico da Suprema questão do diálogo interinstitucional, seria me-
Corte no que tange ao monopólio da mesma lhor que a Corte fosse menos verborrágica e mais
em dizer o que é (o teor) direito constitucional modesta na retórica e se colocasse como partícipe
(FERNANDES, 2014, p. 203, grifos nossos).
do processo interinstitucional de significação
da Constituição, sem se acanhar quando detiver
Esses problemas agravam-se quando “a Justiça bons argumentos e sem se intimidar ao desafiar
ascende ela própria à condição de mais alta instân- o legislador (MENDES, 2008 apud KOZICKI;
cia moral da sociedade, [pois] passa a escapar de ARAÚJO, 2015).
qualquer mecanismo de controle social” (MAUS, Quando declara inconstitucional determina-
2000, p. 187). do ato normativo em uma ação de controle de
É preciso refletir também se o STF teria a constitucionalidade, a Corte o faz com caráter de
capacidade de tornar-se o guardião único dos va- definitividade. Contudo, pode-se entender que a
lores constitucionais. Pela breve história da Corte hermenêutica constitucional não se encerra com
na experiência republicana brasileira, podem-se o processo judicial. O que ele faz é tão somente
ter sérias desconfianças dessa possibilidade, uma pôr fim a uma “rodada” na interpretação do texto

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constitucional (SOUZA NETO; SARMENTO, Apesar de aceitar a precedência prima facie
2014). Diante dessa crítica, surge como possível do Poder Judiciário em questões de direitos, o
alternativa a teoria dos diálogos constitucionais.6 autor nega a qualquer instituição o monopólio na
interpretação da Constituição e abre espaço para
o diálogo interinstitucional. Em uma sociedade
4  A jurisdição constitucional plural – na qual a atuação das Cortes é influen-
e os diálogos ciada por diferentes fatores e por interações com
diversas outras instituições, por vezes até mesmo
Um dos pontos centrais das teorias dos conflitivas –, a interação é necessária e até mesmo
diálogos é enfatizar que o Judiciário não tem saudável, pois permite “rejeitar a ideia de que a
descritivamente nem deve ter normativamen- última palavra sobre a Constituição deve caber ao
te o monopólio da interpretação constitucional Poder Judiciário ou, de forma oposta, ao Poder
(BATEUP, 2006). Retomando também a crítica Legislativo” (GODOY, 2015, p. 149).
do déficit democrático, Em outro trabalho recente, Kozicki e Araújo
(2015) apresentam alguns modelos alternativos
[a]s teorias do diálogo constitucional oferecem ao tradicional judicial review norte-americano,
uma maneira alternativa de preencher a lacuna que influenciou e ainda influencia a jurisdição
de legitimidade, pois, se os ramos políticos do
constitucional à brasileira. Analisando as expe-
governo e o povo são capazes de responder às
decisões judiciais de maneira dialógica, a força riências canadense, inglesa e neozelandesa de
do argumento contramajoritário é superado implementação de formas mais “fracas” de con-
ou, pelo menos, muito atenuado (BATEUP, trole judicial de constitucionalidade, os autores
2006, p. 1.110, tradução nossa).
apontam teoricamente a vantagem do diálogo.

Em interessante tese defendida na Univer­ Em um mundo em que cortes e parlamentos


sidade Federal do Paraná, Godoy (2015) trabalha discordariam razoavelmente sobre justiça e,
especificamente, sobre a compatibilidade entre
com a perspectiva das teorias do diálogo consti-
lei ordinária e lei suprema, o diálogo talvez seja
tucional, retomando primeiramente a discussão a maior vantagem do modelo fraco de judicial
das premissas e capacidades institucionais deli- review. O diálogo permitiria ao Judiciário in-
neadas por Cass Sunstein e Adrian Vermeule: a formar o Legislativo sobre sua interpretação
do texto constitucional e, também, autoriza-
necessidade de certo grau de especialização fun-
ria o Legislativo a responder e agir segundo
cional na concretização dos fins constitucionais; sua interpretação, mas agora subsidiado pelo
a falibilidade potencial de qualquer instituição Judiciário sobre aspectos constitucionais das
atingir esses fins; e um consequencialismo fraco suas decisões que lhe faltassem em um pri-
no sentido de analisar as possíveis soluções e meiro momento. A forma fraca permitiria ao
Legislativo a análise constitucional dos seus
suas diferentes consequências – tudo isso com o
atos sem que lhe seja retirada a faculdade de
objetivo de perseguir a melhor decisão possível reeditá-los caso conclua por sua inadequação
(GODOY, 2015). ou inconsistência (KOZICKI; ARAÚJO, 2015,
p. 125).

6
 Não foi objeto da presente análise, mas é importante
citar que também não nos alinhamos à visão capitaneada Mais uma vez, não se questiona a impor-
por Jeremy Waldron de que a legitimidade para decidir em tância do STF na interpretação constitucional,
última análise as questões sobre direitos e justiça estaria
apenas com os legisladores (ANDRADA, 2016). nem mesmo seu papel de decidir com caráter de

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definitividade os processos que julga. Todavia, [2009b]) estabelecendo que as atividades ligadas
isso colocaria fim apenas a uma rodada desse à escola, de cunho diretivo, de coordenação ou de
diálogo constitucional: assessoramento pedagógico, também deveriam
ser computadas. Esse ato normativo foi questio-
No contexto do diálogo, em que a decisão nado no Supremo, que reviu seu entendimento
judicial suscitaria uma resposta consciente da anterior, acatou a interpretação constitucional
legislatura, o controle de constitucionalidade
do legislador e julgou improcedente a ADI 3.772
não é exercido na condição de um veto. Para
melhor ilustrar a ideia do diálogo, adaptá-la ao (BRASIL, 2008), tendo inclusive cancelado o anti-
contexto brasileiro levaria à negação de que o go enunciado da Súmula no 726 (BRASIL, 2003).
Supremo Tribunal Federal detém a última pala- Assim, a despeito da retórica da “suprema-
vra sobre o significado do texto constitucional.
cia judicial” na interpretação constitucional,
A declaração de inconstitucionalidade iniciaria
uma comunicação interinstitucional, vez que constata-se na jurisprudência do STF alguma
o Parlamento deveria lidar com os argumentos abertura para rever seus posicionamentos ante-
trazidos pela Corte e conciliar objetivos sociais riores, quando postos em xeque por atos legis-
e direitos individuais. Melhor seria falar em lativos subsequentes. Essa abertura ao diálogo
última palavra provisória da rodada procedi-
é salutar, pois permite o controle recíproco dos
mental, em que Corte e Congresso possuiriam
a legitimidade para serem ativistas desde que Poderes do Estado e viabiliza a correção de erros
engajados no diálogo e no convencimento. na hermenêutica constitucional (SOUZA NETO;
A derrubada da última palavra alheia daria SARMENTO, 2014, p. 413). No entanto, obser-
reinício ao circuito decisório com ônus argu-
vando a interação entre o STF e o Congresso
mentativo ao Poder cuja decisão foi substituída
(KOZICKI; ARAÚJO, 2015, p. 126). Nacional, percebe-se que a forma típica desse
diálogo é a aprovação de emendas constitucio-
Esse entendimento deve-se à percepção de nais que buscam superar eventuais decisões de
que, no modo de construção convencional da inconstitucionalidade proferidas pelo Supremo
decisão jurídica, não se captura de maneira plena (BRANDÃO, 2015).
a interação entre o Judiciário, os demais Poderes O segundo exemplo é nesse último sentido.
e os agentes sociais em geral, fenômeno salutar Ao regulamentar o art. 17 da CRFB, o Poder
para o processo de interpretação e aplicação da Legislativo inseriu na Lei que rege as eleições
Constituição (BRANDÃO, 2015). O diálogo in- aquilo que a doutrina constitucional e eleitoral
terinstitucional tem ocorrido no próprio STF, passou a denominar cláusula de barreira. Não
apesar da recalcitrância de alguns ministros. É obstante sua aprovação no Congresso Nacional e
farta de exemplos a doutrina que aborda essa sanção pelo presidente da República, o dispositivo
questão. Apenas para ilustrá-la, serão abordados foi declarado inconstitucional pelo STF na ADI
dois casos. 1.351 (BRASIL, 2006). Para alguns analistas, tal
No primeiro, o STF tinha o entendimento decisão gerou a multiplicação de partidos nanicos
sedimentado de que, para lograr a aposenta- em nossa dinâmica eleitoral. Para restabelecer
doria especial prevista nos arts. 40, § 5o, e 201, as cláusulas de barreira, o Congresso aprovou
§ 8o, da CRFB (BRASIL, [2021]), os professores recentemente, agora como norma constitucional,
precisariam exercer exclusivamente atividades a EC no 97/2017 (BRASIL, 2017), que reabre a
dentro de sala de aula. Por não concordar com rodada interpretativa ao inserir o § 3o no art. 17.
essa interpretação constitucional, o legislativo Além de praticados empiricamente na juris-
brasileiro editou a Lei no 11.301/2006 (BRASIL, dição brasileira, os diálogos constitucionais são

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normativamente uma resposta mais adequada Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal po-
à supremacia judicial e ao dilema contramajori- derá, de ofício ou por provocação, mediante
decisão de dois terços dos seus membros, após
tário da jurisdição constitucional, por viabilizar
reiteradas decisões sobre matéria constitu-
que os Poderes construam uma hermenêutica cional, aprovar súmula que, a partir de sua
constitucional mais dialogada e, portanto, mais publicação na imprensa oficial, terá efeito
pluralista e assertiva. vinculante em relação aos demais órgãos do
Poder Judiciário e à administração pública
direta e indireta, nas esferas federal, estadual
A nosso ver, e a teoria dos diálogos institucio- e municipal, bem como proceder à sua revisão
nais evidencia isto, a interpretação da consti- ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
tuição é um empreendimento compartilhado
entre os poderes. Dessa forma, a interpretação § 1o A súmula terá por objetivo a validade, a
constitucional deve levar em consideração interpretação e a eficácia de normas deter-
o sistema político-constitucional como um minadas, acerca das quais haja controvérsia
todo. Talvez a forma com que o “novo modelo atual entre órgãos judiciários ou entre esses
constitucional” equilibra os poderes seja a mais e a administração pública que acarrete grave
adequada versão institucional para harmoni- insegurança jurídica e relevante multiplicação
zar o autogoverno, o pluralismo e a dispersão de processos sobre questão idêntica.
de poderes – que é o objetivo declarado das § 2o Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido
democracias consensualistas. Encontrar uma em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento
solução intermediária entre o puro majorita- de súmula poderá ser provocada por aqueles
rismo e o juricentrismo é o desafio da política que podem propor a ação direta de incons-
constitucional moderna (ANDRADA, 2016, titucionalidade.
p. 160, grifos do autor).
§ 3o Do ato administrativo ou decisão judicial
que contrariar a súmula aplicável ou que in-
Entendemos que o diálogo entre o Poder
devidamente a aplicar, caberá reclamação ao
Judiciário e o Poder Legislativo pode e deve Supremo Tribunal Federal que, julgando-a
ocorrer também com o Poder Executivo. Nesse procedente, anulará o ato administrativo ou
sentido, traremos para o debate a reforma do cassará a decisão judicial reclamada, e de-
Judiciário, que inseriu no contexto brasileiro terminará que outra seja proferida com ou
sem a aplicação da súmula, conforme o caso
as súmulas vinculantes e permitiu que even-
(BRASIL, [2021]).
tuais violações aos seus enunciados por parte
da Administração Pública fossem levadas dire- Fica evidente que os enunciados de súmulas
tamente ao STF por meio da reclamação cons- vinculantes adentram a sistemática constitucional
titucional. como mais um instrumento de exercício da ju-
risdição constitucional pelo STF, mas agora com
o condão de seus enunciados vincularem todo
5  A reforma do Judiciário e uma o Poder Judiciário e a Administração Pública
nova abertura para os diálogos brasileira naqueles assuntos em que o STF tiver
interinstitucionais: as reclamações maturado a questão constitucional em reitera-
constitucionais dos julgados e, com quórum qualificado de 2/3,
resolver editar determinada súmula vinculante
Entre diversas alterações promovidas pela (MENDES; BRANCO, 2018).
reforma do Judiciário capitaneada pela EC O aspecto que nos importa para o presen-
no 45/2004, abordaremos a inclusão da súmula te estudo é a previsão, no § 3o, de se utilizar a
vinculante em nosso ordenamento constitucional: reclamação constitucional – ação que já tinha

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previsão constitucional (art. 102, I, l) (BRASIL, [2021]) – para preservar
a autoridade da interpretação assentada pelo STF por meio da súmula
vinculante. A inovação maior nesse aspecto – que conversará em particular
com nosso raciocínio final – é a admissibilidade da reclamação consti-
tucional também contra ato da Administração Pública que contrariar os
enunciados vinculantes editados pela Corte Suprema brasileira (MENDES;
BRANCO, 2018).
A opção do constituinte reformador de utilizar a reclamação consti-
tucional como remédio para preservar a autoridade do Supremo também
quanto às súmulas vinculantes favoreceria, por um lado, a redução do
número de recursos extraordinários e, por outro, poderia gerar uma
“nova e adicional sobrecarga de processos – agora de reclamações – para
o Supremo Tribunal Federal” (MENDES; BRANCO, 2018, p. 1.088). Além
da possibilidade de gerar milhares de processos de reclamações, esse efeito
adverso já levantado à época da reforma tornaria o STF um oficial executor
de sentenças (VIEIRA, 2004).
No entanto, o maior problema apontado por Vieira (2004, p. 203) é que a

criação da súmula vinculante, tal como proposta, castrará o Judiciário


no seu papel de guardião dos direitos constitucionais. Essa tendência
de centralização do poder político constitucional na cúpula do Poder
Judiciário terá por consequência o enfraquecimento do exercício da ju-
risdição constitucional pelos juízes de primeiro e segundo graus, que
tanto têm contribuído para a consolidação do Estado de Direito no Brasil.

Por esse motivo defendemos que a reclamação constitucional possa ser


utilizada como um instrumento que reabra o diálogo e oportunize uma
nova rodada de hermenêutica constitucional, seja com os juízes, seja com
a Administração Pública.
Com base nos dados lançados no primeiro relatório da pesquisa Supremo
em Números, conduzida pela Fundação Getulio Vargas (FGV), percebe-se
um aumento no número de reclamações no STF já a partir de 2004, com
pico no ano de 2008 (FALCÃO; CERDEIRA; ARGUELHES, 2011). Como
esse relatório abrangeu os processos protocolados entre os anos de 1988
e 2009, buscamos no site do STF os dados referentes aos processos, por
classe, de 1990 a 2019, com o objetivo de dar continuidade à pesquisa.
Fundamentados nessas informações, estabelecemos a relação percentual
entre os processos que ingressaram no Supremo por ano e as reclamações.
Por fim, buscamos ordenar as classes processuais para verificar a posição
da reclamação entre as demais.
De acordo com os dados, a reclamação era uma ação tímida nos pri-
meiros 10 anos de vigência do texto constitucional, não atingindo mais
que 0,5% em média dos processos que ingressavam no STF.

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Tabela

Evolução do número de reclamações em relação ao número de processos no STF

No de No de No de No de
Ano Proporção Ano Proporção
processos reclamações processos reclamações
1990 1.657 3 0,18% 2005 85.165 976 1,1%
1991 1.781 15 0,84% 2006 129.054 848 0,7%
1992 2.555 15 0,59% 2007 108.038 894 0,8%
1993 2.855 11 0,39% 2008 73.185 1.684 2,3%
1994 3.511 18 0,51% 2009 63.732 2.262 3,5%
1995 4.055 18 0,44% 2010 74.803 1.300 1,7%
1996 4.587 28 0,61% 2011 63.629 1.856 2,9%
1997 6.807 33 0,48% 2012 73.489 1.895 2,6%
1998 13.110 239 1,82% 2013 72.097 1.894 2,6%
1999 38.374 204 0,53% 2014 80.025 2.375 3,0%
2000 93.261 528 0,6% 2015 93.560 3.273 3,5%
2001 96.377 241 0,3% 2016 89.971 3.283 3,6%
2002 92.319 242 0,3% 2017 102.225 3.326 3,3%
2003 109.226 277 0,3% 2018 98.291 3.467 3,5%
2004 70.794 513 0,7% 2019 91.874 5.789 6,3%
Fonte: elaborada pelos autores.

Os dados coletados confirmam a hipótese dinário, o agravo em recurso extraordinário


de que, após a reforma do Judiciário, a recla- e o habeas corpus. Esses dados confirmam as
mação ganharia contornos mais importantes ideias do Relatório da FGV de que o Supremo
e tenderia a aumentar seu quantitativo no STF. encarna três cortes e porta-se principalmente
Nos anos anteriores à reforma do Judiciário, a como corte recursal (FALCÃO; CERDEIRA;
reclamação dificilmente atingia a proporção de ARGUELHES, 2011).
1% dos processos que ingressavam na Suprema Aclarado esse ponto, podemos partir para
Corte brasileira. A partir de 2008, essa proporção o aspecto normativo deste trabalho: a defesa
começa a aumentar e, nos últimos anos, atinge da ideia de que a ampliação de reclamações na
um peso três vezes maior, até que no ano de Suprema Corte brasileira, apesar de ser vista
2019 passa a representar mais de 6% do número como uma consequência indesejada por aqueles
total de processos. que ansiavam pela redução da carga de trabalho
É interessante observar também que, apesar do STF (MENDES; BRANCO, 2018), propicia
de o quantitativo anual de processos de todas uma abertura dialogal em torno da edição da
as classes no Supremo ter sofrido uma queda súmula vinculante ao permitir que reclamante e
após 2007 – como se esperava que acontecesse reclamado reabram o debate sobre os contornos
após a reforma do Judiciário –, os processos de e o alcance do enunciado, ampliando assim os
reclamação seguiram curva diferente e ganha- diálogos interinstitucionais.
ram relevância na pauta do STF. Atualmente, Como dito anteriormente, a maioria dos
a reclamação constitucional tem sido a quarta estudos brasileiros que adota a perspectiva dos
classe processual que a Corte mais recebe a cada diálogos constitucionais focaliza a relação en-
ano, perdendo apenas para o recurso extraor- tre o Poder Judiciário e o Poder Legislativo.

194 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 181-200 jul./set. 2021


Entretanto, Mendes (2008), em sua tese de doutorado, já apontava em
nota explicativa a necessidade de uma abordagem dialógica que inserisse
na análise a participação do Executivo no processo de construção do
significado da CRFB.
Consideramos que o ambiente processual criado pela reclamação
cria exatamente essa possibilidade. Como vimos, a ação de reclamação
pode ser proposta originariamente no STF em face da contrariedade na
aplicação de uma súmula vinculante pela Administração Pública. Com
isso, aquele enunciado aprovado pelo STF retornará para a pauta da Casa
com algum órgão da Administração Pública como reclamado, o que
permitirá o início de uma nova rodada de interpretação constitucional.
Isso não significa que, a qualquer processo de reclamação, o Supremo
colocará em xeque a força vinculante de suas súmulas. Contudo, as pe-
culiaridades do caso concreto, as expertises da Administração Pública
e os argumentos das partes poderão atribuir novos sentidos à súmula
vinculante, atenuar sua extensão, intensidade ou até mesmo levar à revisão
ou ao cancelamento de seu enunciado, algo previsto na competência da
própria Corte.
Diferentemente da visão de alguns ministros do Supremo para os
quais “súmula não se interpreta, aplica-se”, temos a convicção de que a
súmula vinculante, como mais um enunciado linguístico, demandará
novos capítulos desse romance em cadeia (DWORKIN, 2000), que po-
dem ser escritos de forma dialogal, com uma postura menos hiperbólica
e mais plural do STF.

6  Considerações finais

O propósito deste estudo foi afirmar nossa crença nos diálogos consti-
tucionais como modelo de jurisdição constitucional. No entanto, é preciso
aclarar que as posturas insulares e as políticas estratégicas e estamentais
promovidas pelos ministros do Supremo evidenciam a dificuldade de
implementação efetiva desse modelo na atual conjuntura dos Poderes
republicanos brasileiros. O STF ainda permanece arraigado no direito
de, como guardião da Constituição, dar a última palavra e recentemente
tem assumido a postura de intrusão na formulação de políticas públicas.
Diferentemente de Barroso ou Waldron – que idealizam ora o STF,
ora o Parlamento –, estamos cientes de que nossas instituições são falhas:
organizam-se com base em uma mentalidade patrimonialista e corpo-
rativista, e os diálogos podem ser obstados pelo entrincheiramento de
competências. Assim, nossa crença nos diálogos é uma crença ressabiada,
ciente dos entraves institucionais apontados.

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 181-200 jul./set. 2021 195


Como limitação da presente pesquisa, apontamos o foco na atuação,
estrutura e funcionamento do Poder Judiciário, “vício” recorrente na
doutrina constitucional. Contudo, estamos conscientes de que a análise
dos diálogos constitucionais deveria abraçar o exame mais detido dos
demais Poderes. Portanto, para pesquisas futuras sugerimos a análise da
atuação do Poder Executivo, ainda que no âmbito do sistema de Justiça,
a exemplo da atuação da Advocacia-Geral da União.

Sobre os autores
Guilherme Scodeler de Souza Barreiro é mestre em Administração Pública pela Universidade
Federal de Lavras, Lavras, MG, Brasil; doutorando em Direito Público na Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil; professor do curso
de Direito do Centro Universitário de Lavras, Lavras, MG, Brasil; bolsista da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
E-mail: [email protected]
Álvaro Ricardo de Souza Cruz é doutor e mestre em Direito Constitucional pela Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil; professor adjunto III dos programas
de graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado) da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil; procurador federal do Ministério Público
Federal, Belo Horizonte, MG, Brasil.
E-mail: [email protected]

Como citar este artigo


(ABNT)
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e diálogos constitucionais: caminhos e descaminhos na jurisdição constitucional brasileira.
Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 231, p. 181‑200, jul./set. 2021.
Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/231/ril_v58_n231_p181
(APA)
Barreiro, G. S. de S., & Cruz, A. R. de S. (2021). Última palavra e diálogos constitucionais:
caminhos e descaminhos na jurisdição constitucional brasileira. Revista de Informação
Legislativa: RIL, 58(231), 181‑200. Recuperado de https://www12.senado.leg.br/ril/
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200 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 181-200 jul./set. 2021


Atos notariais por meios eletrônicos
A quarentena trouxe o futuro aos
cartórios e tabelionatos

MARCO AURÉLIO GUMIERI VALÉRIO

Resumo:  Há anos a legislação brasileira prevê a possibilidade de se


realizarem atos notariais por meios eletrônicos com videoconferência.
Contudo, somente em 26/5/2020, devido à busca por instrumentos tecno-
lógicos que superassem a necessidade de distanciamento social provocada
pela pandemia da Covid-19, a Corregedoria Nacional de Justiça, órgão
vinculado ao Conselho Nacional de Justiça, editou o Provimento no 100,
que dispõe sobre atos notariais eletrônicos em todo o território nacional.
Em face da importante função social dos cartórios e tabelionatos, este
artigo analisa a evolução legislativa que levou à atual regulamentação e
destaca suas inovações. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que utiliza o
método dedutivo e a análise de conteúdo como metodologia, com revisão
bibliográfica, coleta de dados e estudo dos diplomas legais.

Palavras-chave:  Atos notariais eletrônicos. Direito cartorial. Pandemia.


Covid-19. Videoconferência.

Notarial acts by electronic means: the quarantine brought


the future to notaries

Abstract:  Although the Brazilian legislation has for years provided for the
carrying out of notarial acts by electronic means with video conference, it
was not until May 25, 2020, due to the need to better cope with the social
distancing brought about the Covid-19 pandemic, that the Corregedoria
Nacional de Justiça, a body linked to the National Council of Justice,
issued Provision n. 100, which provides for notary acts through electronic
means throughout the Brazilian territory. In view of the major social role
of notary offices, this article both probes into the legislative evolution
that led to the current regulation and highlights its innovations. It is a
qualitative research the methodology of which is content analysis and
Recebido em 1/10/20 deductive method coupled with bibliographical review, data collection
Aprovado em 1/2/21 and study on legal diplomas.

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 201-211 jul./set. 2021 201


Keywords:  Electronic notarial acts. Notary law. Pandemic. Covid-19.
Video conference.

1 Introdução

A legislação brasileira prevê há anos a possibilidade de se realizarem


atos notariais por meios eletrônicos com videoconferência. Contudo, apenas
recentemente, em 26/5/2020, a Corregedoria Nacional de Justiça, órgão
vinculado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), editou o Provimento
no 100, que dispõe sobre a prática de atos notariais eletrônicos pelo siste-
ma e-Notariado, cria a Matrícula Notarial Eletrônica (MNE) e dá outras
providências relacionadas à prestação desses serviços em ambiente virtual
e remoto em todo o território nacional (CONSELHO NACIONAL DE
JUSTIÇA, 2020c). Essa demora em criar um sistema eletrônico unificado
e determinar a utilização dos recursos tecnológicos na prática cartorial
indicaria que a burocracia no Brasil, de tão arraigada nas relações sociais,
seria um traço cultural.
Antes da edição do Provimento no 100, apenas algumas unidades da
Federação haviam-se estruturado para a realização de atos notariais ele-
trônicos, conforme as regulamentações estabelecidas pelas corregedorias
estaduais de Justiça, que muitas vezes apresentavam divergências. A recente
normatização sistematizou e unificou os procedimentos a serem adotados
em todo o Brasil por meio do e-Notariado, ao qual deverão aderir todos
os tabelionatos ou cartórios de notas do País, o que implica a revogação
do que foi anteriormente editado por alguns estados.
A nova regulamentação foi publicada pela Corregedoria Nacional de
Justiça apenas após a Organização Mundial de Saúde ter declarado em
11/3/2020 a pandemia causada pelo novo coronavírus. O distanciamento
imposto como única opção para o achatamento da curva de contágio da
Covid-19 estimulou a busca por instrumentos tecnológicos que suprissem
a presença física.
Além de enumerar as principais novidades trazidas pelo Provimento
no 100, este artigo analisa a evolução legislativa que levou à edição da nova
regulamentação sobre atos notariais eletrônicos. Trata-se de uma pesquisa
qualitativa, que utiliza o método dedutivo e a análise de conteúdo como
metodologia, com revisão bibliográfica, coleta de dados e estudo dos
diplomas legais.
Para a consecução do objetivo proposto, o texto divide-se em três seções,
além desta introdução e da conclusão: função e status legal dos tabelionatos

202 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 201-211 jul./set. 2021


e registros; evolução legislativa até o advento da aprovar, ou somente aprovar, testamentos e co-
pandemia da Covid-19; e o Provimento no 100 dicilos; (iii) lavrar procuração, extrair certidão
da Corregedoria Nacional de Justiça. de suas escrituras ou assentos, bem como có-
pias, pública-forma ou traslado de quaisquer
documentos; (iv) reconhecer letra e firma, além
2  Função e status legal dos das cópias dos documentos, em cotejo com os
tabelionatos e registros originais (SANTOS, 1954, p. 76-77).
O serviço notarial e registral pode ser caracte-
Em 1565, Estácio de Sá, sobrinho do então go- rizado como o trabalho de harmonizar com a lei
vernador geral do Brasil, Mem de Sá, foi enviado a declaração desejada pelas partes nos negócios
pelos portugueses com a missão de expulsar os jurídicos. Essa compatibilização deve ser ati-
franceses da Baía da Guanabara e fundar a cidade va, e não meramente passiva, explica Ceneviva
de São Sebastião do Rio de Janeiro. A criação (2014, p. 39), pois “a declaração emitida e assim
de uma vila era acompanhada pela instituição transposta para o documento público se desti-
de um notário, com a função de dar segurança na a retratar o ajuste dos direitos e obrigações
e transmitir legitimidade aos atos praticados.1 afirmados e aceitos pelos intervenientes no ato”.
Em retribuição aos bons serviços prestados na O notário ou o tabelião “é a ponte entre a lei e a
armada de Estácio de Sá, Pero da Costa recebeu declaração, a qual, sob o preceito de que os pactos
a provisão de Mem de Sá, tornando-se em 1565 são obrigatórios, cria a normatividade própria do
o primeiro tabelião oficialmente designado do contrato por instrumento público, determinando
Brasil. A instituição do 1o Ofício de Notas da os fins visados pelos contratantes” (CENEVIVA,
cidade do Rio de Janeiro, hoje com 456 anos, 2014, p. 39).
ajuda a compreender por que o tabelionato ou A atividade de tabelião ou notário é privada:
o cartório de notas está diretamente relacionado uma pessoa natural é nomeada por delegação
à história do País. para a realização de um múnus público conforme
O tabelionato ou o cartório de notas é uma es- estabelece o art. 236 da Constituição da República
trutura criada pelo Poder Público em que pessoas Federativa do Brasil de 1988 (CRFB) (BRASIL,
naturais nomeadas exercem funções previstas na [2021a]). Nesse sentido, Rodrigues e Ferreira
legislação. Como destaca Santos (1954, p. 73), essa (2013, p. 47) explicam que, “a despeito de estar
estrutura “atribui fé pública para instrumentarem vinculado ao princípio da legalidade quanto aos
ou exararem contratos, testamentos e outros atos atos que pode praticar, o tabelião pode formalizar
de sua competência”. a vontade das partes em consonância com a am-
Aos tabeliães ou notários cumpre, entre ou- pla liberdade contratual”. Campos (1981, p. 31)
tras, as seguintes atribuições: (i) instrumentar e complementa que o tabelião ou o notário exercem
autenticar, na forma das leis civis, as declarações uma atividade-meio, ou seja, após a lavratura
de vontade ou quaisquer contratos e convenções do negócio, o particular deve encaminhá-lo ao
privadas permitidas em direito; (ii) escrever e registro para que surta seus efeitos.
Embora a função do registrador seja também
delegada a pessoa natural e esteja prevista no mes-
1
 “Em qualquer cidade, villa, ou lugar, onde houver
casa deputada para os Tabelliães de Notas, starão nella pela mo art. 236 da CRFB, sua atuação é limitada pelo
manhã e à tarde, para que as partes, que os houverem mister princípio da legalidade, podendo fazer apenas o
para fazer alguma scriptura, os possam mais prestes achar
[sic]” (PORTUGAL, 1870, p. 179-180). que a norma permite. Assim, ao atuar na quali-

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 201-211 jul./set. 2021 203


ficação de títulos e documentos, o registrador exerce uma atividade-fim.
Quando a parte não se conforma, explicam Swensson, Swensson Neto e
Swensson (2006, p. 38-39), “o oficial suscita dúvida administrativa registral,
instrumento que não existe para o tabelião”.
Como bem ensina Lopes (1947, p. 2), “o registro é a menção de certos
atos ou fatos, exarada em registros especiais por um oficial público quer
à vista dos títulos comuns que lhe são apresentados, quer em face de de-
clarações escritas ou verbais das partes interessadas”. Os registros podem
servir de meio de prova especial ou atuar como um simples processo de
conservação de um documento. A sua função no Direito, explica o autor,

consiste em tornar conhecidas certas situações jurídicas, precipuamente


quando se refletem nos interesses de terceiros. Por outro lado, a sua fina-
lidade caracteriza-se por essa dupla face: ao mesmo tempo em que realiza
uma defesa, serve de elemento de garantia (LOPES, 1947, p. 3).

Nos municípios de menor porte ou nos distritos, os estados podem


organizar de forma conjunta as funções de tabeliães ou notários e de re-
gistradores. Em São Paulo, por exemplo, os registradores de municípios
que não são sedes de comarcas ou de distritos podem acumular as funções
dos tabeliães ou notários porque seria desgastante para o munícipe ter que
se deslocar até uma comarca. Funcionam desse modo o registro civil de
pessoas naturais, o registro civil de pessoas jurídicas e o registro de títulos
e documentos. Todavia, o registro de imóveis, exceção a essa regra, está
sempre sediado nas comarcas.2
A Lei no 8.935, de 18/11/1994 (BRASIL, [2017]), que regulamenta o
art. 236 da CRFB, dispõe em seu art. 1o que “serviços notariais e de registro
são os [atos] de organização técnica e administrativa destinados a garantir a
publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”. Chama a
atenção o fato de que a palavra cartórios tenha sido substituída por serviços
devido à carga negativa atribuída a essas entidades por representarem o
chamado Estado patrimonialista. Para Faoro (2001, p. 866), patrimonialis-
mo é basicamente uma estrutura de poder em que há mistura dos setores
público e privado, “cuja legitimidade assenta no tradicionalismo – assim
é porque sempre foi”.
No mesmo sentido foi cunhado o termo Estado cartorial, que faz refe-
rência à estrutura administrativa que, embora se apresente como orientada
para a prestação de determinados serviços à coletividade, é concebida na

2
 Por exemplo: Bonfim Paulista é distrito da cidade de Ribeirão Preto no interior do
estado de São Paulo e tem registrador civil de pessoas naturais, de pessoas jurídicas e de
títulos e documentos, mas todos os registros de imóveis devem ser feitos no Primeiro
Registro de Imóveis localizado na cidade de Ribeirão Preto.

204 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 201-211 jul./set. 2021


verdade para assegurar empregos e vantagens (BRASIL, [2020b]), que instituiu a Infraestrutura
específicos a determinados grupos e pessoas.3 de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) “para
Segundo levantamento do CNJ (apud garantir a autenticidade, a integridade e a validade
CHRISTOFOLETTI; FLOR, 2008), dos 13.558 jurídica de documentos em forma eletrônica, das
tabeliães no País, menos de 37% são concursa- aplicações de suporte e das aplicações habilitadas
dos. Isso significa que o cargo, de caráter vita- que utilizem certificados digitais, bem como a
lício, é ocupado por parentes que herdaram os realização de transações eletrônicas seguras”. O
tabelionatos ou por antigos funcionários que uso dessa certificação – o Cadastro Eletrônico de
foram nomeados “provisoriamente”. São 5.001 Pessoas Físicas (e-CPF) e o Cadastro Nacional
titulares de cartórios aprovados em concurso Eletrônico de Pessoas Jurídicas (e-CNPJ) –
público, 5.370 que conquistaram o cargo graças garantiu a presunção de veracidade da declaração
a um padrinho na administração e outros 3.187 constante nos documentos perante o signatário.
que não aceitaram responder à enquete do CNJ.4 A norma permitiu também a utilização de outro
A insatisfação do administrado diante de meio de comprovação da autoria e integridade de
uma estrutura que insiste em não se reformar documentos eletrônicos que não necessariamente
e que muda para continuar sempre a mesma é a certificação ICP-Brasil, desde que admitido
alimentada por situações como essa. pelas partes como válido.
No mesmo sentido, a aprovação da Lei
o
n  11.419, de 19/12/2006 (BRASIL, [2019]),
3  Evolução legislativa até o advento contribuiu para a difusão da assinatura digital
da pandemia da Covid-19 ao dispor sobre a informatização do processo
judicial. Essa norma autorizou a digitalização,
A possibilidade de instituição de atos notariais a produção, a assinatura e a transmissão eletrô-
por meios eletrônicos começou a ser regulamen- nica de documentos, o que gerou a presunção
tada no Brasil com a edição da Medida Provisória de originalidade documental dos meios judi-
(MP) no 2.200-1, de 27/7/2001 (BRASIL, 2001), ciais virtuais. Posteriormente, a Lei no 12.682, de
reeditada como a MP no 2.200-2, de 24/8/2001 9/7/2012 (BRASIL, [2021b]), que dispôs sobre
a elaboração e o arquivamento de documentos
3
 “O termo Estado cartorial foi empregado por derivação em meios eletromagnéticos, definiu como di-
da instituição judiciária dos cartórios e das atividades por gitalização a conversão da fiel imagem de um
[eles] exercidas no Brasil desde a Colônia e nos demais
países de tradição luso-hispânica. O cartório é concebido, documento para o meio eletrônico. Reafirmou
formalmente, como uma atividade auxiliar do sistema ju-
diciário, destinada a assegurar a guarda e a boa tramitação
também sua presunção de veracidade, sua força
de processos e respectiva documentação, a verificação de probante, bem como sua integridade, autentici-
determinadas verdades factuais, como a autenticidade de
assinaturas, e a prática de providências semelhantes. Na dade e confiabilidade.
verdade, entretanto, ele constitui uma imposição, de baixa Em 20/9/2019, a Lei no 13.874 (BRASIL,
ou nula utilidade funcional, frequentemente, inclusive,
constituindo um inútil ônus adicional sobre as transações [2020a]), decorrente da conversão da MP no 881,
correntes, destinada, efetivamente, a assegurar proveitos de 30/4/2019, que instituiu a Declaração de
prebendatários ao respectivo titular” (JAGUARIBE, c2009).
4
 “O Justiça Aberta é um sistema que permite a consulta Direitos de Liberdade Econômica e estabele-
em ‘Serventias Extrajudiciais’ de dados sobre a produtividade ceu garantias de livre mercado, considerou um
dos cartórios, subdistritos e ofícios de notas, protestos e
registros, que reconhecem, atestam e certificam atos parti- direito da pessoa natural ou jurídica arquivar
culares e públicos, como nascimentos, óbitos, imóveis, notas eletronicamente qualquer documento, conforme
e processos jurídicos” (JUSTIÇA…, [201-]). Ver Painéis…
([2021?]). técnicas legais dispostas no Decreto no 10.278, de

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 201-211 jul./set. 2021 205


18/3/2020, que balizou as regras, os padrões e os rio, atribuindo fé pública”; (ii) certificado digital
requisitos para a digitalização. notarizado: “identidade digital de uma pessoa
Apesar da evolução legislativa apontar para física ou jurídica, identificada presencialmente
a necessidade de se regulamentarem os atos por um notário a quem se atribui fé pública”;
notariais por meios eletrônicos, foi necessária (iii) assinatura digital: “resumo matemático com-
uma pandemia para que isso realmente se con- putacionalmente calculado a partir do uso de
cretizasse. chave privada e que pode ser verificado com o
uso de chave pública, cujo certificado seja con-
forme a Medida Provisória n. 2.200-2/2001 ou
4  O Provimento no 100 da qualquer outra tecnologia autorizada pela lei”;
Corregedoria Nacional de Justiça (iv) biometria: “dado ou conjunto de informa-
ções biológicas de uma pessoa, que possibilita
Após a decretação de quarentena para evitar a ao tabelião confirmar a identidade e a sua pre-
disseminação do novo coronavírus, o CNJ editou sença, em ato notarial ou autenticação em ato
o Provimento no 91, de 22/3/2020 (CONSELHO particular”; (v) videoconferência notarial: “ato
NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020a), que dispõe realizado pelo notário para verificação da livre
sobre o atendimento remoto aos usuários das manifestação da vontade das partes em relação
serventias extrajudiciais, e o Provimento no 95, ao ato notarial lavrado eletronicamente”; (vi) ato
de 1o/4/2020, que define os serviços extrajudiciais notarial eletrônico: “conjunto de metadados, gra-
como essenciais, regulamentando o atendimento vações de declarações de anuência das partes
a distância e o envio eletrônico de documen- por videoconferência notarial e documento
tos aos tabelionatos de notas (CONSELHO eletrônico, correspondentes a um ato notarial”;
NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020b). (vii) documento físico: “qualquer peça escrita ou
O reconhecimento da necessidade e impor- impressa em qualquer suporte que ofereça prova
tância de uma regulamentação mais ampla sobre ou informação sobre um ato, fato ou negócio,
a prestação de serviços notariais em ambiente assinada ou não, e emitida na forma que lhe for
virtual e remoto em todo o território nacional le- própria”; (viii) digitalização ou desmaterialização:
vou à edição do Provimento no 100, de 26/5/2020 “processo de reprodução ou conversão de fato,
(CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020c), ato, documento, negócio ou coisa, produzidos
que dispõe sobre a prática de atos notariais ele- ou representados originalmente em meio não
trônicos utilizando o sistema e-Notariado – na digital, para o formato digital”; (ix) papelização
plataforma do Colégio Notarial do Brasil –, cria a ou materialização: “processo de reprodução ou
MNE e dá providências relacionadas a cadastros conversão de fato, ato, documento, negócio ou
dos usuários, como a interconexão e os limites de coisa, produzidos ou representados originalmen-
atuação dos notários, a emissão de certificados te em meio digital, para o formato em papel”;
notariais, entre outras. (x) documento eletrônico: “qualquer arquivo em
O art. 2o do Provimento no 100 traz algumas formato digital que ofereça prova ou informação
definições importantes para o objeto regulado sobre um ato, fato ou negócio, emitido na forma
pela norma, considerando: (i) assinatura eletrô- que lhe for própria, inclusive aquele cuja autoria
nica notarizada: “qualquer forma de verificação seja verificável pela internet”; (xi) documento
de autoria, integridade e autenticidade de um digitalizado: “reprodução digital de documento
documento eletrônico realizada por um notá- originalmente em papel ou outro meio físico”;

206 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 201-211 jul./set. 2021


(xii) documento digital: “documento originalmen- a) a identificação, a demonstração da capaci-
te produzido em meio digital”; (xiii) meio eletrô- dade e a livre manifestação das partes atestadas
pelo tabelião de notas; b) o consentimento das
nico: “ambiente de armazenamento ou tráfego de
partes e a concordância com a escritura públi-
informações digitais”; (xiv) transmissão eletrônica: ca; c) o objeto e o preço do negócio pactuado;
“toda forma de comunicação a distância com a d) a declaração da data e horário da prática
utilização de redes de comunicação, tal como do ato notarial; e e) a declaração acerca da
indicação do livro, da página e do tabelionato
os serviços de internet”; (xv) usuários internos:
onde será lavrado o ato notarial (CONSELHO
“tabeliães de notas, substitutos, interinos, inter- NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020c).
ventores, escreventes e auxiliares com acesso
às funcionalidades internas do sistema de pro- Estabelece o art. 4o que, para “a lavratura
cessamento em meio eletrônico”; (xvi) usuários do ato notarial eletrônico, o notário utilizará
externos: “todos os demais usuários, incluídas a plataforma e-Notariado, [por meio do sítio]
partes, membros do Poder Judiciário, autori- www.e-notariado.org.br, com a realização da
dades, órgãos governamentais e empresariais”; videoconferência notarial para captação da von-
(xvii) Cenad: “Central Notarial de Autenticação tade das partes e coleta das assinaturas digitais”
Digital, que consiste em uma ferramenta para os (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020c).
notários autenticarem os documentos digitais, O art. 5o determina ao Colégio Notarial do
com base em seus originais, que podem ser em Brasil – Conselho Federal a obrigação de ma-
papel ou natos-digitais”; (xviii) cliente do serviço nutenção de um registro nacional único dos
notarial: “todo o usuário que comparecer perante Certificados Digitais Notarizados e de biometria.
um notário como parte direta ou indiretamente O art. 7o especifica os objetivos do Sistema
interessada em um ato notarial, ainda que por de Atos Notariais Eletrônicos:
meio de representantes, independentemente de
ter sido o notário escolhido pela parte outorgante, I – interligar os notários, permitindo a prática
outorgada ou por um terceiro” (CONSELHO de atos notariais eletrônicos, o intercâmbio
de documentos e o tráfego de informações e
NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020c).
dados; II – aprimorar tecnologias e processos
O art. 3o estabelece os requisitos da prática para viabilizar o serviço notarial em meio ele-
do ato notarial eletrônico: trônico; III – implantar, em âmbito nacional,
um sistema padronizado de elaboração de
atos notariais eletrônicos, possibilitando a
I – videoconferência notarial para captação
solicitação de atos, certidões e a realização de
do consentimento das partes sobre os termos
convênios com interessados; e IV – implan-
do ato jurídico; II – concordância expressada
tar a Matrícula Notarial Eletrônica – MNE
pela[s] partes com os termos do ato notarial
(CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA,
eletrônico; III – assinatura digital pelas par-
2020c).
tes, exclusivamente através do e-Notariado;
IV – assinatura do Tabelião de Notas com a
utilização de certificado digital ICP-Brasil;
Para garantir a idoneidade dos atos nota-
V – uso de formatos de documentos de longa
duração com assinatura digital (CONSELHO riais eletrônicos, o art. 11 esclarece que o sistema
NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020c). e-Notariado contará com módulo de fiscaliza-
ção e de geração de relatórios – chamado de
O parágrafo único desse mesmo artigo deter- correição on-line – para o acompanhamento dos
mina que a gravação da videoconferência notarial juízes responsáveis pela atividade extrajudicial,
deverá conter, no mínimo: pelas corregedorias de Justiça dos estados e do

RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 201-211 jul./set. 2021 207


Distrito Federal, e pela Corregedoria Nacional de trônicos facilitam a concretização de negócios
Justiça (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, (PLATAFORMA…, 2021).
2020c). Os números mostram que o serviço digital
O art. 12 institui atende à demanda da população. Em apenas
quatro meses, Belo Horizonte contabilizou 2.232
a Matrícula Notarial Eletrônica – MNE, que páginas autenticadas em formato virtual. A pro-
servirá como chave de identificação indivi- cura por essa solução cresce a uma média mensal
dualizada, facilitando a unicidade e rastreabi-
de 654% e atingiu seu pico no último mês de
lidade da operação eletrônica praticada. § 1o A
Matrícula Notarial Eletrônica será constituída janeiro, em que mais de 1.800 páginas foram
de 24 (vinte e quatro) dígitos, organizados autenticadas. Minas Gerais registrou um total de
em 6 (seis) campos […]. § 2o O número da 5.859 atos feitos de forma totalmente eletrônica,
Matrícula Notarial Eletrônica integra o ato
sendo 3.222 deles escrituras e procurações; e
notarial eletrônico, devendo ser indicado
em todas as cópias expedidas (CONSELHO fevereiro de 2021 foi o mês com o maior número
NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020c). de serviços digitais: 535. Os cartórios de notas
mineiros praticaram 2.637 autenticações digitais
O art. 35 estabelece que o e-Notariado seria de documentos pela plataforma de serviços ele-
implementado com a publicação do Provimento trônicos (PLATAFORMA…, 2021).
CNJ no 100/2020 e, “no prazo máximo de 6 me-
ses, naquilo que houver necessidade de crono-
grama técnico, informado periodicamente à 5 Conclusão
Corregedoria Nacional de Justiça” (CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020c). O Direito Notarial e Registral vive um novo
O módulo da Cenad, integrado à plataforma paradigma segundo o qual conhecimento e boa
e-Notariado e regulamentado pelo Provimento técnica são condições para dar segurança aos atos
no 100 da Corregedoria Nacional de Justiça, per- e negócios jurídicos, com boa qualidade e a baixo
mite autenticar digitalmente documentos e reali- custo. A sociedade concebe os cartórios como
zar a verificação de sua autenticidade, o controle instituições da comunidade e deposita nessas
dos atos praticados e a autenticação de cópias de entidades sua confiança na busca da prevenção
documentos em formato digital. A plataforma de litígios.
permite a autenticação tanto de documentos De acordo com o Conselho Nacional de
originalmente digitais quanto de documentos Justiça (2020b), os serviços notariais e de regis-
convertidos no formato PDF, com autenticação tro são essenciais à concretização de direitos,
assegurada pelo Notarchain, a rede Blockchain como o exercício da cidadania, a circulação da
dos notários brasileiros (PLATAFORMA…, propriedade, a obtenção de crédito com garantia
2021). real, a prova do inadimplemento de títulos e
A possibilidade de os cidadãos enviarem seus outros documentos de dívida com a chancela
documentos por meio de WhatsApp, e-mail ou da fé pública.
qualquer outro recurso eletrônico a órgãos públi- A adoção de regras uniformes em todo o
cos ou a pessoas físicas e jurídicas representa um território nacional para a realização de atos no-
avanço em direção à simplificação e agilização tariais eletrônicos atende aos reclamos de uma
dos serviços cartoriais. Com o mesmo valor do sociedade que se acostumou, passo a passo, à
documento físico original, os documentos ele- tecnologia. O cidadão, que consegue consultar

208 RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 201-211 jul./set. 2021


sua previdência pelo computador e fazer transferências de dinheiro pelo
celular, via-se obrigado a ir pessoalmente aos cartórios e tabelionatos
brasileiros e, muitas vezes, a enfrentar filas para ser atendido.
A burocracia é instrumento de organização das atividades administra-
tivas do setor público, mas seu excesso gera custos e até mesmo injustiças,
na medida em que dificulta o acesso dos cidadãos aos serviços. Não se
pode admitir que um desvio na prestação de serviços públicos que impede
seu gozo pelos cidadãos seja apontado e aceito como traço cultural.

Sobre o autor
Marco Aurélio Gumieri Valério é doutor em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista,
São Paulo, SP, Brasil; doutorando em Direito na Universidade de São Paulo (USP), São Paulo,
SP, Brasil; professor do programa de graduação da Faculdade de Economia, Administração
e Contabilidade da USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil; professor do programa de pós-graduação
em Integração da América Latina da USP, São Paulo, SP, Brasil; advogado; membro da
Comissão Especial de Ensino Jurídico da Ordem dos Advogados do Brasil, seção de São
Paulo, SP, Brasil.
E-mail: [email protected]

Como citar este artigo


(ABNT)
VALÉRIO, Marco Aurélio Gumieri. Atos notariais por meios eletrônicos: a quarentena
trouxe o futuro aos cartórios e tabelionatos. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília,
DF, v. 58, n. 231, p. 201‑211, jul./set. 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/
ril/edicoes/58/231/ril_v58_n231_p201
(APA)
Valério, M. A. G. (2021). Atos notariais por meios eletrônicos: a quarentena trouxe o futuro
aos cartórios e tabelionatos. Revista de Informação Legislativa: RIL, 58(231), 201‑211.
Recuperado de https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/231/ril_v58_n231_p201

Referências
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RIL Brasília a. 58 n. 231 p. 201-211 jul./set. 2021 209


______. Lei no 11.419, de 19 de dezembro de 2006. Dispõe sobre a informatização do processo
judicial; altera a Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil; e dá
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______. Lei no 12.682, de 9 de julho de 2012. Dispõe sobre a elaboração e o arquivamento de
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______. Lei no 13.874, de 20 de setembro de 2019. Institui a Declaração de Direitos de
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