Revista de Informação Legislativa: Abril A Junho de 2021

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ISSN 0034‑835X

e-ISSN 2596-0466

REVISTA DE
INFORMAÇÃO
LEGISLATIVA

Ano 58

230
abril a junho de 2021
SENADO FEDERAL
Mesa
Biênio 2021 – 2022

Senador Rodrigo Pacheco


PRESIDENTE

Senador Veneziano Vital do Rêgo


PRIMEIRO-VICE-PRESIDENTE

Senador Romário
SEGUNDO-VICE-PRESIDENTE

Senador Irajá
PRIMEIRO-SECRETÁRIO

Senador Elmano Férrer


SEGUNDO-SECRETÁRIO

Senador Rogério Carvalho


TERCEIRO-SECRETÁRIO

Senador Weverton
QUARTO-SECRETÁRIO

SUPLENTES DE SECRETÁRIO
Senador Jorginho Mello
Senador Luiz do Carmo
Senadora Eliziane Gama
Senador Zequinha Marinho
ISSN 0034‑835X
e-ISSN 2596-0466

REVISTA DE
INFORMAÇÃO
LEGISLATIVA
Brasília – DF

Ano 58

230
abril a junho de 2021
Missão
A Revista de Informação Legislativa (RIL) é uma publicação trimestral, produzida pela Coordenação
de Edições Técnicas do Senado Federal. Publicada desde 1964, a Revista tem divulgado artigos
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Sua missão é contribuir para a análise dos grandes temas em discussão na sociedade brasileira
e, consequentemente, em debate no Congresso Nacional.

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Produzida na Coordenação de Edições Técnicas
Coordenador: Aloysio de Brito Vieira
Editor Responsável: Aloysio de Brito Vieira. Editor Executivo: Raphael Melleiro. Gestão de
Submissão: Glaucia Cruz. Revisão: Vilma de Sousa e Walfrido Vianna. Editoração: Gilmar Rodrigues
e Rejane Campos. Não são objeto de revisão artigos ou segmentos de texto redigidos em língua
estrangeira.

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Revista de Informação Legislativa / Senado Federal. – Ano 1, n. 1 (mar. 1964). – Brasília,


DF : Senado Federal, 1964-.
Trimestral.
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publicada pela Diretoria de Informação Legislativa; ano 9-50, n. 34-198, publicada pela
Subsecretaria de Edições Técnicas; ano 50-, n. 199-, publicada pela Coordenação de
Edições Técnicas.
ISSN 0034-835X (Impresso)
ISSN 2596-0466 (Online)
1. Direito – Periódico. I. Brasil. Congresso. Senado Federal, Coordenação de Edições
Técnicas.
CDD 340.05
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Fischer, Centro Universitário Autônomo do Brasil, Curitiba, PR, Brasil / Dr. Roger Stiefelmann Leal,
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Alegre, RS, Brasil / Dr. Adrualdo de Lima Catão, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, AL,
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Goiás, Goiânia, GO, Brasil / Dr. Álvaro José Bettanin Carrasco, Procuradoria-Geral Federal,
Canoas, RS, Brasil / Dra. Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave, Universidade Federal do Rio
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Paulo, SP, Brasil / Dra. Ana Claudia Santano, Centro Universitário Autônomo do Brasil, Curitiba,
PR, Brasil / Dra. Ana Virginia Moreira Gomes, Universidade de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil /
Dr. André Felipe Canuto Coelho, Faculdade Damas, Recife, PE, Brasil / Dr. André Guilherme
Lemos Jorge, Universidade Nove de Julho, São Paulo, SP, Brasil / Dr. André Saddy, Universidade
Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil / Dr. André de Souza Dantas Elali, Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil / Dra. Anelise Coelho Nunes, Rede Metodista de Educação,
Porto Alegre, RS, Brasil / Dr. Antonio Celso Baeta Minhoto, Universidade Cruzeiro do Sul, São
Paulo, SP, Brasil / Dr. Antonio Henrique Graciano Suxberger, UniCEUB, Brasília, DF, Brasil /
Dr. Antonio Sergio Cordeiro Piedade, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, MT, Brasil /
Me. Antonio de Holanda Cavalcante Segundo, Leandro Vasques Advogados Associados,
Fortaleza, CE, Brasil / Dr. Artur Stamford da Silva, Universidade Federal de Pernambuco, Recife,
PE, Brasil / Dra. Beatriz Schettini, Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, MG, Brasil /
Dr. Benedito Cerezzo Pereira Filho, Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil / Dr. Benjamin
Miranda Tabak, Universidade Católica de Brasília, Brasília, DF, Brasil / Dra. Betina Treiger
Grupenmacher, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil / Dra. Betânia de Moraes
Alfonsin, Fundação Escola Superior do Ministério Público, Porto Alegre, RS, Brasil / Me. Bruno
Cavalcanti Angelin Mendes, Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, RJ, Brasil / Dr. Bruno
Meneses Lorenzetto, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, PR, Brasil / Me. Caio
Alexandre Capelari Anselmo, Ministério Público Federal, São Paulo, SP, Brasil / Dr. Caio Gracco
Pinheiro Dias, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil / Dr. Camilo Zufelato,
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil / Dr. Carlos Augusto Daniel Neto, Centro de
Estudos de Direito Econômico e Social, São Paulo, SP, Brasil / Dr. Carlos Eduardo Silva e Souza,
Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, MT, Brasil / Me. Carlos Henrique Rubens Tomé
Silva, Senado Federal, Brasília, DF, Brasil / Dr. Carlos Magno Spricigo Venerio, Universidade
Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil / Ma. Caroline Somesom Tauk, Tribunal Regional Federal
da 2a Região, Rio de Janeiro, RJ, Brasil / Dr. Celso de Barros Correia Neto, Universidade Católica
de Brasília, Brasília, DF, Brasil / Dr. Cláudio Araújo Reis, Universidade de Brasília, Brasília, DF,
Brasil / Dr. Claudio Ferreira Pazini, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil /
Dr. Cristiano Gomes de Brito, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil /
Dr. Cristiano Heineck Schmitt, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, RS, Brasil / Dr. Cristiano Lange dos Santos, Laboratório de Análise de Políticas Públicas e
Sociais, Porto Alegre, RS, Brasil / Dra. Cynthia Soares Carneiro, Universidade de São Paulo,
Ribeirão Preto, SP, Brasil / Dr. Dani Rudnicki, Universidade La Salle, Canoas, RS, Brasil /
Dra. Daniela de Melo Crosara, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil /
Dra. Danielle Annoni, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil /
Dra. Danielle Souza de Andrade e Silva Cavalcanti, Universidade Federal de Pernambuco, Recife,
PE, Brasil / Dr. Danilo Fontenele Sampaio Cunha, Centro Universitário 7 de Setembro, Fortaleza,
CE, Brasil / Dr. Davi Augusto Santana de Lelis, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
Belo Horizonte, MG, Brasil / Me. Devanildo Braz da Silva, Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul, Campo Grande, MS, Brasil / Dr. Dircêo Torrecillas Ramos, Fundação Getulio Vargas, São
Paulo, SP, Brasil / Dr. Edinilson Donisete Machado, Universidade Estadual do Norte do Paraná,
Jacarezinho, PR, Brasil / Dr. Eduardo Modena Lacerda, Senado Federal, Brasília, DF, Brasil /
Dr. Eduardo Rocha Dias, Universidade de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil / Dra. Eneida Desiree
Salgado, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil / Dr. Eriberto Francisco Bevilaqua
Marin, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO, Brasil / Dr. Eugênio Facchini Neto, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil / Dra. Fabiana Santos
Dantas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil / Me. Fábio Feliciano Barbosa,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil / Dra. Fabíola Albuquerque Lobo,
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil / Dr. Federico Nunes de Matos,
Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, MG, Brasil / Dr. Felipe Lima Gomes, Universidade
Federal do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil / Dra. Fernanda Dalla Libera Damacena, Ambrósio e Dalla
Libera Advogados Associados, Porto Alegre, RS, Brasil / Dr. Fernando Angelo Ribeiro Leal,
Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil / Dr. Fernando Antonio Nogueira Galvão da
Rocha, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil / Dr. Fernando Boarato
Meneguin, Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasília, DF, Brasil / Dr. Fernando Gaburri de
Souza Lima, Universidade Estadual do Rio Grande do Norte, Mossoró, RN, Brasil / Dr. Fernando
Laércio Alves da Silva, Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, MG, Brasil / Dr. Fernando Nagib
Marcos Coelho, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil / Dr. Fernando de Brito
Alves, Universidade Estadual do Norte do Paraná, Jacarezinho, PR, Brasil / Dr. Flávio Barbosa
Quinaud Pedron, Faculdade Guanambi, Guanambi, BA, Brasil / Dr. Francisco Antônio de Barros e
Silva Neto, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil / Me. Frederico Augusto
Leopoldino Koehler, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil / Dr. Guilherme
Brenner Lucchesi, Centro Universitário Curitiba, Curitiba, PR, Brasil / Dr. Guilherme Tanger Jardim,
Fundação Escola Superior do Ministério Público, Porto Alegre, RS, Brasil / Me. Guilherme da
Franca Couto Fernandes de Almeida, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, RJ, Brasil / Dr. Gustavo Costa Nassif, Instituto de Defesa da Cidadania e da Transparência,
Belo Horizonte, MG, Brasil / Dr. Gustavo Ferreira Ribeiro, UniCEUB, Brasília, DF, Brasil / Dr. Gustavo
Saad Diniz, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil / Dr. Gustavo Schneider Fossati,
Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil / Me. Gustavo Silva Calçado, Universidade
Tiradentes, Aracaju, SE, Brasil / Dra. Heloisa Fernandes Câmara, Centro Universitário Curitiba,
Curitiba, PR, Brasil / Dr. Henrique Aniceto Kujawa, Faculdade Meridional, Passo Fundo, RS,
Brasil / Dr. Henrique Fernando de Mello, Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, São José do
Rio Preto, SP, Brasil / Dra. Iara Antunes de Souza, Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro
Preto, MG, Brasil / Dr. Ielbo Marcus Lobo de Souza, Universidade Federal da Paraíba, João
Pessoa, PB, Brasil / Dr. Ilzver Matos de Oliveira, Universidade Tiradentes, Aracaju, SE, Brasil /
Dr. Ivar Alberto Martins Hartmann, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil / Dr. Jahyr-
Philippe Bichara, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil / Dr. Jailton
Macena de Araújo, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil / Dr. Jair Aparecido
Cardoso, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil / Ma. Janaína Gomes Garcia de
Moraes, Tilburg University, Haia, Países Baixos / Dr. Jayme Benvenuto Lima Junior, Universidade
Federal da Integração Latino-Americana, Foz do Iguaçu, PR, Brasil / Dr. Jefferson Aparecido Dias,
Procuradoria da República de São Paulo, Marília, SP, Brasil / Me. Jordan Vinícius de Oliveira,
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil / Dr. Jorge Luís Mialhe,
Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, SP, Brasil / Dr. José Carlos Evangelista Araújo,
Faculdades de Campinas, Campinas, SP, Brasil / Dr. José Filomeno de Moraes Filho, Universidade
Federal do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil / Dr. José Tadeu Neves Xavier, Fundação Escola Superior
do Ministério Público, Porto Alegre, RS, Brasil / Dr. José dos Santos Carvalho Filho, Instituto
Brasiliense de Direito Público, Brasília, DF, Brasil / Dr. João Aparecido Bazolli, Universidade
Federal do Tocantins, Palmas, TO, Brasil / Me. João Pedro Kostin Felipe de Natividade, Natividade
Sociedade de Advogados, Curitiba, PR, Brasil / Me. João Vicente Rothfuchs, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil / Dra. Julia Sichieri Moura,
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil / Dra. Juliane Sant’Ana Bento,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil / Dr. Júlio César Faria Zini,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil / Ma. Larissa Lauda Burmann,
Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, MT, Brasil / Dr. Lauro Ishikawa, Faculdade
Autônoma de Direito, São Paulo, SP, Brasil / Ma. Lavínia Cavalcanti Lima Cunha, Universidade
Federal de Alagoas, Maceió, AL, Brasil / Dra. Leila Giandoni Ollaik, Ministério da Economia,
Brasília, DF, Brasil / Dra. Leila Maria da Juda Bijos, Universidade Católica de Brasília, Brasília, DF,
Brasil / Me. Leonardo Geliski, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS,
Brasil / Dr. Leonardo Martins, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil /
Ma. Licemar Vieira Melo, Unisinos, Passo Fundo, RS, Brasil / Ma. Lilian Barros de Oliveira Almeida,
Advocacia-Geral da União, Brasília, DF, Brasil / Ma. Lorena Abbas, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil / Dr. Lucas Catib de Laurentiis, Pontifícia Universidade Católica
de Campinas, Campinas, SP, Brasil / Dr. Lucas Rodrigues Cunha, Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil / Dra. Luciana Cordeiro de Souza Fernandes, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil / Dra. Luciana Cristina de Souza, Faculdade Milton
Campos, Nova Lima, MG, Brasil / Dra. Luciana de Souza Ramos, Centro Universitário de Ensino
Superior do Amazonas, Manaus, AM, Brasil / Dr. Luciano Santos Lopes, Faculdade Milton
Campos, Nova Lima, MG, Brasil / Dr. Luiz Caetano de Salles, Universidade Federal de Uberlândia,
Uberlândia, MG, Brasil / Dr. Luiz Carlos Goiabeira Rosa, Universidade Federal de Uberlândia,
Uberlândia, MG, Brasil / Dr. Luiz Felipe Monteiro Seixas, Universidade Federal Rural do Semi-
Árido, Mossoró, RN, Brasil / Dr. Luiz Fernando Afonso, Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, SP, Brasil / Dr. Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme, Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP, Brasil / Dr. Luís Alexandre Carta Winter, Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, Curitiba, PR, Brasil / Dra. Lídia Maria Lopes Rodrigues Ribas,
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, Brasil / Dr. Marcelo Antonio
Theodoro, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, MT, Brasil / Dr. Marcelo Casseb
Continentino, Procuradoria-Geral do Estado de Pernambuco, Recife, PE, Brasil / Dr. Marcelo
Schenk Duque, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil / Dr. Marcelo
Weick Pogliese, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil / Dr. Marcilio Toscano
Franca Filho, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil / Dr. Márcio Alexandre da
Silva Pinto, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil / Dr. Marcio Iorio Aranha,
Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil / Dr. Marco Bruno Miranda Clementino, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil / Dr. Marco Félix Jobim, Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil / Dr. Marcos Augusto de Albuquerque
Ehrhardt Júnior, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, AL, Brasil / Dr. Marcos Jorge Catalan,
Universidade La Salle, Canoas, RS, Brasil / Dr. Marcos Roberto de Lima Aguirre, Verbo Jurídico,
Porto Alegre, RS, Brasil / Dra. Maria Auxiliadora Minahim, Universidade Federal da Bahia,
Salvador, BA, Brasil / Dra. Mariah Brochado Ferreira, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, MG, Brasil / Ma. Mariana Cirne Barbosa, UniCEUB, Brasília, DF, Brasil / Ma. Marina
Soares Marinho, Advocacia-Geral da União, Belo Horizonte, MG, Brasil / Me. Martin Pino, Escola
Superior de Advocacia da OAB, São Paulo, SP, Brasil / Dra. Maurinice Evaristo Wenceslau,
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, Brasil / Dr. Mauro Fonseca
Andrade, Fundação Escola Superior do Ministério Público, Porto Alegre, RS, Brasil /
Me. Maximiliano Vieira Franco de Godoy, Senado Federal, Brasília, DF, Brasil / Dra. Micheli Pereira
de Melo, Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, Marabá, PA, Brasil / Dra. Monica
Paraguassu Correia da Silva, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil / Dra. Mônica
Herman Salem Caggiano, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil / Dr. Nestor Eduardo
Araruna Santiago, Universidade de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil / Dr. Neuro José Zambam,
Faculdade Meridional, Passo Fundo, RS, Brasil / Dr. Nilson Tadeu Reis Campos Silva, Universidade
Estadual do Norte do Paraná, Jacarezinho, PR, Brasil / Dra. Nina Trícia Disconzi Rodrigues,
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil / Dr. Osvaldo Ferreira de Carvalho,
Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, GO, Brasil / Dr. Pablo Georges Cícero Fraga
Leurquin, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil / Dra. Patrícia Borba Vilar
Guimarães, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil / Dr. Paul Hugo
Weberbauer, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil / Dr. Paulo César Busato,
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil / Dr. Paulo César Pinto de Oliveira,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil / Dr. Paulo Fernando Soares
Pereira, Advocacia-Geral da União, São Luís, MA, Brasil / Dr. Paulo Henrique da Silveira Chaves,
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil / Dr. Paulo Lopo Saraiva, Faculdade
Maurício de Nassau, Natal, RN, Brasil / Dr. Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, Universidade Santa
Cecília, Santos, SP, Brasil / Ma. Priscilla Cardoso Rodrigues, Universidade de Coimbra, Coimbra,
Portugal / Me. Rafael Diogo Diógenes Lemos, UniFanor, Aracaju, RN, Brasil / Me. Rafael Reis
Ferreira, Universidade Federal de Roraima, Boa Vista, RR, Brasil / Me. Rafael Santos Soares,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil / Dr. Rafael Silveira e Silva,
Instituto Legislativo Brasileiro, Brasília, DF, Brasil / Dr. Raoni Macedo Bielschowsky, Universidade
Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil / Dr. Raphael Peixoto de Paula Marques, Advocacia-
Geral da União, Brasília, DF, Brasil / Dra. Regina Stela Corrêa Vieira, Universidade do Oeste de
Santa Catarina, Chapecó, SC, Brasil / Dra. Renata Rodrigues de Castro Rocha, Universidade
Federal do Tocantins, Palmas, TO, Brasil / Dr. Ricardo Sontag, Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil / Dra. Rita de Cássia Corrêa de Vasconcelos, Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, Curitiba, PR, Brasil / Dra. Roberta Correa de Araujo, Faculdade
de Olinda, Olinda, PE, Brasil / Dr. Roberto Gomes de Albuquerque Melo Júnior, Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil / Dr. Roberto Henrique Pôrto Nogueira, Universidade
Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, MG, Brasil / Dr. Rodrigo Grazinoli Garrido, Universidade
Católica de Petrópolis, Petrópolis, RJ, Brasil / Dr. Rodrigo Leite Ferreira Cabral, Ministério Público
do Estado do Paraná, Curitiba, PR, Brasil / Dr. Rodrigo Nóbrega Farias, Universidade Estadual da
Paraíba, Guarabira, PB, Brasil / Me. Rodrigo da Silva Brandalise, Universidade de Lisboa, Lisboa,
Portugal / Dra. Rosalice Fidalgo Pinheiro, Centro Universitário Autônomo do Brasil, Curitiba, PR,
Brasil / Dr. Rubens Beçak, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil / Dr. Rubens Valtecides
Alves, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil / Dra. Rubia Carneiro Neves,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil / Dra. Salete Oro Boff,
Faculdade Meridional, Passo Fundo, RS, Brasil / Dra. Sandra Mara Campos Alves, Fundação
Oswaldo Cruz, Brasília, DF, Brasil / Dr. Sandro Marcelo Kozikoski, Universidade Federal do
Paraná, Curitiba, PR, Brasil / Dr. Saulo Nunes de Carvalho Almeida, Centro Universitário Católica
de Quixadá, Fortaleza, CE, Brasil / Dra. Sônia Letícia de Méllo Cardoso, Universidade Estadual de
Maringá, Maringá, PR, Brasil / Dr. Tarsis Barreto Oliveira, Universidade Federal do Tocantins,
Palmas, TO, Brasil / Dr. Thiago Rodrigues Silame, Universidade Federal de Alfenas, Alfenas, MG,
Brasil / Dr. Tiago Cappi Janini, Universidade Estadual do Norte do Paraná, Jacarezinho, PR,
Brasil / Dr. Tiago Ivo Odon, Senado Federal, Brasília, DF, Brasil / Dr. Túlio Chaves Novaes,
Universidade Federal do Oeste do Pará, Santarém, PA, Brasil / Dra. Valéria Ribas do Nascimento,
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil / Dr. Vallisney de Souza Oliveira,
Justiça Federal, Brasília, DF, Brasil / Dr. Valter Rodrigues de Carvalho, Universidade Cruzeiro do
Sul, São Paulo, SP, Brasil / Dra. Vanessa Spinosa, Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Natal, RN, Brasil / Dra. Veridiana Pereira Parahyba Campos, Fundação Carlos Chagas, Caxingui,
SP, Brasil / Dr. Vicente Riccio Neto, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG,
Brasil / Dr. Vicente de Paula Ataide Junior, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil /
Dr. Vinicius Pinheiro Marques, Universidade Federal do Tocantins, Palmas, TO, Brasil / Dr. Vladimir
da Rocha França, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil / Dra. Vânia
Siciliano Aieta, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil /
Dr. Wagner Silveira Feloniuk, Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, RS, Brasil /
Dra. Walkiria Martinez Heinrich Ferrer, Universidade de Marília, Marília, SP, Brasil / Dr. Walter
Claudius Rothenburg, Instituição Toledo de Ensino, Bauru, SP, Brasil / Dr. Walter Guandalini
Junior, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil / Dr. William Soares Pugliese, Centro
Universitário Autônomo do Brasil, Curitiba, PR, Brasil / Me. Wlademir Paes de Lira, Universidade
de Coimbra, Coimbra, Portugal

Autores
Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno é doutor e mestre em Filosofia do Direito pela Faculdade
de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil; professor
do programa de pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
Belo Horizonte, MG, Brasil; professor titular de Teoria e Filosofia do Direito da Faculdade de
Direito da UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil. / Ana Tereza Marques Parente é mestra em Direito
pela Universidade de Salamanca, Salamanca, Espanha; pesquisadora do Centro de Estudos
em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. / Bruno
Dantas é doutor e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo, SP, Brasil; pós-doutor em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Rio
de Janeiro, RJ, Brasil; pesquisador visitante na Benjamin N. Cardozo School of Law, EUA, no Max
Planck Institute for Regulatory Procedural Law, Luxemburgo, e no Institut de Recherche Juridique
de l’Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne, França; professor adjunto da graduação, do mestrado
e doutorado em Direito da UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil; professor associado do mestrado
e doutorado em Direito da Regulação da Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil;
professor titular do mestrado e doutorado em Direito da Universidade Nove de Julho, São Paulo,
SP, Brasil; ministro do Tribunal de Contas da União, Brasília, DF, Brasil. / Bruno Gomes Borges da
Fonseca é doutor e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de
Vitória (FDV), Vitória, ES, Brasil; pós-doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil, e pela Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória,
ES, Brasil; professor da graduação e da pós-graduação em Direito da FDV, Vitória, ES, Brasil;
procurador do Trabalho na 17a Região, Vitória, ES, Brasil. / Carla Reita Faria Leal é doutora e
mestra em Direito das Relações Sociais, subárea Direito do Trabalho, pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil; professora de Direito associada da Faculdade de
Direito da Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, MT, Brasil; juíza aposentada do Tribunal
Regional do Trabalho da 23a Região, Cuiabá, MT, Brasil. / Dulcely Silva Franco é mestra em
Direito Agroambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, MT, Brasil; professora
substituta do curso de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso, Diamantino, MT,
Brasil. / Evandro Caldas é mestre em Direito da Regulação pela Fundação Getulio Vargas, Rio
de Janeiro, RJ, Brasil; pós-graduado em Direito Público pela Faculdade de Direito de Campos,
Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil; procurador-geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás
Natural e Biocombustíveis. / Fernanda Martins é mestra em Direito da Regulação pela Fundação
Getulio Vargas (FGV), Rio de Janeiro, RJ, Brasil; bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior; pesquisadora do Centro de Pesquisa em Direito e Economia da
FGV, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. / Júlio Aguiar de Oliveira é doutor e mestre em Filosofia do Direito
pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil;
professor do programa de pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil; professor associado do Departamento de Direito da
Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, MG, Brasil. / Leonel Pires Ohlweiler é doutor
e mestre em Direito pela Unisinos, São Leopoldo, RS, Brasil; pós-doutor pela Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil; desembargador do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil; professor da graduação e da pós-graduação da
Universidade La Salle, Canoas, RS, Brasil. / Lucas Fucci Amato é doutor e bacharel em Direito
pela Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil; pós-doutor pela USP, São Paulo,
SP, Brasil, com estágio pós-doutoral na Universidade de Oxford, Oxford, Reino Unido, e estágio
doutoral na Harvard Law School, Cambridge, Massachusetts, EUA; professor da graduação e da
pós-graduação (mestrado e doutorado) do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito
da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, SP, Brasil; pesquisador associado da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. / Natasha Schmitt Caccia
Salinas é doutora e mestra em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, São Paulo, SP, Brasil; master of Laws pela Yale Law School, New Haven, Connecticut,
EUA; professora da graduação e da pós-graduação da Escola de Direito do Rio de Janeiro da
Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. / Patrícia Regina Pinheiro Sampaio é doutora
e mestra em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP,
Brasil; professora da graduação e da pós-graduação da Escola de Direito do Rio de Janeiro da
Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. / Ricardo de João Braga é doutor em Ciência
Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, RJ, Brasil; mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília, Brasília,
DF, Brasil; mestre em Ciência Política pela Universität Siegen, Siegen, Nordrhein-Westfalen,
Alemanha; pós-graduado em Políticas Públicas e Gestão Governamental pela Escola Nacional
de Administração Pública, Brasília, DF, Brasil; professor do programa de pós-graduação do Cefor
da Câmara dos Deputados, Brasília, DF, Brasil; analista legislativo da Câmara dos Deputados,
Brasília, DF, Brasil. / Roberto Campos da Rocha Miranda é doutor e mestre em Ciência da
Informação pela Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil; pós-graduado em Psicologia Clínica
pela Universidade de Araraquara, Araraquara, SP, Brasil; pós-graduado em Administração de
Recursos Humanos no Setor Público pela Universidade Cândido Mendes, Brasília, DF, Brasil;
professor do programa de pós-graduação do Cefor da Câmara dos Deputados, Brasília, DF,
Brasil; analista legislativo da Câmara dos Deputados, Centro de Documentação e Informação,
Brasília, DF, Brasil. / Tarsila Ribeiro Marques Fernandes é doutora em Direito pela Radboud
University, Nijmegen, Gelderland, Países Baixos; mestra em Direito Tributário pela Universidade
Católica de Brasília, Brasília, DF, Brasil; professora da pós-graduação do Instituto Brasiliense de
Direito Público, Brasília, DF, Brasil; procuradora federal, Brasília, DF, Brasil; assessora de ministro
do Supremo Tribunal Federal, Brasília, DF, Brasil. / Thiago Álvares Feital é mestre em Direito
pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil; doutorando em
Direito na UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil; especialista em Direito Tributário pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil; professor de Direito Tributário
nas Faculdades Milton Campos, Belo Horizonte, MG, Brasil. / Vitor Salino de Moura Eça é
doutor e mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC-MG), Belo Horizonte, MG, Brasil; pós-doutor em Direito Processual Comparado pela
Universidad Castilla-La Mancha, Ciudad Real, Espanha, e em Direito Processual Internacional
pela Universidad de Talca, Talca, Chile; professor do programa de mestrado e doutorado em
Direito na área de Direito Processual da PUC-MG, Belo Horizonte, MG, Brasil; juiz do Trabalho no
Tribunal Regional do Trabalho da 3a Região, Belo Horizonte, MG, Brasil.
Sumário

Autores convidados

11 A sistemática de conteúdo local e a cooperação entre TCU e ANP


Um passo importante rumo à coerência regulatória
Bruno Dantas
Evandro Caldas
Fernanda Martins

Artigos

29 Fake news
Regulação ou metarregulação?
Lucas Fucci Amato

55 A produção normativa das agências reguladoras


Limites para eventual controle da atuação regulatória
da Anvisa em resposta à Covid-19
Natasha Schmitt Caccia Salinas
Patrícia Regina Pinheiro Sampaio
Ana Tereza Marques Parente

85 Informação legislativa e correlatas


Como conceituar?
Roberto Campos da Rocha Miranda
Ricardo de João Braga

111 A necessária proteção jurídica aos trabalhadores que exercem


trabalho penoso no corte manual da cana-de-açúcar
Dulcely Silva Franco
Carla Reita Faria Leal

133 Democracia defensiva


Origens, conceito e aplicação prática
Tarsila Ribeiro Marques Fernandes

Os conceitos emitidos em artigos de colaboração são de


responsabilidade de seus autores.
149 Suspeição do juiz por relacionamento pessoal ou relação
de parentesco com advogado no Direito alemão
Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno
Júlio Aguiar de Oliveira

175 Teoria constitucional do Direito do Trabalho brasileiro


na perspectiva de Oliveira Vianna
Vitor Salino de Moura Eça
Bruno Gomes Borges da Fonseca

195 Perspectivas sociojurídicas do poder de polícia


sanitário e emergência de saúde pública
Vulnerabilidades e o enfoque dos direitos humanos
Leonel Pires Ohlweiler

Artigo em língua estrangeira

219 Tax regressivity as indirect discrimination


An analysis of the Brazilian tax system in light of the principle of non-discrimination
Thiago Álvares Feital
A sistemática de conteúdo local e a
cooperação entre TCU e ANP
Um passo importante rumo à coerência regulatória

BRUNO DANTAS
EVANDRO CALDAS
FERNANDA MARTINS

Resumo: O Tribunal de Contas da União realizou auditoria operacional


para avaliar a Política de Conteúdo Local nas licitações do mercado de
petróleo e gás, bem como as implicações e os impactos da ausência de
regulamentação adequada sobre o tema dentro da Agência Nacional de
Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Esse Tribunal fez recomendações
e determinações à Agência e ao Ministério de Minas e Energia, e acabou
por contribuir de forma efetiva para o aprimoramento regulatório da
matéria. Investiga-se, no presente artigo, se é possível haver uma atuação
coordenada de um agente regulador e seu controlador ou se, invariavel-
mente, pode-se pressupor certa dose de conflito entre eles.

Palavras-chave: Controle externo. Agências reguladoras. Conteúdo


local. Coerência regulatória.

The local content system and the cooperation between TCU


and ANP: an important step toward regulatory coherence

Abstract: The Audit Court of the Union has carried out an operational
audit in order to evaluate the Local Content Policy in the oil and gas market
bids, as well as the implications and impacts of the absence of adequate
regulation on the subject within the National Agency for Petroleum,
Natural Gas and Biofuels. The Court has made recommendations and
determinations to the Agency and the Ministry of Mines and Energy and
ended up by effectively contributing to the regulatory improvement of the
matter. This paper investigates whether it is possible to have a coordinated
action of a regulating agent and its controller, or if invariably one can
assume a dose of conflict between them.

Autores convidados

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 11-27 abr./jun. 2021 11


Keywords: External control. Regulatory agencies. Local content.
Regulatory coherence.

Introdução

O presente artigo discute a atuação do Tribunal de Contas da União


(TCU) na melhoria do arcabouço regulatório relativo à Política de
Conteúdo Local vigente nas licitações do mercado de petróleo e gás
natural brasileiro. Trata-se de um estudo de caso em que o Tribunal
se utilizou de seu potencial no desenvolvimento de análises técnicas
para identificar possibilidades de aprimoramento de uma política im-
plementada por um Ministério e por uma agência reguladora. Ao fim,
a atuação harmoniosa e coordenada dessas figuras acabou levando à
efetiva melhoria do arcabouço regulatório no que se refere à Política de
Conteúdo Local brasileira em matéria de petróleo, tendo sido a auditoria
operacional do TCU um dos pontapés iniciais para esse movimento.
O problema de pesquisa – que é amplo e extrapola a possibilidade
de apreciação em sua totalidade neste trabalho – gira em torno do
aprimoramento da qualidade regulatória do País por meio do diálogo
institucional e da harmonização de interesses e ferramentas de que
dispõem autoridades reguladoras e o controlador externo.
Questiona-se se entre um agente regulador e seu controlador há
uma relação que invariavelmente caracterizará certo conflito ou se
há espaço para que, de alguma forma, se coordenem, com o objetivo
de promover a melhor realização do interesse público. A hipótese
preliminar é de que há, sim, a possibilidade de estabelecimento de um
diálogo entre controlador e controlado, de modo que se construa um
espaço harmônico para o compartilhamento de soluções dotadas de
visão prospectiva e fundadas em uma análise sistêmica, que aproveita
o melhor dos dois mundos.
A ideia central que deve guiar a leitura é a de que, uma vez defini-
das as competências de cada órgão ou entidade no contexto do Estado
regulador, seja incutida nestes atores a noção de que mais importante
que investir esforços em traçar os espaços de sua competência é de-
senvolver a capacidade de articular-se institucionalmente para atender
ao melhor interesse público. Pode-se usar a expressão “autocrítica” no
sentido de que a cada um deve caber o papel de, reflexivamente, entender
suas funções no sistema regulatório, de modo a contribuir para o seu
funcionamento com a maior harmonia possível.

12 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 11-27 abr./jun. 2021


A análise do Acórdão TCU/Plenário no 3.072/2016 (BRASIL, 2016)
explora o controle externo e a regulação setorial com o propósito de
verificar se há um conflito intrínseco nas relações estabelecidas entre
atores que desempenham tais funções. Neste caso estuda-se especifi-
camente a função regulatória desempenhada pela Agência Nacional
do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), bem como o papel
fiscalizatório do TCU para, por fim, demonstrar que é possível – e, por
vezes, desejável – o estabelecimento de uma racionalidade cooperativa
entre o regulador e seu controlador. Este estudo revela um caso de alta
complexidade, que se relaciona a conceitos como Administração poli-
cêntrica, Estado regulador, poder normativo das agências reguladoras
e reserva de regulação; discricionariedade administrativa; capacidades
institucionais e deferência judicial; consensualidade na Administração
Pública, entre outros.

1 Controle externo e regulação setorial: conflito


de instituições?

1.1 A função regulatória da ANP

No Brasil, o advento do Estado regulador manifestou-se de maneira


mais intensa entre 1995 e 2003, sob a ideia de que o Estado deveria
assumir um papel meramente regulador sobre alguns setores e deixar de
dirigir a economia, passando a acompanhar de perto certos fenômenos
com a intenção de preveni-los ou mitigar-lhes os efeitos.
Com a criação das agências reguladoras, determinados setores
da economia passaram a ser regulados por órgãos técnicos e com
independência em relação ao governo central. O Estado regulador
não desempenha somente as funções estatais clássicas de intervenção
direta, serviço público, fomento e poder de polícia: a função regulató-
ria congrega em si parcelas de competências decorrentes de cada uma
dessas funções, sob configuração própria e específica para cada setor.
A função principal de regulação é, portanto, a de atuar de maneira
eficiente, moldando o comportamento dos agentes do mercado de forma
a produzir o melhor resultado possível para a sociedade. Faz-se isso
por meio de ferramentas intercambiáveis, que variam de acordo com
o caso concreto. Sobre a regulação, esclarece Guerra (2018, p. 11) que

é uma espécie de intervenção estatal, porém, indireta, que alcança ativi-


dades econômicas e sociais, visando, basicamente, a implementação de
políticas públicas e a realização dos direitos sociais. Para alcançar seus

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 11-27 abr./jun. 2021 13


objetivos, a função de regulação deve perseguir o equilíbrio sistêmico dos
setores regulados e, para tanto, deve se valer de uma visão prospectiva,
de modo a se afastar das decisões de momento e sem sustentabilidade.
A base de suas escolhas deve ser a preponderância técnica (não política),
de modo a reduzir-se a pura discricionariedade.

O ideal, portanto, é que o desempenho da função regulatória seja feito


da forma mais técnica possível, o que o Estado tem conseguido realizar
por meio das agências reguladoras, dotadas de poderes normativos, fisca-
lizatórios e sancionatórios – como é o caso da ANP (INSTITUCIONAL,
[20--]), que atua para garantir que o mercado de petróleo e gás natural goze,
entre outras características, da segurança jurídica necessária à atração de
investimentos e à promoção do desenvolvimento nacional, em cumpri-
mento à Política Energética Nacional emanada da Administração Direta:

A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis é o


órgão federal responsável pela regulação das indústrias de petróleo e gás
natural e de biocombustíveis no Brasil. Vinculada ao Ministério de Minas
e Energia, é uma autarquia federal especial que executa a política nacional
para o setor, com foco na garantia do abastecimento de combustíveis e
na defesa dos interesses dos consumidores. A Agência tem atuação “do
poço ao posto”, ou seja, regula mais de 110 mil empresas, em atividades
desde a prospecção de petróleo e gás natural nas bacias sedimentares
do Brasil até os procedimentos para assegurar a qualidade dos combus-
tíveis vendidos ao consumidor final. A atividade de regulação implica,
necessariamente, a constante fiscalização do cumprimento das normas
estabelecidas (INSTITUCIONAL, [20--], grifos nossos).

Há que se fazer uma ressalva no sentido de que a elaboração de uma


política pública (policy-making process) não se dá em movimento único
e isolado. Assemelha-se mais a um processo e é comumente ilustrada na
figura de um ciclo, o “ciclo de políticas públicas” (policy cycle), “formado
por vários estágios e constituindo um processo dinâmico e de aprendizado”
(SOUZA, 2006, p. 29) em que vários atores governamentais são envolvidos
e têm suas atribuições distribuídas ao longo da cadeia.
A divisão de competências que se pretende explorar neste artigo é a
de que: (i) a elaboração de políticas públicas em matéria de petróleo fica
a cargo da Administração Direta no âmbito do Poder Executivo, neste
caso correspondente à União, ao Ministério de Minas e Energia (MME),
ao Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) e ainda ao Poder
Legislativo, que traça os limites desta política pública por meio da edição
de uma lei estandardizada, aberta a certa dose de discricionariedade do
órgão regulador; (ii) o desempenho da função regulatória, da forma
mais técnica possível, é atribuído à figura da ANP, dotada de poderes
normativos que lhe permitem pormenorizar a política pública e definir

14 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 11-27 abr./jun. 2021


os instrumentos e meios para o alcance do fim o objeto perseguido com a instituição de um
desejado1; e (iii) o controle da regulação cabe padrão estatal regulatório deve ser a cessão da
capacidade decisória sobre aspectos técnicos em
ao Poder Judiciário e, em certa medida – sob
sistemas complexos para entidades descentra-
o aspecto das fiscalizações contábil, financeira, lizadas em troca da busca por credibilidade
orçamentária, operacional e patrimonial –, ao e estabilidade, demonstrando-se, com isso,
TCU. que a regulação estatal deixa de ser assunto
de governo para ser assunto de Estado. A re-
Neste sentido, a Lei no 9.478/1997 dispôs:
gulação permite, com maior efetividade, gerar
salvaguardas institucionais que signifiquem
Art. 2o Fica criado o Conselho Nacional de um compromisso estatal com a manutenção
Política Energética – CNPE, vinculado à de regras (segurança jurídica) e contratos
Presidência da República e presidido pelo administrativos de longo prazo (GUERRA,
Ministro de Estado de Minas e Energia, 2018, p. 143, grifo nosso).
com a atribuição de propor ao Presidente da
República políticas nacionais e medidas espe-
cíficas destinadas a: […]. Essa “regulação, diante da tecnicidade, vem
o
Art. 7 Fica instituída a Agência Nacional do como nova categoria suficiente para remeter
Petróleo, Gás Natural e [Biocombustíveis] – o intérprete do direito a um tipo de função
ANP, entidade integrante da Administração dotada de riqueza e dinamismo sensivelmente
Federal Indireta, submetida ao regime autár-
quico especial, como órgão regulador da indús-
maior do que a mera lei ou sua regulamentação”
tria do petróleo, gás natural, seus derivados e (GUERRA, 2018, p. 293). A regulação, que se dá
biocombustíveis, vinculada ao Ministério de inclusive por meio da edição de normas infrale-
Minas e Energia (BRASIL, [2021b], grifos gais, existe em consonância com o princípio da
nossos).
legalidade e é escolha legislativa que decorre da
concepção segundo a qual uma agência regula-
A ANP, vinculada ao MME, foi constituída dora é a entidade mais dotada da tecnicidade e
sob regime especial, com autonomia adminis- do insulamento político necessários à estrutu-
trativa, financeira, patrimonial e de gestão sobre ração de determinado setor.
seus recursos para desempenhar função regu-
latória, marcada por ser predominantemente 1.2 O papel fiscalizatório do TCU
técnica. Isso porque, em termos de regulação,
O TCU é o órgão de controle externo que au-
1
“No campo da regulação, as agências reguladoras xilia o Congresso Nacional na missão de acom-
possuem o papel de destaque na elaboração das políticas panhar a execução orçamentária e financeira
regulatórias e definição das decisões técnicas do setor regu-
lado, permanecendo com os Poderes Executivo e Legislativo da Administração Pública e de pessoas físicas e
o papel de definição primária das prioridades e políticas jurídicas, entidades públicas e privadas que, de
públicas, que pautarão, inclusive, a atuação regulatória. O
Judiciário, por sua vez, possui a importante missão constitu- alguma maneira, manipulem recursos públicos,
cional de controlar as omissões e os abusos praticados pelos
demais Poderes, uma vez que nenhuma lesão ou ameaça a
bem como contribuir para o aperfeiçoamento
lesão pode ser afastada de sua análise. Em razão das limi- da Administração Pública em benefício da so-
tações institucionais do Judiciário, as respectivas decisões
sobre questões de alta complexidade técnica ou de relevante ciedade (COMPETÊNCIAS, [20--]).
impacto para a coletividade devem ser submetidas, quando Embora o TCU tenha sido previsto na
possível, ao diálogo social […] e ao diálogo institucional,
deixando para o Poder Executivo, responsável, em última Constituição da República Federativa do Brasil
análise, pela formulação e execução de políticas públicas, de 1988 (CRFB) como um órgão que presta au-
a definição do caminho a ser seguido na implementação”
(OLIVEIRA, 2015b, p. 243-244). xílio ao Poder Legislativo, essa Corte de Contas,

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 11-27 abr./jun. 2021 15


na complexa configuração atual do Estado, tem sido considerada, assim
como as agências, um ente autônomo, não inserido perfeitamente na
clássica separação de Poderes.2
Não obstante, como contraponto a uma total independência do TCU,
importantes observações são feitas por Marques Neto e Palma ([202-],
p. 27):

O princípio da separação de Poderes interdita que órgãos de Estado


“pairem” sob os três Poderes legitimamente reconhecidos: o Executivo,
o Legislativo e o Judiciário. Não há espaço institucional para “satélites
organizacionais” que, por suas características ou maior grau de autonomia,
pretensamente orbitem os Poderes constituídos. Ainda que o órgão goze
de funções específicas e relativa autonomia, necessariamente estará vincu-
lado a algum Poder tão somente porque a Constituição Federal reconhece
três Poderes em seu art. 2o: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Os
Tribunais de Contas, portanto, não são órgãos independentes, plenamente
autônomos ou um suposto quarto Poder. São órgãos auxiliares do Poder
Legislativo nos termos do art. 71 da Constituição.

Ao Tribunal foram atribuídas responsabilidades para exercer a fis-


calização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial
dos órgãos e entidades públicas do País quanto à legalidade, legitimidade
e economicidade3. Guiado pelas suas atribuições constitucionalmente
estabelecidas, o TCU, assim como o Poder Judiciário, o próprio Poder
Legislativo e o Ministério Público, tem a missão de exercer o controle da
Administração Pública.
Com fulcro no art. 71, IV, da CRFB (BRASIL, [2021a]), tem o Tribunal
realizado auditorias operacionais nas agências reguladoras, que consis-
tem no

processo de coleta e análise sistemáticas de informações sobre caracte-


rísticas, processos e resultados de um programa, atividade ou organi-
zação, com base em critérios fundamentados, com o objetivo de aferir
o desempenho da gestão governamental, subsidiar os mecanismos de
responsabilização por desempenho e contribuir para aperfeiçoar a gestão
pública (AUDITORIA…, [2020]).

Nessas auditorias operacionais, verificadas eventuais falhas na regu-


lação, o TCU, valendo-se do disposto no art. 41, I, da Lei no 8.443/1992

2
Atualmente “o núcleo de validade do princípio concentra-se, em última análise, no
processo de separações de funções” (MOREIRA NETO, 2006, p. 414).
3
“Além das competências constitucionais e privativas do TCU que estão estabelecidas
nos artigos 33, § 2o, 70, 71, 72, § 1o, 74, § 2o e 161, parágrafo único, da Constituição Federal
de 1988, outras leis específicas trazem em seu texto atribuições conferidas ao Tribunal. Entre
essas estão a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2001), a Lei de Licitações e Contratos
(8666/93) e, anualmente, a Lei de Diretrizes Orçamentárias” (COMPETÊNCIAS, [20--]).

16 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 11-27 abr./jun. 2021


e no art. 250, II e III, do seu Regimento Interno podem ser dotados de parcelas de competência
(BRASIL, [2019], 2020), acaba por recomendar a que, a depender do caso concreto, entrem em
adoção de providências objetivando a melhoria conflito. Além dessa situação, pode-se destacar
de desempenho do regulador. o relevante papel do TCU, que não faz regulação
Nesses casos, atuando de forma menos au- propriamente dita, mas cujas ações reverberam
toritária e mais consensual, o TCU visa auxiliar de forma intensa sobre ambientes regulados.
no aprimoramento da regulação por meio de A relação entre agentes reguladores traz a
decisões mais efetivas, substituindo “o comando possibilidade de que tenham competências que
pela negociação, a decisão imperativa pela per- concorrem em determinado caso concreto, ou
suasão, a imposição pelo acordo, a subordinação seja, competências individuais que se comuni-
pela coordenação, a intervenção controladora cam de algum modo; relações de delegação regu-
por mecanismos descentralizados de autodire- latória, quando há sobreposição de competências
ção” (GUERRA, 2017, p. 249). A respeito dessa e um dos agentes se torna o único responsável
postura consensual, Moreira Neto (2006, p. 59) por lidar com aquela demanda; e relações entre
afirma: agentes reguladores e uma “superagência” que
fiscaliza e coordena os trabalhos dos demais
É inegável que a renovada preocupação com de modo a garantir o correto funcionamento
o consenso, como forma alternativa de ação do sistema.
estatal, representa para a Política e para o
Na segunda hipótese, de interseção, é comum
Direito uma benéfica renovação, pois, como
já se consignou, contribui para aprimorar a que o regulador adote quatro tipos de posturas
governabilidade (eficiência), propicia mais distintas, cuja efetividade vai depender do caso
freios contra os abusos (legalidade), garante concreto: (i) competição explícita, quando dispu-
a atenção de todos os interesses (justiça), pro-
ta para que a competência de um prevaleça sobre
porciona decisão mais sábia e prudente (legi-
timidade), evita os desvios morais (licitude), a do outro; (ii) competição implícita, quando
desenvolve a responsabilidade das pessoas ignora a possível parcela de competência que
(civismo) e torna os comandos estatais mais cabe ao outro agente e age de maneira costumei-
aceitáveis e facilmente obedecidos (ordem). ra, regulando o que entende lhe ser de direito;
(iii) abdicação da sua competência em favor
Ao substituir a intervenção forte pela inter- do outro; e, por fim, (iv) coordenação mútua.
venção por meio da consensualidade, nas audi- A coordenação regulatória emerge, portanto,
torias operacionais com decisões finais contri- como um instrumento de solução de conflitos
butivas efetivadas por meio de recomendações, entre reguladores que visa à produção de uma
o TCU concorre para a segurança jurídica e a solução sistêmica apropriada ao caso concreto.
previsibilidade no setor regulado, melhorando, Isso pode dar-se por meio da realização de con-
assim, o equilíbrio sistêmico. sultas entre agências, acordos de cooperação e
convênios interagências, elaboração conjunta
1.3 Relação entre regulador e de políticas e resoluções, e gestão presidencial
seu controlador da coordenação (FREEMAN; ROSSI, 2012,
p. 1.131).
Num espaço compartilhado de competências A relação entre regulador e seu controlador se
regulatórias são inúmeras as possibilidades de manifesta de forma diversa. Pelas competências
interação entre os agentes. Muitos reguladores constitucionais e legais atribuídas à ANP e ao

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 11-27 abr./jun. 2021 17


TCU, denota-se que não há, a priori, sobrepo- sua função de controle, posiciona-se de forma
sição de competências: a Agência regula o setor voluntariosa e pode acabar por substituir-se
de petróleo, e o Tribunal fiscaliza suas ativida- ao regulador. Em relação a esse ponto, Oliveira
des. Entretanto, tendo o TCU o poder de emitir (2015a, p. 181) manifestou-se da seguinte forma:
determinações, sua atuação torna-se capaz de
gerar reflexos no ambiente regulatório e pode Ocorre que, em algumas oportunidades, o
até mesmo induzir alterações na formulação de Tribunal de Contas da União acabou por
exercer papel ativista, estabelecendo a pró-
políticas públicas, como visto no caso concreto.
pria política regulatória que deveria ser
O próprio TCU, em seu sítio eletrônico, trata implementada pela agência. Mencione-se,
da sua relação com as agências reguladoras e por exemplo, o caso envolvendo consulta
do seu papel no aprimoramento regulatório do formulada pelo Ministério das Comunicações
sobre a interpretação das normas jurí-
País, destacando justamente primados como a
dicas relativas à aplicação de recursos do
eficiência, a atração de investimentos, o fomento Fundo de Universalização dos Serviços de
à transparência e competição e a análise geral Telecomunicações – FUST. No caso, o TCU
de performance dos contratos: estabeleceu a política regulatória de univer-
salização, sem a participação da ANATEL.
Em sua missão de aprimorar a Administração
Pública em benefício da sociedade, o Tribunal Outro caso que foi objeto de críticas é o re-
de Contas da União (TCU) tem papel fun-
lativo ao Acórdão no 2.121/20174. Ao questionar
damental para que as agências reguladoras
operem de forma eficiente, atraindo investi- a atuação do TCU nesse caso, Marques Neto e
mentos e aumentando a concorrência, bem Palma ([202-], p. 35) concluem que houve uma
como garantindo serviços de qualidade a intervenção indevida do TCU:
preços justos para os usuários. […]
Ademais, é imprescindível para a melhoria do Em síntese, o TCU não pode e não deve
ambiente de negócios, com fomento à trans- controlar as atividades-fim das Agências
parência e competição, contribuindo para o Reguladoras, por ausência de previsão le-
aumento da percepção, por parte do investidor gal e incapacidade técnica e institucional de
e da sociedade, da estabilidade das regras de regulação. Tão somente o Poder Judiciário
mercado, da segurança jurídica e do retorno está legitimado a controlar as atividades-fim
dos investimentos alocados na concessão. […] das Agências Reguladoras, por expressa pre-
Para alavancar o setor e propiciar seu cresci- visão do art. 5o, inc. XXXV, da Constituição
mento de forma sustentável, faz-se necessário, Federal.
antes de tudo, ter clareza quanto à eficiência
dos modelos de investimentos, passando pela
análise geral da performance dos atuais con- Quanto a esse posicionamento, é importante
tratos e eficiência na alocação dos recursos destacar que, divergências teóricas à parte, re-
da sociedade, assegurando aos investidores centemente sobreveio a Lei no 13.448/2017, que
privados a estabilidade do contrato durante
determinou expressamente o envio dos estudos
todo o período de concessão (AMBIENTE…,
[20--], grifos nossos).

A relação entre o TCU, como órgão contro-


4
“Diante desses dados, a unidade técnica do TCU for-
mulou […] representação sobre o tema, propondo que
lador, e as agências reguladoras é tema sensível e fosse determinado cautelarmente à Anatel que se abstivesse
sujeito a variadas controvérsias. A crítica maior de assinar TACs, de forma geral, até que fossem avaliadas
pelo Tribunal as possíveis irregularidades encontradas”
que se tem feito ao TCU é que este, ao exercer (BRASIL, 2017c).

18 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 11-27 abr./jun. 2021


técnicos de concessões ao TCU (arts. 11 e 19) coesa e harmônica para os desafios a serem
(BRASIL, 2017b). enfrentados. Deve haver diálogo e confluência
Destaque-se que, no Acórdão no 2.121/2017, de vontades à disposição do interesse público,
a própria Corte de Contas reconheceu certa o que pode ser alcançado por meio do diálogo
limitação de seu papel ao afirmar que deve institucional. Essa teoria é “aplicada às interações
restringir-se a exercer o “controle de segunda entre as agências reguladoras e a Administração
ordem, e não a regulação propriamente dita”: Direta, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário”
(OLIVEIRA, 2015b, p. 209), e deve estender-se à
Deve-se sempre rememorar que o TCU não interação entre agências reguladoras e o Tribunal
é instância revisora ou recursal das decisões de Contas, que pode tornar-se problemática
da agência, tampouco órgão consultivo da
caso haja uma sobreposição de funções (por
Administração. No exercício de suas compe-
tências constitucionais, deve se ater a exercer exemplo, quando o TCU acaba por substituir-se
o dito controle de segunda ordem, e não a ao papel do regulador):
regulação propriamente dita, conforme pre-
cisamente colocado pelo representante do
Não obstante a importância do seu papel
Ministério Público atuante neste processo
institucional, o controle não pode acarretar
(Acórdãos 620/2008, 715/2008, 1.313/2010,
a substituição da decisão regulatória pela
2.302/2012, 2.313/2014, 2.071/2015 e
decisão da Corte de Contas. Explique-se: a
1.555/2017, todos do Plenário) (BRASIL,
Corte de Contas, ao concluir pela violação
2017c).
aos princípios da legalidade, legitimidade
e economicidade, deve invalidar a decisão
da agência, com a fixação dos parâmetros
Essa posição do Tribunal denota uma au-
legais que deverão ser observados, no futuro,
tocrítica salutar, que induz à reflexão sobre seu por ela.
próprio papel dentro do sistema. Demonstra o
De fato, não compete ao Tribunal de Contas
desenvolvimento da habilidade de estabelecer instituir a política regulatória, mas, sim, fixar,
diálogos e de articular-se institucionalmente no âmbito do controle, as balizas normativas
com as agências reguladoras para melhor aten- que deverão ser observadas pelas agências
der ao interesse público. Pode-se usar a expres- (OLIVEIRA, 2015b, p. 226).
são autocrítica no sentido de que se espera que
cada Poder ou entidade, reflexivamente, entenda A limitada capacidade de o TCU ditar a
o seu papel dentro do sistema regulatório de palavra final em questões regulatórias remete
modo a contribuir para o seu funcionamento à discussão da postura de maior contenção que
com a maior harmonia possível. se espera desse Tribunal. Tal comportamento
A solução para conflitos de percepções sobre “respeita, de um lado, o papel da Corte de Contas
questões técnicas passa, talvez, pelo juízo de que e, de outro lado, a autonomia das agências regu-
a conformação do modelo de Estado brasileiro – ladoras, preservando, portanto, as competências
que decidiu operar, em diversos setores, por destas instituições” (OLIVEIRA, 2015b, p. 227).
meio da função regulatória – pressupõe certa Além disso, caso o Tribunal, em suas auditorias,
flexibilidade de instrumentos e a abertura de consiga dialogar devidamente com os órgãos
seus processos. reguladores, é possível que se aproveite a sua
A atuação dos Poderes e instituições no expertise para que venha a se tornar um parceiro
bojo do Estado regulador deve ser permeada efetivo na identificação das possibilidades de
pela coordenação em busca de uma solução aprimoramento nas políticas regulatórias:

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os ideais de governança regulatória de- próprios contratos de concessão6 de blocos de
pendem da instituição de instrumentos de petróleo, assinados entre a ANP e as empresas
coordenação entre as agências, bem como
petrolíferas, e constitui verdadeiro critério de
os respectivos órgãos políticos supervisores,
que garantam coerência à regulação a partir julgamento nas rodadas de licitação.
de uma visão intersistêmica entre os diver- A cláusula estabelece que seja dada prefe-
sos mercados e respectivos consumidores rência à contratação de fornecedores brasileiros
(OLIVEIRA, 2015b, p. 221).
sempre que suas ofertas apresentem condições de
preço, prazo e qualidade equivalentes às de ou-
Espera-se, assim, que seja preservada a pa- tros fornecedores convidados a apresentar pro-
lavra final da Agência quanto às decisões no postas. Além do compromisso de cumprir um
desempenho da função regulatória, e o TCU percentual de conteúdo local global para a fase
deixe de ser tão somente um controlador capaz de exploração e para a etapa de desenvolvimento,
de aplicar sanções e passe a ser um colaborador os contratos também preveem compromissos de
na política regulatória – como, de fato, ocorreu conteúdo local específicos para determinados
com a Política de Conteúdo Local. itens e subitens que compõem o investimento em
cada uma dessas etapas e são apresentados em
forma de Tabela de Compromisso de Conteúdo
2 Estudo de caso: auditoria Local, que consta como anexo de cada contrato7.
operacional do TCU sobre a Outro conceito relevante para o presente
sistemática de conteúdo local na estudo é o de waiver8, que corresponde ao instru-
indústria do petróleo e gás natural mento utilizado para solicitar ao órgão regulador
(neste caso, a ANP) a exoneração, isenção ou
O objeto deste estudo é o Acórdão TCU/ dispensa do cumprimento do compromisso de
Plenário no 3.072/2016 (BRASIL, 2016), decor-
rente de uma Auditoria Operacional5 do TCU 6
Para mais informações a respeito do histórico de Con-
realizada na ANP para avaliar os pedidos de teúdo Local na ANP, ver Conteúdo… ([20--]).
7
“Os contratos firmados pela Agência Nacional do
waiver apresentados e a sistemática vigente da Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) com as
Política de Conteúdo Local no mercado do pe- empresas vencedoras nas rodadas de licitações e com a
Petrobras nas áreas de cessão onerosa incluem a cláusula
tróleo e gás natural. de conteúdo local, que incide sobre as fases de exploração e
Conteúdo local nada mais é do que a propor- desenvolvimento da produção. De acordo com essa cláusula,
parte dos bens e serviços adquiridos para atividades de
ção de investimentos nacionais aplicados a um exploração e produção no Brasil deve ser nacional. Além
disso, deve ser assegurada preferência à contratação de for-
determinado bem ou serviço, correspondendo necedores brasileiros sempre que suas ofertas apresentarem
à parcela de participação da indústria nacional condições de preço, prazo e qualidade equivalentes aos
dos outros fornecedores também convidados a apresentar
no objeto licitado (CONTEÚDO…, [20--]). propostas. O dispositivo contratual tem o objetivo de in-
No caso da indústria do petróleo, a Política crementar a participação da indústria brasileira de bens e
serviços, em bases competitivas, nos projetos de exploração
de Conteúdo Local pode ser depreendida dos e desenvolvimento da produção de petróleo e gás natural.
O resultado esperado da aplicação da cláusula é o impulso
ao desenvolvimento tecnológico, a capacitação de recursos
humanos, e a geração de emprego e renda nesse segmento”
5
“Auditoria: por meio desse instrumento verifica-se (CONTEÚDO…, [20--]).
in loco a legalidade e a legitimidade dos atos de gestão, 8
“Foi aprovada hoje, pela Diretoria Colegiada da ANP,
quanto aos aspectos contábil, financeiro, orçamentário e a resolução que regulamenta os mecanismos contratuais
patrimonial, assim como o desempenho operacional e os de isenção (waiver), ajuste e transferência de excedente, e
resultados alcançados de órgãos, entidades, programas e que traz a possibilidade de aditamento dos contratos com
projetos governamentais” (FUNCIONAMENTO, [20--]). novas exigências de conteúdo local” (APROVADA…, 2019).

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conteúdo local, fundado em cláusula específi- sua origem e, ao contrário, tendia a aumentar as
ca dos contratos de exploração e produção de barreiras presentes no setor, bem como a criar
petróleo e gás natural. injustificada reserva de mercado.
As cláusulas de waiver foram previstas, por- O não atrelamento da Política de Conteúdo
tanto, como alternativa às situações em que os Local a uma política industrial mais ampla fi-
bens produzidos no mercado nacional apresen- cou evidenciado por seus objetivos genéricos,
tam qualidade inferior, preço ou prazo de entrega desprovidos de metas e métricas que pudessem
superiores àqueles contratados no exterior e em mensurar objetivamente seus resultados. A au-
que não exista tecnologia ou fornecedor no País. sência de correlação com uma política industrial
Embora a concessão de waiver esteja prevista dificulta que a indústria seja capaz de evoluir e
em contrato, na cláusula correspondente não buscar aprimoramento a ponto de participar em
são definidos os limites do que se considera condições igualitárias de competitividade com
preço, prazo excessivo ou nova tecnologia, e essa players internacionais. Idealmente, não deve a
lacuna de regulamentação acarreta insegurança Política de Conteúdo Local ser um fim em si
jurídica e falta de transparência ao setor, que já mesma, uma vez que, como política de longo
envolve riscos muito elevados (BRASIL, 2016). prazo, tem potencial para ser um indutor de
O waiver é a exceção à regra de conteúdo nivelamento de capacidade entre operadores
local, mas a ANP acabou deparando-se com um nacionais e internacionais.
número muito grande de pedidos dessa natureza. De acordo com as informações coletadas
A auditoria do TCU teve início, então, com foco no MME, ao qual se vincula a ANP, e com a
nos pedidos de waiver ainda não regulamentados própria Agência, a Política de Conteúdo Local
pela Agência. Com o decurso da auditoria, en- objetiva incrementar a participação da indústria
tretanto, percebeu-se que o problema regulatório nacional em bases competitivas, bem como a
não se restringia à questão do waiver, mas a toda capacitação e o desenvolvimento tecnológico
a sistemática de conteúdo local e por essa razão nacional, devendo aumentar os níveis de qua-
teve seu escopo ampliado. lificação profissional e da geração de emprego
Dentre as principais distorções percebidas e renda (BRASIL, 2016).
nessa sistemática e no estabelecimento dos ín- O Ministério afirmou que as metas propos-
dices, pode-se destacar (i) o não atrelamento tas para a política são os índices percentuais
da Política de Conteúdo Local a uma política mínimos atrelados ao conteúdo local, devendo
industrial mais ampla; (ii) a ausência de prazo ser atingidos pelos operadores. Para o TCU,
de vigência e objetivos específicos dessa política; entretanto, essa meta não tem o condão de aferir
(iii) a fragilidade metodológica de suas defini- objetivamente os resultados esperados, ainda
ções e de sua possibilidade de cumprimento; que genericamente definidos. Como a Política
(iv) a existência de distorções na sistemática, de Conteúdo Local faz o setor petrolífero in-
além de sua rigidez extrema; (v) a imposição correr em mais custos, era de se esperar que
de altos custos à cadeia produtiva, descolados houvesse métricas que permitissem mensurar
do atingimento de objetivos específicos; e (vi) a os efeitos gerados pelas políticas até o momento
ausência de regulamentação do instrumento de (BRASIL, 2016).
waiver pela ANP. Tais aspectos culminaram na A ausência de prazo de vigência e objetivos es-
percepção de que a Política de Conteúdo Local pecíficos traz em si o risco iminente de a política
não vinha atingindo os objetivos propostos em converter-se, se perdurar por muito tempo, em

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mera reserva de mercado para empresas nacio- concretos gerados, bem como que submetesse
nais. As empresas beneficiadas por essa política, a discussão a escrutínio público, por meio de
cientes da proteção que lhes é oferecida, podem consulta ou audiência pública, com vistas a colher
tender à acomodação, e não ao estímulo ao apri- as percepções dos stakeholders e da sociedade a
moramento em busca de uma autonomia com- respeito da razoabilidade dos índices mínimos
petitiva futura. Recomendou-se ao Ministério, exigidos (BRASIL, 2016).
portanto, que, dentro de sua discricionariedade Descolada do atingimento de objetivos específi-
técnica na qualidade de formulador de política cos, a imposição de altos custos à cadeia produtiva
pública, avaliasse a plausibilidade de estipular um era uma situação passível de gerar uma escolha
prazo para a referida política, inclusive com base pública que beira a arbitrariedade, sendo, a priori,
no estabelecimento de curvas de aprendizado ou incompatível com os princípios que regem a
de marcos temporais de revisão dos níveis de Administração Pública. A Política de Conteúdo
proteção, justificando, em todo caso, a escolha Local goza de um notável potencial para induzir,
pela delimitação ou não dos prazos de vigência a longo prazo, o desenvolvimento da indústria
(BRASIL, 2016). nacional. Entretanto, se não for clara e consistente
A existência de distorções na sistemática, de em seus objetivos, pode impor à cadeia produtiva
rigidez extrema, e a fragilidade metodológica das ônus não correspondentes aos benefícios sociais
definições da política e sua possibilidade de cum- desejados e operar contrariamente ao seu obje-
primento são críticas que se referem à definição tivo de conferir especial “proteção” a um setor
dos índices mínimos de conteúdo local, porque específico, tal como o de petróleo e gás natural,
buscam espelhar os investimentos mínimos em estratégico para o interesse nacional.
bens e serviços nacionais que deverão ser reali- O TCU expediu ao MME determinações
zados nos blocos outorgados. O ideal seria que de que promovesse análises custo-benefício da
refletissem, da maneira mais fidedigna possível, Política de Conteúdo Local, de modo a obter
a realidade e a capacidade da indústria nacional insumo fundamental para monitorar se os custos
fornecedora de materiais e serviços em atender à decorrentes da política são proporcionais aos
demanda em bases razoavelmente competitivas benefícios auferidos. Outra recomendação foi
(BRASIL, 2016). a de que o MME buscasse maior aproximação
Segundo o MME (BRASIL, 2016), a defi- com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria
nição dos índices fundou-se em reuniões com e Comércio Exterior, com o fito de avaliar a con-
associações e representantes da indústria sobre veniência de inserção da Política de Conteúdo
argumentos referentes à capacidade teórica de Local no contexto mais amplo de uma política
fornecimento. Para que a produção não fosse industrial (BRASIL, 2016).
desarrazoadamente onerada, seria importante A ausência de regulamentação do instrumento
que, além da capacidade, a indústria atendesse de waiver pela ANP era uma situação que se agra-
à demanda com preços e prazos competitivos. vava, pois, diante de um número alto de pedidos
Caso contrário, as cláusulas de waiver seriam dessa natureza pendentes de julgamento pela
sempre pleiteadas pelos compradores. Nesse Agência, trazia insegurança jurídica ao mercado.
sentido, determinou o Tribunal ao Ministério que A esse respeito, a deliberação do TCU envol-
justificasse, na próxima rodada de licitações da veu medidas como a determinação de que a ANP
ANP, os índices mínimos a serem exigidos a título regulamentasse o instrumento de waiver dentro
de conteúdo local com fundamento em dados do prazo de 180 dias; de que o MME justificasse

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os índices mínimos a serem exigidos, bem como realizasse escrutínio
público para melhor instruir a delimitação dos percentuais de conteúdo
local a serem cumpridos; de que o MME realizasse análises custo-benefício
da política e atrelasse a ela objetivos mais específicos (BRASIL, 2016).
Recomendou-se ainda que o MME dialogasse com o Ministério do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior para integrarem suas
políticas, avaliasse a possibilidade de estipular prazo de vigência para a
Política de Conteúdo Local e reavaliasse sua sistemática (BRASIL, 2016).
A expedição dessas determinações e recomendações, embora não fun-
dada em violação expressa a princípio ou mandamento legal, propiciou a
possibilidade de melhoria ou implementação de boa prática administrativa,
o que se coaduna com a missão institucional do TCU de “[a]primorar a
Administração Pública em benefício da sociedade por meio do controle
externo” (BRASIL, 2015, p. 44). No caso em análise, o acórdão do TCU
estimulou a ANP não só a avançar na regulamentação do waiver como
também na mudança da própria Política de Conteúdo Local.
Na “Proposta de Ação no 162/2017”, a ANP elaborou minuta de novo
ato normativo possibilitando que os contratos de concessão já assinados,
que continham cláusulas de conteúdo local no formato criticado pelo TCU,
fossem aditados para permitir a incorporação da mais recente cláusula de
conteúdo local, utilizada na 14a Rodada de Licitações, aos contratos ante-
riores em vigor. Na qualidade de instrumento incentivador da mudança,
a importância do acórdão do TCU pode ser vista ao longo do processo
na citação das notas técnicas e no parecer elaborado pela Procuradoria
da ANP (BRASIL, 2017a).
Ao longo do processo administrativo normativo, na linha da mani-
festação do TCU e da Agência reguladora, o CNPE – como o responsável
por definir a estratégia e a política de desenvolvimento econômico e tec-
nológico da indústria de petróleo e por induzir o incremento dos índices
mínimos de conteúdo local de bens e serviços a serem observados em
licitações e contratos de concessão e de partilha de produção, na forma da
Lei no 9.478/1997, art. 2o, IX e X (BRASIL, [2021b]) – editou a Resolução
no 1, de 21/3/2018 (BRASIL, 2018), encampando a mudança regulatória
pretendida pela ANP e autorizando a mudança dos índices de conteúdo
local, de forma a adaptá-los à realidade do mercado e a extinguir o com-
plexo e falho mecanismo de waiver.
Todo esse alinhamento regulatório resultou da Resolução ANP
no 726, de 11/4/20189, que não só regulamentou o mecanismo de waiver

9
A minuta final da resolução foi analisada pelo Parecer no 00198/2018/PFANP/PGF/AGU
e pelo Despacho no 00467/2018/PFANP/PGF/AGU, elaborados pela Procuradoria Federal
Especializada − ANP.

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como também possibilitou a alteração dos melhoria na Política de Conteúdo Local vigen-
contratos de concessão e partilha por meio te, a Corte de Contas emitiu recomendações e
de aditivos para corrigir as falhas verificadas determinações, auxiliando no aprimoramento
na Política de Conteúdo Local (AGÊNCIA da atividade regulatória da Agência.
NACIONAL DO PETRÓLEO, GÁS NATURAL Como visto, a função precípua da atividade
E BIOCOMBUSTÍVEIS, 2018). Com essa di- regulatória é a de atuar de maneira eficiente
nâmica de atuação, controlador e regulador moldando o comportamento dos agentes de
demonstram existir, de fato, um espaço com- um mercado, de forma a produzir o melhor
partilhado para a construção de soluções coor- resultado possível para a sociedade. Sob essa
denadas que promovem a melhor realização do óptica, é possível que se entenda que, embora
interesse público. não exerça regulação, o TCU seja apto a desem-
penhar um importante papel na consecução da
função regulatória. Isso porque, por meio de
Considerações finais mecanismos de coordenação entre a Corte de
Contas e os órgãos reguladores, é possível que
O Estado regulador, moldado sob a égide de se aproveite a expertise do Tribunal para que
uma Administração policêntrica que redefine este venha a se tornar um parceiro que identifica
funções e agentes envolvidos nas atividades possibilidades de aprimoramento nas políticas
públicas, implica o entendimento de que a se- regulatórias, deixando de ser tão somente um
paração clássica dos Poderes e suas funções controlador capaz de aplicar sanções.
não mais são responsivas às demandas sociais Considera-se que “[a] legitimidade da re-
da pós-modernidade. gulação depende da implementação de instru-
O estudo da atividade estatal de formulação mentos democráticos e das capacidades institu-
de políticas regulatórias é um exemplo aca- cionais dos órgãos e entidades administrativas”
demicamente rico para fomentar a discussão (OLIVEIRA, 2015b, p. 55), e pode-se perceber,
sobre a necessidade de redefinição de funções pelo desfecho do caso, que tanto o TCU quanto
e de atribuição de novos limites à atuação dos a ANP tiveram suas competências preservadas.
Poderes e sua estrutura. Além do estudo do po- Atendendo às exigências da Corte de
der de fiscalização do Tribunal de Contas sobre Contas10 e, ainda assim, mantendo sua prer-
as agências reguladoras, o caso aqui apresentado rogativa discricionária na qualidade de auto-
remete à discussão da postura que se espera dos ridade reguladora, a ANP editou, em 2018, a
agentes envolvidos: é melhor que desenvolvam Resolução no 726/2018, que regulamenta os
a capacidade de articular-se na construção de mecanismos contratuais de isenção (waiver),
soluções conjuntas do que tentem medir forças ajuste e transferência de excedente, trazendo
ou, no caso das agências, que acatem as decisões ainda a possibilidade de aditamento dos con-
do TCU por medo. tratos com novas exigências de conteúdo local.
Firmou-se entendimento de que à Agência
cabe regular o setor de petróleo e ao TCU com-
pete fiscalizar-lhe as atividades sob as óticas
10
“A publicação atende determinação do Tribunal de
Contas da União (TCU) e dá mais transparência aos proce-
contábil, financeira, orçamentária, operacional dimentos de solicitação e de análise das previsões de isenção,
e patrimonial. Dando cumprimento a tais atri- ajuste e transferência constantes dos contratos de concessão
da 7a à 13a Rodadas, nos de Cessão Onerosa e nos da 1a e 2a
buições e tendo identificado possibilidades de Rodadas de Partilha da Produção” (APROVADA…, 2019).

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Sobre os autores
Bruno Dantas é doutor e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, SP, Brasil; pós-doutor em Direito pela Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil; pesquisador visitante na Benjamin N. Cardozo
School of Law, EUA, no Max Planck Institute for Regulatory Procedural Law, Luxemburgo,
e no Institut de Recherche Juridique de l’Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne, França;
professor adjunto da graduação, do mestrado e doutorado em Direito da UERJ, Rio de
Janeiro, RJ, Brasil; professor associado do mestrado e doutorado em Direito da Regulação
da Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil; professor titular do mestrado e
doutorado em Direito da Universidade Nove de Julho, São Paulo, SP, Brasil; ministro do
Tribunal de Contas da União, Brasília, DF, Brasil.
E-mail: [email protected]

Evandro Caldas é mestre em Direito da Regulação pela Fundação Getulio Vargas, Rio de
Janeiro, RJ, Brasil; pós-graduado em Direito Público pela Faculdade de Direito de Campos,
Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil; procurador-geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás
Natural e Biocombustíveis.
E-mail: [email protected]

Fernanda Martins é mestra em Direito da Regulação pela Fundação Getulio Vargas (FGV),
Rio de Janeiro, RJ, Brasil; bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior; pesquisadora do Centro de Pesquisa em Direito e Economia da FGV, Rio
de Janeiro, RJ, Brasil.
E-mail: [email protected]

Como citar este artigo


(ABNT)
DANTAS, Bruno; CALDAS, Evandro; MARTINS, Fernanda. A sistemática de conteúdo
local e a cooperação entre TCU e ANP: um passo importante rumo à coerência regulatória.
Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 230, p. 11‑27, abr./jun. 2021.
Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/ril_v58_n230_p11

(APA)
Dantas, B., Caldas, E., & Martins, F. (2021). A sistemática de conteúdo local e a cooperação
entre TCU e ANP: um passo importante rumo à coerência regulatória. Revista de Informação
Legislativa: RIL, 58(230), 11‑27. Recuperado de https://www12.senado.leg.br/ril/
edicoes/58/230/ril_v58_n230_p11

Referências
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RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 11-27 abr./jun. 2021 25


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pública federal, e altera a Lei no 10.233, de 5 de junho de 2001, e a Lei no 8.987, de 13 de
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Fake news
Regulação ou metarregulação?

LUCAS FUCCI AMATO

Resumo: Tomando como referência teórica principal a sociologia sistê-


mica desenvolvida por Niklas Luhmann e suas aplicações no Direito, este
artigo reflete sobre os desafios para o tratamento jurídico da disseminação
de notícias falsas. Aborda primeiramente a coevolução entre formas de
sociedade e meios de disseminação da comunicação, delimitando as fake
news como fenômeno típico de uma sociedade digital. A seguir, define a
emergência da autorregulação privada como uma expressão do Direito
contemporâneo e nota a necessidade da metarregulação: de regular
(pelo Direito estatal) a autorregulação (privada). Finalmente, analisa o
art. 31 do Projeto de Lei das fake news (ou Lei Brasileira de Liberdade,
Responsabilidade e Transparência na Internet). Assim, o texto destaca as
potencialidades do instituto da “autorregulação regulada” previsto nessa
legislação para que sejam construídas experimentalmente normas capazes
de disciplinar os comportamentos e as responsabilidades emergentes com
o desenvolvimento das novas tecnologias e plataformas digitais.

Palavras-chave: Notícias falsas. Autorregulação. Opinião pública. Direito


digital. Internet.

Fake news: regulation or meta-regulation?

Abstract: Taking as main theoretical reference the systemic sociology


developed by Niklas Luhmann and its applications in law, this paper
reflects about the challenges for the legal treatment of fake news
dissemination. It approaches firstly the coevolution between forms of
society and media for disseminating communication, defining fake
news as a phenomenon typical of the digital society. Then, it defines the
emergence of private self-regulation as an expression of contemporary
law and notes the need for meta-regulation: for regulating (through state
law) the (private) self-regulation. Finally, it analyzes article 31 of the Fake
Recebido em 10/8/20 News bill (or Brazilian Law on Freedom, Responsibility and Transparency
Aprovado em 18/9/20 on the Internet). Thus, the paper notes the potential of the institute of

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“regulated self-regulation” foreseen in this legislation so that standards
constructed experimentally can be capable of disciplining the behaviors
and responsibilities emerging with the development of new technologies
and digital platforms.

Keywords: Fake news. Self-regulation. Public opinion. Digital law. Internet.

1 Introdução

O tema das fake news emergiu como expressão contemporânea de uma


sociedade mundial que se reproduz sobretudo por meio da comunicação
digital. A atual pandemia do novo coronavírus (Covid-19) reforçou a
tendência à digitalização dos diversos âmbitos sociais: ensino e trabalho,
campanhas políticas, informação instantânea, tratamentos de saúde.
Mas, afinal, qual a especificidade das fake news em relação a mentiras ou
notícias falsas divulgadas por outros meios? Como o Estado pode tratar
das responsabilidades e condutas atinentes à produção e disseminação de
notícias falsas, gerenciando dilemas que envolvem direito à privacidade,
liberdade de expressão, exercício de direitos políticos e potenciais abusos
de poder econômico?
Este artigo defende a hipótese de que a novidade, o grau de especifi-
cidade das tecnologias digitais, sua transterritorialidade e sua múltipla
interferência sistêmica – na saúde, na economia, na política, na educação
e em diversos outros campos – recomendam que o Estado não busque
regular diretamente os comportamentos, mas vise primeiramente regular
a autorregulação privada das plataformas digitais e redes sociais, as quais
devem ser cobradas para desenvolver os mecanismos de responsabilização
e os parâmetros de sancionamento devidos em relação a seus usuários.
Esse primeiro passo – de regular a autorregulação – é o que se chama de
“metarregulação”. Ela serve tanto para evitar a interferência estatal des-
controlada sobre o exercício da comunicação digital quanto para prevenir
que as empresas de mídia digital se imunizem diante das repercussões
que seus serviços geram em toda a sociedade.
Centrado na teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann e em
suas aplicações na Sociologia e Teoria do Direito, este artigo propõe em
primeiro lugar uma delimitação histórica do conceito de fake news, com
base em um entendimento da evolução social dos meios de disseminação
da comunicação. A seguir, o trabalho aborda as formas regulatórias emer-
gentes contemporaneamente, que não se resumem à definição direta de

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regras sobre condutas e responsabilidades nem dar sequência à comunicação, concordando ou
à simples estipulação de princípios ou objetivos rejeitando o que disse seu interlocutor.
de políticas públicas. As formas jurídicas podem A comunicação, por todos esses pressupos-
consistir em critérios procedimentais para uma tos, é um evento improvável. No entanto, é o
regulação estatal da autorregulação privada. elemento básico da sociedade. Como a sociedade
Finalmente, o trabalho analisa o conceito de supera, então, tal improbabilidade e se viabili-
autorregulação regulada proposto pelo Projeto za? Luhmann (1981, p. 123-124) desdobra tal
de Lei (PL) das fake news, em tramitação no problemática em um tripé.
Congresso Nacional. Em primeiro lugar, as mentes são sistemas fe-
chados que reproduzem pensamento. Não temos
acesso aos pensamentos dos outros. Vivemos
2 Evolução social e meios de em dupla contingência: não sabemos o que os
disseminação da comunicação outros estão pensando sobre o que estamos
pensando. Os sistemas sociais são conjuntos
Luhmann (2012, p. 36) propõe substituir a de comunicações. Dada a separação das mentes,
metáfora da comunicação como transmissão a comunicação só pode ser entendida dentro de
de informação entre emissor e receptor por um um contexto, de um quadro de referência. Esse
conceito composto por três elementos: infor- quadro é dado pelas expectativas, que são as
mação, uso (ou mensagem) e compreensão. A microestruturas sociais, a teia de pressupostos
informação é distinguida em relação a um pano que compartilhamos para podermos entender
de fundo de sentidos já conhecidos; é a novidade o que é comunicado.
(news) em relação à redundância. A mensagem Em segundo lugar, os sistemas sociais de
é o ato de dar a conhecer uma informação, é a interação – comunicação presencial, face a face –
performance que um comunicador faz para pro- são muito fugazes. Os encontros duram pouco,
duzir a informação1. Por sua vez, a compreensão são instáveis e difíceis de serem agendados e con-
envolve discernir a informação propriamen- cretizados. Daí ser necessário construir sistemas
te dita (o conteúdo das proposições, o que foi sociais mais duráveis. É o caso das organizações,
dito) e os complementos contidos na mensagem sistemas encarregados de tomar decisões, que
(como foi dito). Como mostra o antropólogo contam com uma hierarquia definida de papéis
Bateson (2000, p. 9-13), informações são “di- complementares e que distinguem entre mem-
ferenças que fazem a diferença”; por isso, além bros e não membros.
das informações ditas, há informações “de outro Em terceiro lugar, há o problema de como
tipo” contidas nos gestos, entonações e contextos. garantir sucesso na comunicação, o que deman-
Apenas depois de compreender, alguém pode da que alguém entenda a informação dada por
outrem, confie nela e a tome como motivação
1
Apenas para ilustrar o entendimento da mensagem
para prosseguir com sua própria comunica-
ou uso, poderíamos fazer um paralelo entre a concepção ção, em acordo ou desacordo. Os “meios de
construtivista-sistêmica de Luhmann e a filosofia analítica,
mencionando a teoria dos atos de fala de Austin (1962). sucesso” da comunicação são simbolicamente
Essa teoria descreve a “força ilocucionária” presente no ato generalizados: o poder, o dinheiro, a validade
de comunicação, para além do sentido gramatical de suas
proposições; assim, as frases podem adquirir, por exemplo, de uma norma, a verdade de uma afirmação.
o caráter de um veredito, de um exercício de poder ou in- Para gerenciar o uso desses meios e desenvolver
fluência, de uma desculpa, de promessa ou aposta, ou de
exposição de alguma definição ou postulado. os critérios (programas) de aplicação dos seus

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códigos (governo/oposição, ter/não ter, lícito/ilícito, verdadeiro/falso),
a sociedade evoluiu de modo a construir sistemas funcionais, como a
política, a economia, o Direito e a ciência. Existem, portanto, três níveis
de sistemas sociais dentro do sistema social maior, que é a sociedade –
trata-se das interações, organizações e sistemas funcionais.
Ao lado desses meios de sucesso – símbolos que motivam a atenção
para uma comunicação –, há os “meios de disseminação” (LUHMANN,
2012, p. 120-123). São a infraestrutura material ou a tecnologia que
permite gerar redundância na comunicação – confirmar a informação,
transformando a novidade em conhecimento comum compartilhado. O
quadro a seguir esquematiza a coevolução entre os tipos de sociedade
(formas de diferenciação social, como diz Luhmann (2013, cap. 4)) e os
meios de disseminação da comunicação.

Quadro

Evolução social e meios de disseminação da comunicação

Forma de
Meios de
diferenciação Característica
disseminação
social
Disseminação de informação restrita, baixa e lenta,
Comunicação
Segmentária basicamente entre conhecidos (membros da mesma
oral face a face
comunidade).
Disseminação mais ampla, sobretudo entre elites
Centro-periferia Escrita
letradas.
Nascimento da opinião pública, impulsionada pelos
Hierárquica Imprensa
meios de comunicação de massa.
Poucos controles de seleção e certificação da infor-
Funcional Meios digitais mação; disseminação descentralizada em massa, de
conhecidos a estranhos.
Fonte: elaborado pelo autor.

As sociedades segmentares eram aqueles grupos ligados principal-


mente pelo parentesco e com uma profunda distinção entre os de dentro
e de fora, os membros e os estranhos. Podemos pensar no exemplo de
uma tribo, com seus ascendentes comuns, seus laços de amizade e seu
distanciamento de outras tribos, vistas como inimigas. Essa forma de so-
ciedade tem um modo típico de comunicação. A comunicação presencial
e oral implicava restringir a variabilidade da comunicação – seu uso, sua
mensagem e compreensão supunham a adesão à mesma comunidade
de vida e valores. A interação, a comunicação entre os presentes, era
então estritamente limitada pelas estruturas, ou seja, pelas expectativas
profundamente compartilhadas dentro do mesmo grupo. O Direito era
costumeiro e interativo, sendo reafirmado por meio de rituais.

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Quando algum grupo acumula mais recursos de mundo e estilos de vida. A comunicação é
(terras e ferramentas, defesa militar e poder restrita pelas expectativas compartilhadas dentro
político, influência sacerdotal para definir a dessa ordem social, como se ela fosse um espe-
verdade, o certo e o errado), ele emerge como lho da hierarquia divina das coisas e dos seres:
um centro e entra em uma relação geográfica o cristianismo definia os limites da variação
assimétrica com suas periferias. Isso ocorria admitida em crenças e mensagens. Gutenberg
nas cidades-Estados e impérios antigos ou nas inventou a imprensa no século XV, e no século
relações entre as áreas urbanas e rurais. Essa XVI a reforma protestante desvalorizou o papel
dependência geográfica também fomentou a da hierarquia da igreja como um intermediário
dependência social, as relações de patronagem entre os crentes e Deus. Promoveu-se o letra-
e clientelismo – como a relação entre a aris- mento; a Bíblia tornou-se um sucesso editorial,
tocracia e as pessoas livres, mas pobres – em pois podia ser impressa, e sua leitura tornou-se
sociedades marcadas pela escravidão. A co- a principal forma de praticar a fé. Esse foi o
municação torna-se mais complexa e variável, período das guerras religiosas na Europa.
pois a escrita introduz mais possibilidades de A disseminação das habilidades de escrita e
variação de temas, e o distanciamento entre o leitura deu origem à “opinião pública” – primei-
escritor e o leitor implica maior liberdade de ro em clubes literários, depois em um público
usos, mensagens, compreensão e interpretação. anônimo espelhado pela imprensa e colocado
As mensagens podem durar e ser interpretadas como o titular último da soberania política. As
em diferentes contextos espaciais, temporais e teorias do contrato social pareciam fundar a
sociais. Interpretar é produzir textos com base legitimidade do Estado sobre a vontade do povo.
em textos. Mas a alfabetização ainda é uma prer- Mas essas teorias dos direitos naturais chegaram
rogativa de um pequeno grupo social de reis e a um paradoxo: se qualquer um, nascido com
estudiosos, nobres e sacerdotes. O Direito é uma uma razão natural, pudesse decidir o que era
mistura de costumes e convenções sociais, com justo e injusto, o mundo chegaria a uma anar-
alguns decretos imperiais, e pode ser aplicado quia; seria necessário um soberano para definir
equitativamente pelos sábios no exercício de sua a lei, para convencionar os critérios do lícito e do
prudência. “O conceito aristotélico de justiça ilícito. A moral torna-se uma questão de crença
distributiva, por exemplo, assume a existência pessoal – assim como a religião e a ideologia
de uma sociedade estratificada na qual não há política. O Direito torna-se Direito positivo, es-
dúvida de que as pessoas diferem umas das ou- tatal (LUHMANN, 2004, p. 139, 254-256 e 426).
tras por nascimento, sendo livres ou não livres, A nova escala de comunicação e complexida-
e por categoria” (LUHMANN, 2004, p. 218, tra- de leva ao conflito, e a era das revoluções liberais
dução nossa). culmina na formalização dos direitos naturais
A sociedade estratificada e hierárquica – em declarações de direitos, constituições e có-
como na ordem feudal e aristocrática euro- digos. O Direito é identificado com textos – lei,
peia – emerge da concentração dos recursos jurisprudência, doutrina jurídica. A sociedade
nos centros, e então toda a sociedade (tanto os moderna coloca a humanidade e o mundo como
centros como as periferias) passa a ser integrada seu horizonte final de comunicação, apesar de ter
em uma hierarquia abrangente de estratos. A formas nacionais de poder e legalidade. Como
forma de diferenciação é aquela entre os nobres a política, o Direito, a religião ou a economia,
e o povo, com suas diferenças de experiência os meios de comunicação de massa tornam-se

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um sistema funcional, com seu próprio ambiente interno (seu público)
e suas próprias organizações (imprensa e editoras, empresas de rádio e
televisão). O sistema dos meios de comunicação de massa, diz Luhmann
(2000), torna-se o principal mecanismo de memória social, responsável
por definir o que devemos lembrar e o que devemos esquecer.
Como havia analisado Habermas (1989), as revoluções liberais do
século XVIII, que adiantaram algumas das bases institucionais da demo-
cracia representativa contemporânea, foram produzidas em um contexto
de revolução nos meios de disseminação: a emergência da imprensa
livre e da publicação livre de livros e folhetos, agora sem censura real. A
semântica da “sociedade civil” passou então a significar a transição do
autoritarismo e da estratificação (do antigo regime) para a sociedade
liberal, uma sociedade de classes com grupos de opinião relativamente
fluidos (KOSELLECK, 2002). Uma nova cultura urbana – estruturada
não apenas por técnicas de imprensa (no sistema de mídia de massa),
mas também pela difusão da alfabetização (sistema de educação) e pelo
crescimento das universidades (sistema da ciência) – promoveu novas
arenas de divulgação e debate de ideias políticas. Enquanto até então a
política era uma questão da aristocracia que ocupava os órgãos políticos,
começando nos níveis locais de governo (como nas câmaras das vilas do
Brasil colonial2), agora ela estava desligada do vínculo exclusivo com a
nobreza.

Não é mais a comunicação que parte de um centro político (do rei, da


família real, da sociedade nobre da Corte ou do clero) e caminha no
sentido de muitos súditos, mas antes a comunicação de casa a casa, de
vizinho a vizinho – esse é o modelo segundo o qual começa a circular o
conhecimento de opinião nas grandes cidades como Londres com auxílio
dos meios de imprensa. […] a opinião pública se transforma em uma nova
forma de poder anônimo e invisível, em um sujeito (ficcional) que não
pode mais ser contornado em assuntos públicos (VESTING, 2020, p. 197).

Como observa Vesting (2020), essa sociedade burguesa comercial – a


“sociedade civil” na época do Iluminismo – valoriza a autoapresentação do
indivíduo nas relações comerciais e na bolsa de valores, nos cafés, clubes
e sociedades literárias, no teatro e na ópera, na política e na moral (como
na concepção de Adam Smith sobre o “espectador imparcial”, perspectiva
crucial para uma teoria dos “sentimentos morais”). Cada um observa a
si mesmo e aos outros através do espelho da “opinião pública”, pedindo
empatia e atraindo simpatia ou antipatia. Agora todos podem reagir às
decisões parlamentares, formulando sua própria opinião. No Direito, a

2
Ver Caldeira (2015, p. 44).

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esfera pública emerge em torno dos “direitos do mas a Constituição de 1891 ainda vedava o
cidadão” e dos “direitos subjetivos”. Na econo- voto aos analfabetos. Havia, então, uma cisão
mia, por meio dos preços no mercado, onde cada entre a opinião pública que formava e refletia
um representa algum fator de produção (tais as posições dos letrados (jornais) e a opinião
como tecnologias para os inventores, capital para popular formatada por um veículo que se de-
a burguesia e trabalho para o proletariado). No mocratizava: o rádio. A insatisfação popular,
século XIX, surgiram novas mídias: jornais diá- sua incompreensão ou rejeição de parâmetros
rios, fotografia, filmes mudos, rádio e livros de modernos (de saúde, por exemplo, como no
bolso. Isso pressionou a cultura burguesa contra episódio da Revolta da Vacina em 1904), via-se
a cultura de massa. A opinião pública ganharia sem canais institucionais de processamento pelo
então uma configuração pluralista-corporativa, sistema político. A população de uma sociedade
sendo modelada em seus temas por organizações rural em desagregação perdia suas referências
formais da “sociedade civil”: sindicatos traba- costumeiras e locais de sentido; estava agora
lhistas e patronais, partidos políticos (elitistas submetida não apenas à escassez de informação,
ou de massa), igrejas, associações, editoras e mas também a relações de clientelismo que co-
estações de rádio. O Direito foi pressionado locavam seu voto sob controle direto dos “coro-
a reconhecer direitos coletivos e liberdade de néis” latifundiários. A revolução de 1930 proporá
associação. Em linguagem sistêmica, surge uma organizar a opinião pública por meio de grupos
periferia política diferenciada, agrupando as profissionais, colocando o corporativismo como
comunicações individuais e mediando entre o solução urbana e industrial para uma sociedade
Estado (o centro organizacional do sistema) e que deixava de ser predominantemente rural e
a opinião pública (a esfera pública da política). agrária. As universidades formarão uma nova
O valor social e o peso político de uma pessoa elite profissional. O populismo se desenvolverá
variam de acordo com sua filiação e posição em também, como modalidade de comunicação
alguma organização e carreira, seja no Estado, típica de uma sociedade de massas ainda carentes
seja na empresa privada. de participação política. No período democráti-
A transição da oralidade para a escrita, a co sob a Constituição de 1946, a televisão chega
formação da imprensa e o desenvolvimento dos ao Brasil e progressivamente se transformará no
meios de comunicação de massa tiveram seus principal meio de formação da opinião pública.
contornos próprios no caso brasileiro3. Aqui a A partir de então, o controle desse meio – re-
imprensa só se desenvolve mais amplamente a gulado mediante concessões públicas – virá a
partir da vinda da Família Real, em 1808; até ser uma das chaves da comunicação política.
1821, porém, só havia a Imprensa Régia, subme- A inclusão das massas populares no processo
tida à censura oficial. Poucas faculdades, como político demandará ora as boas relações com
as de Direito e Medicina, foram sendo criadas. (ou concessão das) as principais empresas de co-
O voto era censitário e a sociedade mostrava municação, ora seu controle político autoritário
uma combinação de estratificação social rígi- (por exemplo, pela censura oficial). É revelador
da com escravidão. Tardiamente, em especial que, entre 1960 – quando os brasileiros elegeram
durante a República Velha, é que haverá um o último presidente civil antes do golpe mili-
crescimento maior dos veículos de imprensa, tar – e 1990 – quando tomou posse o primeiro
presidente eleito diretamente após a ditadura –,
3
Ver Amato (2019). o percentual de votantes em relação à população

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 29-53 abr./jun. 2021 35


total brasileira tenha saltado de 18% para 50% de imbecis que antes só falavam no bar após
(NICOLAU, 2004, p. 46). Só a partir de então um copo de vinho, sem prejudicar a comunida-
é que mais da metade da população brasileira de”. Ontem, diz Eco (apud NICOLETTI, 2019,
realmente compareceria às urnas. tradução nossa), “[e]les eram imediatamente
É nesse contexto de sua história política e silenciados, enquanto agora eles têm o mesmo
midiática que o Brasil adentra o século XXI, a direito de falar que um ganhador do Prêmio
era dos meios digitais de comunicação. O sur- Nobel. É a invasão dos imbecis”.
gimento de novas tecnologias de comunicação A novidade do advento das “redes sociais”
e sua instrumentalização pela disputa eleitoral digitais é que a diferenciação interna entre o
representaram novos desafios para um processo público que consome informações e as empresas
eleitoral adequado, no qual o poder econômico de mídia que selecionam, produzem e divul-
e midiático dos candidatos deveria ser filtrado gam a mensagem chega a um curto-circuito.
por regras impessoais limitadoras dos meios Os guardiões da informação são desacredita-
admitidos na competição política. O Supremo dos – a imprensa é vista como parcial, como
Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral amiga ou inimiga do governo ou da oposição.
têm sido confrontados com essa exigência, espe- Uma multidão de pessoas se tornou produtora
cialmente desde as eleições nacionais de 2018, e consumidora de informações, e não há uma
sobretudo na disputa presidencial – na qual o posição final de observação de segunda ordem
amplo uso de notícias falsas levou a reclamações que possa atestar com segurança a verdade ou
judiciais perante os tribunais superiores. a inverdade das notícias (mesmo as agências de
Notadamente na última década, o que emer- fact-checking são colocadas sob as suspeitas de
ge é uma opinião pública desagregada, baseada parcialidade que atingem os meios tradicionais
em comunidades fluidas e em fluxos de comu- de comunicação de massa). A interação – por
nicação intermediados pelas empresas digitais presença física ou por telefone – podia dissemi-
globais. As empresas tradicionais de mídia de nar mentiras e erros, mas seu nível e velocidade
massa – como os canais de TV – tornam-se cada de difusão eram limitados. Quando as pessoas
vez mais dissociadas do público em geral e de podem dizer a grupos cada vez mais amplos e
suas percepções e opiniões, que são fabricadas, interligados quais são suas opiniões, pontos de
refletidas e ecoadas alhures. Assim, vista ou “descobertas”, a comunicação pessoal
eleva-se ao nível do sistema funcional de mídia.
chega-se à situação de que fenômenos muito A informação como um todo e as mensagens –
novos como aqueles das shit-storms e das incluindo notícias falsas – também se tornam
fake news tornaram-se possíveis: uma cultura
desligadas de seus fornecedores originais e pas-
de permanente transgressão e dissolução de
fronteiras, do constante oscilar entre a ex- sam a pertencer ao sistema “anônimo” da comu-
pressão de opinião (em conformidade com nicação digital autorreferente. Em um mundo
as regras) e a ofensa (em desconformidade de credos livres e divergentes, a comunicação
com as regras), entre esfera pública e esfera
não é restringida por costumes comuns, como
privada, entre a crítica legítima e suspeitas
delirantes etc. (VESTING, 2020, p. 205). em uma tribo. Mas uma organização neotribal
de credos políticos emerge para pressionar os
O renomado escritor e estudioso da comu- limites de tolerância que o Estado liberal ins-
nicação e semiótica Umberto Eco profetizou: titucionalizou após as guerras religiosas. Uma
“[a] mídia social dá o direito de falar a legiões crise generalizada de expectativas contamina

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uma sociedade que foi estruturada por meio de pública – uma arena dentro do sistema polí-
papéis específicos e de competências comuni- tico, mas dependente dos serviços prestados
cativas delimitadas: da política e dos políticos, por um acoplamento estrutural com o sistema
da ciência e dos especialistas, do Direito e dos dos meios de comunicação de massa. Mesmo
juristas. Neste contexto de crise, surge o populis- que a democracia atual seja definida como uma
mo para simplificar excessivamente os resultados competição entre as elites pelo voto das massas
das pesquisas científicas, para desconfiar dos (SCHUMPETER, 2003, cap. 22), esse cenário
especialistas, para corroer os procedimentos institucional é crucial para a identificação anô-
de tomada de decisão política sob o Estado de nima e generalizada das tendências e posições
Direito. na esfera da opinião pública.
A democracia contemporânea baseia-se em As distorções do modelo liberal-democrá-
uma triangulação processual entre uma esfera tico de competição partidária pluralista são
pública (uma opinião pública generalizada pelo conhecidas na história política brasileira, em-
sistema funcional dos meios de comunicação bora – como a onda global contemporânea de
de massa), organizações periféricas (partidos, populismos autoritários de direita – não tenham
grupos e movimentos que agrupam programas e um caráter nacional distinto. Dois pares de dis-
reivindicações políticas) e a organização central torções típicas afetam esse esquema básico de
(o Estado, sua burocracia e seus poderes políti- democracia eleitoral: por um lado, o clientelismo
cos, cuja tomada de poder é institucionalizada e o corporativismo; por outro, o populismo e
por meio da cisão entre governo e oposição) o autoritarismo. Esses tipos combinam-se em
(LUHMANN, 2014b; TORRES NAFARRATE, diferentes graus, dependendo do contexto his-
2009). Pela representação, as decisões são des- tórico. O novo protagonismo das redes digitais
dobradas em decisões sobre quem irá decidir. desestabiliza a representação política (e outros
Há uma tendência de que os políticos se tornem setores, como a saúde pública), assim como a
mais profissionais. O povo toma uma decisão emergência da imprensa, da televisão ou do
de segunda ordem: elege aqueles que decidirão rádio alteraram a base comunicacional em que
sobre questões substantivas, criando leis e defi- a sociedade e seus subsistemas se reproduzem.
nindo políticas públicas; uma autonomia relativa A própria representação política assume ares
é institucionalizada entre o eleitor e o eleito, já de mandato imperativo, em conexão constante
que o mandato é representativo, não imperativo. com os eleitores e suas demandas repercutidas
A separação de Poderes idealizada nos séculos nas redes.
XVII e XVIII vem a se alterar, especialmente sob Vesting (2020) analisa a mudança na forma-
o impacto dos partidos de massa, organizados ção da opinião pública trazida pela inteligência
a partir dos séculos XIX e XX. artificial e pela gestão de big data. Empresas
Essa engenharia institucional dá origem a especializadas em fornecer marketing customi-
um modelo de competição partidária pluralista zado de acordo com algoritmos de aprendizado
(DAHL, 1989): em sua dinâmica, os cidadãos automático que agregam dados sobre preferên-
votariam com base em uma identificação ideo- cias de potenciais eleitores (como pistas que
lógica com os valores e programas professados deixamos em redes sociais) possibilitam uma
pelos partidos. Eles escolheriam confiar em abordagem muito mais personalizada e eficiente
significados abstratos e impessoais debatidos e a nichos do eleitorado do que os comícios em
esclarecidos publicamente na arena da opinião praças públicas ou discursos na televisão, eventos

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comumente usados pelos políticos como meios está avançando em relação ao primeiro grupo
para “falar diretamente às massas”. Esse fenôme- (por exemplo, o Facebook criou em 2020 um
no implica em grande medida uma substituição Conselho de Supervisão), isso é muito mais
da identificação com ideologias, programas e difícil em relação à comunicação em grupos
partidos – que medeiam entre preferências in- efetivamente privados.
dividuais e problemas e agendas coletivas – pela Retomando as definições conceituais do
abordagem personalizada da própria identidade, início deste tópico, podemos compreender a
situação particular, necessidades familiares e especificidade do fenômeno das fake news. Não
preocupações imediatas. Os dados psicométricos se trata da mentira propagada dentro de uma
permitem que as campanhas eleitorais tracem pequena comunidade com fronteiras locais,
o perfil de seus alvos à medida que esses eleito- nem da quebra dos segredos da corte em uma
res constroem comunicativamente sua própria sociedade estratificada. Trata-se de um fenô-
identidade, por meio das informações que pro- meno vinculado à própria tecnologia dos novos
duzem e consomem em redes digitais. A política meios de comunicação de massa – as plataformas
observa cada um como cada um pretende ser digitais5. Os meios de disseminação são respon-
observado, de acordo com os rastros deixados na sáveis pela redundância social. Os meios digitais
rede mundial4. Assim, os sistemas sociais (como protagonizam a dinâmica em que a informação
a política) decodificam os corpos e mentes dos atrai a atenção dos usuários por ser facilmente
indivíduos – configurando as personae políticas decodificada e atrair uma forte apreciação moral
dos eleitores e construindo os discursos e gestos (de apoio ou repulsa) – até aí, também o rádio
dos personagens-candidatos. ou a televisão constroem sua audiência dessa
Desse modo, cada um pode ser apenas seu maneira. Porém, especificamente nos meios
próprio Narciso, o que dificulta a tarefa, essen- digitais há uma distinção no nível da mensagem:
cial para o sistema político e para a democracia a informação é confirmada por uma série de
representativa, de agregar opiniões individuais e mensagens similares de pessoas de confiança
coletivas e formular uma opinião pública univer- (geralmente parentes, amigos e colegas de tra-
salista. A resposta jurídica usual – simplesmente balho). Assim, por meio da redundância (que
ampliar o alcance da “liberdade de expressão” – caracteriza o aspecto massificado dos meios de
pode então violar a tolerância e o pluralismo em disseminação), a mentira repetida ganha o valor
que se baseia a própria sociedade diferenciada. social de “verdade”. Nas plataformas digitais,
Uma nova governança das autonomias digitais os controles sobre as fontes e a acreditação da
é necessária. Devem-se discernir, por exemplo, informação são inexistentes (livre acesso e pu-
as mídias sociais de acesso público ou menos blicação nas redes) ou desautorizados (quando a
privado – como Facebook (funcionando des- mídia tradicional ou as agências de fact-checking
de 2004), YouTube (2005), Twitter (2006) ou repercutem as informações das redes, fazendo
Instagram (2013) – e a comunicação privada por
redes digitais, como em grupos de WhatsApp 5
Baecker (2006) propõe relacionar as fases típicas da
evolução social com algumas teorias paradigmáticas: à
(2009). Enquanto a autorregulação do conteúdo fase da escrita corresponderia a emergência do finalis-
(inclusive de mensagens extremistas políticas) mo aristotélico; o racionalismo individual cartesiano (ou
kantiano) expressaria o advento da imprensa; a teoria dos
sistemas sociais de Luhmann (com seus conceitos como
autopoiese, autorreferência, autologia e codificação binária)
4
Sobre a construção de “perfis”, ver Moeller e D’Ambrosio seria a expressão descritiva da sociedade organizada pelos
(2019). media digitais.

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uma observação “de segunda ordem” do que as redes sociais observaram).
Assim, a compreensão que se tem da mensagem (confiança quanto ao
“transmissor”) e da informação (moralmente carregada) passa a consti-
tuir uma “narrativa” prêt-à-porter. Essas bolhas de comunicação digital
engajam as pessoas em uma rede que já provê os contra-argumentos para
narrativas discrepantes e para a desautorização de informações e mensa-
gens que venham a conflitar com o repertório cultivado dentro do grupo.
Formam-se expectativas com alta carga normativa – de resistir diante de
fatos que as contrariem – e baixa capacidade cognitiva de aprender com
os fatos e revisar crenças.

3 Regulação ou metarregulação?

Diante das novas tecnologias de comunicação, a privacidade dos dados


pessoais foi posta em risco pela instrumentalização de tais informações
para fins eleitorais e comerciais, com efeitos políticos, sanitários e edu-
cacionais, entre outros. Como uma questão de fronteira, tal fenômeno
envolve fluxos de comunicação transnacionais. Como um problema
jurídico da sociedade mundial, a questão levanta propostas e iniciativas
de regulamentação além do nível dos sistemas jurídicos nacionais, o que
não exclui – apenas torna mais complexas – as tentativas de lidar com o
problema no nível da constituição, das leis e das sentenças produzidas
dentro de uma determinada ordem nacional (doméstica).
Uma profunda dúvida diz respeito a como programar o Direito no
complexo cenário contemporâneo da sociedade mundial baseada na mídia
digital. O modelo racionalista para os positivistas formalistas do século
XIX era a filosofia moral de Kant: uma “racionalidade rígida, dedutiva,
abrangente […] pronta, embalada em um imperativo incondicional”
(VESTING, 2018, p. 18, tradução nossa); assim se construiu a imagem do
Direito (ao lado da ética) como conjunto de signos, um sistema linguís-
tico ou ideal, uma hierarquia única (estatal) de fontes (oficiais), com as
normas sendo escalonadas por relações lógicas de validade e formando
um conjunto completo e coerente.
Há um século, Weber (1978, p. 880-889) chamava tal concepção de
“racionalidade formal” – uma pretensão de sistematização completa das
premissas decisórias do Direito –, mas já notava tendências “antiformalis-
tas” ou de “materialização” do Direito, isto é, de permeabilidade a juízos
políticos, econômicos ou éticos não previamente filtrados pelas normas
positivadas. De fato, o Direito liberal buscava sua plena autonomia, sua
imunização diante de outros juízos (tidos como subjetivos) que pudes-
sem incidir sobre a justificação das decisões administrativas ou judiciais

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de aplicação da norma, ao passo que o Direito do Estado social buscou
construir uma maior “responsividade”, autorizando juízos discricionários
em busca da justiça substantiva no caso concreto (NONET; SELZNICK,
2001).
Nos termos da sociologia jurídica sistêmica (LUHMANN, 1983,
cap. 4-5, 2004, p. 196-203, 2014a, p. 174-185), pode-se associar a primeira
forma de normatização jurídica com a construção de programas decisó-
rios condicionais, com hipóteses de incidência claramente delimitadas
e consequências devidas bem estipuladas (se x, então y). Por sua vez,
o Estado social procurou construir compensações, pela via do Direito
público, às formas clássicas do Direito privado. Para tanto, disseminou
cláusulas abertas, como as de “função social” ou “ordem pública”, e trouxe
para o próprio Direito privado juízos mais concretos e particularísticos;
por exemplo, por meio da verificação da “boa-fé” ou da ausência de
“abuso de direito”. Todos esses padrões normativos dão maior abertura
a um juízo equitativo e finalístico, compensatório da rigidez das regras
universais, gerais e abstratas. Especialmente no Direito público, a de-
finição principiológica ou a mera demarcação de objetivos de política
pública fornecem programas decisórios finalísticos, que definem um
estado a ser atingido, mas não predefinem os meios para concretizá-lo.
Tal indeterminação precisa ser gerenciada no momento de aplicação do
princípio ou da policy. Nesse momento ocorre uma “condicionalização”
dos programas finalísticos: é preciso definir as hipóteses e consequências
autorizadas pelo Direito positivo, moldando a regra para o caso concreto.
De um lado, o intérprete-aplicador (tipicamente, o administrador ou
juiz) é imunizado das responsabilidades (jurídicas ou políticas) de sua
decisão sobre quais meios são propícios a atingir os fins definidos; de
outro, uma decisão judicial buscará analisar os meios e fins nos limites do
caso concreto (por exemplo, analisando a proporcionalidade de medidas
alternativas), sem considerar as medidas mais eficazes “em geral” (fora
das alternativas delimitadas na controvérsia sob juízo). Nesse sentido,
embora sujeito a justificar a adequação e necessidade de suas escolhas,
o administrador permanece com uma discricionariedade relativa para
definir, por juízo de conveniência e oportunidade, as formas de concre-
tização da política pública.
Essa visão de exclusividade estatal-nacional da programação jurídica
vem cedendo diante da globalização econômica, sanitária, científica e co-
municacional. Crises, pandemias, pesquisas e estratégias de comunicação
espraiam-se além das fronteiras do Estado-nação, embora demandem que
este também as gerencie. Com isso, para o Direito, “[e]m vez da hierar-
quia contínua e linear que a imagem da pirâmide expressava, aparecem
hierarquias descontínuas, como outras tantas pirâmides inacabadas, e

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hierarquias enredadas que formam ‘anéis estranhos’, retomando a ima-
gem de Hofstadter”, diz Delmas-Marty (2004, p. 87-88), visualizando
entre ordens jurídicas diversas relações de “hierarquias descontínuas e
pirâmides inacabadas”. Em um só sistema jurídico (sob os pressupostos
da soberania política e do monismo jurídico), há critérios consensuais
para a integração de lacunas regulatórias e para a solução do conflito
aparente de normas. Entretanto, entre ordens jurídicas diversas, há uma
colisão cujos desdobramentos não estão programados.
Por isso, se Luhmann sustentava uma imagem predominantemente
estatal do Direito (nacional ou internacional) (THORNHILL, 2021), vários
teóricos sistêmicos do Direito têm procurado, desde fins do século XX,
apontar a emergência de ordens jurídicas transnacionais, setoriais, não
estatais, as quais acabam criando uma normatividade própria para lidar
com problemas comuns a toda a sociedade mundial – caso do comércio
internacional, da internet, dos direitos humanos, do esporte, da saúde
e, agora, das fake news.
Da hierarquia unitária de normas passa-se a uma rede heterárquica
de padrões e ordenamentos conflitantes (LADEUR, 1997, 1999). Hoje, o
sistema jurídico aparece como uma arena da sociedade em que disputam
espaço vários ordenamentos conflitantes, “um loop infinito de incessante
adiamento”, e a autoridade e a justificação do Direito repousam em última
instância sobre “uma racionalidade difusa (sem centro)” (VESTING,
2018, p. 21-23, tradução nossa). As Constituições modernas surgiram
como uma Carta, um único documento representando a unidade do
Estado-nação soberano, mas agora seus equivalentes – como a ordem
transnacional dos direitos humanos e digitais – só podem evoluir como
regulamentações fragmentadas e setoriais6, com múltiplas ligações e
mediações entre si7, seguindo a transterritorialidade, heterogeneidade
e as infinitas autorreferências e heterorreferências proporcionadas pela
comunicação na rede mundial de computadores, com sua ilimitada
hiperligação.
O tratamento jurídico das fake news, de sua produção e disseminação,
de suas repercussões e responsabilidades, coloca especiais desafios ao
sistema jurídico, especialmente ao Direito estatal nacional. Esse orde-
namento tem dificuldades em processar demandas que são, ao mesmo
tempo: (1) ainda pouco programadas pelas instâncias políticas e buro-
cráticas (legislação e regulação); (2) altamente baseadas em expectativas
cognitivas (a expertise a respeito dos novos meios de disseminação da
informação); (3) com múltiplas interferências sistêmicas (especialmente

6
Ver Teubner (2012).
7
Ver Neves (2009).

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na política, na mídia, na economia, na ciência torna-se, então, um problema de regulação
e na saúde); e (4) de caráter transfronteiriço dentro do pluralismo jurídico da sociedade
(tecnologias mundiais privadas). mundial.
Segundo a teoria dos sistemas (LUHMANN, A definição estrita de programas condicio-
2004, cap. 7, 2014a, cap. 4), a programação do nais implica um regramento minudente das si-
sistema jurídico baseia-se em “decisões progra- tuações, o que parece não recomendável diante
mantes” tomadas por organizações da periferia de uma temática emergente como as fake news
do sistema jurídico (como os parlamentos, os e de uma tecnologia ainda restrita ao controle
acordos privados, os regulamentos administra- de algumas poucas empresas transnacionais,
tivos, as formas de mediação e solução adequa- como as plataformas das redes sociais digitais.
da de disputas) e em “decisões programadas” A indicação indeterminada de programas
tomadas pelas organizações centrais do sistema finalísticos abre zonas de controvérsia e discri-
jurídico (os tribunais). Portanto, o déficit de cionariedade dentro da Administração Pública
programação característico de problemas jurí- e do Judiciário. Parece tratar-se de uma ferra-
dicos emergentes impele os tribunais a decidir menta também imprópria para um tema que
sem dispor de critérios seguros, elaborados envolve repercussões jurídicas sensíveis, como
pela legislação, consolidados pela jurisprudên- o conflito potencial entre liberdade de expres-
cia ou convencionados pela doutrina. Nesses são, privacidade de dados pessoais e direitos
problemas exemplares, como é o caso da regu- políticos, sanitários ou educacionais.
lação das fake news, uma providência impor- Uma sociedade complexa e diferenciada
tante é adensar a periferia do sistema jurídico em várias arenas comunicativas coloca uma
(desenvolvendo critérios e organizações para série de problemas específicos com um grau
programarem os conflitos potenciais), sem o de incerteza tal que a simples ordenação “de
quê os tribunais sofrem ao mesmo tempo uma cima para baixo” pelo Estado pode criar um
avalanche de casos e uma falta de bases jurídicas Direito incapaz de tratá-los. Seu pressuposto,
para lastrear suas decisões. afinal, é um Estado autossuficiente, isolado e
Assim, também cabe considerar que o uma hierarquia de comando e controle, em que
Direito funciona especialmente com base em a política e o alto escalão da Administração
expectativas contrafáticas, ao passo que sistemas Pública planejam, e os funcionários em contato
como economia, ciência e os meios de comuni- direto com os cidadãos simplesmente executam
cação de massa trabalham primacialmente com o que lhes foi comandado nas diversas áreas
expectativas cognitivas (LUHMANN, 2014a, das políticas públicas (educacionais, sanitárias,
p. 31-39). A insegurança do Direito – em não científicas, econômicas). Em contraponto a
dispor de critérios para mensurar o risco que tal configuração jurídico-estatal surge o diag-
as novas tecnologias trazem para a privacidade nóstico de que a legislação, a jurisprudência
dos cidadãos, para as regras do jogo da disputa e o regramento administrativo podem ser
eleitoral ou para a saúde pública – pode pro- instrumentos excessivamente rígidos, lentos
vocar disfuncionalidades no sistema jurídico, ou insensíveis para enquadrar juridicamente
retardando respostas adequadas. As tentativas fenômenos emergentes. As teorias políticas,
de regulação nacional do tema esbarram no jurídicas e econômicas passam a valorizar então
caráter transnacional dos fluxos comunicativos os discursos da “regulação” e da “governança”. A
de dados e de sua comercialização. A questão teoria jurídica passa a falar de “direito reflexivo”,

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“programas relacionais”, “procedimentalização” do Estado seria induzir, negociar, coordenar as
e “autorregulação regulada” (como será discu- empresas para que desenvolvam esses mecanis-
tido no próximo tópico). mos, e não impô-los externamente.
Para sumarizar o que está em jogo na re­ Por vezes se diz que o Estado social keyne-
definição do perfil jurídico das políticas públi- siano, com maior atuação no planejamento e
cas diante dos modelos recebidos de paradig- na intervenção econômica, é um “Estado re-
mas liberais e social-democratas, seria necessá- gulador”. Esse é o sentido norte-americano da
rio evitar o “trilema regulatório” (TEUBNER, configuração governamental que emergiu a
1986a). Em suma, um Direito sem capacidade partir da crise de 1929 e desenvolveu no âmbito
de concretizar e executar suas prescrições recai do Estado uma série de agências, corporações
no simbolismo: não consegue estruturar sufi- e empresas públicas voltadas a regular setores
cientemente as expectativas, fazendo proliferar como os serviços públicos e âmbitos como
proclamações vagas e ambíguas de valores. o mercado de capitais, o mercado de crédito
De outra parte, um Direito mobilizado imobiliário, as relações de trabalho e o desen-
como simples instrumento do poder estatal volvimento regional. Nesse sentido, as novas
perde consistência, é invadido e alienado por formas estatais e mistas de governo e gover-
imperativos de outros sistemas, dissipa-se em nança seriam então “pós-regulatórias” (CALVO
sua auto-organização, torna-se disfuncional: GARCÍA, 2018). Em outros casos, diz-se que o
não consegue generalizar congruentemente ex- Estado regulador é justamente aquele que adota
pectativas normativas, fazendo-as resistir a de- uma institucionalidade neoliberal, que abre
silusões. Por vezes, usa-se o Direito como mero espaço à iniciativa privada e às organizações so-
canal de comunicação de mensagens políticas, ciais – justamente, à autorregulação – e retrai-se
econômicas, educacionais, sem aceitação dos de sua atividade planejadora e empreendedora
controles jurídicos internos, de consistência, direta, concentrando-se na regulação setorial e
procedimentos devidos e garantias. Ao lado do na defesa da concorrência (FARIA, 1999, 2011).
simbolismo e do instrumentalismo, há um outro Tendo esclarecido a equivocidade do termo, o
beco sem saída: a “juridificação” (TEUBNER, que importa é notar que os discursos e as for-
1987), entendida como hiper-regulação dos mas jurídicas que marcam a passagem de um
sistemas sociais (economia, política, educação, governo nacional hierárquico e unitário para
ciência) pelo Direito. uma governança mista (público-privada) e mul-
Positivamente, a saída do trilema regulató- tinível, e de uma regulamentação administrativa
rio (TEUBNER, 1986a) enfatiza então as neces- minudente (pelo Estado) para uma regulação à
sidades de coordenação entre os sistemas (em distância das atividades privadas (econômicas,
oposição à legislação ou regulação “simbólica”), midiáticas, sanitárias), trazem tanto indícios
de externalização (promovendo a concepção de descritivos importantes quanto pretensões de
mecanismos de autorregulação, em contraste legitimação problemáticas (AMATO, 2013-
com a “juridificação”) e de autonomia (atenção 2014; CHRISTODOULIDIS, 2020).
à autorreferência jurídica, impedindo o “ins- À luz de um modelo privatista relacional,
trumentalismo”). Um exemplo (TEUBNER, a abertura dos enquadramentos do Direito
1986b) seriam os mecanismos de codetermi- público à negociação entre várias “partes in-
nação capazes de auto-organizar dentro das teressadas” (stakeholders) expressa uma nova
empresas uma “democracia industrial” – o papel semântica jurídica, mais tecnificada e que cog-

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nitiviza expectativas normativas, i.e., submete setores altamente complexos e especializados:
a expertises tecnocráticas e a critérios “pru- neles, a coexistência de diversas ordens jurí-
denciais” de gerenciamento de riscos as bases dicas e de ordens jurídicas de perfis variados
da legitimidade jurídica. Externaliza-as para a (algumas estatais, outras privadas) pode levar
ciência e a economia (“experimentais” e “com- a uma dinâmica de aprendizados regulatórios
petitivas”), em vez de remetê-las ao sistema mútuos. Por outro lado, não se pode deixar
político (“representativo” ou “participativo”). as ordens autorreguladas construírem uma
Essa espécie de desvio da politização decisória imunidade absoluta diante das ordens estatais
pode recair então facilmente em uma tecnifi- democraticamente legitimadas. Logo, tais di-
cação mercadológica. E no neocorporativismo reitos de autonomia poderiam funcionar como
procedimental reapresentam-se, então, os ve- pretensões que garantissem o monitoramento
lhos problemas do corporativismo: nem todos da ordem jurídica autorregulada pelo Direito
estão incluídos e organizados para negociar, de estatal (nacional, internacional ou supranacio-
modo que a juridicidade imanente aos sistemas nal) e a exigibilidade do devido processamento
funcionais e organizacionais, esse “direito re- de violações e reclamações na ordem privada.
flexivo” heterárquico, divergente da solução Esses direitos seriam uma das formas possí-
unitária estatal-burocrática, não pode realizar veis de “metarregulação”, isto é, de regular a
sequer uma “democracia organizacional” se me- capacidade autorregulatória de organizações
ramente abandonado à autorregulação (FARIA, e redes setoriais.
1999, p. 281-291). Muito menos esse Direito
pode ser referido como uma “autoconstitu-
cionalização” propelida espontaneamente por 4 Autorregulação na Lei das fake
investidores e consumidores no mercado – na news
linha de Teubner (2012) –, prescindindo do
sistema político e da mediação estatal mais Diante de sistemas especializados – como o
universalista8. dos meios de comunicação de massa –, o Direito
Em vez de abandonar os temas difíceis à estatal precisa alinhar-se à dinâmica autorre-
autorregulação privada, pode-se tanto pensar ferente do sistema no qual intervém, trans-
em formas (estatais) de Direito privado que formando-se mais em uma “inter-referência”
abram espaço e definam parâmetros para a (WILLKE, 1992, p. 379, 2016, p. 27-33). A in-
formação de ordens jurídicas privadas (mais tervenção exige autolimitação do sistema inter-
complexas que os negócios jurídicos atípicos ventor e adaptação aos critérios e dinâmicas do
abrangidos tradicionalmente na concepção sistema que está sendo apoiado, com fomento
de autonomia privada) quanto em quadros de à capacidade de organização desse sistema.
Direito público que tratem da autorregulação. A construção de interfaces procedimentais –
Nesse sentido, Amato (2018, p. 256-257) sugere âmbitos de negociação (conselhos, comitês,
a categoria constitucional de direitos funda- comissões), organizações intermediárias mistas
mentais de “autonomia”. Simplesmente vedar (público-privadas), procedimentos regulados
a autorregulação e pretender substituí-la por de seleção e monitoramento – ajuda a enca-
uma direção estatal seria contraproducente em minhar produtivamente os conflitos e reger os
discursos dos representantes de cada sistema
8
Ver a crítica de Amato (2015). funcional e organizacional em heterorreferên-

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cia. O que se visa, afinal, é menos ao consenso para a construção, crítica e reconstrução das
do que à conectividade de novas informações, formas institucionais dessas relações.
à tradução das comunicações de um sistema Portanto, há basicamente três métodos de
a outro, conforme seus códigos, programas e raciocínio e decisão jurídica, os quais enfatizam:
intransparências mútuas. O ponto de chegada (1) decisões tomadas com base em programas
é uma expansão das opções (comunicativas, mais estruturados, com definição de hipótese
políticas, educativas, sanitárias, assistenciais, e consequente normativo (regras); (2) deci-
artísticas) para cada sistema; portanto, uma sões guiadas por programas menos estrutu-
ampliação de sua liberdade. rados, com orientação a fins, mas indefinição
Teubner (1983, 1986a, 1992) designa como de meios (princípios, políticas, propósitos);
“direito reflexivo” as formas jurídicas que se (3) decisões de segunda ordem, que terceiri-
distanciam do sistema político estatal e se im- zam a solução dos conflitos a outra arena, mas
plantam na dinâmica autorreferente de outros procuram garantir que ela cumpra parâmetros
sistemas (como a economia, as empresas e os de “legalidade” ou “devido processo” (proce-
sindicatos, ou a educação, as escolas e as asso- dimentalização).
ciações de pais)9. Outros autores chamam tal A referência a “procedimentalização” ou
formatação jurídica autorregulatória de “pro- “reflexividade” não aponta simplesmente para
gramas relacionais” (WILLKE, 1986) ou de as “normas de organização” como contrapartes
“procedimentalização” (WIETHÖLTER, 1986, lógicas das “normas de conduta”, sendo estas
2011). Nessa dinâmica de procedimentalização programas condicionais ou finalísticos. Tem-se
dos conflitos, o órgão decisório trata de estabe- em vista um modelo específico dessas normas
lecer os parâmetros (normas e garantias pro- de organização: elas externalizam as decisões
cessuais, e não os objetivos ou resultados) pelos de um ato arbitral de certa autoridade para a
quais as partes do conflito devem prosseguir na autonomia das partes em uma relação conti-
sua relação contínua, no decurso da qual devem nuada, em cujo curso podem surgir conflitos.
realinhar as suas expectativas, resolvendo elas Na verdade, tem-se em mente uma mudança
próprias as escolhas concorrentes de meios e as geral no perfil dos próprios procedimentos
diferentes interpretações dos fins. De fato, aqui judiciais, administrativos, legislativos e pri-
o juiz ou árbitro é transformado em mediador vados – um afastamento da rígida burocracia
e, em seguida, fomenta a negociação em curso formalizada, hierarquizada e autocontida em
pelas partes de uma cooperação da qual surge todos esses campos. No entanto, essa mudança
um conflito. O regulador (legislador, admi- no perfil jurídico e gerencial de organização e
nistrador ou juiz) visa não a executar regras procedimento é um movimento mais refina-
pré-definidas para resolver as controvérsias, do e qualitativo, diferente do mero abandono:
nem simplesmente a definir qual seria a jus- “deslegalização”, “desjudicialização”, “desregu-
tiça substantiva naquele caso, e sim atua para lamentação” ou “desformalização” como fugas
garantir as condições organizacionais para que ao amparo jurídico que colocam algumas áreas
aquelas relações sociais prossigam e construam e pessoas de volta a um “estado de natureza”
o consenso entre suas partes por meio de jus- (com certeza, com traços mais hobbesianos do
tificativas argumentadas, incluindo ocasiões que rousseaunianos). A personalidade jurídica
tem de ser assegurada com uma concepção
9
Ver também Rehbinder (1992). diferente dos direitos, deveres, poderes e res-

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ponsabilidades, e esperam-se alterações corres- pelas partes interessadas e de investigação e
pondentes na organização. Isso é diferente de sanção das condutas desconformes. Finalmente,
amplificar uma imunidade em face do controle legitimam-se na medida em que procedimenta-
jurídico e, em seguida, reforçar as assimetrias lizam a inclusão decisória das partes afetadas,
e vulnerabilidades sociais. o que pode ter diferentes graus: desde a mera
Daí surge a questão da “metarregulação”10 consulta ou audiência a essas partes até direitos
ou da “autorregulação regulada” (SCHULZ; mais amplos de voto e veto.
HELD, 2004; PORTER; RONIT, 2006) – isto Claramente inspirada nessa conceitualidade
é, da necessidade e dos modos de regular a sistêmica12, a versão revisada do Projeto de “Lei
autorregulação, quando indisponível um centro das fake news” (ou Lei Brasileira de Liberdade,
ou ápice que pudesse coordenar ou dirigir as Responsabilidade e Transparência na Internet,
ordens jurídicas em conflito. A combinação PL no 2.630/2020) (BRASIL, 2020a) – aprovada
entre regulação estatal e autorregulação privada em junho de 2020 no Senado Federal e remetida
depende de organizações intermediárias que à Câmara dos Deputados – incorporou em seu
acoplem o sistema jurídico a outros sistemas art. 31 o conceito de autorregulação regulada13,
sociais (como, no caso das fake news, o siste- prevendo que a autorregulação nesse setor seja
ma dos meios de comunicação). Sciulli (1992, “certificada pelo Conselho de Transparência e
cap. 6) sugeriu que esses parâmetros mirassem Responsabilidade na Internet”, visto como uma
o que Fuller (1969, p. 33-94) definiu como as forma de institucionalizar “o princípio da corre-
aspirações de uma ordem jurídica: 1) genera- gulação, onde Estado e iniciativa privada atuam
lidade; 2) promulgação (informação); 3) pros- juntos para melhorar o ambiente, neste caso, da
pectividade (não retroatividade); 4) clareza Internet” (BRASIL, 2020b, p. [14]). Esse prin-
(sobre o reconhecimento do cumprimento ou cípio está presente no Direito da Internet em
descumprimento das normas, i.e., compliance); diversos ordenamentos e propostas regulatórias,
5) não contradição (das prescrições); 6) pos- como na lei alemã para a melhoria da aplicação
sibilidade (do que é prescrito); 7) constância; da lei nas redes sociais (NetzDG, de 2017)14 ou
8) congruência (entre condutas e deveres pro- em recomendações da União Europeia sobre a
clamados). regulação das mídias (desde 2004)15.
Nas diversas escalas de governo, mecanismos O art. 31 da Lei brasileira projetada (BRASIL,
de regulação da autorregulação assentam-se em 2020a) visa aos “provedores de redes sociais e
um tripé que busca catalisar a capacidade de de serviços de mensageria privada” e traça di-
aprendizagem e autocontrole organizacional11. retrizes para que abram canais de reclamação
Em primeiro lugar, esses mecanismos devem e monitoramento de denúncias, desenvolvam
garantir transparência (acesso e visibilidade das procedimentos para a suspensão de contas inau-
informações) ao público e avaliação por corpos tênticas, construam uma normatividade própria
independentes (com mandato desvinculado da por meio de resoluções e súmulas e garantam a
chefia da própria agência ou departamento que transparência mediante relatórios periódicos ao
estão monitorando). Depois, devem ter vias de
recebimento e processamento de denúncias 12
Ver Abboud e Campos (2020).
13
Agradeço as indicações de Ricardo Campos a esse
respeito.
10
Ver Parker (2007); Gunningham (2012). 14
Ver Ladeur (2020).
11
Ver Lall (2017). 15
Ver Marsden (2004).

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Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet (um órgão
misto, com representantes de diversos Poderes e agências do Estado e
da sociedade civil). Claramente, trata-se de uma forma de neocorpora-
tivismo procedimental, voltada à “metarregulação”, e não à regulação
estatal direta. As normas diretamente relacionadas a comportamentos
nas redes digitais devem ser desenvolvidas pelos provedores privados em
seu órgão autorregulatório, sob a supervisão do órgão público-privado,
que é o Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet.
O instituto da “autorregulação regulada” tem grande potencial para
viabilizar a construção jurídica experimental de parâmetros normativos
para lidar com o fenômeno da disseminação das notícias falsas. Pode
servir de parâmetro também para o tratamento jurídico de outros temas
e setores. A legislação brasileira mostra assim um caminho alternativo ao
regramento direto, pelo Estado, das condutas dos usuários e provedores
das redes sociais, bem como à pura definição principiológica, que poderia
expandir ainda mais – dada a indeterminação inerente a esse tipo de
programa jurídico – o potencial interventivo das autoridades públicas
nas comunicações privadas. De outro lado, como as próprias empresas
privadas de comunicação digital podem constituir uma forma de poder
econômico e comunicativo suscetível a abusos, a providência de instituir
um conselho misto para regular a autorregulação abre caminho para
algum controle também da responsabilidade dessas empresas.
Com o aprendizado mútuo entre o Direito estatal (em seu papel
“metarregulador”) e o Direito autorregulado, há espaço maior para
apreciar o caráter técnico da própria programação digital e traduzi-lo
para as formas jurídicas de tipificação de condutas, responsabilidades
e sanções. A interação periódica entre o Conselho de Transparência
e a instituição de autorregulação das empresas de mídia digital deve
reforçar a corrigibilidade das próprias normas que venham a ser cria-
das, testadas e modificadas, inclusive para se atualizarem em relação à
evolução tecnológica. Claro que o problema da “captura regulatória” não
desaparece no caso do órgão regulador da autorregulação; entretanto,
trata-se de uma arquitetura institucional com potencial para garantir,
por meio dos representantes de vários órgãos estatais e da sociedade
civil, que controles mútuos sejam instituídos com base na concorrência
entre esses diversos representantes e seus interesses e, ao mesmo tempo,
que potenciais conflitos contem com procedimentos e arenas adequados
para sua resolução.
Remetendo a construção do Direito para a autorregulação priva-
da – uma outra ordem jurídica, autônoma ou parcialmente autônoma
(TEUBNER, 1993) –, o Direito estatal não apenas consegue supervi-
sioná-la (regular a autorregulação), mas também pode aprender com

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a dinâmica de construção de procedimentos, institucionalizar o sistema jurídico. Na dimen-
normas e doutrinas que tem lugar nessa ordem são material, o caráter altamente especializado
jurídica paralela, em que há maior contato com dos problemas exige a colaboração de espe-
o conhecimento dos próprios desenvolvedores cialistas, e as normas jurídicas adquirem um
das plataformas digitais e maior flexibilidade caráter altamente cognitivo: tornam-se muitas
para adaptar e corrigir os parâmetros nor- vezes regras técnicas, nas quais a constatação
mativos. A partir daí o Direito estatal poderá dos fatos, o enquadramento das condutas e a
adensar suas formas contratuais, legislativas definição das sanções tornam-se mais contro-
e doutrinárias, criando as bases para que o versos do que o próprio juízo normativo sobre
Judiciário – agora em uma posição ao mesmo a aprovação ou reprovação dos comportamen-
tempo subsidiária e subsidiada por critérios de- tos. Na dimensão temporal, abre-se caminho
cisórios mais consistentes – possa arbitrar casos para legislações temporárias, experimentais ou
envolvendo os conflitos variados encetados pela para mecanismos mais flexíveis e corrigíveis de
disseminação de notícias falsas, como questões normatização. Na dimensão social, é necessá-
de privacidade de dados, disputas eleitorais, rio mobilizar o apoio dos próprios regulados
responsabilidades políticas ou abuso de poder internalizando-os na construção e aplicação da
econômico. O maior ganho potencial da autor- regulação: os potenciais sancionados partici-
regulação regulada, portanto, é institucionalizar pam da definição dos parâmetros que balizam
uma dinâmica de observação e aprendizagem o comportamento seu e de seus concorrentes
mútua entre Direito estatal e ordem jurídica e colaboradores.
privada, o que parece essencial em tópicos ainda A disseminação de notícias falsas pelos
pouco programados pelo sistema jurídico. meios digitais, com sua novidade e seu po-
tencial viral sobre múltiplas áreas da socieda-
de, demanda que o Direito não apenas defina
5 Considerações finais normativamente os direitos, deveres, poderes e
responsabilidades, os procedimentos e sanções,
O Direito liberal do século XIX foi para- mas que procure definir, antes disso, os próprios
digmaticamente concretizado nas codificações canais pelos quais podem ser construídos os
de Direito privado e penal, que visavam a esti- programas e órgãos decisórios capazes de lidar
pular programas decisórios para cada conduta em primeira mão com esse fenômeno emergen-
específica, definindo de antemão os fatos típi- te e com a tipificação dos instrumentos preven-
cos e as consequências a serem impostas pela tivos e repressivos ao abuso da comunicação
Administração, Judiciário e Polícia. O Direito digital. A Lei brasileira sobre as fake news indica
social-democrata do século XX abriu espaço caminhar nesse sentido e, assim, tem potencial
para considerações de justiça material no caso de se tornar um modelo para outros setores
concreto, com isso ampliando as margens de de políticas públicas. Sua própria dinâmica
incerteza e discricionariedade decisória para de concretização pode despertar problemas de
legisladores, administradores e julgadores desenho institucional que demandem a revisão
(pense-se nas concessões de rádio e televisão dos parâmetros de “autorregulação regulada”
e em seus critérios constitucionais). e, com isso, o aperfeiçoamento incremental do
No século XXI parecem emergir temas ecossistema regulatório e de suas organizações
complexos e uma nova forma de conceber e e procedimentos.

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Sobre o autor
Lucas Fucci Amato é doutor e bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP),
São Paulo, SP, Brasil; pós-doutor pela USP, São Paulo, SP, Brasil, com estágio pós-doutoral na
Universidade de Oxford, Oxford, Reino Unido, e estágio doutoral na Harvard Law School,
Cambridge, Massachusetts, EUA; professor da graduação e da pós-graduação (mestrado e
doutorado) do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito
da USP, São Paulo, SP, Brasil; pesquisador associado da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
E-mail: [email protected]
Pesquisa financiada por projeto regular da Fapesp (processo 2019/22197-7).

Como citar este artigo


(ABNT)
AMATO, Lucas Fucci. Fake news: regulação ou metarregulação? Revista de Informação
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www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/ril_v58_n230_p29
(APA)
Amato, L. F. (2021). Fake news: regulação ou metarregulação? Revista de Informação
Legislativa: RIL, 58(230), 29-53. Recuperado de https://www12.senado.leg.br/ril/
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RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 29-53 abr./jun. 2021 53


A produção normativa das
agências reguladoras
Limites para eventual controle da atuação
regulatória da Anvisa em resposta à Covid-19

NATASHA SCHMITT CACCIA SALINAS


PATRÍCIA REGINA PINHEIRO SAMPAIO
ANA TEREZA MARQUES PARENTE

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar a produção normativa


da Anvisa em resposta à crise de saúde pública gerada pelo novo coro-
navírus. Com base em levantamento das medidas regulatórias adotadas
pela Agência entre os meses de janeiro a junho de 2020, constatou-se
que a Anvisa produziu um elevado número de normas que: (i) não
seguiram ritos ordinários do processo administrativo normativo; e
(ii) flexibilizaram exigências e obrigações do setor regulado na outorga
de atos de liberação econômica. O artigo busca analisar se (e sob que
condições) os Poderes Judiciário e Legislativo deverão adotar uma
postura de deferência em relação a eventuais questionamentos dessas
normas. Conclui-se que, em regra, os atos normativos produzidos
pela Anvisa durante a pandemia merecem deferência. No entanto, a
necessidade de que seja demonstrado embasamento técnico persiste,
mesmo que este se apoie em normas provenientes de órgãos interna-
cionalmente reconhecidos.

Palavras-chave: Pandemia de Covid-19. Agências reguladoras.


Produção normativa. Medidas regulatórias emergenciais. Princípio
da deferência.

Regulatory rulemaking in context of emergency:


notes on the limits of judicial review of Anvisa’s
rulemaking in response to Covid-19

Abstract: This paper analyzes Anvisa’s (the Brazilian sanitary regulatory


Recebido em 16/12/20 agency) rulemaking in response to the health crisis caused by the
Aprovado em 21/2/21 new coronavirus. Based on an assessment of rules issued between

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January and June 2020 (surveyed in the Federal Official Gazette), the
paper explores the agency’s waiver of certain rulemaking procedural
requirements and the relaxation of industry’s obligations concerning the
production, import and distribution of goods, medicines, and hospital
devices. Besides describing these processes and their outcomes, the
paper assesses if (and under which circumstances) the Judiciary and
Legislative powers should defer to the rules issued by Anvisa during the
pandemic context in case they happen to be challenged in the future.
It concludes that rules issued by Anvisa during the pandemic deserve
deference as long as agencies demonstrate they meet certain technical
requirements.

Keywords: Pandemic of Covid-19. Regulatory agencies. Normative


production. Emergency regulations. Principle of deference.

1 Introdução

No âmbito da reforma do Estado empreendida na segunda meta-


de dos anos 1990, foi introduzido no Brasil o instituto das agências
reguladoras. Concebidas como autarquias em regime especial, o seu
objetivo consistia em permitir maior equilíbrio nas relações entre o
Poder Público, os agentes econômicos e os consumidores, por meio
de autonomia reforçada conferida a essas entidades. Caracterizam-se
por terem como órgão máximo diretorias colegiadas (e não órgãos
monocráticos), com diretores dotados de mandato fixo não passíveis
de exoneração imotivada.
Nesse contexto, a Lei no 9.782/1999 (BRASIL, [2019a]) instituiu a
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e atribuiu-lhe po-
deres normativos em diversas atividades, entre as quais medicamentos,
insumos farmacêuticos, dispositivos médico-hospitalares e saneantes,
para mencionar exemplos diretamente relacionados à pandemia causada
pelo novo coronavírus. A atuação da Agência, no entanto, é ainda mais
vasta, e inclui outros setores como alimentos, cosméticos, agrotóxicos
e derivados do tabaco.
Até 2019, o Brasil carecia de uma lei geral para reger as agências
reguladoras, à exceção de um conjunto de normas sobre gestão de re-
cursos humanos prescrito pela Lei no 9.986/2000 (BRASIL, [2019b]).
Apenas com a edição da Lei no 13.848/2019 (BRASIL, 2019c) os re-
guladores passaram a seguir regras uniformes, aplicáveis a todas as

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agências reguladoras federais, acerca da organização, funcionamento
e procedimentos no âmbito dessas entidades. A lei introduziu normas
sobre transparência, nomeação de diretores, agenda regulatória, pres-
tação de contas, participação e controle social.
Todavia, menos de um ano após a sua promulgação, a crise decor-
rente do novo coronavírus veio testar a capacidade de atuação ágil das
agências reguladoras na adoção de medidas emergenciais. Em razão
da urgência, houve a necessidade de dispensa de algumas medidas que,
em situações ordinárias, seriam exigidas das agências reguladoras como
parte do devido processo de produção normativa. A análise dos atos
emanados pelas agências reguladoras federais para o enfrentamento
da crise de saúde pública gerada pela Covid‑19 no Brasil permite ave-
riguar a capacidade de atuação dessas instituições e a extensão em que
foi possível (ou não) manter os mecanismos usualmente relacionados
à legitimidade democrática dessas entidades, como consultas públicas
e análises de impacto regulatório. Com o agravamento da pandemia,
as agências reguladoras passaram a atender a um grande volume de
demandas da sociedade, dos agentes econômicos regulados e dos demais
órgãos e entidades do próprio governo federal.
Dentre as agências reguladoras federais, a Anvisa destacou-se como
a que exarou o maior número de medidas normativas no contexto de
resposta à pandemia ocasionada pelo novo coronavírus, oferecendo
respostas céleres no contexto da crise e orientações relevantes para a
tomada de decisões dos governos federal, estaduais e municipais, bem
como de seus respectivos órgãos reguladores.
Em termos de escopo do objeto, a atuação da Anvisa configura-se
bastante ampla.

Podem-se citar como exemplos: padrões para produção e distribuição de


medicamentos para o combate ao coronavírus; controle da fabricação,
da importação e da comercialização de equipamentos e dispositivos
médicos necessários ao tratamento de pacientes com a doença; controle
sanitário em portos, aeroportos e fronteiras; fabricação e distribuição
de saneantes (como álcool em gel); critérios técnicos para exames e
triagem do coronavírus utilizando sangue, células, tecidos e órgãos;
orientações sobre ensaios clínicos e o uso experimental de opções
para o enfrentamento da doença; medidas relativas à continuidade dos
serviços de vacinação durante a pandemia; ações para a prevenção de
contaminação de idosos em instituições de longa permanência (asilos)
[…], entre outras (GUERRA; SALINAS; GOMES, 2020, p. 882).

Um fator relevante para a proeminência da Anvisa no combate à


Covid‑19 é a relação direta entre os setores submetidos à sua atuação e
a pandemia, dado que questões sanitárias cumprem um papel central

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na contenção da disseminação do novo coronavírus. A ênfase atual na
prevenção do contágio faz do coronavírus uma questão essencialmente
de vigilância sanitária.
Desde o início, a Anvisa mostrou-se uma agência responsiva em face
dos desafios impostos pela crise da Covid‑19. Já em janeiro de 2020,
antes mesmo de a transmissão comunitária do vírus atingir o Brasil, por
meio da Portaria no 74/2020 a Agência criou um grupo de emergência
em saúde pública para monitorar e conduzir ações de prevenção e trata-
mento da doença. A Anvisa foi, portanto, o primeiro órgão do governo
a mobilizar-se no enfrentamento da doença (CRODA; GARCIA, 2020).
De todo modo, a concentração de esforços em ações de combate à
pandemia implicou a adoção de medidas emergenciais não planejadas
e decisões incrementais para a prevenção e o tratamento da doença,
como a suspensão de processos administrativos ordinários, prorrogação
de prazos, suspensão de fiscalizações e afrouxamento de regras. A sim-
plificação de procedimentos para viabilizar a fabricação e importação
de produtos e equipamentos diretamente relacionados à pandemia,
conforme será visto, tem sido fundamental no enfrentamento da doença.
Neste artigo, pretende-se analisar as respostas regulatórias da Anvisa
para o enfrentamento da crise de saúde pública gerada pelo novo co-
ronavírus, que consistiram na simplificação de processos normativos
e/ou na flexibilização de exigências para a fabricação, importação e
distribuição de insumos, medicamentos e equipamentos hospitalares.
Objetiva-se especialmente analisar se (e sob quais condições) os
Poderes Judiciário e Legislativo deverão adotar uma postura de deferência
em relação às normas editadas pela Anvisa no contexto da pandemia,
caso elas venham a ter sua legalidade ou constitucionalidade questio-
nadas no futuro. Uma análise de tal sorte demandará uma verificação
dos contornos do poder normativo hoje exercido pelas agências e dos
limites desse exercício diante de nosso sistema jurídico-constitucional.
Para esse fim, o artigo está dividido da seguinte forma: na seção 2
retomam-se brevemente os contornos das características das agências
reguladoras e o exercício de poder normativo, com o objetivo de destacar
em que medida houve simplificação das normas processuais de produção
normativa. Na seção 3 são apresentados dados sobre as normas exaradas
pela Anvisa no contexto da pandemia causada pelo novo coronavírus,
procedendo-se a uma classificação que permite analisar o objeto dessas
normas. Na seção 4 aborda-se o tema da deferência administrativa,
informando-se os requisitos exigidos na doutrina e na jurisprudência
à sua invocação, bem como os princípios da prevenção e da precaução
em matéria de saúde pública. Na seção 5 discute-se, com base em lei
aprovada durante a pandemia pelo Congresso Nacional sobre matéria

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de atribuição da Anvisa, a extensão e os limites do exercício do Poder
Legislativo relativamente ao poder normativo dessa agência em matéria
de saúde pública. Ao final, tecem-se conclusões da investigação realizada.

2 Breves notas sobre a autonomia e o poder normativo


das agências reguladoras

As agências reguladoras foram introduzidas no Direito brasileiro no


contexto da reforma do aparelho administrativo do Estado na segunda
metade da década de 1990, sendo emblemática dessa época a criação do
Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado (BRESSER-
PEREIRA, 2003). Nesse contexto, leis específicas aprovaram a criação de
autarquias em regime especial, caracterizadas por autonomia reforçada,
especialmente ilustrada por uma diretoria colegiada com mandato e a
vedação da exoneração imotivada de seus dirigentes, além de amplos
poderes normativos e fiscalizatórios conferidos por lei a essas entidades
(ARAGÃO, 2003).
Todavia, a introdução delas na estrutura da Administração Pública
brasileira não se realizou sem questionamentos, com debates sobre a
extensão do poder normativo atribuído às agências reguladoras. Houve
quem as considerasse uma usurpação de poderes do chefe do Poder
Executivo, em especial em matéria de exercício de competência regula-
mentar (GRAU, 2002). Essa visão, contudo, não prosperou: a doutrina e a
jurisprudência caminharam no sentido de se poderem reconhecer feixes
de poder normativo a essas autarquias, numa realidade que, passadas
duas décadas, mostra-se inexorável – o que não impede, logicamente,
discussões pontuais acerca da compatibilidade de determinadas normas,
em casos específicos, com o ordenamento jurídico nacional.
Um exemplo do início da primeira década do atual milênio, no
qual a competência normativa das agências reguladoras foi questiona-
da – e confirmada – pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), consistiu
na definição de área local para fins de cobrança de Discagem Direta a
Distância (DDD), fixada por ato normativo da Agência Nacional de
Telecomunicações (Anatel). A alegação residia no aspecto de as linhas
divisórias para a fixação das áreas em que se cobraria ligação local e
de longa distância não corresponderem, em muitos casos, às divisões
político-geográficas dos municípios. Atentando para a natureza técnica
dessa definição, o STJ julgou que

a delimitação da chamada “área local” para fins de configuração do


serviço local de telefonia e cobrança da tarifa respectiva leva em conta

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critérios de natureza predominantemente técnica, não necessariamente
vinculados à divisão político-geográfica do município (BRASIL, 2004, p. 1).

Também o Supremo Tribunal Federal (STF) veio a posicionar-se favo-


ravelmente à possibilidade de a lei de criação de uma agência reguladora
atribuir-lhe competência normativa nas matérias de sua atribuição. No
julgamento de medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) 1.668 (BRASIL, 1998), em que se requeria a declaração de incons-
titucionalidade de dispositivos da Lei Geral de Telecomunicações (Lei
no 9.472/1997) que atribuíam competência à Anatel para expedir normas
sobre prestação de serviços de telecomunicações nos regimes público e
privado, o STF decidiu que tais dispositivos legais atestavam constituciona-
lidade, tendo-lhes dado interpretação conforme a Constituição para firmar
o posicionamento de que, no exercício dessa competência normativa, a
Anatel deve observância às leis e decretos validamente expedidos.1 Nesse
sentido, o STF adotou posição restritiva e coincidente com a manifestada
por Di Pietro (2003), entendendo que a regulação deve prestar-se à fiel
execução de lei.
Desde então, pode-se afirmar que a doutrina amplamente reconhece
o exercício do poder normativo pelas agências reguladoras2, em que pese,
por vezes, discutir a abrangência e os limites do seu exercício. De fato,
trata-se de competência de natureza administrativa a ser exercida nos
limites da lei e em respeito aos princípios constitucionais de atuação da
Administração Pública.
Visando ao seu fortalecimento institucional, a Lei Geral das Agências
Reguladoras Federais (Lei no 13.848/2019) significou avanços no reforço da
autonomia ao estabelecer normas sobre nomeação do corpo diretor, redução
do risco de vacância, planejamento da atividade regulatória, racionalização
do processo decisório, transparência, prestação de contas, controle social,
entre outras. Especificamente quanto ao poder normativo, foi introduzida

1
“Comunicações – Lei Geral no 9.472/97 – controle concentrado – admissibilidade
parcial da ação direta de inconstitucionalidade e deferimento em parte da liminar ante
fundamentos retratados nos votos que compõem o acórdão. […] o Tribunal, apreciando
normas inscritas na Lei no 9.472, de 16 de julho de 1997, resolveu: […] 3) deferir, em parte,
o pedido de medida cautelar para: a) quanto aos incisos IV e X do art. 19, sem redução
de texto, dar-lhes interpretação conforme à Constituição Federal, com o objetivo de fixar
exegese segundo a qual a competência da Agência Nacional de Telecomunicações para
expedir normas subordina-se aos preceitos legais e regulamentares que regem a outorga,
prestação e fruição dos serviços de telecomunicações […], vencido o Ministro Moreira
Alves, que o indeferia” (BRASIL, 1998, p. 127-128).
2
Ver, por todos, a obra coordenada por Aragão (2011), na qual vários doutrinadores
escreveram a respeito do exercício do poder normativo das agências reguladoras. Em 2000,
Aragão (2000, p. 292) defendia o poder normativo das agências reguladoras: “Fixada a le-
gitimidade da atribuição de competência normativa a órgãos específicos da Administração
Direta ou a entidades da Administração Indireta, notadamente se titulares de autonomia
propriamente dita – descentralização material, independência –, a ingerência do Chefe
do Poder Executivo neste campo normativo consistirá em violação da respectiva norma
legal ou constitucional”.

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a exigência de realização de consultas públicas oralmente suas contribuições em sessão pública.
previamente à edição de normas. Tais mecanismos de participação dos agentes
A Lei no 13.848/2019 apresenta também na formação da norma regulatória são consi-
normas sobre a Análise de Impacto Regulatório derados como produção normativa consensual
(AIR), a qual tem como fundamento declarado (ARAUJO, 2013).
aprimorar a qualidade da produção normativa. A literatura aponta três fundamentos prin-
Além disso, a lei estabelece regras gerais sobre a cipais para a adoção de consultas e audiências
AIR, mas confere espaço para as agências ope- públicas nos processos de tomada de decisão das
racionalizarem o mecanismo conforme suas ne- agências reguladoras: (i) conferir legitimidade às
cessidades3. A AIR foi regulamentada, em âmbito decisões das agências; (ii) dar mais transparência
federal, pelo Decreto no 10.411, de 30/6/2020 às decisões tomadas pelas agências; (iii) apri-
(BRASIL, 2020b). morar a qualidade das decisões tomadas pelos
A AIR vale-se do modelo de decisão racio- órgãos reguladores (KERWIN; FURLONG,
nal para descrever o processo de formação das 2018). Acolhendo esses standards, a Lei Geral
leis (NEIMUN; STAMBOUGH, 1998, p. 450). das Agências Reguladoras previu a obrigato-
Nesse modelo, uma decisão racional implica a riedade da consulta pública para a produção de
escolha da solução que seja a mais adequada atos normativos de interesse geral dos agentes
para a realização dos objetivos pretendidos pelo econômicos, consumidores ou usuários dos
decisor. O decisor deve também escolher, entre serviços prestados, além de facultar às agências
soluções alternativas, aquela que maximiza seus reguladoras a realização de audiências públicas
objetivos. Para que esteja apto a fazer a melhor (mecanismos orais e presenciais) para subsidiar
escolha, o decisor deve dispor de informações sua tomada de decisão.
que lhe permitam predizer os impactos de cada A Lei no 13.848/2019 estabeleceu, pois, impor-
alternativa. Desse modo, um processo normativo tantes regras para o exercício do poder norma-
que incorpora a AIR valoriza normas que não tivo das agências. Esse poder normativo, hoje já
apenas tenham qualidades intrínsecas (como plenamente reconhecido, deve respeitar as novas
coerência lógica e clareza semântica), mas, so- balizas que a Lei Geral das Agências Reguladoras
bretudo, que cumpram os objetivos aos quais se lhes impôs.
destinam (ATIENZA, 1997; PECI, 2011).
Por sua vez, a consulta pública possibilita a
qualquer pessoa interessada, inclusive estran- 3 Análise das medidas regulatórias
geira, apresentar manifestações por escrito pela adotadas pela Anvisa
internet, com o objetivo de contribuir para a
tomada de decisão final da agência no curso de 3.1 A pesquisa realizada: metodologia
um processo normativo. Além disso, a agência
reguladora também pode realizar audiência públi- Com o objetivo de avaliar o comportamento
ca, na qual se permite aos interessados apresentar das agências reguladoras diante da crise, cons-
truiu-se banco de dados próprio sobre as medidas
3
Recentemente foi editado o Decreto no 10.411/2020, adotadas pelas onze agências reguladoras federais
que regulamenta o uso da AIR pela Administração Pública
Federal Direta, Autárquica e Fundacional. O decreto, no em resposta à pandemia do novo coronavírus. Os
entanto, não esgota a disciplina da AIR, deixando alguma dados foram coletados dos sítios eletrônicos das
margem para as agências operacionalizarem-na conforme
sua necessidade. agências reguladoras federais e das publicações

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disponibilizadas no Diário Oficial da União (DOU) entre março e junho de
2020. Para a contagem das medidas adotadas pelas agências, foram consi-
derados atos normativos e decisões administrativas com efetivo impacto
regulatório sobre o setor regulado. A pesquisa foi realizada semanalmente
entre a primeira semana de março e a última de junho.
Para a contagem das medidas adotadas pelas agências, foram conside-
rados não apenas atos normativos, mas também decisões administrativas
(e.g. notas técnicas, despachos, decisões, ofícios) com efetivo impacto
regulatório sobre o setor regulado. Foram excluídas da presente análise,
portanto, medidas de mera gestão de pessoal ou cujos efeitos fossem pre-
dominantemente internos às agências (e.g. normas disciplinando regras de
teletrabalho, reuniões por videoconferência, entre outras). Essa exclusão
deve-se ao fato de que normas de caráter administrativo ou interno não
estão sujeitas à obrigatoriedade da consulta pública e da análise de impacto
regulatório.
As medidas foram lidas na íntegra e classificadas conforme seu objetivo.
Além das medidas de enfrentamento direto da pandemia, foram identifica-
das medidas de flexibilização das normas que regulam serviços e atividades
econômicas, bem como medidas de suporte financeiro aos prestadores
de serviços e proteção aos usuários dos serviços. Para os propósitos deste
artigo, são analisadas somente as duas primeiras categorias de medidas,
já que a Anvisa não regula serviços públicos.
De janeiro a junho de 2020, data de corte dos dados analisados neste
artigo, a Anvisa adotou 130 medidas regulatórias em resposta à pande-
mia. Embora todas as agências reguladoras tenham adotado medidas em
resposta a ela, chama a atenção o fato de que a Anvisa foi a agência mais
ativa no combate à pandemia. Como a pesquisa descartou do universo
de medidas aquelas que tratavam exclusivamente de temas internos às
agências, como teletrabalho ou gestão de servidores, os dados mostram
medidas que impactaram diretamente os setores regulados.

3.2 Resultados: a atuação da Anvisa em resposta à pandemia

Das 130 medidas adotadas pela Anvisa4, 116 (77,8% do total) tinham o
objetivo de prevenir o contágio e disciplinar o tratamento da doença. No
entanto, para que elas pudessem ser adotadas de forma célere, a Agência
teve de renunciar a ritos e processos ordinários, entre os quais se inclui

4
Das 130 medidas adotadas pela Anvisa em resposta à pandemia, 116 tratam diretamente
da prevenção e tratamento da doença e 27 flexibilizam normas pré-existentes. Uma única
ação pode ter como objetivo simultâneo o enfrentamento da doença e a flexibilização de
normas pré-existentes, razão pela qual a soma das duas categorias é superior ao número
total de medidas adotadas pela Anvisa.

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o processo normativo tal como estabelecido na Lei Geral das Agências
Reguladoras, conforme se analisa na seção seguinte.

Gráfico 1

Medidas em resposta à Covid‑19 por agência

ANVISA 130
ANAC 37
ANS 26
ANEEL 25
ANP 24
ANTT 21
ANTAQ 14
ANATEL 11
ANCINE 8
ANM 6
ANA 5
0 20 40 60 80 100 120 140

Fonte: elaborado pelas autoras.

3.2.1 Simplificação do processo normativo durante a pandemia

Antes da pandemia, as agências reguladoras vinham adotando medidas


para se ajustar aos novos comandos impostos pela nova legislação vigente
a fim de orientar seus processos normativos (SALINAS; BRELÀZ, 2020).
Entre eles destacam-se as já mencionadas exigências para a realização de
consultas públicas e a análise de impacto regulatório para a produção de
normas de interesse geral de agentes econômicos, consumidores ou usuários
dos serviços prestados (arts. 6o e 9o da Lei no 13.848/2019).
A esse respeito, merece ser esclarecido que, até a aprovação da Lei
Geral das Agências Reguladoras, a AIR era um mecanismo facultativo
no processo normativo das agências, tornando-se obrigatório a partir de
então para a produção de normas de interesse geral dos agentes econô-
micos, consumidores ou usuários dos serviços.5 Em todo caso, a Anvisa
já vinha utilizando a ferramenta: foi a agência federal que mais realizou

5
Neste artigo, foram selecionadas para a análise apenas as normas produzidas pela
Anvisa durante a pandemia com efeitos diretos sobre agentes econômicos, consumidores
ou usuários dos serviços prestados.

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estudos de AIR em seu processo normativo antes do advento da nova lei
(LABORATÓRIO DE REGULAÇÃO ECONÔMICA, 2020) – o que denota
uma familiaridade da Agência com o instrumento, embora seja preciso
esclarecer que, até a entrada em vigor da Lei no 13.848/2019, a utilização
desse instrumento tinha natureza discricionária.
Do mesmo modo, até o surgimento da Lei Geral das Agências
Reguladoras, a consulta pública era um mecanismo de participação fa-
cultativo para a Anvisa, embora a Agência adotasse esse mecanismo com
assiduidade.6 A introdução dos mecanismos de racionalidade e de partici-
pação no processo normativo das agências requer capacidade institucional
e recursos para ser bem implementada. Um processo de consulta pública
leva em média 215 dias para ser concluído7, tempo incompatível com a
necessidade de se oferecerem respostas céleres durante a pandemia.
Por essa razão, durante a crise (que ainda perdurava quando este artigo
foi finalizado), não só a Anvisa, mas todas as agências reguladoras federais
(GUERRA; SALINAS; GOMES, 2020) adotaram processos normativos
simplificados, nos quais ao menos algumas etapas e exigências legais para
os tempos ordinários foram dispensadas sob o fundamento da excepcio-
nalidade da crise sanitária. A análise realizada mostrou, por exemplo, que,
embora atendessem aos requisitos da lei de “interesse geral dos agentes
econômicos e dos consumidores ou usuários dos serviços”, nenhuma das
normas editadas pela Anvisa em resposta à crise do novo coronavírus foi
precedida de consulta pública, tampouco de análise de impacto regulatório.8
Desse modo, durante a pandemia, as ações regulatórias planejadas
(COGLIANESE; WALTERS, 2016) cederam lugar a medidas emergenciais;
no lugar de processos regulatórios racionais (BALDWIN; CAVE; LODGE,
2012) e participativos (KERWIN; FURLONG, 2018), surgiram respostas
mais pragmáticas. Na seção seguinte, analisamos as caraterísticas dessas
medidas emergenciais.

3.2.2 As normas produzidas pela Anvisa com relação à pandemia

Preliminarmente, é necessário esclarecer que a própria Lei no 13.848/2019


permite que os procedimentos usualmente exigidos para a produção de

6
A Anvisa é a segunda agência reguladora federal que mais realizou consultas públicas
no Brasil. Até dezembro de 2019, foram 1.368 consultas públicas (dados obtidos no portal
de consultas públicas da Agência).
7
Dado coletado em banco de dado desenvolvido pelo projeto Regulação em Números
da FGV Direito Rio.
8
Para embasar essa informação, analisamos todos os atos publicados pela Agência no
DOU durante o período da pandemia, incluindo os avisos de consulta pública e de análise
de impacto regulatório. Nenhuma convocação para participar de consulta pública ou de
AIR dizia respeito às normas produzidas pela Anvisa em resposta à Covid‑19.

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normas deixem de ser observados em casos de urgência, desde que me-
diante decisão motivada.9-10
Dispensada da obrigatoriedade da realização de consultas públicas e
análise de impacto regulatório em razão da urgência, a Anvisa acelerou
sua produção normativa com o objetivo de facilitar o acesso da população
e dos profissionais de saúde a insumos farmacêuticos, medicamentos,
dispositivos médico-hospitalares e testes diagnósticos da Covid‑19. Além
disso, a Agência adotou medidas para garantir o abastecimento contínuo
de alimentos, remédios e outros produtos essenciais à vida humana cuja
produção estivesse sob sua atuação regulatória.
A Anvisa adotou 116 medidas relacionadas a ações que de alguma forma
estão vinculadas à prevenção e ao tratamento da Covid‑19. O Gráfico 2
mostra que essa quantidade é nove vezes maior do que a quantidade de
medidas adotadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS),
a agência a adotar o segundo maior número de ações de enfrentamento
direto à doença.

Gráfico 2

Medidas de enfrentamento direto da pandemia por agência

140

116
120

100

80

60

40

20 12
2 0 0 2 4 4 2 3 4

Fonte: elaborado pelas autoras.

9
Lei no 13.848/2019, art. 9o, “§ 2o Ressalvada a exigência de prazo diferente em legislação
específica, acordo ou tratado internacional, o período de consulta pública terá início após
a publicação do respectivo despacho ou aviso de abertura no Diário Oficial da União e no
sítio da agência na internet, e terá duração mínima de 45 (quarenta e cinco) dias, ressal-
vado caso excepcional de urgência e relevância, devidamente motivado” (BRASIL, 2019c).
10
Decreto no 10.411/2020, art. 4o, caput: “A AIR poderá ser dispensada, desde que haja
decisão fundamentada do órgão ou da entidade competente, nas hipóteses de: I – urgência”
(BRASIL, 2020b).

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Além de editar normas de conteúdo intei- nários para a certificação de boas práticas de
ramente novo, a Anvisa flexibilizou normas fabricação enquanto perdurasse a pandemia.
já existentes com alguns objetivos principais: Além de autorizar a Anvisa a realizar inspe-
(i) simplificação de processos para registro de ções remotas por meio de videoconferências,
medicamentos, insumos, testes diagnósticos essa norma também a autorizou a substituir
e dispositivos hospitalares para prevenção as inspeções em plantas produtivas de fabri-
e tratamento da Covid‑19, condicionados à cantes estrangeiros por informações de au-
apresentação de documentos emitidos por toridades regulatórias estrangeiras. Para as
autoridades sanitárias estrangeiras ou à apre- certificações relacionadas a medicamentos e
sentação a posteriori de documentos diversos; produtos farmacêuticos, a Anvisa autorizou a
(ii) autorização de pós-registro de produtos substituição de inspeções por informações de
cujas substâncias estejam em falta em razão autoridades regulatórias estrangeiras membras
de desabastecimento causado pela pandemia; do Pharmaceutical Inspection Co-operation
(iii) autorização temporária e extraordinária Scheme (PIC/S). Para as certificações relacio-
para laboratórios e farmácias produzirem pro- nadas a produtos de saúde, a Anvisa passou a
dutos saneantes e realizarem testes diagnós- aceitar informações de autoridades regulatórias
ticos da Covid‑19. Essas medidas reduziram estrangeiras membras do Medical Device Single
exigências ou obrigações dos regulados para Audit Program. Para a certificação de empresas
a concessão de atos de liberação econômica fabricantes e importadoras de medicamentos e
com o fim de produzir ou distribuir materiais insumos farmacêuticos localizadas em território
essenciais no combate e prevenção à pandemia. nacional, a Anvisa editou a RDC no 392/2020
Foram identificadas 27 medidas dessa natureza (AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA
até 30/6/2020, como mostra o Gráfico 3. SANITÁRIA, [2021]), que autorizou a substi-
Alguns exemplos de flexibilização de normas tuição das auditorias in loco por relatórios de
produzidas pela Anvisa durante a pandemia me- auditoria elaborados pela European Directorate
recem ser ilustrados. Para a emissão de alguns for the Quality of Medicines, pela Organização
atos públicos de liberação, como o registro de Mundial da Saúde e por autoridades regulatórias
medicamentos, produtos para a saúde, insumos membras do referido PIC/S.
farmacêuticos, entre outros, a Anvisa exige que a Em circunstâncias normais, as empre-
empresa requerente tenha “Certificação de Boas sas devem requerer à Anvisa a Autorização
Práticas de Fabricação” para cada uma de suas de Funcionamento da Empresa (AFE) para
linhas de produção. Essa certificação, regulada realizarem atividades de fabricação, impor-
pela Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) tação e distribuição de medicamentos, insu-
da Anvisa no 39/2013, sofreu significativas al- mos farmacêuticos e produtos para a saúde
terações durante a pandemia. Para atribuir tal de uso profissional.11 A Anvisa editou, porém,
certificação, a RDC no 39/2013 exigia inspeções a RDC no 356/2020 (AGÊNCIA NACIONAL
sanitárias na unidade de fabricação do produto DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA, 2020f), que
(AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA dispensou de AFE a fabricação e importação de
SANITÁRIA, [2018]).
A RDC no 346/2020 (AGÊNCIA NACIONAL
DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA, 2020a), no
11
A RDC no 16/2014 disciplina a AFE concedida pela
Anvisa (AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SA-
entanto, estabeleceu procedimentos extraordi- NITÁRIA, 2014).

66 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 55-83 abr./jun. 2021


dispositivos médicos prioritários no combate à Covid‑19, como másca-
ras cirúrgicas, protetores faciais, vestimentas hospitalares descartáveis,
entre outros. Essa Resolução também dispensou entidades públicas e
privadas, bem como serviços de saúde, de regularizarem equipamen-
tos novos de proteção individual – como ventiladores pulmonares. A
RDC no 356/2020, contudo, instituiu duas condições adicionais para
essa dispensa de regularização: (i) a comprovação da indisponibilidade
no mercado de produtos equivalentes regularizados pela Anvisa; (ii) a
regularização prévia dos produtos a serem adquiridos, empreendida por
autoridade regulatória de jurisdição membra do International Medical
Device Regulators Forum (IMDRF)12 .
A Anvisa também autorizou genericamente, por meio da RDC
o
n 378/2020 (AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA,
2020l), a importação, comercialização e doação de equipamentos usados
indispensáveis em unidades de terapia intensiva, como ventiladores pul-
monares, bombas de infusão, equipamentos de oximetria, entre outros.
A única condição estabelecida para conceder tal autorização é que o
produto usado possua ou já tenha possuído registro sanitário na Anvisa.
A Agência também concedeu autorização genérica para órgãos não
especializados produzirem saneantes, realizarem diagnósticos da doença
etc. Nesse sentido, a RDC no 347/2020 (AGÊNCIA NACIONAL DE
VIGILÂNCIA SANITÁRIA, 2020b) autorizou farmácias de manipulação
a produzirem álcool em gel por prazo determinado. A RDC no 377/2020,
por sua vez, autorizou farmácias a realizarem testes rápidos para detecção
da Covid‑19, assim como a RDC no 364/2020 autorizou Laboratórios
Federais de Defesa Agropecuária a realizarem análises mais sofisticadas
para diagnóstico da doença (AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA
SANITÁRIA, 2020h, 2020k).
Por fim, foram também flexibilizadas as regras de pós-registro de
produtos não relacionados ao enfrentamento direto da pandemia, mas
considerados essenciais à vida humana. Por exemplo, a RDC no 382/2020
(AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA, 2020n) defi-
niu critérios para a alteração das composições de fórmulas de nutrição
infantil em virtude da falta de ingredientes provocada pela pandemia.
Esses exemplos, extraídos do conjunto de 27 medidas de flexibilização
normativa indicadas no Gráfico 3, revelam uma predisposição da Anvisa
para não apenas simplificar ou suprimir exigências dos regulados, mas
também instituir intercâmbios de informações com entidades regulatórias

12
A RDC no 356/2020 previu também que equipamentos de proteção individual doados
a órgãos públicos e serviços de saúde públicos e privados podem ser dispensados até mesmo
de regularização por autoridade de jurisdição membra do IMDRF.

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 55-83 abr./jun. 2021 67


internacionais. Foram estas as soluções encontradas pela Agência para
editar normas essenciais na prevenção e combate à pandemia de forma
célere, tempestiva e tecnicamente fundamentada.

Gráfico 3

Flexibilização de normas existentes

30 27

25

20 18

15

10 8 8
4
5 2 2
0 0 0 0
0

Fonte: elaborado pelas autoras.

O Quadro 1 mostra as principais normas que tiveram regras e pro-


cedimentos flexibilizados pela Anvisa durante o período de março a
junho de 2020.

Quadro 1

Objeto Exemplos de normas flexibilizadas pela Anvisa


Institui procedimentos extraordinários e temporários para a
certificação de boas práticas de fabricação, autorizando inspe‑
RDC no 346/2020
ções remotas (ao invés de inspeções in loco) ou substituindo
inspeções por informações de autoridades estrangeiras.
Autoriza temporariamente farmácias de manipulação a produzi‑
RDC no 347/2020
rem álcool em gel.
Dispensa temporariamente a apresentação de documentos
RDC no 348/2020 para o registro e a alteração de pós-registro de medicamentos,
produtos biológicos e diagnósticos in vitro.
Diminui o número de documentos apresentados para a
o regularização de equipamentos hospitalares. Aceita certifica‑
RDC n 349/2020
ções estrangeiras no lugar da Certificação de Boas Práticas de
Fabricação brasileira.
Dispensa as empresas de autorização prévia para a produção
RDC no 350/2020
de álcool em gel e equivalentes.
COMUNICADO – Nota
Autoriza excepcionalmente a comercialização de álcool líquido
da Anvisa sobre álcool
em embalagens de até 1 litro.
líquido 70%

68 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 55-83 abr./jun. 2021


Objeto Exemplos de normas flexibilizadas pela Anvisa
Dispensa as empresas de uma série de autorizações sanitárias
para a fabricação, a importação e a aquisição de dispositivos
RDC no 356/2020
médicos utilizados no combate à Covid‑19. Estabelece, de todo
modo, as condições para a fabricação desses dispositivos.
Permite a entrega remota de remédios sujeitos a controle espe‑
RDC no 357/2020 cial. Amplia as quantidades máximas de medicamentos sujeitos
a controle especial em receitas.
Autoriza Laboratórios Federais de Defesa Agropecuária a realiza‑
RDC no 364/2020
rem análises para o diagnóstico da Covid‑19.
Simplifica o processo de importação de produtos para diagnós‑
RDC no 366/2020
tico in vitro do coronavírus.
Introduz ritos simplificados para os ensaios clínicos de dispo‑
RDC no 375/2020 sitivos médicos de classes III e IV, considerados prioritários no
tratamento da Covid‑19.
Autoriza excepcionalmente as farmácias a realizarem testes
RDC no 377/2020
rápidos para a Covid‑19.
Permite a fabricação, a importação e a aquisição de dispositi‑
RDC no 378/2020 vos médicos usados que possuem ou já possuíram registro na
Anvisa.
Dispensa as empresas de uma série de autorizações sanitárias
o para a fabricação, a importação e a aquisição de dispositivos
RDC n 379/2020
médicos utilizados no combate à Covid‑19. Estabelece, de todo
modo, as condições para a fabricação desses dispositivos.
Fonte: elaborado pelas autoras com base na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (2020a, 2020b,
2020c, 2020d, 2020e, 2020f, 2020g, 2020h, 2020i, 2020j, 2020k, 2020l, 2020m) e Nota… (2020a).

Por fim, cabe destacar que todas as 27 normas que reduziram exi-
gências e obrigações dos regulados para a outorga de atos de liberação
econômica diretamente relacionados ao enfrentamento da pandemia não
foram precedidas de AIR e consulta pública.

4 Legalidade, poder normativo e deferência

Como visto, a Anvisa editou um conjunto bastante amplo de normas


para lidar com a pandemia. Nesta seção, discutimos se essas normas
estarão protegidas pelo manto da deferência caso venham a ser futura-
mente questionadas no Poder Judiciário, uma vez que (i) não seguiram
ritos ordinários do processo administrativo de produção de normas e
(ii) flexibilizaram exigências e obrigações do setor regulado.
Historicamente, a alegada ausência de legitimação democrática a
priori das agências suscitou a necessidade de serem estabelecidos eficazes
mecanismos de controle sobre suas atividades, notadamente a normati-
va. Além dos mecanismos ex ante, atrelados ao processo de elaboração
das decisões (em especial, para os fins do presente artigo, as de caráter
normativo), emergem os mecanismos de controle judicial a posteriori
de suas decisões. A teoria avançou no sentido de que as exigências de

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 55-83 abr./jun. 2021 69


fundamentação de decisões e a participação dos agentes nesse processo
reduziriam a possibilidade de controle ex post dessas atividades.
Assim, a obrigação de observância do devido processo legal em mo-
mento prévio à expedição de uma norma regulatória, por meio da par-
ticipação pública em audiências e consultas públicas, seria providência
tendente a assegurar que o conteúdo da decisão seja mantido em caso de
ser colocado em xeque perante órgãos de controle – especialmente porque
seriam mecanismos capazes de assegurar a razoabilidade traduzida na
ideia de racionalidade da decisão regulatória.
O argumento principal por trás da deferência centra-se na separação
dos Poderes. Quem administra e, portanto, exerce funções normativas
necessárias a essa atividade são órgãos e entidades do Poder Executivo,
e não cabe ao Poder Judiciário substituí-las, muito menos quando essas
deliberações têm por objeto questões técnicas complexas. Em segundo
lugar, o processo por meio do qual as decisões sobre a melhor técnica
são tomadas viabiliza um contraditório anterior à entrada em vigor da
norma que orienta o seu conteúdo no sentido de uma decisão racional.
Croley (2008) observa que a possibilidade (em tese) de revisão judicial
dos atos das agências tende, inclusive, a aprimorar o próprio processo
regulatório, o que, por sua vez, permite atingir o objetivo oposto: afastar
a necessidade dessa revisão no caso concreto, reforçando-se, por conse-
guinte, a autonomia dessas entidades.
A noção de que a racionalidade decorrente do procedimento ad-
ministrativo de participação faz com que o Poder Judiciário deva ser
deferente às decisões emanadas das agências reguladoras foi atestada
em 1984 na decisão da Suprema Corte norte-americana conhecida como
Caso Chevron (UNITED STATES, 1984)13. Naquela ocasião fixou-se o
entendimento de que, tendo o Congresso conferido por lei poderes a
uma determinada agência administrativa para regular certos temas, o
Poder Judiciário deve deferir à interpretação conferida à lei pelo órgão
administrativo especializado competente, desde que ela seja aceitável
(permissible construction of the statute), o que foi descrito como traduzindo
soluções razoáveis e racionais.
Por conseguinte, o processo administrativo é elemento-chave para esse
desfecho racional e razoável.14 É ilustrativa da concepção de deferência
a lição de Fox (2012), que informa que nos Estados Unidos são muito

13
A discussão de fundo consistia em qual seria a interpretação adequada a ser conferida
à palavra source constante de uma lei ambiental. A Corte decidiu que a Environmental
Protection Agency havia exarado uma interpretação razoável da lei, de modo que não cabia
ao Poder Judiciário a revisão de seu teor.
14
Sobre a relevância do processo administrativo para a redução de riscos de captura e
aprimoramento da qualidade da regulação, ver Croley (2008, p. 73-74).

70 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 55-83 abr./jun. 2021


limitadas as oportunidades de revisão judicial de em xeque no contexto da pandemia (PARENTE;
uma decisão tomada por uma agência adminis- SAMPAIO, 2020). Se o que confere legitimi-
trativa no âmbito de sua competência; a maior dade a essas decisões é, em grande medida, o
parte delas não é sequer litigada, mas, quando escrutínio prévio do possível teor da norma na
alguma delas o é, o veredito mostra-se quase arena pública dos mecanismos de participa-
sempre favorável à Administração.15 ção, somado à racionalidade que emerge dos
Pouco a pouco, a deferência tem ganhado processos de AIR, que valor terão as decisões
espaço na fundamentação de decisões dos tri- que forem proferidas sem os seguir, ou que os
bunais superiores e tem sido utilizada para em- sigam de forma reduzida, em razão da urgência
basar a recusa a rever o conteúdo de decisões imposta pela pandemia?
administrativas em matéria técnica. O STF, por No que diz respeito às decisões regulatórias
exemplo, já afirmou que “não cabe ao Poder da Anvisa para o enfrentamento da pandemia,
Judiciário, no exercício do controle jurisdicional questiona-se se a elas seria aplicada a deferência
da exegese conferida por uma Agência ao seu como critério decisório em caso de questiona-
próprio estatuto legal, simplesmente substituí-la mento judicial futuro. Entendemos que, nesses
pela sua própria interpretação da lei” (BRASIL, casos, o Judiciário deve ser deferente porque o
2018, p. 4). afastamento de regras procedimentais normati-
Em 2019, novamente o recurso à deferência vas ocorreu conforme as hipóteses legais. Além
foi utilizado para o Tribunal se abster de rever da situação de urgência, verifica-se que o afasta-
decisão do Conselho Administrativo de Defesa mento de exigências e obrigações dos regulados
Econômica (Cade) que condenara um conjunto para a emissão de atos de liberação econômica
de agentes econômicos por infração à legislação se baseou na chancela de órgãos sanitários in-
concorrencial. Na ocasião, o STF decidiu que ternacionais. Ademais, atualmente o art. 4o do
Decreto no 10.411/2020 dispensa da adoção de
a capacidade institucional na seara regula- AIR todo “ato normativo que vise a manter a
tória, a qual atrai controvérsias de natureza convergência a padrões internacionais”, bem
acentuadamente complexa, que demandam
como os que reduzam “exigências, obrigações,
tratamento especializado e qualificado, reve-
la a reduzida expertise do Judiciário para o restrições, requerimentos ou especificações com
controle jurisdicional das escolhas políticas e o objetivo de diminuir os custos regulatórios”
técnicas subjacentes à regulação econômica, (BRASIL, 2020b).16
bem como de seus efeitos sistêmicos (BRASIL,
Por fim, merece ser considerado que, em
2019e, p. 1).
matéria de saúde e meio ambiente, os princípios
da precaução e da prevenção são geralmente
Em todo caso, essa concepção de deferência, invocados para se conferir maior ônus argu-
ainda não aplicada em larga escala na jurispru- mentativo a decisões que liberem determinadas
dência brasileira, poderia em tese vir a ser posta atividades econômicas ou suprimam exigências
para o seu exercício. Esses temas foram lembra-
15
Como destacou Fox (2012, p. 5), a abrangência dos no voto condutor do ministro Luís Roberto
da deferência nos EUA foi a ponto de se poder afirmar Barroso, ao julgar sete ADIs que questionavam a
(reconhecendo o autor a existência de certo exagero) que:
“The ability of a court to change an agency decision is so
limited these days that the second cardinal rule of agency
practice is: A lawyer must win a case at the agency or likely 16
Merece ser lembrado que esse decreto foi editado após
will not win at all”. o período de cobertura da presente análise, em 30/6/2020.

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 55-83 abr./jun. 2021 71


constitucionalidade da Medida Provisória (MP) critério pode fornecer a segurança necessária ao
no 966/2020, que trata dos limites à responsabili- gestor que está decidindo. Ele, aliás, já vem sendo
zação civil e administrativa dos agentes públicos utilizado: conforme os exemplos anteriormente
por decisões tomadas durante a pandemia. Ao citados, a Anvisa tem adotado posicionamentos
aplicar a técnica da interpretação conforme a de órgãos regulatórios sanitários internacional-
Constituição para decidir o tema, o STF definiu mente reconhecidos como elementos decisórios
que, na caracterização de erro grosseiro, para permitir o ingresso de bens e equipamentos
no mercado nacional de forma mais célere du-
deve-se levar em consideração a observância, rante a pandemia.
pelas autoridades: (i) de standards, normas A urgência e a excepcionalidade do momento
e critérios científicos e técnicos, tal como
podem vir a ser incompatíveis com a realização
estabelecidos por organizações e entidades
internacional e nacionalmente conhecidas; de amplos processos de consulta e AIR; assim,
bem como (ii) dos princípios constitucionais se devidamente balizados em critérios técni-
da precaução e da prevenção (BRASIL, 2020e, cos, deveriam ser resguardados contra tentati-
p. 140).17
vas de revisão futura ou responsabilização dos
agentes tomadores de decisão. Aliás, o Decreto
“Esses parecem ser critérios também aptos no 10.411/2020 menciona situações de urgência
a orientar as decisões das agências reguladoras e a busca da manutenção de convergência a pa-
em situações de urgência, de modo que, uma vez drões internacionais como hipóteses em que a
atendidos, seriam capazes de sustentar deferên- AIR pode ser dispensada.
cia judicial em caso de questionamento futuro” Quanto ao segundo critério – a orientação
(PARENTE; SAMPAIO, 2020). Em especial o em torno da prevenção e da precaução –, algu-
primeiro, sendo ilustrativo da sua observância mas considerações adicionais devem ser tecidas.
que a Anvisa se tenha valido, em exemplos an- Trata-se de princípios por vezes associados a
teriormente mencionados, de registros, certi- um “não agir”, no sentido de que, ausente a cla-
ficações, inspeções e auditorias realizadas por reza quanto aos potenciais efeitos de uma cer-
órgãos regulatórios sanitários internacionalmente ta atividade privada, termina-se por proibi-la,
reconhecidos como elementos decisórios para em atenção à preservação da saúde e do meio
permitir o ingresso de bens e equipamentos no ambiente. Nesse sentido, o STJ decidiu que, em
mercado nacional durante a pandemia. observância ao princípio da precaução, não se
Assim, a referência a padrões técnico-científi- deveria permitir a instalação de estações rádio
cos internacionalmente aceitos e uma fundamen- base em certo município de Sergipe sem que essa
tação da decisão que considere, em alguma medi- atividade se submetesse a prévio licenciamento
da, as preocupações endereçadas pelos princípios ambiental (BRASIL, 2016a). O princípio também
da prevenção e da precaução deveriam ser aptas já foi invocado para se vedar a concessão de li-
a sustentar uma posição de deferência aos órgãos cença ambiental a determinado empreendimento
de controle, em caso de questionamento futuro minerário.18
(PARENTE; SAMPAIO, 2020). Em situações nas
quais o tempo urge, especialmente o primeiro
18
“Toda atividade potencialmente danosa ao meio
ambiente necessita de licenciamento ambiental, podendo
a licença ser negada ou não renovada caso haja receio de
risco ao ambiente ou à saúde [das] pessoas. Aplica-se na
17
Mencione-se que norma semelhante consta da Lei de hipótese sub judice o princípio da prevenção e o princípio da
Introdução às Normas do Direito Brasileiro. precaução, pois a Administração, titular do dever de evitar

72 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 55-83 abr./jun. 2021


Todavia, nem sempre o princípio da precau- de dispersão por aeronaves” (BRASIL, 2019d,
ção apresenta de forma inexorável uma orienta- p. 2).20 Essa jurisprudência orienta no sentido de
ção de impedimento a uma ação comissiva do que haja embasamento técnico para as decisões
particular ou da Administração Pública. Por isso, em matéria sanitária – determinação que não é
o STF fixou o entendimento de que, na ausência afastada em razão da pandemia, como visto no
de evidências científicas claras, não havia por caso do julgamento da constitucionalidade da
que estabelecer restrições adicionais ao exercício MP no 966/2020.
da atividade de transmissão de energia elétrica, Dessa forma, atitudes como a remissão a auto-
por meio da imposição de redução do campo rizações preexistentes a registros em autoridades
eletromagnético das linhas de transmissão de sanitárias reconhecidas internacionalmente, por
energia elétrica abaixo do patamar legal fixado.19 exemplo, em regra mereceriam o manto da defe-
Reiterando a relevância do papel das autori- rência administrativa justamente por se mostrar
dades técnicas, ao decidir acerca da constitucio- uma solução ágil que simultaneamente reduz a
nalidade de lei que autoriza o uso de mecanismo burocracia em tempos de pandemia sem descurar
de dispersão de substâncias químicas por ae- da tecnicidade e do cuidado da proteção à saúde.
ronaves para combate ao mosquito transmis- Quiçá se aproveitem posteriormente, superada
sor dos vírus da dengue, chikungunya e zika, o a pandemia, certas simplificações de procedi-
STF decidiu que “a aprovação das autoridades mentos uma vez confirmados os benefícios das
sanitárias e ambientais competentes e a com- decisões tomadas em regime de urgência.
provação científica da eficácia da medida são
condições prévias e inafastáveis à incorporação
de mecanismos de controle vetorial por meio 5 Interação do Poder Legislativo
com a Anvisa nas ações de combate à
danos individuais e coletivos, encontra-se na obrigação pandemia
inafastável de impedi-los. […] Recurso Especial parcialmente
conhecido e, nessa parte, não provido” (BRASIL, 2016b, p. 2).
19
“O princípio da precaução é um critério de gestão Uma questão de grande complexidade e re-
de risco a ser aplicado sempre que existirem incertezas levância, especialmente em tempos de pande-
científicas sobre a possibilidade de um produto, evento ou
serviço desequilibrar o meio ambiente ou atingir a saúde dos mia, diz respeito à legitimidade da atuação do
cidadãos, o que exige que o Estado analise os riscos, avalie
os custos das medidas de prevenção e, ao final, execute as
Congresso Nacional para decidir sobre temas
ações necessárias, as quais serão decorrentes de decisões discutidos ou já decididos no âmbito regulatório.
universais, não discriminatórias, motivadas, coerentes e
proporcionais. 3. Não há vedação para o controle jurisdi- O que prevalece nesse caso? A tradicional hierar-
cional das políticas públicas sobre a aplicação do princípio quia dos atos normativos, com a superioridade
da precaução, desde que a decisão judicial não se afaste da
análise formal dos limites desses parâmetros e que privile- das leis sobre os atos administrativos? Ou não
gie a opção democrática das escolhas discricionárias feitas
pelo legislador e pela Administração Pública. 4. Por ora,
não existem fundamentos fáticos ou jurídicos a obrigar as 20
“Em atendimento aos princípios da precaução e da
concessionárias de energia elétrica a reduzir o campo ele- prevenção, bem como do direito à proteção da saúde, por-
tromagnético das linhas de transmissão de energia elétrica tanto, confere-se interpretação conforme à Constituição,
abaixo do patamar legal fixado. 5. Por força da repercussão sem redução de texto, ao disposto no inciso IV do § 3o do
geral, é fixada a seguinte tese: no atual estágio do conheci- artigo 1o da Lei no 13.301/2016, para fixar o sentido segundo
mento científico, que indica ser incerta a existência de efeitos o qual a aprovação das autoridades sanitárias e ambientais
nocivos da exposição ocupacional e da população em geral competentes e a comprovação científica da eficácia da me-
a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos gerados dida são condições prévias e inafastáveis à incorporação
por sistemas de energia elétrica, não existem impedimentos, de mecanismos de controle vetorial por meio de dispersão
por ora, a que sejam adotados os parâmetros propostos pela por aeronaves, em atendimento ao disposto nos artigos 225,
Organização Mundial de Saúde, conforme estabelece a Lei § 1o, incisos V e VII, 6o e 196 da Constituição da República”
no 11.934/2009” (BRASIL, 2016d, p. 2). (BRASIL, 2019d, p. 2).

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 55-83 abr./jun. 2021 73


poderia o legislador invadir determinados domí- da administração pública direta ou indireta para
nios administrativos, reputados como temas de os produtos que especifica” (BRASIL, 2020a, p. 3,
“reserva da Administração”? No caso das agências grifo nosso).
reguladoras, a “reserva” seria fundamentada em Em que pese essa redação não ter prevalecido,
razão justamente do seu elevado teor de tecnici- o caso, que tem origem em situação decorrente
dade. Veja-se um exemplo ilustrativo. da pandemia, merece algumas reflexões acer-
Em 28/5/2020, o presidente da República ca da relação entre o Parlamento e as agências
sancionou a Lei no 14.006 (BRASIL, 2020c), a qual reguladoras. Ele permite, por exemplo, que se
facultou à Anvisa adotar processo simplificado questione a finalidade de uma lei superveniente
para autorizar a importação e distribuição de ma- para autorizar que a Anvisa reconheça regis-
teriais, medicamentos, equipamentos e insumos tros e autorizações de entidades estrangeiras, o
estrangeiros de saúde utilizados no combate à que já vinha inclusive sendo implementado por
pandemia. Especificamente, essa lei veio a auto- quase três meses quando foi promulgada a Lei
rizar, de forma excepcional e temporária, a im- no 14.006/2020. Seria essa uma medida visando
portação e distribuição desses recursos da área de conferir maior segurança jurídica à atividade
saúde sujeitos à vigilância sanitária sem registro reguladora que ela vinha desempenhando ou seria
na Anvisa, desde que eles estivessem registrados uma medida desnecessária? Definir se critérios
há pelo menos um ano em uma das seguintes técnicos adotados em nível internacional podem
autoridades e autorizados à distribuição comer- ou não ser aceitos no território brasileiro seria
cial em seus respectivos países: Food and Drug matéria de técnica discricionária?
Administration, European Medicines Agency, Não se pode dizer que seja inédito esse caso
Pharmaceuticals and Medical Devices Agency de “interação” Parlamento-Anvisa. Em passado
e National Medical Products Administration. recente, o Congresso aprovara ao menos duas
Ocorre que antes da promulgação dessa lei, outras leis que também impactaram diretamen-
proposta pelo deputado federal Luiz Antonio te a atuação da Anvisa. Em 2016, por exemplo,
Teixeira Jr. (PP/RJ), a Anvisa já tinha editado foi aprovada a Lei no 13.269, que autorizou o
diversas normas para simplificar seus atos de uso da substância fosfoetanolamina sintética,
liberação econômica (como a RDC no 346/2020, também conhecida como “pílula do câncer”, por
de 13/3/2020).21 Além disso, a redação da propo- pacientes diagnosticados com neoplasia maligna.
sição parlamentar (Projeto de Lei no 864/2020), Essa lei, posteriormente objeto de ação direta de
que acabou não prevalecendo, chegou a pretender inconstitucionalidade perante o STF, autorizou
estabelecer que “a autorização […] deverá ser a produção e distribuição da pílula do câncer
concedida pela Anvisa em até 72 (setenta e duas) independentemente de registro prévio na Anvisa,
horas após a submissão do pedido à agência, dis- tendo a Corte suspendido a lei, por reputar in-
pensada a autorização de qualquer outro órgão constitucional a comercialização do medicamento
sem registro na Anvisa (BRASIL, 2020d).
21
Quando o Projeto de Lei no 864/2020 ainda estava em Em 2017, o Congresso aprovou a Lei no 13.454,
tramitação, a Anvisa emitiu nota em que afirmava ter adota-
do tempestivamente uma série de medidas de flexibilização que teve como efeito prático proibir a Agência
e priorização na avaliação de produtos para o enfrentamento reguladora de vedar a produção, comercialização
da pandemia causada pelo novo coronavírus. Nessa nota,
a Agência também fez referência à adoção de medidas de e consumo das substâncias sibutramina, anfe-
compartilhamento de informações com autoridades regula- pramona, femproporex e mazindol, utilizadas
tórias estrangeiras para acelerar os processos de aprovação
de produtos (NOTA…, 2020b). na produção de remédios para emagrecimento.

74 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 55-83 abr./jun. 2021


Em seu sítio oficial na internet, a Anvisa criticou Por outro lado, é possível sustentar que o
a sanção da lei, a qual foi reputada pela entidade Congresso não pode repactuar, por meio de leis
como inconstitucional22. Na sequência, a Agência casuísticas, a competência das agências regula-
adotou o entendimento de que a autorização do doras, igualmente criadas por meio de lei. Nessa
legislador “não dispensa de registro os medica- concepção, é preciso respeitar o arranjo político
mentos por ela mencionados, mas apenas impede original, que atribuiu funções regulatórias espe-
a Anvisa de proibir sua produção, comercialização cíficas a órgãos dotados de ampla capacidade e
e consumo por ato próprio” (ANVISA…, 2018). expertise técnica. As agências reguladoras go-
O tema foi judicializado por meio da ADI 5.779, zariam, assim, de “discricionariedade técnica”24,
tendo a Anvisa sido admitida nos autos na con- não sujeita a controle político-administrativo.
dição de amicus curiae.23 Quando o Congresso Nacional propõe uma
Posicionar-se favorável ou contrariamente a lei que restringe a autonomia normativa de uma
essas intervenções legislativas implica ingressar agência reguladora, ele objetiva levá-la a agir
em terreno arenoso, cujas discussões são marca- em certa direção, seja porque ela pode não estar
das por divergências sobre modelos de Estado e atuando (pode estar agindo de forma lenta em
sobre as implicações da teoria da tripartição dos determinados temas), seja porque discorda de
Poderes. De um lado, pode-se sustentar que o suas escolhas. O fulcro da questão, todavia, re-
Congresso sempre poderá exercitar as competên- side em que essas escolhas apresentam, em tese,
cias também atribuídas às agências reguladoras, elevado caráter técnico. Essas iniciativas tanto
uma vez que a sua legitimidade democrática, podem decorrer de aparente insatisfação de certos
advinda do voto popular, faz com que ele possa parlamentares e seus constituintes com formas de
deliberar sobre qualquer matéria, desde que não agir adotadas pelas agências reguladoras quanto
contrarie a Constituição da República. A esse podem simplesmente indicar falta de diálogo
argumento atrela-se o de que a discricionariedade entre o Parlamento e as agências, que poderia
técnica exercida pelas agências não é neutra, e evitar superposições ou contraste de normas na
que, portanto, deve também estar sujeita a formas seara sanitária.
variadas de controle político, incluindo ajustes
legislativos supervenientes (CORREIA, 2008;
MASTRODI; COSTA, 2015, p. 185). 6 Conclusão

22
“A Anvisa lamenta a sanção, por parte do presidente Em mercados como os relacionados à vi-
da República em exercício, deputado federal Rodrigo Maia,
do Projeto de Lei 2.431/2011, que autoriza a produção,
gilância sanitária, a regulação justifica-se, em
a comercialização e o consumo de medicamentos à base grande parte, pelo reconhecimento de profunda
das substâncias anorexígenas sibutramina, anfepramona,
femproporex e mazindol. Essa lei, além de inconstitucional, assimetria informacional entre produtores e ad-
pode representar grave risco para a saúde da população.
Legalmente, cabe à Agência a regulação sobre o registro
sanitário dessas substâncias, após rigorosa análise técnica 24
Esse conceito foi expressamente empregado pelo STF
sobre sua qualidade, segurança e eficácia. Assim ocorre já em 2016, ao suspender cautelarmente os efeitos da Lei
em países desenvolvidos e significa uma garantia à saúde no 13.269/2016, que autorizava a comercialização da “pílula
da população. O Congresso não fez, até porque não é seu do câncer”. Segundo entendimento do ministro Barroso
papel nem dispõe de capacidade para tal, nenhuma análise nesse julgamento, a “Lei no 13.269/2016, ao substituir uma
técnica sobre esses requisitos que universalmente são reque- escolha técnica e procedimental da Agência por uma de-
ridos para autorizar a comercialização de um medicamento” cisão política do Legislador, interferiu de forma ilegítima
(MEDICAMENTOS…, 2018). no funcionamento da Administração Pública, em afronta à
23
A ação foi proposta em 13/9/2017, não tendo sido reserva de administração e à separação de Poderes” (BRASIL,
julgada até o momento de conclusão deste artigo. 2016c, p. 46-47).

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quirentes, de modo que a atuação normativa e cisões tomadas durante a pandemia exige que
fiscalizadora do Estado visa assegurar o consumo as normas produzidas pela Anvisa, mesmo que
seguro desses produtos. dispensadas de AIR e de consulta pública, este-
Há que se reconhecer, em especial na crise de jam amparadas em dados técnicos que permitam
saúde pública gerada pela pandemia decorrente comprovar a racionalidade da escolha adotada.
do novo coronavírus no Brasil, que, em regra, as A matéria envolvida tem singular relevân-
agências reguladoras estariam mais capacitadas a cia por se tratar da saúde pública. Confiar, por
tomar decisões com embasamento técnico para o exemplo, em parâmetros internacionalmente
enfrentamento da pandemia em suas respectivas aceitos ou em autorizações proferidas por au-
áreas de competência. Sob essa perspectiva, o toridades sanitárias mundialmente respeitadas
poder normativo das agências reguladoras deve mostrou-se uma solução aderente à finalidade da
ser valorizado como um importante instrumento legislação que criou a Anvisa e que simultanea-
de delegação e de intercomunicação do sistema mente permitiu respostas céleres. Essa solução é
jurídico com os demais subsistemas sociais, de distinta de uma hipótese em que simplesmente
modo a ser ressaltado o seu dinamismo e a sua houvesse afastamento de requisitos ordinaria-
independência. mente exigidos pela regulação setorial, pois
Entre os muitos desafios emergiu o de decidir denota uma preocupação da Agência de certi-
em meio a situações de urgência. Conforme visto, ficar-se de que houve controle sobre a segurança
a Anvisa editou mais de cem normas desde o de produtos e equipamentos introduzidos no
início da pandemia, das quais 27 flexibilizavam mercado nacional durante a pandemia, ainda
normas pré-existentes. que não tenha sido ela a realizar os testes e con-
A doutrina e jurisprudência apresentadas su- firmações pessoalmente.
gerem que atos normativos que observam todas as O texto mostrou ainda que o setor de vigilân-
normas procedimentais exigidas em lei, incluindo cia sanitária tem tido uma relação complexa com
a realização de consulta pública prévia e análise o Congresso Nacional, com exemplos ilustrativos
de impacto regulatório, tendem a ser respeitadas de aprovação de leis que visaram restringir a
pelo Poder Judiciário em controle posterior. Resta competência normativa da Agência reguladora.
saber, no entanto, como as instituições de controle No contexto da pandemia, a intervenção legis-
se comportarão diante de normas produzidas lativa implementada pela Lei no 14.006/2020
pelas agências reguladoras que flexibilizaram foi percebida, pela Anvisa, como desnecessária
regras de processo administrativo normativo. porque, no fundo, a lei veio a autorizar prática
Neste artigo, procurou-se demonstrar que que a Agência já realizava e entendia tratar-se de
as normas produzidas pela Anvisa durante a matéria de sua competência.
pandemia se enquadram nas hipóteses legais Em suma, as contribuições acima pretendem
que dispensam tanto o uso de consulta pública fornecer guia de auxílio interpretativo caso no
quanto de AIR. Além da necessidade de urgência, futuro venham a ser questionadas as decisões
diversas das normas produzidas pela Agência da Anvisa tomadas especificamente em razão
no período estavam embasadas em padrões in- da pandemia. Desse modo, uma ressalva final
ternacionais, hipótese contemplada no Decreto é oportuna: eventuais normas exaradas sem re-
no 10.411/2020, que regulamentou o uso da AIR. lação com a pandemia, mas pretensamente se
No entanto, a incidência dos princípios da valendo da urgência do momento, não seriam
prevenção e da precaução relativamente a de- destinatárias das conclusões aqui trazidas.

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Sobre as autoras
Natasha Schmitt Caccia Salinas é doutora e mestra em Direito pela Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil; master of Laws pela Yale Law School,
New Haven, Connecticut, EUA; professora da graduação e da pós-graduação da Escola de
Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
E-mail: [email protected]
Patrícia Regina Pinheiro Sampaio é doutora e mestra em Direito pela Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil; professora da graduação e da pós-graduação
da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
E-mail: [email protected]
Ana Tereza Marques Parente é mestra em Direito pela Universidade de Salamanca, Salamanca,
Espanha; pesquisadora do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação
Getulio Vargas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
E-mail: [email protected]
Este artigo é um produto do projeto Regulação em Números, vinculado ao Centro de Pesquisas
em Direito e Economia da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas
(FGV) e financiado pela Rede de Pesquisa Científica Aplicada da FGV.

Como citar este artigo


(ABNT)
SALINAS, Natasha Schmitt Caccia; SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro; PARENTE, Ana
Tereza Marques. A produção normativa das agências reguladoras: limites para eventual
controle da atuação regulatória da Anvisa em resposta à Covid-19. Revista de Informação
Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 230, p. 55‑83, abr./jun. 2021. Disponível em: https://
www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/ril_v58_n230_p55
(APA)
Salinas, N. S. C., Sampaio, P. R. P., & Parente, A. T. M. (2021). A produção normativa das
agências reguladoras: limites para eventual controle da atuação regulatória da Anvisa em
resposta à Covid-19. Revista de Informação Legislativa: RIL, 58(230), 55‑83. Recuperado
de https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/ril_v58_n230_p55

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extraordinária e temporária, sobre os requisitos para a fabricação, importação e aquisição
de dispositivos médicos identificados como prioritários para uso em serviços de saúde, em
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Administrativo. Telecomunicações. Telefonia fixa. Lei n. 9.472/97. Cobrança de tarifa
interurbana. Suspensão. Área local. Ação civil pública. Código de Defesa do Consumidor
[…]. Recorrente: Brasil Telecom S/A. Recorrida: Coordenadoria de Proteção e Defesa do
Consumidor de Cornélio Procópio – Procon. Relator: Min. João Otávio de Noronha, 16 de
março de 2004. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_
registro=200301280351. Acesso em: 15 mar. 2021.

______. Superior Tribunal de Justiça (2. Turma). Recurso Especial no 1.555.131/RJ.


Administrativo. Processual civil. Meio ambiente. Não renovação de licença ambiental.
Demonstração de danos. Princípio da prevenção e princípio da precaução. Serra da Tiririca.
Empresa mineradora. Ausência de omissão. Falta de prequestionamento. Divergência
jurisprudencial não demonstrada. Acórdão com fundamento constitucional não atacado por
recurso extraordinário. Súmula 126/STJ […]. Recorrente: Empresa de Mineração Inoã Ltda.
– ME. Recorridos: Estado do Rio de Janeiro; Instituto Estadual do Ambiente – INEA. Relator:
Min. Herman Benjamin, 19 de maio de 2016b. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/
GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201303559421&dt_publicacao=05/11/2019.
Acesso em: 15 mar. 2021.

______. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.668/


DF. Comunicações – Lei Geral no 9.472/97 – controle concentrado. Admissibilidade parcial
da ação direta de inconstitucionalidade e deferimento em parte da liminar ante fundamentos
retratados nos votos que compõem o acórdão. Requerentes: Partido Comunista do Brasil –
PC do B; Partido dos Trabalhadores – PT; Partido Democrático Trabalhista – PDT; Partido
Socialista Brasileiro – PSB. Requeridos: Presidente da República; Congresso Nacional.
Relator: Min. Marco Aurélio, 20 de agosto de 1998. Disponível em: http://redir.stf.jus.
br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=347202. Acesso em: 15 mar. 2021.

______. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.874/


DF. Ação direta de inconstitucionalidade. Pedido de interpretação conforme a Constituição.
Art. 7o, III e XV, in fine, da Lei no 9.782/1999. Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) da
Anvisa no 14/2002. Proibição da importação e da comercialização de produtos fumígenos
derivados do tabaco contendo aditivos. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Regulação
setorial. Função normativa das [agências] reguladoras. Princípio da legalidade. Cláusulas
constitucionais da liberdade de iniciativa e do direito à saúde. Produtos que envolvem risco
à saúde. Competência específica e qualificada da Anvisa […]. Requerente: Confederação
Nacional da Indústria. Interessados: Presidente da República; Congresso Nacional. Relatora:
Min. Rosa Weber, 1o de fevereiro de 2018. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=TP&docID=749049101. Acesso em: 15 mar. 2021.

______. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.501/DF.


Saúde – medicamento – ausência de registro – inconstitucionalidade. É inconstitucional ato
normativo mediante o qual autorizado fornecimento de substância, sem registro no órgão
competente, considerados o princípio da separação de Poderes e o direito fundamental à
saúde – artigos 2o e 196 da Constituição Federal. Requerente: Associação Médica Brasileira
– AMB. Interessados: Presidente da República; Congresso Nacional; Associação Brasileira
de Portadores de Câncer. Relator: Min. Marco Aurélio, 26 de outubro de 2020d. Disponível
em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754525738.
Acesso em: 15 mar. 2021.

______. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.592/


DF. Ação direta de inconstitucionalidade. Administrativo e ambiental. Medidas de contenção
das doenças causadas pelo Aedes Aegypti. Artigo 1o, § 3o, inciso IV da Lei n. 13.301, de 27 de
junho de 2016. Permissão da incorporação de mecanismos de controle vetorial por meio de
dispersão por aeronaves mediante aprovação das autoridades sanitárias e da comprovação
científica da eficácia da medida. Possibilidade de insuficiência da proteção à saúde e ao
meio ambiente. Voto médio […]. Requerente: Procurador-Geral da República. Interessados:
Presidente da República; Congresso Nacional. Relatora: Min. Cármen Lúcia. Redator do
acórdão: Min. Edson Fachin, 11 de setembro de 2019d. Disponível em: http://redir.stf.jus.
br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=752184165. Acesso em: 15 mar. 2021.

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 55-83 abr./jun. 2021 81


______. Supremo Tribunal Federal (1. Turma). Agravo Regimento no Recurso Extraordinário
1.083.955/DF. Agravo interno em recurso extraordinário. Direito econômico e administrativo.
Concorrência. Prática lesiva tendente a eliminar potencialidade concorrencial de novo
varejista. Análise do mérito do ato administrativo. Impossibilidade. Precedentes.
Incursionamento no conjunto fático-probatório dos autos. Incidência da Súmula 279 do
STF. Agravo interno desprovido […]. Agravante: Cascol Combustíveis para Veículos Ltda
e outro(a/s). Agravado: Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade. Relator:
Min. Luiz Fux, 28 de maio de 2019e. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=TP&docID=750040942. Acesso em: 15 mar. 2021.
______. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Medida Cautelar na Ação Direta de
Inconstitucionalidade 5.501/DF. Saúde – medicamento – ausência de registro. Surge relevante
pedido no sentido de suspender a eficácia de lei que autoriza o fornecimento de certa
substância sem o registro no órgão competente, correndo o risco, ante a preservação da saúde,
os cidadãos em geral. Requerente: Associação Médica Brasileira. Interessados: Presidente da
República; Congresso Nacional. Relator: Min. Marco Aurélio, 19 de maio de 2016c. Disponível
em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13194039.
Acesso em: 15 mar. 2021.
______. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Medida Cautelar na Ação Direta de
Inconstitucionalidade 6.421/DF. Direito administrativo. Ações diretas de inconstitucionalidade.
Responsabilidade civil e administrativa de agentes públicos. Atos relacionados à pandemia de
Covid‑19. Medida Provisória no 966/2020. Deferimento parcial da cautelar […]. Requerente:
Rede Sustentabilidade. Interessado: Presidente da República. Relator: Min. Roberto Barroso,
21 de maio de 2020e. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
jsp?docTP=TP&docID=754359227. Acesso em: 15 mar. 2021.
______. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Recurso Extraordinário 627.189/SP. Recurso
extraordinário. Repercussão geral reconhecida. Direito constitucional e ambiental. Acórdão
do tribunal de origem que, além de impor normativa alienígena, desprezou norma técnica
mundialmente aceita. Conteúdo jurídico do princípio da precaução. Ausência, por ora, de
fundamentos fáticos ou jurídicos a obrigar as concessionárias de energia elétrica a reduzir
o campo eletromagnético das linhas de transmissão de energia elétrica abaixo do patamar
legal. Presunção de constitucionalidade não elidida. Recurso provido. Ações civis públicas
julgadas improcedentes. Recorrente: Eletropaulo Metropolitana – Eletricidade de São Paulo
S/A. Recorridos: Sociedade Amigos do Bairro City Boaçava e outros(a/s); Pedro Roxo Nobre
Franciosi. Relator: Min. Dias Toffoli, 8 de junho de 2016d. Disponível em: http://redir.stf.jus.
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government agency must conform to any clear legislative statements when interpreting and
applying a law, but courts will give the agency deference in ambiguous situations as long
as its interpretation is reasonable. First party: Chevron U.S.A. Inc. Second party: Natural
Resources Defense Council, Inc. et al. June 25, 1984. Disponível em: https://supreme.justia.
com/cases/federal/us/467/837/. Acesso em: 23 mar. 2021.

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 55-83 abr./jun. 2021 83


Informação legislativa e correlatas
Como conceituar?

ROBERTO CAMPOS DA ROCHA MIRANDA


RICARDO DE JOÃO BRAGA

Resumo: O artigo detém-se sobre a discussão conceitual da expressão


informação legislativa e suas aplicações. Fundado nos estudos publicados
até 2020, avalia a relação entre o conceito de informação legislativa com
outros tipos de informação, como a informação política, a informação
parlamentar, a informação cidadã e a informação eleitoral. Justifica-se
o estudo por tratar-se de conceito amplamente utilizado na literatura
acadêmica sem que haja real preocupação em conceituá-lo diante de
outros tipos de informações diretamente relacionados a ele. Espera-se
que o trabalho venha a contribuir para que se considerem objetivamente
as possibilidades e a aplicabilidade dos termos no âmbito das Ciências
Sociais e Humanas, bem como permita desencadear outros estudos
voltados para termos igualmente utilizados em artigos que tratam do
Poder Legislativo. A metodologia emprega a Informetria do termo e seus
correlatos e a discussão comparada dos conceitos estudados, apresentando
elementos que caracterizam e diferenciam. Os resultados apontam que
a informação legislativa é da família da informação política (na qual se
incluem também a informação eleitoral e a cidadã) e que tem por espécie
a informação parlamentar.

Palavras-chave: Informação legislativa. Informação parlamentar.


Informação cidadã. Informação eleitoral. Informação política. Poder
Legislativo.

Legislative and related information: how to conceptualize?

Abstract: The article focuses on the conceptual discussion of the term


legislative information and its applications. It starts from existing studies
in literature published until 2020 to assess the relationship between the
concept of legislative information and other types of information, namely
Recebido em 4/9/20 political information, parliamentary information, citizen information
Aprovado em 26/10/20 and electoral information. Legislative information is a concept widely

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 85-109 abr./jun. 2021 85


used in academic literature but there is not any known real concern to
conceptualize it in the face of other types of related information, a pitfall that
justifies the current study. The article is expected to contribute to a better
understanding of possibilities and applicability of the terms within Social
and Human Sciences, as well as encourage other studies focused on other
terms also used in articles dealing with Legislatures and Legislative Power.
The methodology uses the Informetry and the comparative discussion of
the studied concepts, presenting elements that characterize and differentiate
them. The results show that legislative information belongs to the family of
political information (which also includes electoral and citizen information)
and has parliamentary information as its species.

Keywords: Legislative information. Parliamentary information. Citizen


information. Electoral information. Political information. Legislative Power.

1 Introdução

Os conceitos e as definições em todas as áreas da Ciência contribuem


para o entendimento dos objetos pesquisados e, na maioria das vezes,
permitem que se tenha a ideia exata ou aproximada do foco do estudo
e das formas de avaliação e mensuração dos fenômenos. Nessa linha,
identificando-se lacuna de conceitos sobre informação legislativa na
literatura, desencadeou-se este estudo.
Gerring (2001, p. 35, tradução nossa) apresenta uma útil discussão
sobre conceitos: “A formação de conceitos refere-se à mais básica questão
de pesquisa em Ciência Sociais: ‘Sobre o quê nós estamos falando?’”.
Assim, o quê (what question) é uma pergunta.
Para Gerring (2001, p. 40-60) e Guimarães e Braga (2011, p. 86),
um bom conceito deve ser avaliado conforme oito critérios distintos:
coerência, operacionalização, validade, utilidade de campo, ressonância,
abrangência contextual, parcimônia e utilidade analítica ou empírica.
Desse modo, um conceito precisa tanto ser capaz de diferenciar seu objeto
de outros quanto ser coerente internamente. Para isso, necessita viabi-
lizar a abordagem de material empírico (quando é o caso), permitindo
a identificação de elementos do mundo real, sua mensuração etc. Vale
dizer: para Gerring (2001), não se trata de conceitos certos e errados,
apenas daqueles que atendem a mais ou a menos critérios.
O conceito de informação legislativa costuma ser utilizado como
termo de entendimento comum na literatura das áreas que discutem

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questões relacionadas ao Poder Legislativo, mas óticas estruturalista ou funcionalista (POLSBY,
seu significado é difuso e atende à multiplici- 1975, p. 258). Entre suas diversas características
dade de situações e necessidades. Ademais, a estruturais estão a oficialidade, a legitimidade
usual utilização de sinônimos para a expressão baseada em relações com o povo, a colegialidade,
em artigos científicos gera a impressão de que a igualdade formal dos membros, o processo de-
os termos são plenamente identificados e ca- cisório coletivo e a deliberatividade. E entre suas
racterizados – o que, contudo, não é correto, funções estão a produção de leis, a discussão
pois não se conhecem obras que se limitem a de temas de interesse público, a legitimação do
discutir suas acepções essenciais. Diante dessa sistema político, a fiscalização e recrutamento de
multiplicidade de significados, na verdade não lideranças. Além dessas funções propostas por
há um conceito adequadamente construído. Polsby (1975), o Poder Legislativo pode ainda
Considerando que os achados sobre in- contar com grandes aparatos organizacionais de
formação legislativa levaram à necessidade apoio ou estruturas diminutas (GUIMARÃES;
de distinção de outros tipos de informação SCHWARTZ; WERNECK; MELO, 2015; FISH;
correlatos – informação política, informação KROENIG, 2009). Dessa maneira, vê-se que o
parlamentar, informação eleitoral e informação termo legislativo, como adjetivo que qualifique
cidadã –, optou-se por trazer todos os conceitos, qualquer substantivo – ou no caso específico
bem como as características identificadas, a fim de informação legislativa –, aplica-se a uma
de constituir um arcabouço epistemológico que diversidade de processos, objetos e situações.
permita o entendimento do objeto de estudo Assim, a amplitude do termo e sua consequente
por analogia e diferenciação. diversidade de objetos exigem a reflexão e o es-
Dada a importância do conceito, destacada tabelecimento de conceituações que permitam,
pela utilização corriqueira em vários trabalhos dentro da mais básica lógica da Ciência, que se
científicos, é necessário que se precise seu signi- acumule conhecimento: sem precisão conceitual
ficado. Assim, o artigo detém-se sobre a discus- não há mensuração e não se estabelece uma
são do termo e suas aplicações. A complexidade avaliação intersubjetiva consistente.
e a importância da empreita apresentam-se Informação, como substantivo modificado
desde uma breve inspeção nos dois compo- pelo adjetivo legislativa, é importante no âm-
nentes do conceito: o substantivo informação bito das Ciências da Informação e da Ciência
e seu qualificador legislativa. Política. Para a Ciência da Informação, o
O Poder Legislativo como objeto de es- Legislativo apresenta-se como um objeto sobre o
tudo é complexo e multifacetado. Em artigo qual ela estende seu método e questionamentos
de 1975, em obra com pretensões enciclo- específicos, um campo rico em possibilidades
pédicas (“Handbook of Political Science” de estudo (MIRANDA, 2012). Interessa nesse
(GREENSTEIN; POLSBY, 1975)), Polsby (1975) caso compreender como a informação é tratada
busca conceituar as Legislatures – que não apre- em estruturas organizacionais complexas, como
senta uma tradução para o português sem algu- no caso do Legislativo.
ma imprecisão, pois é de fato uma mescla do que Compreender como a informação é produzi-
conhecemos como Poder Legislativo-função e da, coletada e distribuída dentro do Legislativo
como Assembleia-organização – e logo apre- também alimenta questões centrais para a
senta suas dificuldades. Para o autor, pode-se Ciência Política, como a qualidade da repre-
avançar na conceituação de Legislativo sob as sentação e da democracia e o funcionamento

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 85-109 abr./jun. 2021 87


da vida parlamentar. Para discussões como são descritas as variáveis, os conceitos primários
accountability, representatividade, cultura cí- e as referências na literatura por tipo de infor-
vica e outras similares, a informação é elemento mação; e, por último, considerações finais são
central de mobilização de juízos e ações tanto apresentadas.
da classe política quanto de cidadãos e atores
institucionais da sociedade.
Compreender a informação e seu fluxo 2 Instrumentos e métodos
dentro do Poder Legislativo ajuda também a
desvendar as relações entre os Poderes, que se Em contexto eminentemente bibliográfico, a
dá por barganhas e posicionamentos, para os pesquisa desenvolve-se com base na Informetria
quais a informação (sua produção, transmissão (ROBREDO; CUNHA, 1998) – técnica de aná-
e uso) é fundamental. O rastreamento da in- lise dos dados coletados em termos quantita-
formação, por exemplo, ajuda a compreender tivos (número de ocorrências) –, bem como
quem tem posição privilegiada e pode auferir na análise de conteúdo (MORAES, 1999), que
ganhos numa barganha. A importância teórica busca estabelecer referencial conceitual para os
disso é evidente: basta lembrar conceitos como termos objeto da pesquisa.
assimetria de informação e custos de transação Descrevem-se, a seguir, as etapas do método
(MOE, 1984), base da teoria agente-principal e, de pesquisa:
por essa via, das teorias neoinstitucionalistas do
Legislativo (MALTZMAN, 2001; WEINGAST; 2.1 Preparação das informações
MARSHALL, 1988; KREHBIEL, 1992; COX;
MCCUBBINS, 1993). Essa etapa envolveu a busca textual de uso
Esta pesquisa apresenta levantamento reali- do termo informação legislativa (e suas tradu-
zado quanto às concepções do termo informação ções para o inglês e para o espanhol) em bases
legislativa e às suas aplicações, e busca estabe- de dados, de acordo com termos previamente
lecer um corpo epistemológico que permita o definidos. Incluindo-se os correspondentes
entendimento da informação legislativa em suas em língua inglesa e espanhola, as expressões
diversas acepções. A reflexão aqui empreendida buscadas foram estas: informação legislativa,
leva à conceituação, ainda que embrionária, informação parlamentar, informação cidadã,
da expressão e de alguns termos correlatos. informação eleitoral e informação política.
Acredita-se que o trabalho venha a contribuir As bases escolhidas foram: ABI/INFORM
para que se considerem as possibilidades e a Global, Latin American Newsstand, ProQuest
aplicabilidade dos termos, de forma rigorosa, Military Collection, ProQuest Political Science,
no âmbito das Ciências Sociais e Humanas, ProQuest Research Library, ProQuest Social
bem como estimule novos estudos voltados Science Journals e Worldwide Political Science
para outros termos igualmente utilizados em Abstracts. Além disso, buscaram-se os mesmos
artigos que tratam do Poder Legislativo. termos no Google Acadêmico®.
Este artigo organiza-se da seguinte forma: As pesquisas iniciais realizaram-se entre
posteriormente a esta Introdução, apresentam-se janeiro e março de 2013 e enfatizaram a inves-
instrumentos e métodos; depois, o estudo bi- tigação dos conceitos e das definições, e não
bliométrico, seguido do contexto epistemológi- apenas a de características que apresentassem as
co das informações em questão. Na sequência, propriedades ou as qualificações dos vocábulos,

88 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 85-109 abr./jun. 2021


de forma a avaliar efetivamente a concepção das expressões por distintos
autores que delas se valem em seus textos. Observou-se que poucos são
os artigos científicos que apresentam algum conceito dos termos estu-
dados, os quais na maioria das vezes são utilizados de forma indistinta
para situações muitas vezes contraditórias, sem que haja a preocupação
de construir uma taxonomia que estabeleça “família, gênero e espécie”
de conceitos, o que gera ambiguidade no entendimento e sentido.
A segunda etapa, realizada em junho de 2014 – e com o apoio da
Coordenação de Relacionamento, Pesquisa e Informação do Centro de
Documentação e Informação da Câmara dos Deputados, utilizando-se
o Catálogo da Rede Virtual de Bibliotecas para acesso às bases Aleph, na
Ebsco, Web of Science e Scielo –, consistiu na busca quali-quantitativa de
trabalhos que mencionassem informação legislativa, legislative information
e información legislativa.
A última etapa, realizada em maio de 2020, encerra as discussões
sobre os termos envolvidos, tendo sido atualizada a pesquisa nas bases
de dados escolhidas.

2.2 Unitarização ou transformação do conteúdo em unidades

Nessa fase, buscou-se identificar elementos diferenciadores e sig-


nificativos de cada termo, a fim de se encontrar um padrão que os
caracterizasse como únicos ou de se apontarem sinonímias admissíveis
para seus usos.

2.3 Categorização ou classificação das unidades em categorias

Após a identificação dos conteúdos, foi possível estabelecer relações


entre eles, em alguns casos indicando hierarquias, em outros, interseções
e vinculações.

2.4 Descrição

Cada termo passou a ser descrito e caracterizado, tanto a indicar as


variáveis que a ele se relacionam quanto a buscar um conceito operacional
que permita sua mensuração.

3 Estudo bibliométrico

O levantamento realizado indicou que, entre 1960 e 2020, houve 524


citações dos termos em estudo (com duplicidades eventuais em diferentes

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 85-109 abr./jun. 2021 89


bases de dados), distribuídos conforme o Gráfico 1, que apresenta as
ocorrências de menção.

Gráfico 1

Ocorrências dos tipos de informação entre 1960 e 2020

Informação Cidadã; 37

Informação Eleitoral; 40

Informação Parlamentar; 75 Informação Legislativa; 271

Informação Política; 101

Fonte: elaborado pelos autores.

No Gráfico 2, que pormenoriza o estudo, verifica-se que a produção


se diversificou e cresceu com o passar do tempo1, mas sempre com maior
destaque para o termo informação legislativa. Chama mais a atenção a
produção nas duas décadas mais recentes – entre 2010 e 2019 houve
significativa pluralização das obras e queda na produção que trata de in-
formação legislativa, embora esta continue individualmente prevalecendo.

Gráfico 2

Número de obras por tipo de informação – 1970 a 2019

80
70
60
50
40
30
20
10
0
1970-1979 1980-1989 1990-1999 2000-2009 2010-2019
Inf. Legislativa Inf. Política Inf. Parlamentar Inf. Eleitoral Inf. Cidadã

Fonte: elaborado pelos autores.

1
O levantamento total inicia-se em 1960 e estende-se até 2020. Para padronizar a vi-
sualização, nos gráficos apresentam-se dados relativos apenas ao período entre 1970 e 2019.
Excluiu-se, assim, um total de seis obras, uma referente à década de 1960 e cinco de 2020.

90 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 85-109 abr./jun. 2021


Quanto ao tipo de suporte bibliográfico (Gráfico 3), apenas informação
legislativa apresenta uma pluralidade significativa de tipos – artigos em
revista, em periódicos científicos, livros e capítulos em livros. Os outros
tipos de informação são representados praticamente apenas por artigos
em periódicos científicos – tipo prevalecente no universo pesquisado.

Gráfico 3

Número de obras por tipo de suporte e de informação – 1970 a 2019

100

80

60

40

20

0
Inf. Legislativa Inf. Política Inf. Parlamentar Inf. Eleitoral Inf. Cidadã

Artigo de Revista Artigo em Periódico Científico Capítulo de Livro Livro Outros

Fonte: elaborado pelos autores.

Outro ponto importante observado foi a forma como os termos


foram tratados nos textos identificados. Não há indicação de conceito
dos termos, embora sejam usados como se houvesse consenso sobre
seus significados, empregados até mesmo como sinônimos. O quadro a
seguir aponta os principais autores identificados que utilizam os termos
em mais de uma publicação.

Quadro 1

Autores com mais de um texto publicado com os termos em estudo

Tipo de
Autor Título Suporte Ano
informação
Indexação de textos legislativos: a experiên-
artigo de
cia da Subsecretaria de Análise do Senado 1977
revista
Federal
Automação e formação de uma rede de
artigo de
Dutra, informação jurídico-legislativa: experiência 1983
Informação revista
Yamil e no Senado Federal
Legislativa
Sousa Automação e formação de uma rede de
capítulo
informações jurídico-legislativas: experiência 1985
de livro
no Senado Federal
capítulo
O legislativo e a informação: uma introdução 1985
de livro

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 85-109 abr./jun. 2021 91


Tipo de
Autor Título Suporte Ano
informação
A informação e a informática na constituinte: capítulo
1988
Dutra, Subsecretaria de Análise do Senado Federal de livro
Yamil e
Sousa Sistemas de asesoría e información en el capítulo
1994
Senado Federal brasileño de livro

Sistema de legislação informatizada (LEGIN): artigo em


uma experiência em gestão da informação periódico 2013
Eirão, jurídica na Câmara dos Deputados científico
Thiago
Gomes A elaboração de projetos de lei: alguns artigo em
apontamentos à luz da técnica legislativa na periódico 2017
Câmara dos Deputados científico
artigo em
Citizens’ access to on-line state legislative
periódico 2001
Fagan, documents
científico
Jody
Condit artigo em
An accessibility study of state legislative
periódico 2004
Web sites
científico
anais de
Conference wrap-up 1997
congresso
Griffith, artigo em
Congress’ legislative information systems:
Jeffrey periódico 2001
THOMAS and the LIS
científico
World e-parliament report 2010 livro 2010
Informação
artigo de
Legislativa Maia, O combustível parlamentar 2002
jornal
Agaciel
da Silva artigo de
Senado brasileiro no futuro 2002
jornal
Inappropriate uses of computers in the
Nunez, livro 1975
legislative process
Richard
I. Usos inadequados de computadores no capítulo
1976
processo legislativo de livro

Estudo sobre o comportamento informa-


cional de parlamentares e assessores
legislativos na Câmara Legislativa do Distrito livro 2001
Rocha, Federal como subsídio à gestão estratégica
Marisa de informações no processo legislativo
Perrone Desenvolvimento de referencial teórico para
Campos um sistema de informações gerenciais (SIG) artigo em
para parlamentares e assessores na Câmara periódico 2003
Legislativa do Distrito Federal: em busca de científico
um modelo conceitual
Legislative XML for the semantic web:
principles, models, standards for document livro 2011
Sartor, management
Giovanni
anais de
Access to Legislation in the Semantic Web 2011
congresso
Voices of Convergence or Conflict? A Path artigo em
Analysis Investigation of Selective Exposure periódico 2011
Johnson, to Political Websites científico
Informação
Thomas Communication Communities or
Política artigo em
J. “CyberGhettos?”: A Path Analysis Model
periódico 2009
Examining Factors that Explain Selective
científico
Exposure to Blogs

92 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 85-109 abr./jun. 2021


Tipo de
Autor Título Suporte Ano
informação
From here to obscurity? Media substitution artigo em
theory and traditional media in an on-line periódico 2003
Kaye, world científico
Barbara
K. Research methodology: Taming the cyber artigo em
frontier – Techniques for improving online periódico 1999
Informação surveys científico
Política
Os militantes são mais informados? artigo em
Desigualdade e informação política nas periódico 2006
Rennó, eleições de 2002 científico
Lucio artigo em
Desigualdade e informação política: as
periódico 2007
eleições brasileiras de 2002
científico
A informação e a informática na constituinte: capítulo
Dutra, 1988
Subsecretaria de Análise do Senado Federal de livro
Yamil e
Sousa capítulo
O legislativo e a informação: uma introdução 1985
de livro
artigo em
Citizenship information research at the
periódico 2001
School of Information and Media
científico
An exploration of the effectiveness for
artigo em
the citizen of Web-based systems of
Informação periódico 2002
communicating UK parliamentary and
Parlamentar científico
devolved assembly information
Marcella, The Impact of New Technology on the artigo em
Rita periódico 2005
Communication of Parliamentary Information
científico
artigo em
The effectiveness of parliamentary
periódico 2003
information services in the United Kingdom
científico
Data collection using electronically assisted artigo em
interviews in a roadshow – A methodological periódico 2003
evaluation científico
An exploration of the effectiveness for
artigo em
the citizen of Web-based systems of
periódico 2002
communicating UK parliamentary and
científico
devolved assembly information
Marcella,
Rita Theoretical and methodological approaches
Informação
to the study of information need in the artigo em
Parlamentar
context of the impact of new information periódico 2002
and communications technologies on the científico
communication of parliamentary information
Nações World e-parliament report 2012 livro 2012
Unidas World e-parliament report livro 2008
A tutela preventiva como instrumento capaz
artigo em
de garantir o devido processo eleitoral: do
periódico 2018
caráter não absoluto da liberdade à informa-
Informação Freitas, científico
ção ao controle do conteúdo das fake news
Eleitoral J. R.
A liberdade à informação do eleitor e o seu artigo em
núcleo de questionamentos: por quê? Para periódico 2018
quê? Por quem? científico
Informação não
não há não há não há
Cidadã há
Fonte: elaborado pelos autores.

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 85-109 abr./jun. 2021 93


4 Contexto epistemológico

Neste tópico são apresentados os resultados obtidos da busca dos


termos de estudo e discute-se cada conceito e suas implicações. Ressalte-
se que apenas os artigos que indicavam de forma expressa conceito ou
característica da informação em questão foram aqui avaliados e tiveram
o termo discutido. Foram excluídos os artigos que apenas utilizavam os
termos sem conceituação.
Neste ponto, há que se mencionar a referência ao que se considera
informação, entendida como “dados organizados de modo significativo,
sendo subsídio útil à tomada de decisão” (MIRANDA, 1999, p. 287).
Esse conceito implica associar a informação à tomada de decisão e, por
conseguinte, traz em seu escopo a ideia de que a informação atende,
necessariamente, a um contexto espaço-temporal. De outra forma, a in-
formação atende a uma tomada de decisão para determinada conjuntura
de fatores – pessoas envolvidas, agentes naturais e materiais circundantes,
condições limitantes etc. – e para específico universo temporal – passado
(histórico), presente (imediato) ou futuro (preditivo ou prospectivo2).
O que se tem na avaliação preliminar dos termos é o diagrama da
Figura 1.

Figura 1

Diagrama de relação preliminar entre os tipos de informação estudados

Inf.
LEGISLATIVA

Inf. Inf.
POLÍTICA PARLAMENTAR

Inf. Inf.
ELEITORAL CIDADÃ

Fonte: elaborada pelos autores.

2
A predição implica utilizar dados e informações do passado para se conformar o futuro
desejado ou vislumbrado; a prospecção busca delinear cenários futuros com base em tendên-
cias de evolução das principais variáveis que impactam o futuro desejado ou vislumbrado.

94 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 85-109 abr./jun. 2021


O diagrama indica que há relações de união, Vê-se, pois, que o núcleo da concepção de
interseção e hierarquia entre os termos. A mais informação legislativa está relacionado à sua
abrangente é a informação política, que engloba função mais reconhecida: a atividade de produ-
num nível imediatamente inferior a legislativa, ção de leis e seus inerentes debates (à exceção
a eleitoral e a cidadã. A informação legislativa de Alarcão (2011) e, em alguma medida, Moura
tem como elemento subordinado a informação ([20--?]), que expandem o conceito para ativi-
parlamentar, que integra seu significado, mas dades de outras naturezas).
não o esgota. Conforme discutido no princípio do artigo,
de acordo com a definição de Polsby (1975),
4.1 Informação legislativa vê-se que é algo limitante e reducionista tratar
como informação legislativa apenas a relacio-
De acordo com o Gemet Thesaurus nada a uma específica função. De fato, o foco
(LEGISLATIVE…, [20--?]), a informação legisla- apenas na função torna falha a própria defini-
tiva pertence à família da informação das popula- ção. Como aponta o mesmo Polsby, a função de
ções, é entendida como informação pública e está produção de leis exclusiva das legislaturas pode
voltada para o provimento de conhecimento que mesmo não ser inerente a elas, como em vários
leva à proposição, à aprovação e à deliberação casos de assembleias fragilizadas em contextos
de leis, sendo específica para o contexto legal. autoritários.
Por informação pública entende-se a informação
fatual ou circunstancial fornecida a uma co- A atividade legislativa em sua essência refe-
munidade ou população sem restrições. Ainda re-se a um processo de produção de leis3, a
um padrão de ações que regularmente resulta
segundo o Gemet Thesaurus (LEGISLATIVE…,
na promulgação de regras gerais aplicadas
[20--?]), em outras línguas correspondem a infor- sobre uma população. Enquanto esta ativi-
mação legislativa: información legislativa (espa- dade está inquestionavelmente no coração
nhol), information législative (francês), legislative de toda vida política e assim para muitos
propósitos é praticamente uma característica
information (inglês) e informazione legislativa
definidora de governo, onde o governo existe,
(italiano), para citar alguns. a atividade legislativa não é precisamente
Complementarmente, Passos ([20--?], p. [2]) sinônima de poder legislativo4. […] Como
enfoca a informação legislativa como resultado mais de um observador já apontou, leis – ou
do processo legislativo nas três esferas de gover- ao menos regulações que incorporam sanções
por descumprimento com alta probabilidade
no, como produto de “proposições legislativas,
de aplicação – são algumas vezes produzidas
substitutivos, pareceres, emendas, relatórios, por agências não consideradas poder legis-
etc.”. Aponta ainda que se diferencia da infor- lativo, e assembleias frequentemente encon-
mação jurídica por não ter caráter impositivo.
Na mesma linha, Moura ([20--?], p. 2) agre- 3
A palavra lei tem ao menos dois significados, caso
se considere sua natureza ou sua formalidade jurídica. A
ga ao conceito de informação legislativa “os natureza é a de norma, obrigação, isto é, imposição unila-
pronunciamentos parlamentares e os debates teral determinada pelo poder político, a qual traz consigo
a obrigatoriedade e a probabilidade de coação. Quanto à
ocorridos nos plenários das casas legislativas e formalidade jurídica, leis são apenas um dos tipos de normas,
que podem ser decretos, leis complementares e ordinárias,
das comissões”. Por outro lado, Alarcão (2011) normas constitucionais, entre outros exemplos.
restringe a informação legislativa à Câmara dos 4
Legislature aqui foi traduzida como Poder Legislativo –
Deputados, mas amplia seu escopo como suporte no caso a organização, o ente do Estado. Também se utiliza
a palavra assembleia para traduzir legislature, da mesma
para atividades internas e externas. forma em referência ao ente estatal.

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 85-109 abr./jun. 2021 95


tram-se engajadas em atividades outras que
não a produção de leis. […] Ocasionalmente No âmbito dos estudos legislativos da Ciência
surgem confusões naturais entre estudiosos Política, Krehbiel (1992) alçou ao primeiro plano
porque às vezes a produção de leis ocorre fora a problematização da informação. Segundo ele, a
do âmbito do poder legislativo, e por vezes as estrutura organizacional do Legislativo objetiva
assembleias realizam outras atividades além
da produção de leis5 (POLSBY, 1975, p. 258,
principalmente produzir e distribuir eficiente-
tradução nossa). mente informação para seus membros, pois o
grande desafio da política é transformar ideias
O último período da citação é crítica perfeita e projetos em realidades concretas, o que exige
à imprecisão do que se entende por informação informação adequada para o melhor posiciona-
legislativa: seria informação legislativa aquela mento político dos parlamentares. No Brasil, a
relacionada à produção de normas numa or- transposição dessas reflexões deu-se sobretudo
ganização que não o Poder Legislativo, numa com os trabalhos de Santos (2014), Santos e
agência reguladora ou no Poder Executivo, por Almeida (2011, 2005) e Santos e Canello (2016),
exemplo? E as outras atividades não legislativas aplicando-a à dinâmica do presidencialismo
da organização caracterizariam as informações de coalizão e à estrutura e funcionamento do
a ela relacionadas como legislativas? Poder Legislativo.
Parece-nos, a partir de Polsby (1975), que
informação legislativa pode ser considerada 4.2 Informação parlamentar
um gênero de informação, pois abarca diver-
sos elementos. A precisão só seria alcançada A informação parlamentar envolve o domí-
caso esse gênero fosse desmembrado nas ne- nio sobre as escolhas, as decisões e as políticas
cessárias espécies. Esse aspecto é corroborado adotadas pelo governo de forma que se possam
por Miranda, Paz, Cinnanti, Cardoso Filho, criticar e propor alternativas adequadas às ne-
Oliveira e Barboza Júnior (2013), que incluem cessidades da população (MILLER; PELIZZO;
como subespécies de informação legislativa a STAPENHURST, 2004). Gilbert (1997) refor-
informação cidadã e, para a democracia, a in- ça que a informação parlamentar é gerada por
formação legislativa digital, a informação sobre parlamentares e por aqueles que interagem com
competências organizacionais no legislativo e a eles. Nesse caso, a falta de informação daquele
informação para a gestão estratégica legislativa. tipo leva a uma assimetria da informação por
parte dos parlamentares, que passam a produ-
zir leis com base em informações incompletas
5
No original: “Legislative activity at its core refers
to a process of lawmaking, to a pattern of actions which ou até mesmo sem informação. A informação
regularly results in the promulgation of general rules having parlamentar deve ser estruturada em formato
application to some specified population. While this activity
is undoubtedly at the heart of all political life and hence adequado ao processamento eletrônico, bem
for most purposes is virtually a defining characteristic of como “ser facilmente reutilizada e analisada
government, wherever government is found, legislative
activity is not precisely synonymous with legislatures. […] por cidadãos, sociedade civil, setor privado e
For as more than one observer has pointed out, laws – or at governo” (DECLARATION…, [2012?], p. 42,
least regulations incorporating sanctions for noncompliance
having a high probability of enforcement – are sometimes tradução nossa). A Declaração do Parlamento
made through agencies not considered legislatures, and Aberto estabelece em seu escopo quatro áreas que
legislatures often find themselves engaged in activities other
than lawmaking. […] There occasionally arises a natural sinalizam os tipos de informação parlamentar a
confusion among scholars because sometimes lawmaking
serem obtidos para que o Parlamento atue de for-
is done outside legislatures, and sometimes legislatures do
things other than lawmaking”. ma efetiva, conforme se apresenta no Quadro 2.

96 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 85-109 abr./jun. 2021


Quadro 2

Escopo e objetivos da informação parlamentar para a Declaração do


Parlamento Aberto

Escopo Objetivo informacional


· Reconhecer o público como proprietário da informação parlamentar
· Avançar na cultura da abertura da informação por meio de legislação
adequada
· Proteger uma cultura de abertura por meio da supervisão das ações do
governo
· Promover a educação para a democracia
Promover uma
· Envolver e engajar cidadão e sociedade civil
cultura de
· Partilhar boas práticas com legislativos internos (estaduais e munici-
abertura
pais) e externos (outros países)
· Garantir recurso legal para que cidadãos tenham acesso à informação
parlamentar
· Disseminar informação completa
· Prover informação tempestiva
· Garantir informação acurada
· Adotar políticas de transparência parlamentar
· Prover informações sobre papéis e funções do Parlamento
· Prover informações sobre os membros do Parlamento, tais como:
partido de filiação, mandato eleitoral, papéis no Parlamento, identidade
do pessoal de apoio etc.
· Prover informação sobre o pessoal de apoio ao Parlamento e sobre a
administração legislativa
Tornar a · Informar aos cidadãos a agenda parlamentar
informação · Engajar e envolver os cidadãos nos projetos de leis
parlamentar · Publicar registros de reuniões de comissões
transparente · Registrar os votos dos parlamentares
· Publicar registros das audiências plenárias
· Publicar registros criados ou requisitados pelo Parlamento
· Prover informação sobre orçamentos e gastos
· Informar sobre o patrimônio dos parlamentares para garantir sua
integridade
· Informar sobre conduta antiética ou de potenciais conflitos de interesse
· Prover acesso à informação histórica
· Prover múltiplos canais de acesso à informação
· Garantir o acesso físico à informação
· Garantir acesso da mídia (jornalistas e observadores independentes)
Facilitar o · Prover acesso em tempo real, por meio de uso de tecnologias da infor-
acesso à mação (como a internet, por exemplo), à atuação parlamentar
informação · Facilitar o acesso à informação parlamentar em todo o País
parlamentar · Usar linguagem acessível a toda a população
· Usar linguagem de trabalho ou linguagens que atendam aos diversos
rincões do País
· Assegurar livre acesso à informação
· Prover informação em formato aberto e estruturado
· Garantir usabilidade tecnológica para a informação disponibilizada
· Proteger a privacidade dos cidadãos
· Utilizar formatos não proprietários e softwares livres
Habilitar
· Permitir possibilidade de baixar informações dos bancos de dados e
comunicação
sites para reuso
eletrônica da
· Manter websites parlamentares
informação
· Utilizar mecanismos de busca fáceis e estáveis
parlamentar
· Integrar informação relacionada
· Habilitar serviços de uso e alertas
· Facilitar a comunicação em duas vias (parlamentar-cidadão e cidadão-
-parlamentar)
Fonte: adaptado de Declaration… ([2012?]).

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 85-109 abr./jun. 2021 97


Embora o título do seu trabalho contenha a fundir o termo. De fato, os trabalhos de Rita ci-
expressão informação legislativa, Queiroz (2007, tados no Quadro 1 mostram que parliamentary
p. 16) conceitua somente a informação parla- é equivalente ao que usaríamos em português
mentar, afirmando que “é o instrumento que para legislativo, o que demonstra a influência da
o Poder Legislativo usa para fazer a mediação experiência do Reino Unido e a familiaridade
entre a sociedade e o Estado na definição de entre os dois termos.
políticas públicas”. Nos EUA, a Casa Legislativa denomina-
Um primeiro elemento para problemati- -se Congresso (Congress), que se compõe de
zar o termo parlamentar é a distinção entre Senado (Senate) e Câmara dos Deputados
os sistemas de governo (CINTRA, 2007): par- (House of Representatives). Deve ser conside-
lamentarismo e presidencialismo. O formato rado também o termo assembleia, que se apli-
institucional dos governos surgidos no Ocidente ca a Casas Legislativas individuais, como na
após as revoluções burguesas dos séculos XVII e França (Assemblée Nationale), ou à instituição
XVIII baseou-se de alguma forma no princípio que engloba todo o poder representativo, como
da divisão de Poderes. Os grandes nomes do na Costa Rica (Asamblea Legislativa)6.
pensamento ligados a tal movimento são Locke Em princípio, o adjetivo parlamentar re-
(2006) e Montesquieu (2007), e a aplicação laciona-se à atividade mais conspícua do
clássica e paradigmática dos princípios ocorreu Legislativo, que é debater e deliberar, e à es-
nos Estados Unidos da América (EUA), em que trutura física do local que recebe tais ativida-
o marco é a obra O Federalista (HAMILTON; des, o Parlamento. Como substantivo, refere-se
MADISON; JAY, 2003). ao político eleito para o Legislativo, chamado
Uma tendência da nomenclatura (FISH; parlamentar. Isso dá a entender, por exemplo,
KROENIG, 2009) é associar o termo Parlamento uma busca na base bibliográfica da Biblioteca
a sistemas parlamentaristas e outras denomi- da Câmara dos Deputados. Exemplos clássi-
nações a sistemas presidencialistas. Contudo, cos do uso do termo parlamentar são man-
essa associação parece não trazer rendimentos dato parlamentar e atuação parlamentar, que
explicativos significativos, uma vez que presi- se referem ao sujeito e à sua ação7. No Brasil,
dencialismo e parlamentarismo se apresentam costuma-se utilizar o termo parlamentar para
como extremos de um continuum – e não como tratar deputados e senadores, mas Parlamento
categorias homogêneas e excludentes –, em não se utiliza tão frequentemente para referir-se
que há um sem-número de características que à Casa Legislativa.
compõem uma ampla zona cinzenta no espaço O termo legislativo, por sua vez – seja como
intermediário. Desse modo, deduzir um plexo adjetivo, seja como substantivo –, tem caráter
de características de um sistema político apenas bem mais amplo (já discutido em seção an-
pela denominação de sua Casa Legislativa não terior) e engloba as acepções de parlamentar
se mostra razoável.
Parlamento (Parliament) tem destaque na 6
Fish e Kroenig (2009, p. 14) apresentam as denomi-
língua inglesa por denominar a Casa Legislativa nações originais e suas traduções inglesas para 158 países,
e os termos Parliament, Assembly e Congress são os mais
do Reino Unido (UK Parliament), composta abundantes para denominar as Casas Legislativas.
pela Câmara dos Lordes e pela Câmara dos 7
A busca de livros e capítulos de livros com o termo
Comuns (House of Lords e House of Commons, parlamentar no título retorna 1.551 registros na rede virtual
de bibliotecas da Câmara dos Deputados (acesso em 9 de
respectivamente), posição que lhe permitiu di- novembro de 2015).

98 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 85-109 abr./jun. 2021


aqui discutidas. Na versão original da obra de Uma breve visita a bases bibliográficas com
Locke (2010) são frequentes os termos legislative a palavra-chave cidadania8 indica que é extenso
e legislature, ao passo que Parliament é mais e diversificado o corpo de trabalhos identifica-
escasso e parliamentary está ausente. dos com o termo, comprovando que na prática
acadêmica ele circunscreve uma ampla gama de
4.3 Informação cidadã temas e discussões: navegam não apenas por
todo o espectro de direitos, mas também pelas
Para Miranda, Paz, Cinnanti, Cardoso Filho, ações e instituições que os promovem.
Oliveira e Barboza Júnior (2013, p. 327), a infor- Pode-se concluir que o termo cidadania
mação cidadã cria maiores condições para que também é genérico e necessita de maior especi-
a sociedade participe das decisões nacionais, ficação para que se possa apreender seu sentido
“por meio do acesso a documentos e outros de forma adequada, tanto numa perspectiva
suportes informacionais disponibilizados pelas funcionalista do uso dos direitos quanto em
Casas Legislativas”. Porém, Bucci (2003) explici- sua própria natureza ou nas instituições que
ta somente o que é informação cidadã, focando os promovem.
sua utilidade na possibilidade de seu uso pelos
cidadãos para a garantia de seus direitos. O 4.4 Informação eleitoral
autor não informa quais direitos (constitucio-
nais ou outros) são contemplados, mas enfatiza A Unesco (BATISTA, 2003) entende a infor-
seu uso nos processos de conscientização e de mação eleitoral como instrumento para aprimo-
exercício dos direitos pelos cidadãos. rar a democracia ao permitir a boa governança.
A discussão clássica sobre cidadania foi pro- O princípio reside na transparência – ou seja,
posta pelo sociólogo Marshall (1967, 2002), com se há transparência, há boa governança, e esta
sua divisão substantiva e cronológica de direitos leva à democracia plena. Tal informação envolve
na Inglaterra: direitos civis consolidados no a indicação do candidato ao cargo público, sua
século XVIII, políticos no XIX e sociais no XX. região ou sessão eleitoral e a quantidade de
Na linha do que apresentam Miranda, Paz, votos obtidos.
Cinnanti, Cardoso Filho, Oliveira e Barboza A discussão sobre eleições com base na
Júnior (2013) e Bucci (2003), cidadania pode Ciência Política é bastante vasta. Refere-se aos
ser vista sob uma ótica funcional, isto é, a im- sistemas eleitorais, isto é, como se vota e como
plementação do direito pelo interessado e os se agregam os sufrágios para fins de distribuição
processos de buscá-lo. Nesse sentido, é o uso da representação política. Trata-se dos sistemas
da informação para a garantia da efetivação majoritário, proporcional e misto, bem como
dos direitos. Por outro lado, aproveitando-se de suas variações (NICOLAU, 2004). Englobam
diretamente de Marshall (2002), há também todos os elementos da ação eleitoral: como se
uma perspectiva das instituições que implemen- organizam candidatos, partidos e eleitores para
tam a cidadania. Haveria uma instituição mais efetivar o processo da representação política
diretamente relacionada a cada um dos feixes
de direito: para os direitos civis, os tribunais de 8
A busca de livros e capítulos de livros com o termo
justiça; para os políticos, o Parlamento; e para cidadania no título retorna 1.181 registros na rede virtual
os sociais, o sistema educacional e os serviços de bibliotecas da Câmara dos Deputados, composta por 12
instituições públicas dos Poderes Legislativo, Executivo e
sociais (MARSHALL, 2002, p. 9). Judiciário (acesso em 6 de novembro de 2015).

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 85-109 abr./jun. 2021 99


(formatos de voto, se em um candidato ou em resultado dependa de diversas outras variáveis
vários em listas; presença de coligações; monta- intervenientes, como cultura cívica, presença
gens de chapas, estratégias de campanha etc.). de instituições e acesso a elas etc.
Mais recentemente surgiu também, dentro O tema eleitoral, considerada a citação
da temática eleitoral, a questão da governança anterior de Tarouco, engloba também aspec-
eleitoral, referida ao complexo de instituições tos legislativos, especificamente o processo
que regulam o processo eleitoral e que têm de formulação de leis que impactam as ações
importância como elementos causais dos resul- eleitorais. Verifica-se, pois, que informação
tados. Tarouco (2012, p. 3) assim exemplifica eleitoral deve ser considerada um gênero, o
a governança eleitoral: “Os órgãos encarrega- qual precisa expandir-se com base na definição
dos de administrar os processos eleitorais, os de suas necessárias espécies.
canais de solução de conflitos, as regras sobre
elegibilidade, sobre elaboração legislativa, so- 4.5 Informação política
bre financiamento e recrutamento partidário”.
A mesma autora, baseada em Mozaffar e A informação política é entendida como a
Schedler, também explica que informação fornecida para atingir um grupo
social particular, com o objetivo de influen-
[há] três níveis em que a governança elei- ciar sua opinião. Com efeito, “a informação
toral opera: rule making, rule application, política é oferecida ao público pelos meios de
and rule adjudication. No primeiro ocorre
comunicação – imprensa, rádio, televisão –
a elaboração das normas que devem reger
o processo eleitoral, é o processo legisla- que costuma reservar aos assuntos especifi-
tivo. No segundo, ocorre a condução do camente políticos” (JESUS, 2012). Trata-se de
processo eleitoral em si e a organização das recurso valioso, já que pode influenciar “po-
atividades envolvidas nas eleições – seria
tencialmente a preferência política de muitas
a administração das eleições. No terceiro
nível são processados os conflitos entre os pessoas”, apresentando o risco de ser mani-
atores, acolhidas as queixas e decididos os pulada e transmitir ideias falsas ou errôneas
litígios – seria o processo de adjudicação (INFORMAÇÃO…, [20--?]). Reforçam esse
(TAROUCO, 2012, p. 4). pensamento Huckfeldt, Beck, Dalton e Levine
(1995, p. 1.025, tradução nossa) ao afirmarem
Assim, em princípio, poder-se-ia aplicar que a “informação política é produzida como
informação eleitoral a uma série de fenô- consequência das preferências individuais”,
menos, de modo que o posicionamento da num ambiente de múltiplas e divergentes opi-
Unesco (BATISTA, 2003) não chega a ser uma niões.
conceituação de informação legislativa, mas Tanto McGinnis (2012) quanto Tasic (2010)
apresenta-se como uma agregação, em nível advogam que a informação política gera igno-
bastante amplo, dos resultados derivados do rância nos cidadãos por motivos diversos: para
uso da informação legislativa, que desembocam o primeiro, a obtenção de informação política é
(como uma possibilidade entre outras) em boa dispendiosa para o cidadão (posição corrobo-
governança e desenvolvimento da democracia. rada por Berggren (2001)) e improdutiva, visto
A rigor, a preocupação da Unesco é funcional, que é usada para guiar uma votação. Em ambos
pois diz respeito aos resultados da informa- os casos, o cidadão prefere utilizar tempo e
ção eleitoral – embora, à primeira vista, tal dinheiro na obtenção de informação que julga

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mais importante e fica sujeito a informações seja a partilhada entre políticos e a população
equivocadas (e, muitas vezes, manipuladas) (KU; KAID; PFAU, 2003).
pelo candidato, o que é reforçado por Tasic Dos termos estudados até aqui, política é o
(2010). que se apresenta como mais amplo, e as diver-
Na mesma linha, Barros, Bernardes e sas aplicações do termo informação política o
Rodrigues (2012) vinculam a informação po- comprovam. Sob a ótica da Ciência Política,
lítica à comunicação e consideram sua impor- Schmitter (1982, p. 30) propõe a discussão
tância para a democracia e para a cidadania, do que seja política como conceito e objeto
indicando vínculo desse tipo de informação de estudo:
com a informação cidadã.
A informação política vincula-se à infor- A política pode ser definida como:
mação parlamentar: há uma tendência de se I – Suas “instituições”, pelo quadro social
falar do Parlamento mais sob a ótica política concreto e estabelecido dentro do qual par-
que sob a institucional (PARLIAMENTARY ticipam os atores.
ASSEMBLY, 1994). Heitshusen (2000, p. 160), II – Seus “recursos”, pelos meios utilizados
trabalhando com o conceito de grupos de inte- pelos atores.
resse (lobby), complementa apontando a visão III – Seus “processos”, pela atividade princi-
de Sabatier e Whiteman (1985, p. 397, tradução pal à qual se consagram os atores.
nossa), diferenciando informação política – IV – Sua “função”, pelas consequências da
“informação sobre a posição de outros atores sua atividade para a sociedade global de
políticos no contexto legislativo e impacto da que faz parte.

legislação sobre reeleição e perspectivas de Conforme esta tipologia geral, corresponde-


carreira” – e informação sobre política – que riam quatro definições específicas de campo
de investigação da política:
inclui “informações sobre o conteúdo real das
alternativas legislativas propostas, a dimensão I – Instituição: “Estado ou Governo”.
e as causas dos problemas que elas buscam II – Recurso: “Poder, Influência ou
resolver, [bem como] de seus prováveis efeitos Autoridade”.
sobre a sociedade”. A esta última tipologia, III – Processo: “Decision-making” ou
Heitshusen (2000) também denomina infor- “Policy-formation” (formulação de decisões
sobre linhas de conduta coletiva).
mação técnica, que, em sua visão, não é isenta
ou voltada para a melhor política pública, mas IV – “Resolução não violenta de conflitos”.
pode, ao contrário, ser manipulada pelos le-
gisladores em seu próprio interesse, buscando A definição de Schmitter é suficiente por si
auferir ganhos. Por outro lado, denomina a só para apontar a variedade de significados que
informação política também como informação o termo política pode ter, o que leva à conse-
de consequência eleitoral e a qualifica como a quente imprecisão do conceito de informação
informação representativa dos interesses de política quando não especificado. Tomada a
um grupo que elege um parlamentar que o Ciência Política como referência hierárquica
represente no Parlamento. para a organização das expressões informação
De toda sorte, observando-se as caracterís- eleitoral, cidadã, parlamentar, legislativa e po-
ticas apresentadas pelos autores considerados, lítica, pode-se inferir que informação política
a tendência é a de que a informação política congrega as demais categorias, com informação

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eleitoral, cidadã e legislativa num primeiro nível, e parlamentar num
segundo, abaixo de legislativa. A figura abaixo representa essa hierarquia.

Figura 2

Árvore da família Informação Política

Eleitoral
Informação
Política Cidadã
Legislativa
Parlamentar

Fonte: elaborada pelos autores.

A análise dos textos que tratam dos diversos tipos de informação –


assim como sua análise à luz de conceitos da Ciência Política – mostra
que os conceitos de informação são definidos de forma precária ou mesmo
não se definem. Considerada a pesquisa empírica, em que os conceitos
devem transformar-se em variáveis operacionais (construtos), tem-se
clareza da magnitude dessa fragilidade conceitual, pois não há rigor
suficiente para construir conceitos e identificar variáveis e construtos
operacionais sem lugar à dúvida.

5 Considerações finais

Considerando o estudo realizado, é possível esquematizar a relação


entre o tipo de informação, as características encontradas na literatura
e aquilo que neste artigo se consideram conceitos primários, que são
as referências imediatas que se compreendem para cada um dos tipos
de informação, as quais servem como referenciais para especificações
posteriores. Ressaltam-se, ainda, as variáveis consideradas para cada
tipo de informação conceituada e que trazem elementos que permitam
efetivamente diferenciar os aspectos de aplicação de cada termo.
Como se pode notar no Quadro 3, são apresentadas na coluna
Referências na literatura as obras tomadas como base para a discussão
dos conceitos primários. Em alguns casos, as obras norteiam a produção
de conceitos, em outros apresentam posições restritas ou imprecisas.
Todo o material, contudo, ganha sentido em conjunto, pois permite a
consolidação dos referenciais próprios de cada tipo de informação, além
de iluminar suas fronteiras e zonas de sobreposição.

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Assim, a informação legislativa tem seu conceito ligado principal-
mente ao processo e ao resultado das atividades atribuídas ao Poder
Legislativo, estando vinculada à organização, à estrutura e ao funcio-
namento desse Poder e no próprio processo legislativo.
Por sua vez, a informação parlamentar é intuitu personae, ou seja,
são as informações geradas e partilhadas por parlamentares de acordo
com seus interesses, conveniências e necessidades. É a informação dis-
tribuída por parlamentares e assessores e que se inclui na informação
legislativa, por ter sua origem vinculada ao processo legislativo. Dos
termos em inglês, parliamentary é em boa medida sinônimo de legis-
lativo em português.
A informação eleitoral tem sua identidade exclusivamente ligada à
relação entre parlamentar e eleitor. Seu objetivo maior é informar sobre
o processo eleitoral, as características do candidato, a forma de escolha
etc., com o fito de auxiliar o eleitor quanto à escolha do candidato que
melhor o representa.
A informação cidadã, por sua vez, está voltada para os aspectos do
exercício dos direitos do cidadão e as implicações no contexto social.
Por fim, a informação política é abrangente dada sua natureza de
abarcar todos os assuntos que envolvem o significado de “política” em
todos os contextos, incluindo as questões de cultura política, socieda-
de, órgãos públicos, entre outras. Trata-se da “matriarca” da família de
termos estudados.

Quadro 3

Variáveis, conceitos primários e referências na literatura


por tipo de informação

Tipo de
Referências na literatura Conceitos primários Variáveis
informação

· Resultado do processo legislativo


· Regras de composição das assem-
(PASSOS, [20--?]; KREHBIEL,
bleias; composição das assem-
1992). · Informação ligada ao órgão
bleias por variáveis demográficas,
· Não tem caráter impositivo estatal definido pelo Poder
sociais, econômicas etc.
(PASSOS, [20--?]), diferenciando- Legislativo.
· Regras formais e informais de
-se da informação jurídica. · Informação relacionada
Informação funcionamento das assembleias.
· Relaciona-se tanto com a função à produção de normas e
legislativa · Tipos de estruturas organizacionais
legislativa quanto com a estrutura políticas públicas.
das assembleias.
dos órgãos que lhe dão realidade · Informação relacionada à
· Prerrogativas dos parlamentares e
(POLSBY, 1975). fonte da soberania nas repú-
do Poder Legislativo.
· Informação relativa ao exercício blicas e democracias.
· Relação do Poder Legislativo com
da soberania, à fundamentação do
os outros poderes.
poder político (LOCKE, 2010).

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Tipo de
Referências na literatura Conceitos primários Variáveis
informação
· Instrumento do Poder Legislativo
para mediar a sociedade e o Estado
na definição de políticas públicas · Informação referida ao mem-
(QUEIROZ, 2007). bro do Poder Legislativo.
· Informação independente para · Informação ligada à prática
Informação · A informação parlamentar é espécie
entender as escolhas, as políticas e de apresentação, debate,
parlamentar da informação legislativa.
as decisões do governo (MILLER; negociação e deliberação
PELIZZO; STAPENHURST, 2004). de propostas no Poder
· Informação gerada por parlamen- Legislativo.
tares e por quem interage com eles
(GILBERT, 1997).
· Número de votos no tempo; votos
· Informação sobre os
por cargos e candidatos; distribuição
processos de escolha de
de votos por variáveis geográficas,
· Ação de políticos e partidos em representantes e autoridades
demográficas, sociais, econômicas.
relação ao eleitor (BATISTA, 2003). via eleições, sejam informa-
· Votações em referendo e plebiscito;
· Formas de apresentação de can- ções para os que tomam as
Informação temas de referendo e plebiscito.
didatos e de votação e escolha de decisões, sejam para os que
eleitoral · Características dos sistemas
representantes (NICOLAU, 2004). se apresentam para os pleitos
eleitorais, como regras de apre-
· Instituições de organização e contro- como candidatos.
sentação de candidatos, votação e
le das eleições (TAROUCO, 2012). · Informações sobre as
agregação de votos; características,
instituições de organização e
prerrogativas e funções dos órgãos
controle das eleições.
responsáveis pelas eleições.
· Ajuda as pessoas a tomarem cons- · Rol de direitos; história dos direitos;
ciência de direitos (BUCCI, 2003). · Informação relacionada ao indicadores do efetivo exercício dos
Informação
· Relativa aos direitos civis, políticos exercício de direitos e às insti- direitos; exercício dos direitos por
cidadã
e sociais e aos órgãos que lhe dão tuições que os promovem. variáveis demográficas, sociais,
concretude (MARSHALL, 1967). econômicas etc.
· Resposta correta sobre conhecimen-
to político (SCHMITTER, 1982).
· Informação social que é gerada
para influenciar decisões de outras · Informação sobre a ordem
pessoas ou seu grupo político (THE social definida pelas relações
VALUE…, 2009). políticas formais: como
· Oferecida por meios de comunica- os distintos poderes, seus
Informação ção-imprensa (BLÁSQUEZ, 1999 órgãos, membros, prerroga- · A informação política é a mais ampla
política apud JESUS, 2012). tivas; e informais: redes de e engloba todas as outras.
· Formas de influência sobre o poder influência, cultura política.
político (HEITSHUSEN, 2000). · Informação sobre proces-
· Informações sobre Estado, Governo, sos decisórios em órgãos
Poder, Influência, Autoridade, políticos.
Formulação de Políticas Públicas
e Solução Pacífica de Conflitos
(SCHMITTER, 1982).
Fonte: elaborado pelos autores.

Ao finalizar o estudo, estabelecem-se para por consequência, do processo legislativo; tem


os tipos de informação os seguintes conceitos: por espécie a informação parlamentar, gerada
a) informação política é toda informação pelo parlamentar no exercício de suas funções;
relacionada aos aspectos formais e informais c) informação eleitoral é gênero da informa-
que envolvem a política numa nação, abarcando ção política e compõe-se de informações relevan-
a informação legislativa, a informação eleitoral tes sobre o processo eleitoral, os candidatos, as
e a informação cidadã; características e plataformas, e de informações
b) informação legislativa é gênero da infor- que auxiliam o eleitor na tomada de decisão
mação política e oriunda do Poder Legislativo e, sobre qual candidato melhor o representa;

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d) informação cidadã é a informação voltada para os direitos do ci-
dadão e suas implicações para o processo político, sendo também gênero
da informação política.
De forma didática, apresenta-se na Figura 3 o diagrama que mostra
as questões privativas de cada informação, bem como seus elementos
de interseção.

Figura 3

Características individualizadas e interseções entre


as informações estudadas

INFORMAÇÃO POLÍTICA

INFORMAÇÃO LEGISLATIVA
Sistema político
Processo político
Informação jurídica
Informação parlamentar
Parlamentar (pessoa)
Parlamento (instituição)

INFORMAÇÃO ELEITORAL INFORMAÇÃO CIDADÃ


Sistema político Governo
Processo político Políticas públicas (recursos
Normas eleitorais e gestão)
Informação jurídica Serviços e consumidores /
Informação parlamentar usuários / clientes
Parlamentar (pessoa) (cidadãos)
Parlamento (instituição)

Fonte: elaborada pelos autores.

Sobre os autores
Roberto Campos da Rocha Miranda é doutor e mestre em Ciência da Informação pela
Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil; pós-graduado em Psicologia Clínica pela
Universidade de Araraquara, Araraquara, SP, Brasil; pós-graduado em Administração
de Recursos Humanos no Setor Público pela Universidade Cândido Mendes, Brasília,
DF, Brasil; professor do programa de pós-graduação do Cefor da Câmara dos Deputados,
Brasília, DF, Brasil; analista legislativo da Câmara dos Deputados, Centro de Documentação
e Informação, Brasília, DF, Brasil.
E-mail: [email protected]

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Ricardo de João Braga é doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e
Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil; mestre em
Ciência Política pela Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil; mestre em Ciência Política
pela Universität Siegen, Siegen, Nordrhein-Westfalen, Alemanha; pós-graduado em Políticas
Públicas e Gestão Governamental pela Escola Nacional de Administração Pública, Brasília,
DF, Brasil; professor do programa de pós-graduação do Cefor da Câmara dos Deputados,
Brasília, DF, Brasil; analista legislativo da Câmara dos Deputados, Brasília, DF, Brasil.
E-mail: [email protected]

Como citar este artigo


(ABNT)
MIRANDA, Roberto Campos da Rocha; BRAGA, Ricardo de João. Informação legislativa e
correlatas: como conceituar? Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 230,
p. 85‑109, abr./jun. 2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/
ril_v58_n230_p85

(APA)
Miranda, R. C. da R., & Braga, R. de J. (2021). Informação legislativa e correlatas: como
conceituar? Revista de Informação Legislativa: RIL, 58(230), 85‑109. Recuperado de https://
www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/ril_v58_n230_p85

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RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 85-109 abr./jun. 2021 109


A necessária proteção jurídica
aos trabalhadores que exercem
trabalho penoso no corte
manual da cana-de-açúcar

DULCELY SILVA FRANCO


CARLA REITA FARIA LEAL

Resumo: O artigo analisa a situação dos trabalhadores que exercem


trabalho penoso no corte manual da cana-de-açúcar, com o objetivo de
demonstrar a necessidade de sua proteção jurídica, a qual não tem sido
objeto de efetiva preocupação do Legislativo. Utilizando-se do método
dedutivo e das técnicas de pesquisa bibliográfica e documental, apresen-
tam-se as bases teóricas da centralidade do trabalho humano; descreve-se
o processo de trabalho do corte manual da cana, identificando os riscos
e os possíveis danos desse labor aos rurícolas; analisam-se a doutrina,
a jurisprudência e propostas legislativas relativas à proteção dos que
realizam trabalho penoso, destacadamente o exercido pelos cortadores
de cana-de-açúcar. Conclui-se pela existência de balizas doutrinárias e
jurisprudenciais robustas o suficiente para inspirar legislação que re-
gulamente o exercício do trabalho penoso e que contemple a proteção
à vida, à saúde, ao bem-estar e à dignidade dos cortadores manuais da
cana-de-açúcar.

Palavras-chave: Trabalho penoso. Cortadores de cana-de-açúcar. Omissão


legislativa.

The necessary legal protection for workers performing the


strenuous activity of manual cutting of sugar cane

Abstract: The study investigates conditions of workers who perform


strenuous activity in the manual cutting of sugar cane. The objective was
to demonstrate the need for legal protection to these workers, which, to
date, has not been the object of effective concern by the Legislature. The
Recebido em 28/7/20 theoretical bases of the human work centrality were presented according
Aprovado em 8/9/20 to the deductive method and bibliographic and documentary research

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techniques. The study describes the work process of manual cane cutting,
identifying risks and possible damages to farmers. It also analyzes the
doctrine, jurisprudence, and legislative proposals related to the protection
of workers that perform strenuous activity, mainly sugarcane cutters. The
study shows that robust doctrinal and jurisprudential beacons inspire
legislation for the regulation of strenuous activity, contemplating protection
of life, health, well-being, and dignity of sugarcane cutters.

Keywords: Strenuous activity. Sugarcane cutters. Legislative omission.

1 Introdução

O corte manual da cana-de-açúcar é trabalho penoso exercido por


trabalhadores rurais mediante extremo esforço físico e desgaste mental,
sob condições ambientais e organização do trabalho severas e geradoras
de diversos danos à vida, à saúde e ao bem-estar dos que o exercem.
Em regiões de solos irregulares, onde as colhedoras mecânicas não
podem atuar, as atividades do corte manual (e, por vezes, da colheita ma-
nual) ainda têm sido necessárias e continuam a demandar especial atenção
dos empregadores rurais canavieiros, do Poder Público, dos sindicatos e
dos operadores do Direito para garantir aos rurícolas a proteção jurídica
de direitos humanos e fundamentais, como a vida, a dignidade e a saúde.
Nesse contexto, o artigo tem como objetivo geral discutir a necessidade
de proteção legal dos que atuam em trabalhos penosos, notadamente dos
rurícolas que laboram no corte manual da cana-de-açúcar. Como objetivos
específicos, têm-se a exposição da centralidade do trabalho para a dignidade
humana, a descrição do processo de trabalho, com foco nos danos e riscos
ao trabalhador no corte manual da cana-de-açúcar, bem como o debate
acerca da urgência no tocante à atuação do Estado legislador na proteção
da vida, da saúde, do bem-estar e da dignidade dos cortadores de cana.
Utilizando-se método dedutivo e técnicas de pesquisa bibliográfica
e documental, o artigo está dividido em três partes: a primeira aborda o
trabalho como elemento central da vida em sociedade e de preservação
da dignidade da pessoa humana; a segunda expõe o modo como o corte
de cana é realizado e também os riscos e eventuais agravos sofridos pelos
rurícolas; a terceira parte expõe a discussão doutrinária e jurisprudencial
sobre o trabalho penoso, a caracterização do corte manual da cana-de-
-açúcar como trabalho penoso, bem como as propostas legislativas que
visam à proteção dos trabalhadores rurais que o exercem.

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engajamento da personalidade para enfrentar
2 Trabalho humano e sua uma tarefa definida por constrangimentos
valorização (materiais e sociais).

No contexto da pós-modernidade, a con- Ao discorrer sobre a noção de trabalho,


cepção do trabalho humano está distante da Wandelli (2012, p. 42) critica o posicionamento
que predominou entre os gregos e romanos: a que o reduz a mero meio de subsistência, afir-
de que a atividade humana prática, desvinculada mando haver um “esvaziamento” do conceito.
do ócio contemplativo, era considerada por si Para ele, deve-se expandir a noção de trabalho
só como vergonha, peso, fadiga, dor e causa de ligada à “reprodução da vida como dimensão
indignidade da essência humana (BATTAGLIA, biológica” para integrar-se na concepção de que
1958, p. 29-52). o trabalho é “forma essencial de realização do
Na contemporaneidade, a noção de trabalho humano e desenvolvimento de sua individua-
parte de uma visão integrada das capacidades lidade e convivialidade, uma atividade que, por
física e psicossocial do ser humano, aplicadas si só, é condição e manifestação incontornável
à realização de uma determinada tarefa, bem da dignidade humana”.
como de seu potencial para a garantia de uma Battaglia (1958, p. 294-295), ao tratar do
vida digna. O trabalho ocupa lugar central na tema sob o enfoque da filosofia, afirma que o
vida humana por seu caráter transformador, trabalho consiste em muito mais do que uma
tanto da natureza quanto das potencialidades tarefa econômica ou a “simples atividade de
do próprio homem (MARX, 2011, p. 326-327). músculos” a exigir esforço físico. Para ele, o
É “atividade permanente do espírito”, tendo ca- trabalho conjuga esses aspectos e a consciência
ráter criador e transformador do homem e do por meio da qual o homem se reconhece “como
“mundo histórico” em que vive (BATTAGLIA, ser inteligente e com vontade, constitui-se e
1958, p. 7-12). se eleva verdadeiramente à ordem moral”, de
Dejours (2011, p. 77) comenta que o trabalho modo a conceber planos, exercitar seu querer,
significa muito mais do que produzir, fabricar ou pensar e aprofundar as suas condições de vida.
transformar o mundo: é por meio do trabalho Battaglia (1958, p. 297-299) conclui que o tra-
que o homem se transforma, se produz e se balho proporciona não apenas o conhecimento
revela a si mesmo. Wandelli (2012, p. 42), nesse de si próprio, mas o conhecimento e reconhe-
sentido, afirma que “depois do trabalho ele já cimento do outro, obrigando o ser humano a
não é completamente o mesmo do que antes de sair do individualismo e viver em sociedade,
o ter empreendido”. Dejours (2012, p. 24) assim constituindo-a.
descreve o trabalho: Outro ponto a ser ressaltado é que não há
neutralidade no trabalho: ele tem potencial tanto
o que implica, de uma perspectiva humana, destrutivo quanto construtivo para a saúde e a
o fato de trabalhar: os gestos, os saber-fazer, autonomia do trabalhador (WANDELLI, 2012,
o engajamento do corpo, a mobilização da
p. 63). É oportuna a noção de que o trabalho
inteligência, a capacidade de refletir, de in-
terpretar e de reagir a diferentes situações, é transitaria entre a positividade e a negatividade,
o poder de sentir, de pensar, de inventar etc. bem como entre a racionalidade (intelecto e ra-
[…] o trabalho não é, em primeira instân- zão) e a irracionalidade (sentimentos e paixões),
cia, a relação salarial ou empregatícia, é o
que constituem as antinomias e os contrastes
“trabalhar”, ou seja, um modo específico de
da natureza dúplice do homem e do trabalho:

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Não há empenho do homem no trabalho que, no (art. 170, caput) e que a ordem social tem
como atividade espiritual que é, não seja, ao como base o primado do trabalho (art. 193).
mesmo tempo, ato cognitivo e prático; que não
Assim, além de assegurar o direito ao trabalho, a
advirta na verdade certa margem de erro, e na
beleza um traço de feiura; que, satisfazendo a CRFB determina que a livre iniciativa, entendida
interesses econômicos, não esteja causando como a liberdade conferida a qualquer pessoa
dano à utilidade de alguém; que, sendo bom, de criar e explorar uma atividade econômica a
não seja continuamente ameaçado pelo mal;
título privado – que, nas palavras de Grau (2017,
e que, isto não obstante, não ofereça sempre
possibilidades para novas sínteses realizadoras p. 199-201), também é um modo de expressão do
de valores positivos (BATTAGLIA, 1958, p. 9). trabalho e tem valor social por possibilitar postos
de trabalho, por exemplo – está, assim como a
Wandelli (2012, p. 64) pondera que, embo- República, igualmente submetida à valorização
ra seja possível a ocorrência de consequências do trabalho humano.
negativas, a exemplo da degradação da saúde, Marques, R. (2007, p. 118-119) comenta que
“o trabalho também é capaz de gerar o melhor, essa submissão se justifica (entre outros motivos,
como mediador insubstituível para a saúde, a como os mencionados inicialmente) porque é
autonomia, a aprendizagem moral, a política e o trabalho humano o sustentáculo do modo
a emancipação, sendo mediador privilegiado da de produção capitalista e da economia do País,
estruturação da subjetividade e do aprendizado permitindo a geração da “riqueza necessária
da convivência”. Assim considerado, o trabalho a que a livre iniciativa possa, por si, operar e
pode valorizar o ser humano e afirmar-lhe sua atingir, também, seu valor social, ou seja, tor-
dignidade, ou seja, “valorizar o trabalho significa nar-se socialmente útil à sociedade em geral e
valorizar a pessoa humana” (MARQUES, R., não apenas ao mercado e ao capital”, pois, sem
2007, p. 111). o trabalho, não há transformação da natureza
O trabalho é reconhecido como um di- nem produção de riquezas e, ainda que haja au-
reito e valorizado em documentos interna- tomatização de todos os processos de trabalho,
cionais de proteção aos direitos humanos, o mercado não sobreviveria sem consumidores
como a Declaração Universal dos Direitos para seus produtos – o que, a priori, só seria
Humanos (NAÇÕES UNIDAS, [1948]), o possível aos que obtivessem renda por meio do
Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, trabalho (MARQUES, R., 2007, p. 112-119).
Sociais e Culturais de 1966 (BRASIL, 1992) e a O valor social do trabalho deve prevalecer
Declaração Americana dos Direitos e Deveres sobre os valores da ordem econômica, isto é,
do Homem de 1948 (ORGANIZAÇÃO DOS das relações ou atividades econômicas (GRAU,
ESTADOS AMERICANOS, 1948). 2017, p. 64-196), de modo que não seja con-
No âmbito nacional, a Constituição da siderado uma mercadoria (ORGANIZAÇÃO
República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB) INTERNACIONAL DO TRABALHO, [20--]),
(BRASIL, [2020a]) confere especial tratamento mas direito humano e fundamental, capaz de
ao trabalho: elege-o como direito fundamen- promover a dignidade de quem labora. Impõem-
tal (arts. 6o e 7o), dispõe que o valor social do se à ordem econômica diversas tarefas e limites
trabalho, ao lado do valor social da livre ini- que visem à valorização do trabalho, por meio
ciativa, é princípio fundamental da República da busca do pleno emprego, da garantia de sa-
(art. 1o, IV), estabelece que a ordem econômica lários justos aos trabalhadores, da proibição de
deve priorizar a valorização do trabalho huma- trabalho forçado e trabalho infantil e – o que

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interessa mais diretamente à presente pesquisa – contrato de safra (ou seja, a prazo), em razão da
da promoção de um meio ambiente do trabalho sazonalidade da produção de cana-de-açúcar.
saudável e seguro, de modo a assegurar vida A contratação pode ocorrer por prazo indeter-
digna aos trabalhadores. minado. O vínculo de emprego, a prazo ou sem
O trabalho, pois, é indispensável ao ser hu- prazo, pode ser firmado com plantadores de
mano e à sociedade, e sua valorização cumpre cana-de-açúcar, com indústrias, agroindústrias,
a função de humanizar as relações econômicas, cooperativas, empreiteiros rurais, entre outros
conferindo prioridade ao cuidado com o cidadão (ALESSI; NAVARRO, 1997, p. 118).
trabalhador como pessoa, como um fim em si Há também a figura do “gato” ou “turmeiro”,
mesmo, não como mais um elemento ou objeto compreendido como um arregimentador infor-
para a produção de bens e riquezas. mal de mão de obra, geralmente utilizado para
Com base nisso, procura-se neste artigo com- mascarar a relação empregatícia com o tomador
preender o trabalho penoso no corte manual da dos serviços, o que é vedado pelo ordenamento
cana-de-açúcar e como tem sido a proteção jurí- jurídico. O “gato” age como se fosse o emprega-
dica conferida pelo Estado legislador a esse tipo dor, mas não assume os riscos do negócio, não
de atividade laboral, a fim de que o trabalhador se preocupa com os encargos sociais, não dispõe
do corte da cana tenha sua vida, dignidade, saúde de capital para custear a atividade econômica que
e bem-estar preservados. Antes, porém, é neces- desenvolve, sendo na realidade um preposto do
sário situá-lo juridicamente, abordar o processo real empregador (BRASIL, 2017e). Há ainda o
de trabalho no corte manual da cana-de-açúcar contrato intermediado por empreiteiros de mão
e os possíveis danos à saúde decorrentes dessa de obra, estabelecidos juridicamente na forma
atividade. de empresas prestadoras de trabalho temporário
(ALESSI; NAVARRO, 1997, p. 118).
Além da definição jurídica do trabalhador
3 Corte manual de cana-de-açúcar: rural que atua no corte manual da cana, há que
processo de trabalho, riscos e danos se destacar o seu perfil socioeconômico: são na
aos rurícolas maioria jovens do sexo masculino, dotados de
maior força física, migrantes do norte de Minas
O cortador de cana-de-açúcar é geralmente Gerais e do Nordeste (Bahia, Maranhão, Piauí,
empregado rural. A Lei no 5.889/1973 (BRASIL, Paraíba, Pernambuco), analfabetos ou com baixa
[2019b]) define empregado rural como a pessoa escolaridade (ALVES, 2006, p. 91, 2008, p. 16).
física que presta serviços em imóvel rural ou Melo (2013, p. 226-227) ressalta que “geralmente
prédio rústico a um empregador rural, o qual é os cortadores de cana são trazidos de outras
uma pessoa física ou jurídica a exercer alguma regiões do Estado e do país, carentes de recursos
atividade agroeconômica. O Tribunal Superior para manutenção das famílias”.
do Trabalho (TST) tem considerado empregado A escolha desses trabalhadores pelos toma-
rural quem labora na produção agrária – no caso dores de serviço comumente é realizada em seu
em estudo, no cultivo da cana-de-açúcar –, não local de origem pelos empreiteiros ou pelos “ga-
na transformação dessa matéria-prima (BRASIL, tos”. Os critérios de seleção incluem avaliação da
2017f). saúde por médicos empregados das usinas e uma
A relação jurídica desses trabalhadores com análise “comportamental e moral que incluem
os empregadores ocorre normalmente mediante a não participação em greves, a assiduidade ao

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trabalho, a obediência às regras e à disciplina pesquisador apurou que, em uma jornada de
imposta nos canaviais”. Ao final da safra, os trabalho, um dos trabalhadores pesquisados
cortadores retornam às suas cidades de ori- chegou a cortar 12.960 kg de cana; realizou,
gem, para depois se submeterem a nova seleção para isso, 3.498 golpes de facão e 3.080 flexões
para fins de contratação, ou permanecem na de coluna. Nessa pesquisa, demonstrou-se a pe-
região do local de trabalho, exercendo outras nosidade do trabalho no corte manual de cana:
atividades, como o plantio e os tratos culturais
(SILVA, 2014, p. 282). 1) pelo trabalho intensificado […] 2) pela
Alves (2008) afirma que um trabalhador ausência de pausas, presentes em apenas 6%
do tempo trabalhado; 3) pelas exigências
corta em média 12 toneladas de cana por dia
de força, de precisão e de uso de posturas
de trabalho. Acerca do processo ao qual os cor- extremas, que ocupara 94% do tempo total
tadores de cana estão submetidos, Laat (2010, de trabalho; 4) pela ultrapassagem siste-
p. 103-104) observou e expôs cada movimento mática do limiar de risco cardiovascular;
5) pela extrapolação frequente do limite de
corporal desses trabalhadores:
sobrecarga térmica, sem adoção de medidas
de repouso em sombra, recomendadas pela
a) Abraça de uma a três canas com a mão legislação; 6) pela associação perversa entre
esquerda; o aumento da produtividade estimulado
b) Flexiona o tronco à frente; pelo pagamento por produção e por outras
estratégias gerenciais, como os sorteios aos
c) Com o facão seguro pela mão direita, “vencedores”, e o aumento da sobrecarga
corta a cana em sua parte baixa; cardiovascular comprovada estatisticamente
d) Com o facão na mão direita, dá um ou (LAAT, 2010, p. 103-104).
mais golpes para cortar os colmos, rente
ao solo; No mesmo estudo foi possível obter com
e) Levanta-se e, com a mão esquerda, in- precisão, por meio do software Captiv L300, “a
clina a cana, bem rente ao chão; associação simultânea, sincronizada e em tem-
f) Gira o corpo puxando a cana cortada po real de outras variáveis como frequência car-
pelo seu lado direito; díaca, calor, velocidade do ar, umidade relativa
g) Joga as canas cortadas com a mão esquer- do ar e temperatura corporal” dos cortadores
da na leira de cana, que fica sempre centrada de cana durante o processo de trabalho (LAAT,
em relação às 5 ruas, sendo o facão uma 2010, p. 81-84). Ao final da investigação, Laat
extensão do braço para suporte;
(2010, p. 166) concluiu que os cortadores de
h) Para realizar o desponte da cana, que cana poderiam ser equiparados a maratonistas
acontece com ela já derrubada no monte, o
esportivos, “em condições atmosféricas adver-
cortador, com a coluna curvada, dá inúmeros
golpes de facão; sas”, mas sem os cuidados com a alimentação,
descanso, hidratação, orientação e preparação
i) O cortador executa chutes nas pontas
cortadas para terminar a limpeza do monte; que deveriam ter.
Durante uma jornada, os cortadores de
j) Os montes devem ficar separados por um
a dois metros de distância. cana praticamente não realizam pausas para
alimentação, hidratação e descanso, em razão
O estudo de Laat (2010, p. 103-104) eviden- da meta diária fixada, que atualmente gira em
ciou a intensidade desse trabalho, com base na torno de 12 toneladas, da pressão por pro-
análise da sobrecarga térmica e fisiológica. O dutividade realizada por fiscais ou devido ao

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pagamento efetivado por produção e também dúvidas sobre si próprio, entre outros (PRIULI;
associado à entrega de prêmios – obedece-se MORAES; CHIARAVALLOTI, 2014). Muitos
à lógica “quanto mais se corta, mais se ganha”, cortadores usam bebidas alcoólicas e/ou drogas
estimulando os cortadores a não realizarem como o crack e a maconha para entorpecer o
as pausas necessárias pelo tempo adequado às corpo das dores causadas após o dia de traba-
necessidades físicas (GUANAIS, 2014, p. 307- lho, e há suspeitas de uso de drogas durante a
308). jornada para aumentar o vigor físico necessário
Além disso, os cortadores de cana são vul- ao corte de cana (ZANCHETTA, 2007).
nerabilizados pela pobreza e por não saberem As pesquisas demonstram que o trabalho
quanto valerá um dia de trabalho (FABRE, no corte de cana é realizado sob o sol e extremo
2010, p. 109), o que os leva a querer alcançar o calor (LAAT, 2010, p. 61). A pré-queima da
máximo de produtividade, ainda que seus limi- cana para despalha eleva ainda mais essa tem-
tes fisiológicos sejam ultrapassados (CROWE; peratura (RIPOLI; RIPOLI, 2010, p. 272) e gera
WESSELING; SOLANO; UMAÑA; RAMÍREZ; fuligem. Esse material particulado, por sua vez,
KJELLSTROM; MORALES; NILSSON, 2013, contaminado com agrotóxicos (LE BLOND;
p. 1.158). WOSKIE; HORWELL; WILLIAMSON, 2017),
Todos esses fatores provocam doenças é aerotransportado e inalado pelos rurícolas
musculoesqueléticas, como as da coluna e as e moradores circunvizinhos dos canaviais
tendinites, em razão das flexões e dos movi- (SILVA, 2014, p. 288-289).
mentos repetitivos para o corte de cana, além de Todas essas condições geram no trabalha-
desidratação, estresse térmico, agravos cardio- dor desidratação, lesões na retina e na córnea
vasculares e mortes por exaustão (BARBOSA; (BRASIL, 2017c), bem como estresse térmico,
TERRA-FILHO; ALBUQUERQUE; DI GIORGI; que gera câimbras, desmaios, insolação (REIS,
GRUPI; NEGRÃO; RONDON; MARTINEZ; 2014), tontura, confusão mental, convulsões,
MARCOURAKIS; SANTOS; BRAGA; fadiga severa repentina, envelhecimento pre-
ZANETTA; SANTOS, 2012). coce, redução da vida útil e morte por exaustão
Nesse trabalho penoso, a baixa atividade in- (BITENCOURT; RUAS; MAIA, 2012, p. 73),
telectual e cognitiva, a monotonia, a ignorância também chamada de morte súbita ou karoshi.
sobre o sentido do trabalho, a repetitividade A fuligem gera naqueles que a inalam “proble-
de gestos, o salário por produção e prêmios e a mas respiratórios, distúrbios cardiovasculares
aceleração do ritmo são uma violência contra o e até câncer” (SILVA, 2014, p. 288-289). Os
funcionamento mental (DEJOURS, 2015, p. 45- agrotóxicos utilizados nas lavouras de cana são,
51). Há também, em razão da repetitividade direta ou indiretamente, ingeridos, inalados,
das tarefas, uma “contaminação involuntária absorvidos pela pele ou olhos dos rurícolas,
do tempo fora do trabalho”, como a desperso- causando efeitos agudos, como “neurotoxi-
nalização do trabalhador no meio social em cidade, danos a tecidos e órgãos, irritações e
que vive (DEJOURS, 2015, p. 57-59). queimaduras químicas”, e efeitos crônicos, a
Os agravos à saúde decorrentes dessas con- exemplo de consequências adversas no sistema
dições são diversos, durante e após o período reprodutivo e no desenvolvimento, doenças
da safra: estresse mental, gastrite, hipertensão neurodegenerativas e maior incidência de
arterial, depressão, cansaço excessivo, ansieda- determinados tipos de cânceres (FERREIRA;
de, irritabilidade excessiva, pensamento fixo, FERREIRA; CEGLIO, 2012, p. 154).

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Investigações sobre uma epidemia de doen- intuito de resguardar a dignidade da pessoa hu-
ças renais que afetam os cortadores – geradas mana, o equilíbrio do meio ambiente do trabalho,
pelo excesso de calor, desidratação, toxicidade a vida e a saúde dos trabalhadores, em harmonia
provocados pela queima da cana, associados ao com os princípios e com os tratados e convenções
trabalho penoso prolongado – estão em desenvol- internacionais de direitos humanos. Exemplo
vimento na América Central (LAWS; BROOKS; disso são as normas dos arts. 1o, III, 5o, caput, 225
AMADOR; WEINER; KAUFMAN; RAMÍREZ- c/c 170, VI, e 196 da CRFB (BRASIL, [2020a]) e as
RUBIO; RIEFKOHL; SCAMMELL; LÓPEZ- dispostas nas Normas Regulamentadoras (NRs)
PILARTE; SÁNCHEZ; PARIKH; MCCLEAN, do extinto Ministério do Trabalho. No entanto, o
2015; SANTOS; ZANETTA; TERRA-FILHO; Estado exime-se de legislar sobre a proteção ao
BURDMANN, 2015). trabalho penoso, sempre à margem de normas
O corte manual da cana-de-açúcar é ativi- que tratam de modo específico sobre os direitos
dade extremamente penosa e, como tal, requer e deveres em relação a ele.
proteção jurídica específica do Estado, a fim de O trabalho penoso está presente tanto no
promover aos cortadores condições dignas de meio urbano quanto no meio rural (MELO, 2013,
vida, de modo que essa atividade não se traduza p. 226-227). Podem ser citadas como exemplos de
em um mal necessário à sobrevivência ou em uma sua prática as atividades em lavouras (OLIVEIRA;
forma de coisificação do ser humano. GARCIA, 2016, p. 1.070), o trabalho em car-
voarias, os transportes ferroviários de pessoas
e de cargas, a prestação de serviços bancários
4 Omissão estatal, propostas (MARQUES, C., 2007, p. 64-65), as atividades
legislativas e o necessário conteúdo dos garis ou coletores de lixo (TEIXEIRA, 2013,
normativo da proteção ao trabalho p. 213-218).
penoso O trabalho em lavouras sempre foi exercido
em condições difíceis e exaustivas, nas quais a
É tarefa do Estado, em virtude dos deveres jornada muitas vezes é determinada pelo nas-
de proteção a ele atribuídos, a criação ou o aper- cer e pelo pôr do sol, como aponta Lima (1992,
feiçoamento de leis ou atos normativos capazes p. 15). Assim, algumas das atividades rurais têm
de assegurar que o trabalho se desenvolva em sido consideradas penosas por natureza, como as
ambiente saudável e seguro, garantindo vida, que são desenvolvidas na agricultura canavieira,
saúde, bem-estar e dignidade aos trabalhadores. notadamente no corte da cana-de-açúcar.
Incumbe-lhe a tarefa de retirar quaisquer obs- O trabalho penoso, bem como o insalubre
táculos à concretização do direito fundamental e o perigoso, pode ser identificado de maneira
ao meio ambiente laboral saudável, relacionados suficientemente forte e realística na expressão
tanto a condutas quanto a omissões de particula- trabalho perverso, cunhada por Prunes (2000,
res ou do próprio Poder Público. Caso isso não p. 7). Ela retrata a extrema agressividade das
ocorra, “o Estado-juiz poderá ser acionado para condições laborais impostas aos trabalhadores,
coibir ou corrigir eventuais violações” aos direitos especialmente nos dois últimos séculos, que se
de proteção e promoção da qualidade ambiental caracterizam pela exposição humana a produtos
(SARLET; FENSTERSEIFER, 2014, p. 282-284). químicos e a agentes físicos e biológicos desco-
O legislador brasileiro produziu diversas nor- nhecidos ou reconhecidamente prejudiciais à
mas constitucionais e infraconstitucionais no saúde (PRUNES, 2000, p. 10).

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A CRFB, em seu art. 7o, XXIII, faz uma sim- incômodo, doloroso, rude e que exige a atenção
ples menção ao trabalho penoso, sob o enfoque constante e vigilância acima do comum” (SANTA
remuneratório, ao assegurar aos trabalhadores CATARINA, 1994).
urbanos e rurais “adicional de remuneração para Segundo Marques, C. (2007, p. 64), trabalho
as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na penoso está
forma da lei” (BRASIL, [2020a]).
O tratamento das atividades insalubres e pe- relacionado à exaustão, ao incômodo, à dor, ao
rigosas e os respectivos adicionais encontra-se desgaste, à concentração excessiva e à imuta-
bilidade das tarefas desempenhadas que ani-
definido e regulamentado nos arts. 189 a 197
quilam o interesse, que levam o trabalhador ao
da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) exaurimento de suas energias, extinguindo-lhe
(BRASIL, [2019a]) e nas NRs 15 e 16 (BRASIL, o prazer entre a vida laboral e as atividades a
[2019c], [2019d]). Todavia, com relação ao tra- serem executadas gerando sofrimento, que
pode ser revelado pelos dois sintomas: insa-
balho penoso, inexiste regulamentação e não há
tisfação e a ansiedade.
um entendimento pacífico acerca de seu conceito,
sua natureza, tampouco do percentual e da base
de aplicação do adicional mencionado no texto De acordo com Melo (2013, p. 226-227), tra-
constitucional – em que pese a proposição de balho penoso é
inúmeros projetos de lei com essa finalidade ao
longo de mais de 30 anos (MARQUES, C., 2007, o trabalho desgastante para a pessoa humana;
p. 62). é o tipo de trabalho que, por si ou pelas con-
dições em que exercido, expõe o trabalhador
Alega-se que um dos motivos dessa omissão
a um esforço além do normal para as demais
legislativa decorreria da dificuldade de conceituar atividades e provoca desgaste acentuado no
e de classificar as atividades penosas ante o “ele- organismo humano. É o trabalho que, pela
vado grau de subjetividade nos critérios definido- natureza das funções ou em razão de fatores
ambientais, provoca uma sobrecarga física e/
res do trabalho com tal característica” (BRASIL,
ou psíquica para o trabalhador.
2008). Oliveira (2011, p. 205-206) afirma que o
termo penoso é abrangente, polissêmico e impre-
ciso e que está submetido a uma interpretação Por sua vez, Teixeira (2013, p. 193), em sua
subjetiva que prejudica a elaboração de uma defi- tese de doutoramento, conceituou trabalho pe-
nição juridicamente aplicável. É possível, porém, noso
observar certo avanço no delineamento desse
instituto em legislação estadual, na doutrina, na como aquele que é exercido com exigência de
jurisprudência e nos projetos de lei apresentados esforço físico e/ou mental com níveis anormais
de desgaste, que é passível de exaurir as forças
por parlamentares.
físicas e mentais, causando opressão, sofri-
O estado de Santa Catarina incluiu o con- mento, dor, ansiedade, exasperação, desânimo,
ceito de trabalho penoso no art. 1o, § 1o, I, do tanto pela sobrecarga física das tarefas quanto
Decreto no 4.307/1994, que trata dos critérios pelo ritmo intenso de sua execução, pelo traba-
lho em condições agressivas e/ou repugnantes,
para a concessão da Gratificação de Penosidade,
pela imutabilidade das tarefas e alienação do
de Insalubridade e de Risco de Vida aos servi- conteúdo do trabalho, circunstâncias presentes
dores públicos estaduais. Essa norma apresenta em situação-limite, não passíveis de controle e
a ideia de que essa espécie de atividade consiste amenização, no atual estágio das tecnologias
em “trabalho árduo, difícil, molesto, trabalhoso, e recursos disponíveis.

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Teixeira (2013, p. 194) também enfatiza que ou condições inadequadas, sem o uso de equi-
são inerentes à compreensão desse conceito a pamentos de proteção e sem a concessão de
“organização do trabalho, a tarefa prescrita, os pausas para descanso” (OLIVEIRA; GARCIA,
meios materiais e equipamentos, a forma de 2016, p. 1.071-1.072).
produção e de remuneração, os aspectos am- Outro resultado importante da investigação
biental e temporal na execução da tarefa”. A em questão foi a de que a maior parte dos acór-
pesquisadora explica que os níveis anormais de dãos estudados “tratava de jornada de trabalho
desgaste físico e mental dizem respeito à sobre- e era proveniente de empresas relacionadas ao
carga corpórea ou psíquica exigida no ambiente trabalho rural”, entre as quais despontaram as
laboral que “excedem a capacidade de adaptação atividades econômicas voltadas a lavouras de
do trabalhador”. cana-de-açúcar e de laranja, e a indústrias su-
A impossibilidade de controlar e de amenizar croenergéticas (OLIVEIRA; GARCIA, 2016,
as situações-limite do trabalho penoso “no atual p. 1.070).
estágio das tecnologias e recursos disponíveis” No momento, entre outros projetos afetos ao
relaciona-se ao fato de que a adequação desse trabalho penoso1, encontram-se em tramitação:
trabalho para níveis saudáveis, “mesmo com a o Projeto de Lei (PL) no 1.015, de 21/9/1988
aquisição e utilização dos equipamentos mais (BRASIL, 1988), proposto pelo deputado Paulo
modernos existentes”, implicaria “extinção de Paim, que dispõe sobre o adicional de remunera-
postos de trabalho”, como ocorre na mecani- ção para atividades penosas; e o PL no 9.341, de
zação do corte da cana-de-açúcar (TEIXEIRA, 13/12/2017 (BRASIL, 2017a), apresentado pelo
2013, p. 194). deputado Chico Lopes, que visa alterar a CLT a
A pesquisa realizada por Verônica Guilherme fim de definir trabalho penoso e o percentual
Ancelmo de Oliveira e Eduardo Garcia Garcia devido a título do adicional respectivo.
em 573 acórdãos proferidos no período de 2011 Define o PL no 1.015/1988 que:
a 2013 pelo Tribunal Regional do Trabalho da
15a Região (TRT15), com jurisdição no inte- Serão consideradas atividades penosas aque-
rior do estado de São Paulo – maior produtor las que, por sua natureza, condições ou méto-
dos de trabalho, exijam dos empregados esfor-
nacional de cana-de-açúcar –, concluiu que é
ço e condicionamento físicos, concentração
amplo o entendimento desse tribunal acerca do excessiva, atenção permanente, isolamento
trabalho penoso. O TRT15 considera as “carac- e imutabilidade da tarefa desempenhada em
terísticas inerentes às atividades desenvolvidas níveis acima dos limites de tolerância fixados
em razão da natureza e da intensidade do tra-
pelo trabalhador”, as “formas adotadas para a
balho a que estão submetidos (BRASIL, 1988).
organização do trabalho que possam causar
agravos à sua saúde física e mental”, bem como
as “repercussões sociais e econômicas do traba- Por sua vez, o PL no 9.341/2017 propõe o
lhador” (OLIVEIRA; GARCIA, 2016, p. 1.064). acréscimo do art. 196-A na CLT para definir
O trabalho penoso, com base na visão do como trabalho penoso as atividades ou ope-
TRT15, relaciona-se à “prática de jornadas de rações “que, por sua natureza, condições ou
trabalho extensas, bem como [à] realização de métodos de trabalho, submetem o trabalhador
trabalhos fisicamente desgastantes ao traba-
lhador”, “atividades que exigiam sobrecarga de 1
Projetos de Lei nos 339/1991, 29/1991, 39/1991,
trabalho”, “execução de atividades em ambientes 966/1991, 5.290/2001, 4.243/2008 e 774/2011.

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à fadiga física, mental, emocional ou psicológica” (BRASIL, 2017a). O
§ 1o desse dispositivo prevê o pagamento do adicional de penosidade e a
possibilidade de cumulação simultânea com o adicional de insalubridade
e de periculosidade – atualmente vedado no sistema jurídico pátrio. O
§ 2o do artigo apresenta um rol exemplificativo das condições de traba-
lho que podem caracterizar a atividade laboral como penosa e permite
o reconhecimento pelo Ministério do Trabalho de outras atividades que
possam ser assim classificadas. Nesse rol destacam-se as características
aplicáveis ao trabalho no corte manual da cana-de-açúcar:

Art. 196-A – […]


Parágrafo 2o – Serão consideradas atividades penosas, sem exclusão de
outras que venham a serem determinadas pelo Ministério do Trabalho,
as atividades que exijam:
I – Esforço físico intenso no levantamento, transporte, movimentação,
carga e descarga de objetos, materiais, produtos e peças;
II – Postura incômoda, fatigante ou viciosa do organismo, em relação a
condições normais;
III – Esforços repetitivos;
[…]
V – Utilização de equipamentos de proteção individual que impeçam o
pleno exercício de funções fisiológicas, como tato, audição, respiração,
visão, atenção, que leve à sobrecarga física e mental;
VI – Excessiva atenção ou concentração;
[…]
XIV – Serviços realizados em condições excepcionais relativamente ao
local do trabalho, horário e exposição às intempéries;
XV – Serviços realizados em ambientes desconfortáveis pela existência
anormal de condições de luz, temperatura, umidade, ruído, vibração
mecânica ou radiação ionizante (BRASIL, 2017a).

Embora o PL no 9.341/2017 apresente uma lista maior e mais detalha-


da de elementos que podem caracterizar o trabalho penoso e permita a
cumulação de adicionais de remuneração, sequer menciona a necessidade
de fixação de um limite de tolerância para o exercício dessas ocupações,
como o faz o PL no 1.015/1988, cujo art. 3o estabelecia que a fixação de
tais limites era dever do então Ministério do Trabalho – que, depois de
extinto, teve suas atribuições integradas ao Ministério da Economia.
Os dois projetos de lei, assim como as demais propostas legislativas
apensadas a eles, priorizam a fixação do adicional de penosidade em
contraponto ao que realmente importa para a eliminação ou a redução da

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penosidade, que é a adaptação da atividade laboral aos trabalhadores
por meio de medidas organizacionais, como a redução da jornada e das
metas estabelecidas pela gerência, de análises ergonômicas e inovações
tecnológicas que adequem as condições de trabalho às capacidades
psicofisiológicas do trabalhador.
O adicional de penosidade também depende de regulamentação.
Oliveira (2011, p. 209-210) alerta para o problema de tal suplemento
salarial se tornar um “permissivo para a continuidade” do trabalho
penoso e assevera que o “melhor caminho […] não é a instituição de
adicionais para indenizar o desgaste acelerado”. Segundo o doutrina-
dor, em lugar disso, deve-se buscar a eliminação ou redução dos riscos
inerentes ao trabalho, “respeitando a dignidade do trabalhador”, bem
como a concessão de mais repousos ou jornada reduzida, com a fina-
lidade de “permitir mais tempo para a recuperação do trabalhador”.
Melo (2013, p. 229), por sua vez, considera que a prioridade do
empregador deve ser a eliminação da penosidade ou, caso não seja
possível, ao menos sua redução. Para o jurista, o “pagamento é uma
mera compensação ao trabalhador pelo desgaste sofrido, servindo
de punição para o empregador, uma vez que o trabalho penoso não
é proibido”.
O fato de o trabalho penoso ser permitido e de haver previsão
constitucional para o respectivo adicional de remuneração não deso-
briga o empregador de respeitar os limites impostos pelo ordenamento
jurídico, em observância ao princípio da dignidade da pessoa humana
(MARQUES, C., 2007, p. 181), ao princípio do valor social do traba-
lho e aos princípios de Direito Ambiental como os da prevenção, da
sustentabilidade e da função socioambiental da propriedade. Ademais,
não deve “eximir o empregador das responsabilidades decorrentes da
exploração da mão de obra em tais circunstâncias”, visto que tal ação
pode provocar o adoecimento e, muitas vezes, a morte dos trabalha-
dores (TEIXEIRA, 2013, p. 195).
Portanto, não se deve priorizar ou até mesmo instituir o adicional
de penosidade, pois ele tem estimulado a manutenção do trabalho em
condições perversas, como ocorre com a insalubridade e a periculo-
sidade, o que não será diferente quanto à penosidade. Os adicionais
representam a monetização dos riscos e impedem o alcance do equilíbrio
labor-ambiental por meio da prevenção e precaução (PADILHA, 2013,
p. 181), seja porque o trabalhador compreende o adicional como uma
forma de aumentar sua renda, seja porque o empregador, consciente ou
não, ao indenizar ou compensar os riscos pelas condições perversas às
quais submete o empregado, se consideraria isento de tomar medidas
preventivas eficazes à sua eliminação e, em último caso, redução.

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A penosidade do trabalho no corte manual da CLT (BRASIL, [2019a]) e da omissão da
da cana-de-açúcar tem sido reconhecida pelo legislação trabalhista rural, o Estado-juiz tem
TST (BRASIL, 2017d) e por outros tribunais acenado no sentido de declarar, em sede de
regionais como o TRT19, em Alagoas (BRASIL, Ações Civis Públicas (ACPs)3 – à luz de princí-
2013), estado com tradição no cultivo da planta, pios constitucionais, de direitos fundamentais
e o TRT23, em Mato Grosso, onde também há e da NR-17 (BRASIL, [2018a]) –, a ilegalidade
lavouras de cana (BRASIL, 2020b). e a inconstitucionalidade da adoção do paga-
Especificamente sobre esse tipo de ativi- mento por produção em atividades rurais pe-
dade laboral, tramitou no Senado o PL no 226, nosas como a dos cortadores de cana-de-açúcar
de 2007 (BRASIL, 2007)2, de autoria de Paulo ante sua prejudicialidade à saúde, à vida e ao
Paim. A proposição visava à alteração da Lei bem-estar dos rurícolas.
no 5.889/1973 para que, entre outros objeti- Não obstante, decisões nesse sentido po-
vos, houvesse a presunção de que o labor no derão ser questionadas à luz do § 2o do art. 8o
corte manual de cana é trabalho penoso, a li- incluído na CLT pela Reforma Trabalhista (Lei
mitação da jornada do cortador de cana em no 13.467/2017 (BRASIL, 2017b)), que deter-
40 horas semanais, bem como a concessão de mina que “[s]úmulas e outros enunciados de
adicional de penosidade e de participação nos jurisprudência editados pelo Tribunal Superior
lucros. O PL também propunha a alteração da do Trabalho e pelos Tribunais Regionais do
Lei no 8.213/1991 para presumir como peno- Trabalho não poderão restringir direitos le-
sa, insalubre e perigosa a atividade do corte galmente previstos nem criar obrigações que
manual da cana-de-açúcar, assegurando aos não estejam previstas em lei”.
trabalhadores o direito à aposentadoria espe- De qualquer modo, para a atividade do corte
cial após 25 anos de trabalho, contínuos ou manual de cana-de-açúcar e para outras ativida-
intermitentes. O senador firmou a proposta des laborais penosas, deve-se adotar um sistema
legislativa no fato de que essa atividade laboral remuneratório que leve em conta a saúde do
é naturalmente exaustiva e desgastante (MELO, trabalhador – e compatível financeiramente
2013, p. 226-227).
Esse PL, embora signifique avanços, é uma 3
Algumas ACPs têm sido ajuizadas pelo Ministério
Público do Trabalho (MPT) com o objetivo de conde-
tímida iniciativa do Poder Legislativo em re- nar as usinas a se absterem de remunerar os cortadores
lação à proteção jurídica do trabalho penoso de cana-de-açúcar por produção. A Vara do Trabalho de
Matão-SP e o TRT15, com fundamento nos princípios da
exercido pelos cortadores de cana, pois, além dignidade da pessoa humana, do valor social do trabalho,
de propor limitação de jornada, aposentadoria nos direitos fundamentais e na NR-17, julgaram procedente
o pedido formulado pelo MPT visando a esse fim na ACP
especial e remuneração maior a quem labuta no 0001117-52.2011.5.15.0081 (BRASIL, 2012). O MPT,
no corte manual da cana, deveria propor a ve- Procuradoria de Rondonópolis-MT, também ingressou com
ACP no 0000490-46.2017.5.23.0071 (BRASIL, 2020b) com
dação da adoção do pagamento por produção esse mesmo objetivo; ela foi julgada procedente quanto ao
pedido para que os cortadores de cana não fossem remune-
nessa atividade e fixar as pausas necessárias à rados pelo sistema de pagamento por produção. Contudo,
recuperação psicofísica dos rurícolas. o Recurso Ordinário formulado pela empresa empregadora
foi conhecido e provido, cassando a decisão a quo, sob o
Acerca do pagamento por produção, a des- argumento de violação aos princípios da legalidade, já que
peito do genérico permissivo legal do art. 78 esse tipo de remuneração é permitido por lei e de que ve-
dar a sua adoção afrontaria o princípio da livre iniciativa.
O MPT interpôs Recurso de Revista no TST e o feito está
em andamento. (As consultas sobre os andamentos desses
2
Essa proposição legislativa foi arquivada definitiva- feitos foram realizadas nos sites dos referidos Tribunais na
mente em 26/12/2018. data de 16/6/2020).

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com o esforço e desgaste despendidos – assim a responsabilidade de gerir o ambiente laboral
como a concessão de pausas em quantidade e equilibrado para a saúde e o bem-estar daqueles
tempo suficientes para o descanso e recuperação que ali trabalham.
fisiológica, sem prejuízo das demais medidas de Essas são algumas medidas que podem trans-
prevenção cabíveis. Algumas dessas medidas formar o meio ambiente do trabalho dos cor-
estão previstas nas NRs no 15, Anexo III, no 17 e tadores de cana, para que o trabalho não tenha
no 31 (BRASIL, [2019c], [2018a], [2018b]), que, o caráter de castigo ou de simples reprodução
embora não sejam destinadas especificamente material da vida biológica, mas de mediador da
ao labor no corte manual da cana, têm sido apli- “realização do humano e desenvolvimento de sua
cadas por analogia pelos Tribunais Regionais do individualidade e convivialidade”, como condi-
Trabalho e pelo TST. ção e manifestação incontornável da dignidade
Pesquisas indicam que a transformação da humana (WANDELLI, 2012, p. 42).
organização do trabalho no corte manual da Observa-se, desse modo, que há dados sufi-
cana-de-açúcar é capaz de reduzir a penosidade cientes para embasar uma legislação específica
do labor e os danos à vida e à saúde dos rurícolas, para a proteção do trabalho penoso, inclusive
sem prejuízos à produtividade. Para isso, são com regras particularizadas quanto ao corte
necessárias medidas como: a implementação de manual da cana-de-açúcar. As fontes discuti-
equipamentos de proteção individual e de instru- das neste artigo, assim como outras pertinen-
mentos de trabalho ergonômicos, a exemplo dos tes ao tema e de natureza científica, precisam
facões australianos4; acompanhamento médico ser consultadas e observadas pelo legislador
com monitoramento de controle das sobrecargas brasileiro, já que expõem resultados de pesqui-
fisiológica e térmica dos cortadores de cana; sas desenvolvidas no Brasil e no mundo, bem
facilitação do acesso à água gelada e potável, como de casos analisados com rigor técnico e
como a disponibilização de mochilas de hidra- jurídico pela Justiça do Trabalho, evidenciando
tação (camelbacks); e concessão de pausas para a necessidade de mudança na organização do
descanso à sombra, com a devida fiscalização, trabalho canavieiro para a promoção da vida,
pelo empregador, de sua realização (BODIN; saúde, bem-estar e dignidade dos cortadores
GARCÍA-TRABANINO; WEISS; JARQUÍN; manuais de cana.
GLASER; JAKOBSSON; LUCAS; WESSELING; Ao Estado legislador cabe agora conferir es-
HOGSTEDT; WEGMAN, 2016). pecial cuidado e celeridade na discussão e apro-
O legislador, portanto, deve instituir nor- vação de uma lei que regulamente esse tipo de
ma que atribua aos empregadores rurais que labor, com fixação de sanções adequadas àqueles
se utilizem do corte manual da cana a respon- que a descumprirem e mediante investimentos
sabilidade específica de implementar no meio financeiros em mecanismos governamentais
ambiente laboral medidas preventivas como as capazes de monitorar o efetivo cumprimento
mencionadas, pois há comprovação científica da norma.
de que elas melhoram as condições de trabalho, De qualquer modo, importa lembrar que,
vida e saúde dos rurícolas e é do empregador no intuito de amenizar essa situação enquanto
o Poder Legislativo permanecer inerte, também
4
Os facões australianos foram utilizados pelos rurícolas pode ser utilizado, notadamente pelos sindicatos,
para o corte da cana durante a primeira fase da mencionada o mandado de injunção previsto no inciso LXXI
pesquisa. Importados da Austrália pelo grupo pesquisador,
esses instrumentos de trabalho são mais leves e ergonômicos. do art. 5o da CRFB (BRASIL, [2020a]) – instru-

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mento cabível sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável
o exercício de direitos e liberdades constitucionais e de prerrogativas
inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Esse mecanismo
estende-se a qualquer direito constitucional. Sobre o meio ambiente do
trabalho, Melo (2013, p. 185) vislumbra pertinente e necessário o uso
desse remédio constitucional nas relações laborais para que os direitos
fundamentais dos trabalhadores sejam efetivamente implementados, como
é o caso da proteção ao obreiro em trabalho penoso. Podem impetrá-lo os
cidadãos, os sindicatos, o MPT, os partidos políticos com representação
no Congresso Nacional, as entidades de classe ou associação legalmente
constituídas e em funcionamento há pelo menos um ano, sempre em
defesa dos interesses de seus membros ou associados (arts. 5o, LXX, b,
e 8o, III, da CRFB (BRASIL, [2020a]) e art. 83, X, da Lei Complementar
no 75/1993 (BRASIL, [2003])).
A ausência de legislação específica destinada à proteção do trabalho pe-
noso, além de inconstitucional, é danosa aos cortadores de cana-de-açúcar
(LOBO, 2014, p. 129). Assim como outros trabalhadores que atuam em
demais atividades penosas, eles são merecedores de proteção jurídica
específica, como ocorre nos casos de trabalho perigoso e insalubre já
regulamentados.

5 Conclusão

O trabalho humano deve ser vivenciado não como castigo ou mal


necessário para a subsistência, mas como o que realmente efetiva o po-
tencial construtivo para a saúde física, mental e social e para a autonomia
e reconhecimento dos trabalhadores, notadamente os que atuam no corte
manual da cana-de-açúcar. O trabalho humano deve ser valorizado e a
dignidade dos trabalhadores – dentre eles, os cortadores de cana – deve ser
preservada, em detrimento de quaisquer interesses da ordem econômica.
Assim, o adoecimento e a morte dos cortadores manuais de
cana-de-açúcar, gerados pelo processo e pelo meio ambiente de trabalho
em que estes atuam, devem ser impedidos pelos empregadores canavieiros
e, entre outros, pelo Estado brasileiro. Uma das medidas a serem tomadas
pelo Estado é a elaboração de uma lei específica que proteja os cortadores
de cana-de-açúcar.
O Estado legislador deve regulamentar o trabalho penoso – con-
ceituando-o, fixando-lhe os limites de sua tolerância pelo ser humano
trabalhador, reduzindo a jornada de trabalho para esse tipo de labor –,
assim como organizar o processo produtivo de forma que efetivamente
o elimine; ou, não sendo isso possível, diminua os riscos e danos gerados

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pelas atividades penosas. Não se deve priorizar, ou até mesmo instituir,
o adicional de penosidade, ineficaz para a eliminação ou redução dos
riscos, pois na verdade os monetiza.
Especificamente sobre o corte manual da cana-de-açúcar, é impe-
riosa a produção de uma legislação que leve em consideração todo o
conhecimento científico e jurídico disponível relativo à prevenção dos
danos gerados por essa atividade. Destaca-se como medida prioritária
a ser positivada a vedação da adoção do pagamento por produção, sem
prejuízo das demais medidas preventivas mencionadas neste artigo.

Sobre as autoras
Dulcely Silva Franco é mestra em Direito Agroambiental pela Universidade Federal de Mato
Grosso, Cuiabá, MT, Brasil; professora substituta do curso de Direito da Universidade do
Estado de Mato Grosso, Diamantino, MT, Brasil.
E-mail: [email protected]
Carla Reita Faria Leal é doutora e mestra em Direito das Relações Sociais, subárea Direito
do Trabalho, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil;
professora de Direito associada da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato
Grosso, Cuiabá, MT, Brasil; juíza aposentada do Tribunal Regional do Trabalho da 23a
Região, Cuiabá, MT, Brasil.
E-mail: [email protected]

Como citar este artigo


(ABNT)
FRANCO, Dulcely Silva; LEAL, Carla Reita Faria. A necessária proteção jurídica aos
trabalhadores que exercem trabalho penoso no corte manual da cana-de-açúcar. Revista de
Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 230, p. 111‑131, abr./jun. 2021. Disponível
em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/ril_v58_n230_p111
(APA)
Franco, D. S., & Leal, C. R. F. (2021). A necessária proteção jurídica aos trabalhadores
que exercem trabalho penoso no corte manual da cana-de-açúcar. Revista de Informação
Legislativa: RIL, 58(230), 111‑131. Recuperado de https://www12.senado.leg.br/ril/
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RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 111-131 abr./jun. 2021 131


Democracia defensiva
Origens, conceito e aplicação prática

TARSILA RIBEIRO MARQUES FERNANDES

Resumo: Este artigo explica a democracia defensiva, também denominada


democracia de resistência. Após analisar as suas origens na teoria da de-
mocracia militante de Karl Loewenstein, será realizada uma diferenciação
entre as duas teorias. Serão apresentados as bases teóricas e o contexto
em que a democracia defensiva é aplicada, com o objetivo de entender
a sua importância para a salvaguarda da democracia brasileira. Casos
concretos em que tanto o Poder Legislativo quanto o Poder Judiciário
aplicaram a teoria da democracia defensiva também serão apresentados.
Dessa forma, será possível perceber que, mesmo pouco difundida e estu-
dada, a democracia defensiva já é objeto de aplicação prática no Brasil.

Palavras-chave: Democracia defensiva. Democracia militante. Paradoxo


da tolerância. Autoritarismo. Crise.

Defensive democracy: origins, concept, and application

Abstract: This article explains what defensive democracy, also called


resistance democracy, is. After analyzing its origins in Karl Loewenstein’s
theory of militant democracy, differentiation will be made between these
two theories. The theoretical bases and the context in which defensive
democracy is applied will be explained in order to understand the
importance of this theory for safeguarding Brazilian democracy. Concrete
cases in which both the Legislative and the Judiciary branches have used
the theory of defensive democracy will also be presented. Hence, it will
be possible to conclude that, although little disseminated, defensive
democracy is already being applied in Brazil.

Keywords: Defensive democracy. Militant democracy. Paradox of


tolerance. Authoritarianism. Crisis.

Recebido em 17/8/20
Aprovado em 18/9/20

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1 Introdução

A pandemia da Covid-19 colocou definitivamente em pauta no Brasil


um tema que nos últimos anos já vinha ganhando força: a democracia
defensiva. Escassos são os debates e as publicações sobre esse tópico de tão
grande relevância. Entender o que significa democracia defensiva, também
denominada democracia de resistência, é essencial para compreender o
momento de tensão pelo qual as instituições brasileiras estão passando e,
sobretudo, para ter consciência de como esse instituto pode vir a salvar o
regime democrático brasileiro.
Apesar de pouco conhecida no Brasil, a racionalidade por trás da teoria
da democracia defensiva é objeto de discussões no mundo pelo menos
desde 1937, quando Karl Loewenstein publicou o artigo científico “Militant
Democracy and Fundamental Rights” – em tradução livre: “Democracia
de militância e direitos fundamentais” (LOEWENSTEIN, 1937).
A democracia defensiva encontra suas origens na democracia de mi-
litância, razão pela qual é necessário investigar como esta última teoria
surgiu no Direito Comparado e como tem evoluído até os dias atuais.
Após compreender como foi desenvolvido, será possível explicar o tema da
democracia defensiva e a sua importância para o momento atual. Assim,
as bases teóricas e o contexto em que a democracia defensiva é aplicada
serão explicitados.
Com o arsenal teórico em torno da democracia defensiva assentado,
será analisada a aplicação prática desse instituto no momento de crise que
o Brasil está vivenciando. Dessa forma, serão demonstrados casos recentes
em que tanto o Poder Legislativo quanto o Poder Judiciário tiveram uma
atuação firme em prol da democracia defensiva.
Será possível perceber que a democracia defensiva, apesar de pouco
debatida no Brasil, já tem sido objeto de aplicação efetiva por instituições
brasileiras, de forma a garantir o regular funcionamento dos Poderes
constituídos e a normalidade do regime democrático.

2 Teoria da democracia de militância

É na democracia de militância que se podem encontrar as origens


teóricas da democracia defensiva. O grande exponente da teoria da demo-
cracia de militância foi o constitucionalista alemão Loewenstein (1937), o
qual defendia que não deveriam sequer participar da competição política
os partidos políticos que não se coadunassem com o regime democrático.
Merece especial atenção o contexto em que essa teoria da democracia
de militância foi desenvolvida, isto é, por um autor alemão, quando da

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ascensão do regime nazista. A preocupação de Loewenstein à época – hoje
se percebe que ela se mostrou extremamente pertinente – era de que a
participação de partidos políticos com evidentes características totalitárias
poderia levar à derrocada do próprio regime democrático.
Nesse ponto, vale salientar que Adolf Hitler não alcançou o poder em
virtude de um golpe de Estado ou de maneira violenta, mas por meio do
Partido Nacional-Socialista; ele participou da disputa democrática, alçado
ao cargo de líder (führer) com o apoio majoritário da população alemã.
Contudo, deve-se reconhecer que, desde o início de sua campanha eleitoral,
Hitler já expunha ideias totalitárias e dava sinais de que não respeitaria as
regras democráticas. Por esse motivo, Loewenstein defendia que o partido
nazista não poderia sequer participar do processo democrático.
As premissas da democracia militante, portanto, eram a de que o regime
democrático deveria contar com mecanismos (ainda que antidemocráti-
cos) para evitar que agentes políticos com ideais totalitários de poder, tais
como Hitler, utilizassem instrumentos democráticos para chegar ao poder.
Assim, deveriam ser criados meios para que a democracia se defendesse
dos partidos que buscassem alçar-se ao poder para destruí-la. Isso porque
o fascismo, classificado por Loewenstein (1937) como uma técnica política,
só conseguiria ser vitorioso em razão das condições favoráveis oferecidas
pelas instituições democráticas, em especial em virtude da tolerância
democrática. De acordo com Loewenstein (1937, p. 424, tradução nossa):

A democracia foi incapaz de proibir aos inimigos de sua própria existência


o uso de instrumentalidades democráticas. Até muito recentemente, o
fundamentalismo democrático e a cegueira legalista não estavam dispostos
a perceber que o mecanismo da democracia é o cavalo de Tróia pelo qual
o inimigo entra na cidade. Ao fascismo, disfarçado de um partido político
legalmente reconhecido, foram concedidas todas as oportunidades das
instituições democráticas.1

Com base na teoria da democracia militante, partidos políticos com


objetivos antidemocráticos deveriam ter o seu registro negado ou cassado,
em nome da defesa do próprio regime democrático. A necessidade de uma
democracia militante, portanto, surge do imperativo de autoproteção e
autopreservação da democracia (LOEWENSTEIN, 1937, p. 429).
Essa teoria já teve algumas aplicações práticas, a fim de cassar o registro
de partidos políticos. Cite-se o exemplo da Espanha, que já a usou para

1
No original: “Democracy was unable to forbid the enemies of its very existence the
use of democratic instrumentalities. Until very recently, democratic fundamentalism and
legalistic blindness were unwilling to realize that the mechanism of democracy is the Trojan
horse by which the enemy enters the city. To fascism in the guise of a legally recognized
political party were accorded all the opportunities of democratic institutions”.

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 133-147 abr./jun. 2021 135


cassar o registro do partido separatista basco Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação
Batasuna (BOURNE, 2015). Ademais, diver- e extinção de partidos políticos, resguardados
a soberania nacional, o regime democrático,
sas Constituições europeias adotam a teoria da
o pluripartidarismo, os direitos fundamentais
democracia militante e preveem expressamente da pessoa humana e observados os seguintes
a possibilidade de dissolução de partidos polí- preceitos:
ticos – caso das Constituições da Alemanha, I – caráter nacional;
Áustria, Dinamarca e Polônia (MONTEIRO,
II – proibição de recebimento de recursos
2015, p. 126-129). financeiros de entidade ou governo estran-
Apesar de bem fundamentada e justificada geiros ou de subordinação a estes;
diante do que aconteceu na Alemanha nazista, III – prestação de contas à Justiça Eleitoral;
a teoria da democracia militante é objeto de
IV – funcionamento parlamentar de acordo
críticas; alega-se que se confere excessivo poder com a lei (BRASIL, [2019a]).
a uma instituição, o que pode ser objeto de con-
sequente abuso e ameaça ao regime democrático Pela simples leitura do caput do art. 17 da
(ACCETTI; ZUCKERMAN, 2017). De fato, a CRFB, percebe-se que a criação de partidos
definição dos contornos e a imposição de limites políticos depende da observância da soberania
à aplicação da teoria da democracia militante nacional, do regime democrático, do pluripar-
são questões extremamente controversas e que tidarismo e dos direitos fundamentais da pes-
também se aplicam à teoria da democracia de- soa humana. Dessa forma, pode-se afirmar que
fensiva. A esse respeito, pode-se esclarecer que partidos políticos que não se coadunem com
houve evolução em torno dessa teoria no contex- os ideais democráticos, pluripartidários e de
to europeu, a fim de deixar a sua aplicação mais respeito aos direitos humanos não devem obter
restrita aos casos realmente necessários. Nesse registro, por serem contrários à Constituição.
contexto, a jurisprudência alemã evoluiu quanto Ora, a negativa de criação de partidos po-
à possibilidade de aplicação da teoria da demo- líticos – ou a sua cassação – em virtude de seu
cracia militante, passando a admitir a exclusão caráter antidemocrático é justamente a base
de partidos políticos totalitários do processo teórica da democracia militante desenvolvi-
democrático não somente quando tais partidos da por Loewenstein, razão pela qual se pode
apresentassem um viés antidemocrático, mas afirmar que o sistema constitucional brasileiro
também se eles representassem risco efetivo expressamente albergou essa teoria.
à democracia. Dessa forma, de acordo com o
atual entendimento da Corte Constitucional
alemã, não basta que o partido político apresente 3 Noções sobre o paradoxo da
características totalitárias para ter seu registro tolerância
excluído; é necessário haver ameaça concreta
à democracia, isto é, é preciso demonstrar que A fim de entender como a teoria da demo-
não é apenas potencial, mas efetivo, o risco que cracia defensiva foi desenvolvida, é necessário
o partido político representa. compreender as razões por que a existência de
Deve-se registrar que a Constituição da uma normalidade democrática permite que re-
República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB) gimes totalitários a ameacem, sem a necessidade
expressamente adotou a teoria da democracia do uso da força ou de um golpe de Estado. A esse
militante no art. 17: respeito, é interessante lembrar a frase de Joseph

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Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha o princípio da tolerância às minorias opressoras,
nazista (apud SARMENTO; PONTES, 2018): que, caso se transformassem em maioria, bus-
“sempre será uma das melhores piadas da de- cariam suprimir tal princípio. O autor, contudo,
mocracia o fato de que ela dá aos seus inimigos deixa claro que, apesar de evidente na teoria, tal
mortais os meios para destruir a si própria”. ideia é de difícil aplicação prática, não podendo
Pode-se encontrar a contextualização desse ser aceita sem ressalvas (BOBBIO, 2004, p. 196).
problema no que o filósofo austríaco Popper Com isso, percebe-se que a característica
(1974, p. 289) chamou de “paradoxo da tolerân- principal da democracia – a tolerância – pode
cia”. Popper (1974, p. 265, grifos do autor), ao ser igualmente a razão de sua derrocada. A tole-
tratar dos paradoxos da liberdade e da democra- rância, ao mesmo tempo em que permite que a
cia aos quais Platão fazia referência, afirmou que democracia sobreviva, é o seu ponto fraco; essa
é a verdadeira aporia da democracia. Afinal, a
[o] chamado paradoxo da liberdade é o ar- democracia tem como fundamento básico o
gumento de que a liberdade, no sentido de respeito à diferença de ideias, ao pluralismo
ausência de qualquer controle restritivo, deve
político, à liberdade de expressão, que são jus-
levar à maior restrição, pois torna os violen-
tos livres para escravizarem os fracos. Esta tamente os meios de que partidos autocráticos
idéia [sic], de forma levemente diferente e se podem valer para chegar ao poder e destruir
com tendência muito diversa, é claramente o regime democrático.
expressa por Platão.
Por essas razões, para que a democracia pos-
Menos conhecido é o paradoxo da tolerância: sa sobreviver, é imprescindível que mecanismos
a tolerância ilimitada pode levar ao desa- sejam criados no ambiente democrático a fim
parecimento da tolerância. Se estendermos
a tolerância ilimitada até àqueles que são
de restringir a liberdade de grupos ou atores
intolerantes; se não estivermos preparados políticos que, por meio de ideias totalitárias
para defender uma sociedade tolerante contra ou intolerantes, ameacem a própria democra-
os ataques dos intolerantes, o resultado será cia. Nesse ponto, percebe-se que as ideias de
a destruição dos tolerantes e, com eles, da
Loewenstein e de Popper se aproximam no
tolerância.
sentido de defender a necessidade de exclusão
de certos grupos políticos como forma de so-
Popper, ademais, esclareceu que não se tra- brevivência da democracia. De uma maneira
tava de suprimir o direito à manifestação de objetiva, pode-se concluir que a lógica tanto da
filosofias intolerantes, uma vez que, enquanto democracia militante quanto do paradoxo da
fosse possível contradizer racionalmente tais tolerância é no sentido de que a democracia não
manifestações e mantê-las controladas perante pode transformar-se num pacto suicida, razão
a opinião pública, deveria ser possível a sua livre pela qual devem ser garantidos mecanismos
manifestação. Entretanto, dever-se-ia garantir para a legítima defesa da ordem democrática.
o direito de suprimir tais manifestações intole-
rantes, inclusive por meio do uso da força, na
hipótese de não ser mais possível contrapô-las 4 A democracia defensiva ou de
por meio de argumentos racionais (POPPER, resistência
1974, p. 265).
Também é possível encontrar em Bobbio A teoria da democracia defensiva começou a
(2004) a mesma ideia de que se pode excepcionar ser debatida apenas nos últimos dois anos, sobre-

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 133-147 abr./jun. 2021 137


tudo diante da elevada tensão durante as eleições Em relação à dificuldade de defender a de-
de 2018 e o acirramento político no Brasil. mocracia brasileira e consequentemente à ne-
Na realidade, pode-se afirmar que é difícil cessidade de melhor compreensão da teoria da
imaginar um momento mais propício que o atual democracia defensiva, deve-se ter em mente que
para compreender o conceito e a importância da o regime democrático brasileiro é ainda bastante
democracia defensiva, pois, além de uma crise de recente: o maior período de “normalidade” de-
saúde em virtude da pandemia da Covid-19 – que, mocrática brasileiro é o atual, iniciado em 1985,
com maior ou menor gravidade, todos os países com o fim do regime militar. Desde então, o Brasil
têm enfrentado –, o Brasil tem lidado com uma teve dois presidentes da República que sofreram
crise econômica, política, social e institucional – processo de impeachment.
todas ao mesmo tempo. Com efeito, a divisão de A democracia brasileira, portanto, é bastante
Poderes e as relações institucionais encontram-se nova e ainda se encontra em fase de consolida-
bastante confusas e desgastadas. ção. Ademais, há fatores – alguns essencialmente
Seguindo a mesma racionalidade da demo- brasileiros, outros mundiais – que tornam esse
cracia de militância, a teoria da democracia de processo de conformação democrática muito
resistência também foi desenvolvida para impedir mais difícil e complexo. Nesse sentido, como
que grupos extremistas, situações indesejadas ou características brasileiras, pode-se citar a baixa
momentos de instabilidade institucional afetem o conscientização política e eleitoral da maioria
regular funcionamento da democracia. Apesar de da população aliada à falta de interesse político,
terem a mesma origem, a teoria da democracia de- o que permite que políticos mal-intencionados
fensiva diferencia-se da democracia de militância transformem parte da população em militantes
por ser mais ampla. Vale dizer, a democracia de sem conhecimento de causa. Ademais, uma das
militância foi criada e desenvolvida para lidar com particularidades mais marcantes da sociedade
uma situação específica: a questão da exclusão brasileira é a enorme desigualdade social, aliada
de partidos ou de grupos políticos totalitários do ao ensino deficiente e à corrupção sistêmica, o
processo democrático. A democracia defensiva, que gera instabilidade institucional e culmina no
entretanto, visa impedir que vulnerem a própria déficit democrático.
democracia quaisquer situações ou grupos que Acrescem a esses fatores alguns fenômenos
afetem a normalidade democrática. mundiais que igualmente dificultam a consoli-
Ademais, as expressões democracia defensiva dação democrática. Quanto a esse ponto, merece
ou democracia de resistência parecem ser igual- registro a grande influência das redes sociais na
mente mais adequadas e condizentes com o que disseminação de notícias, sobretudo de desin-
essa teoria reflete. Isto é, uma atuação reativa em formação, as chamadas fake news. Essa é uma
prol da democracia em virtude de um ataque às realidade bastante discutida no contexto europeu,
instituições. Acrescente-se ainda que o termo sobretudo diante da saída do Reino Unido da
“democracia militante” parece conter um viés União Europeia (o chamado Brexit). Alega-se que
ideológico, o qual não corresponde à ideia de a pequena maioria que votou a favor da retirada
legítima defesa da ordem democrática, objetivo do Reino Unido da União Europeia foi influen-
maior da democracia defensiva. Por essas razões, ciada por informações falsas que haviam sido
defende-se que se deve utilizar o termo democra- divulgadas por meio de robôs nas redes sociais
cia defensiva ou democracia de resistência em vez (MUQSITH; MUZYKANT, 2019). Vale salientar
de democracia militante. que discussão parecida também foi levantada

138 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 133-147 abr./jun. 2021


quando da eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos
da América (PERSILY, 2017), sendo esse tema especialmente relevante
também agora no Brasil, no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral.
Percebe-se, pois, quão complexa é a tarefa de consolidação de um regime
democrático, sobretudo diante da realidade brasileira. Por essas razões, os
Poderes da República devem desempenhar o importante papel de defesa
da democracia, especialmente diante de uma ameaça de hipertrofia de
um outro Poder. É certo que a atuação das instituições não afasta nem
diminui a importância da atuação da população e da imprensa em prol da
democracia; mas, quando se trata da aplicação da teoria da democracia
defensiva, está-se discutindo a defesa da democracia por um dos Poderes
constituídos.
Por fim, merece destaque o fato de que são justamente os momentos mais
tensos e de instabilidade institucional que testam com maior intensidade
a solidez de um regime democrático. Dessa forma, pode-se inferir que a
democracia brasileira tende a se fortalecer com a superação de uma crise.

5 Aplicações práticas da teoria da democracia defensiva


durante a crise da Covid-19

Como já se afirmou, apesar de pouco difundida e estudada no Brasil,


a teoria da democracia defensiva tem sido objeto de aplicações práticas
por instituições brasileiras, ainda que sem referência a essa denominação.
Constata-se que o Poder Legislativo a aplicou durante o atual momento de
crise, assim como o Poder Judiciário, especificamente o Supremo Tribunal
Federal (STF).
De início, deve-se ter em mente que momentos de crise exigem medidas
excepcionais, além de demandar maior criatividade na busca de soluções.
Assim, a análise de qualquer tipo de proposta sugerida ou alternativa
implementada por um dos Poderes, em especial do Executivo, deve levar
em consideração o momento vivenciado. É claro que esse contexto não
legitima o desrespeito à CRFB, em especial quando esse desrespeito adota a
forma de hipertrofia de um dos Poderes e, consequentemente, afronta outro
Poder da República. Nessas situações, a teoria da democracia defensiva há
de ser aplicada a fim de garantir a normalidade democrática, mesmo que
em tempos excepcionais.

5.1 Aplicação pelo Poder Legislativo

Pode-se citar como exemplo de aplicação prática da teoria da democra-


cia defensiva a devolução, pelo Congresso Nacional, de medida provisória

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 133-147 abr./jun. 2021 139


editada durante o período de pandemia da Covid-19, com o objetivo de
permitir a nomeação, pelo ministro da Educação, de reitores das insti-
tuições federais de ensino sem prévia consulta às universidades. O caso
tratava da Medida Provisória (MP) no 979, de 9/6/2020, cujo ponto mais
controvertido assim dispunha:

Art. 2o Não haverá processo de consulta à comunidade, escolar ou aca-


dêmica, ou formação de lista tríplice para a escolha de dirigentes das
instituições federais de ensino durante o período da emergência de
saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia da
covid-19, de que trata a Lei no 13.979, de 2020.
Art. 3o O Ministro de Estado da Educação designará reitor e, quando
cabível, vice-reitor pro tempore para exercício:
I – durante o período da emergência de saúde pública de importância
internacional decorrente da pandemia da covid-19, de que trata a Lei
no 13.979, de 2020; e
II – pelo período subsequente necessário para realizar a consulta à co-
munidade, escolar ou acadêmica, até a nomeação dos novos dirigentes
pelo Presidente da República (BRASIL, 2020e).

O Poder Executivo justificou a edição da norma com o argumento de


que a pandemia da Covid-19 exigia isolamento social, conforme orienta-
ções da Organização Mundial da Saúde. Por isso, as aulas nas instituições
federais de ensino haviam sido suspensas, o que ocasionaria prejuízo ao
processo de eleição e designação dos reitores e vice-reitores das institui-
ções de ensino. Dessa forma, o objetivo da MP seria “assegurar o caráter
democrático dos processos de eleição de Reitor e Vice-Reitor garantido por
meio da consulta à comunidade acadêmica, nas Universidades Federais,
nos Institutos Federais e no Colégio Pedro II” (BRASIL, 2020c).
Conforme determina o § 5o do art. 62 da CRFB (BRASIL, [2019a]),
cabe ao Congresso Nacional, caso atendidos os pressupostos constitu-
cionais, analisar o mérito das medidas provisórias, as quais terão for-
ça de lei desde a sua edição pelo presidente da República. No caso da
MP no 979/2020, entretanto, o Congresso Nacional devolveu ao Poder
Executivo sem sequer ter analisado o mérito ou a relevância e urgência
da medida, por considerar que o seu teor ofendia tanto o princípio da
gestão democrática do ensino público quanto a autonomia universitária
previstos, respectivamente, no inciso VI do art. 206 e no art. 207, ambos
da CRFB (BRASIL, 2020a).
É de se notar o paradoxo do argumento utilizado pelo então ministro
da Educação para defender a necessidade de edição da MP: a defesa do
processo democrático de escolha e nomeação dos reitores e vice-reitores
das instituições federais de ensino. Ora, adotou-se uma medida claramente

140 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 133-147 abr./jun. 2021


a Lei no 12.527, de 2011, relacionados com
antidemocrática, por meio da designação unila- medidas de enfrentamento da emergência de
teral pelo ministro da Educação, com a supressão saúde pública de que trata esta Lei.
da escolha do dirigente pela comunidade, sob o § 1o Ficarão suspensos os prazos de resposta
argumento da defesa da democracia. a pedidos de acesso à informação nos órgãos
Pode-se perceber que o Congresso Nacional ou nas entidades da administração pública
agiu firmemente em defesa do que foi consi- cujos servidores estejam sujeitos a regime de
quarentena, teletrabalho ou equivalentes e
derado um ataque à democracia, devolvendo a que, necessariamente, dependam de:
MP no 979/2020, por entender que a norma se
I – acesso presencial de agentes públicos en-
consubstanciava em flagrante desrespeito aos
carregados da resposta; ou
princípios da gestão democrática do ensino e à
II – agente público ou setor prioritariamente
autonomia universitária. Ora, diante da hiper-
envolvido com as medidas de enfrentamento
trofia do Poder Executivo, o Legislativo teve que da situação de emergência de que trata esta
adotar medidas não usuais, a fim de garantir o Lei.
regular funcionamento das instituições. Deve- § 2o Os pedidos de acesso à informação
se ressaltar que, desde a criação das medidas pendentes de resposta com fundamento no
provisórias em 1988, essa foi apenas a quarta vez disposto no § 1o deverão ser reiterados no
prazo de dez dias, contado da data em que
que o Congresso Nacional devolveu ao Poder
for encerrado o prazo de reconhecimento de
Executivo uma MP sem proceder à sua análise. calamidade pública a que se refere o Decreto
Legislativo no 6, de 20 de março de 2020.
5.2 Aplicação pelo Poder Judiciário § 3o Não serão conhecidos os recursos inter-
postos contra negativa de resposta a pedido
Em relação ao Poder Judiciário, são inúme- de informação negados com fundamento no
ras as situações em que a teoria da democracia disposto no § 1o.
defensiva foi aplicada. O presente artigo enfo- § 4o Durante a vigência desta Lei, o meio
cará dois julgados proferidos pelo STF durante legítimo de apresentação de pedido de acesso
a informações de que trata o art. 10 da Lei
a pandemia. De início, deve-se ressaltar que
no 12.527, de 2011, será exclusivamente o
nenhum desses julgados fez referência expressa sistema disponível na internet.
à teoria da democracia defensiva; de sua análise,
§ 5o Fica suspenso o atendimento presencial
contudo, pode-se observar a efetiva aplicação a requerentes relativos aos pedidos de acesso
da teoria. à informação de que trata a Lei no 12.527, de
O primeiro julgado foi proferido nas 2011 (BRASIL, 2020d).
ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs)
nos 6.347, 6.351 e 6.353, ajuizadas pelo Conselho De acordo com o Poder Executivo, o objetivo
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, da MP foi o de adaptar o acesso à informação
pela Rede Sustentabilidade e pelo Partido à realidade dos órgãos públicos que passaram
Socialista Brasileiro; todas questionavam a MP a atuar de forma majoritária em regime de tra-
no 928/2020, que limitou o acesso à informação balho remoto, sem prejudicar, igualmente, os
durante o período de pandemia. Os dispositivos órgãos em que seus agentes estavam presen-
impugnados tinham a seguinte redação: cialmente envolvidos no combate à pandemia
(BRASIL, 2020b). A própria exposição de mo-
Art. 6o-B Serão atendidos prioritariamente os tivos da MP, contudo, já esclarecia que mais de
pedidos de acesso à informação, de que trata 99% das solicitações e das respostas aos pedidos

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acarretar vícios de nulidade e dar margem
de acesso à informação eram realizadas de for- a práticas não democráticas. É inequívoco
ma eletrônica e remotamente. que o controle social efetivo sobre os atos
Os argumentos levantados pelo Poder administrativos depende do funcionamento
Executivo, entretanto, não foram aceitos pelo dos mecanismos de transparência.

STF, o qual considerou a limitação prevista […]


naquela norma ofensiva ao direito à liberdade É óbvio que o sistema protetivo-constitucio-
de informação, que deve ser vista como con- nal incide em toda e qualquer circunstância.
sectário necessário num regime democrático Já afirmei que as salvaguardas constitucio-
nais não são obstáculos, mas instrumentos
de Direito, uma vez que permite o controle pela
de superação dessa crise. O momento exige
sociedade e, sobretudo, pela imprensa. grandeza para buscar soluções viáveis do
Nesse sentido, o relator do caso, ministro ponto de vista jurídico, político e econômico.
Alexandre de Moraes, expressamente afirmou Ademais, principalmente em tempos excep-
que “a participação política dos cidadãos em cionais como o que vivemos, o acesso à infor-
uma Democracia representativa somente se mação deve ser ampliado e utilizado como
instrumento tanto de controle quanto – e
fortalece em um ambiente de total visibilidade
principalmente – de conscientização so-
e possibilidade de exposição crítica das diversas cial. Conforme bem pontuado pelo CFOAB,
opiniões sobre as políticas públicas adotadas “mediante a promoção de cidadãos e pro-
pelos governantes”. Argumentou ainda que fissionais bem informados, estaremos mais
o acesso à informação se caracteriza como bem preparados para enfrentar essa crise”.

“verdadeira garantia instrumental ao pleno O pleno exercício de uma democracia par-


exercício do princípio democrático” (BRASIL, ticipativa exige que restrições ao direito à
informação sejam devidamente justificadas
2020f, p. 10). e proporcionais, sob pena de tornar regra a
O relator foi acompanhado pelo ministro exceção do sigilo das informações (BRASIL,
Gilmar Mendes, o qual se manifestou em con- 2020f, p. 32-43).
tundente voto em favor da democracia:
Ademais, entendeu-se que aquela MP li-
O princípio da publicidade está ligado ao mitava um direito fundamental sem observar
direito de informação dos cidadãos e ao de- o princípio da proporcionalidade e da razoa-
ver de transparência do Estado, em conexão
bilidade, uma vez que existiam meios menos
direta com o princípio democrático.
gravosos para alcançar a finalidade pretendi-
[…]
da pela norma, pois a própria Lei de Acesso
Isso porque não há democracia sem a ga- à Informação (LAI) já contém mecanismos
rantia do direito à informação.
que permitem a negativa ou a postergação de
[…] a LAI é um dos principais instrumen- resposta, em casos excepcionais e devidamente
tos do ordenamento jurídico brasileiro para justificados.2
concretizar os princípios constitucionais da
publicidade, da transparência e do direito
à informação, os quais assumem especial 2
Nesse sentido, o art. 11, § 1o, II, da LAI dispõe: “Art. 11.
importância em um Estado Democrático O órgão ou entidade pública deverá autorizar ou conceder
de Direito. o acesso imediato à informação disponível. § 1o Não sendo
possível conceder o acesso imediato, na forma disposta no
A negativa generalizada de acesso a infor- caput, o órgão ou entidade que receber o pedido deverá,
mações públicas, além de limitar o con- em prazo não superior a 20 (vinte) dias: […] II – indicar
trole social em um momento crítico, pode as razões de fato ou de direito da recusa, total ou parcial,
do acesso pretendido” (BRASIL, 2011).

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Com base nesses argumentos principais, o Plenário do STF de forma
unânime referendou a cautelar concedida monocraticamente pelo relator,
a fim de suspender a eficácia do art. 6o-B da Lei no 13.979/2020, incluído
pelo art. 1o da MP no 928/2020.
Da leitura do voto do relator e das discussões travadas durante a sessão
de julgamento, percebe-se que o STF considerou a MP no 928/2020, na
parte que limitou o acesso à informação, um ataque frontal à democracia.
Entendeu-se que a limitação ao acesso à informação, sobretudo num
momento de crise, causa grave abalo às instituições democráticas, dado
que é por meio da transparência e do acesso à informação que se permite
o controle da atuação do Poder Público e a conscientização social. Esse
controle deve ser realizado por toda a sociedade e pelas instituições,
merecendo destaque o importante papel que a imprensa desempenha
nesse âmbito.
Além desse relevante processo que tratou de acesso à informação
durante a pandemia, deve-se reconhecer que o caso mais emblemático
julgado pelo Poder Judiciário foi o que ficou o conhecido como “in-
quérito das fake news”. Trata-se do Inquérito no 4.781, aberto de ofício
pelo presidente do STF, ministro Dias Toffoli, em 14/3/2019, por meio
da Portaria no 69/2019, tendo sido distribuído ao ministro Alexandre de
Morais, com o intuito de apurar a divulgação de notícias falsas e ataques
à honra e à segurança do STF, de seus membros e familiares (BRASIL,
2019b). O fundamento legal para a abertura de ofício desse inquérito
foi o art. 43 do Regimento Interno do STF, que tem a seguinte redação:

Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do


Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou
pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro.
§ 1o Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste
artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente.
§ 2o O Ministro incumbido do inquérito designará escrivão dentre os
servidores do Tribunal (BRASIL, 2020g, p. 44).

Em 2019, quando o Inquérito no 4.781 foi aberto, o processo foi


objeto de grande celeuma e críticas, tanto por parte da opinião pública
quanto por parte de juristas. Argumentava-se que o Poder Judiciário não
possuía função inquisitiva, não cabendo a ele a iniciativa de abertura e
de condução de inquérito. Nesse sentido, o Ministério Público inicial-
mente manifestou-se pelo não cabimento do inquérito, por ofensa aos
princípios da separação dos Poderes e do juiz natural (PGR…, 2019).
Apesar da perplexidade e das controvérsias geradas quando da abertu-
ra do inquérito das fake news em 2019, o que parecia indicar que ele não

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 133-147 abr./jun. 2021 143


teria a sua validade confirmada pelo Plenário da teoria da democracia defensiva – com os
do STF, o cenário em que ele foi julgado em consequentes riscos e críticas a ela inerentes.
junho de 2020 revelou-se bastante diverso. Isso Os julgamentos preferidos pelo STF nas
porque se descortinou o teor das graves ameaças ADIs nos 6.347, 6.351 e 6.353 e na ADPF no 572
sofridas tanto por ministros do STF quanto por demonstram que a teoria da democracia defen-
seus familiares, além de ataques direcionados siva, ainda que sem referência ao seu nome, já
à própria instituição. Ademais, as realidades tem sido objeto de aplicação prática. Ademais,
política e social também se alteraram bastante, esses julgamentos evidenciam que a Suprema
havendo um acirramento das agressões, as quais Corte brasileira está consciente do momento de
passaram a atingir de maneira bastante direta crise aguda que o País enfrenta e do seu papel
o Poder Judiciário, ameaçando a democracia. como um dos garantidores da democracia.
Diante desse contexto jurídico e, especial-
mente, político e social, o Inquérito no 4.781
teve a sua validade e constitucionalidade de- 6 Conclusão
vidamente reconhecida em 18/6/2020 em de-
cisão do Plenário da Corte, pela quase una- A teoria da democracia defensiva, ou de-
nimidade dos ministros, nos autos da Ação mocracia de resistência, ainda é pouco difun-
de Descumprimento de Preceito Fundamental dida e estudada no Brasil. Apesar de ter suas
(ADPF) no 572. Apenas o ministro Marco bases na teoria da democracia militante de Karl
Aurélio de Mello divergiu dos demais, por en- Loewenstein, a democracia defensiva dela difere
tender que o art. 43 do Regimento Interno do por ser mais ampla e por ter um viés menos po-
STF não fora recepcionado pela CRFB. O minis- lítico. Ambas, contudo, têm como característica
tro ainda considerou que as manifestações con- principal a necessidade de a democracia criar
trárias aos membros do STF estavam albergadas mecanismos excepcionais a fim de se defender
pela liberdade de expressão (PLENÁRIO…, de ataques autoritários. Trata-se, assim, do de-
2020). A Procuradoria-Geral da República, senvolvimento de uma teoria de autoproteção
inclusive, passou a defender a validade do in- ou autodefesa do regime democrático.
quérito, desde que garantida a participação do Deve-se ter em mente que a democracia é
Ministério Público e estabelecidas certas balizas uma construção permanente, sobretudo quando
(INQUÉRITO…, 2020). se trata de uma democracia tão recente quanto a
Ressalte-se que o presente artigo não pre- brasileira. Toda a sociedade e os três Poderes da
tende realizar qualquer análise de mérito ou de República devem estar atentos a ameaças antide-
validade do Inquérito no 4.781 ou do julgamento mocráticas e à defesa da ordem constitucional.
realizado pelo STF nos autos da ADPF no 572. Em caso de erosão da democracia e de hipertro-
Além de não se encontrar no escopo do artigo fia de algum dos Poderes, as demais instituições
tal exame, há dificuldades práticas para a rea- devem agir de forma firme e proporcional ao
lização de tal intento, uma vez que o Inquérito ataque sofrido. Desse modo, uma atitude que
no 4.781 tramita em segredo de justiça, e os não aparentava ser de relevante gravidade no
votos da ADPF no 572 ainda não tinham sido passado pode adquirir contornos diferentes
disponibilizados quando da finalização deste diante de uma situação de crise, como a atual.
trabalho. O que se pretende demonstrar com a Independentemente do viés político, das
apresentação desse julgado é a aplicação prática paixões partidárias e das naturais identifica-

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ções entre um ou outro perfil, as instituições devem ser respeitadas.
Deve-se ter em mente que a CRFB não é um obstáculo para ultrapassar
os momentos de tensão. Ao contrário, ela é o único caminho viável e
democrático para a superação da crise.

Sobre a autora
Tarsila Ribeiro Marques Fernandes é doutora em Direito pela Radboud University, Nijmegen,
Gelderland, Países Baixos; mestra em Direito Tributário pela Universidade Católica de
Brasília, Brasília, DF, Brasil; professora da pós-graduação do Instituto Brasiliense de Direito
Público, Brasília, DF, Brasil; procuradora federal, Brasília, DF, Brasil; assessora de ministro
do Supremo Tribunal Federal, Brasília, DF, Brasil.
E-mail: [email protected]

Como citar este artigo


(ABNT)
FERNANDES, Tarsila Ribeiro Marques. Democracia defensiva: origens, conceito e aplicação
prática. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 230, p. 133-147, abr./jun.
2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/ril_v58_n230_p133
(APA)
Fernandes, T. R. M. (2021). Democracia defensiva: origens, conceito e aplicação prática.
Revista de Informação Legislativa: RIL, 58(230), 133-147. Recuperado de https://www12.
senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/ril_v58_n230_p133

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Suspeição do juiz por relacionamento
pessoal ou relação de parentesco
com advogado no Direito alemão

ALEXANDRE TRAVESSONI GOMES TRIVISONNO


JÚLIO AGUIAR DE OLIVEIRA

Resumo: O artigo objetiva analisar o princípio da imparcialidade do


juiz no Direito brasileiro e no alemão, bem como sua concretização, no
segundo, em casos de relacionamento pessoal ou relação de parentesco
entre juiz e advogado. Trata-se, portanto, metodologicamente, de um
estudo de Direito Comparado. A análise abrange o conteúdo, a validade
nos sistemas jurídicos brasileiro e alemão, a correção prática geral e a clas-
sificação normativa do princípio da imparcialidade do juiz. Demonstra-se
que, do ponto de vista da moderna teoria dos princípios, o “princípio” da
imparcialidade do juiz deve ser classificado como uma regra, não como
princípio. Em seguida, são estudadas as medidas adotadas pelo Direito
alemão vigente para a efetivação do princípio da imparcialidade do juiz
nos casos em que existe relacionamento entre juiz e advogado. A análise
mostra que na Alemanha os meios processuais são suficientes para im-
plementar o princípio da imparcialidade do juiz.

Palavras-chave: Imparcialidade do juiz. Suspeição. Relacionamento pes-


soal entre juiz e advogado. Relação de parentesco entre juiz e advogado.

Challenging the judge on grounds of bias


by virtue of personal or family relationship
with the lawyer in German Law

Abstract: This article aims to analyse the principle of the impartiality of


the judge both in Brazilian and German legal systems and its application,
in German law, in cases of personal or family relationship between the
judge and the lawyer. Thus, it is, methodologically, an essay of Comparative
Law. The analysis comprises the content, the validity both in the Brazilian
and German legal systems, the practical correction and the normative
Recebido em 25/9/20 classification of the principle of the impartiality of the judge. It is shown
Aprovado em 26/10/20 that, from the standpoint of the modern theory of principles, the “principle”

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of the impartiality of the judge must be classified as a rule, and not as a
principle. After that, the means adopted by current German law in cases
in which there is a relationship between the judge and the lawyer are
studied. These means are, in Germany, enough to implement the principle
of the impartiality of the judge.

Keywords: Impartiality of the judge. Bias. Personal relationship between


judge and lawyer. Family relationship between judge and lawyer.

1 Introdução

Constitui objeto deste artigo apresentar e analisar o modo como o


Direito alemão trata os casos em que (i) o advogado que representa uma
das partes que pleiteia algo em juízo tem (i.a) relação de parentesco ou
(i.b) relacionamento pessoal com o juiz da causa, bem como os casos em
que (ii) o advogado que representa uma das partes, embora não tendo
diretamente relação de parentesco ou relacionamento pessoal com o juiz
da causa, atua em um escritório em que atua outro advogado com (ii.a) re-
lação de parentesco ou (ii.b) relacionamento pessoal com o juiz da causa.
Trata-se de casos como os seguintes: (i.a) o advogado da causa é marido,
filho, sobrinho, tio, primo, genro, cunhado etc. do juiz da causa; (i.b) o
advogado da causa é amigo pessoal1 do juiz da causa; (ii.a) o advogado da
causa trabalha ou é sócio em um escritório de advocacia em que trabalha
ou em que é sócio um advogado que é marido, filho, sobrinho, tio, primo,
genro, cunhado etc. do juiz da causa; (ii.b) o advogado da causa trabalha
ou é sócio em um escritório de advocacia em que trabalha ou em que é
sócio um advogado que é amigo pessoal do juiz da causa.
A regulamentação de tais questões é extremamente importante, pois
tem a finalidade de garantir a imparcialidade da Justiça. Quando o advo-
gado da causa mantém relacionamento pessoal ou relação de parentesco
com o juiz da causa, ou ainda quando um advogado que atua no mesmo
escritório em que atua o advogado da causa tem relacionamento pessoal
ou relação de parentesco com o juiz da causa, a imparcialidade do juiz é
colocada em xeque. O objetivo deste artigo é investigar como essa questão
é tratada no Direito alemão.

1
Ser o advogado da causa ou um advogado que atua no escritório do advogado da causa
inimigo do juiz da causa também se enquadraria no conceito geral “ter relacionamento
pessoal” com o juiz. Neste trabalho, não analisaremos, contudo, essa situação.

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Inicialmente, na seção 2, será abordado o como o Direito alemão regulamenta os casos
princípio da imparcialidade do juiz. Serão es- de suspeição do juiz por relação de parentes-
tudados seu conteúdo (seção 2.1), sua validade co e relacionamento pessoal com advogado. A
nos sistemas jurídicos brasileiro e alemão (seção resposta a essa pergunta está ligada ao conceito
2.2), sua correção prática geral (seção 2.3) e e à função do Direito Comparado, cujo estudo
sua classificação normativa (regra ou princípio, permite conhecer institutos do Direito de paí-
seção 2.4). Nas seções 3 e 4 serão investigadas as ses diferentes e compará-los, analisando seus
medidas adotadas pelo Direito alemão vigente acertos e desacertos, para possibilitar, assim,
para a efetivação do princípio da imparcialidade o aperfeiçoamento do Direito de modo geral.
do juiz nos casos em que existe relacionamento Tal estudo não se resume, naturalmente, à mera
pessoal ou relação de parentesco entre juiz e comparação entre textos legais, constituindo
advogado. Dois tipos de medidas serão estu- antes um exercício de compreensão do Direito a
dados: medidas processuais e medidas admi- ser comparado em sua prática cotidiana. Por isso,
nistrativas. No pós-guerra, o Direito alemão ele envolve não só a análise do texto legal, mas
passou a dispor, ao lado de normas referentes à sobretudo o Direito concreto, passando, pois,
suspeição do juiz (medidas processuais), que já pelo estudo da doutrina e da jurisprudência. A
existiam antes da guerra, também de medidas ideia do Direito Comparado2 não é a de que há
administrativas para garantir a imparcialidade um Direito melhor que outro, mas que com a
do funcionamento da Justiça, sobretudo no que comparação entre diversas tradições jurídicas
diz respeito ao relacionamento entre juízes e pode haver uma evolução do Direito em ge-
advogados. Tratava-se de impedimentos cons- ral.3 Neste artigo, será analisado o princípio da
tantes na Lei Federal dos Advogados (BRAO – imparcialidade do juiz nos Direitos brasileiro
Bundesrechtsanwaltsordnung), editada em 1959, e alemão, bem como a regulamentação de sua
que restringiam a possibilidade de atuação do concretização, no Direito alemão, em casos de
advogado em determinadas comarcas. Essas relacionamento pessoal ou relação familiar entre
medidas administrativas, hoje revogadas, serão juiz e advogado.
abordadas na seção 3. Na seção 4, será analisada
a suspeição do juiz nos processos civil e penal 2
Segundo Eberle (2009, p. 452, tradução nossa), a ideia
alemães, não só em seu teor abstrato (previsão essencial do Direito Comparado é comparar o Direito de um
legal), mas sobretudo em sua aplicação a casos de país com o Direito do outro, mas com razão ele acrescenta
que “não é suficiente simplesmente comparar palavras
relação de parentesco e relacionamento pessoal escritas em páginas. O Direito é parte de uma cultura. O
Direito ao mesmo tempo guia e é influenciado pela cultura
entre o advogado que atua em uma causa e o juiz de um país. Assim, devemos ir além do Direito formalmente
da causa, bem como a casos em que a relação de escrito no texto. É preciso escavar a estrutura que subjaz ao
Direito para melhor compreender o que o Direito realmente
parentesco ou o relacionamento pessoal existe é e como ele realmente funciona em uma sociedade”. No
não entre o juiz e o advogado da causa, mas original: “It is not enough simply to compare words on
the page. Law sits within a culture. Law both drives and is
entre o juiz da causa e um advogado que atua no influenced by the culture of the home country. So we must
escritório em que também atua o advogado da look beneath the law as written formally in text. We need
to excavate the underlying structure of law to understand
causa. Na seção 5 será realizada uma análise do better what the law really is and how it actually functions
within a society”.
material estudado nas seções 2, 3 e 4 e, após isso, 3
Segundo Eberle (2009, p. 486), o Direito Comparado
serão feitas algumas observações conclusivas. tem um papel essencial, que consiste na melhora do bem-
Poder-se-ia perguntar qual a utilidade, para -estar social e das ordens jurídicas nacionais, regionais e
internacional. Sobre o caráter crítico do Direito Comparado,
o Direito brasileiro e de outros países, de estudar ver Sinani e Shanto (2013, p. 25).

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2 O princípio da ser imparcial. Por outro lado, dizer ser o juiz
imparcialidade do juiz “neutro” pode ser uma referência a uma suposta
postura epistemológica em relação à atividade
O princípio da imparcialidade do juiz cons- do juiz; pode-se querer dizer que o juiz é ou
titui o fundamento imediato de regras que proí- deve ser capaz de conhecer fatos e normas sem
bem ao juiz de uma causa julgar o caso quando se “contaminar” por juízos de valor.
ele tem relação de parentesco ou relacionamento No primeiro sentido, ou seja, neutralidade
pessoal com o advogado que atua na causa ou como sinônimo de imparcialidade, é correto
com advogado que atua no mesmo escritório em afirmar que a neutralidade é requisito de um
que atua o advogado da causa. Assim, para me- processo justo. O uso de “neutralidade” para
lhor compreender o sentido das normas jurídicas referir-se à imparcialidade está presente tan-
que regulam esse tipo de situação, é necessário, to no Direito brasileiro quanto no alemão, no
ainda que de forma breve, abordar a norma qual às vezes se afirma que a imparcialidade
que as fundamenta. O estudo do princípio da (Unparteilichkeit) do juiz significa ser ele neu-
imparcialidade do juiz será realizado em quatro tro (neutral). Por outro lado, deve ficar clara a
subseções. Na subseção 2.1 será abordado seu completa impossibilidade de se pretender exigir
conteúdo, na subseção 2.2 será analisada sua do juiz algo como uma neutralidade no segundo
positivação nos Direitos brasileiro e alemão, na sentido, ou seja, uma neutralidade entendida
subseção 2.3 será investigado seu fundamento como postura epistemológica neutra, uma vez
e, por fim, na subseção 2.4 será questionado se que contra ela se pode apresentar a famosa obje-
o “princípio” da imparcialidade do juiz é de fato ção de que “ninguém é neutro”. O juiz não pode
um princípio. ser neutro, pois ele é um ser humano e, como
tal, emite juízos de valor, o que impossibilitaria
2.1 O Conteúdo do princípio uma postura de neutralidade. Como “aquilo que
da imparcialidade do juiz é impossível não pode ser exigido”, não faria
qualquer sentido exigir a “neutralidade” do juiz.
O princípio da imparcialidade do juiz de- Se, por um lado, é preciso concordar com a
termina que o juiz que decide a causa não deve objeção geral de que ninguém é neutro em um
tomar partido, não pode pender ou tender a uma sentido filosófico-axiológico – ou seja, ninguém
das partes. Ser imparcial não significa, contudo, pode deixar de ter certas visões de mundo a
ser “neutro” em sentido axiológico. Houve e partir das quais interpreta as coisas –, por ou-
ainda há, especialmente no âmbito da ciência tro lado, é preciso constatar que, quando se diz
e da teoria do Direito, alguma confusão entre que o juiz deve ser “neutro”, não se quer dizer
imparcialidade e neutralidade.4 Isso ocorre, em com isso que ele não deve emitir juízos de valor.
certa medida, porque o termo neutralidade pode Pretende-se geralmente dizer algo muito mais
ser usado como sinônimo de imparcialidade, simples e elementar: que o juiz não pode ser
mas também em sentido diverso. Assim, pode- parcial, no sentido de ser parte, tender a uma
-se dizer, por um lado, haver no processo três parte, ter interesse na causa. É essa ideia que
sujeitos: o autor, o réu e o “terceiro neutro”, o fundamenta normativamente o dever de impedir
juiz. Com isso se quer dizer que o juiz é ou deve que o juiz, em determinados casos, julgue uma
causa. Trata-se daqueles casos em que o juiz
4
Ver Martins (2001, p. 82). tem ou poderia ter interesse na causa, casos

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em que ele não é “imparcial”, pendendo para vocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou,
um dos lados. antes de decorridos três anos do afastamento do
cargo por aposentadoria ou exoneração” (art. 95,
2.2 A positivação do princípio parágrafo único, I a V) (BRASIL, [2020]).
da imparcialidade da justiça Essas normas constitucionais teriam como
escopo comum garantir que o juiz possa jul-
O princípio da imparcialidade do juiz está gar de forma independente, sem se submeter
previsto nos ordenamentos jurídicos positivos a pressões, sem pender a uma das partes. Em
de vários países e nos Direitos Comunitário e outros termos, elas visariam a garantir que o juiz
Internacional.5 Limitaremos nossa análise, nesse seja imparcial. Na Lei Orgânica da Magistratura
ponto, aos Direitos brasileiro e alemão. Nacional, o princípio da imparcialidade também
No Brasil, o princípio da imparcialidade não se encontra expressamente positivado, mas
do juiz não está expressamente previsto na normas semelhantes às normas constitucionais,
Constituição da República Federativa do Brasil conferindo garantias aos magistrados e vedando
de 1988 (CRFB). Contudo, ele seria, segundo determinadas condutas, também visariam ao
alguns, um princípio implícito na CRFB, ou objetivo comum de uma jurisdição imparcial.7
seja, um princípio que pode ser derivado de Se, por um lado, tanto na CRFB quanto na
um conjunto de outros princípios e regras cons- Lei Orgânica da Magistratura Nacional o prin-
titucionais que regulamentam a atividade do cípio da imparcialidade do juiz não foi previsto
juiz.6 Geralmente cita-se a vedação ao juízo ou de forma expressa, podendo ser contudo consi-
tribunal de exceção (art. 5o, XXXVII) e o prin- derado um princípio implícito, por outro lado,
cípio do juiz natural (art. 5o, LIII). Costuma-se no Código de Ética da Magistratura Nacional,
mencionar ainda, como prova de um princípio aprovado em 2008 pelo Conselho Nacional de
implícito da imparcialidade do juiz, as garantias Justiça, o princípio da imparcialidade do juiz
concedidas aos juízes e as vedações a sua atua- foi consagrado de forma expressa. O art. 1o, que
ção, previstas no art. 95 da CRFB. As garantias enumera os princípios que regem a atividade do
são a vitaliciedade (art. 95, I), a inamovibilida- magistrado, dispõe:
de (art. 95, II) e a irredutibilidade de subsídio
(art. 95, III) (BRASIL, [2020]). As vedações são Art. 1o O exercício da magistratura exige
“exercer, ainda que em disponibilidade, outro conduta compatível com os preceitos deste
Código e do Estatuto da Magistratura, nor-
cargo ou função”, “receber, a qualquer título
teando-se pelos princípios da independên-
ou pretexto, custas ou participação em proces- cia, da imparcialidade, do conhecimento e
so”, “dedicar-se à atividade político-partidária”, capacitação, da cortesia, da transparência,
“receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios do segredo profissional, da prudência, da
diligência, da integridade profissional e
ou contribuições de pessoas físicas, entidades
pessoal, da dignidade, da honra e do decoro
públicas ou privadas” e, por fim, “exercer a ad- (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA,
2008, grifo nosso).
5
Para a imparcialidade no Direito Comunitário, ver
Steinfatt (2012).
6
Segundo Bobbio (2010), princípios podem ser ex-
pressos ou não expressos (aqui denominados implícitos). 7
Ver, por exemplo, os arts. 25 a 34 (garantias) e 35 a 39
Princípios não expressos são, para o autor, “aqueles que (deveres, incluídas as vedações, que aparecem no art. 36) da
podem ser extraídos por abstração de normas específicas Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar
ou ao menos não muito gerais” (BOBBIO, 2010, p. 310). no 35, de 14 de março de 1979) (BRASIL, [1993]).

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E no Capítulo III, que regulamenta exclu- de exceção não são admitidos. Ninguém pode
sivamente o dever de imparcialidade, lê-se: ser privado do juiz legal da causa. (2) Cortes
para matérias específicas podem ser criadas
CAPÍTULO III IMPARCIALIDADE apenas por lei” (DEUTSCHLAND, [2020b],
o
Art. 8 O magistrado imparcial é aquele tradução nossa).9
que busca nas provas a verdade dos fatos, Além das previsões constitucionais men-
com objetividade e fundamento, mantendo cionadas acima, na Seção 4 (Abschnitt 4) da
ao longo de todo o processo uma distância
Lei Alemã dos Juízes (Deutsches Richtergesetz),
equivalente das partes, e evita todo o tipo de
comportamento que possa refletir favoritismo, prevê-se novamente a independência do juiz:
predisposição ou preconceito. “§ 25 Máxima. O juiz é independente, estan-
Art. 9o Ao magistrado, no desempenho de do sujeito somente à lei” (DEUTSCHLAND,
sua atividade, cumpre dispensar às partes [2019], tradução nossa).10
igualdade de tratamento, vedada qualquer A doutrina alemã entende, de modo geral,
espécie de injustificada discriminação. que essas normas fundamentam a existência,
Parágrafo único. Não se considera tratamen- no Direito alemão, de um princípio da impar-
to discriminatório injustificado: cialidade do juiz (VOLLKOMMER, 2001, p. 8).
I – a audiência concedida a apenas uma das Alguns chegam a adicionar, como fundamento,
partes ou seu advogado, contanto que se a máxima da igualdade, na medida em que um
assegure igual direito à parte contrária, caso
juiz parcial coloca em risco o tratamento igual
seja solicitado;
aos cidadãos (RIEDEL, 1980, p. 14). Portanto,
II – o tratamento diferenciado resultante de
embora não expressamente positivado, o prin-
lei (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA,
2008, grifo nosso). cípio da imparcialidade do juiz é considerado,
também na Alemanha, um princípio implícito
Na Alemanha, o princípio da imparcia- na Constituição, na medida em que não pode
lidade do juiz também é considerado juridi- haver independência do juiz se ele tem interesse
camente válido. Embora não expressamente na causa.
previsto na Lei Fundamental (a Constituição da
Alemanha), ele decorreria de algumas de suas 2.3 A correção do princípio
normas, como as do art. 97 (1) que dispõe sobre da imparcialidade do juiz
a independência do juiz: “Art. 97 (1) Os juízes
são independentes, estando sujeitos somente Em países como Brasil e Alemanha, em que
à lei” (DEUTSCHLAND, [2020b], tradução o princípio da imparcialidade do juiz ou da
nossa).8 jurisdição está positivado pelo ordenamento
Outras normas constitucionais que justifica- jurídico, não cabe dúvida sobre sua validade
riam a existência do princípio da imparcialidade jurídica. Assim, nesses Estados, o princípio da
do juiz no Direito alemão seriam as do art. 101, imparcialidade da jurisdição é princípio juridi-
(1) e (2), da Lei Fundamental, que tratam do
“juiz legal”, o que corresponde, na terminologia
9
No original: “Art 101 (1) Ausnahmegerichte sind
brasileira, ao juiz natural: “Art. 101 (1) Juízos unzulässig. Niemand darf seinem gesetzlichen Richter
entzogen werden. (2) Gerichte für besondere Sachgebiete
können nur durch Gesetz errichtet werden”.
8
No original: “Art 97 (1) Die Richter sind unabhängig 10
No original: Ҥ 25 Grundsatz. Der Richter ist
und nur dem Gesetze unterworfen”. unabhängig und nur dem Gesetz unterworfen”.

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camente válido. Contudo, a positivação não é suficiente para justificar
a correção prática de uma norma, ou seja, ela não é suficiente para
justificar por que ela é justa ou adequada. Essa justificação, no entanto,
pode ser oferecida em um nível analítico-filosófico.
Numa perspectiva analítico-filosófica, a imparcialidade fundamenta-se
na igualdade.11 O princípio da igualdade, por sua vez, é um dos mais
fundamentais elementos de qualquer teoria da justiça. Ele determina que
casos juridicamente iguais devem ser tratados de modo igual. É claro que
pode haver muita discussão sobre o que torna dois casos juridicamente
iguais ou não, justificando, assim, o tratamento igual ou desigual. Porém,
essa complexa questão filosófica, que é objeto de análise desde pelo menos
o Livro V da Ética a Nicômaco de Aristóteles,12 não está em jogo quando
se aborda a imparcialidade do juiz da causa em caso de relação com o
advogado da causa ou com advogado que atua em escritório em que atua
o advogado da causa, pois em geral não há dúvida de que decorrerá da
hipótese de o juiz ter relacionamento pessoal ou relação de parentesco
com advogado a possibilidade de uma influência não justificada em seu
julgamento, possibilidade que, por si só, isto é, independentemente de
sua verificação empírica, já é suficiente para inviabilizar sua atuação na
causa.13 Desse modo, a imparcialidade é um elemento imprescindível
em um julgamento comprometido com a justiça.

2.4 Princípio ou regra? Sobre a verdadeira classificação


do princípio da imparcialidade do juiz

Analisados o conteúdo, a positivação e a justificação do “princípio” da


imparcialidade do juiz, cabe agora perguntar: é ele de fato um princípio
ou seria ele uma regra? A resposta a essa pergunta depende, natural-
mente, do critério que se adota para se distinguir princípios e regras.
Na ciência do Direito, existem vários critérios para se distinguir
princípios e regras ou, de acordo com outra terminologia, princípios
e normas ou, em outros termos, normas que são princípios e normas
que não são princípios. Um dos critérios mais tradicionalmente usados
é a generalidade: princípios seriam as normas mais gerais do sistema e
regras (ou normas que não são princípios) seriam normas não tão gerais
quanto os princípios. Esse critério aparece em vários autores como,

11
Nesse sentido, ver Riedel (1980, p. 14).
12
Ver Aristóteles (1991).
13
Com isso o juiz tende a considerar com mais atenção os argumentos de apenas uma
das partes, perdendo a capacidade de se colocar no lugar da outra. Assim, o princípio da
reciprocidade e consequentemente o princípio da universalizabilidade, que determina que
as consequências de uma decisão devem poder ser aceitas por todos, ficam comprometidos
(ALEXY, 1996, p. 250-254).

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entre outros, Norberto Bobbio14 e Joseph Raz.15 Larenz (1979, p. 458)
afirma que princípios ético-jurídicos são critérios objetivos teleológicos
de interpretação, que se caracterizam por fornecer padrões de orientação
da normatização jurídica. Ainda segundo Larenz, como “pensamentos
jurídicos materiais”, eles são “expressões da ideia de direito”.16
Outro critério seria o caráter valorativo dos princípios. Princípios
seriam normas do sistema jurídico que possuem uma “alta carga valora-
tiva”, constituindo, assim, a positivação de valores morais. Esse critério foi
adotado por Canaris (1983, p. 50), que afirma que princípios cumprem o
papel de realizar a adequação valorativa e a unidade interna do Direito.
Com Ronald Dworkin, a distinção entre regras e princípios ganhou
importância, não só por ser a chave para caracterizar a concepção posi-
tivista em geral e mais especificamente de Hart como uma compreensão
inadequada do Direito, na medida em que ela não teria percebido que
o Direito é um conjunto de regras e de princípios (DWORKIN, 1977a,
p. 17-22),17 mas também por explorar algo que, embora já presente na
ciência do Direito, ainda não tinha sido sistematicamente estudado: a
caracterização de princípio jurídico com base em sua estrutura e em seu
comportamento quando do choque com outro princípio. Em síntese,
pode-se dizer que para Dworkin (1977a) há dois critérios diversos de
distinção entre princípios e regras: um critério lógico e um critério que,
com base em Raz (1972, p. 848-851), podemos denominar critério da fonte.
O critério lógico é um critério relacionado à estrutura do padrão
normativo. Segundo esse critério, princípios indicam apenas a direção de
uma decisão, enquanto regras determinam a decisão com maior exatidão.
Além disso, enquanto regras são aplicáveis no modo tudo-ou-nada, prin-
cípios não obrigam uma determinada decisão, sendo prima facie na visão
de Dworkin (1977a, p. 24). Isso significa que, quando regras se chocam,
a validade de uma implica a invalidade da outra, ou então uma cláusula
de exceção é inserida em uma das regras, de modo que as regras possam
ser compatibilizadas entre si (DWORKIN, 1977a, p. 24, 1977b, p. 71-80).
Segundo Dworkin (1977a, p. 26-27, tradução nossa), no caso de regras,
todas as exceções podem ser previstas, e “uma formulação de uma regra
que não contenha todas as exceções de sua aplicação não será considerada

14
Bobbio (2010, p. 309) afirma que princípios são normas “generalíssimas” do orde-
namento jurídico.
15
Raz (1972, p. 838-841) parece não adotar a generalidade como único critério, mas em
sua visão ela certamente desempenha um papel na caracterização de princípios, pois prin-
cípios são razões mais gerais que regras e incorporam valores e objetivos gerais no Direito.
16
Larenz (1979, p. 458) afirma ainda que princípios não são regras generalíssimas.
17
Essa tese de Dworkin não nos parece correta. Contudo, ela não será analisada em
detalhes aqui, pois isso nos desviaria do escopo deste trabalho. Para uma análise desse tema,
ver Oliveira (2009) e Trivisonno (2013).

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uma enunciação completa da regra”. No caso dos regras não são prima facie (ALEXY, 1979, p. 71).
princípios, a forma de solução de conflitos seria Além disso, Alexy (1979, p. 79-82) introduz uma
outra. Sendo prima facie, princípios admitem característica lógica para explicar o teorema da
exceções não previstas, continuando válidos colisão de Dworkin, a saber, a ideia de que prin-
mesmo quando não forem determinantes para cípios podem ser satisfeitos em graus variados,
a decisão particular do caso. Assim, o choque o que ele originalmente denominou dever ser
de princípios não seria resolvido na dimensão ideal, e mais tarde definiu como comandos de
da validade, mas antes na dimensão do peso otimização, ou seja, normas que exigem que
(dimension of weight). algo seja realizado na maior medida possível de
Segundo o critério da fonte, os princípios acordo com as circunstâncias fáticas e jurídicas
nem sempre são oriundos da legislação positiva do caso (ALEXY, 2010).
ou de decisões judiciais; eles têm sua origem em Fica claro no artigo que a ideia de que prin-
outras fontes, sobretudo a moral. cípios são comandos de otimização, defendida
A outra distinção a ser brevemente abordada por Alexy, não está presente em Dworkin, pois,
é a realizada por Robert Alexy, que elaborou embora afirme que conflitos de princípios sejam
sua distinção entre regras e princípios original- decididos na dimensão do peso, Dworkin não
mente em 1979, no artigo “Sobre o conceito de parece conceber, em sua obra, a existência de
princípio jurídico” (ALEXY, 2014) e no famoso normas que podem ser cumpridas em graus,
Capítulo 3 da Teoria dos direitos fundamentais, como faz Alexy. O conceito lógico de princípios
publicada em 1985 (ALEXY, 1994). Após isso, de Dworkin pode ser descrito mediante duas
ele desenvolveu e reformulou aspectos de sua características (que as regras não possuem):
teoria em inúmeros artigos a ela dedicados. eles são prima facie e não conclusivos. A pri-
Naquele artigo, Alexy (1979) parte da teoria meira característica significa que eles admitem
de Dworkin, procurando, contudo, estabele- exceções ao passo que a segunda significa que
cer as bases de uma teoria própria. Em virtude eles não obrigam uma certa decisão específi-
disso, as distinções de Alexy e de Dworkin têm ca, mas simplesmente indicam a direção geral
alguns pontos em comum, mas também pontos dessa decisão. Diferentemente disso, para Alexy
essencialmente distintos. Os pontos em comum (2010), regras também são prima facie, mas seu
são ressaltados pelo próprio Alexy (1979, p. 67- caráter prima facie é diferente do caráter prima
68), que afirma ser correta a “tese da separação facie dos princípios, pois estes são comandos
rigorosa” entre regras e princípios, defendida por que admitem cumprimento em graus, e isso é
Dworkin, segundo a qual a distinção entre esses o que essencialmente os diferencia das regras.
dois tipos de normas não é meramente gradual. No Capítulo 3 da Teoria dos direitos funda-
Aqui, Alexy está claramente criticando a adoção mentais, Alexy (1994) volta à distinção entre
do critério da generalidade como critério para regras e princípios, abordando ainda a solução
distinção entre regras e princípios, e se posi- das colisões entre princípios por meio da máxi-
cionando a favor de uma distinção qualitativa. ma da proporcionalidade. Alexy parte de uma
Além disso, ele aceita o que denomina “teorema análise dos critérios tradicionalmente usados
da colisão” de Dworkin, segundo o qual princí- para distinguir regras de princípios, sobretudo
pios funcionam de forma diferente das regras do clássico critério quantitativo da generali-
quando há um conflito, mas questiona o modelo dade, para então reafirmar que princípios são
de regras tudo-ou-nada de Dworkin, no qual comandos que exigem que algo seja realiza-

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do na máxima medida possível, observadas as ser sempre imparcial, em virtude do princípio
circunstâncias fáticas e jurídicas, ou seja, são da imparcialidade. Além disso, o princípio da
comandos de otimização; em contrapartida, imparcialidade não diz exatamente o que se deve
regras são comandos definitivos, ou seja, exigem fazer, ou seja, não contém disposições específicas
simplesmente que uma conduta seja pratica- sobre o que exatamente seria um juiz parcial e
da. Colisões entre princípios são solucionadas como impedir essa parcialidade.
pela máxima da proporcionalidade, por meio Quando se consideram princípios como cri-
de suas três máximas parciais: a máxima parcial térios objetivos teleológicos de interpretação
da adequação, a máxima parcial da necessidade que se caracterizam por fornecer padrões de
e a máxima parcial da proporcionalidade em orientação da normatização jurídica, expressan-
sentido estrito. As duas primeiras exigem que do a ideia de Direito, a avaliação é dúbia. Por
algo seja realizado na máxima medida possível um lado, o “princípio” da imparcialidade pode
relativamente às circunstâncias fáticas, ao pas- ser considerado um princípio que é expressão
so que a terceira exige que algo seja realizado da ideia de Direito, pois se funda na ideia de
na máxima medida possível relativamente às igualdade, que é essencial à ideia de Direito.
circunstâncias jurídicas (ALEXY, 1994, p. 75- Porém, por outro lado, ele não parece ser um
104). A atividade de ponderação, sobretudo critério objetivo teleológico de interpretação da
no plano da máxima da proporcionalidade em normatização jurídica, embora influencie a pro-
sentido estrito, significa atribuir peso ao grau dução normativa de outras regras. A dificuldade
da interferência a um princípio, à importância de se dizer se o “princípio” da imparcialidade
do cumprimento do outro, e então verificar qual do juiz é um princípio de acordo com o critério
deles é maior. de Larenz evidencia, em nosso entendimento, o
Não é possível, aqui, realizar uma análise caráter indeterminado da própria caracterização
mais detalhada tanto da teoria dos princípios de de Larenz.
Alexy quanto das outras teorias que estudam os Porém, quando se adotam os critérios de
princípios jurídicos. Contudo, para o fim que Dworkin e Alexy, o “princípio” da imparcialida-
pretendemos alcançar nesta seção – verificar de do juiz não parece de fato ser um princípio.
se e em que sentido o “princípio” da imparcia- Ele não é um princípio no sentido lógico de
lidade do juiz é um princípio –, é suficiente a já Dworkin, pois ele não é um padrão prima facie.
realizada descrição dessas teorias. Parece-nos que, em geral, as pessoas não só
Quando se adota o critério da generalidade, não estariam dispostas a admitir exceções não
o “princípio” da imparcialidade do juiz pode previstas ao “princípio” da imparcialidade do
de fato ser considerado um princípio, pois se juiz como, mais ainda, não estariam dispostas a
trata de uma norma geral em dois sentidos: ela admitir qualquer exceção a sua aplicação. A im-
é aplicável tanto a todos os casos em que a juris- parcialidade do juiz não só não admite exceções
dição é exercida (universalidade) quanto quando não previstas; ela não admite qualquer exceção.
não apresenta um comando de ação detalhado Assim, ela é uma regra no sentido de Dworkin.
(abstração). Assim, independentemente de o No sentido da teoria dos princípios de Alexy,
processo correr na primeira, na segunda ou o “princípio” da imparcialidade do juiz é também
na última instância, e independentemente de uma regra, pois se trata de uma norma que não
o processo dizer respeito a matéria de Direito pode ser cumprida em graus, podendo antes ser
Penal, Civil, Administrativo etc., o juiz deve cumprida ou descumprida. Isso significa que o

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“princípio” da imparcialidade do juiz não pode ser “ponderado”, pois a
ponderação só ocorre, na teoria de Alexy, entre princípios.
Em síntese, o “princípio” da imparcialidade do juiz, embora possa
ser considerado um princípio por ser uma norma geral, com conteúdo
valorativo e alta importância para o sistema, não é um princípio no sen-
tido das teorias de Dworkin e Alexy.18 Sendo uma regra no sentido dessas
teorias, ele não pode ser objeto de ponderação. Todavia, isso não significa
que ele não demande regras ainda mais especiais que contenham uma
determinação mais precisa dos casos de sua aplicação. Ele é uma regra,
mas é uma regra geral; e, como regra geral, é indeterminada. A determi-
nação ocorre no âmbito de regras mais específicas que regulamentam os
diferentes casos de violações a esse “princípio” da imparcialidade do juiz.
São desse tipo as regras referentes a casos em que juízes da causa mantêm
relacionamento pessoal ou têm relação de parentesco com o advogado da
causa ou com o advogado que atua no mesmo escritório em que atua o
advogado da causa. As duas próximas seções deste artigo serão dedicadas
ao estudo dessas regras especiais no Direito alemão.

3 Impedimentos ao exercício da advocacia no Direito


Administrativo alemão do pós-guerra

No passado havia no Direito Administrativo alemão impedimentos


genéricos de atuação de advogados tanto em virtude do exercício de fun-
ção pública quanto em virtude de relação de parentesco com o juiz. Esses
impedimentos não diziam respeito ao juiz de uma causa concreta; mais
que isso, constituem proibições genéricas de atuação em determinados
âmbitos da Justiça. Assim, não se tratava, no caso desses impedimentos,
de previsão do Direito Processual, mas antes de previsão de Direito
Administrativo – ou, se quisermos usar a terminologia adotada por
alguns, de previsão no âmbito do “Direito profissional dos advogados”
(Anwaltliches Berufsrecht).19
Essas proibições estavam previstas na Lei Federal dos Advogados
(BRAO – Bundesrechtsanwaltsordnung), editada em 1959 e que está em
vigor ainda hoje, mas com várias modificações. Elas apareciam no seu
§ 20, como motivos para se negar o registro (Versagung der Zulassung)
para advogar em determinada corte ou comarca, previsto no § 19. Os
dispositivos, que estiveram em vigor entre 1959 e 2001, determinavam:

18
Para evitar essa confusão, em vez de ser denominado princípio da imparcialidade, ele
poderia ser denominado máxima da imparcialidade ou, como faz Riedel (1980), postulado
da imparcialidade.
19
Ver Gaier, Wolf e Göcken (2020).

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§ 19 Requerimento de registro junto a uma corte
(1) O registro junto a uma corte é concedido mediante requerimento.
(2) A administração judiciária estadual decidirá sobre o Registro. Antes
da decisão deve ser ouvido o Diretor da Câmara dos Advogados, em cuja
área o candidato quer ser licenciado como advogado.
(3) O requerimento só pode ser rejeitado pelos motivos designados
nesta lei.
§ 20 Indeferimento do registro
(1) O registro junto à corte designada no requerimento deve ser, via de
regra, rejeitado:
1. quando o candidato, dentro dos últimos cinco anos, tenha sido con-
tratado como juiz ou servidor estável no âmbito da Justiça estadual junto
à qual ele quer obter o registro;
2. quando o cônjuge do candidato trabalha nessa corte, mesmo quando
o casamento não mais existe;
3. quando o candidato for ou tiver sido parente consanguíneo ou por
afinidade em linha reta de um juiz dessa corte e em linha colateral até o
terceiro grau no caso de parentes consanguíneos e até segundo grau no
caso de parentes por afinidade;
4. quando o candidato quiser obter o registro junto a uma corte superior
estadual sem ter antes atuado por cinco anos em uma corte estadual ou
em uma corte de primeira instância.
(2) O registro não pode ser negado em virtude de a corte designada no
requerimento não mais desejar conceder registro a novos advogados
(DEUTSCHLAND, 1959, p. 576, tradução nossa).20

Esses dispositivos, bastante restritivos quanto a relações de parentesco


entre o juiz de uma instância e o advogado que nela requer o registro,
foram revogados em 2001. Em seu lugar foram estabelecidos dispositivos
com restrições de outra natureza, que passaram a figurar no § 7:

20
No original: Ҥ 19 Antrag auf Zulassung bei einem Gericht (1) Die Zulassung bei einem
Gericht wird auf Antrag erteilt. (2) Über den Antrag entscheidet die Landesjustizverwaltung.
Vor der Entscheidung ist der Vorstand der Rechtsanwaltskammer, in deren Bezirk der
Bewerber als Rechtsanwalt zugelassen werden will, zu hören. (3) Ein Antrag darf nur
aus den in diesem Gesetz bezeichneten Gründen abgelehnt werden. § 20 Versagung der
Zulassung (1) Die Zulassung bei dem im Antrag bezeichneten Gericht soll in der Regel
versagt werden, 1. wenn der Bewerber innerhalb der letzten fünf Jahre in dem Bezirk des
Landgerichts, in dem er zugelassen werden will, als Richter oder Beamter auf Lebenszeit
angestellt war; 2. wenn der Ehegatte des Bewerbers an diesem Gericht tätig ist, auch wenn
die Ehe nicht mehr besteht; 3. wenn der Bewerber mit einem Richter dieses Gerichts in
gerader Linie verwandt oder verschwägert, in der Seitenlinie bis zum dritten Grad verwandt
oder bis zum zweiten Grad verschwägert ist oder war; 4. wenn der Bewerber bei einem
Oberlandesgericht zugelassen werden will, ohne daß er bereits fünf Jahre lang bei einem
Land- oder Amtsgericht als Rechtsanwalt tätig gewesen ist. (2) Die Zulassung darf nicht
deshalb versagt werden, weil bei dem im Antrag bezeichneten Gericht ein Bedürfnis für
die Zulassung weiterer Rechtsanwälte nicht besteht”.

160 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 149-174 abr./jun. 2021


§ 7 Indeferimento do registro
O registro como advogado deve ser rejeitado:
1. quando a pessoa que apresenta o requerimento tiver sido privada, por
decisão do Tribunal Federal Constitucional, de um direito fundamental;
2. quando a pessoa que apresenta o requerimento não possui, em decorrên-
cia de julgamento penal, a capacidade de investidura no serviço público;
3. quando a pessoa que apresenta o requerimento tiver sido excluída do
exercício da advocacia, por sentença transitada em julgado, e quando
ainda não tenham decorrido oito anos do trânsito em julgado da sentença,
observando-se ainda o item 5;
4. quando contra a pessoa que apresenta o requerimento tiver sido proferida
sentença transitada em julgado em processo de impedimento como juiz
ou em processo disciplinar para exclusão do serviço público;
5. quando a pessoa que apresenta o requerimento tenha sido culpada por
comportamento que se mostre indigno para o exercício da advocacia;
6. quando a pessoa que apresenta o requerimento lute, de forma punível
criminalmente, contra a ordem fundamental democrática referente à
liberdade;
7. quando a pessoa que apresenta o requerimento seja incapacitada,
de forma não meramente provisória, por motivos de saúde, de exercer
regularmente a profissão de advogado;
8. quando a pessoa que apresenta o requerimento exerce uma atividade
que não é compatível com a profissão de advogado, especialmente com
a posição do advogado como órgão independente da administração da
Justiça, ou que possa colocar em risco a confiança em sua independência;
9. quando a pessoa que apresenta o requerimento se encontra em falên-
cia patrimonial; a falência patrimonial será assumida quando tiver sido
aberto um processo de insolvência patrimonial sobre o patrimônio da
pessoa que apresenta o requerimento ou quando a pessoa que apresenta
o requerimento passar a constar em lista a ser realizada pela corte de
execução (§ 26 (2) da Lei de Insolvência, § 882b do Código de Processo
Civil) (DEUTSCHLAND, [2020a], tradução nossa).21

21
No original: Ҥ 7 Versagung der Zulassung. Die Zulassung zur Rechtsanwaltschaft
ist zu versagen: 1. wenn die antragstellende Person nach der Entscheidung des
Bundesverfassungsgerichts ein Grundrecht verwirkt hat; 2. wenn die antragstellende
Person infolge strafgerichtlicher Verurteilung die Fähigkeit zur Bekleidung öffentlicher
Ämter nicht besitzt; 3. wenn die antragstellende Person durch rechtskräftiges Urteil aus der
Rechtsanwaltschaft ausgeschlossen ist und seit Rechtskraft des Urteils noch nicht acht Jahre
verstrichen sind, Nummer 5 bleibt unberührt; 4. wenn gegen die antragstellende Person
im Verfahren über die Richteranklage auf Entlassung oder im Disziplinarverfahren auf
Entfernung aus dem Dienst in der Rechtspflege rechtskräftig erkannt worden ist; 5. wenn
die antragstellende Person sich eines Verhaltens schuldig gemacht hat, das sie unwürdig
erscheinen läßt, den Beruf eines Rechtsanwalts auszuüben; 6. wenn die antragstellende Person
die freiheitliche demokratische Grundordnung in strafbarer Weise bekämpft; 7. wenn die
antragstellende Person aus gesundheitlichen Gründen nicht nur vorübergehend unfähig
ist, den Beruf eines Rechtsanwalts ordnungsgemäß auszuüben; 8. wenn die antragstellende
Person eine Tätigkeit ausübt, die mit dem Beruf des Rechtsanwalts, insbesondere seiner
Stellung als unabhängiges Organ der Rechtspflege nicht vereinbar ist oder das Vertrauen

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 149-174 abr./jun. 2021 161


Percebe-se, portanto, que no Direito Administrativo alemão atualmente
em vigor não há qualquer restrição para o registro (e consequentemente
para a atuação) de advogado junto a uma corte de Justiça em que atua um
juiz com o qual ele ou alguém que atue no seu escritório tenha relação
de parentesco ou relacionamento pessoal. Foram revogadas as regras
da BRAO que apareciam no § 20 e que contemplavam esses casos de
relacionamento pessoal e relação de parentesco entre juiz e advogado.
As novas regras do § 7 contemplam, como vimos, situações de outra na-
tureza, que não dizem respeito ao parentesco entre advogado e juiz. No
Direito alemão atualmente vigente, as regras que impedem a atuação do
juiz nesses casos encontram-se no âmbito do Direito Processual. Essas
medidas processuais serão analisadas agora.

4 Suspeição do juiz nos Direitos Processuais Civil


e Penal alemães

4.1 Regulamentação legal geral

No Direito Processual alemão existem dois tipos de vedações à atuação


dos juízes no que diz respeito a casos em que eles possam eventualmente
ter interesse na causa: a exclusão por força de lei e a suspeição por parcia-
lidade. Ambas estão previstas tanto no Código de Processo Civil quanto
no Código de Processo Penal alemães.
No Código de Processo Civil alemão, essas regras encontram-se nos
§§ 41 e 42:

§ 41
Exclusão do Exercício da Função Jurisdicional
Um juiz está excluído do exercício da função jurisdicional por força de lei:
1. nos casos em que ele próprio é parte ou nos quais ele seja credor soli-
dário, devedor solidário ou devedor regressivo junto à parte;
2. nos casos de seu cônjuge, mesmo quando o casamento não exista mais;
2a. nos casos de seu companheiro, mesmo quando a união não mais existe;

in seine Unabhängigkeit gefährden kann; 9. wenn die antragstellende Person sich im


Vermögensverfall befindet; ein Vermögensverfall wird vermutet, wenn ein Insolvenzverfahren
über das Vermögen der antragstellenden Person eröffnet oder die antragstellende Person in
das vom Vollstreckungsgericht zu führende Verzeichnis (§ 26 Abs. 2 der Insolvenzordnung,
§ 882b der Zivilprozeßordnung) eingetragen ist; 10. wenn die antragstellende Person Richter,
Beamter, Berufssoldat oder Soldat auf Zeit ist, es sei denn, dass sie die ihr übertragenen
Aufgaben ehrenamtlich wahrnimmt oder dass ihre Rechte und Pflichten auf Grund der
§§ 5, 6, 8 und 36 des Abgeordnetengesetzes oder entsprechender Rechtsvorschriften ruhen”.

162 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 149-174 abr./jun. 2021


3. nos casos de uma pessoa com quem ele tem ou teve parentesco linear
por consanguinidade ou por afeição ou parentesco na linha colateral até
o terceiro grau por consanguinidade ou até o segundo grau por afinidade;
4. nos casos em que ele foi nomeado procurador ou assistente de uma
parte ou atue ou tenha atuado autorizado como representante legal de
uma parte;
5. nos casos em que ele tenha sido ouvido como testemunha ou perito;
6. nos casos em que, em instância anterior ou em processo arbitral, ele
tenha participado na prolação da decisão, desde que não se trate de
participação como juiz delegado ou requisitado;
7. em casos em que ele tiver atuado em uma instância em que o processo
teve excessiva duração, quando essa duração constitua a base do pedido
de reparação;
8. nos casos em que ele tiver atuado em um processo de mediação ou em
outro processo extrajudicial de resolução de conflitos.
§ 42
Recusa de um juiz
(1) Um juiz pode ser recusado tanto no caso em que ele estiver excluído
do exercício de sua função jurisdicional por força de lei quanto no caso
de suspeição de parcialidade.
(2) A recusa em virtude de suspeição por parcialidade ocorre quando
houver um motivo que seja apropriado para justificar desconfiança sobre
a imparcialidade de um juiz.
(3) O direito de recusa [do juiz] cabe a ambas as partes (DEUTSCHLAND,
[2020d], tradução nossa).22

22
No original: “§ 41 Ausschluss von der Ausübung des Richteramtes. Ein Richter
ist von der Ausübung des Richteramtes kraft Gesetzes ausgeschlossen: 1. in Sachen,
in denen er selbst Partei ist oder bei denen er zu einer Partei in dem Verhältnis eines
Mitberechtigten, Mitverpflichteten oder Regresspflichtigen steht; 2. in Sachen seines
Ehegatten, auch wenn die Ehe nicht mehr besteht; 2a. in Sachen seines Lebenspartners,
auch wenn die Lebenspartnerschaft nicht mehr besteht; 3. in Sachen einer Person, mit der
er in gerader Linie verwandt oder verschwägert, in der Seitenlinie bis zum dritten Grad
verwandt oder bis zum zweiten Grad verschwägert ist oder war; 4. in Sachen, in denen er als
Prozessbevollmächtigter oder Beistand einer Partei bestellt oder als gesetzlicher Vertreter einer
Partei aufzutreten berechtigt ist oder gewesen ist; 5. in Sachen, in denen er als Zeuge oder
Sachverständiger vernommen ist; 6. in Sachen, in denen er in einem früheren Rechtszug oder
im schiedsrichterlichen Verfahren bei dem Erlass der angefochtenen Entscheidung mitgewirkt
hat, sofern es sich nicht um die Tätigkeit eines beauftragten oder ersuchten Richters
handelt; 7. in Sachen wegen überlanger Gerichtsverfahren, wenn er in dem beanstandeten
Verfahren in einem Rechtszug mitgewirkt hat, auf dessen Dauer der Entschädigungsanspruch
gestützt wird; 8. in Sachen, in denen er an einem Mediationsverfahren oder einem anderen
Verfahren der außergerichtlichen Konfliktbeilegung mitgewirkt hat. § 42 Ablehnung eines
Richters (1) Ein Richter kann sowohl in den Fällen, in denen er von der Ausübung des
Richteramts kraft Gesetzes ausgeschlossen ist, als auch wegen Besorgnis der Befangenheit
abgelehnt werden. (2) Wegen Besorgnis der Befangenheit findet die Ablehnung statt, wenn
ein Grund vorliegt, der geeignet ist, Misstrauen gegen die Unparteilichkeit eines Richters
zu rechtfertigen. (3) Das Ablehnungsrecht steht in jedem Fall beiden Parteien zu”. O § 48,
não reproduzido literalmente aqui e que trata da “autorrecusa” do juiz, determina que o
juiz deve ser considerado suspeito, mesmo não havendo requerimento da parte, quando
ele revelar ter uma relação que justifique sua exclusão ou quando ele externar outro motivo
que justifique ser ele considerado excluído por força de lei.

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 149-174 abr./jun. 2021 163


Percebe-se, portanto, que a recusa é mais ampla que a exclusão, englo-
bando-a. Assim, o juiz pode ser recusado por estar excluído “por força de
lei” (§ 41 do Código de Processo Civil) ou por suspeição de parcialidade
(§ 42 do Código de Processo Civil). O Código de Processo Penal alemão
segue a mesma linha:

§ 22

Exclusão do exercício da função jurisdicional por força de lei

Um juiz está excluído do exercício da função jurisdicional por força de lei:

1. quando ele próprio foi vítima do ato criminoso;

2. quando ele é ou foi cônjuge, companheiro, tutor ou curador do acu-


sado ou da vítima;

3. quando ele tem ou teve parentesco linear por consanguinidade ou


por afeição na linha direta com a vítima ou com o acusado, ou paren-
tesco na linha colateral até o terceiro grau por consanguinidade ou até
o segundo grau por afinidade;

4. quando ele tiver atuado no caso como servidor da promotoria, policial,


advogado da vítima ou defensor;

5. quando ele tiver sido ouvido no caso como testemunha ou perito.

§ 23

Recusa de um juiz em virtude de participação na decisão impugnada

(1) Um juiz que tiver participado da prolação de uma decisão impugnada


por um meio jurídico está excluído, por força de lei, da participação da
decisão em uma instância superior.

(2) [1] Um juiz que tiver participado de uma decisão impugnada atra-
vés de requerimento por novo julgamento está excluído, por força de
lei, da participação em decisões no processo de novo julgamento. [2]
Se a decisão impugnada tiver sido tomada em uma instância superior,
também o juiz que participou da decisão original na instância inferior
está excluído. [3] As proposições 1 e 2 aplicam-se respectivamente para
a participação em decisões referentes à preparação de um processo de
novo julgamento.

§ 24

Recusa de um juiz; suspeição por parcialidade

(1) Um juiz pode ser recusado tanto no caso em que ele estiver excluído
do exercício de sua função jurisdicional por força de lei quanto no caso
de suspeição por parcialidade.

(2) A recusa em virtude de suspeição por parcialidade ocorre quando


houver um motivo que seja apropriado para justificar desconfiança
sobre a imparcialidade de um juiz.

164 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 149-174 abr./jun. 2021


(3) O direito de recusa [do juiz] cabe a ambas as partes (DEUTSCHLAND,
[2020c], tradução nossa).23

Assim, também o Código de Processo Penal distingue a exclusão “por


força de lei”, que aparece nos §§ 22 e 23, e a rejeição por “suspeição de
imparcialidade”, prevista no § 24.24
No caso da rejeição “por força de lei”, o motivo da rejeição está, como
indica a própria denominação da medida processual, previsto expres-
samente em lei. Trata-se, no Processo Civil, dos motivos previstos no
§ 41 do Código de Processo Civil, que, como vimos, englobam casos em
que o juiz é parte, tem relação de parentesco com a parte, foi procura-
dor da parte, atuou como perito, árbitro ou mediador, bem como casos
em que ele tiver participado da decisão de um processo que teve longa
duração. No Processo Penal, como também vimos, a rejeição por “força
de lei” aparece em dois parágrafos. O primeiro deles, o § 22 do Código
de Processo Penal, trata de situações em que o juiz foi vítima do crime,
tem ou teve relação de parentesco (ou de união estável) com o acusado
ou com a vítima, ou atuou no caso como servidor público, testemunha
ou perito. O segundo deles, o § 23, trata dos casos em que o juiz atuou
na prolação da decisão impugnada.
A rejeição por suspeição de imparcialidade engloba todos os outros
motivos não previstos em lei que possam, de algum modo, levar à suspeita
de imparcialidade do juiz. Como vimos, ela está prevista no § 42 do Código
de Processo Civil e no § 24 do Código de Processo Penal. Em ambos os

23
No original: “§ 22 Ausschließung von der Ausübung des Richteramtes kraft Gesetzes.
Ein Richter ist von der Ausübung des Richteramtes kraft Gesetzes ausgeschlossen, 1. wenn
er selbst durch die Straftat verletzt ist; 2. wenn er Ehegatte, Lebenspartner, Vormund oder
Betreuer des Beschuldigten oder des Verletzten ist oder gewesen ist; 3. wenn er mit dem
Beschuldigten oder mit dem Verletzten in gerader Linie verwandt oder verschwägert, in
der Seitenlinie bis zum dritten Grad verwandt oder bis zum zweiten Grad verschwägert ist
oder war; 4. wenn er in der Sache als Beamter der Staatsanwaltschaft, als Polizeibeamter, als
Anwalt des Verletzten oder als Verteidiger tätig gewesen ist; 5. wenn er in der Sache als Zeuge
oder Sachverständiger vernommen ist; § 23 Ausschließung eines Richters wegen Mitwirkung
an der angefochtenen Entscheidung (1) Ein Richter, der bei einer durch ein Rechtsmittel
angefochtenen Entscheidung mitgewirkt hat, ist von der Mitwirkung bei der Entscheidung in
einem höheren Rechtszug kraft Gesetzes ausgeschlossen. (2) Ein Richter, der bei einer durch
einen Antrag auf Wiederaufnahme des Verfahrens angefochtenen Entscheidung mitgewirkt
hat, ist von der Mitwirkung bei Entscheidungen im Wiederaufnahmeverfahren kraft Gesetzes
ausgeschlossen. Ist die angefochtene Entscheidung in einem höheren Rechtszug ergangen,
so ist auch der Richter ausgeschlossen, der an der ihr zugrunde liegenden Entscheidung
in einem unteren Rechtszug mitgewirkt hat. Die Sätze 1 und 2 gelten entsprechend für die
Mitwirkung bei Entscheidungen zur Vorbereitung eines Wiederaufnahmeverfahrens. § 24
Ablehnung eines Richters; Besorgnis der Befangenheit (1) Ein Richter kann sowohl in den
Fällen, in denen er von der Ausübung des Richteramtes kraft Gesetzes ausgeschlossen ist,
als auch wegen Besorgnis der Befangenheit abgelehnt werden. (2) Wegen Besorgnis der
Befangenheit findet die Ablehnung statt, wenn ein Grund vorliegt, der geeignet ist, Mißtrauen
gegen die Unparteilichkeit eines Richters zu rechtfertigen. (3) Das Ablehnungsrecht steht
der Staatsanwaltschaft, dem Privatkläger und dem Beschuldigten zu. Den zur Ablehnung
Berechtigten sind auf Verlangen die zur Mitwirkung bei der Entscheidung berufenen
Gerichtspersonen namhaft zu machen”.
24
A respeito dessa distinção, ver Zwiehoff (2013, p. 5).

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 149-174 abr./jun. 2021 165


casos, ela pode ser requerida por ambas as partes, não apontando a lei o
motivo concreto. Tanto no Processo Civil quanto no Processo Penal, a lei
determina apenas que o juiz será recusado quando houver “motivo que
seja apropriado para justificar desconfiança sobre a imparcialidade de um
juiz” (§ 42, Código de Processo Civil; § 24, Código de Processo Penal).
Essa previsão legal é consideravelmente abstrata, exigindo, quando
de sua aplicação, uma interpretação que avalie se o motivo alegado pela
parte constitui, de fato, “motivo que seja apropriado para justificar des-
confiança sobre a imparcialidade de um juiz”. O Tribunal Constitucional
Federal alemão já decidiu que, para se justificar a suspeição, não é preciso
provar que o juiz de fato agiu ou agirá de forma imparcial, bastando a
demonstração da aparência da parcialidade. Ou seja, para o Tribunal, o
juiz não precisa de fato ser parcial ou suspeito; se, após uma “avaliação
razoável” das circunstâncias, houver dúvidas sobre sua imparcialidade,
justifica-se a suspeição (DEUTSCHLAND, 2003).25 Essa orientação geral
ainda é, contudo, indeterminada. Assim, a fim de verificar se o fato de o
juiz da causa ter relacionamento pessoal ou relação de parentesco com
o advogado da causa ou com um advogado que atue no escritório do
advogado da causa ensejaria suspeição, é preciso analisar a doutrina e a
jurisprudência alemãs sobre a matéria. É o que passamos a fazer agora.

4.2 Relacionamento pessoal e relação de parentesco entre


advogado e juiz no Direito alemão

Como acabamos de ver, tanto no Código de Processo Civil quanto


no Código de Processo Penal alemães não existem normas específicas
impedindo que o juiz que tem relacionamento com advogado de uma das
partes ou com advogado que atua no escritório de uma das partes atue
como juiz da causa. Isso naturalmente não significa que tais vedações
não existam no ordenamento jurídico alemão. A fim de se verificar se e
em que medida elas existem, é preciso estudar a casuística referente ao
tema, que é o que passamos a fazer agora. Nossa análise será dividida
em quatro subseções, correspondentes aos seguintes casos: o juiz da
causa possui relação de parentesco com o advogado que representa uma
das partes (seção 4.2.1), o juiz da causa possui relacionamento pessoal
com o advogado que representa uma das partes (seção 4.2.2), o juiz da
causa possui relação de parentesco com um advogado que trabalha no
mesmo escritório em que trabalha o advogado que representa uma das

25
Essa diretriz do Tribunal vai ao encontro da ideia de que “a justiça não só precisa ser
realizada, mas também precisa ser percebida como realizada” (“justice must not only be
done: it must also be seen to be done”); a esse respeito, ver Kierzkowski (2016, p. 17-20).

166 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 149-174 abr./jun. 2021


partes (seção 4.2.3) e, por fim, o juiz da causa de Processo Civil e 24 do Código de Processo
possui relacionamento pessoal com um advo- Penal, que tratam da suspeição por parcialidade.
gado que trabalha no mesmo escritório em que Trata-se antes de concretização da norma geral,
trabalha o advogado que representa uma das o que demanda, naturalmente, interpretação. A
partes (seção 4.2.4). relação de parentesco entre juiz e advogado da
causa se encaixa no conceito geral de “motivo
4.2.1 Relação de parentesco entre o juiz da que seja apropriado para justificar desconfiança”,
causa e o advogado que representa uma das previsto nos §§ 42 do Código de Processo Civil
partes e 24 do Código de Processo Penal.
O fato de a jurisprudência alemã determi-
Há algumas decisões judiciais estaduais nar que há suspeição do juiz quando ele possui
tratando do impedimento do juiz em virtude relação de parentesco com advogado que tra-
de relação de parentesco com o advogado da balha em escritório no qual também trabalha
causa (MEINERT, 2015, p. 74), mas não de- o advogado da causa (como veremos na seção
cisões de tribunais superiores. Contudo, isso 4.2.3) indica que a relação de parentesco com o
não significa, em nosso entendimento, que a próprio advogado da causa, que de modo geral
questão não seja considerada importante no tende a constituir um vínculo mais próximo,
Direito alemão. Pelo contrário. A ausência de é também motivo suficiente para a suspeição.
decisões federais nesse sentido parece revelar
o caráter evidente da suspeição do juiz quando 4.2.2 Relacionamento pessoal entre o juiz
ele possui relação de parentesco com advogado da causa e o advogado que representa uma
da causa. Por um lado, a relação de parentesco das partes
entre juiz e advogado da causa não se encaixa
nas previsões dos §§ 41 do Código de Processo Existe relacionamento pessoal, entre outros
Civil e 22 do Código de Processo Penal, que casos, quando há amizade, relação amorosa,
tratam da recusa do juiz por força de lei. noivado, contato social próximo, mas também
Como ressalta Vollkommer (2001), há inimizade (MEINERT, 2015, p. 75). Quando se
uma decisão da Justiça Estadual de Schleswig- trata de relacionamento pessoal entre juiz e ad-
Holstein que considerou haver uma lacuna em vogado da causa, é preciso distinguir os casos em
casos como esse, ou seja, em caso de parentesco que o juiz conhece superficialmente o advogado
entre juiz e advogado. A Justiça de Schleswig- e os casos de relacionamento próximo, como
Holstein preencheu a suposta lacuna mediante amizade e relacionamento amoroso diverso
a aplicação, por analogia, de dispositivos da Lei da união estável (pois esta, de acordo com o
de Processo Administrativo.26 § 41, 2a, do Código de Processo Civil e o § 22,
Em nosso entendimento, não há lacuna, pois 2, do Código de Processo Penal, embora não
essa situação se enquadra nos §§ 42 do Código constitua vínculo de parentesco, é equiparada,
pelo Direito alemão, para fins de suspeição, ao
26
Os dispositivos aplicados por analogia foram o § 20 casamento, justificando a exclusão por força de
da Lei (Federal) de Processo Administrativo, que exclui o lei) (MEINERT, 2015, p. 76).27
servidor público da participação em processo administra-
tivo que trata de interesse de cônjuge e outros parentes, em
combinação com a Lei Estadual de Processo Administrativo
(ver LSG Schleswig, 05.03.1998 – L 5 S 2/98) (SCHLESWIG-
-HOLSTEIN, 1998). 27
No mesmo sentido, ver Riedel (1980, p. 92).

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 149-174 abr./jun. 2021 167


Nos casos de relacionamento próximo, como de 200 membros) é insuficiente para configurar
amizade, relacionamento amoroso e a ainda ser caso de suspeição.32
o advogado da causa advogado do próprio juiz
em outra causa, não há, segundo Meinert (2015, 4.2.3 Relação de parentesco entre o juiz da
p. 76), dúvida da existência da suspeição do juiz. causa e um advogado que trabalha no mesmo
A jurisprudência alemã majoritária também ca- escritório em que trabalha o advogado que
minha nesse sentido,28 mas há exceções: em 2011, representa uma das partes
a Justiça Estadual Social da Saxônia determinou
que um juiz que se tinha declarado suspeito por No caso descrito na subseção 4.2.1, ou seja,
ser amigo da família do advogado da causa não parentesco entre o juiz da causa e o advogado que
estava impedido.29 atua no processo, a imparcialidade do juiz parece
Por outro lado, nos casos em que o juiz co- ser mais evidente que no caso que se analisa
nhece superficialmente o advogado da causa, não nesta subseção, ou seja, relação de parentesco
há que se falar em suspeição (MEINERT, 2015, entre o juiz da causa e um advogado que trabalha
p. 77). Assim, por exemplo, o Tribunal Federal no mesmo escritório em que trabalha o advo-
decidiu que o mero fato de o juiz ser membro de gado da causa. Nesses casos poder-se-ia alegar
uma associação em que também o advogado da que a pessoa com quem o juiz possui relação
causa é membro não é suficiente para configurar de parentesco não pratica atos no processo em
sua suspeição.30 Segundo Meinert (2015), no questão e que, portanto, a suspeição seria me-
Direito alemão geralmente se considera que, ramente subjetiva. Contudo, a jurisprudência
quando a relação ocorre no âmbito de uma as- alemã entende que, em casos como esse, deve o
sociação com mais de 200 membros, não há um juiz ser recusado por suspeita de imparcialidade.
vínculo de proximidade suficiente para justificar O Tribunal Federal decidiu, em 2012, que um juiz
a suspeição. Por outro lado, quando ambos, juiz e pode ser recusado em virtude de suspeição de
advogado, são membros de uma associação com imparcialidade quando seu cônjuge atua como
pequeno número de membros (ou seja, menos de advogado no escritório que defende uma das
200), a tendência é considerar estar a suspeição partes (DEUTSCHLAND, 2012). Essa tendência
fundamentada.31 Há, porém, exceções: em alguns foi confirmada pelo Tribunal Federal em recente
casos a Justiça considerou que o mero fato de juiz decisão, proferida em 2018.33
e advogado serem membros de associações com
pequeno número de membros (ou seja, menos 4.2.4 Relacionamento pessoal entre o juiz da
causa e um advogado que trabalha no mesmo
escritório em que trabalha o advogado que
28
Por exemplo, uma Corte Superior de Munique de- representa uma das partes
cidiu que o fato de o advogado de uma das partes ter sido
padrinho de casamento do juiz como motivo suficiente para
a suspeição (OLG München, 08.02.2013 – 9 W 2250/12) Embora não sejam comuns decisões judiciais
(MÜNCHEN, 2013).
29
Ver LSG Sachsen, 27.09.2011 – L 7 SF 114/11 AB
individuais tratando de recusa de juiz quando ele
(SACHSEN, 2011). tem relacionamento pessoal com um advogado
30
No caso em questão, juiz e advogado da causa eram
membros da Associação de Proteção Jurídica do Comércio
e de Direitos Autorais (BGH, 11.12.2002 – VI ZA 8/02) 32
Ver OLG Schleswig, 17.10.1995 – 16 W 234/95
(DEUTSCHLAND, 2002). (SCHLESWIG-HOLSTEIN, 1995).
31
Ver BGH, 11.12.2002 – VI ZA 8/02 (DEUTSCHLAND, 33
Ver também BGH, 21.06.2018 – I ZB 58/17
2002). (DEUTSCHLAND, 2018).

168 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 149-174 abr./jun. 2021


que, embora não atue no processo que está sendo que não poder ser ponderada (por não ser um
dirigido pelo juiz, trabalha no mesmo escritório princípio), a regra da imparcialidade não pode
em que trabalha o advogado da causa, segundo deixar de ser aplicada. Não se admite abrir uma
Meinert (2015, p. 75) aplicam-se nesse caso as exceção à regra da imparcialidade em nome de
diretrizes analisadas na seção 4.2.2, que dizem um princípio que se choca com o princípio que
respeito à relação pessoal entre juiz e advogado a justifica (o princípio da igualdade). Assim,
da causa. Como vimos, quando há uma relação por exemplo, não se admite rejeitar o pedido
pessoal entre juiz e advogado da causa, tanto a de suspeição por imparcialidade de um juiz sob
doutrina quanto a jurisprudência alemãs con- a alegação de que a rejeição do pedido torna o
sideram haver motivo para suspeição do juiz. processo mais demorado.
Por outro lado, como também vimos, quando a A eficiência da prestação jurisdicional pode
relação for a de mero conhecimento, não há que ser considerada um princípio no sentido das
se falar em suspeição. teorias de Dworkin e Alexy, pois é um coman-
Portanto, quando o juiz mantém relação pes- do prima facie (Dworkin) ou um comando de
soal forte com um advogado que trabalhe no otimização (Alexy). A igualdade também pode
mesmo escritório em que trabalha o advogado ser considerada, nessas teorias e pelas mesmas
de uma das partes – sendo, por exemplo, dele razões, um princípio. O comando de que o juiz
amigo próximo ou namorado –, justifica-se a deve ser imparcial, seja ele explícito ou implí-
suspeição. Por outro lado, quando o juiz mera- cito, constitui uma regra que é o resultado de
mente “conhece” um advogado que trabalha no uma ponderação entre o princípio da igualda-
escritório onde trabalha o advogado que defende de e outros princípios (entre eles o princípio
uma das partes, não há que se falar em suspeição. da eficiência da prestação jurisdicional). Como
resultado de uma ponderação, ele não pode ser
ponderado. Como vimos, regras podem admitir
5 Conclusão exceções, mas a regra da imparcialidade não as
admite. Isso significa que, em todos os casos em
O “princípio” da imparcialidade do juiz, que o juiz puder ser considerado parcial, ele
consagrado no ordenamento jurídico alemão, não deve atuar.
exige que o juiz não tenha interesse na causa que Há muitos motivos que podem levar o juiz
julga. O comando normativo da imparcialidade a perder a imparcialidade necessária para um
é uma regra no sentido das teorias de Dworkin julgamento justo. Os motivos analisados neste
e Alexy, pois não constitui um comando prima artigo – relações de parentesco e relacionamen-
facie (princípio no sentido de Dworkin), nem um tos pessoais entre juiz e advogado – constituem
comando de otimização (princípio no sentido apenas alguns dentre esses vários motivos. A
de Alexy). Embora não possam ser pondera- análise realizada mostrou que o Direito alemão
das, de acordo com a teoria de Alexy, as regras adotava um meio administrativo para evitar a
admitem exceções que decorrem geralmente atuação dos juízes nesses casos. Trata-se das
da ponderação entre o princípio que justifica a vedações que constavam no § 20 da Lei Federal
regra e um princípio que com ela colide. O caso dos Advogados, as quais determinavam que o
da “regra da imparcialidade” é extremamente advogado não poderia sequer ser registrado como
interessante por constituir exemplo de uma re- advogado junto a uma corte (i) quando ele tivesse
gra que não admite exceções. Assim, mais do sido contratado como juiz ou servidor estável no

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âmbito da Justiça estadual junto à qual ele estava requerendo o registro,
(ii) quando seu cônjuge trabalhasse nessa corte, (iii) quando ele fosse ou
tivesse sido parente consanguíneo ou por afinidade em linha reta e em
linha colateral até o terceiro grau no caso de parentes consanguíneos e até
segundo grau no caso de parentes por afinidade de um juiz da corte junto
a qual ele estava requerendo o registro e, por fim, (iv) quando ele quisesse
obter o registro junto a uma corte superior estadual sem ter antes atuado por
cinco anos em uma corte estadual ou em uma corte de primeira instância.
As hipóteses (ii) e (iii), que se relacionam ao tema investigado neste artigo,
eram extremamente restritivas. Elas foram revogadas em 2001, mas isso
não significou que a questão deixou de ser regulamentada positivamente
pelo Direito alemão, passando assim a ser permitida. Os meios processuais,
que a rigor já existiam quando estava em vigor o § 20 da Lei Federal dos
Advogados, passaram, com a revogação desse dispositivo em 2001, a ser os
únicos meios existentes para efetivar a regra da imparcialidade em casos
de relação de parentesco ou relacionamento pessoal entre juiz e advogado.
Pode parecer, à primeira vista, que algo se perdeu em termos de pro-
teção. Na verdade, isso não ocorreu, pois a jurisprudência alemã, quando
da concretização das normas dos §§ 41 e 42 do Código de Processo Civil
e 22 a 24 do Código de Processo Penal, conseguiu estabelecer critérios
razoáveis que impedem a atuação de juízes que mantêm relacionamento
com advogado.
Assim, a revogação da vedação administrativa que existia até 2001 não
deve ser vista como enfraquecimento dos meios de proteção à imparciali-
dade do juiz, mas como uma medida que revela confiança na capacidade
de o judiciário alemão, através dos meios processuais, fazer valer a regra
da imparcialidade.

Sobre os autores
Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno é doutor e mestre em Filosofia do Direito pela
Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte,
MG, Brasil; professor do programa de pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil; professor titular de Teoria e Filosofia
do Direito da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil.
E-mail: [email protected]
Júlio Aguiar de Oliveira é doutor e mestre em Filosofia do Direito pela Faculdade de
Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil; professor
do programa de pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil; professor associado do Departamento de Direito da
Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, MG, Brasil.
E-mail: [email protected]

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Como citar este artigo
(ABNT)
TRIVISONNO, Alexandre Travessoni Gomes; OLIVEIRA, Júlio Aguiar de. Suspeição do
juiz por relacionamento pessoal ou relação de parentesco com advogado no Direito alemão.
Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 230, p. 149‑174, abr./jun.
2021. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/ril_v58_n230_p149

(APA)
Trivisonno, A. T. G., & Oliveira, J. A. de (2021). Suspeição do juiz por relacionamento pessoal
ou relação de parentesco com advogado no Direito alemão. Revista de Informação Legislativa:
RIL, 58(230), 149‑174. Recuperado de https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/
ril_v58_n230_p149

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besteht, dass der Prozessbevollmächtigte des Gegners auf die Ehefrau und diese wiederum
auf den Richter unzulässig Einfluss nimmt. Richterinnen und Richter: Richter Prof. Dr.
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Teoria constitucional do Direito do
Trabalho brasileiro na perspectiva de
Oliveira Vianna

VITOR SALINO DE MOURA EÇA


BRUNO GOMES BORGES DA FONSECA

Resumo: Com base no método dialético e na técnica de pesquisa do-


cumental indireta, este artigo analisa as principais ideias defendidas por
Oliveira Vianna e, com base nelas, uma teoria constitucional supostamente
adaptada à realidade brasileira, sem prejuízo da ausência de originalidade
e da presença de oscilações e fragilidades. O Estado teorizado por Oliveira
Vianna era unitário, centralizador, interventor, autoritário e corporati-
vista; rechaçava a federação, a maior autonomia dos estados federados, a
democracia pautada em partidos políticos e os movimentos comunistas
e socialistas; tal Estado seria sustentado por um pretenso regime demo-
crático corporativo (ou de classes) e cristão. Posteriormente, com base
nessa teoria constitucional defendida por Oliveira Vianna, compuseram-se
aqui categorias analíticas com o objetivo de manejá-las na condição de
alicerces constitutivos do Direito do Trabalho brasileiro, o que permitiu
uma resposta ao problema impulsionador desta pesquisa.

Palavras-chave: Teoria constitucional brasileira. Direito do Trabalho


brasileiro. História do Direito do Trabalho nacional.

Constitutional theory of Brazilian labor law from Oliveira


Vianna’s perspective

Abstract: This article, based on the dialectical method and the indirect
documentary research technique, analyzed the main ideas defended by
Oliveira Vianna and, from them, an alleged constitutional theory was
extracted supposedly adapted to the Brazilian reality, without prejudice
to the claim of absence of originality and the presence of oscillations
and weaknesses. The State, theorized by Oliveira Vianna, was unitary,
centralizing, intervening, authoritarian and corporatist. On the other hand,
Recebido em 7/7/20 it rejected the existence of the federation, the greater autonomy of the
Aprovado em 10/8/20 federated states, democracy based on political parties and communist and

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socialist movements. This state was supported by a so-called corporate (or
class) democratic and Christian regime. Later, based on this constitutional
theory defended by Oliveira Vianna, analytical categories were formed
whose objective was to manage them as the constitutive foundations
of Brazilian labor law, which allowed a response to the problem that is
driving this research.

Keywords: Brazilian constitutional theory. Brazilian labor law. History


of national labor law.

1 Introdução1

O Direito do Trabalho brasileiro aflorou no início do século passado.


Na sua origem, houve vários contributos formativos cujo descortino é
imprescindível para sua compreensão atual. Sem a reconstrução desse
alicerce constitutivo, ainda que parcial, a interpretação do estágio atual
parece deficiente. Há características marcantes em sua genealogia capazes
de justificar certos caminhos adotados, novas perspectivas e introduzir
propostas de rupturas.
Um dos grandes contributos para a formação do Direito do Trabalho
brasileiro foi a teoria defendida por Francisco José de Oliveira Vianna
(1883-1951). Certamente, não foi a única e aqui, explicitamente, surge
uma limitação nesta pesquisa. Seus escritos sociológicos e jurídicos e sua
participação efetiva na burocracia estatal e na elaboração de atos nor-
mativos constitucionais, sindicais e referentes à instituição da Justiça do
Trabalho no Brasil marcaram a institucionalização do Direito do Trabalho,
e muitos signos daquela época são úteis para a sua compreensão, bem
como de suas correntes contradições. Na perspectiva de Oliveira Vianna,
parece subentendida uma teoria constitucional que deu oportunidade à
estruturação e, em parte, ao surgimento do Direito do Trabalho brasileiro;
trouxe-lhe contornos fundamentais e impôs limites quase instransponíveis.
Esta pesquisa busca resposta ao seguinte problema: houve uma teo-
ria constitucional de Oliveira Vianna incrustada nas bases do Direito
do Trabalho brasileiro? O método de desenvolvimento da pesquisa é o
dialético: compreende a realidade em movimento como contraditória e
em permanente transformação (MARTINS; THEÓPHILO, 2009, p. 49).
Para a composição deste estudo, adotou-se a técnica de pesquisa indireta

1
Alguns trechos desta pesquisa, com adaptações, foram extraídos de Fonseca (2019).

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nas modalidades documental e bibliográfica, Segundo Vianna (1939), o fracasso da
ou seja, analisaram-se documentos públicos, Constituição imperial de 1824 e da republi-
estatísticas, fontes normativas e bibliografia cana de 1891 decorreu do afastamento dessas
tornada pública.2 construções da realidade nacional. O problema
O artigo objetiva, na condição de ficha de da democracia no Brasil, em sua visão, esta-
leitura, sumariar as principais ideias de Oliveira va mal posto, porque feito à maneira inglesa,
Vianna para a formação de uma teoria consti- francesa e americana, mas nunca à brasileira.
tucional, bem como enfrentar o problema da Em seu diagnóstico, na Europa e nos EUA todo
pesquisa ao examinar – em leitura contempo- o problema da democracia concentrara-se na
rânea, mas não anacrônica – suas contribuições organização do sistema eleitoral e na lisura do
para a formação de uma teoria constitucional voto, porquanto havia nessas realidades uma
abastecedora do Direito do Trabalho brasileiro. opinião popular poderosa, militante, organi-
zada, segura da sua força e dos seus direitos.
No Brasil, porém, o problema fundamental da
2 Principais ideias defendidas por organização democrática era distinto. Antes do
Oliveira Vianna e seu alinhamento com voto, caberia ao País enfrentar o dilema da orga-
uma teoria constitucional brasileira nização das fontes de opinião. Urgiria suprir pela
ação consciente do indivíduo e do Estado aquilo
A teoria de Oliveira Vianna pretende respon- que a evolução histórica ainda não concedera:
der à questão de como seria possível construir estrutura, organização e consciência coletiva.
e organizar o Estado brasileiro, o que exigiria O voto no Brasil somente ganharia relevância
necessariamente a organização do povo e de sua quando a opinião se organizasse (VIANNA,
consciência coletiva, bem como o repúdio ao 1939, p. 13-15). Ademais, o sufrágio universal,
individualismo, com sua integração no grupo conforme exposto por Alberto Torres e assumido
social. Duas de suas principais ideias, presentes por Oliveira Vianna, era apenas um dos meios
em quase todas as suas obras, aludem à unidade de revelação do sentido popular. Seria um erro
e à centralização do Estado como meios para imputar ao povo responsabilidade pelos equí-
organizar a nação e, ao mesmo tempo, rechaçar vocos e esperar dele a iniciativa por reformas
a desarticulação, a fragmentação e a falsa noção e movimentos reparadores (VIANNA, 1930,
de liberdade (VIANNA, 1974, p. 7-13). p. 15-16).
Talvez o grande diferencial de sua aborda- Vianna (1939, p. 9-10) critica os idealistas
gem, ao menos no plano teórico, seja realizar ao conceberem uma Constituição inadequada
essa análise com base na realidade do povo para um povo novo, ainda em formação, cujas
brasileiro, em proposta mais concreta e menos classes sociais, mesmo as mais elevadas, não
abstrata (VIANNA, 1933, p. 29-31). De diversas tiveram tempo histórico para adquirir uma se-
maneiras, seus textos buscaram descortinar a quer mediana educação política, e em um país
realidade brasileira e assentá-la em teorizações dominado pela política de clã, onde havia regiões
capazes de moldá-la e modificá-la, com o pro- inteiras talhadas ainda por sanguinolentas lutas
pósito de permitir o desenvolvimento nacional. de família, com grupos partidários organizados
sob forma de bandos que se entrechocavam,
não por ideias, mas por ódios personalíssimos
2
Com base em classificação exposta por Marconi e
Lakatos (2010, p. 48-57). e rivalidades locais de mandonismo.

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Ao criticar o idealismo constitucional, Contudo, urgia criar órgãos de expressão dos
Oliveira Vianna aborda dois tipos idealistas: interesses dos grupos e da vontade geral, isto
(a) o idealismo utópico fundado em todo sis- é, um novo modo de participação do povo nos
tema doutrinário e/ou conjunto de aspirações destinos do Estado. Segundo Oliveira Vianna,
políticas em íntimo desacordo com as condições duas soluções apresentavam-se como possíveis.
reais e orgânicas da sociedade que pretendera A primeira correspondia à instituição de parti-
reger e dirigir por desconsiderar os dados da do único, ao passo que a segunda implicaria a
experiência; e (b) o idealismo orgânico cuja criação de fontes de opinião pelo chamado às
fecundidade decorre da evolução orgânica da classes organizadas e aos seus órgãos represen-
sociedade e materializa visões antecipadas de tativos, com base em novas técnicas de revelação
uma evolução cultural. É, na essência, a mesma da vontade geral (VIANNA, 1939, p. 14-202).
definição de idealismo fundado na experiência Esta segunda maneira admitiria a participação
por ser orientado pela observação do povo e do política de pessoas não integrantes da classe
meio (VIANNA, 1939, p. 10-12). política. Os atos normativos deveriam ser feitos
Na visão de Vianna (1939), o Brasil apenas pela classe governante juntamente com as de-
praticava o idealismo utópico e, por essa razão, mais classes participantes no Estado por meio
desde a independência fracassara na realização de corporações. O povo deixaria de ser o povo
de uma definitiva organização social e política abstrato para ser representado pelo conjunto de
de seu povo. As causas desse idealismo utópico suas classes sociais (VIANNA, 1930, p. 154-174).
no Brasil foram diversas, mas se concentravam A pretensa democracia desenhada para o
especialmente no sistema educacional pautado Brasil por Oliveira Vianna repele a adoção do
no ensino religioso, na formação em universida- partido único, por materializar uma pequena
des fora do País e na coincidência histórica entre minoria da população, uma elite de indivíduos
a fase da nossa organização política e o grande voltados, supostamente ou não, à causa coleti-
movimento de reivindicação democrática, que va, ao interesse do País. Ao partido único, de
renovou por inteiro os fundamentos políticos antemão, faltaria representatividade de toda a
do Velho Mundo e influenciou nossa maneira opinião pública, por inexistirem na psicologia
organizacional (VIANNA, 1939, p. 13-20). coletiva do povo brasileiro condições para a
Na síntese de Oliveira Vianna, as democra- construção de mística viva e orgânica capaz
cias contemporâneas estavam classificadas em de caminhar para um objetivo preciso, como
dois grupos: (a) democracias de opinião organi- o nacionalismo imperialista dos italianos de
zada; (b) democracias sem opinião organizada, Mussolini ou o nacionalismo racista dos alemães
de opinião infusa, inorgânica ou inarticulada. de Hitler. De acordo com Oliveira Vianna, esse
Os ingleses e os norte-americanos pertenciam contexto nascera das circunstâncias dramáticas
ao primeiro grupo, e os brasileiros, ao segundo vividas pela Itália e pela Alemanha, e não foram
(VIANNA, 1939, p. 14-15). fruto da vontade dos homens que as encarnaram.
Assim, um dos grandes problemas da orga- Em última análise, no Brasil o partido único
nização política nacional estava em fazer evo- tornar-se-ia oligarquia única (VIANNA, 1939,
luir a nossa democracia de sua condição atual p. 202-204).
para uma democracia de opinião organizada. Para Vianna (1939), houve erro histórico
Teoricamente, numa democracia os partidos em nossa organização política ao amoldar os
seriam fontes legítimas da vontade do povo. partidos políticos aos das grandes nações demo-

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cráticas (Inglaterra e Estados Unidos). Nesses corporações evidenciava a falha na crença da
países, verdadeiramente democráticos, haveria competência onisciente do Parlamento e na sa-
programas reais e realizáveis. Nessas agremia- bedoria infinita e inquestionável dos homens de
ções, obviamente, surgiam ambições pessoais; Estado (VIANNA, 1930, p. 193). Dessa maneira,
todavia, eles não se confundiam com os nossos. acabar-se-ia com intermediários entre povo e
Pautados muitas vezes pelos interesses privados, governo, e a vontade geral revelar-se-ia pela
concomitantemente expressavam aspirações organização associativa. Para Vianna (1974),
coletivas decorrentes da opinião popular. Essa o século XX seria o do corporativismo sindi-
constatação explicaria a sua inclusão, naqueles cal e isso seria potencializado com a vitória da
países, entre as forças que deveriam concor- democracia no pós-guerra, por não serem es-
rer e colaborar para a constituição dos órgãos sas agremiações ontologicamente instituições
dos poderes públicos. No Brasil, a situação era autoritárias e existirem diversos modos de se
distinta, porquanto nunca representaram inte- fazer o corporativismo, inclusive sob a forma
resses coletivos (VIANNA, 1939, p. 181-182). democrática. Haveria, assim, o triunfo do sin-
A criação dessas agremiações políticas somente dicalismo de aproximação e colaboração com o
deveria ocorrer após a organização do povo e Estado contra o sindicalismo de abstenção ou de
das classes sociais. Além disso, a capacidade luta contra o Estado (VIANNA, 1974, p. 86-89).
política do povo brasileiro era posta em xeque A democracia, especialmente a partir da
por Oliveira Vianna: faltar-nos-ia a qualidade Revolução Francesa, seria do tipo individualista.
de animal político presente nos anglo-saxões. Haveria fobia quanto à existência do grupo e,
Estávamos aqui ainda na fase do patriotismo consequentemente, contra o sistema sindical
tribal (VIANNA, 1930, p. 37-122). e corporativo. Para Vianna (1974, p. 70-74), a
Nesse contexto, Vianna (1951, p. 160-165) comuna de Paris, o desenvolvimento das orga-
defendeu um modelo de democracia denomi- nizações sindicais e das sociedades anônimas, a
nado democracia de classes ou corporativa (e Revolução Russa (1917), o fascismo (1922) e o
não de partidos) e cristã (e não social). Seria nazismo (1933) foram, cada uma à sua maneira,
uma alternativa entre o regime parlamentar reações anti-individualistas e etapas da evolu-
europeu e o regime presidencialista americano ção do pensamento corporativista. O Estado
e, forçosamente, a seu juízo, respeitaria as pecu- corporativo, porém, seria unitário, autoritário
liaridades nacionais (VIANNA, 1930, p. 35-36). e centralizador, como uma entidade imanente
A democracia agregada pelo adjetivo classista ou à sociedade e não transcendente a ela. Nesse
corporativa consubstanciava-se na participação Estado, tudo tenderia à integração, à coesão, à
popular pela integração do povo nas corporações unificação (VIANNA, 1991, p. 154-155).
(na expressão de Oliveira Vianna, estas seriam O predicado cristão associado à democra-
as fontes democráticas), o que a diferenciava cia, por sua vez, decorre da tentativa de ana-
3

da participação mediada pelos partidos po- lisar propostas religiosas com cientificidade.
líticos. Nesse rol corporativo, eram incluídos Há defesa explícita da doutrina social da igreja
conselhos técnicos, conselhos de classe, repre- católica. Oliveira Vianna, contudo, a todo ins-
sentações classistas e, sobretudo, associações tante ressalta a neutralidade e a objetividade de
sindicais profissionais e patronais, cujo papel
seria consultivo, normativo e de julgamento 3
A defesa da democracia cristã encontra-se em Vianna
de determinadas questões. A inserção dessas (1951, p. 165-179).

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sua análise, com afastamento da religiosidade volvimento requereria pequenos ajustes, sem
e da crença,4 para se pautar no que havia de grandes rupturas.5
mais adequado à realidade nacional. Adepta Além disso, Oliveira Vianna não via na
do cristianismo, a teoria oliveiriana pregava a realidade brasileira o antagonismo de classes
solidariedade, a tranquilidade, a paz social e o nem mesmo um regime capitalista em virtu-
espírito de organização. Segundo essa concep- de do remoto processo de industrialização do
ção, as organizações corporativas não seriam País. Com grande extensão territorial e baixa
obras do fascismo ou do nazismo, mas do pen- densidade demográfica à época, o Brasil era
samento católico (VIANNA, 1930, p. 88-89). eminentemente rural e pré-capitalista. Em sua
Refutava, por outro lado, as ideias socialistas e visão, aqui inexistia mentalidade de uma bur-
comunistas, até porque o comunismo implicaria guesia capitalista e um proletariado como classe.
rompimento com a igreja católica e sua doutrina. Faltavam investimentos de capital estrangeiro,
Para Vianna (1951, p. 167-175), o catolicismo mão de obra, produção em massa e mercado
seria a doutrina social do povo brasileiro, pois consumidor. Em seu diagnóstico, na maioria das
o espírito cristão estaria na sua gênese. A luta regiões, o País encontrava-se em situação distinta
de classe, diferentemente, exaltaria o espírito da dos países liberais que experimentavam um
individualista, belicoso, agressivo e destrutivo “supercapitalismo” (VIANNA, 1988a, p. 23-27,
do ser humano (VIANNA, 1930, p. 15-21). 1988b, p. 15-121).
Marx e Engels (2008, p. 91) concebiam os O combate à miséria, para Vianna (1974,
conflitos históricos com mais naturalidade na p. 91-92), tinha limites. Seu otimismo não admi-
contradição entre as forças produtivas e o modo tia acreditar no fim da miséria, por sê-la natural
das trocas. A alternativa viável na obra mar- e inevitável, embora, quase contraditoriamente,
xiana seria o processo revolucionário com o sustentasse que no Brasil havia bens em excesso
desvanecimento do Estado, da sociedade civil para distribuição a todos. Muitas dessas ideias
e da divisão em classes sociais. Vianna (1951, esposadas por Vianna (1951, p. 11-173) encon-
p. 11-64) compreendeu a tomada de poder por traram eco na doutrina da igreja católica6, que
Getúlio Vargas em 1930 como típica revolução condenava a opressão do trabalhador e combatia
iniciada em 1922, com o propósito de promover as teorias comunistas e socialistas. Esse dogma
uma reforma social moderada, sem ímpetos. O religioso naturalizava a desigualdade social, pro-
movimento revolucionário de 1930, segundo clamava a propriedade como direito natural e
ele, antecipou-se aos efeitos maléficos que o acreditava na interdependência entre capital e
capitalismo, então incipiente no Brasil, geraria trabalho, e na conciliação como solução para
nas ordens econômica e social brasileiras. Assim, eventuais conflitos (LEÃO XIII, 2005, p. 10-22).
com a política social decorrente da Revolução Com a democracia corporativa e cristã,
de 1930, houve um ato preventivo ao confli- Oliveira Vianna advogava o primado do Poder
to entre capital e trabalho (VIANNA, 1988b, Executivo (sistema corporativo-autoritário-uni-
p. 121-123). Aos sindicatos, nessa linha, não
caberia ser de resistência e/ou revolucionários,
5
Segundo Vianna (1974, p. 75), a organização corpo-
mas sim colaboradores do Estado e do processo rativa brasileira deveria ser realizada por etapas e paula-
evolutivo do povo. A partir de então, o desen- tinamente.
6
Oliveira Vianna, quanto à sua proposta de democracia
cristã, expressamente adere ao manifesto dos bispos e às
4
Vianna (1951, p. 168-178) declarou que era católico. encíclicas papais.

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tário-centralizador). Reconhecia que o regime governamental instituído
pela Constituição de 1937 (república democrática e representativa residente
na soberania do povo) era similar aos regimes republicanos anteriores.
Entretanto, o que distinguia o regime de 1937 – e essa ideia, de certa
forma, persiste com a Constituição de 1946 – dos regimes anteriores
(Constituições de 1891 e 1934) era que, na distribuição da competência
privativa aos diversos órgãos da soberania, coube ao chefe da nação poder
maior do que o concedido pelas Constituições precedentes. Reagira dessa
maneira contra a preponderância do Parlamento, cujo papel, na visão de
Vianna (1939), se tornara um óbice ao funcionamento da Administração
Pública, dada sua ineficiência, seu espírito fragmentador, sua ausência de
preocupação com o interesse coletivo e por representar o clã majoritário
nos partidos políticos, e não o povo. A maior centralidade do Poder
Executivo também contribuiria para evitar movimentos separatistas no
País, e esse ponto era considerado como particularidade do Brasil, em
razão da extensão do território e da diversidade cultural do povo. Em
virtude da ação das máquinas partidárias, detentoras do governo de certos
Estados federados mais ricos, estes se tinham armado poderosa e perigo-
samente com milícias policiais, com um poder agressivo comparável ao
do Exército, e cabia ao poder central, agora com mais força, tolher esse
avanço (VIANNA, 1939, p. 121-261).
Esse tipo democrático, segundo Vianna (1974), seria capaz de organizar
o Brasil, o país da falta de solidariedade e de espírito associativo. As noções
de solidariedade, sobretudo profissional, e integração social encontravam
partidários nos moderados (corporativismo) e nos extremados (totalita-
rismo) (VIANNA, 1974, p. 14). A criação de agremiações sindicais tanto
de trabalhadores quanto de empresários seria imprescindível na formação
desse mote de união e caberia aos indivíduos se subordinarem ao interesse
público. Depois dessa organização das profissões, haveria possibilidade
de elas se organizarem politicamente (VIANNA, 1939, p. 260-261).
Por outro lado, a maior centralização política com o primado do Poder
Executivo diminuiria a descentralização política decorrente do federalismo
e da autonomia dos Estados, cujas consequências eram o impedimento
da unidade nacional e da formação de uma nação. A introdução de um
sistema federativo num território de larga extensão geográfica como o
do Brasil era um incentivo à desagregação. Por fim, para alcançar esse
intento, descaberia reconhecer quaisquer direitos dos Estados em face
da União (VIANNA, 1991, p. 203-204).
Oliveira Vianna também se apresentava como antiformalista,7 contrá-
rio à interpretação literal, ao direito-lei e ao direito autossuficiente; e, em

7
Sobre essa conclusão, ver Santos (2010, p. 286-287).

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contrapartida, favorável ao direito-costume, ao direito do povo-massa, à
discricionariedade e ao pluralismo jurídico (de fontes). Há, nesse ponto,
a relativização do princípio da separação dos Poderes (VIANNA, 1938,
p. 40-56). O Direito, na teorização de Vianna (1987, p. 15-28), afastar-se-ia
de interpretações literais e incompatíveis com a realidade e, como alterna-
tiva viável à organização nacional, apreciava o realismo norte-americano
divulgado por Holmes e Pond. A hermenêutica jurídica, em sua visão,
somente seria adequada desde que congruente com a realidade do País,
e isso se daria com a adoção do método sociológico e uma exegese cons-
trutivista, diferentemente do método clássico de interpretação pautado
na linha lógico-gramatical (VIANNA, 1938, p. 11-20).
Neste sentido, citava como exemplo a política de intervenção dos EUA
na ordem econômica e social com o New Deal do presidente Roosevelt.
Implementada entre 1933 e 1937, esse conjunto de medidas teve o escopo
de reverter a crise de 1929 e amparar as pessoas prejudicadas pela Grande
Depressão. Num primeiro momento, a Suprema Corte norte-americana
julgou-a inconstitucional. Posteriormente, com as substituições de juí-
zes no Tribunal e uma interpretação adequada à realidade, a medida foi
considerada constitucional (VIANNA, 1991, p. 149-174). Na visão de
Oliveira Vianna, essa matriz interpretativa deveria ser aplicada no Brasil,
sob pena de impedir a organização e o desenvolvimento do País.
O Estado idealizado por Oliveira Vianna, até pela situação histórica
do momento, era interventor. Almejava organizar a economia, conceder
direitos aos cidadãos e assistir os incapazes socialmente. Era também um
Estado pacificador, conciliador, e suas decisões tentavam colocar-se como
solução intermediária, por ser uma instância de consenso e refratária ao
conflito. Esse Estado, cujas promessas eram a ampla participação política
pela integração do povo8 nas corporações e desprezo às decisões tomadas
por leigos, ressentia-se, porém, da formação de uma nova elite, responsável
por dirigi-lo, cujo requisito era apenas estar preparada para organizar o
País. Com o fornecimento de educação, ao Estado caberia formar essa
nova elite, e nesse governo de elites não haveria quaisquer ranços anti-
democráticos (VIANNA, 1951, p. 147-160) em razão da sua hibridez e
liberdade de integração. Oliveira Vianna acreditava na possibilidade de
certo determinismo da evolução social e política, desde que houvesse um
direcionamento pelo Estado, apesar da “limitação da raça” de um povo,
cuja formação não era totalmente irrelevante nesse caminho.9

8
Antes de 1930, o povo estaria ausente do Estado. A representação política resumia-se
à representação por partidos. A grande obra da Revolução de 1930 teria sido introduzir as
forças vivas do povo na estrutura estatal (VIANNA, 1951, p. 88-91).
9
A questão da raça foi abordada por Oliveira Vianna, com mais profundidade, em pelo
menos duas obras; ver Vianna (1933, 1934). No prefácio da 2a edição da primeira obra, de

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Diante desse plano estrutural esposado por Oliveira Vianna com vistas
à construção e à organização da nação brasileira, independentemente
da originalidade de suas ideias e de oscilações presentes em suas obras,
parece possível o exercício de extrair de sua proposta uma subjacente
teoria constitucional, cuja matriz seria de um Estado interventor, com
uma organização político-econômica centralizada (VIANNA, 1974, p. 7,
1951, p. 153-154) e autoritário-corporativa, mas inconfundível com o
fascismo italiano e o nazismo alemão em diversos pontos e graus.
Na teoria constitucional de Oliveira Vianna, pela centralidade e pelo
aumento do Poder Executivo nacional, ao Estado caberia externar a
vontade geral, seja para garantir a unidade nacional, seja para assegurar a
integração e a solidariedade social de seu povo. Afiançava a participação
política pela integração da elite do povo nas corporações, sobretudo nas
sindicais (profissionais e econômicas), e, por outro lado, desprezava a
existência de partidos políticos, o sistema federalista e a maior autonomia
dos Estados-federados e, hoje, possivelmente, dos Municípios. Há, enfim,
um regime autointitulado como democrático, porém marcado por viés
autoritário, centralizador e por um arquétipo político-corporativo-sindical.
Abordados os principais temas da teoria de Oliveira Vianna, o próximo
passo será extrair dessa suposta teoria constitucional as possíveis bases
constitutivas do Direito do Trabalho brasileiro. Essa proposta parece viável,
pois, além da busca por um modelo capaz de organizar e desenvolver o
Estado brasileiro, ao defender o corporativismo sindical e atuar como
consultor no Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, Oliveira
Vianna foi figura destacada na confecção da legislação laboral, inclusive
na instituição da Justiça do Trabalho e na estruturação da organização
sindical. Esses temas serão objeto da próxima seção.

3 A teoria constitucional defendida por Oliveira Vianna e


seus efeitos no Direito do Trabalho brasileiro

Oliveira Vianna almejava compreender a formação social brasileira.


Pretendia estudar três grupos de questões: (a) as instituições políticas
nacionais; (b) a história da formação racial no Brasil; (c) a história social
da economia. Entretanto, no governo provisório de Getúlio Vargas, tor-
na-se seu consultor jurídico (de 1932 a 1940), o que o leva a suspender
esse projeto e dedicar-se à sistematização do Direito do Trabalho brasi-

certa forma reconheceu seu equívoco após ser criticado sobre sua tese acerca da necessidade
de branqueamento do brasileiro com vistas ao maior desenvolvimento social e político. A
partir de então, registrou sua despreocupação com esse enfoque racial.

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leiro (PAIM, 1988, p. 13-14). Nesta seção, portanto, a teoria oliveiriana
receberá ares trabalhistas.
A proposta desta seção, cujo anseio final importará na resposta (provi-
sória) ao problema da pesquisa, será a de extrair, da pretensa teoria cons-
titucional de Oliveira Vianna, categorias10 estruturantes e constitutivas do
Direito do Trabalho brasileiro, com a inserção de novas posições defendidas
pelo autor, agora referentes ao Direito do Trabalho. Inexiste nas obras
de Oliveira Vianna essa proposta. O desiderato requereu leitura de seus
escritos como um todo, visão sistematizadora e inúmeras aproximações.
Com base no capítulo anterior, é possível formar as seguintes catego-
rias de análise da pretensa teorização constitucional de Oliveira Vianna:
(a) imprescindibilidade do Estado na concessão de direitos trabalhistas
e na formação das classes sociais e dos sindicatos; (b) negativa da luta
de classes no Brasil; (c) consenso e colaboração entre capital e trabalho;
(d) forte impregnação nas relações de trabalho da doutrina social da
igreja católica; (e) destaque às associações sindicais profissionais e pa-
tronais; (f) formação de sindicatos quase públicos e colaboradores com
o Estado, os trabalhadores e o capital; (g) estruturação de sindicatos por
categoria e vinculados à unicidade sindical, laicos, apartidários e distantes
do localismo e do internacionalismo; (h) necessidade de conciliação de
eventuais partes antagônicas; (i) possibilidade de tribunais do trabalho
proferirem sentença normativa; (j) inserção do Direito do Trabalho no
modo de produção capitalista; (k) espaço, no Direito do Trabalho, para
as categorias profissionais e o setor produtivo, também organizado como
classe; (l) relativa pluralidade de fontes na confecção da legislação do
trabalho e na interpretação do Direito do Trabalho; (m) aproximação do
Direito do Trabalho com o realismo jurídico; (n) vinculação do Direito do
Trabalho à democracia corporativa; (o) Direito do Trabalho com feição
de exclusão (ou com pretensão de ser paulatinamente inclusivo). Essas
categorias, na sequência, serão aplicadas na perspectiva da constituição
do Direito do Trabalho brasileiro.
Oliveira Vianna repelia o curso homogêneo e unilinear da história.
Cada povo tinha suas características e, consequentemente, seu modo de
desenvolvimento social e político. Havia, pois, povos mais desenvolvidos
do que outros, que evoluíam de uma maneira e involuíam de outra. Reagiu
também contra o fatalismo da história, até porque reconhecia como rele-
vante, em seu curso, o acaso (VIANNA, 1933, p. 15-19) e a possibilidade
de intervenções e transformações. Estava convencido, todavia, de que a
aplicação de sua teoria geraria evolução social e política ao povo brasi-

10
A estruturação de categorias analíticas é uma proposta de abordagem encontrada
em Aristóteles (2011, p. 29-30).

184 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 175-193 abr./jun. 2021


leiro. Entretanto, para cumprir essa missão, o incentivos para a constituição da classe social de
Estado moderno exigiria, na composição de seus trabalhadores. Vianna (1951, p. 65-67) reconhe-
quadros, dirigentes consubstanciados num tipo ceu a singularidade da Revolução de 1930 como
de cidadão diferente, educado sem o ranço do uma outorga generosa dos dirigentes políticos,
individualismo (a proposta era anti-individua- e não uma conquista da classe trabalhadora,
lista) e com realce do sentimento de coletividade que no momento estava desprovida de qual-
(VIANNA, 1974, p. 8-26). quer estrutura séria em razão de sua diluição
Ao afirmar a fragilidade do povo brasileiro nos quadros de partidos políticos e ao inteiro
nos aspectos racial, climático, geográfico, social desfrute da boa vontade dos patrões com base
e político, Oliveira Vianna abre caminho para na regulação pelos Códigos Civil e Comercial.
a intervenção do Estado, cujo ingresso carrega Outro ponto central na constituição do
centralidade, unidade e caráter autoritário. Sem Direito do Trabalho brasileiro, na perspectiva
o Estado, inexistiriam condições de evolução de Oliveira Vianna, foi a negação da luta de
do povo brasileiro. Sem o Estado, o povo per- classes – segundo ele, por inexistir no Brasil
maneceria desorganizado, fragmentado e não tradição nesse sentido. A promessa era a des-
solidário. Daí surge a primeira característica proletarização das classes pela elevação do ope-
desse Direito do Trabalho incipiente: dádiva do rariado nacional à categoria de burguês, sem
pai, de Deus, concebido como Estado. Esse mote necessidade de eliminação da propriedade pri-
até hoje acompanha o Direito laboral brasileiro, vada (VIANNA, 1951, p. 13). Além de esfumar o
e o trabalho subordinado em muitas situações é conflito da realidade histórico-social brasileira,
retratado como liame de favor, de bondade, de critica severamente os movimentos anarquistas,
ajuda. Em 1930, para Oliveira Vianna, ocorrera comunistas e socialistas por carregarem em si a
uma revolução social, e um de seus propósitos foi desnecessidade e o risco do embate entre capital
antecipar-se aos efeitos maléficos do capitalismo e trabalho para o desenvolvimento da nação e
na ordem socioeconômica nacional. O Estado, de seus cidadãos. Houve recusa da influência
com esse ato providencial, quase heroico, evi- de movimentos sociais de trabalhadores como
tou o conflito, a exploração desproporcional do um dos fatores impulsionadores da legislação
trabalho pelo capital e, como dádiva, concedeu laboral no Brasil, malgrado o patenteamento
direitos aos trabalhadores, ainda não formados de que em certos momentos se negociara com
como classe.11 a massa operária para se evitarem atritos. Nessa
Ao Estado caberia também estimular a linha, sua teoria repudiou o conflito e o sindicato
formação de classes laborais e econômicas de resistência como instrumentos de conquis-
(VIANNA, [1943], p. vi). Negava-se a existência tas sociais e exaltou o consenso, a conciliação.
de movimentos sociais anteriores à Revolução Vianna (1951, p. 11) afirmou que toda a legis-
de 1930, tanto que o Estado, diante da suposta lação social brasileira se orientou no sentido
ausência da classe obreira, quase como ente de um alto espírito de harmonia e colaboração.
abstrato revolucionário, agiu para salvaguardar O caminho do desenvolvimento, portanto,
os direitos laborais, para a partir de então criar seria um processo lento e constante, de parceria
entre capital e trabalho, sem revolução e ruptu-
ras. Nesse contexto de transigência, os instru-
11
Vianna (1951, p. 69) afirmou que os trabalhadores mentos coletivos negociados materializariam
sentiam por toda a parte o cuidado do Estado em sua ação
vigilante, tutelar e assistencial. a melhor alternativa. Vianna (1974, p. 32-35)

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explicitou sua admiração pela convenção coletiva abster-se de resistir a políticas governamentais
de trabalho, mecanismo que seria capaz de evitar ou se insurgirem, além de limites preestabe-
o conflito e educar as partes para o consenso – lecidos, contra a exploração do trabalho pelo
sem greve, sem conflito e sem violência. Aqui capital. O sindicato, em síntese, agiria em prol da
talvez se inicie a ideia de trabalhador e empre- solidariedade social e profissional e, nessa condi-
gado como colaboradores – tão reproduzida ção, atuaria como agente corretivo e retificador
no século XXI –, que não se cingiria apenas na e, ao mesmo tempo, integrador e organizador
mudança de comportamento do trabalhador. (VIANNA, [1943], p. vii-ix).
A democracia corporativa e cristã idealizada Para cumprir esse papel de colaboradores
por ele demandava também modificação de com o Estado, os sindicatos estariam libertos
mentalidade do empregador em relação a seus das preocupações de luta de classes, pois, cria-
subordinados. Caberia ao detentor dos meios dos para desenvolverem hábitos de cooperação
de produção cumprir a doutrina social da igreja e com recursos orçamentários provindos do
católica (VIANNA, 1951, p. 176). imposto sindical. Além disso, como sindicatos
Questão também imprescindível à constitui- oficiais, seriam únicos e vinculados a certas ca-
ção do Direito do Trabalho nacional, na visão de tegorias (VIANNA, [1943], p. ix-6). Esse déficit
Vianna (1991), foi o destaque para as associa- na formação sindical brasileira encontrado em
ções sindicais, tanto as profissionais quanto as sua nascente, na perspectiva de Oliveira Vianna,
patronais. Sustentou a originalidade do sistema acompanhou-a em diversos momentos, ora pela
sindical brasileiro, cujo propósito fora materiali- falta de atuação contra a exploração do traba-
zar as peculiaridades da realidade com teor bem lho, ora pela impossibilidade de ser ativo sem
distinto da lei do regime fascista. A organização o amparo estatal.
corporativa não tem como pressuposto necessá- Na organização sindical brasileira, Oliveira
rio a organização sindical. Logo, é possível uma Vianna considerou três princípios orientadores:
organização corporativa sem base sindical; no (a) dissociação do binário histórico encontrado
regime da Constituição de 1937, teve papel pre- na Europa, o sindicalismo-socialismo. O sindi-
cípuo a organização profissional de classes sob a calismo nacional não seria revolucionário nem
forma sindical (VIANNA, 1991, p. 177-281). O reformista. Seria corporativo, profissional e cris-
Estado do tipo corporativo-sindical reconhece tão; (b) separação rigorosa entre organizações
nessas agremiações o papel de colaborar para sociais e partidos políticos, como maneira de
o desenvolvimento social e o funcionamento preservar a sua pureza e livrá-las da influência
sem sobressaltos do poder governamental. Aos nociva dos interesses pessoais; (c) sindicalismo
sindicatos caberia organizar, educar,12 com papel visto de maneira extensiva para se compor como
comparável ao das escolas primárias do sistema técnica de organização social do povo, e não ape-
de ensino regular, prestar serviços às respectivas nas como maneira de organização profissional.
categorias e integrá-las à Administração Pública Ademais, as agremiações sindicais elevaram-se
(VIANNA, [1943], p. xi). Nessa óptica, deviam à condição de instituições de Direito público e
deveriam eliminar os espíritos de localismo e
12
Vianna (1974) expressamente reconheceu as organi- internacionalismo. Em razão desse último ponto,
zações sindicais e corporativas como centros de educação
do Estado brasileiro. Incluiu, ainda, as Forças Armadas e as havia vedação legal de entendimento ou filiação
associações escoteiras (VIANNA, 1974, p. 28). A educação das nossas organizações profissionais com as
promovida pelos sindicatos seria moral e cívica (VIANNA,
1951, p. 85). suas congêneres estrangeiras (VIANNA, 1951,

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p. 79-100). Ao analisar o art. 8o da Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988 (BRASIL, [2019a]), muitos desses princípios foram
mantidos pela atual ordem constitucional brasileira, o que patenteia, em
grande parte, o continuísmo no Brasil da estrutura sindical idealizada
por Oliveira Vianna.
Por outro lado, Oliveira Vianna recusou-se a admitir sindicatos con-
fessionais, malgrado pressões advindas da igreja católica. As agremia-
ções sindicais, a princípio, seriam laicas, embora não enxergasse óbice
na inserção da doutrina religiosa nessas associações; porém, o critério
de formação sindical deveria ser a respectiva categoria, e não a filiação
religiosa (VIANNA, [1943], p. 35-38).
Vianna (1930, p. 151-152) parte de uma premissa: no momento em que
as classes sociais se enxergarem como tais, poderiam, pela participação
corporativa, pressionar os poderes (pressão de fora para dentro) e, dessa
forma, ocorreria o predomínio dos interesses coletivos. Haveria, assim,
necessidade de organização de trabalhadores e empresários em classes
profissionais e patronais. O objetivo dessas organizações era corporifi-
car o interesse coletivo capaz de ser inserido no Estado pelo sistema de
participação política pelas corporações. A ideia, portanto, abstinha-se de
formar classes para lutar com a classe antagônica.
A burguesia brasileira também foi reconhecida por Oliveira Vianna.
Cunhou-a sob um regime de plena liberdade e forte individualismo,
desde o fim do Império até aproximadamente 1930. Os produtos eram
produzidos e vendidos ao preço mais conveniente da indústria. Inexistia
política econômica governamental de controle e disciplinamento; além
disso, havia o protecionismo paternal do Estado, assegurador de todos
esses empreendimentos no mercado. A população era prejudicada com
artigos mais caros, ao passo que os empresários aumentavam seus lucros.
Por efeito, essa elite capitalista e os trabalhadores igualmente deixaram
de agir com espírito solidário para coordenar seus interesses. Em última
análise, as elites econômicas brasileiras estavam aquém das elites de países
mais desenvolvidos (VIANNA, 1974, p. 53-64).
O Direito do Trabalho brasileiro nasce preocupado com a classe tra-
balhadora, mas também com as categorias econômicas. Parece evidente
asseverar que esse ramo jurídico não foi pensando apenas no e para o
trabalhador. Houve não só a preocupação com ele, mas também com a
sobrevivência e desenvolvimento da atividade produtiva. Nesse ponto,
o Direito do Trabalho nacional parece ambíguo e atua ora em favor, ora
contra os interesses da classe obreira.
A educação incumbida ao Estado e, sobretudo, às agremiações
sindicais formaria essa consciência coletiva. Seria capaz de retirar do
trabalhador ideias direcionadas ao conflito, para inserir na relação

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capital-trabalho um perfeito espírito de cordialidade e cooperação. A
possibilidade de antagonismo de classes não era negada; entretanto,
sempre pareceria possível encontrar decisão intermediária, conciliató-
ria. Esse é o espírito de transação, isto é, da justa medida na solução de
conflitos sociais (VIANNA, 1974, p. 30-32). Assim, o Direito do Trabalho
brasileiro nasce conciliador e este vetor consta de todo ele. Com efeito,
a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-lei
no 5.452, de 1o/5/1943 (BRASIL, [2019b]), prevê que Juízes e Tribunais
do Trabalho empreguem sempre os seus bons ofícios e persuasão no
sentido de uma solução conciliatória dos conflitos (art. 764, § 1o). Exige
ainda que o juiz, antes do julgamento da reclamação trabalhista, faça
duas tentativas de conciliação (arts. 846 e 850). A Justiça do Trabalho,
ademais, promove anualmente a Semana da Conciliação, que insere
em pautas de audiência processos com chances transacionais; e alguns
Tribunais Regionais do Trabalho criaram núcleos conciliatórios, com a
figura do juiz do trabalho conciliador, responsável por tentar conciliação
em execuções, grandes demandas e ações coletivas.
A centralidade do Estado e a relativa possibilidade criativa conferida
aos sindicatos permitiram que o primeiro, à falta de acordo entre capital e
trabalho, decidisse sobre as condições laborais aplicáveis a certa categoria
profissional. A possibilidade de os Tribunais do Trabalho sentenciarem
normativamente foi uma das propostas formuladas por Oliveira Vianna,
o que gerou polêmica com o então deputado Waldemar Ferreira, ju-
rista e professor de Direito, cuja opinião foi no sentido de que conferir
poder normativo à Justiça do Trabalho era inconstitucional em razão
de usurpação de poder do Legislativo e por contrariedade a princípios
processuais. Vianna (1938, p. 31-37) não via nessa função usurpação
alguma do poder legiferante conferido ao Legislativo e ressalvava a
singularidade dos Tribunais do Trabalho. A vividez do mundo laboral
exigiria essa alternativa imediata. Ademais, de certa forma, seria outro
modo de se evitar a luta de classes, com a intervenção estatal no conflito.
Oliveira Vianna, em nova tentativa de repelir as objeções de Waldemar
Ferreira e reafirmar o poder normativo da Justiça do Trabalho, asseve-
rou inexistir diferença substancial entre fixar preços de mercadorias e
de salários (VIANNA, 1938, p. 65). Manejou esse argumento por não
haver questionamento acerca da possibilidade de administrativamente
definir preços de produtos, o que permitiria o mesmo raciocínio para a
determinação do valor salarial. Essa ideia parece implicitamente equi-
parar o trabalho à mercadoria e, definitivamente, introduzi-lo numa
concepção de mercado regido pelo modo de produção capitalista. Em
última análise, o Direito ao Trabalho nasce vinculado ao mercado, e a
força laboral equipara-se a qualquer mercadoria.

188 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 175-193 abr./jun. 2021


A legislação social brasileira, na visão de inúmeros precedentes ainda não sumulados e
Vianna (1991), era uma das mais avançadas do todas as súmulas e orientações dos 24 Tribunais
mundo, mas desde logo reconhecera a necessi- Regionais do Trabalho existentes no País.
dade de aprimoramentos. A feitura dessa legis- O Direito do Trabalho, por conseguinte,
lação variou conforme o ministro responsável seria oxigenado em sua nascente, ao menos
pela pasta. Lindolfo Collor, a quem coube o mé- no plano idealizado, por uma pluralidade de
rito de ter iniciado a legislação social no Brasil, fontes: texto normativo, costumes, decisões dos
preferiu a elaboração individual, ao passo que tribunais, instrumentos coletivos de trabalho e,
Salgado Filho tinha preferência pela criação de na condição de rede abastecedora desse sistema
comissões de técnicos e interessados, no que o plural, os fatos advindos da realidade. Nesse
seguiu Oliveira Vianna. Posteriormente, esse ponto, a teoria de Oliveira Vianna oscila um
trabalho passou a ser realizado pela Câmara dos pouco: defende um Estado unitário, autoritário
Deputados. Porém, Oliveira Vianna ressaltava e centralizador, mas admite fontes jurídicas não
o seu caráter de lei feita pelo e para o povo, ao estatais para o Direito do Trabalho (VIANNA,
confirmar que a legislação laboral, em grande 1938, p. 21).
parte, fora revisada por ele e que, em muitos Embora seja interessante em alguns aspec-
pontos, foi compelido a transigir para evitar tos e presente em nossa realidade até hoje, essa
atritos e ressentimentos das massas operárias aproximação do Direito do Trabalho com o rea-
(VIANNA, 1991, p. 283-285). lismo jurídico formulada por Oliveira Vianna é
A legislação do trabalho brasileira foi consi- bastante arriscada e pode corresponder a uma
derada por Vianna (1987, p. 17-18) um Direito negativa dos pontos de partida previstos nos
eminentemente costumeiro e vivo, tanto que textos normativos. Vianna (1938, p. 22) consi-
houve, em grande parte, apenas sistematização derava o juiz, no Estado moderno, verdadeiro
de normas preexistentes. Além disso, sobre- legislador. Essa afirmação referia-se ao julgador
tudo no Direito do Trabalho, seria impossível de maneira geral, e não apenas ao Tribunal do
elaborar obra estável e perfeita, dadas as osci- Trabalho no exercício do poder normativo. Isso,
lações dos ciclos econômicos (VIANNA, 1951, em certo grau, institucionalizaria o exercício
p. 15). A aproximação desse ramo do Direito do poder discricionário no momento do jul-
com a teorização do realismo jurídico, do qual gamento e poderia gerar relativa instabilidade
Oliveira Vianna era simpatizante, esteve e está nas bases de sustentação do Estado de Direito.
presente até hoje no País. O Tribunal Superior A tentativa de Vianna (1938, p. 77) de conside-
do Trabalho julga, muitas vezes, sob uma pers- rar sinônimas as palavras discricionariedade e
pectiva do Common Law, tanto que editou 463 equidade é frágil. Não há garantia de que um
súmulas, 13 orientações jurisprudenciais do julgamento desconexo com bases normativas
Tribunal Pleno, 421 orientações jurispruden- prévias e supostamente vinculado à realidade
ciais da Seção de Dissídios Individuais I, 79 seja mais justo que uma decisão respeitante do
orientações jurisprudenciais transitórias da texto normativo, obviamente interpretado. Essa
Seção de Dissídios Individuais II, 158 orien- linha argumentativa de Oliveira Vianna parece
tações jurisprudenciais da Seção de Dissídios acoplar-se à ideia de centralidade e unidade
Individuais II, 38 orientações jurisprudenciais do Estado, porque, a partir de quando fossem
da Seção de Dissídios Coletivos e 120 preceden- permitidos julgamentos destoantes do texto
tes normativos (BRASIL, 2020), sem contar os normativo, haveria também possibilidade de

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o Poder Executivo implementar políticas dife- indicados pelas associações sindicais profis-
rentes das idealizadas pelo Poder Legislativo. sionais e econômicas, que, ao lado dos juízes
Esse artifício era necessário, sob pena de com- togados (aprovados em concurso público de
prometer a unidade do Estado. Havia, portanto, provas e títulos e bacharéis em Direito), eram
encoberta na defesa do realismo jurídico uma responsáveis por julgar reclamações trabalhis-
possibilidade de guinadas nas ordens jurídi- tas e ações coletivas laborais. Além disso, essa
ca, social, econômica e política brasileiras, e o ideia corporativa, embora relativizada com a
Direito do Trabalho inseria-se nesse contexto EC no 24/1999, continua presente na realidade
com preponderância decorrente da democracia brasileira, com membros integrantes das cate-
corporativa. gorias de trabalhadores e patrões em diversos
Por outro lado, esse realce na teoria de conselhos, bem como pela integração de pes-
Oliveira Vianna relativo à interpretação do soas na Administração Pública, sobretudo pela
Direito do Trabalho13 confere sentido à deno- aprovação em certame público, sem prejuízo da
minação Direito Social,14 cujo objeto remete a existência de partidos políticos e de eleições.
verbas alimentares de titularidade, na maioria O Direito do Trabalho brasileiro, por fim,
dos casos, de trabalhadores desempregados e nasce com uma faceta de exclusão (ou com
sem renda, e incorpora nesse ramo jurídico pretensão de ser paulatinamente inclusivo).
a necessidade de ser interpretado de maneira Inicialmente, abrangeu apenas os trabalhadores
socialmente responsável. A criação de um ramo urbanos e marítimos, com exclusão dos rurais, e
específico do Direito (do Trabalho) e de tribu- isso perdurou para outras categorias, como a dos
nais especializados, ressaltara Vianna (1938), domésticos. Em certo momento, afirmou Vianna
objetivava fugir da sistemática interpretativa do (1951, p. 16-18) que o Direito do Trabalho era
Direito comum. Waldemar Ferreira, ao repelir antes de tudo industrial. Esse ponto indica outra
a possibilidade de a Justiça do Trabalho exercer oscilação na sua obra. Segundo sua concepção,
poder normativo, considerou inexistir diferença o Brasil tinha um capitalismo incipiente, sua po-
entre os princípios abastecedores do Direito do pulação era dispersa e basicamente rural. Nesse
Trabalho e do Direito comum. Na concepção contexto, a lógica seria o Direito do Trabalho,
de Vianna (1938, p. 34-75), Ferreira insistia naquele tempo histórico, ter privilegiado a regu-
numa interpretação literal e gramatical e olvi- lamentação das relações laborais dos rurícolas,
dava a necessidade de flexibilidade e senso de e não dos trabalhadores urbanos.
adaptabilidade na análise de um direito social
como o laboral.
O marco corporativo é outro signo constitu- 4 Conclusão
tivo do Direito do Trabalho brasileiro. A Justiça
do Trabalho até a Emenda Constitucional (EC) Oliveira Vianna publicou inúmeras obras
no 24/1999 era composta por juízes classistas, nas áreas sociológica, constitucional e laboral; e,
aproximadamente entre 1930 e 1950, teve forte
13
Vianna (1938, p. 25) afirmou que o advento do Di- influência na conformação do Estado brasileiro,
reito corporativo produziu reflexão quanto à dogmática
tradicional do Direito em geral.
inclusive na elaboração de suas Constituições
14
Cesarino Junior (1963, p. 23-37), ao apreciar a cor- e leis trabalhistas. Com base em seus escritos,
reção das nomenclaturas do Direito do Trabalho, defendeu extraiu-se uma teoria constitucional preten-
que apenas a elocução Direito Social teria o condão de de-
monstrar o seu real conteúdo. samente adaptada à realidade brasileira, sem

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prejuízo da alegação de ausência de originalidade e da presença de os-
cilações e fragilidades.
O Estado teorizado por Oliveira Vianna era unitário, centralizador,
interventor, autoritário e corporativista. Rechaçava a existência da federa-
ção, a maior autonomia dos Estados federados, a democracia pautada em
partidos políticos e os movimentos comunistas e socialistas. Esse Estado
era sustentado por um regime democrático corporativo (ou de classes)
e cristão. As corporações, especialmente os sindicatos profissionais e
patronais, e a doutrina da igreja católica tinham papéis determinantes.
Com base na teoria constitucional defendida por Oliveira Vianna,
cuja identificação ocorreu na primeira seção, foi possível no tópico sub-
sequente formar categorias analíticas, aplicá-las na condição de alicerces
constitutivos do Direito do Trabalho brasileiro e responder ao problema
impulsionador desta pesquisa.
Na perspectiva de Oliveira Vianna, o Direito do Trabalho brasileiro
encontra suas raízes na imprescindibilidade do Estado na concessão de
direitos trabalhistas e na formação de classes e sindicatos, na negativa
da luta de classes no Brasil, no consenso e na colaboração entre capital e
trabalho, entre outras conclusões alcançadas na segunda seção.
As teorias de Oliveira Vianna foram fundamentais para a conformação
do Estado brasileiro durante a Era Vargas; porém, independentemente
de concordância com seus escritos, ainda se encontram parcialmente
vivas em nossa realidade, no Estado atual e nos Direitos Constitucional
e do Trabalho, o que justifica contradições em certos encaminhamentos
e particularidades.

Sobre os autores
Vitor Salino de Moura Eça é doutor e mestre em Direito Processual pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), Belo Horizonte, MG, Brasil; pós-
doutor em Direito Processual Comparado pela Universidad Castilla-La Mancha, Ciudad
Real, Espanha, e em Direito Processual Internacional pela Universidad de Talca, Talca, Chile;
professor do programa de mestrado e doutorado em Direito na área de Direito Processual da
PUC-MG, Belo Horizonte, MG, Brasil; juiz do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho
da 3a Região, Belo Horizonte, MG, Brasil.
E-mail: [email protected]
Bruno Gomes Borges da Fonseca é doutor e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais
pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Vitória, ES, Brasil; pós-doutor em Direito
pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil, e pela
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil; professor da graduação e da
pós-graduação em Direito da FDV, Vitória, ES, Brasil; procurador do Trabalho na 17a
Região, Vitória, ES, Brasil.
E-mail: [email protected]

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Como citar este artigo
(ABNT)
EÇA, Vitor Salino de Moura; FONSECA, Bruno Gomes Borges da. Teoria constitucional
do Direito do Trabalho brasileiro na perspectiva de Oliveira Vianna. Revista de Informação
Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 230, p. 175‑193, abr./jun. 2021. Disponível em: https://
www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/ril_v58_n230_p175

(APA)
Eça, V. S. de M., & Fonseca, B. G. B. da (2021). Teoria constitucional do Direito do Trabalho
brasileiro na perspectiva de Oliveira Vianna. Revista de Informação Legislativa: RIL, 58(230),
175‑193. Recuperado de https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/ril_v58_n230_
p175

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Perspectivas sociojurídicas do poder
de polícia sanitário e emergência de
saúde pública
Vulnerabilidades e o enfoque dos direitos humanos

LEONEL PIRES OHLWEILER

Resumo: O presente artigo examina o tema do poder de polícia sanitário,


sob a perspectiva sociojurídica e com o enfoque dos direitos humanos. A
metodologia aplicada foi a pesquisa bibliográfica, bem como a análise de
decisões judiciais. Destaca a necessidade de refletir sobre a história social
do poder de polícia, a fim de desconstruir os modelos de compreensão
burocrática fincados em bases autoritárias e formalistas, que remetem para
as conexões patrimonialistas entre saneamento e política, e desconsideram
as desigualdades e o contexto de uma sociedade de formação escravocrata.
Com base em casos judicializados sobre as medidas sanitárias previstas
na Lei no 13.979/2020, investiga a necessária dimensão sociojurídica do
poder de polícia para alcançar cidadãos em situação de vulnerabilidade.
Conclui que o enfoque dos direitos humanos contribui para dotar de
maior efetividade o conjunto de ações públicas desenvolvidas durante a
emergência de saúde pública causada pela pandemia da Covid-19.

Palavras-chave: Poder de polícia. Emergência sanitária. Perspectiva


sociojurídica. Vulnerabilidade. Direitos humanos.

Socio-legal perspectives of the sanitary police power and


the public health emergency: vulnerability and the human
rights approach

Abstract: This article examines the theme of the power of sanitary


police, from a socio-legal perspective and with a human rights focus.
The methodology applied was bibliographical research, as well as judicial
decisions. Detach the need to reflect the social history of police power,
in order to deconstruct models of bureaucratic understanding, based
Recebido em 23/07/20 on authoritarian and formalistic bases. It refers to the patrimonialist
Aprovado em 24/09/20 connections between sanitation and politics, disregarding the inequalities

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 195-218 abr./jun. 2021 195


and the Brazilian context of a slave society. Based on judicialized cases
regarding the sanitary measures provided for in Law n. 13,979/2020,
it investigates the necessary socio-legal dimension of police power to
reach citizens in situations of vulnerability. It concludes that the human
rights approach contributes to endow the set of public actions developed
during the public health emergency caused by the coronavirus with
greater effectiveness.

Keywords: Police power. Sanitary emergency. Socio-legal perspective.


Vulnerability. Human rights.

1 Introdução

O poder de polícia sanitário ocupa o cenário dos debates atuais,


em virtude do reconhecimento pela Organização Mundial da Saúde
(OMS) da pandemia causada pelo coronavírus, exigindo-se a atua-
ção das Administrações Públicas, federal, estaduais e municipais, no
desenvolvimento de ações administrativas concretas de combate à
Covid-19, além da normatização construída no plano nacional. Diante
da complexidade da questão, surge a necessidade de problematizar a
efetividade das medidas de saúde pública no contexto de cidadãos
em situação de vulnerabilidade do ponto de vista social, econômico,
jurídico ou cultural.
O tema relativo à ordenação de medidas para salvaguardar a saúde
da comunidade não é novo no âmbito do Direito Administrativo e da
própria Administração Pública brasileira, pois desde o período colonial
a questão acompanhou os processos de construção da ideia de vigilância
epidemiológica.
Este breve estudo propõe-se discutir de que modo a perspectiva
sociojurídica do poder de polícia sanitário, com o enfoque dos direitos
humanos, contribui para a emancipação dos cidadãos em contextos
de vulnerabilidade afetados pela pandemia do coronavírus no Brasil.
Olhar para a história social da vigilância sanitária permite compreen-
der a construção do conjunto de disposições, estruturas estruturantes
e estruturadas, que alimentaram o modo de compreensão das relações
entre saúde pública, cidadãos e o Estado, e problematizar as parcas
iniciativas de combate às epidemias que assolavam o território nacional.
Tal perspectiva torna possível vislumbrar o que se denominará habitus
auctoritatis e habitus burocrático, dois elementos que acompanharam

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o desenvolvimento paulatino das ações de vigilância sanitária e difi-
cultaram erigir barreiras de proteção aos cidadãos.
A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica, bem como casos
judicializados sobre as medidas sanitárias implementadas. No estudo,
privilegia-se a relação interdisciplinar do Direito Administrativo com
a Sociologia.
Na primeira parte da pesquisa desenvolver-se-á a sociogênese do
poder de polícia sanitário no Brasil, identificando-se os paradigmas
em matéria de saúde pública, desde a dimensão mágica no tratamento
de doenças, passando pelo paradigma da polícia médica e os modelos
autoritários construídos em períodos ditatoriais, que acentuaram ainda
mais os problemas de uma sociedade desigual e escravocrata.
A Lei no 13.979/2020 (BRASIL, 2020c) disciplinou medidas para o
enfrentamento da emergência de saúde pública causada pelo corona-
vírus. No segundo tópico do texto, com base na sociologia de Pierre
Bourdieu, busca-se a compreensão sociojurídica do exercício do poder
de polícia sanitário em relação às comunidades vulnerabilizadas, com
ênfase nas medidas de distanciamento social e nos problemas relacio-
nados à sua efetividade.
Na terceira parte, com base no pressuposto de equilibrar regulação
e emancipação relativamente à juridicidade sanitária, constata-se a re-
levância de aprofundar investigações baseadas no enfoque dos direitos
humanos como critério de legitimação das ações públicas desenvolvidas
pelo Estado.
Trata-se, desse modo, do início de pesquisas associadas às relações
entre Administração Pública e sociedade, especialmente quanto ao
exercício do poder de polícia sanitário para repensar o senso comum
da doxa burocrática.

2 Sociogênese do poder de polícia sanitário no Brasil em


tempos de emergência de saúde pública

O tema poder de polícia integra o campo de conhecimento doutri-


nário tradicional do Direito Administrativo, despertando inúmeros
debates com relação à própria referência a poder1 e às intermináveis
conceituações, fundamentos, meios legitimamente admitidos e limites

1
Para Gordillo (2003, p. v-2), o aditamento poder na expressão poder de polícia é des-
necessário, considerando que o poder do Estado é um só, sendo que a divisão de poderes se
relaciona a funções e órgãos. A polícia administrativa não é um órgão do Estado, mas apenas
parte de uma de suas funções. Por outro lado, destaca a utilização ideológica do termo. Ao
se adotar poder de polícia, inicia-se o exame pela questão do poder e não dos indivíduos.

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constitucionais e infraconstitucionais. Embora se prefeito de São Bernardo do Campo (SP), que
trate de instituto relevante para a Administração estabelece restrições à circulação de pessoas
Pública, não se pretende aqui desenvolver o com mais de 60 anos na área de seu território,
quadro dogmático já construído pela doutrina. consignando no art. 2o que tais cidadãos esta-
Busca-se somente situá-lo na medida necessária riam sujeitos ao recolhimento residencial para
para discutir, sob a perspectiva sociojurídica2, efetivar o distanciamento social, inclusive sob
o poder de polícia sanitário. pena de multa (SÃO BERNARDO DO CAMPO,
A matéria adquiriu novos contornos de 2020). O caso é relevante para indicar que, via de
evidência por ocasião da emergência de saúde regra, o exercício das competências do poder de
pública pela epidemia do coronavírus. A OMS polícia se justifica em nome de proteção à saúde,
declarou em março de 2020 a existência da pan- ordem e segurança pública, como argumentou o
demia (BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO COE chefe do Poder Executivo municipal no STF e,
COVID-19, 2020, p. 2), e a Covid-19, naquela na hipótese de medidas para o combate à emer-
ocasião, estava disseminada em mais de cem gência sanitária, a necessidade de preservação
países, exigindo ações mais agressivas. O Brasil, da vida. Destacava que se trata de competência
ambientado no cenário antes do reconhecimento do Poder Executivo: não cabia intervenção do
pela OMS, por intermédio do Decreto no 10.212, Poder Judiciário, prevalecendo o juízo técnico
de 30/1/2020, promulgou o texto acordado no da autoridade administrativa. O presidente do
Regulamento Sanitário Internacional, revisi- STF, ministro Dias Tofolli, negou seguimento
tado pela 58a Assembleia Geral da OMS, em à reclamação, porquanto o poder de polícia
23/5/2020 (BRASIL, 2020b). Outro movimento manifestado no ato regulamentar somente se
consistiu na edição da Lei no 13.979 em 6/2/2020, justificaria caso houvesse recomendação técnica
dispondo sobre medidas para enfrentamento da da Anvisa, circunstância inexistente no caso,
emergência de saúde pública de importância tornando ilegal e abusivo o decreto de restrição
internacional decorrente do coronavírus, nos à circulação de pessoas.
termos do art. 1o (BRASIL, 2020c). No contexto específico da pandemia do coro-
Em virtude da crise sanitária, não tardaram navírus no Brasil, impõe-se destacar que o poder
a chegar ao Supremo Tribunal Federal (STF) de polícia sanitário se caracteriza como ativida-
(BRASIL, 2020d) temas relacionados com o de de ordenação3 do Estado com o propósito
exercício do poder administrativo sanitário nas
unidades da federação. Apenas para ilustrar: o 3
A expressão atividade ordenadora tem sido utilizada
Decreto no 21.118, de 24/3/2020, editado pelo para referir-se ao conjunto de ações administrativas direcio-
nadas a ordenar o exercício da liberdade e propriedade dos
cidadãos, como mencionam García de Enterría e Fernández
(1995, p. 107), aludindo à expressão Administração orde-
2
A compreensão desenvolvida nesta investigação busca nadora não mais como fundada na existência de ordem
dialogar com a sociologia reflexiva de Bourdieu (1989, pública, mas no sentido genérico de ordenação das ativi-
p. 17-58), vislumbrando o exercício do poder de polícia dades privadas. No Brasil destaca-se o trabalho realizado
sanitário como prática social. Ou seja, assim como o Di- por Sundfeld (1993, p. 20), ao escrever obra específica para
reito Administrativo influencia a sociedade, esta produz defender a concepção do Direito Administrativo Ordena-
efeitos sobre o campo jurídico-administrativo. O debate dor e “negar a existência de uma faculdade administrativa,
sobre a vigilância sanitária em matéria de epidemias não se estruturalmente distinta das demais, ligada à limitação dos
desvincula da conexão direta entre Estado, poder, Direito e direitos individuais. O poder de regular originariamente os
sociedade (FERREIRA, 2019, p. 23), cujas funções adminis- direitos é exclusividade da lei. As operações administrativas
trativas impõem a análise relacional, pois as disposições dos destinadas a disciplinar a vida privada apresentam-se à
agentes públicos envolvidos são constituídas nos processos semelhança das outras como aplicação da lei”. A respeito
de institucionalização histórica dos modos de lidar com a da Administração ordenadora, aduz: “é a parcela da função
saúde pública. administrativa, desenvolvida com o uso do poder de auto-

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de salvaguardar a saúde pública dos cidadãos, tava as disposições estruturantes em matéria de
materializando o direito fundamental à saúde saúde, campo do conhecimento ainda marcado
em sentido amplo, restringindo a liberdade e a pelo olhar mágico por meio do qual as doenças
propriedade por intermédio de ordens, ativi- eram vistas com base na empiria, perspectivas
dades de controle, edição de atos normativos e místicas e castigos dos deuses (SCLIAR, 1987,
aplicação de sanções administrativas limitadas p. 6). No entendimento de Galvão (c2020, p. 8),
pelo conjunto de direitos humanos/direitos a fisicatura adquiriu status colonial de órgão
fundamentais e pelos padrões de organização máximo para as questões de saúde e era, na
sanitária reconhecidos. verdade, “um tribunal, com leis, alvarás, regi-
No entanto, o poder de polícia sanitário mentos e poder restrito à regulamentação da
configura-se como prática, ou seja, ação social profissão, que visava punir os infratores com o
que deve ser pensada não com base nos pró- objetivo de reservar para a medicina o espaço
prios conceitos internos4, capazes de revelar da doença”. Tratava-se de um modo de consti-
uma substância, ou ainda restrita ao conjunto de tuição fundado no poder dos donatários num
referências textuais, e sim de modo relacional, primeiro momento para posteriormente adotar
no âmbito do conjunto das relações nas quais se o regime dos governadores-gerais, instituindo a
desenvolveu tal prerrogativa do Estado, pois o concentração de poderes e políticas arbitrárias.
modo como o ente público lida com a proteção Administrava-se com a lógica similar à do
da saúde pública dos cidadãos depende da di- Estado dinástico6, com a diferença de aqui exis-
versidade de processos relacionais (BOURDIEU, tir a relação colonial entre Portugal e Brasil; o
1989, p. 28), o que remete para a necessidade território deste pertencia à Coroa portuguesa,
de refletir a sociogênese do poder de polícia desde as pessoas até os bens naturais, exigindo-se
sanitário no panorama brasileiro. permanente sacrifício em nome dos interesses do
O sistema de dominação imposto ao Brasil dominador para a perpetuação do patrimônio
no período colonial configurou as precárias colonial. Diante da impossibilidade de abarcar
ações sanitárias, cuja figura do físico-mor5 retra- as grandes extensões, às municipalidades coube,
por meio das câmaras municipais, a adoção de
ridade, para disciplinar, nos termos e para os fins da lei, os
comportamentos dos particulares no campo das atividades
que lhes é próprio” (SUNDFELD, 1993, p. 20). e outros domínios, e em 1774 promulgou-se o regimento
4
A análise adotada neste breve estudo dialoga com o geral para os delegados e juízes comissários do físico-mor
entendimento de Bourdieu (1989, p. 209) sobre a sociolo- e do cirurgião-mor no Estado do Brasil (CABRAL, 2017).
gia reflexiva e a crítica desenvolvida em relação à ciência No documento há questões interessantes para indicar as
formal do Direito, referindo-se à necessidade de ultrapassar relações de vigilância sanitária, constando como atribuição
a construção de sistemas fechados e autônomos, cujo de- dos comissários do físico-mor examinar “se os medicamentos
senvolvimento é obtido por meio da descrição dos próprios são feitos com a perfeição, e bondade que manda a Arte Far-
conceitos internos: “A ciência jurídica, tal como a conce- macêutica, e se nele existe ainda aquele [em] vigor, e eficácia
bem os juristas e, sobretudo, os historiadores do direito, que possa produzir o efeito para que foram compostos, e
que identificam a história do direito como a história do verão todos os simples, e compostos que nas Boticas houver,
desenvolvimento dos seus conceitos e dos seus métodos, sem exceção alguma” (REGIMENTO…, 2018).
apreende o direito como um sistema fechado e autónomo, 6
Para Bourdieu (2005, p. 42), no Estado dinástico ocor-
cujo desenvolvimento só pode ser compreendido segundo a reu a acumulação de capital segundo a lógica da casa, na
dinâmica interna. A reivindicação da autonomia absoluta do medida em que o rei se serve da casa para construir um
pensamento e da acção jurídicos afirma-se na constituição Estado, identificado como “a casa do rei”, “entendida como
em teoria de um modo de pensamento específico, totalmente um patrimônio que inclui todas as pessoas da casa, ou seja,
liberto do peso social”. a família real propriamente dita, que o rei deve administrar
5
A figura do físico-mor foi criada em Portugal em 1430, como um bom chefe da casa”, preponderando um modelo
durante o reinado de dom João I, incumbindo-lhe a superin- de dominação. O monarca é o grande protetor, mas exige
tendência dos negócios de saúde e higiene no reino português submissão e o estabelecimento de relações de caráter pessoal.

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medidas de higiene pública, como a limpeza das gienista e de programas de saneamento das
cidades, controle da água e do esgoto, comér- cidades, destacando-se os ocorridos no Rio
cio de alimentos, abate de animais e controle de Janeiro (então Distrito Federal), na medida
das regiões portuárias (COSTA; ROZENFELD, em que os médicos higienistas se integraram
2000, p. 16). na Administração Pública ocupando cargos
No século XIX continuou o modelo de ca- relevantes (COSTA; ROZENFELD, 2000, p. 25).
ráter fiscalizador, julgador e punitivo. Com a Houve no período, apenas a título exemplifica-
chegada da Família Real ao Brasil, paulatina- tivo, a elaboração do Regulamento dos Serviços
mente se incorporou o modelo de polícia mé- da Higiene Administrativa da União (Decreto
dica, adotando o paradigma de ação sanitária no 1.151, de 5/1/1904) e a criação do Juízo dos
fundada na concepção de intervenção na vida Feitos de Saúde Pública, além da Lei no 1.261,
e saúde da população (BRASIL, 2005b, p. 13) de 31/10/19048, tornando obrigatória em toda
e no propósito de vigiar e controlar o apareci- a República a vacinação contra a varíola, o que
mento de epidemias, sendo que a organização desencadeou a chamada Revolta da Vacina9. A
das cidades em termos de saneamento ocorria
com o saneamento do meio. concepção dos hospitais que deixaram de ser depósitos de
É necessário aludir ao regimento da doentes cuidados por religiosos para incorporar a lógica
da fábrica: “Os doentes mentais, que até a Idade Média
Provedoria de 1810 como característico do mo- eram tolerados e encarados com religioso respeito e temor
delo de polícia médica e à figura do provedor- pela população, agora são recolhidos aos hospícios: nin-
guém pode ficar fora do processo de produção”. No Brasil,
-mor, instituindo a necessidade de isolamento a política dos higienistas figurou no contexto de diversas
de doentes para o tratamento de doenças (vio- ações, inclusive com a criação do Departamento Nacional
de Saúde e a incumbência a Oswaldo Cruz de resolver os
lência simbólica) (COSTA; ROZENFELD, 2000, problemas da febre amarela e de outras doenças; tais ações
públicas foram denominadas campanhas. Segundo Scliar
p. 23). No documento, além de inscrições sobre (1987, p. 26), trata-se de “um termo militar que traduz o
os fundamentos da ação sanitária que deveria caráter organizado, autoritário, do trabalho a ser realizado.
A notificação de casos e as medidas de saneamento urbano
ser realizada – bem-estar geral, felicidade da são implantadas com a ajuda de instrumentos legais de
população e conservação da saúde pública –, excepcional rigor, que despertam feroz oposição”.
8
O texto legal disciplinou a obrigatoriedade da vaci-
consta a incumbência de fiscalização voltada nação e da revacinação em toda a República; ao autori-
para portos e navios, atribuindo-se a prerro- zar a adoção de medidas arbitrárias previstas no Decreto
no 1.151/1904, acirrou ainda mais os ânimos dos cidadãos
gativa de a autoridade determinar quarentena já afetados pelas políticas higienistas, saneamento habita-
para navios se se constatassem moléstias, além cional e reformas urbanas; surgiu inclusive o epíteto bizarro
Ditadura Sanitária, a que alude Sevcenko (2010, p. 73), pois
da possibilidade de exames e vistorias em ma- o governo ficou autorizado a invadir, vistoriar, fiscalizar e
demolir casas e construções, contando com um foro especial,
tadouros e açougues públicos (BRASIL, 2005a). o Juízo dos Feitos de Saúde Pública.
A proclamação da República e o início do 9
O episódio histórico é importante para vislumbrar o
século XX assistiriam a inúmeros episódios de conjunto das relações sociais e o papel da Administração
Pública, pois as referências de Carvalho (2016, p. 130-139)
ações administrativas sanitárias de interven- indicam algumas determinantes da revolta popular, como
a defesa legítima de direitos civis, indignação dos cidadãos
ção na vida da população, agora configuradas com empresas prestadoras de serviços públicos, além da
por um modelo autoritário (SCLIAR, 1987, oposição às arbitrárias ações sanitárias, do moralismo im-
pregnado nos discursos públicos contra a vacinação e da
p. 26) de saúde pública7, refém da política hi- dimensão ideológica das posições políticas da época – tudo
isso ocorrendo nas bases de uma sociedade ainda fortemente
escravocrata e fragmentada. No entanto, até para os fins
7
O olhar autoritário sobre a saúde pública é retratado desta pesquisa, chamam a atenção as observações do autor
por Scliar (1987, p. 24) ao descrever a continuidade da pro- associadas às relações entre Estado, lei e sociedade. Em
posta de polícia sanitária com base em leis e regulamentos, virtude dos diversos contextos sociais da nascente socie-
atribuindo-se poder à medicina, influenciando na própria dade republicana, atravessada por desigualdades, sentido

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população mais pobre da cidade reagiu com vio- o modo de gestão patrimonialista10, na medida
lência à obrigatoriedade da vacinação e às ações em que o Estado burocrático representava a
implantadas por Oswaldo Cruz. Depredações, construção de uma ordem própria, dissociada
quebra-quebra dos meios de transportes e ata- da lógica de exercício dos poderes privados
ques aos agentes higienistas abriram caminho (BOURDIEU, 2005, p. 59).
para que o governo central decretasse estado de No entanto, sob a Constituição de 1937, a
sítio, com suspensão de direitos constitucionais frágil institucionalidade brasileira foi eclipsa-
(SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 329). da até 1945 pelo regime ditatorial do Estado
A questão da saúde pública no Brasil, de Novo, o que acentuaria mais uma vez o caráter
algum modo, orientou-se pelo paradigma autoritário das ações públicas, incapazes de
social a partir da década de 1920, surgindo resolver os problemas da herança escravocrata
normas com caráter protetivo, como a Lei Elói das desigualdades e exclusão, bem como da
Chaves (Decreto no 4.682, de 24/1/1923), que Administração tomada por políticas oligár-
no plano simbólico foi relevante marco norma- quicas, centralizadoras, com fortes traços de
tivo no desenvolvimento de políticas sociais. corrupção. Sob a perspectiva das regulações
Circunscrita à perspectiva sanitária, houve a do poder de polícia sanitário houve a edição
edição do Decreto no 16.300, de 31/12/1923, de diversos instrumentos normativos; contu-
que institucionalizou o Regulamento Sanitário do, muitos permaneceram sem efetividade no
Federal e incorporou a expressão vigilância contexto de uma Administração autoritária,
sanitária, muito embora em sentido bastante como os Decretos nos 780/1936 e 891/1938, sobre
amplo (BRASIL, 2005b, p. 17), mas indicando o controle de entorpecentes, e o Decreto-lei
alguns traços de centralização do Estado: dis- no 4.113/1942, que disciplinava a propaganda de
ciplinava em excesso quase todos os campos da produtos farmacêuticos e dos profissionais de
vida social abarcados pela ação administrativa saúde (COSTA; ROZENFELD, 2000, p. 28-29).
sanitária e criava problemas de efetividade das O processo de redemocratização a partir de
disposições regulamentares. 1945 ainda lidava com essas mazelas sociais,
O Estado dos anos 1930 foi marcado pelo acentuadas com o crescimento populacional
conservadorismo, ambientado nas orientações e os problemas decorrentes das desigualdades
de um modelo de Estado Social, e pela escassa entre os cidadãos:
materialização da dimensão protetiva do texto
constitucional de 1934 para a maioria dos cida- Nos anos 1950, cerca de 70% dos brasileiros
dãos. A tendência à burocratização da organiza- permaneciam no campo – a população urba-
na só iria superar a rural no fim da década
ção administrativa na era Vargas refletiu-se no
de 1960. Os desníveis de pobreza e desigual-
conjunto das ações sanitárias: tentou-se superar

10
Segundo Weber (2015, p. 234-235), a dominação
escravista, discriminações e conservadorismo, havia muita patrimonial configura-se como caso especial de estruturação
distância entre a dimensão formal do texto da lei e o que de patriarcal de dominação e do poder doméstico descentra-
fato ocorria no campo social, em que diversos cidadãos per- lizado. A administração de caráter patrimonialista teria
maneciam apartados da República, como processo teórico de algumas características, como administração ocasional,
construção da igualdade de todos perante a lei. Existia uma vínculos de caráter pessoal, o capricho como critério último
espécie de habitus cultural no sentido de que a lei não era de orientação das decisões e das relações entre funcionários
de fato aplicada na sua textualidade; e, quando no contexto e dominados, ausência de normas fixas e regulamentos
das ações sanitárias se decide fazer cumprir a legalidade, obrigatórios, ausência de separação entre assuntos públicos
lançando mão de ações arbitrárias, eclode o sentimento e privados, sendo o cargo público compreendido como
popular de revolta (CARVALHO, 2016, p. 159-160). prebenda (WEBER, 2015, p. 253-269).

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dade social entre campo e cidade e entre a
Região Sudeste e o Nordeste eram imensos, A Constituição da República Federativa do
e a situação de carência da população pobre Brasil de 1988 (CRFB) afastou o regime au-
mantinha-se inalterada: faltavam escolas, toritário de cunho militar e institucionalizou
não havia saneamento básico nem acesso a democratização da Administração Pública;
à saúde, o trabalhador rural continuava ex-
cluído da legislação protetora do trabalho
mas outros ataques ainda ocorreriam sobre o
(SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 424). Estado e com nítidos reflexos no exercício das
atividades de ordenação sanitária. De fato, foi
Em 1953, por força da Lei no 1.920, foi criado significativo o progresso normativo: o reco-
o Ministério da Saúde, responsável pelo desen- nhecimento do direito à saúde como direito
volvimento de ações de vigilância sanitária, em social fundamental (art. 196, CRFB) (BRASIL,
especial da medicina e dos Portos. Destaque- [2020a]), a criação do Sistema Único de Saúde
se ainda em 1961 a regulamentação tardia do (SUS), a regulamentação por meio da Lei
Código Nacional de Saúde (Lei no 2.312/1954), Orgânica da Saúde, Lei no 8.080/1990, e da Lei
disciplinando normas gerais sobre defesa e pro- no 8.142/1990, e a adoção de princípios demo-
teção da saúde, quadro institucional posterior- cráticos capazes de conferir maior efetividade
mente alterado pela circunstância de o Brasil à preservação da saúde pública, agora em bases
mergulhar mais uma vez em processos arbitrá- voltadas para a cidadania:
rios por força da ditadura (1964-1985) – período
no qual, com a edição da Constituição de 1967, Tomado o período em seu conjunto, é pos-
se reforçou a tendência de concentração de po- sível afirmar que, nele, a visão da Vigilância
como ação da cidadania, e sua fundamenta-
der nas mãos do Executivo, o que contribuiu
ção na epidemiologia e no enfoque de risco,
para aprofundar a falta de efetividade dos ideais tornaram-se mais consistentes. Aumentou
do modelo social11. Durante o regime militar a participação da sociedade civil […] em
editaram-se textos legais voltados para as ações órgãos colegiados e introduziu-se o hábito
de submeter as regulamentações à consulta
de vigilância sanitária, como a Lei no 6.360/1976,
pública, através do diário oficial, antes da
Lei de Vigilância Sanitária, e a Lei no 6.437/1977, publicação definitiva. Deram-se alguns pas-
a caracterizar as infrações administrativas sani- sos rumo à descentralização para os Estados
tárias (COSTA; ROZENFELD, 2000, p. 32-35). e Municípios e iniciou-se a estruturação de
programas de formação de recursos humanos
(COSTA; ROZENFELD, 2000, p. 36).
11
O Decreto-lei no 200/1967, concebido sob a inspiração
de referências gerenciais de gestão da iniciativa privada, pro-
curava normatizar e padronizar procedimentos nas áreas de Tais indicações foram necessárias para pos-
pessoal, compras governamentais e execução orçamentária,
adotando no plano teórico os princípios de planejamento, sibilitar a compreensão do poder de polícia
coordenação, descentralização, delegação de competências e sanitário ou atividade ordenadora, de modo a
controle. No entanto, o crescimento da estrutura burocrática
da Administração indireta, o sucateamento dos órgãos públi- identificar os profundos processos relacionais de
cos e o regime de arbítrio inviabilizaram superar os diversos
problemas de controle em virtude de dois aspectos principais:
poder, imprescindíveis para adotar um modelo
“de um lado, a hipertrofia e o crescimento desordenado mais democrático de aplicação das medidas
da administração indireta naturalmente inviabilizaram os
mecanismos de coordenação; de outro, a racionalidade e o de saúde pública. A reflexão sobre a história
profissionalismo desejados com o decreto foram perdendo social é instrumento poderoso para o objeto
vitalidade na medida em que os militares, para contrapor
à progressiva perda de legitimidade do regime, que crescia desta breve investigação por vislumbrar as ações
a cada ano, faziam uso patrimonialista da administração administrativas sanitárias no âmbito do próprio
pública, trocando cargos por apoio político” (TORRES,
2004, p. 158). mundo social – submetidas, portanto, ao con-

202 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 195-218 abr./jun. 2021


junto de disputas que ocorrem nos campos administrativo, econômico,
social e político.

3 O enfrentamento da pandemia do coronavírus e os


cidadãos em contextos de vulnerabilidade

No tópico anterior mencionou-se a decisão do presidente do STF


(BRASIL, 2020d) relativamente ao decreto do município de São Bernardo
do Campo, que restringia a circulação de idosos na área do seu território,
sob a justificativa da impossibilidade de deixar ao livre arbítrio a opção
de adesão às ordens de confinamento. Porém, ao final, prevaleceu o
entendimento de que não há legitimidade para a restrição coercitiva à
circulação dos idosos do município. Trata-se, portanto, de caso típico
do campo de poder da Administração Pública.
Vislumbra-se o campo como espaço social relativamente autônomo,
com relações objetivas guiadas por uma lógica e necessidades específicas,
apresentando leis e regras próprias de funcionamento, mas também capaz
de sofrer a influência de outros espaços sociais (BOURDIEU, 2004b,
p. 20). Para Bourdieu (2004b, p. 23), o campo é sempre um campo de
forças, de lutas para a conservação ou transformação. No seu cotidiano
existem relações de dominação, erigidas pelos próprios agentes que criam
o espaço, e o espaço existe pelos agentes e pelas relações objetivas entre
eles. A edição daquele decreto retrata bem o exercício abusivo do poder
de polícia sanitário, pois o prefeito concedera entrevista para veículo
de imprensa assumindo o nítido papel do “grande protetor”, típico dos
agentes sanitários do período colonial brasileiro, em troca de submissão,
ao referir de modo expresso: “Infelizmente é um plano duro, mas que
precisa ser feito para conscientizar e proteger os idosos. A realidade
mostra a sua fraqueza diante do vírus, e este público infelizmente ainda
está circulando. Queremos a ajuda de todos para evitar a exposição dos
idosos” (HENRIQUE, 2020).
Contudo, o STF consignou de modo explícito, muito embora reco-
nheça o poder administrativo para a edição de decretos regulamenta-
res, que o ato praticado pelo chefe do Poder Executivo deveria “estar
respaldado em recomendação técnica e fundamentada da ANVISA”
(BRASIL, 2020d, p. 5). Mais uma vez se verificou um dos problemas
que a história social do poder de polícia sanitário no Brasil demons-
trou. O exercício abusivo caracterizou-se por não se fundamentar em
parâmetros sanitários, ora adotando um olhar mágico, com soluções
de caráter simbólico, ora embasado no imaginário do senso comum,
atrelado ao vetusto modelo da polícia médica – por conseguinte, prer-

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rogativa de caráter fiscalizador, julgador e punitivo. Caso flagrado, o
idoso de São Bernardo do Campo responderia pelo pagamento de uma
multa de R$ 200,00.
As medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública
decorrente do coronavírus dispostas na Lei no 13.979, de 6/2/2020, não
podem tornar-se reféns da violência simbólica12 do poder de polícia
sanitário, bem como sucumbir à lógica do poder da doxa burocrática13,
em especial para lidar com cidadãos em contextos de vulnerabilidades.
O art. 3o determina que, para combater a crise sanitária, as autorida-
des poderão adotar, no âmbito de suas competências, as medidas de
isolamento, quarentena, ordens administrativas, entre outras, inclusive
a realização de exames ou vacinação, estudos ou investigações epide-
miológicas, restrições de circulação, requisição de bens e serviços e
autorizações administrativas (BRASIL, 2020c).
A violência simbólica permite investigar o procedimento arbitrário
de alguns agentes públicos nas relações estabelecidas com os cidadãos,
circunstância mais evidenciada num período de crise de saúde pública,
configurando-se espécie de poder que impõe significados, classifica-
ções, categorizações, valendo-se de estruturas objetivas de legitimação,
dissimulando as relações de força que sustentam tal poder simbólico
(BOURDIEU, 1989, p. 14). Assim, a primazia da autoridade sanitária
afirma-se na objetividade das estruturas burocráticas e atividades coer-
citivas institucionalizadas, bem como decorre do habitus auctoritatis14,

12
O tema foi desenvolvido por Bourdieu (1989, 2014) no contexto de sua sociologia
reflexiva e aplica-se ao poder de polícia sanitário, identificando o fenômeno da dominação
realizada no exercício do poder simbólico como o poder invisível operado pela autoridade
pública, capaz de conferir-lhe a prerrogativa de controle social em diversos segmentos da
atuação do Estado, inclusive ações oficiais para salvaguardar a saúde pública. A violência
simbólica atua no plano das significações, do sentido que se confere ao mundo social e
à própria construção da realidade, estabelecendo o sentido imediato, as linguagens coti-
dianas, classificações e práticas, por intermédio de sistemas simbólicos que funcionam
como instrumentos de dominação e integração social, bem como por meio de estruturas
estruturadas e estruturantes de controle.
13
A doxa burocrática vincula-se ao senso comum – conjunto de pressupostos admitidos
como evidentes e fora de qualquer discussão (BOURDIEU, 1994b, p. 147) –, no que diz
respeito aos produtos do campo burocrático do Estado. As ações públicas contam com o
efeito da ortodoxia de censura radical, invisível e constitutiva do próprio modo de funcio-
namento do campo (BOURDIEU, 1994b, p. 146). Logo, a verdade oficial em matéria de
saúde pública nada mais é que a imposição legítima de um arbítrio cultural-burocrático,
exprimindo os interesses preponderantes dos agentes que dominam o modo de funciona-
mento das estruturas do Estado.
14
Bourdieu (1994a, p. 61) refere-se ao habitus como “sistemas de disposições duráveis,
estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é,
como princípio gerador e estruturador de práticas e das representações que podem ser
objetivamente reguladas e regulares sem ser o produto de obediência a regras, objetivamente
adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das
operações necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da
ação organizadora de um regente”. Observando o entendimento do sociólogo, é possível
falar em disposições específicas do exercício de competências administrativas sanitárias
de modo abusivo, por meio das quais o agente público incorpora ações de autoridade ao

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funcionando como matriz de compreensão (BOURDIEU, 2014, p. 45)
do agente sanitário em relação à saúde pública, ainda dominada pela
força simbólica da historicidade do poder de polícia calcado na im-
peratividade, coercibilidade, e atrelado à noção de ordem de polícia.
O habitus auctoritatis também foi manifesto no Decreto Municipal
o
n 82/2020 editado pelo chefe do Poder Executivo de Umuarama (PR),
materializando a reprodução da violência simbólica da doxa burocrática
sanitária, do senso comum de autoridade que assume a função tutelar
em relação aos cidadãos, pois, por meio do ato administrativo regula-
mentar, decretou toque de recolher no município: primeiro das 21 até
as 5 horas, com pequena alteração do início para as 22 horas. Esse ato
também foi questionado no STF (BRASIL, 2020e). A Administração
Pública apresentou justificativas integradas ao conjunto de disposições
da estrutura administrativa, com base na necessidade da restrição
sanitária e na competência constitucional do agente público para con-
cretizar a medida.
A dimensão simbólica da relação de poder, como aduz Bourdieu
(2014, p. 46), não significa desconsiderar as dimensões das violências
físicas ou materiais de cerceamento da liberdade, pois a reflexão desen-
volvida orienta-se exatamente para descortinar o processo de dominação
envolvido, responsável por incutir nos cidadãos a obediência incondicio-
nal, seja com base no medo em contextos de pandemia, seja também no
reconhecimento de que ali está um ato de autoridade, portanto, dotado
de neutralidade. A decisão do presidente do STF (BRASIL, 2020e) foi
expressa ao consignar a ausência de qualquer norma autorizando ao
chefe do Poder Executivo municipal impor restrições ao direito de ir
e vir de quem quer que seja. Afirmou que a própria normativa federal
de Direito Administrativo Sanitário não restringe coercitivamente a
circulação dos cidadãos, limitando-se a expedir uma recomendação.
O ato praticado decorre das estruturas de dominação já aludidas na
primeira parte; é produto do trabalho de reprodução social e histórica,
desde as relações de colonialidade, passando pela dominação simbólica
higienista e, em determinados períodos, disposições autoritárias de regi-
mes ditatoriais. Outro aspecto grave retratado na decisão do STF reside
na ausência de recomendação técnica do órgão competente, Ministério
da Saúde ou Anvisa, para impor toque de recolher aos munícipes: “Fácil
constatar, assim, que referidos decretos carecem de fundamentação
técnica, não podendo a simples existência da pandemia que ora assola

impor limitações ilegítimas aos cidadãos, agindo no espaço administrativo e no mundo


social com predisposições, tendências e propensões marcadas pela dominação dos compor-
tamentos sociais, bem como por patologias burocráticas, quer dizer, estruturas estruturadas
e estruturantes predispostas para a reprodução de práticas e representações autoritárias.

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 195-218 abr./jun. 2021 205


o mundo, servir de justificativa, para tanto”, destacou o ministro Dias
Toffoli (BRASIL, 2020e, p. 5).
Todavia, além da necessidade de alterar o quadro da dimensão sim-
bólica do exercício da competência administrativa sanitária – por inter-
médio de autêntica transformação das condições sociais de produção e
reprodução das relações de poder de polícia (BOURDIEU, 2014, p. 54) –,
para lidar com cidadãos em contextos de vulnerabilidade impõe-se dis-
cutir os problemas da falta de efetividade de algumas medidas sanitárias
relevantes em períodos de emergência de saúde pública e amplamente
sustentadas por orientações da própria OMS, como o distanciamento
social, medida aplicada a entornos sociais específicos ou à sociedade em
sua totalidade para reduzir o risco de adquirir ou difundir a Covid-19,
propiciar a diminuição ou achatamento da curva epidêmica, aliviar o
estresse nos serviços de saúde e ganhar tempo até que estejam disponíveis
medidas farmacêuticas específicas (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA
DE SAÚDE, 2020, p. 1-2).
A Lei no 13.979/2020 disciplinou no art. 2o o isolamento (inc. I) e
a quarentena (inc. II), além de indicar no art. 3o medidas específicas
para enfrentamento da emergência de saúde pública, entre outras que
poderiam ser adotadas pelas autoridades administrativas, e sempre com
base em evidências científicas, limitadas o mínimo possível no tempo e
espaço (§ 1o) (BRASIL, 2020c). Não obstante, deve-se discutir o problema
da aplicação normativa em relação aos cidadãos em contextos de vulne-
rabilidade, expressão que de fato provoca inúmeros debates. Consoante
Martuccelli (2016, p. 126), em sentido amplo, designa a característica
comum ao ser humano – e, por extensão, à sociedade – de exposição a
algo, considerando a fragilidade humana, as profundas desigualdades his-
toricamente construídas, além de processos estruturais de discriminação.
Logo, as complexas causas exigem abordagem ampla, considerando os
acontecimentos do mundo social, econômico, político e de incapacida-
des15. Em grande medida, a falta de efetividade das ações administrativas
sanitárias, nos casos de comunidades vulneráveis, é fruto do próprio modo
de construção social, marcado pela indiferença cotidiana.
De acordo com Pires (2020, p. 51), pesquisador do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada, as medidas previstas na Lei no 13.979/2020 não

15
É útil destacar a referência de Raciti (2009) para caracterizar a vulnerabilidade como
capaz de exprimir a ideia de fragilidade, que impõe o exercício de ações de cuidado nas
relações com pessoas vulneráveis; ainda que não seja crível categorizar os cidadãos, devem-se
compreender os diversos fatores determinantes das situações de desigualdade, pois as pessoas
em contextos vulneráveis (sob o ponto de vista social, econômico, político, jurídico etc.)
são aquelas cuja autonomia e integridade podem ser ameaçadas. A Administração Pública
tem a relevante tarefa de realizar ações sanitárias voltadas para garantir a autonomia por
meio das medidas de emergência de saúde pública.

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produzem efeitos uniformes sobre a população, que cidadãos estão cotidianamente submetidos
e os segmentos sociais vulneráveis tendem a ter a profundos processos de desigualdade, discri-
menor capacidade de absorção dos impactos que minação e outros indicadores de vulnerabilidade
tais ações públicas provocam no seu cotidiano: socioeconômica.
Como destaca o Boletim Ciências Sociais
a distribuição desigual dos efeitos adversos e Coronavírus (2020, p. [5]), da Associação
e os deficit de atenção e cobertura sobre o Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
território e suas populações fazem com que
Ciências Sociais, é crucial considerar os efeitos
as mesmas medidas governamentais sejam ex-
perimentadas de forma bastante diferenciada da pandemia sobre comunidades rurais, negros,
pelas pessoas, a depender de suas trajetórias, quilombolas e indígenas, pois tais segmentos
localização e formas de inserção no conjunto estão entre os mais vulneráveis da população
das relações sociais. Nesse sentido, é de se
em diversos aspectos:
esperar que grupos sociais historicamente
submetidos a processos de vulnerabilização
sofram em intensidade desproporcional os via de regra, esses segmentos residem/ocu-
efeitos adversos e a desatenção das medidas pam áreas de difícil acesso, ou favelas e pa-
adotadas para o enfrentamento à crise. lafitas (os chamados “aglomerados urbanos
subnormais”), não alcançados pelos serviços e
equipamentos públicos de saúde, saneamento
Aqui se evidencia o conjunto de patologias e educação, por exemplo, de seus respectivos
relacionadas com o habitus burocrático, isto é, municípios e estados; frequentemente são
vítimas de racismo institucional por parte,
disposições estruturantes e estruturadas, finca-
justamente, dos gestores desses serviços e/ou
das no histórico paradigma de polícia médica – por seus operadores (o que também repercute
marcada pelo formalismo, instrumentalismo, diretamente no agravamento da condição
indiferença, dominação e discriminação –, acima descrita).
duráveis e predispostas à reprodução da vio-
lência simbólica de práticas e representações O Mapa Brasileiro da Covid-19, elaborado
burocráticas. O poder de polícia sanitário não para medir o índice de distanciamento social
pode sucumbir ao formalismo, a que se refere e auxiliar no combate ao coronavírus, indicou
Bourdieu (1989, p. 158) ao criticar o positivismo em 22/3/2020 o maior pico de distanciamento
jurídico, de modo a venerar a autonomia absolu- alcançado, com o índice de 62,2% de média no
ta do conhecimento em relação ao mundo social. Brasil. Após isso houve decréscimo de modo
A materialização das medidas sanitárias pela predominante nos percentuais: 59,9% em 29/3;
Administração Pública muitas vezes olvida os 56,8% em 5/4; 54% em 12/4; 53,1% em 26/4;
contextos de vulnerabilidade dos cidadãos. Um 50% em 3/5; 52,2% em 17/5; 49,8% em 31/5
estudo realizado no município de Salvador pelo e 39,04% em 4/6 (INLOCO, [2020]). É claro
grupo GeoCombate Covid-19 aponta que “as que essa medição apresenta apenas percentuais
condições socioeconômicas dos bairros sote- médios, mas os baixos índices também se expli-
ropolitanos são extremamente heterogêneas e, cam considerando outros elementos, pois não
diante dessa disparidade, o risco envolvido para se pode desconsiderar que mais de 11 milhões
determinados estratos da população é significa- de cidadãos no Brasil moram em casas super-
tivamente maior que outros” (GEOCOMBATE, lotadas. Conforme dados do IBGE, em 2010
2020, p. [3]). A questão não diz respeito apenas seis milhões não tinham banheiro em casa, 31
a Salvador, mas a inúmeros locais do Brasil em milhões não tinham acesso ao abastecimento de

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água e um milhão vivia em casas com apenas um cômodo (INSTITUTO
BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, [2020]).
Assim, como as medidas de distanciamento social podem fazer
sentido para comunidades vulnerabilizadas? Tal reflexão remete à dis-
cussão do habitus, elemento importante para investigar a regra jurídica
e a convergência das ações sociais. As práticas do mundo social não
decorrem apenas da obediência às regras. Aliás, no início da pandemia
do coronavírus, quase todos os estados e municípios brasileiros adotaram
legislações restritivas; todavia, a efetividade não se encontra na regra,
pois o habitus determina a práxis – como aduz Bourdieu (2004a, p. 96),
“a regra não é automaticamente eficaz por si mesma”. No entendimento
do sociólogo, ao lado das regras existem outros princípios geradores
das práticas. A investigação sobre a obediência às regras remete à dis-
cussão acerca de uma espécie de sentido do jogo, exigindo a necessária
reconstrução dos capitais de esquemas informacionais responsáveis pela
produção das ações sociais, de esquemas práticos erigidos histórica e
socialmente, responsáveis pela integração social:

O habitus, como sistema de disposições para a prática, é um fundamento


objetivo de condutas regulares, logo, da regularidade das condutas, e,
se é possível prever-se as práticas (neste caso, a sanção associada a uma
determinada transgressão), é porque o habitus faz com que os agentes
que o possuem comportem-se de uma determinada maneira em deter-
minadas circunstâncias (BOURDIEU, 2004a, p. 98)16.

Ao examinar o contributo da sociologia crítica de Bourdieu para a


compreensão dos modos de funcionamento das regras, Sckell (2016,
p. 160) afirma que o habitus é princípio de ação, de compreensão e de
competências adquiridas, funcionando como categorias de classificação
e organização das ações, gerando comportamentos que são apropriados
para a lógica objetiva do campo social: “A ação é orientada pelo jogo, não
pela razão. Os comportamentos buscam um objetivo, mas sem pensar
sobre isso. Eles são o produto de um ‘senso prático’ e não de um cálculo
ou de uma obediência a uma regra. As disposições são a adaptação às
situações, às esperanças e às possibilidades”.
As regras jurídicas sanitárias da Lei no 13.979/2020 devem ter a capa-
cidade de reforçar as disposições coletivas dos cidadãos em contextos de

16
O debate sobre a efetividade do poder de polícia sanitário direciona-se para a questão
do senso prático, como afirma Bourdieu (2004a, p. 99, grifo do autor): “Na maior parte das
condutas cotidianas, somos guiados por esquemas práticos, isto é, princípios que impõem
a ordem na ação (principium importans ordinem ad actum, como dizia a escolástica), por
esquemas informacionais. Trata-se de princípios de classificação, de hierarquização, de di-
visão que são também princípios de visão, em suma, tudo o que permite a cada um de nós
distinguir coisas que outros confundem, operar uma diacrisis, um julgamento que separa”.

208 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 195-218 abr./jun. 2021


vulnerabilidade, salientando-se o Plano de Ação conjunto de regras explícitas, mas resultado
sugerido pela Associação Brasileira de Saúde do encontro entre o habitus e o campo social
Coletiva ([2020], p. [1]) e outras entidades com (BOURDIEU, 1994a, p. 64), com sua lógica
a seguinte descrição do contexto da pandemia: específica de cidadãos imersos em profundo
processo de descaso pelo Estado em matéria
Um momento de calamidade sanitária como de serviços públicos básicos ou de políticas
o que estamos vivendo deve ser encarado sociais de fato implementadas no território das
como um enorme desafio coletivo, pois este
comunidades.
novo coronavírus destrói vidas e ataca as
bases da economia e da sociedade como um O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP)
todo. Diante desse quadro cada sociedade julgou um caso representativo disso. Tratava-se
tem procurado encontrar as melhores al- de ação civil pública proposta pela Defensoria
ternativas de que dispõe. No Brasil, e mais
Pública estadual contra o município de São
especificamente nas suas grandes metrópoles,
pode-se dizer que o ponto mais dramático Paulo (SÃO PAULO, 2020) com o propósito
da luta contra a epidemia apenas começou, de suspender qualquer medida direcionada
agora que o coronavírus chegou com força ao fechamento da Unidade de Atendimento
nas favelas e periferias, espalhando em lar- Diário Emergencial, serviço destinado a atender
ga escala a Covid-19. Diante desse quadro,
pessoas em situação de rua dos arredores da
se um plano de ações mais estruturado e
focalizado não for urgentemente colocado Rua Helvética, no centro da capital. O recurso
em prática o cenário que se coloca é de uma foi interposto pela Administração Pública, cuja
grande tragédia humanitária, com muito so- pretensão era modificar o acolhimento da limi-
frimento, medo, mortes de pessoas de todas
nar pelo juízo de primeiro grau, mas foi negado
as idades, além de fome e possível desordem.
E isso poderá ocorrer não apenas pela ação provimento, destacando-se que o município
direta do vírus, mas também por seus efeitos não poderia deixar tais cidadãos em situação de
indiretos, decorrentes da desorganização dos vulnerabilidade sem abrigo noturno durante a
serviços básicos de saúde, e de seu impacto
pandemia do coronavírus, dadas as dificuldades
social, do qual o mais importante é o cres-
cimento da insegurança alimentar. para buscar outras unidades: “O município tem
o dever constitucional de propiciar serviços de
Não considerar tal contexto no processo assistência social e à saúde, dentre os quais o
de aplicação das medidas sanitárias representa acolhimento de população vulnerável, nos locais
um equívoco, refletindo negativamente sobre a de seu território onde se mostrem necessários”
efetividade da própria Lei no 13.979/2020 e do (SÃO PAULO, 2020, p. 4).
modo de funcionamento do campo administra- O caso examinado pelo TJSP é útil ao exem-
tivo sanitário, exigindo a ruptura epistemológica plificar a crítica de Bourdieu (2004a) ao for-
quanto ao desenvolvimento das ações públicas malismo. Muito embora o exercício do poder
em período de emergência de saúde pública. A de polícia se fundamente em regras jurídicas,
perspectiva dos agentes sanitários deve abarcar dotando-as de universalidade, quando se trata
campos mais abrangentes, contribuindo para especialmente de aplicar medidas sanitárias
criar condições de amenizar os processos de deve-se ter presente que a efetividade no mundo
vulnerabilização das comunidades; caso contrá- social exige considerar que a normatividade é
rio, as regras sanitárias não integrarão o senso produzida no conjunto de determinadas con-
prático dos cidadãos – aquele sentido capaz de dições históricas, sociais, econômicas, políticas,
orientar as ações sociais não se submetendo ao e decorre das múltiplas dinâmicas dos campos.

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4 A juridicidade sanitária com comunidade, e a emancipação, formada pelas
enfoque nos direitos humanos: racionalidades ético-expressiva da arte e da
da regulação à emancipação literatura, moral-prática da ética e do Direito,
e cognitivo-instrumental da ciência e da técni-
Nos termos já apontados, o poder de polícia ca. Assim, sob o ponto de vista da regulação,
sanitário no Brasil, marcadamente inserido na o conhecimento direciona-se para fortalecer
lógica de funcionamento do campo adminis- ações de ordem e controle, ao passo que na
trativo do Estado, articulou-se historicamente emancipação se privilegia a materialização da
entre as questões do habitus auctoritatis, ense- solidariedade e autonomização dos cidadãos.
jando a figura do abuso de poder sanitário e O paradigma da modernidade veicula a ne-
os mecanismos de dominação, bem como do cessidade de equilibrar tais pilares, de modo a
habitus burocrático, com as discussões sobre articular-se um equilíbrio dinâmico, mas não
a efetividade das medidas para a proteção da foi o que ocorreu:
saúde pública. No intuito de responder à questão
formulada sobre as possibilidades de a perspec- vimos, porém, que nos últimos duzentos
tiva sociojurídica contribuir para a emancipação anos a racionalidade cognitivo instrumental
da ciência e da tecnologia se foi impondo às
dos cidadãos em contextos de vulnerabilidade,
demais. Com isto, o conhecimento-regulação
em especial durante o período da pandemia conquistou a primazia sobre o conhecimen-
do coronavírus, exige-se modificar o modo de to-emancipação: a ordem transformou-se
compreensão da juridicidade sanitária17, inserir na forma hegemônica de saber e o caos na
forma hegemônica de ignorância. Este dese-
o enfoque dos direitos humanos/direitos fun-
quilíbrio a favor do conhecimento-regulação
damentais, abrir a discussão para os processos permitiu a este último recodificar nos seus
sociais de regulação e emancipação. próprios termos o conhecimento-emanci-
Santos (1997, p. 77) expõe os dois princí- pação (SANTOS, 2000, p. 79).
pios da modernidade: a regulação, constituída
pelos princípios do Estado, do mercado e da Para ultrapassar tal estado de coisas, seja sob
o ponto de vista dos abusos de poder sanitário,
seja na questão da (in)efetividade das medidas
17
Adota-se a expressão para significar a necessidade de
institucionalizar normatividades mais amplas em termos
da Lei no 13.979/2020, em relação aos cidadãos
democráticos, influenciando assim o conteúdo da concep- vulneráveis é preciso reinventar as ações ad-
ção tradicional de legalidade, mas também para inserir no
campo jurídico-administrativo a dimensão da historicidade, ministrativas sanitárias à luz da emancipação
alterando a relação lei-tempo, em que o enfoque dos direitos social, adotando-se o enfoque baseado em di-
humanos auxilia. No entendimento de Otero (2003, p. 15),
muito embora em contexto diverso, “a juridicidade adminis- reitos humanos/direitos fundamentais.
trativa traduz uma legalidade mais exigente, revelando que Segundo Pérez Luño (1999, p. 48), os di-
o poder público não está apenas limitado pelo Direito que
cria, encontrando-se também condicionado por normas e reitos humanos aparecem como “un conjunto
princípios cuja existência e respectiva força vinculativa não
se encontram na disponibilidade desse mesmo poder. Neste
de facultades e instituciones que, en cada mo-
sentido, a vinculação administrativa à lei transformou-se mento histórico, concretan las exigencias de la
numa verdadeira vinculação ao Direito, registrando-se aqui
o abandono de uma concepção positivista-legalista confi- dignidad, la libertad y la igualdad humanas, las
gurativa da legalidade administrativa, tal como resulta do cuales deben ser reconocidas positivamente por
entendimento doutrinal subjacente à Constituição de Bona”.
Tal juízo possibilita o debate sobre o exercício do poder de los ordenamientos jurídicos a nivel nacional e
polícia sanitário no Brasil e sobre a função da juridicidade internacional”. De modo específico, no âmbito
sanitária de proteção aos cidadãos contra a prepotência,
o arbítrio e a falta de efetividade das medidas aplicadas. do poder de polícia, também se apontam os

210 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 195-218 abr./jun. 2021


direitos fundamentais18 exercendo a função de de igualdade, liberdade e dignidade que devem
eficácia bloqueadora, instituindo barreiras à formar as disposições para a institucionalização
ação ordenadora do Estado quando, no caso do dos problemas do mundo social, aqueles proble-
poder de polícia sanitário, houver violação do mas oficializados e que ingressam no horizonte
âmbito de proteção dos direitos fundamentais, de atuação da Administração Pública.
do princípio da proporcionalidade ou, ainda, Não se podem olvidar as dificuldades para
quando medidas sanitárias ocasionam a re- laborar o poder de polícia sanitário com en-
dução dos direitos fundamentais ao ponto de foque dos direitos humanos, pois romper o
aniquilá-los (BINENBOJM, 2016, p. 117-122). senso comum exige desenvolver atividade crítica
O discurso dos direitos humanos é capaz de em relação à linguagem oficial. No entendi-
criar condições de possibilidade para ultrapassar mento de Bourdieu (1989, p. 39), a linguagem
os problemas já destacados da doxa burocrática “é um enorme depósito de pré-construções
sanitária, de modo a melhor dotar de efetivi- naturalizadas, ignoradas como tal, que fun-
dade as medidas de saúde pública em relação cionam como instrumentos inconscientes de
às pessoas em situação de vulnerabilidade. A construção”. Muitas das dificuldades para lidar
materialização das medidas para o combate à com a aplicação de medidas de saúde pública,
emergência sanitária causada pelo coronavírus distanciamento social, isolamento, quarente-
não é compatível com tratamentos formalistas e na etc., decorrem da circunstância segundo a
abstratos; a historicidade dos direitos humanos qual a conceituação administrativa do mundo
(FARIÑAS DULCE, 1998, p. 356), na linha da social é formalizada por meio de categorias
história social19 dos problemas de Bourdieu do entendimento burocrático, valendo-se os
(1989), abre a perspectiva de outra racionalidade agentes públicos das taxionomias, sistemas de
para o exercício do poder de polícia, agora do- classificação que organizam o processo de com-
tada de consciência histórica sobre as exigências preensão. A linguagem dos direitos humanos,
como linguagem questionadora do status quo,
atua como primordial estratégia para a emanci-
18
Em relação aos direitos fundamentais, destaca Sarlet
(2015, p. 77) que, além da função limitativa do poder, cons- pação de cidadãos desprotegidos, invisíveis para
tituem critérios de legitimação do poder estatal e da própria as ações sanitárias oficiais, cujas necessidades,
ordem constitucional. Os direitos fundamentais “são, portan-
to, todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas para que as normatividades de ordenação façam
que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, algum sentido, dependem da atuação conjunta
foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade
em sentido material), integradas ao texto da Constituição e, de políticas sociais.
portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes
constituídos (fundamentalidade em sentido formal), bem
Outro aspecto imprescindível para desen-
como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser volver o questionamento do modo tradicional
equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo,
ou não, assento na Constituição formal (aqui considerada de exercício do poder de polícia sanitário no
a abertura material do Catálogo)”. Brasil consiste no que Bourdieu (1989, p. 38-
19
No intuito de ultrapassar o senso comum da doxa,
Bourdieu (1989, p. 36) destaca a importância da história
45) denomina ruptura epistemológica. Trata-se
social dos problemas: “Um dos instrumentos mais poderosos da ruptura do conjunto de crenças baseadas no
da ruptura é a história social dos problemas, dos objetos e
dos instrumentos de pensamento, quer dizer, do trabalho senso comum do campo jurídico-administrati-
social de construção de instrumentos de construção da vo, duvidando-se da tradição douta, dialogando
realidade social (como as noções comuns, papel, cultura,
velhice etc., ou sistemas de classificação) que se realiza no com a tradição, mas sem cair no erro de ado-
próprio seio do mundo social, no seu conjunto, neste ou tar de modo ingênuo aquilo que é pressuposto
naquele campo especializado, e especialmente no campo
das ciências sociais”. pelo senso comum, o conjunto de disposições

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que contribuem para a reprodução da ordem para a emancipação social, pressupondo “o que
existente, impondo evidências de compreen- ele chama de uma política realista (Realpolitk)
são. Na reflexão realizada na primeira parte da razão: todo e qualquer projeto de desenvolvi-
deste estudo, verificou-se a construção social mento da humanidade – mesmo em um quadro
e histórica daqueles pressupostos instituciona- jurídico – deve considerar o desenvolvimento
lizados em matéria de ações administrativas histórico dos valores universais – no nosso
sanitárias – entre eles, a concepção segundo a caso, aqueles relativos às questões de justiça”
qual a relação de dominação, configurada por (SCKELL, 2016, p. 174, grifo da autora):
coerção e imperatividade, é capaz de abarcar as
necessidades de saúde pública de cidadãos em A maior parte das obras humanas que temos
contextos de vulnerabilidade. o hábito de considerar como universais – o
direito, a ciência, a arte, a moral, a religião
A juridicidade sanitária, fundada no enfo-
etc. – são indissociáveis do ponto de vista
que sugerido nesta investigação, introduz um escolástico e das condições econômicas e
âmbito maior para surgirem novos direitos, sociais que as tornaram possíveis e que não
com os respectivos instrumentos de acesso têm nada de universal. Elas são engendradas
nesses universos sociais muito específicos
aos serviços públicos para uma vida digna, até
que são os campos de produção cultural
porque os direitos humanos não se limitam (campo jurídico, campo científico, campo
aos processos estatais de institucionalização artístico, campo filosófico, etc.) e nos quais
excessivamente burocratizados (FARIÑAS estão engajados agentes que têm em comum
DULCE, 1998, p. 358), restritos aos quadros o privilégio de lutar pelo monopólio do uni-
versal, contribuindo assim para levar avante,
da estrutura oficial, mas também confrontam as
aos poucos, verdades e valores tidos, em cada
normatividades administrativas com cidadãos momento, como universais, isto é, eternos
dispersos ou em movimentos sociais dos mais (BOURDIEU, 1997, p. 209, grifo do autor).
variados campos do mundo social, exigindo o
permanente diálogo da Administração Pública. Universalizados de modo a permitir o aces-
Caso contrário, haverá a contínua erosão da so ao universal, os direitos humanos auxiliam
legitimidade democrática. na construção de um campo administrativo
Na linha de Fariñas Dulce (1998, p. 359), o sanitário fincado em bases mais democráticas,
diálogo com os direitos humanos evidencia a inclusive nos termos da Declaração da Corte
necessidade de alterar os tradicionais processos Interamericana de Direitos Humanos 1/2020,
de gestão relacionados com a aplicação de me- emitida para exortar os Estados americanos à
didas de emergência de saúde pública. A racio- adoção e implementação de medidas no contex-
nalidade jurídica do poder de polícia sanitário to da pandemia causada pelo coronavírus, con-
deve fundar-se em pressupostos mais plurais siderando que os instrumentos interamericanos
e abertos, e com formas de organização das de proteção dos direitos humanos, em particular
próprias comunidades vulnerabilizadas, muitas os direitos econômicos, sociais, culturais e am-
vezes fundadas em diretrizes como autogestão, bientais, devem ser garantidos sem discrimina-
diversidade, autonomia local e regional e a des- ção a todas as pessoas e, de modo especial, aos
centralização (FARIÑAS DULCE, 1998, p. 360). grupos que são desproporcionalmente afetados
A perspectiva sociojurídica, dialogando com “por estarem em situação de maior vulnera-
a sociologia de Pierre Bourdieu, permite con- bilidade” (CORTE INTERAMERICANA DE
cluir a relevância do Direito (Administrativo) DIREITOS HUMANOS, 2020, p. 2).

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Tais indicações são relevantes para com- impondo-se articular o paradigma social da vi-
preender o alcance do art. 3o, § 2o, da Lei gilância sanitária com disposições democráticas,
no 13.979/2020, ao regular as salvaguardas voltadas para aprofundar a cidadania. A história
(VENTURA; AITH; RACHED, 2020, p. 27) demonstrou o equívoco de políticas distanciadas
para as pessoas afetadas pelas medidas previstas da comunidade ou que se subjugaram a outros
no dispositivo, assegurando-lhes o direito à in- interesses – oligárquicos, políticos e econômicos.
formação e ao tratamento gratuito, o respeito aos O poder de polícia sanitário precisa ultra-
direitos humanos e às liberdades fundamentais, passar o senso burocrático de laborar com o
remetendo de modo explícito às normativida- medo, despertando a insegurança da população
des locais para o âmbito da proteção interna- em quadros de emergência de saúde pública,
cional dos direitos humanos prevista na Carta situação que apenas é superada quando se revela
das Nações Unidas e na Constituição da OMS, a violência simbólica que alimenta o habitus
destacando o problema da aplicação universal auctoritatis, fundado em processos de domina-
centrada na proteção de todos os povos. ção. É preciso transformar as condições sociais
de produção das relações de poder de polícia,
qualificando cada vez mais as ações públicas
5 Conclusão como planos de cidadania, e não de polícia ad-
ministrativa.
O poder de polícia sanitário configura-se Ao mesmo tempo, as questões de efetividade
como tema tradicional do Direito Administrativo, das medidas de emergência de saúde pública,
mas adquiriu contornos especiais em virtude da em especial considerando as comunidades vul-
pandemia da Covid-19. As ações desenvolvidas nerabilizadas, exigem a articulação conjunta da
pelo Estado nesse campo suscitam inúmeros de- normatividade sanitária com ações de política
bates e controvérsias, pois o combate a epidemias social. Somente assim é possível erigir espaços
relaciona-se com a utilização de instrumentos democráticos de autonomização. Os cidadãos
de gestão capazes de condicionar a liberdade e em contexto de vulnerabilidade socioeconô-
a propriedade dos cidadãos. mica tendem a dispor de menor capacidade de
Daí a importância da reflexão sobre a histó- absorção dos impactos que as ações previstas
ria social, como a realizada neste breve estudo, na Lei no 13.979/2020 provocam no cotidiano,
de modo a descortinar modelos, paradigmas, quando se considera a distribuição desigual dos
olhares sobre a saúde pública e o conjunto de efeitos adversos, algo muitas vezes invisível no
mecanismos para o combate às epidemias e campo burocrático, refém dos procedimentos
emergências sanitárias. Com certeza, é difícil formalistas.
articular todos os interesses envolvidos e não A própria falta de adesão às medidas de dis-
sucumbir ao autoritarismo sanitário, sempre tanciamento social relaciona-se com a ausência
justificado pela proteção das pessoas afetadas de senso prático. As regras sanitárias devem ter a
por doenças que já assolaram o território na- capacidade de reforçar o conjunto de disposições
cional. A consciência histórica serve de alerta coletivas, o habitus cultural dos cidadãos imersos
para que os agentes públicos, responsáveis pelo numa sociedade desigual, marcada por profun-
exercício do poder de polícia, compreendam os dos processos de discriminação e indiferente à
múltiplos contextos de desigualdade, em especial realidade de cidadãos que vivem em moradias
o dos cidadãos em situação de vulnerabilidade, desprovidas dos serviços públicos essenciais.

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Quando se fala em poder de polícia sanitário, urge integrar no paradig-
ma constitucional e democrático o equilíbrio entre regulação e emancipação.
As ações concretas não devem primordialmente fundar-se na ordem, mas
na construção de instâncias sociais de solidariedade, e a linguagem dos
direitos humanos, de algum modo, contribui para que a normatividade
sanitária da Lei no 13.979/2020 deixe de privilegiar o tratamento formalista
e abstrato das questões sanitárias da população. A historicidade dos direi-
tos humanos remete à visão otimista segundo a qual outra racionalidade
é possível, autorizando falar também em uma justiça sanitária, fincada
nas bases da igualdade, liberdade e dignidade, trilha imprescindível para
tornar as medidas de saúde pública um pouco mais efetivas.

Sobre o autor
Leonel Pires Ohlweiler é doutor e mestre em Direito pela Unisinos, São Leopoldo, RS,
Brasil; pós-doutor pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil;
desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil;
professor da graduação e da pós-graduação da Universidade La Salle, Canoas, RS, Brasil.
E-mail: [email protected]

Como citar este artigo


(ABNT)
OHLWEILER, Leonel Pires. Perspectivas sociojurídicas do poder de polícia sanitário e
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Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 230, p. 195‑218, abr./jun. 2021. Disponível
em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/ril_v58_n230_p195
(APA)
Ohlweiler, L. P. (2021). Perspectivas sociojurídicas do poder de polícia sanitário e emergência
de saúde pública: vulnerabilidades e o enfoque dos direitos humanos. Revista de Informação
Legislativa: RIL, 58(230), 195‑218. Recuperado de https://www12.senado.leg.br/ril/
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218 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 195-218 abr./jun. 2021


Tax regressivity as indirect
discrimination
An analysis of the Brazilian tax system in
light of the principle of non-discrimination

THIAGO ÁLVARES FEITAL

Abstract: The link between taxation and human rights is complex. Without
revenue, States cannot meet their human rights obligations. Human rights
treaties, simultaneously, limit the range of permissible tax policies. In
this context, is it possible to apply the principle of non-discrimination
when analysing a tax system compliance with human rights? Is there
any connection between tax regressivity and discrimination? This paper
addresses these questions in the United Nations Human Rights System.
Presenting the Brazilian case as an example, we investigate the relationship
between taxation and the principle of non-discrimination. The analysis of
the structure and effects of Brazilian tax legislation allows us to conclude
that it has a disproportionate impact on the poorest. This shows a failure
to comply with the principle of non-discrimination.

Keywords: Non-discrimination. Taxation. Economic and social rights.


Tax regressivity. Indirect discrimination.

Regressividade tributária como discriminação indireta:


uma análise do sistema tributário brasileiro à luz do
princípio da não discriminação

Resumo: O vínculo entre tributação e direitos humanos é complexo.


Sem receitas os Estados não podem cumprir suas obrigações de direitos
humanos. Tratados de direitos humanos simultaneamente limitam o
escopo de políticas tributárias permissíveis. Nesse contexto, é possível
aplicar o princípio da não discriminação para analisar a adequação de um
sistema tributário aos direitos humanos? Há alguma conexão entre tributos
regressivos e discriminação? Este trabalho aborda essas questões no
Recebido em 18/12/20 contexto do sistema de direitos humanos das Nações Unidas. Apresentando
Aprovado em 19/3/21 o caso brasileiro como exemplo, investiga-se a relação entre tributação e

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 219-243 abr./jun. 2021 219


o princípio da não discriminação. A análise da estrutura e dos efeitos da
legislação tributária brasileira permite concluir que ela tem um impacto
desproporcional sobre os mais pobres, o que demonstra a incapacidade
de cumprir com o princípio da não discriminação.

Palavras-chave: Não discriminação. Tributação. Direitos econômicos e


sociais. Regressividade tributária. Discriminação indireta.

1 Introduction

Over the past decade, the interest of human rights activists in the public
budget has increased. In the vast array of articles, reports, monographs
and toolkits published on the subject, the primary focus is on public
expenditure analysis. These studies have drawn attention to the fact that
(i) human rights have a cost and consequently (ii) by investigating public
spending one can make inferences about the implementation of human
rights obligations. Recently, researchers and practitioners have been
focusing on public revenue, more precisely on taxation. A landmark of
this taxation turn, within the United Nations Human Rights System, is
the Report of the Special Rapporteur on the extreme poverty and human
rights of 2014. Written by Magdalena Sepúlveda Carmona, the report was
the first to address exclusively the subject of taxation and human rights.
According to the former Special Rapporteur, although human rights
obligations do not prescribe specific tax policies, they do “impose limits
on the discretion of States in the formulation of fiscal policies” (para. 4)
(UNITED NATIONS, 2014, p. 3).
Starting from this premise, we examine the principle of non-
discrimination to identify its semantics and the limitations it may
impose on tax policy. We then explore the significance of the principle
for understanding the relationship between taxation and economic and
social rights. This led us to apply the principle to the Brazilian tax system
to assess whether it complies with non-discrimination. Through the study
of the Brazilian case, this paper describes the State responsibility for the
effects of tax legislation and suggests that tax regressivity is an example
of indirect discrimination.
We will structure the article in six main parts. In Section 2, we explore
the normative framework of non-discrimination and its interpretation. To
provide a comprehensive view we consider the authoritative interpretation
of the Committee on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR) and

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the scholarly literature. We do not aim at this cooperation in solving international problems
stage to present a comprehensive assessment of an economic, social, cultural, or humanitarian
of the bibliography on non-discrimination, but character, and in promoting and encouraging
only to highlight the complexity of the subject respect for human rights and for fundamental
and point out how the general theory of non- freedoms for all without distinction as to race,
discrimination can contribute to the growing sex, language, or religion” (UNITED NATIONS,
debate on taxation and human rights. In Section 1945, p. 3). The prohibition appears again in
3, we show how economic and social rights The Universal Declaration of Human Rights
intersect the connection between tax policy (UNITED NATIONS, 1948). It stipulates that the
and human rights. We address the issue using entitlement to the rights it proclaims is universal
the concepts of precarity and precariousness and, therefore, prohibits discrimination of any
developed by Judith Butler. Those concepts allow kind in its Article 2 (1). Similarly, Article 3 of
us to understand how taxation relates to the the International Covenant on Civil and Political
achievement of the State’s objectives, including Rights (ICCPR) establishes an obligation for
the reduction of vulnerability via economic and States Parties to take the necessary measures
social rights. Still, in this section, we examine the to achieve gender equality, so that men and
material and normative links between taxation women enjoy civil and political rights equally.
and human rights. In Section 4, we describe the It is, however, in Article 261 of the ICCPR that
structure of the Brazilian tax system to show its formal equality – “persons are equal before the
regressivity. In Section 5, we argue that the (tax) law” – and substantive equality – “persons […]
legislator is accountable for the effects of the are entitled without any discrimination to the
legislation he creates, which in the international equal protection of the law” – are conceptualised
sphere is reflected in the State’s obligation to (UNITED NATIONS, 1966a).
monitor and correct the effects of its acts. We In the International Covenant on Economic,
present the effects of tax regressivity in Brazil and Social and Cultural Rights (ICESCR), there is a
argue that it is a form of indirect discrimination. broad definition of equality in Article 2 (2). This
In Section 6, we conclude with general reflections article requires States to “guarantee that the rights
on the role of tax law to minimize vulnerability. […] will be exercised without discrimination
of any kind as to race, colour, sex, language,
religion, political or other opinion, national or
2 Non-discrimination in the United social origin, property, birth or other status”. The
Nations Human Rights System Article 3 of ICESCR establishes equality, in the
form of gender equality: “the States Parties to the
The right not to be discriminated against, present Covenant undertake to ensure the equal
a corollary of equality, is present in all human right of men and women to the enjoyment of
rights treaties (UNITED NATIONS, 2017, p. 30)
and “have been at the centre of international
1
“All persons are equal before the law and are entitled
human rights law since its origins” (SCHUTTER, without any discrimination to the equal protection of the
2010, p. 561). The Charter of the United Nations law. In this respect, the law shall prohibit any discrimination
and guarantee to all persons equal and effective protection
includes the prohibition of discrimination in against discrimination on any ground such as race, colour,
Article 1 (3). As this article states, it is the purpose sex, language, religion, political or other opinion, national
or social origin, property, birth or other status” (UNITED
of the organisation “to achieve international NATIONS, 1966a).

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all economic, social and cultural rights set forth background principles against which a law may
in the present Covenant” (UNITED NATIONS, be analysed”; and (iv) “can also assist legislators
1966b). Several other articles of the ICESCR who are trying to draft laws in compliance
also include equality, which is intended to stress with the Covenant”. Hence, in 2009, CESCR
that the enjoyment of the rights specified in published the GC No. 20: Non-discrimination
the treaty must occur in a non-discriminatory in economic, social and cultural rights. In this
and egalitarian manner. In the International document, its first attempt to address broadly
Convention on the Elimination of All Forms of non-discrimination, the CESCR approaches
Racial Discrimination, equality is expressed as the principle analytically. In its interpretation,
the duty to promote the enjoyment of human it is possible to notice that three elements are
rights without distinction of race, colour, the basis of the concept of discrimination:
nationality or ethnicity (UNITED NATIONS, (i) form; (ii) grounds; and (iii) effect (para. 7)
1965). In the Convention on the Elimination of (UNITED NATIONS, 2009a, p. 3). Regarding
All Forms of Discrimination against Women, (i) form, discrimination may take place through
equality is defined, a contrario sensu, through the distinction, exclusion, restriction, preference
concept of gender discrimination, in Article 1.2 or differential treatment. The form is how one
will convey discrimination. Thus, in theory,
2.1 Non-discrimination in General Comment discrimination in the form of a distinction
No. 20 of the Committee on Economic, Social will differ from discrimination in the form of
and Cultural Rights exclusion or restriction and will require different
remedies. Concerning (ii) grounds, the means
While the ICESCR guarantees the exercise listed above will always be based (ii.1) directly
of rights without discrimination, it does not or (ii.2) indirectly on prohibited grounds of
define “discrimination”. The task was carried discrimination. This is a logical requirement for
out by the CESCR, the treaty body charged with discrimination to fit into the type (Tatbestand) of
monitoring the implementation of the ICESCR discrimination prohibited by the human rights
and with producing authoritative interpretations system.3 The following are prohibited grounds
of its text. Formally, General Comments (GC) for discrimination according to the ICESCR:
are not legally binding. However, as Keller and (a) race, (b) colour, (c) sex, (d) language,
Grover (2012, p. 129) explain, they (i) “increase (e) religion, (f ) political or other opinion,
the density of international practice on the (g) national or social origin, (h) property, (i) birth
interpretation of the Covenant”; (ii) “contribute or (j) other status. As stated in Limburg Principle
to the emergence of customary international No. 364, this list is non-exhaustive, as we can
legal norms”; (iii) “may be useful to judges trying deduce from its open-ended text (“other status”).
to resolve hard cases by setting out important Finally, the discrimination should have (iii) the
effect of (iii.1) nullifying or (iii.2) impairing
2
“For the purposes of the present Convention, the term
‘discrimination against women’ shall mean any distinction,
exclusion or restriction made on the basis of sex which
has the effect or purpose of impairing or nullifying the
3
Although this debate seems to be resolved, we must
recognition, enjoyment or exercise by women, irrespective remember that there is no ban on positive discrimination
of their marital status, on a basis of equality of men and in the human rights system.
women, of human rights and fundamental freedoms in the 4
“36. The grounds of discrimination mentioned in
political, economic, social, cultural, civil or any other field” article 2 (2) are not exhaustive” (UNITED NATIONS, 1987,
(UNITED NATIONS, 1979). p. 4).

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the (iii.a) recognition; (iii.b) enjoyment; or the As longstanding hermeneutical approaches to
(iii.c) exercise (on an equal footing) of economic, law stress, every legal norm refers and relates to
social or cultural rights. empirical elements. This compels the interpreter
GC No. 20 also differentiates formal from to consider all the relevant data to which the
substantive discrimination through explicit rule refers. To disregard the factual reference
definitions (para. 8) (UNITED NATIONS, of the norm would turn the interpretation of
2009a, p. 3-4). Discrimination, just as equality, human rights treaties into a parody of syntactic
is always relational (see below). Hence, to verify analysis, in which the axiomatic reduction of
the existence of formal discrimination, the reality to normative utterances would obliterate
ICESCR interpreter should compare the formal the relationships between signifier, signified and
treatment granted to groups or individuals in the context in these texts. Regarding the principle
Constitution, laws, policy documents and others. of non-discrimination, the notion of indirect
The search for material discrimination will, in discrimination recalls that international treaties
turn, require sensibility to the effects of the are not axiologically neutral. Instead, they are
norm. The analysis of effects will also apply to justified only as an instrument for combating
distinguish direct from indirect discrimination. the multiple and pervasive threats to human
In the first scenario, the individual is the object life around the globe. For this reason, the
of disadvantageous treatment (distinction, principle of non-discrimination comprises a
exclusion, restriction, preference or differential prohibition of systemic discrimination. GC
treatment) that affects him directly (para. 10, a) No. 20 defines “systemic discrimination” as the
(UNITED NATIONS, 2009a, p. 4). In the pervasive discrimination that disproportionately
second scenario, the unfavourable treatment affects certain social groups through practices
is pervasive: laws, policies or practices neutral or cultural attitudes dominant in the public or
at face-value ultimately affect certain groups private sphere (para. 12) (UNITED NATIONS,
disproportionately because of factors external 2009a, p. 5). Besides, CESCR also recognizes the
to the norm (para. 10, b) (UNITED NATIONS, existence of multiple discriminations (para. 17)
2009a, p. 4). Direct discrimination is easily (UNITED NATIONS, 2009a, p. 6), which is
perceived and is often provided for at the lexical consistent with the concepts of intersectionality
level of legislation, an administrative act or (CRENSHAW, 1989) and interdependence (see
sentence. Indirect discrimination, by contrast, below). Vandenhole (2005, p. 68) stresses that
is perceived only through its consequences. CESCR does not differentiate between deliberate
Thus, a black-letter analysis of the law, policies and non-intentional discrimination. The
or practices could not reveal the existence of Committee prefers the terms “discrimination
this form of discrimination. in purpose” and “discrimination in effect”,
In addressing indirect discrimination supporting the opinion that “discriminatory
(para. 13) (UNITED NATIONS, 2009a, p. 5), the intent is not a necessary element” (SEPÚLVEDA
interpreter should consider the pervasive damage CARMONA, 2003, p. 388) to characterize
(para. 8) (UNITED NATIONS, 2009a, p. 3-4) discrimination (see Section 4).
and historical neglect suffered by a particular Finally, according to GC No. 20 non-
group. Considering these social factors does discrimination is an immediate obligation
not represent a deviation from what we expect (para. 7) that can take the form of either negative
of an interpreter of the law. Quite the contrary. (refraining from discriminating on prohibited

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grounds) or positive (adopting concrete and deliberate measures to eliminate
discrimination). As Sepúlveda Carmona (2003, p. 397-404) systematises,
these are obligations: (1) “to abstain from denying or limiting equal access
for all persons to the enjoyment of the rights”; (2) “to review national
legislation in order to assess the existence of any discriminatory impact
and to repeal or amend legislation that is found to be discriminatory”;
(3) “to take legislative measures to combat discrimination”; and (4) “to
take special protective measures and affirmative action for the benefit of
vulnerable and disadvantaged groups”. Among the necessary measures,
adopting legislation is indispensable (para. 2) (UNITED NATIONS, 2009a,
p. 1). This obligation includes both the duty to produce new legislation
or policies and the duty to review all existing legislation and policies
(obligation to monitor) (para. 41) (UNITED NATIONS, 2009a, p. 13).
The purpose of this monitoring is to amend the legislation when necessary
to eliminate formal or substantive discrimination. As seen, the latter will
manifest themselves in the effects of apparently neutral laws or policies.
A fertile scientific literature complements the authoritative
interpretation of the principle of non-discrimination.

2.2 The multidimensional nature of equality and non-discrimination

In Discrimination law, Fredman (2011) states that substantive


equality is a multidimensional norm. Her approach distances itself from
monolithic conceptions because she understands equality as a right with
four dimensions: (i) redistribution, (ii) recognition, (iii) transformation
and (iv) participation. Since these dimensions are intertwined without
“any lexical priority” (FREDMAN, 2019, p. 84), the realization of equality
depends on the fulfilment of all of them.
The dimension of redistribution requires that the State addresses the
inequality experienced by particular social groups. In this form, substantive
inequality amounts to the unequal distribution of resources between
people. In the sense adopted here, we cannot understand inequality
only regarding the distribution of material goods. Distributive inequality
always encompasses the unequal distribution of “social structures such
as decision-making power, the division of labour and culture, or the
symbolic meanings attached to people, actions, and things” (FREDMAN,
2011, p. 29). Fredman’s theory draws not only on Iris Young, Amartya
Sen and Martha Nussbaum, quoted by the author but also on Nancy
Fraser. Both theories seek to integrate redistribution and recognition.
The latter (recognition) is the second dimension of equality and concerns
the enjoyment of another important principle of human rights: dignity.
Fredman links equality in this second dimension to the “respect for

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the equal dignity and worth of all” that “speaks which contributes to the naturalisation of
to our basic humanity”. As Fraser argues, substantive inequality under the appearance of
there is no contradiction between these two formal equality. By contrast, the transformative
demands. Fredman (2011, p. 29) reaches the dimension requires States to connect “differences
same conclusion when she states that “these to equality” and to contrast differences “with
two dimensions of equality should pull together inequalities and discrimination” (FERRAJOLI,
rather than against each other”. Hence, both the 2018, p. 82, our translation).
classical issues of redistribution and the issues The fourth dimension (participation), as
usually described as “identity issues” are part Fredman (2011, p. 32) explains, concerns not
of the same problem: social justice (FRASER, just political participation but also participation
2002). That is because in the praxis of social in community life. Here the author returns to
movements, questions traditionally related to the both Young and Fraser to give centrality to
Welfare State and questions raised by feminism, the processes of participation that manifest
the gay movement, queer theory and the anti- themselves in various forms. This dimension
racist movement merge (FRASER, 2011, p. 45). is associated with the public-private divide. As
By aggregating the two analyses we can argue that decades of feminist studies warn us, this division
the first dimension of equality (redistribution) operates as a dispositif 5 – in the Foucauldian
comprises “the transformation of fundamental sense – to reduce the participation of women
economic structures” (FRASER, 2011, p. 45, in the public space. Following a tenacious
our translation), such as income redistribution discriminatory logic, the woman must occupy
and the reorganisation of labour division, to the space of home and family. On the other
combat stigma as well. As we will see below, hand, the man, who “rises above passion and
these two dimensions relate to vulnerability in desire” (YOUNG, 1990, p. 111), is especially
its political form. suited to public space. Particularly in the case
Recognition is tied to the third dimension of Brazil, this scheme becomes more complex.
(transformation) since Fraser recognises that According to Souza (2019, p. 122-137), between
patterns of domination based on race, gender, the 1920s and 1930s, the Brazilian public sphere
sexuality, or physical ability result from complex was born already colonised by economic capital
historical and social variables. These variables (something that does not happen in Europe),
are markers of difference saturated with social ensuring the persistence of symbolic domination
meaning. Thus, through the transformative in public discourse. In the global South, in
dimension of equality, the aim is to alter the general, we can also associate the dimension
social processes through which difference of participation with a deficit of democratic
becomes discrimination. According to Fredman representation of marginalised groups, such as
(2011, p. 30), “the problem is not so much the poor workers, indigenous and black people.
difference per se, but the detriment which is The mere schematisation of these
attached to difference”. As Ferrajoli (2010, p. 75, dimensions shows the complexity of equality
our translation) explains, a reductive analysis of and non-discrimination. To understand
equality can cause the “juridical homologation of
differences”. When the law ignores differences,
it universalises equality falsely. This leads to de
5
There is not a satisfactory English translation for
“dispositif ”. It is frequently translated as “deployment”,
facto sanctioning of the ignored differences, “device”, “mechanism”, etc.

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how the redistributive dimension of equality an unequal distribution of the very possibility
and substantive discrimination associates to live.
with taxation, it is necessary to analyse their Even the existential modality of human
connection to substantive human rights. We vulnerability presupposes some sociability. Thus,
suggest that this analysis starts with the right one can say that “one’s life is always in some sense
to life, as we do in this paper. First, because in the hands of the other” (BUTLER, 2009, p. 14).
of its importance to human rights as a whole. Precariousness is thereby a pervasive condition
According to the Human Rights Committee, which, ultimately, concerns the fragility of life
the right to life is the “supreme right” (para. 2) that is always subject to the impending nature
(UNITED NATIONS, 2019, p. 1). Such an of death. Ethically (Butler’s area of concern is
approach is also justified because the right to philosophy) precariousness refers to obligations
life, although formally included in the ICCPR, “to the conditions that make life possible”
allows easy identification of the interdependence (BUTLER, 2009, p. 23). These obligations
between human rights and the importance of encompass the provision of material goods and
economic and social rights. These latter are more the more comprehensive duty “to minimize
directly associated with the fiscal activity of the precariousness and its unequal distribution”
State (see below). (BUTLER, 2009, p. 22). While Butler does not
use human rights terminology (for reasons
entirely comprehensible in her work) it is easy
3 Vulnerability, tax policy and human to note the convergence of Butler’s discourse
rights policy with economic and social rights. This alignment
becomes even more striking when the author
In Frames of war, Butler (2009) distinguishes states that these obligations include positive
“precariousness” and “precarity”. The former is social duties as “food, shelter, work, medical care,
an ontological quality of all living organisms, a education,6 rights of mobility and expression,
“more or less existential conception” (BUTLER, protection” (BUTLER, 2009, p. 22).
2009, p. 3). Based on the premise that all Turning away from liberal and proceduralist
bodies are exposed in the world – “bodies are theories, Butler (2009, p. 35) assimilates the
not self-enclosed kinds of entities” (BUTLER, right to life to a question of “sustaining social
2015, p. 72) – and are subject to destruction, conditions”. This entails, in her philosophical
Butler calls this vulnerability inherent to living project, questioning individual responsibility,
being’s “precariousness”. The possibility of which is one tenet of neoliberalism (BROWN,
being extinguished, which is characteristic 2015; HARVEY, 2005, p. 51). Following
of all biological bodies, including human a Lévinasian orientation, Butler takes
bodies, suggests that human agency depends responsibility away from consensus and bases
on numerous supports. At the same time, the it directly on intersubjective bonds. This implies
relationship between agency and the conditions a reassessment of the overvaluation of the formal
that make life possible – “conditions for dimension of participation rights in civil life at
persisting and flourishing” (BUTLER, 2009, the expense of economic and social rights. It also
p. 29) – indicates that vulnerability has also
a political modality. This is what she calls 6
Rights established under Articles 6, 11, 12 and 13 of
precarity: an induced condition that leads to ICESCR (UNITED NATIONS, 1966b).

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implies rethinking the substantial dimension shall enjoy freedom of speech and belief and
of equality. In this regard, the fundamental freedom from fear and want has been proclaimed
political task is to minimize “the condition of as the highest aspiration of the common people”
precariousness in egalitarian ways” (BUTLER, (UNITED NATIONS, 1948). This vulnerability,
2009, p. 54), which means to fight precarity. This as Butler claims, derives of our social condition:
dispute can only take place in the political arena. “vulnerability should not be considered as a
In fact, according to the vigorous Latin America subjective state but rather as a feature of our
critical thinking, the role of human rights is shared or interdependent lives” (BUTLER, 2020,
precisely to deconstruct “that which does p. 45) so we can only understand equality within
not allow living” (DUSSEL, 2006, p. 369, our the framework of our precarity (BUTLER, 2015,
translation) and to denounce “the presence of p. 218) and of the obligations that we can derive
death in concrete reality” (HINKELAMMERT, from it. That is why equality is always “equality
1984, p. 38, our translation). among individuals” (BUTLER, 2020, p. 44-45),
According to Butler (2004, p. 20), it is as the Theory of Law has long asserted (see
as members of a society that we become the Perelman (1963)).
subject – “each of us is constituted politically We can understand the rights under
in part by virtue of the social vulnerability ICESCR as a response to our interdependence
of our bodies”. For this reason, the fight and vulnerability. The Covenant seeks to
against discrimination is a collective struggle create a minimum framework for a dignified
in which “we argue as a group or a class” life. As Butler (2020, p. 46) claims, “one is
(BUTLER, 2004, p. 24). Here we can return vulnerable to the social structure upon which
to the multidimensional nature of equality one depends, so if the structure fails, one is
to emphasise that the dichotomy between exposed to a precarious condition”. It is not
recognition and redistribution is false. It is as a question of utopianly imagining a way to
a group – which presupposes some prior sense overcome interdependence. Rather, it is about
of identity – that we organise ourselves to make assuming vulnerability and interdependence
political claims. Democracy depends, therefore, as “condition[s] of equality” (BUTLER, 2020,
on the recognition of the fundamental bond of p. 44) and as a condition of our humanity. This
dependence and the obligations we have toward is the view expressed by the Human Rights
one another. As we have seen, the redistributive Committee when it adopted GC No. 36 in
dimension of equality implies recognition, 2018. Approaching vulnerability as a trait of
something that Fredman and Fraser both defend. our “constitutive relations to other humans,
The concept of vulnerability (precariousness living processes, and inorganic conditions and
and precarity) presented here overcomes the vehicles for living” (BUTLER, 2015, p. 130). GC
limitations of the redistribution-or-recognition No. 36, in its third section, exemplifies tangible
dualism. Pragmatically, “identitary” features and everyday threats to the enjoyment of the right
economic structures blend themselves to make to life:7 hunger and malnutrition; the prevalence
“certain human lives […] more vulnerable than of life-threatening diseases; extreme poverty;
others” (BUTLER, 2004, p. 30). This unequal homelessness; degradation of the environment;
distribution of vulnerability is precisely what the pervasive industrial accidents; structural patterns
human rights system stands to prevent, aiming
at the “advent of a world in which human beings 7
For an overview, see Joseph (2019).

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of violence especially against children in street HEINTZ; ELSON, 2016, p. 53) is wrong. In
situations, unaccompanied migrant children reality, the connection between human rights
and children in situations of armed conflict; and the public budget – “government’s most
members of ethnic and religious minorities important policy document” (REISCH, 2019,
and indigenous peoples, lesbian, gay, bisexual, p. 36) – is both material and normative.
transgender and intersex persons, persons with
albinism, alleged witches, displaced persons, 3.1.1 The material dimension of the
asylum seekers, refugees and stateless persons relationship between taxation and human
(UNITED NATIONS, 2019, p. 5-6). rights
If we ask – as the Human Rights Committee
did – what conditions make life possible? Without revenue, States cannot meet their
And how are these conditions distributed? obligations under human rights treaties. At
Inevitably we will encounter the economic least since the publication of “The crisis of
and social rights guaranteed by the ICESCR. the tax state” by Schumpeter (1991), we know
If life depends on material conditions and if that taxation is the political institution par
one cannot think of an ontology outside these excellence, besides being the major source
socially shared conditions, the right to life of revenue in contemporary States. This link
becomes the right to demand from the State between taxation and human rights is most
the fulfilment of these material conditions. By clear in economic, social and cultural rights, but
pointing to the possibility of understanding life it also exists in civil and political rights, since
as “a conditioned process, and not as the internal all rights have an economic cost (HOLMES;
feature of a monadic individual” (BUTLER, SUNSTEIN, 1999).
2009, p. 23) and, considering that there is no Human rights are therefore a matter of
life without access to a minimum material public finances. Except for States that completely
structure, the positive dimension of the right to depend on the exploitation of natural resources
life is highlighted. Its realisation will, therefore, or financial aid from international institutions,
depend on State intervention to correct the the majority rely on taxation as a source
unequal distribution of these material elements, of revenue (SAIZ, 2013, p. 82). Analysed in
which draws attention to the positive aspect of this macro dimension, taxes prove to be an
the non-discrimination obligation. This brings indispensable instrument to maintain the
us into the sphere of the State’s fiscal activity. stability of the legal system. Holmes and Sustein
This activity is the instrument that enables, (1999, p. 59) summed it up in the adage “no
through revenue collection, the necessary property without taxation”. The tax system
expenditures to realise human rights. is also the instrument to realise the ideal of
social justice that the government will pursue
3.1 Tax policy as human rights policy (MURPHY; NAGEL, 2002). Therefore, it is in
this context that we should assess taxation:
The link between fiscal policy and the fair is the tax system that makes a just society
enjoyment of human rights is the subject of a vast possible (GALLO, 2007, p. 102); adequate from
bibliography. As this literature shows the “idea the human rights point of view is the tax system
that fiscal policy is a technical matter best left that enables States to fulfil their human rights
to public finance experts” (BALAKRISHNAN; obligations.

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From an instrumentalist perspective, the tax system is the institution8
whose function is to transfer resources from individuals to the treasury.
Hence its political character.9 Its purpose is to finance the fulfilment of
the State’s constitutional obligations, among which the realisation of civil,
political, economic, social and cultural rights deserves to be highlighted.
Naturally, this vision contrasts with the conventional thought that sees
taxation as a burden.10

3.1.2 The normative dimension of the relationship between taxation


and human rights

Taxation determines (economically) the realisation of human rights


and human rights obligations, although they do not prescribe specific
tax policies they do “impose limits on the discretion of States in the
formulation of fiscal policies” (para. 4) (UNITED NATIONS, 2014, p. 3).
Thus, while it is true that the choice of a tax system, like the choice of any
other element of the economy, is political and therefore not inexorable
(POLANYI, 2001), it is also true that the alternatives are limited. And
it could not be otherwise since human rights treaties are hierarchically
superior to domestic laws and the acts of both the Executive and the
Judiciary. Those are manifestations of the will of the State or mere facts
(PERMANENT COURT OF INTERNATIONAL JUSTICE, 1926). Hence,
the design of a tax system must consider the obligations arising from such
treaties because (i) the legal and political legitimacy of contemporary
States depends on the compliance with international (human rights) law
and (ii) the implementation of a tax system that does not comply with
human rights obligations subjects the State to international responsibility.
Canotilho (2001, p. 244, our translation) argues, regarding the legislator’s
binding to the Constitution, that “the law […] is a positive and negative
act determined by the fundamental law”. Similarly, human rights treaties
impose positive and negative limits on State sovereignty. While in domestic
constitutional law the determination of these limits is complex and
subject to challenging theoretical matters, in the international sphere
of human rights it is the wording of the treaties that establishes a “space
for legislative prognosis”. These texts use clear expressions to establish
that implementing the rules prescribed by them is mandatory (positive

8
For a definition of institution in the sense used here, see Mumford (2019) and Oats
(2012).
9
“L’argent et son inégale répartition constituent l’objet social total par excellence, et
ne peuvent être étudiés d’une façon exclusivement économique” (PIKETTY, 2015, p. 127).
10
For an example of the traditional view that associates taxation with a burden, see
Bentham (1843), Hayek (1948), Jaucourt (2015), Malthus (1836), Musgrave and Musgrave
(1989), Nozick (2012), Rothbard (2009), Say (2003) and Smith (1977).

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limits) and to prohibit the creation of norms that contradict them (negative
limits). Under this framework, the tax legislator has both positive and
negative obligations, whose implementation may generate repercussions
in the sphere of international human rights law. The freedom to legislate
on the domestic level is equivalent, from the international perspective,
to the “margin of appreciation”.11 In any case, the tax legislator, under the
non-discrimination principle and other rights established in the ICESCR,
has a duty to perform. This duty is, above all, the duty to legislate to give
maximum protection to human rights and the duty to review its legislation
to adjust it to ICESCR. At the same time, before these obligations, the
State’s inaction characterizes omission.12
Despite what we have stated above, there is a presumption that tax laws
are neutral.13 Nothing could be more distant from reality, after all, “money,
and its distribution, can never be anything other than political questions”
(KETER, 2012, p. 167). Tax laws, as laws governing any other matter,
can have discriminatory effects, even though they appear to be neutral.
Indeed, discrimination in tax laws is particularly serious. Since taxation
is the instrument for the realisation of human rights, especially economic
and social rights, the discriminatory effects of tax policy have a negative
impact on the enjoyment of these rights. If we take seriously the statement
that tax policies are human rights policies, a discriminatory tax system
becomes very problematic. Here, discrimination in tax legislation matches
systemic inequality to reinforce pre-existing patterns of vulnerability. This
turns the tax system into a device for creating precarity, via the unequal
distribution of precariousness. Such is the case with the Brazilian tax
system, as we will show later.

4 The regressivity of Brazilian tax system

Economics classify tax systems as progressive or regressive based on


vertical equity (TRESCH, 2015, p. 182): “progressive taxation meaning that
taxpayers should be treated appropriately differently according to their
ability to pay might, therefore, be a type of vertical equity” (FREDMAN,
2019, p. 83). Tax systems that put more burden on labour than capital
are regressive. Indirect taxes predominate in these systems, which means

11
For a discussion in the context of the Optional Protocol to the International Covenant
on Economic, Social and Cultural Rights, see Griffey (2011).
12
See, particularly, Maastricht Guideline No. 15 (INTERNATIONAL COMMISSION
OF JURISTS, 1997).
13
For a critical view of the political nature of taxation, see Alston and Reisch (2019),
Crawford (2014), Infanti and Crawford (2009), Knauer (2014) and Philipps (2009).

230 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 219-243 abr./jun. 2021


that they use consumption as their principal tax base. A progressive tax
system, on the other hand, concentrates taxation on income and capital
(SALVADOR, 2016, p. 8).

Figure 1

33,1
Total tax revenues, % of GDP, 2018
34,3

Taxes on goods and services, 44,1


as % of total tax revenue, 2018 32,5

Social security contributions, 25,4


as % of total tax revenue, 2018 27

Taxes on income and profits, 21,5


as % of total tax revenue, 2018 33,3

Taxes on property, 4,5


as % of total tax revenue, 2018 5,5

Brazil OECD

Source: elaborated by the author based on Organisation for Economic Co-operation and Development (2020).

In the case of Brazil, experts have been showing repeatedly the


regressiveness of the tax system in recent years. Recently, the federal
government itself concluded that approximately 72.13% of Brazil’s tax
revenue results from consumption taxes (BRASIL, 2020). According to
Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD)
(2020) data, the percentage of revenues derived from regressive taxes
among its members is 59.5%, while in Brazil the percentage is 69.5%. The
federal government also acknowledges the discrepancy between Brazil
and OECD members. In the same study, the federal government asserts
that “when comparing taxation by tax base we observe that in relation
to ‘income’ base Brazil taxes less than the average of OECD countries,
while in relation to ‘goods and services’ base it taxes, on average, more”
(BRASIL, 2020, p. 6, our translation). In other words, despite having a tax
rate similar to that of OECD members, Brazil concentrates its incidence
on consumption. The lack of progressivity of the Personal Income Tax
(MORGAN, 2018) makes even more critical the predominance of indirect
taxes. The federal government also recognises the low progressivity of

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 219-243 abr./jun. 2021 231


this tax. A recent study by Receita Federal do Brasil – the agency which
oversees the collection of federal taxes – shows that in 2018 the average
PIT rate for those who declared incomes higher than 320 minimum
wages was 19.6%. This rate is close to that of those who declared incomes
between 20 and 30 minimum wages (19%) and lower than the rate of
those who declared incomes between 30 and 40 minimum wages (20.2%)
(BRASIL, 2019).

Figure 2

50
40
30 23,3 22,8 22
20,2 21,5 22,7 19,6
17,1 19
20 14,3
9,8
10 5,4
1,4 0 0 0,2 2
0

Income, minimum wage

Average tax rate, %

Source: elaborated by the author based on Brasil (2019).

Meanwhile, the distribution of profits and dividends – which,


according to the same study, totalled R$280.56 billion – was not subject
to any taxation. The exemption of distributed dividends results from the
incorporation, in the 90s, of economic theories that sought to relieve the
capital and attract investments. As Gobetti (2019, p. 763, our translation)
argues,

three decades have passed since these commandments were established,


and both the concentration of income has increased significantly in most
parts of the world, and academic reflection has advanced, producing a
reassessment of tax theories and practices.

According to a database published by Oxfam Brazil in 2019 (O


REAL…, [2019]), people with an average monthly income between
265 and 570 Brazilian Reais have, on average, 28% of their income
compromised with the payment of taxes. On the other hand, people with
an average monthly income of 175.000 Brazilian Reais have, on average, 7%
of their income compromised with the payment of taxes. Again, domestic

232 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 219-243 abr./jun. 2021


governmental institutions acknowledged the that this discussion is important to understand
phenomenon. Another study by the Federal the limitations imposed on the tax legislator
Senate in 2017 found that considering the principle of non-discrimination.
According to Morand (1988, p. 396), the
the higher the income, the lower the burden of legislator must: (a) establish adequately the facts
indirect taxes. Although direct taxes in Brazil that will give rise to the legislation; (b) assess
are progressive, they are not as progressive
the data and alternatives to legal regulation;
as in other countries. This, together with
the heavy taxation of consumption of goods (c) evaluate prospectively the creation of the
and services, reinforces the regressiveness legislation and (d) observe and correct the
imposed on the population by the system legislation whenever necessary. The last two
(BRASIL, 2017, p. 14, our translation).
obligations are equivalent to a duty to anticipate
and optimise effects.
Similarly, a report by the Economic and Wintgens (2012, p. 294-304) recovers
Social Development Council – a body linked Morand’s deontology and associates the duty
to the Presidency of the Republic – concluded to anticipate and the duty to optimise effects to
in 2011: “the tax system is regressive and the the temporality of laws. Given that the legislator
burden is poorly distributed” (BRASIL, 2011, is not omniscient and cannot predict all the
p. 7, our translation). effects of the law, and given that the legislation
is part of a dynamic reality, he must ask himself:
is the justification that led to the adoption of
5 The tax legislator as addressee of the legislation still valid? Has the legislation
the principle of non-discrimination achieved the expected effects? If not, the duty to
correct the legislation arises (WINTGENS, 2012,
From a domestic perspective, legislation p. 303). This “responsiveness to changing or
is the implementation of constitutional law emerging circumstances” (OLIVER-LALANA,
(SIECKMANN, 2013, p. 108). We should 2016, p. 259) integrates a “responsible law-
remember that these same laws (and the making” sensitive to the influence of time on
Constitution itself ) are mere facts under the legal system.
international law. But from a human rights The three axioms that Wintgens derives
perspective, these very facts must be aligned from this principle of temporality (duty to
to the State’s human rights obligations. prospection, duty to retrospection and the duty
Therefore, the legislation is “highly desirable to review) are in line with the duty to monitor
and in some cases […] indispensable” (para. 3) and, above all, with the duty to investigate
(UNITED NATIONS, 1990, p. [1]), as CESCR aims and effects of legislation. The latter is
has already stated in the past. According to the also a requirement of the principle of non-
legisprudence, the legislator has obligations discrimination.
that derive either from the Constitution (and
the principle of the separation of powers) 5.1 Tax regressivity as indirect
or from a general requirement of rationality discrimination
(WINTGENS, 2012, p. 304). Without delving
into the peculiarities of the debate that fall To identify the violation of the principle
beyond the scope of this article, we believe of non-discrimination by the tax system,

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 219-243 abr./jun. 2021 233


we must answer two questions: (a) does the these rights” (SEPÚLVEDA CARMONA, 2003,
tax system produce a disparate impact on p. 398).
certain groups of people based on prohibited Although there are no different tax rates
grounds? (b) the position of those who are in Brazilian tax legislation based on gender or
worse off is worsened after taxation? If the race (formal discrimination), the discriminatory
answer is positive, we are facing a challenge effects of the tax system are widely documented.
to the principle of non-discrimination. In this Here the notion of “disparate impact”
case, the State should “refashion its policy (SCHUTTER, 2010, p. 627) is fundamental.
choices” (FREDMAN, 2019, p. 94) to redress The predominance of indirect taxes causes
the situation, since inaction results in liability. poorer people to consume a greater proportion
As literature and jurisprudence have long- of income with the payment of taxes, in relation
established, the intention of a State in relation to the proportion of income consumed by the
to the discriminatory measure is irrelevant richest (SILVEIRA; FERREIRA; ACIOLY;
to establish its responsibility (SEPÚLVEDA CALIXTRE; STIVALI; SANTOS, 2011).
CARMONA, 2003, p. 398). This means that Taxation as a whole is disproportional on the
to assess the existence of discrimination it black population, more specifically on black
is unnecessary to investigate the existence women who are over-represented among the
of malice. Discrimination is measured poor. In 2014, a study by Oxfam in partnership
objectively.14 According to the Draft Articles on with the Brazilian Institute of Socio-Economic
State Responsibility proposed by International Studies concluded that black women pay
Law Commission (UNITED NATIONS, 2000, proportionally more taxes than white men
p. 287), to configure international responsibility (SALVADOR, 2014, p. 26). This answers the
is sufficient that there be an act or omission first question affirmatively: the Brazilian tax
that “(a) Is attributable to the State under system produces a disproportionate impact on
international law; and (b) Constitutes a breach the poorest. In short, the regressiveness of the
of an international obligation of the State”. Thus, tax system means that taxation is more heavily
“States must carefully examine the effect that the focused on those with less economic capacity. In
implementation of any legislation, procedures theory, we could justify this disparate impact if
or practice actually has on the enjoyment of the answer to the second question were negative.
However, this is not the case.
The Brazilian tax system also actively
14
As an example, see that this is also the conclusion of contributes to the deepening of inequality.
the Inter-American Court of Human Rights. In Paniagua
Morales et al. v. Guatemala, the Court established that It achieves this through the predominance
“[u]nlike domestic criminal law, it is not necessary to of taxes on consumption combined with the
determine the perpetrators’ culpability or intentionality
in order to establish that the rights enshrined in the low progressivity of PIT. The latter does not
Convention have been violated, nor is it essential to identify
individually the agents to whom the acts of violation are
contribute to change income inequality between
attributed. The sole requirement is to demonstrate that men and women or between black and white
the State authorities supported or tolerated infringement
of the rights recognized in the Convention. Moreover, the people (SALVADOR, 2016, p. 42). On the
State’s international responsibility is also at issue when it contrary, taxation in Brazil favours income
does not take the necessary steps under its domestic law to
identify and, where appropriate, punish the authors of such concentration (GOBETTI; ORAIR, 2016, p. 28;
violations” (INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN MORGAN, 2018). This reversed redistribution
RIGHTS, 1998, p. 50). See also Inter-American Court of
Human Rights (1997). is even more aggressive when one concludes that

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the country has “one of the highest” – if not the highest – top income
concentrations worldwide (GOBETTI; ORAIR, 2017, p. 268). This
leads taxation in Brazil to function as a maintainer of a poverty quota
(MAGALHÃES; SILVEIRA; TOMICH; VIANNA, 2001, p. 22), blocking
the transformative dimension of equality (see above 2.3).
The symbiosis between discriminatory revenue generation and
inefficiency in public spending suggests that the Brazilian tax system
contributes to increasing structural inequality (MEDEIROS; SOUZA,
2013, p. 28). The adoption of severe fiscal consolidation policies in
recent years has aggravated the situation. Since 2016 Constitutional
Amendment (CA) No. 95 (BRASIL, 2016) is in force, limiting spending
on public services and investments by the inflationary variation over 20
years.15 The Amendment, which civil society organisations have strongly
condemned,16 has reduced investments in health and education.
As Rossi and Dweck (2016) state, the practical effect of the measure,
considering the expected population growth, is the reduction of public
spending per capita in relation to GDP in health and education. The aim
is to reduce the State by eliminating the universal nature of these rights,
which potentially17 challenges the ICESCR.
The prevalence of an orientation towards austerity and biased taxation
binds this form of indirect to substantive economic and social rights
(FEITAL, 2020). As we have argued above, we should understand the
rights under the ICESCR as devices for reducing vulnerability (precarity,
in its political form). However, in the Brazilian case, this does not happen.
Currently, the observation made by Olivier de Schutter in 2009 – at that
time Special Rapporteur on the right to food – unfortunately no longer
corresponds to reality. Schutter stated that social programs in Brazil “are
essentially funded by the very persons whom they seek to benefit, as the
regressive system of taxation seriously limits the redistributive impact of
the programmes” (para. 36) (UNITED NATIONS, 2009b, p. 14).18 What
we see today is even more serious: fiscal policy works in reverse, since
the country “is one of the countries that transfer most to the richest, and
the least to the poorest” (FRAGA NETO, 2019, p. 618, our translation).
Hence, taxation aggravates the position of the poor, which also suggests
a failure to comply with the principle of non-discrimination.

15
See Alston (2017).
16
On March 18th 2020, human rights organizations submitted a request to suspend
the effects of CA No. 95 to the Brazilian constitutional court (Supremo Tribunal Federal).
17
“any deliberately retrogressive measures in that regard would require the most careful
consideration and would need to be fully justified by reference to the totality of the rights
provided for in the Covenant and in the context of the full use of the maximum available
resources” (para. 9) (UNITED NATIONS, 1990, p. [3]).
18
See Derzi (2014).

RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 219-243 abr./jun. 2021 235


6 Conclusions

We have argued in this paper that tax regressivity is a form of indirect


discrimination. The semantics of the principle of non-discrimination –
which we have established through the analysis of existing legal
provisions, academic literature and the authoritative interpretation of
the CESCR – includes the prohibition of disadvantageous treatment
resulting from the effects of laws, policies or practices neutral at face-
value. The CESCR affirms, accompanied by the most relevant literature,
that States should consider the existence of systemic, pervasive and
multiple discriminations on certain social groups. In this way, the State
must review and repeal the legislation that generates a discriminatory
impact. This obligation to monitor the effects of legislation to redress
it also applies to tax legislation.
Tax legislation is directly related to human rights, as the scholarly
literature has pointed out in recent years. First, because taxation is
instrumental in obtaining revenues for the State to fulfil its international
obligations. Second, because human rights treaties establish the limits
of the discretion of States in the formulation of tax (or fiscal) policies.
This relationship is more pronounced in economic and social rights.
As we have shown, these rights are material conditions that make life
possible. Using Judith Butler’s concepts of precarity and precariousness,
it is possible to link economic and social rights to redistribution and
recognition (intertwined dimensions). Since taxation is a financial
determinant of human rights policies, we can say it that “tax policy is
human rights policy”, as the literature currently does.
The study of the Brazilian case – through the analysis of the structure
of its tax system and the effects caused by this structure – illustrates
the relationship between tax regressivity and indirect discrimination.
The data, including official reports, show a strong concentration of
income in Brazil. Besides, black people (especially black women) are
over-represented in the population with lower economic capacity. This
group suffers disproportionately from the impact of indirect taxes. The
Brazilian case is interesting because the State itself has admitted the
existence of these discriminatory effects on more than one occasion. Since
the measurement of discrimination in international law is objective, it is
unnecessary to determine the State’s intentionality. For the discrimination
test, it is enough to identify if the tax system produces a disparate impact
on certain groups of people based on prohibited grounds and establish
if it worsens the position of those who are worse off after taxation.
Applying the test to the Brazilian case, we conclude that the country’s
tax legislation challenges the principle of non-discrimination.

236 RIL Brasília a. 58 n. 230 p. 219-243 abr./jun. 2021


Sobre o autor
Thiago Álvares Feital é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil; doutorando em Direito na UFMG, Belo Horizonte,
MG, Brasil; especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil; professor de Direito Tributário nas Faculdades
Milton Campos, Belo Horizonte, MG, Brasil.
E-mail: [email protected]

Como citar este artigo


(ABNT)
FEITAL, Thiago Álvares. Tax regressivity as indirect discrimination: an analysis of the
Brazilian tax system in light of the principle of non-discrimination. Revista de Informação
Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 230, p. 219‑243, abr./jun. 2021. Disponível em: https://
www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/ril_v58_n230_p219
(APA)
Feital, T. A. (2021). Tax regressivity as indirect discrimination: an analysis of the Brazilian
tax system in light of the principle of non-discrimination. Revista de Informação Legislativa:
RIL, 58(230), 219‑243. Recuperado de https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/230/
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