02 - O Desejo de Filho Na Adoção Homoparental - Hugo Bento

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O desejo de filho
na adoção homoparental:
uma perspectiva
psicanalítica

Hugo Leonardo Goes Bento


© Hugo Leonardo Goes Bento

Gramma Livraria e Editora


Conselho Editorial: Bethania Assy, Francisco Carlos Teixeira da Silva,
Geraldo Tadeu Monteiro, Gláucio Marafon, Ivair Reinaldim, João Cézar
de Castro Rocha, Lúcia Helena Salgado e Silva, Maria Cláudia Maia, Maria
Isabel Mendes de Almeida, Mirian Goldenberg e Silene de Moraes Freire.

Produção Editorial
Coordenação Editorial: Gisele Moreira
Revisão: Clarisse Cintra
Capa: Luiza Aché
Diagramação: Leonardo Paulino Santos

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

B42d

Bento, Hugo Leonardo Goes


O desejo de filho na adoção homoparental [recurso eletrônico] : uma perspectiva
psicanalítica / Hugo Leonardo Goes Bento. -- 1. ed. -- Rio de Janeiro : Gramma, 2017.
recurso digital

Formato: ebook
Requisitos do sistema:
Modo de acesso: world wide web
Inclui bibliografia
ISBN: 978855968134-5 (recurso eletrônico)

1. Adoção por homossexuais. 2. Família. 3. Adoção - Brasil - Aspectos


psicológicos. 4. Psicanálise. 5. Livros eletrônicos. I. Título.

17-39947 CDD: 155.445


CDU: 159.964.2

23/02/2017 23/02/2017

Gramma Livraria e Editora


Rua da Quitanda, nº 67, sala 301
CEP.: 20.011-030 – Rio de Janeiro (RJ)
Tel./Fax: (21) 2224-1469
E-mail: [email protected]
Site: www.gramma.com.br

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A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte,
constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)
Ao Seu Libério e à Dona Irene, meus pais.
Agradecimentos

Aos meus pais, pelo cuidado carinhoso com que


criaram nosso lar, pelo incentivo aos estudos e, principal-
mente, pelo respeito para com o meu jeito de viver; ao
meu irmão, Igor, pelo constante apoio divertido; aos meus
amigos Viviane, Martha, Clisman, Camila, Jordan, Grasie-
le e Rodrigo, pela compreensão diante dos inevitáveis afas-
tamentos devido à dedicação ao trabalho que aqui é apre-
sentado; ao meu amado companheiro Mauri, pelo olhar de
confiança e o abraço forte que me alegram, me animam,
e pela presença que me desperta força; muito obrigado!
Agradeço ao meu orientador de mestrado, Prof. Dr.
Luis Flávio Silva Couto, por ter acolhido, não apenas uma
proposta de pesquisa, mas uma relação de – afetos e – traba-
lho. Gratidão aos professores doutores que aceitaram o convi-
te para compor as bancas de exame de qualificação e defesa da
dissertação propriamente dita – Prof. Dr. Sérgio Laia, Profa.
Dra. Ilka Ferrari e Profa. Dra. Cristina Moreira Marcos.
Aos professores do Programa de Pós-graduação
stricto sensu em Psicologia da PUC Minas, pelas aulas,
pelas conversas e risadas, pelas indicações bibliográficas e
provocações intelectuais, sou grato.
VIII O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

Agradeço à FAPEMIG, pela bolsa de mestrado que


me possibilitou concluir o curso e compartilhar com a
comunidade acadêmica os resultados do trabalho realiza-
do desde o meu ingresso no Programa de Pós-graduação
stricto sensu em Psicologia da PUC Minas.
IX

Sumário

Prefácio XI

Introdução XXIII

1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 1


1.1 A adoção nas sociedades tradicionais
e na sociedade contemporânea 3
1.2 Procriar e filiar: por quê? 12
1.2.1 A perspectiva freudiana 22
1.2.2 Desejo e vontade 41
1.3 ... exceto os homossexuais 55

2 Considerações sobre os debates acerca


da adoção homoparental 59
2.1 Sobre a igualdade anatômica e a sexuação 65
2.1.1 Sexo e gênero 65
2.1.2 O autorizar-se de si mesmo na sexuação 67
2.1.3 A sexuação das crianças adotadas
por casais homoafetivos 80
2.2 A função da mãe e a função do pai 82
2.2.1 Da mãe 85
2.2.2 Do pai 90
X O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

2.2.3 Uma pequena nota sobre a normalidade 97


2.3 Quanto ao estigma e ao preconceito social 98

3 Um desejo não anônimo 101


3.1 A Nota sobre a criança 102
3.2 O desejo não anônimo e o desejo de adoção 104
3.3 O desejo não anônimo e a père-version 108
3.4 O “desejo de filho” e “o desejo que não
seja anônimo” 111

Conclusão 113

Referências 115

Posfácio 133
Prefácio
Por Luis Flávio Silva Couto1

Este livro traz uma contribuição importante de


Hugo Bento à complexa questão da adoção de filhos por
um casal homoafetivo, a chamada adoção homoparental.
Habitualmente, estamos acostumados a pensar a
adoção como um processo que envolve um casal que re-
solve acolher uma criança que se encontra desassistida,
tomando-a como parte integrante da vida familiar. En-
tretanto, o trabalho de Hugo não visa apenas a esclarecer
a questão da adoção homoparental, mas vai além. Amplia
a ideia de adoção, mostrando que o ato de querer ou
resolver adotar tem implicações muito maiores do que,
às vezes, o próprio casal se dá conta. E isso envolve não
apenas a ideia de que adotar significa acolher alguém que
não se gerou, como abre a perspectiva de se ter que le-
var em conta que os filhos chamados biológicos devem
ser, também, adotados – não no sentido jurídico do ter-
1
Psicanalista. Professor e orientador do Programa de Pós-graduação stricto sensu
em Psicologia da PUC Minas. Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), 1994. Pós-doutor em Psicanálise pela Université Paris 8,
1998. Dedica-se ao estudo e à pesquisa de temas relacionados à teoria psicanalítica
de Freud e de Lacan; à constituição do sujeito e ao laço social.
XII O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

mo – mas em termos afetivos, criando com eles vínculos


de cuidado e de afeto. Muitas vezes, uma criança pode
não receber de seus pais as atenções e cuidados mínimos,
mesmo tendo sido registrada como filho. Juridicamente,
é filho, mas, emocionalmente, pode não ser adotada. E,
ainda que o seja, pode não receber dos pais um desejo
que não seja anônimo.
Para esclarecer essas questões, Hugo recorre a au-
tores básicos da Psicanálise, entre os quais Freud, Lacan e
Miller, para mostrar que a escolha pela paternidade tem
de levar em consideração desejos e demandas que têm a
sua origem na própria infância do sujeito, e que o levam
a responder à questão relativa ao desejo de adoção, ao
desejo de ser pai.
Neste livro, Hugo procura esclarecer um tema
ainda mais espinhoso que é o desejo de assumir ser pai
numa parceria amorosa constituída por um casal em
uma relação homoafetiva. Assim, além de outras, noções
tais como desejo, desejo de filho, desejo de gerar uma
criança, bissexualidade infantil, homossexualidade, com-
plexo de Édipo e tábua da sexuação, auxiliam o leitor a
se inteirar desse terreno complexo que é o da adoção
homoparental, ainda não exatamente compreendido pela
sociedade e, muitas vezes, combatido por preconceitos
de natureza religiosa.
Hugo inicia seu texto mostrando que o cuidado e
o afeto não são determinações biológicas que se estabe-
lecem com um filho. Isto é, não subsiste na espécie hu-
mana um chamado “instinto” materno ou paterno. Laços
têm de ser criados, e dependem de todo um processo
Prefácio XIII

que remonta às próprias estruturações infantis dos pais.


E, mais do que isso, não é necessária a presença de um
casal para que uma criança se desenvolva de forma sa-
dia. Se assim fosse, haveria problemas com todas aque-
las crianças que não crescem em lares em que a mãe e
o pai real não estejam presentes, o que não é verdade.
Quantas crianças filhas de mães solteiras, que são cria-
das por parentes ou deixadas aos cuidados da caridade
que crescem saudáveis! Para isso, porém, é necessário
que aqueles que delas cuidam a tenham adotado em
termos afetivos. Quantas crianças se desenvolvem de
maneira saudável sem a presença dos pais biológicos,
criadas por mãe e avó, por tias, por frades conventuais
e, mesmo, por casais homoafetivos?!
Hugo utiliza aqui um neologismo, ainda não pre-
sente no vocabulário ortográfico oficial da língua por-
tuguesa, mas que, juntamente com homoparental, já
está em uso por se referir a uma realidade cada vez
mais presente. Ambas palavras-valise, no melhor estilo
de Lewis Carrol, para se referir a afeto entre homos-
sexuais e a junção das palavras pais (em francês, paren-
tes) e homossexuais.
Para crescerem saudáveis, crianças precisam ser
adotadas, quer emocionalmente pelos pais, quer juridi-
camente em se tratando de adoção no sentido tradicional.
É essa constatação que se encontra presente na discussão
que Hugo faz quando trata das condições históricas da
adoção no sentido jurídico, qual seja, da desvinculação
entre consanguinidade e filiação. Para isso, ele tece con-
siderações sobre a adoção nas sociedades tradicionais e
XIV O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

na sociedade contemporânea, fazendo um breve históri-


co que vai da Mesopotâmia até os dias atuais.
Mas, quais seriam os motivos que levam alguém a
querer adotar? Hugo aponta, em primeiro lugar, a ques-
tão do desejo de procriação. Em seu texto, a pesquisa
sobre o desejo de procriar vai das colocações de Dioti-
ma no Banquete de Platão, passa por Santo Agostinho e
Schopenhauer, chegando a Freud e a Lacan.
No texto, Hugo apresenta de uma forma mais deta-
lhada a perspectiva freudiana, fazendo remontar o desejo
de procriação aos primórdios da sexualidade infantil cujo
núcleo situa no complexo de Édipo. Ao fazer essa análise,
Hugo se depara com a afirmação de Freud de que todas
as crianças teriam um complexo de Édipo positivo e um
negativo. Qual seja, um desejo de morte do rival, o pai, e
um investimento afetivo para com a mãe, mas, também,
um desejo afetivo em relação ao pai e sentimentos de
hostilidade em relação à mãe. Isso devido ao que Freud
considera como uma bissexualidade que seria inerente à
espécie humana. As especificidades sexuais da vida adulta
sofreriam influências das vicissitudes ocorridas durante a
vigência da sexualidade infantil.
É nessa etapa do desenvolvimento da sexualidade
infantil que Hugo vai situar, em primeiro lugar, o desejo
de procriação, para, posteriormente, falar do desejo de
adoção. Mesmo antes de construir a hipótese da existên-
cia do complexo de Édipo, Freud já apontava o desejo de
crianças de gerar bebês. Isto é, desde cedo, crianças já
desejam um bebê. E aqui, não se trata apenas de meni-
nas, mas, de forma surpreendente, também de meninos.
Prefácio XV

Não apenas as meninas querem gerar bebês, mas, muitos


clientes de Freud do sexo masculino também apresen-
taram o desejo infantil de procriar com seus pais. Para
embasar esse fato, Hugo cita a famosa equivalência entre
fezes (dinheiro), pênis e bebês, o que possibilitou a Lacan
o desenvolvimento da concepção de falo.
Como a pesquisa de Hugo versa sobre a questão
sobre a adoção homoparental masculina, ele vai centrar
a discussão sobre o desejo de um homem de ter um fi-
lho. Isso não significa que Hugo não discuta a questão de
meninas desejarem um filho do pai e, depois, de quem
ela ama, apoiando-se no complexo de Édipo e na ques-
tão da inveja feminina do pênis, o famoso penisneid. Mas,
se questiona: como pensar a manifestação do desejo de
filho em homens que não teriam por que ter inveja do
pênis, pois o possuem? A resposta de Hugo passa, ne-
cessariamente, pela questão da disposição bissexual dos
seres humanos.
Se, no complexo de Édipo, fica evidenciado o de-
sejo heterossexual do menino, também se constata a
presença de um desejo homossexual. O menino deseja
procriar com a mãe, mas, também, deseja ter um filho
do pai, comportando-se como uma menina frente a ele.
É evidente que, no declínio do complexo de Édipo, é
habitual que uma dessas correntes de desejo seja recal-
cada ou se dissolva, tornando uma equivalência bissexual
adulta mais rara. Com isso, prevalece uma percepção de
que se é marcadamente heterossexual ou homossexual.
Em muitos casos, o desejo por um objeto homossexu-
al permanece recalcado, tendo que ser vigorosamente
XVI O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

combatido por atitudes contrárias, entre as quais, uma


homofobia militante. E aqui não é incomum desejos e
vontades inconscientes de se ter um filho com o pai.
Distinguindo desejo de vontade, Hugo trabalha
textos relativos à homossexualidade e à geração de filhos
em garotos, tais como, entre outros, a biografia de Leo-
nardo da Vinci, o caso do homem dos ratos, o comentá-
rio de Lacan sobre o caso publicado por Eisler e o caso
do presidente Schreber. Hugo também poderia ter dado
como exemplo o homem dos lobos. Na descrição desse
caso, Freud (1918 [1914]) fala, explicitamente, do dese-
jo do menino de ser copulado por trás pelo pai, ganhan-
do um filho dele como presente. Esse objetivo feminino
foi recalcado, sendo substituído pelo medo do lobo.
Além de trabalhar os textos psicanalíticos sobre a
questão do desejo de filho por homossexuais, Hugo não
deixa de lado aspectos sociais sobre esse tema, que tem
se tornado frequente nos países ocidentais, seja apoian-
do-o ou condenando-o de forma radical. Trabalha os en-
traves políticos e jurídicos do desejo dos homossexuais
de constituir família, o que, segundo ele, levaria a uma
sociedade mais justa.
Discute os argumentos principais contrários à
adoção homoparental, desmontando-os. Discute, inclu-
sive, a posição de certos psicanalistas tanto brasileiros
quanto franceses que endossam o movimento contra a
homoparentalidade, oferecendo argumentos ilegítimos
aos religiosos fundamentalistas. Com isso, dão subsí-
dios para o que Miller chamou de “instrumentalização”
da psicanálise, bem trabalhada por Hugo em seu texto,
Prefácio XVII

quando aponta os elementos que esses psicanalistas for-


necem aos fundamentalistas para que possam reafirmar
seus preconceitos.
Hugo trabalha, também, as questões de sexo e gê-
nero, tomando por base tanto as fórmulas da sexuação,
tais como apresentadas por Lacan no Seminário XX,
quanto a questão da existência ou não do que Lacan
chama de “relação sexual”, sintagma que não tem a ver
com o ato da cópula.
Quanto às fórmulas da sexuação, Hugo registra a
existência dos dois lados: um masculino e um feminino,
apontando que, se ambos recebem a inscrição do signifi-
cante fálico, diferem na forma de gozar. Há uma circuns-
crição do lado do gozo masculino, enquanto o feminino,
situado além do falo, é experimentado numa vertente
ilimitada. Hugo aponta que isso não significa que todos
os homens se inscrevam do lado masculino e as mulheres
do feminino. É impossível reduzir a masculinidade e a
feminilidade à anatomia.
Essa discussão é importante por embasar a ideia de
que adotar uma posição masculina ou feminina na vida
adulta vai depender de como cada criança, contada uma
a uma, vai autorizar-se de si mesma nas questões da se-
xuação. Para a Psicanálise de Orientação Lacaniana, cada
um de nós se autoriza ser homem ou mulher a partir
da diferença sexual presente no discurso de seus pais, e
não a partir da anatomia. Portanto, identificar-se a uma
posição masculina ou feminina não depende da anatomia
dos pais, mas é um fato de linguagem. Isso invalida a afir-
mação de que crianças com pais do mesmo sexo neces-
XVIII O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

sariamente desenvolverão dificuldades relativas à própria


identificação sexual. A homoparentalidade não elimina a
diferença sexual subjetivada. Assim, caso as crianças te-
nham a saúde mental comprometida, isso não ocorrerá
em função da identidade de sexo dos pais, mas de outros
fatores muito mais ligados a como elas lidaram com a
proibição do incesto em Édipo. Afinal, associamos fun-
ção paterna ao homem e função materna à mulher, muito
mais por tradição bíblica judaico-cristã do que por iden-
tificações que porventura uma criança fará ao autorizar-
se sexualmente por si mesma. Haja vista a diversidade
de constituições familiares que podem ser vistas como
complemento à leitura deste livro de Hugo, nos estudos
antropológicos de Lévy-Strauss, notadamente em Famí-
lia: origem e evolução.
Querer justificar-se contrariamente à adoção por
casais homossexuais porque isso prejudicaria as crianças
é desconhecer que pai e mãe são muito mais uma função
e não uma determinação biológica. É esse argumento que
Hugo desenvolve muito bem na parte do texto que fala
sobre a função do pai e a função da mãe. Citando Márcia
Rosa, Hugo aponta que a instituição familiar se forma pelo
Nome-do-pai como função de proibição da manutenção da
criança como encarnando ser o falo, isto é, como encarnan-
do ser o desejo do desejo da mãe. É nesse sentido que Lacan
situa o pai como aquele de quem a mãe testemunha, ao
proibir em Nome-do-pai, a sustentação da criança nesse lu-
gar. E isso não depende do sexo anatômico de quem castra.
As funções paterna e materna possibilitam que a
criança se relacione a um “desejo que não seja anônimo”,
Prefácio XIX

abrindo-lhe caminho a uma “constituição subjetiva” que


vai além da satisfação das necessidades meramente or-
gânicas. Se por um lado, com Hugo, constatamos que o
sentimento de paternidade nada tem de biológico, por
outro, de nossa parte, aprendemos com Spitz que o sim-
ples cuidado corporal sem afetividade da mãe pode acar-
retar o hospitalismo. Com ele, com o hospitalismo, há
uma grande possibilidade de óbito da criança.
Ainda com Lacan, aponta Hugo, uma pessoa so-
mente se inscreve como mãe se ela supre, mesmo que
indiretamente, as necessidades físicas, afetivas e emo-
cionais da criança. Isso o leva a inferir que uma criança
somente é tomada por alguém que ela considera “mãe”
se ameniza, ainda que incompletamente, as necessidades
dessa criança. Hugo cita Conté quando esse aponta a re-
lação entre o valor de uma criança para a mãe e a rela-
tiva satisfação que ela traz à inveja do pênis, ao penisneid
materno. Hugo conclui apontando que a função paterna
está relacionada à castração e à lei do pai, mesmo que
veiculada pela mãe, e a função materna não se encontra,
necessariamente, vinculada à gestação.
A função materna está relacionada ao “desejo da
mãe”, sintagma retirado da Nota sobre a criança, de Lacan,
e trabalhado por Hugo em duas perspectivas: a de quem
exerce a função materna e a da criança. Em ambas, Hugo
detecta o falo como elemento operador, e aponta não
haver nenhuma referência de Lacan à puericultura ou ao
sexo anatômico feminino.
Já a função paterna, Hugo se serve do Seminário 5
de Lacan, esclarecendo-a quanto à constituição subjeti-
XX O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

va da criança durante a vigência do complexo de Édipo.


Neste ponto do texto, Hugo retoma três questões que
envolvem o pai nessa constituição da subjetividade da
criança, esclarecendo-as. São elas: a presença e a ausên-
cia do pai, a carência paterna e a questão da normalidade
do pai. Dessas considerações, Hugo conclui que nada no
ensino de Lacan justifica a suposição de que o pai deva
ser um homem possuidor do órgão sexual masculino e
atraído sexualmente por uma mulher.
Hugo discute ainda alguns argumentos utilizados
por religiosos e juristas contra a adoção homoparental
tais como relacionados a preconceitos sociais, desmon-
tando-os e reafirmando a responsabilização por um de-
sejo que não seja anônimo. Para discutir essa questão,
Hugo busca subsídios, além de Lacan, num texto escrito
pelo psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise Sér-
gio Laia e publicado em uma cartilha sobre a adoção ho-
moparental do Conselho Federal de Psicologia, que traz
informações bastante importantes sobre o tema.
Esse desejo não anônimo, resultado de um proces-
so de adoção simbólica, caracteriza-se pelo acolhimento
de uma criança ou adolescente como filho. Hugo coloca
o desejo não anônimo enquanto personificação da père-
version. Como exemplo, nos lembramos da divertida co-
média Patrik 1.5 (Patrik, Age 1.5), de Ella Lemhagen,
Suécia, 2008.
Aliás, se retomarmos a tábua da sexuação, pode-
mos acrescentar ao texto de Hugo algumas considera-
ções relativas a dois arranjos de pais na adoção homo-
parental. Por exemplo, ambos podem se situar do lado
Prefácio XXI

masculino da tábua das sexuação, dirigindo cada um a


sua libido para o órgão do companheiro enquanto objeto
a, extraindo daí um gozo mútuo, e desejando adotar um
filho como sinal de amor da parceria. Podem, também,
cada um deles, se situar em lados opostos da tábua. Um
pode visar ao objeto a no outro homem, considerado
como marca do Outro enquanto barrado (La). Se o pri-
meiro obtém dessa relação o gozo peniano, o outro pode
desenvolver um gozo anal infindo, não fálico, sem o ór-
gão, situando-o em S (A), tal como apontado por Leda
Guimarães (2014) em seu livro Gozos de Mulher (p. 66), e
muito bem exemplificado por Nossa Senhora das Flores,
personagem do romance de Jean Genet.
Nesse caso, um dos parceiros pode desejar uma
criança como fruto adotivo dessa escolha pai-versamente
orientada, tomando aqui em outro contexto a dicência
de Lacan da lição de 21-01-1975 do Seminário 22, e o
outro desejar também a adoção como realização fantas-
mática de ganhar um filho de seu parceiro como presen-
te, num “coito efetuado por traz – more ferarum” como Freud
aponta no caso do homem dos lobos. Um dos parceiros
está pai-vertidamente orientando, fazendo de seu compa-
nheiro objeto pequeno a que causa seu desejo, enquan-
to o outro pode se ocupar de outros objetos pequeno a
que são as crianças, ou o próprio filho de uma relação
do parceiro com uma mulher, tão bem exemplificado na
relação dos proprietários da divertida comédia A Gaiola
das Loucas (The Birdcage), filme de Mike Nicols, Estados
Unidos, 1996. Nesse filme, Robin Williams faz o papel
do pai, e Nathan Lane, como seu parceiro, travestido,
XXII O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

faz o papel de mãe de Dan Futterman, filho de Robin


Williams com Cristine Baranski.
Finalmente, não poderia deixar de registrar neste
prefácio a lembrança das emoções que a leitura da epí-
grafe colocada por Hugo relativa à conversa de Marceli-
no com Jesus me fez recordar quando, contendo o choro,
assisti pela primeira vez o maravilhoso filme espanhol de
Ladislao Vajda, no longínquo ano de 1956.

Boa leitura,
L. F.

Referências

FREUD, Sigmund. História de uma neurose infantil (1918


[1914])). In:______. Edição Standard das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio
de Janeiro: Editora Imago, 1996. v.XVII. p. 19-151.
GENET, Jean. Nossa Senhora das Flores (1943). Rio
de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.
GUIMARÃES, Leda. Gozos da Mulher. Rio de Janeiro:
KBR Editora, 2014.
Introdução

Nas páginas que seguem, o leitor encontrará o re-


sultado de uma pesquisa teórica desenvolvida no Pro-
grama de Pós-graduação stricto sensu em Psicologia da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, que
teve como principal objetivo elucidar o que vem a ser “o
desejo de filho” no caso da adoção homoparental em uma
perspectiva psicanalítica.
Diante da constatação de que um sujeito é capaz de
gestar um filho sem gerá-lo, a dimensão do desejo, presen-
te no processo de adoção configurou-se como uma questão
fundamental para a compreensão da parentalidade que vai
além da vinculação biológica. Etimologicamente, a palavra
adoção, em Língua Portuguesa, vem do latim adoptio (to-
mar como seu) e ressalta a responsabilidade que o acolher
alguém em seu universo familiar implica.
Diferente de um instinto, a aspiração à paternidade
ou à maternidade não é concedida pela natureza ao ser
humano. Se assim o fosse, toda mulher, por exemplo, ao
desenvolver-se, naturalmente almejaria a maternidade e
não se realizaria enquanto não a alcançasse – o que não
é verdadeiro. Desta maneira, entendemos que, quanto ao
XXIV O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

inclinar-se à parentalidade, uma operação distinta da de-


terminação biológica se revela: trata-se de uma construção
subjetiva.
Consideravelmente, esta construção subjetiva que
possibilita ao ser humano tornar-se pai ou mãe encontra
no fenômeno da adoção uma de suas mais ricas expres-
sões, pois questiona a concepção naturalista da vinculação
parental e evidencia o desejo de tomar uma criança ou
adolescente como filho. Desta forma, nos perguntamos:
o que leva um sujeito a desejar ter filhos? Como a teoria
psicanalítica, circunscrita nos escritos de Sigmund Freud
e Jacques Lacan, responde à questão da motivação para
tornar-se pai e/ou mãe?
No cenário contemporâneo, a adoção adquire im-
plicações políticas e ideológicas peculiares quando reque-
rida e efetivada por homossexuais. O estabelecimento de
relações parentais entre homossexuais e crianças ou ado-
lescentes que não estão conectados pela consanguinidade
atualiza discussões sobre o que significa ser pai, ser mãe e,
consequentemente, sobre as definições de família presen-
tes na sociedade.
A fim de interrogar as teorias psicanalíticas de Sig-
mund Freud e Jacques Lacan sobre o que estas apresentam
acerca da origem do “desejo de filho” (Kinderwunsch), e,
consequentemente, se estas considerações teóricas limi-
tam-se ao campo da heterossexualidade, a leitura dos tex-
tos das Obras Completas de Freud, dos Escritos e Outros Escri-
tos, bem como de O Seminário de Jacques Lacan tornou-se
necessária (e prazerosa). Além dos textos de Freud e os
trabalhos de Lacan, somaram-se à bibliografia estudada
Introdução XXV

textos de psicanalistas contemporâneos sobre a instituição


familiar e escritos de pesquisadores nacionais e internacio-
nais acerca da homoparentalidade.
Sendo assim, nos três capítulos deste trabalho, o lei-
tor irá se deparar com trechos de textos literários e breves
relatos de casos de adoção homoparental, mesclados aos
resultados da investigação teórica realizada nos dois anos
do curso de mestrado do Programa de Pós-graduação stric-
to sensu em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais (PUC Minas), sob a orientação do Prof.
Dr. Luis Flávio Silva Couto e o apoio financeiro da Funda-
ção de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG).
No primeiro capítulo, buscamos tecer algumas
considerações sobre a história da adoção, bem como
apresentar algumas reflexões filosóficas presentes ao
longo da História da Filosofia sobre os motivos pelos
quais os seres humanos decidem ter filhos, a fim de con-
textualizarmos a concepção de Sigmund Freud de “de-
sejo de filho” (Kinderwunsch). Finalizamos o primeiro ca-
pítulo deste livro concluindo que, em Freud, o “desejo
de filho” aproxima-se de “um desejo de gerar filhos” e,
por vezes, é caracterizado por construções fantasísticas
originadas da experiência edípica.
Redigimos o segundo capítulo deste trabalho com
o objetivo de tecermos algumas considerações teóricas
sobre os argumentos utilizados por autoridades jurídicas
e eclesiásticas contrárias à adoção homoparental na pers-
pectiva psicanalítica de orientação lacaniana. Problemati-
zamos a apropriação de termos e conceitos psicanalíticos
pelos discursos homofóbicos e heteronormativos, convi-
XXVI O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

dando o leitor a refletir sobre os efeitos daquilo que Jac-


ques-Alain Miller (2013, p. 129), em uma intervenção no
Senado Francês, chamou de “instrumentalização ilegítima”
da Psicanálise. Concluímos o segundo capítulo evocando
a capacidade de um sujeito responsabilizar-se pelo pró-
prio desejo de tornar-se pai/mãe e insistindo que o com-
promisso da Psicanálise em escutar as singularidades, em
nada, se aliança à defesa de um modelo familiar específico
em detrimento de outros.
Quanto ao terceiro capítulo, neste analisamos a
expressão “desejo que não seja anônimo”, utilizada por
Jacques Lacan (1969/2013, p. 369) em sua Nota sobre a
criança, e propomos uma noção do “desejo de filho” na
perspectiva lacaniana, a partir de O Seminário, Livro XXII.

1 A concepção freudiana do “desejo de filho”

“[...] sempre se é filho da época


em que se vive, mesmo naquilo que se
considera ter de mais próprio”
(FREUD, 1897/1986, p.278)

Disponibilizado para a adoção desde seu nascimen-


to, J. veio ao mundo em um parto caseiro e foi levado ao
atendimento de urgência pediátrica acompanhado de sua
genitora pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência
(SAMU) da cidade de Belo Horizonte – MG. Esta, mesmo
comprometendo-se a acompanhar J. no período de inter-
nação, fugiu do hospital e nunca mais foi encontrada. Com
um desfavorável diagnóstico de hidrocefalia secundária,
sequela de meningite neonatal, J. passou os primeiros no-
venta dias de vida no hospital e, após receber alta hospita-
lar, foi encaminhado, diretamente, para o abrigo onde per-
maneceu até ser adotado por um casal homoafetivo francês
aos dois anos e meio de idade (ESPÍRITO SANTO, 2014).
A legislação brasileira, por meio do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), contempla as gestantes
que desejam entregar suas crianças para adoção logo após o
2 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

trabalho de parto. No parágrafo único do artigo 13 do ECA,


incluído pela Lei no 12.010 de 2009, encontramos a seguin-
te determinação: “As gestantes ou mães que manifestem in-
teresse em entregar seus filhos para adoção serão obrigato-
riamente encaminhadas à Justiça da Infância e da Juventude”
(BRASIL, 1990). A naturalidade do processo de gestação,
por si mesma, não é capaz de proporcionar a consolidação
de uma vinculação parental entre a gestante e a sua cria.
Ao mesmo tempo, encontramos a formação deste
vínculo de cuidado e afeto entre crianças e adultos que não
são conectados pela consanguinidade originando proces-
sos de filiação. Assim, uma operação distinta da determi-
nação biológica se revela: quanto à parentalidade, trata-se
de uma construção subjetiva. É na singularidade da relação
de cada sujeito com sua própria história, seu contexto so-
ciocultural e suas fantasias que se encontra a formação do
“desejo de filho” – estruturante para uma criança e condi-
ção para o exercício das funções parentais.
No caso de J., a interferência da dimensão subjetiva
se faz notar no abandono de sua genitora e, posteriormen-
te, em seu acolhimento e filiação por um casal homoafe-
tivo. Não há inscrição na natureza que determine a uma
mulher tornar-se mãe, assim como não há determinação
biológica que impeça dois homens de desejarem ter um
filho e acolherem uma criança como tal. Isto, exatamen-
te, porque na dimensão do humano nos deparamos com o
campo do desejo.
Ao evidenciar a impossibilidade de naturalização dos
vínculos familiares, a filiação adotiva traz à tona a inefici-
ência da ligação biológica para o estabelecimento de uma
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 3

relação parental e revela o caráter subjetivo da vinculação


entre pais e filhos. A ligação biológica estabelecida entre
uma gestante e uma criança não é suficiente para que o
laço afetivo ocorra, uma vez que o bebê disponibilizado
para a adoção não é reconhecido como filho por aquela
que o gerou. Contudo, quando esta criança é acolhida por
uma unidade familiar disposta a dedicar-lhe afeto e suprir-
lhe as necessidades básicas, ainda que seus traços físicos
sejam diferentes daqueles que a adotaram, uma relação ca-
paz de conceder-lhe um lugar no mundo, uma história e
um nome é construída.
Porém, cabe perguntar-nos: quando surgiu a ênfase nos
laços afetivos que podemos identificar nas famílias contemporâ-
neas e, principalmente, na adoção? Ou, ainda: quais as condi-
ções históricas e sociais que proporcionaram a desvinculação entre
consanguinidade e filiação? A filiação sempre se fundamentou
na vontade de ser pai ou mãe manifestada por um indivíduo?
Algumas possíveis respostas a estas perguntas poderemos
encontrar ao considerarmos a história da adoção – o que
faremos, brevemente, a seguir.

1.1 A adoção nas sociedades tradicionais e na sociedade


contemporânea

Por tratar-se de um fenômeno humano, a adoção


possui uma história e, em variadas épocas e contextos
culturais, revela-se de diversas maneiras. Uma modes-
ta digressão histórica mostra-nos que, desde a Idade An-
tiga, registros sobre a prática da adoção foram deixados
pela humanidade e podem ser considerados como pontos
importantes da constituição social universal (SENADO,
2013; VARGAS, 1998).
4 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

Possivelmente, a adoção foi originada da obrigação


de perpetuar o culto doméstico nas civilizações antigas, de
forma que as tradições e maneiras de reverenciar os ante-
passados pudessem ser transmitidas às novas gerações em
um ambiente familiar (COULANGES, 1961). O Código de
Hamurabi (aproximadamente 1700 a.C.), descoberto por
uma comitiva francesa em 1901 na antiga área da Mesopo-
tâmia, por exemplo, é composto por 282 artigos relacio-
nados ao direito civil, administrativo e penal; ao menos,
oito destes referem-se, diretamente, à adoção2 (SENADO,
2013; VIEIRA, 2011).
Além de essencial ao desenvolvimento do estudo
literário, artístico e filosófico, o resgate dos persona-
gens mitológicos coloca-nos diante de uma forma de
conceber e pensar os mundos material e social que pre-
dominaram em uma determinada época. Quanto à ado-
ção, esta, também, mostra-se nas lendas e estórias dos
povos – sejam eles antigos ou atuais –, revelando uma
específica concepção dos processos de filiação em uma
organização sociocultural.
Entre as divindades da mitologia greco-romana, a
versão mais popular da história de Dioniso (Baco) conta
que o filho de Zeus foi adotado pelas ninfas niseanas. Sua
progenitora, a princesa Sêmele, morreu ao expor-se à gló-
ria do amado após acatar um malicioso conselho de Hera.
A esposa de Zeus, a fim de vingar-se, passando-se por uma
figura conhecida de Sêmele, sugeriu à amante do marido
que solicitasse ao deus do Olimpo, como prova de amor,
2
Em seu 185º artigo, o Código de Hamurabi resolve que “se alguém dá seu nome
a uma criança e a cria como filho, este adotado não poderá mais ser reclamado”
(VIEIRA, 2011).
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 5

que este se mostrasse em sua grandiosidade. Sêmele foi


consumida pela luz de Zeus. Educado e protegido pelas
ninfas, Dioniso cresceu em segurança e, ao amadurecer,
descobriu uma maneira de extrair do fruto da videira seu
suco, tornando-se conhecido como o deus das festas, o
amante da paz e da embriaguez (BULFICNCH, 2006).
O mito fundador de Roma consiste em uma his-
tória de adoção. Da proibida relação entre o deus da
guerra (Marte) e uma virgem sacerdotisa, nasceram dois
garotos gêmeos destinados à força e ao triunfo. Odiados
pelo rei Amúlio, foram colocados em um balaio e lan-
çados no rio Tibre por ordem do governante que temia
perder o cetro. Contudo, Marte enviou uma loba que
salvou os meninos e os amamentou. Posteriormente, fo-
ram acolhidos e educados por Fáustulo e Larência, um
casal de pastores camponeses que lhes nomearam Rô-
mulo e Rêmulo (CRUZ, 2013).
Na Antiga Roma, a adoção, encarada como um insti-
tuto social legítimo, chegou a ser utilizada para a sucessão
de imperadores e constituída como legal àqueles maiores
de sessenta anos de idade e que não tivessem filhos naturais
(ALVES, 1917; SENADO, 2013). De forma semelhante, o
Código de Manu, constituído por doze livros que legislaram
o mundo indiano e organizaram a vida social dos hindus,
admitia a adoção quando não era possível conceber filhos
homens, a fim de que a transmissão de bens e as obrigações
civis e religiosas pudessem ocorrer (CAIXETA, 2010).
Um dos mais importantes livros da organização social
judaico-cristã, a Bíblia Sagrada, traz, entre suas diversas nar-
rativas, casos de adoção. Moisés, nascido no Egito em uma
6 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

época em que o Faraó ordenara a execução de todos os re-


cém-nascidos do sexo masculino, foi colocado sobre as águas
em um cesto e acolhido pela filha do Faraó (Êxodo 1, 15-22;
2, 1-10). Hadassa, uma menina judia, após a morte de seus
pais, foi adotada e educada nas tradições de seu povo por seu
primo Mordecai em um território Persa (Ester 2, 4-7).
Quanto à Idade Média, poucos são os registros sobre
a prática da adoção. De forma geral, fala-se de um desuso
da adoção neste período histórico devido à hipervalori-
zação dos laços sanguíneos e à reprodução vinculada ao
sacramento do matrimônio. Contudo, com a permissão
de autoridades eclesiásticas e reais (o consentimento do
Príncipe, por exemplo), a adoção era permitida àqueles
que não possuíam filhos de “próprio sangue”, a fim de que
o “critério da imitação da natureza” validasse a instituição
familiar (PENHA & LIGERO, 2009).
Inegavelmente, a tônica da prática da adoção no
mundo antigo e medieval incide sobre a manutenção e a
transmissão dos valores, ritos e bens da coletividade. A fim
de que a perpetuação, não apenas de um nome de família,
mas de tradições comunitárias, fosse efetivada, o instituto
da adoção configurou-se como um elemento colaborador
da manutenção das tradições nas sociedades pré-modernas.
Estas organizações sociais regidas pelas tradições
diferenciam-se do contexto histórico-cultural atual, en-
tre outros pontos, pelo predomínio da heteronomia. De
acordo com Louis Dumont (2008), em sociedades tradi-
cionais as ações humanas respondem à força do coletivo
e a escolha individual não pode ser identificada. Também
chamadas de sociedades holistas, tais organizações sociais
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 7

são caracterizadas pela significativa relação de dependên-


cia estabelecida entre a existência das pessoas e as tradi-
ções (RENAUT, 1998).
Duas configurações deste tipo opõem-
se de imediato, as quais caracterizam,
respectivamente as sociedades tradicio-
nais e as sociedades modernas. Nas pri-
meiras, como também na República de
Platão, o acento incide sobre a sociedade
em seu conjunto, como Homem coleti-
vo; o ideal define-se pela organização da
sociedade em vista de seus fins (e não em
vista da felicidade individual); trata-se,
antes de tudo, de ordem, de hierarquia,
cada homem particular deve contribuir
em seu lugar para a ordem global, e a
justiça consiste em proporcionar as fun-
ções sociais com relação ao conjunto.

Para as sociedades modernas, ao con-


trário, o Ser humano é o homem “ele-
mentar”, indivisível, sob sua forma de
ser biológico e ao mesmo tempo de su-
jeito pensante. Cada homem particular
encarna, num certo sentido, a humani-
dade inteira. Ele é a medida de todas as
coisas (num sentido pleno todo novo).
O reino dos fins coincide com os fins
legítimos de cada homem, e assim os
valores invertem. O que se chama ainda
de “sociedade” é o meio, a vida de cada
um é o fim. (DUMONT, 2008, p.57)

Na Modernidade, ao contrário do que se pode identi-


ficar nas sociedades antigas e medievais, o estabelecimento
8 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

de normas e leis fundamentadas na vontade individual di-


minui a autoridade das tradições e marca o declínio da obe-
diência radical aos princípios coletivos (RENAUT, 1998).
A transição da organização social tradicional e heterônoma
para a sociedade individualista não ocorreu apressadamente.
Acontecimentos históricos significativos como a Reforma
Protestante e a Contrarreforma, o Renascimento e o Ra-
cionalismo, por exemplo, possibilitaram a consolidação da
cultura de valorização dos interesses individuais.
Desta forma, nas sociedades individualistas, ações
humanas deixam de responder aos interesses tradicionais
e coletivos e passam a ser fundamentadas em aspirações
e ideais privados. Pode-se ler a adoção, do mesmo modo
que outros fenômenos relacionados à instituição familiar,
a partir da Modernidade, como uma prática alicerçada no
querer de um homem ou de uma mulher que decide pelo
tornar-se pai ou mãe.
François Singly (2007), especificamente sobre a ins-
tituição familiar, pontua dois momentos distintos da famí-
lia contemporânea ou moderna: um primeiro período, do
século XIX até a década de 1960 e um segundo período,
da década de 1960 até os dias atuais. De acordo com Sin-
gly (2007), o casamento por amor, a atenção e o cuidado
à saúde e educação das crianças, bem como a divisão do
trabalho entre homens e mulheres caracterizam o primei-
ro período contemporâneo da família. Quanto ao segundo
período da família contemporânea, com início a partir da
década de 1960, o autor afirma ser este especificado por
uma maior atenção aos relacionamentos que proporcio-
nam satisfações e prazeres aos indivíduos.
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 9

Hoje, a “família feliz” é menos atrativa,


o que importa é a felicidade de cada
um. Contrariamente a certas utopias
de 1968, ou a certos textos feministas
que pretendiam destruir a família bur-
guesa e a família patriarcal, a família não
desapareceu, uma vez que os indivídu-
os acreditam que ela constitui um dos
veículos ideais para ser feliz, para a re-
alização de si mesmo. (SINGLY, 2007,
p.131-132)

É interessante observarmos que à semelhança de


Jacques Lacan em Nota sobre a criança (1969/2003), Sin-
gly identifica uma ineficiência das “utopias” que pressupu-
nham o fim da família. Lacan inicia seu texto constatando
o “fracasso das utopias comunitárias”: refere-se às experi-
ências e propostas de educação infantil, bem como de vida
comunitária que foram desenvolvidas na década de 1930 e
reeditadas nos movimentos libertários da década de 1960,
que propunham relações menos autoritárias entre os su-
jeitos e a valorização do diálogo nas decisões cotidianas
(LAIA, 2013).
Reconhecendo as diversas modificações formais
que a instituição familiar sofre com o decorrer do tem-
po e da História, Lacan chama a atenção de seus leitores
para aquilo que permanece no âmbito da família: “a função
de resíduo exercida (e, ao mesmo tempo, mantida) pela
família conjugal na evolução das sociedades” (LACAN,
1969/2003, p. 369). Posteriormente, desenvolveremos
com mais detalhes esta questão, mas, por enquanto, é
suficiente afirmar que, apesar de diversas experiências e
10 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

propostas de criação de crianças e vivências em pequenos


grupos terem sido apresentadas, a família permanece e é
caracterizada por funções que viabilizam uma transmissão.
Nas mais diversas configurações familiares ao lon-
go da História, a relação de um par com sua cria sempre
esteve presente. Contudo, em nossos dias, percebemos
uma ênfase nas relações estabelecidas entre os membros
de uma família por parte das Ciências Humanas e do senso
comum. O destaque concedido aos sentimentos e à esco-
lha, que as famílias contemporâneas acentuam, é caracte-
rístico da nossa época, na qual as questões relacionadas à
reprodução são encaradas como objetivos individuais.
[...] a decisão de ter um filho é agora
muito diferente do que foi para gera-
ções anteriores. Na família tradicional,
os filhos eram uma vantagem econômi-
ca. Hoje, nos países ocidentais, um fi-
lho, ao contrário, representa um grande
encargo financeiro para os pais. A deci-
são de ter um filho é muito mais defini-
da e específica do que costumava ser, e
é guiada por necessidades psicológicas
e emocionais. (GIDDENS, 2003, p.69)

A motivação para tornar-se pai ou mãe, na Contem-


poraneidade, é dissociada dos valores e tradições coletivos
e passa a ser localizada na vontade do indivíduo que se
presta à parentalidade. Paternidade e maternidade tor-
nam-se, a partir daí, uma questão de escolha (FONSECA,
2001; TARNOVSKI, 2011).
Cabe mencionar que a adoção é conhe-
cida como uma filiação civil, ou seja,
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 11

necessita da vontade do adotante em


trazer para seu lar e convívio com sua
família um estranho. (GRANJA & MU-
RAKAWA, 2012)

É neste contexto no qual as escolhas individuais são


tomadas como fundamento de requerimentos sociais e ju-
rídicos que a adoção homoparental ganha destaque.
Se entre os casais heterossexuais é pre-
sumido que tenham filhos, a “opção” per-
mite que não os tenham. Já para os ho-
mossexuais o sentido dessa presunção
é que não tenham filhos, fazendo com
que a “opção” implique numa ação posi-
tiva. (TARNOVSKI, 2011, p.72)

De forma geral, podemos afirmar que a filiação


adotiva coloca em evidência um expressivo traço carac-
terizador da família contemporânea: no lugar da consan-
guinidade, a vinculação afetiva (SCHETTINI et al., 2006).
Neste sentido, a adoção adquire implicações políticas e
ideológicas peculiares quando requerida e efetivada por
homossexuais. O estabelecimento de relações parentais
entre homossexuais e crianças ou adolescentes que não
estão conectados pela consanguinidade – a adoção homo-
parental – é uma das possíveis configurações da homopa-
rentalidade3 e, na última década, tem sido alvo de debates
e discussões legislativas em quase todo o mundo ocidental.
3
Basicamente, as famílias homoparentais são categorizadas pela forma com que os
filhos chegam ao lar homoafetivo: 1 – rearranjo familiar após uma união heterosse-
xual; 2 – coparentalidade (a geração de um filho sem que exista um compromisso
entre o pai e a mãe da criança, acordo entre um gay e uma lésbica de gestarem uma
criança); 3 – adoção homoparental; 4 – tecnologias reprodutivas (inseminação arti-
ficial, barriga de aluguel, etc.) (TARNOVSKI, 2011, p.69-70).
12 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

O neologismo homoparentalité, traduzido para o


português como “homoparentalidade”, foi introduzido
no meio acadêmico francês em 1997 pela Association dês
Parents et futurs parentes Gays et Lesibiennes4 para designar a
condição familiar em que ao menos um dos pais declara-se
homossexual. O termo “homoparentalidade” evidencia a
possível articulação entre a vivência da parentalidade e da
orientação sexual homossexual, de forma que o tornar-se
pai ou mãe deixa de ser característico, apenas, da heteros-
sexualidade.

1.2 Procriar e filiar: por quê?

Junto à discussão sobre a adoção homoparental,


questões relacionadas à união civil homoafetiva e às famí-
lias constituídas por homossexuais receberam notoriedade
no cenário político, midiático e acadêmico nas duas últi-
mas décadas. É perceptível a demanda por reconhecimen-
to legal das realidades referentes à família por parte dos
homossexuais na Contemporaneidade. Recusando o lugar
de “malditos” e “fora da lei”, os militantes gays e lésbicos
em todo o mundo ocidental requerem uma acomodação
no Outro jurídico e apontam para mudanças significativas
nas instituições sociais em nossa época.
Assim, é na cena jurídica que uma pergunta antiga
– e inquietante – se atualiza: afinal, por que ter filhos? Pensa-
dores ocidentais, em acordo com as teorias filosóficas que
desenvolveram, refletiram sobre esta questão e elabora-
ram algumas respostas para esta pergunta. Nos desperta a
4
APGL – Association des Parents et futurs parents Gays et Lesbiennes. Associação francesa
de marcante atuação desde 1986, decisiva para a introdução do tema da homoparen-
talidade no cenário acadêmico parisiense e na luta por reconhecimento de direitos
das famílias homoparentais.
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 13

atenção o fato de que, quando dirigido aos casais homoa-


fetivos, tal questionamento às motivações para filiar é car-
regado de temores, preconceitos e até mesmo hostilidade
para com a homoparentalidade (APA, 2005).
Contudo, considerarmos alguns movimentos da
história da filosofia ocidental possibilita-nos identificar
reflexões sobre os motivos pelos quais homens e mulhe-
res manifestam a vontade de procriar e filiar. Citamos,
a seguir, algumas destas reflexões por entendermos que,
apesar de enfatizarem os relacionamentos heterossexuais,
contribuíram para a formação de teorias contemporâneas
sobre o assunto.
No período histórico da filosofia clássica encontra-
mos no Banquete de Platão o desejo de imortalidade como
motivação para a procriação e a filiação. A fim de que sua
doutrina sobre o Mundo das Ideias e a constante impulsão
de retorno à perfeição nele presente fosse divulgada, Pla-
tão colocou na boca de Diotima seu ensinamento sobre
o amor e a atração erótica que respondem a algo além da
materialidade corpórea.
Por meio do diálogo de Sócrates e Diotima, Platão
apresentou sua concepção da procriação e do nascimento:
“são coisas imortais num ser mortal!” (PLATÃO, 2005,
p.144). De acordo com o escrito platônico, há um impul-
so à procriação que pode ser notado na experiência do
homem e da mulher a partir de uma idade específica. Para
Platão, este impulso à procriação é intensificado e deixa-
se notar com mais veemência quando os homens aproxi-
mam-se daquilo que é belo e harmonioso, uma vez que a
beleza e a ordem apontam para aquilo que é imortal. As-
14 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

sim, por meio de Diotima, Platão apresentou uma peculiar


concepção de amor: “[o amor] é um desejo de procriação
no belo.” (PLATÃO, 2005, p.144).
Diotima: – Não talvez, mas seguramente
o é. E sabes qual é a importância da pro-
criação? É que ela representa algo que
perdura: é, para um mortal, a imortali-
dade. Ora, segundo vimos há pouco, o
desejo de imortalidade é inseparável do
desejo do bem, pois que o amor consis-
te no desejo da posse perpétua do bem;
donde resulta que o amor é também
o desejo de imortalidade. (PLATÃO,
2005, p.144)

Desta forma, podemos afirmar que para o pensa-


mento platônico o amor tem como finalidade a manuten-
ção da vida e isto é possível por meio da procriação. O
querer procriar, de acordo com este sistema de pensamen-
to, consiste em uma ânsia por preservação e permanência,
o que leva Diotima a conceber o nascimento de uma crian-
ça como um vislumbre de imortalidade.
Entretanto, o filósofo grego não restringiu a pro-
criação ao corpo e apontou para a possibilidade de uma
procriação “pelo espírito”5. Segundo a doutrina platônica,
o empuxo à eternização possibilita a alguns crerem que
por meio da criação de filhos atingirão a imortalidade; a
outros, porém, este mesmo anseio pelo que é eterno pos-
sibilita a inventividade artística e a engenhosidade.
5
“Diotima: – Pois bem; vou falar mais claro. Todos os homens, caro Sócrates, dese-
jam procriar segundo o corpo e segundo o espírito. Quando atingimos certa idade,
nossa natureza nos impele a que procriemos. Mas a procriação só se faz no belo.”
(PLATÃO, 2005, p.144)
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 15

Os que, porém, desejam procriar pelo


espírito – pois há pessoas que mais de-
sejam com a alma do que com o corpo
(e ela é mais fecunda ainda que o corpo)
–, esses anseiam por criar aquilo que à
alma compete criar. Que criação será
esta? É do pensamento e das demais
virtudes. É a criação desses homens a
quem chamamos poetas, e a daqueles
outros aos quais denominamos invento-
res. (PLATÃO, 2005, p.147)

Na transição da cultura greco-romana para o mundo


medieval, marcada pela ascensão do Cristianismo, encon-
tramos o trabalho de Santo Agostinho, importante pensa-
dor do começo da Idade Média. Retomando a ordenança
bíblica “sede fecundos, multiplicai-vos” (Gênesis 1, 28),
Santo Agostinho, no capítulo XXIV do décimo terceiro li-
vro de suas Confissões registrou que além da perpetuação
da espécie, a palavra de ordem divina refere-se, também, à
procriação de ideias, valores e pensamentos:
37. Se considerarmos não alegorica-
mente, mas no sentido real a natureza
das coisas, vemos que as palavras “crescei
e multiplicai-vos” se estendem a tudo o
que nasce de semente. Se, pelo con-
trário, as interpretarmos em sentido
figurado, – que era, a meu ver, o que a
Escritura pretendia, a qual, com certe-
za, não atribui inutilmente esta bênção
só às crias dos peixes ou aos filhos dos
homens! – encontraremos uma grande
multidão de criaturas corporais e espiri-
tuais, simbolizadas no céu e na terra; as
16 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

almas dos justos e perversos, simboliza-


das na luz e nas trevas; os santos legis-
ladores por quem Deus nos deu a Lei,
simbolizados no firmamento que foi es-
tabelecido entre as águas superiores e as
águas inferiores; a sociedade dos povos
amargurados pelas suas paixões, simbo-
lizada no mar; as afeições das almas pie-
dosas, simbolizadas na “terra enxuta”; as
obras de misericórdia praticadas nesta
vida, simbolizadas nas ervas que nascem
de sementes e nas árvores frutíferas; os
dons espirituais manifestados para uti-
lidade do próximo, simbolizados nos
astros do céu; as afeições regradas pela
temperança, simbolizadas na alma viva.
(...) Em tudo isso, pois, encontramos
variedade, abundância e acréscimo.
(SANTO AGOSTINHO, 1980, p.337)

Contudo, é no visitado documento cristão De Bono


Conjugalli que Santo Agostinho manifestou-se sobre o mo-
tivo pelo qual os seres humanos querem procriar: para
cumprirem a ordenança divina. A obediência a esta orde-
nação deve acontecer, segundo o santo, no sacramento do
matrimônio:
Que a procriação dos filhos seja a
razão do matrimônio o Apóstolo o
testemunha nestes termos: “eu quero
que as jovens se casem”. E, como se lhe
dissessem: “mas por quê?”, logo acres-
centa: “para procriarem filhos, para serem
mães de família”. (SANTO AGOSTI-
NHO, 1954, XXIV, 32)
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 17

A possibilidade de gerar filhos, nesta perspectiva,


motiva a união conjugal. Esta possibilidade de procriação
advém da palavra do Deus Criador proferida no Gênesis
bíblico: “multiplicai-vos” (Gênesis 1, 28). A concepção
cristã medieval da geração de filhos fundamenta-se nos
textos bíblicos e na interpretação das cartas do apósto-
lo Paulo. A capacidade humana de criar, entendida por
Agostinho como um sinal da imagem e semelhança de
Deus, realiza-se concretamente no sacramento do matri-
mônio e espiritualmente no serviço do celibatário para
o reino de Deus.
Porque há eunucos de nascença; há ou-
tros a quem os homens fizeram tais; e
há outros que a si mesmos se fizeram
eunucos por causa do reino dos céus.
Quem é apto para o admitir admita.
(Mateus 19, 12)

“É bom para o homem não tocar em mulher


alguma (I Cor 7, 1)”; “o que não tem esposa
pensa nas coisas de Deus e em como lhe há
de agradar; o que está unido em matrimônio
pensa nas coisas do mundo e em como há de
agradar à esposa” (I Cor 7, 28). Oxalá ti-
vesse ouvido mais atentamente essas pa-
lavras! Se tivesse vivido eunuco “por amor
do reino dos céus” (Mateus 19, 12) espera-
ria agora, mais feliz, os vossos abraços.
(SANTO AGOSTINHO, 1980, p.56)

Os escritos de Santo Agostinho influenciaram todo


o pensamento medieval e, após sua morte, no dia 23 de
agosto de 430, sua filosofia perdurou como referência de
18 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

reflexão da fé cristã por pelo menos setecentos anos (PES-


SANHA, 1980). O advento do pensamento de São Tomás
de Aquino, em uma tentativa de integração entre aristote-
lismo e religião cristã, marcou um posterior momento da
filosofia medieval (DUMOULIÉ, 2005).
Das orientações religiosas e filosóficas de Santo
Agostinho, saltaremos para a filosofia de Arthur Schope-
nhauer, pois, na história do pensamento ocidental, ele se
apresenta como o primeiro filósofo após Platão que tratou
de assuntos abandonados aos poetas: o amor, o desejo e o
impulso à procriação. Provavelmente, por abordar estes
temas de forma não religiosa Schopenhauer é considerado
um precursor da Psicanálise (DUMOULIÉ, 2005, p.103).
Avaliamos importante registrar que a considera-
ção para com assuntos referentes ao erotismo contraria
a valorização da razão e a centralidade do conhecimento
científico, características do período histórico da filosofia
moderna inaugurado com Descartes. Schopenhauer pode
ser considerado como um dos pensadores modernos que
rompem com o racionalismo, por considerar a intelectua-
lidade e o conhecimento científico como insuficientes para
a compreensão da experiência humana (MARCONDES,
2006, p.237).
Schopenhauer escreveu sua Metafísica do Amor
(1844/2000) e, ao elaborar suas reflexões acerca da causa
da atração sexual entre duas pessoas, falou de um finalismo
instintivo que rege a vida amorosa.
O arrebatamento vertiginoso que toma
o homem quando ele vê uma mulher
cuja beleza é para ele das mais ade-
quadas, e lhe preludia a união com ela
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 19

como o sumo bem, é justamente o sen-


tido da espécie, que, reconhecendo sua
estampa nitidamente expressa, gostaria
de perpetuar-se com ela. Sobre essa de-
cisiva inclinação para a beleza repousa
a conservação do tipo da espécie e por
isso é que ela age com tão grande poder.
(...) O que, portanto, guia aqui o ho-
mem é realmente um instinto, orienta-
do para o melhor da espécie, enquanto
ele imagina procurar apenas o supremo
gozo pessoal. (SCHOPENHAUER,
1844/2000, p.17-18)

Contudo, na filosofia de Schopenhauer, este instinto


determinista causador do enamoramento não é outra coi-
sa senão a manifestação do gênio da espécie, da Vontade
que se perpetua por meio da procriação. Segundo Camil-
le Dumoulié (2005), a análise atenta da Metafísica do Amor
shopenhaueriana revela uma semelhança entre o filósofo
moderno e Platão: há um impulso à procriação no homem
originado do desejo de imortalidade. Contudo, de acordo
com Dumoulié, a diferença da concepção platônica sobre
a procriação da visão fatalista de Schopenhauer consiste
na personificação da imortalidade presente na primeira,
enquanto na segunda, esclarece-se que a sobrevivência não
é a do indivíduo, mas apenas a da espécie (DUMOULIÉ,
2005, p.104).
Assim, Schopenhauer concluiu que a força dos senti-
mentos amorosos e a intensidade do desejo sexual entre os
pares resultam da artimanha do gênio da espécie a respeito
da geração vindoura:
20 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
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Que esta criança determinada seja pro-


criada, eis o verdadeiro fim de todo ro-
mance de amor, apesar de ser incons-
ciente para seus participantes: a maneira
de atingi-lo é assunto secundário. [...]
Pois é a geração vindoura, em toda a sua
determinação individual, que, median-
te aqueles impulsos e esforços, adqui-
re ímpeto para a existência. Sim, é ela
mesma que já se faz sentir na escolha
circunspecta, determinada e obstinada
da satisfação do impulso sexual, cha-
mado de amor. A inclinação crescente
entre dois amantes é, propriamente
falando, já a vontade de vida do novo
indivíduo, que eles podem e gosta-
riam de procriar. (SCHOPENHAUER,
1844/2000, p.10-11)

Ainda em sua Metafísica do Amor, o autor afirmou:


Já mesmo no encontro de seus olha-
res cheios de desejo se inflama a nova
vida, anunciando-se como uma indivi-
dualidade vindoura harmoniosa e bem
constituída. Sentem o desejo de uma
união efetiva e de uma fusão num ser
único, para, assim, continuarem a vi-
ver apenas nele e tal desejo se satisfaz
na criança procriada por eles, na qual
as qualidades hereditárias de ambos
continuam a viver fundidas e unidas
num único ser. Do contrário, a aver-
são mútua, firme e persistente entre
um homem e uma moça é o indicador
de que a criança que poderiam pro-
criar seria apenas um ser mal organi-
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 21

zado, desarmonioso e infeliz. (SCHO-


PENHAUER, 1844/2000, p.11-12)

Há neste determinismo schopenhaueriano uma crí-


tica implícita à supremacia da razão apregoada pelos pen-
sadores racionalistas. Uma ação humana – apaixonar-se
– responde a um motivo desconhecido pelo próprio indi-
víduo, determinando o seu querer. O filho ainda não nas-
cido, porém latente, é fundamental para a atração erótica.
Neste cenário sociocultural de questionamento à
razão totalizante, manifestações patológicas que desafia-
vam o saber médico e anatomofisiológico do século XIX
intensificavam a desconfiança para com a racionalidade
iluminista. As manifestações histéricas, paralisando pe-
quenos pedaços do corpo ou perturbando funções vitais
como a alimentação e a excreção, anunciavam uma di-
mensão desejante e erógena da vida humana até então
negligenciadas. Diante disso, o trabalho de Sigmund
Freud destacou-se.
Freud é o inventor da Psicanálise, dis-
ciplina que postula que todo ato e todo
conteúdo psíquico são determinados,
em grande parte, por motivos e desejos
inconscientes. (MEZAN, 2000, p.16)

Entendemos a relevância do estudo do pensamento


freudiano em razão de “ele ter contribuído para alterar os
contornos da era intelectual e emocional em que todos
vivemos” (MASSON, 1986, p.13). E, por isto, ousamos
registrar algumas propostas freudianas e, também, de psi-
canalistas que dialogaram ou concordaram com estas pro-
22 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
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postas, a fim de trabalharmos uma possível resposta à per-


gunta anteriormente registrada – afinal, por que ter filhos?

1.2.1 A perspectiva freudiana

[...] a lenda grega capta uma compul-


são que todos reconhecem, pois cada
um pressente sua existência em si mes-
mo. Cada pessoa da plateia foi, um dia,
um Édipo em potencial na fantasia, e
cada uma recua, horrorizada, diante
da realização de sonho ali transplanta-
da para a realidade, com toda a carga
de recalcamento que separa seu esta-
do infantil do estado atual. (FREUD,
1897/1986, p.273)

Em 1911, Sigmund Freud destinou uma breve apre-


sentação da Psicanálise ao Australasian Medical Congress, pu-
blicada dois anos depois sob o título de Princípios Básicos
da Psicanálise (FREUD, 1913/2010). Nesta comunicação,
Freud foi preciso ao afirmar que a Psicanálise difere da
especulação por originar-se da experiência clínica.
A Psicanálise é uma disciplina singular,
em que se combinam um novo tipo de
pesquisa das neuroses e um método de
tratamento com base nos resultados da-
quele. (FREUD, 1913/2010, p.269)

Didaticamente, neste texto Freud relatou aos seus


interlocutores a história do surgimento da clínica psica-
nalítica e citou alguns pesquisadores que considera como
precursores da Psicanálise6. Ao reconhecer a existência de
6
Charcot, com os trabalhos sobre a histeria traumática; Berheim e Liébault, com
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 23

outras visões da vida psíquica, Freud demarcou a especifi-


cidade da Psicanálise da seguinte maneira:
O que constitui a principal caracterís-
tica e diferencia a Psicanálise de outras
concepções da vida mental patológica é
o reconhecimento da atuação simultâ-
nea de três fatores: “infantilismo”, “se-
xualidade” e “repressão”. A Psicanálise
também mostra que não há diferença
fundamental, mas apenas de grau, entre
a vida psíquica das pessoas normais, dos
neuróticos e dos psicóticos. (FREUD,
1913/2010, p.273)

Desta maneira, podemos afirmar que, na perspec-


tiva psicanalítica freudiana, as ações humanas são influen-
ciadas pelos registros das experiências infantis, respondem
à satisfação sexual em sentido amplo e são motivadas por
causas desconhecidas pela própria consciência individual.
A fim de identificarmos na teoria freudiana possíveis
respostas à pergunta sobre os motivos que levam um su-
jeito a querer um filho, o exame do Complexo de Édipo
e de seus desdobramentos para os meninos e para as me-
ninas tornou-se necessário. Entretanto, julgamos necessá-
rio pontuar que, em Freud, identificamos uma teorização
acerca do desejo de gestar um filho, gerar uma criança em
seu próprio ventre. Demonstraremos, a seguir, alguns re-
sultados de tal empreitada.
O sentido amplo que o termo “sexual” adquire em
Psicanálise foi exposto por Freud em seu Esboço de Psicaná-

os estados hipnóticos; e Janet, com seus estudos sobre o fracasso da capacidade de


síntese psíquica e os processos inconscientes (FREUD, 1913/2010, p.269)
24 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
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lise (1938-40/1996). Contradizendo as noções populares


de sexualidade, a teoria psicanalítica postula:
(a) A vida sexual não começa apenas na
puberdade, mas inicia-se, com manifes-
tações claras, logo após o nascimento.
(b) É necessário fazer uma distinção ní-
tida entre os conceitos de “sexual” e “ge-
nital”. O primeiro é o conceito mais am-
plo e inclui muitas atividades que nada
têm que ver com os órgãos genitais.
(c) A vida sexual inclui a função de ob-
ter prazer das zonas do corpo, função
que, subsequentemente, é colocada a
serviço da reprodução. As duas fun-
ções muitas vezes falham em coinci-
dir completamente. (FREUD, 1938-
40/1996, p.165)

Assim, ao afirmar que a atividade sexual infantil re-


laciona-se, diretamente, com as manifestações eróticas da
vida adulta – “como a fixação a objetos específicos, o ciú-
me, e assim por diante” (FREUD, 1938-40/1996, p.166)
–, Freud identificou a plataforma sobre a qual o drama
edípico pode ocorrer.
De acordo com Freud, a observação de crianças,
bem como a experiência clínica com adultos levaram os
psicanalistas a concluírem que partes do corpo, geralmen-
te relacionadas às funções de autopreservação, são tomadas
como fontes de excitação e prazer sexual na primeira in-
fância. Tais órgãos, identificados na teoria freudiana como
zonas erógenas, investidos de energia sexual, evidenciam-
se com maior ou menor intensidade em determinadas eta-
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 25

pas do desenvolvimento infantil. Assim, apesar de Freud


ter caracterizado didaticamente estas etapas por meio da
predominância de uma zona erógena específica em ordem
sucessiva, ele apontou que uma leitura rígida e cronologi-
camente organizada do desenvolvimento psicossexual não
se sustenta. Em suas próprias palavras:
Seria um erro supor que essas três fa-
ses se sucedem de forma clara. Uma
pode aparecer em aditamento a ou-
tra; podem sobrepor-se e podem estar
presentes lado a lado. (FREUD, 1938-
40/1996, p.168)

Desta maneira, a etapa do desenvolvimento carac-


terizada por um maior investimento libidinal na região da
boca é chamada de fase oral. De forma semelhante, à etapa
caracterizada por uma maior ocupação da energia sexual
na região do ânus e, também, pelo maior investimento de
libido no cuidado com as fezes chama-se fase anal. Quanto
à fase fálica, Freud a concebeu como precursora da con-
figuração final da sexualidade adulta, pois ela é marcada
pelo interesse das crianças por um órgão sexual e pelo po-
sicionamento destas diante deste órgão: o pênis (FREUD,
1938-40/1996, p.167).
A premissa da presença universal do pênis fomenta
as pesquisas sexuais infantis na tentativa de elaboração de
respostas às questões sobre a gestação e as diferenças en-
tre homens e mulheres. Nesta etapa do desenvolvimento,
segundo Freud, a constatação da ausência do pênis nas mu-
lheres marca destinos diferentes para os meninos e para as
meninas (FREUD, 1938-40/1996, p.167).
26 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

Para os meninos, o interesse libidinal pelo pênis le-


va-os a manipularem o órgão e possibilita-os ingressarem
no drama edípico, desenvolvendo fantasias sexuais para
com a mãe e sentimentos de hostilidade para com o pai.
Contudo, a constatação dos garotos da falta de pênis nas
mulheres, bem como o registro de uma ameaça de punição
castradora pela atividade masturbatória ou pela demons-
tração explícita de interesse sexual pela mãe, empurra-os
para um período de menor atividade sexual e renúncias
pulsionais (FREUD, 1938-40/1996, p.167).
[...] devido ao efeito combinado de uma
ameaça de castração e da visão da ausên-
cia de pênis nas pessoas do sexo femini-
no, [o menino] vivencia o maior trauma
de sua vida e este dá início ao período
de latência, com todas as suas consequ-
ências. (FREUD, 1938-40/1996, p.167)

Este é o complexo de Édipo “positivo” no menino:


“desejo da morte do rival, que é a personagem do mes-
mo sexo e desejo sexual pela personagem do sexo oposto”
(LAPLANCHE & PONTALIS, 2004, p.77). Entretanto, o
complexo edípico pode se apresentar de forma “negativa”,
ou seja, por um interesse sexual da criança pelo membro
familiar do mesmo sexo e ciúmes, sentimentos de ódio,
por aquele do sexo oposto. Demonstrando a complexida-
de desta experiência, Freud expôs a dita forma completa
do complexo:
Um estudo mais aprofundado geral-
mente revela o complexo de Édipo
mais completo, o qual é dúplice, positi-
vo e negativo, e devido à bissexualidade
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 27

originalmente presente na criança. Isto


equivale a dizer que um menino não
tem simplesmente uma atitude ambi-
valente para com o pai e uma escolha
objetal afetuosa pela mãe, mas que, ao
mesmo tempo, também se comporta
como uma menina e apresenta uma ati-
tude afetuosa feminina para com o pai
e um ciúme e uma hostilidade corres-
pondentes em relação à mãe. (FREUD,
1923/1996, p.45-46)

A ideia da bissexualidade original acompanhou


Freud em toda a sua obra e foi a partir da centralidade que
esta ocupou em sua teoria que suas elaborações sobre a ho-
mossexualidade puderam ser desenvolvidas. As duas cor-
rentes ou inclinações eróticas presentes no Complexo de
Édipo – uma positiva, ou heterossexual, e outra negativa,
ou homossexual – conferem à sexualidade humana varia-
ções e especificidades na vida adulta. Geralmente, uma das
correntes é recalcada e a outra se torna predominante para
o sujeito. Em seus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade
(1905/1996) Freud já apresentava a homossexualidade e
a heterossexualidade como escolhas objetais originadas da
disposição bissexual de cada sujeito.
Quanto ao complexo de Édipo na menina, em um
primeiro momento, Freud apresentou a hipótese de que
a menina desenvolveria atitudes hostis e sentimentos de
ódio para com a mãe e desejaria sexualmente o pai. Con-
tudo, a escuta psicanalítica dos neuróticos e as observações
de crianças levaram Freud a reformular sua teoria do Édi-
po nas meninas.
28 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

Também o sexo feminino desenvolve


um complexo de Édipo, um supere-
go e um período de latência. Será que
também podemos atribuir-lhe uma
organização fálica e um complexo de
castração? A resposta é afirmativa, mas
essas coisas não podem ser as mes-
mas como são nos meninos. (FREUD,
1924/1996, p.197)

Em O Ego e o Id (1923a/1996), Freud teorizou o


Complexo de Édipo como uma experiência marcada por
identificações que possibilitam escolhas objetais. Assim,
a primeira identificação da menina com o pai e a crença
na universalidade do pênis possibilitam sua ligação erótica
com a mãe, tomando-a como objeto de amor. Entretanto,
ao perceber a ausência do pênis em si mesma e, também,
em sua mãe, o interesse sexual da menina pelo pai entra
em cena (FREUD, 1924/1996).
Diferente do que ocorre com os meninos, que re-
nunciam ao Édipo devido à possibilidade de perderem o
pênis, a menina concebe a castração como um ocorrido
inegável e, por causa disto, destina seu amor e apreço ao
pai7. Contudo, Freud registrou um importante aspecto do
complexo de Édipo da menina que auxilia-nos na tarefa de
compreender a perspectiva freudiana do desejo de filho
nas garotas:

7
Freud afirmou que, quanto à menina, “seu reconhecimento da distinção anatômica
entre os sexos força-a a afastar da masculinidade e da masturbação masculina, para
novas linhas que conduzem ao desenvolvimento da feminilidade” (1925/1996, p.
284). Prossegue: “Enquanto, nos meninos, o complexo de Édipo é destruído pelo
complexo de castração, nas meninas ele se faz possível e é introduzido através do
complexo de castração” (FREUD, 1925/1996, p. 285).
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 29

A renúncia ao pênis não é tolerada


pela menina sem alguma tentativa de
compensação. Ela desliza – ao longo
da linha de uma equação simbólica,
poder-se-ia dizer – do pênis para um
bebê. Seu complexo de Édipo culmi-
na em um desejo, mantido por muito
tempo, de receber do pai um bebê
como presente – dar-lhe um filho. [...]
Os dois desejos – possuir um pênis e
um filho – permanecem fortemente
catexizados no inconsciente e ajudam
a preparar a criatura do sexo femini-
no para seu papel posterior. (FREUD,
1924/1996, p.198)

Em Algumas consequências psíquicas da distinção anatô-


mica entre os sexos (1925/1996), Freud retomou este ponto
do complexo de Édipo feminino destacando o deslizamen-
to libidinal do pênis para o bebê e afirmando ser esta a
operação que possibilita à menina tornar-se uma pequena
mulher (FREUD, 1925/1996). No texto, encontramos:
Ela abandona seu desejo de um pênis e
coloca em seu lugar o desejo de um fi-
lho; com esse fim em vista, toma o pai
como objeto de amor. A mãe se torna o
objeto de seu ciúme. (p.284)

O desejo de gerar um filho ou o desejo de um bebê,


antes mesmo de que a teoria do complexo de Édipo na
menina fosse apresentada, foi indicado por Freud no tex-
to As transformações do instinto exemplificadas no erotismo anal
(1917/1996) como resultante de uma equivalência in-
consciente entre pênis, fezes e bebê.
30 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

Como ponto de partida para esta ex-


posição, podemos tomar o fato de que
parece que nos produtos do inconscien-
te – ideias espontâneas, fantasias e sin-
tomas – os conceitos de fezes (dinheiro,
dádiva), bebê e pênis mal se distinguem
um do outro e são facilmente intercam-
biáveis. (...) Para colocar o assunto de
uma forma menos sujeita a objeções,
esses elementos do inconsciente são
tratados muitas vezes como se fossem
equivalentes e pudessem livremen-
te substituir um ao outro. (FREUD,
1917/1996, p.136)

O desejo de um bebê também foi exposto no Esboço


de Psicanálise (1938-40/1996)8. O investimento libidinal
dirigido a um órgão ou elemento pode deslocar-se, evi-
denciando uma correspondência inconsciente de objetos.
Por meio da análise das formações do inconsciente, Freud
identificou a equivalência simbólica – pênis, fezes, bebês
– que, posteriormente, possibilitou a Jacques Lacan de-
senvolver a concepção simbólica do falo. A escuta analítica
freudiana não deixou de perceber que,
Não pode deixar de ter significado o
fato de que na linguagem simbólica dos

8
Após constatar a falta de pênis em si mesma e na mãe, a menina passa por um pro-
cesso de introjeção: “A identificação com a mãe pode ocupar o lugar da ligação com
ela. A filha se põe no lugar da mãe, como sempre fizera em seus brinquedos; tenta
tomar o lugar dela junto ao pai e começa a odiar a mãe que costumava amar, e isso
por dois motivos: por ciúme e por mortificação pelo pênis que lhe foi negado. Sua
nova relação com o pai pode começar tendo por conteúdo um desejo de ter o pênis
dele à sua disposição, mas culmina noutro desejo – ter um filho dele como presente.
O desejo de um bebê ocupou assim o lugar do desejo de um pênis, ou, pelo menos,
dele foi dissociado e expelido (split off).” (FREUD, 1938-40/1996, p.207)
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 31

sonhos, bem como na da vida cotidiana,


ambos podem ser representados pelo
mesmo símbolo: tanto bebê como pênis
são chamados ‘o pequeno’ [‘das Kleine’].
(FREUD, 1917/1996, p.136)

Neste trabalho de 1917, As transformações do instinto


exemplificadas no erotismo anal (1917/1996), Freud apre-
sentou algumas considerações sobre a inveja do pênis.
As análises de algumas mulheres neuróticas revelaram o
desejo recalcado de possuírem o órgão sexual masculino.
Entretanto, Freud alega não ter encontrado este anseio nas
mulheres que apresentaram o “desejo de um bebê” – argu-
mento que lhe possibilitou afirmar que “o desejo de um
pênis e o desejo de um bebê seriam fundamentalmente
idênticos” (FREUD, 1917/1996, p. 137).
Ainda em 1917, encontramos no texto freudiano a
afirmação de que apenas um filho é capaz de possibilitar
a alguns sujeitos a transição do autoamor narcísico para o
amor objetal (FREUD, 1917/1996, p.137). Tal alegação
nos remeteu ao trabalho de 1914, Introdução ao Narcisismo
(FREUD, 1914/2010):
Também para as mulheres que perma-
neceram narcísicas e frias em relação
ao homem há um caminho que conduz
ao completo amor objetal. No filho
que dão à luz, uma parte do seu pró-
prio corpo lhes surge à frente como um
outro objeto, ao qual podem então dar,
a partir do narcisismo, o pleno amor
objetal. E há mulheres que não preci-
sam aguardar o filho para dar o passo no
desenvolvimento do narcisismo (secun-
32 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

dário) ao amor objetal. Antes da puber-


dade elas se sentiam masculinas e por
algum tempo se desenvolveram mascu-
linamente; depois que essa inclinação
foi interrompida pela maturação da fe-
minilidade, resta-lhes a capacidade de
ansiar por um ideal masculino, que na
verdade é a continuação da natureza de
menino que um dia tiveram. (FREUD,
1914/2010, p.35)

Não especificamente sobre o desejo de ter um fi-


lho, mas a respeito do carinho e da ternura de alguns pais
para com seus filhos, neste texto – Introdução ao Narcisismo
(1914/2010) – Freud foi enfático ao afirmar que o inves-
timento afetivo dos adultos para com as crianças passa por
um renascimento do narcisismo abalado pelas experiên-
cias do desenvolvimento:
Ela [a criança] deve concretizar os so-
nhos não realizados de seus pais, tornar-
se um grande homem ou herói no lugar
do pai, desposar um príncipe como tar-
dia compensação para a mãe. No pon-
to mais delicado do sistema narcísico,
a imortalidade do Eu, tão duramente
acossada pela realidade, a segurança
é obtida refugiando-se na criança. O
amor dos pais, comovente e no fundo
tão infantil, não é outra coisa senão o
narcisismo dos pais renascido, que na
sua transformação em amor objetal
revela inconfundivelmente a sua natu-
reza de outrora. (FREUD, 1914/2010,
p.36-37)
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 33

Assim, mais uma vez, encontramos na escrita freu-


diana motivos desconhecidos pela própria consciência
individual que fundamentam ações cotidianas – como a
admiração dos adultos pelos bebês. Inconsciente, tam-
bém, na perspectiva psicanalítica de Freud, é o motivo
pelo qual uma mulher anseia ter um filho. Como respos-
ta à constatação da falta do pênis, o investimento libidi-
nal desloca-se do órgão sexual para o bebê e propicia à
garota o desejo de ter um filho. Na meninice, um filho
do pai; na vida adulta, obtê-lo de um homem. Encontra-
mos, então, uma concepção falocêntrica e narcísica do
desejo de filho9.
[...] toda a trama explicativa que Freud
desfia acerca do motor e fonte do desejo
feminino de ter filhos concebe a relação
da futura mãe com seu filho como a de
uma credora com seu banco. Beneficiá-
ria que é de uma espécie de gratificação
narcísica por um antigo débito que a na-
tureza-mãe tem com ela: não tê-la feito
homem. (LABAKI, 2007, p.77)

9
Ao propor a diferenciação entre o desejo de engravidar e o desejo de maternidade em
um artigo intitulado “Ter filhos é o mesmo que ser mãe?”, Maria Elisa Pessoa Labaki
(2007) apresenta o percurso teórico que realizou na obra de Freud a fim de identifi-
car os motivos que levam as mulheres a desejarem ter filhos. Neste trabalho, a refe-
rida autora afirma que é possível depreendermos do texto freudiano duas dimensões
patológicas do desejo de filho: o desejo de filho corresponde a um sintoma histérico
e, também, o desejo de filho é uma busca pelo objeto-fetiche. Quanto ao desejo
de filho em sua vertente histérica e sintomática, Labaki (2007, p. 77) refere-se à
substituição da “inveja intolerável do pênis” pelo anseio de ter filhos, expressando-se
como “o retorno deslocado para o filho do desejo recalcado da menininha de portar
o pênis”. Sobre o desejo de filho como busca pelo objeto-fetiche, a autora pontua:
“se ter o filho é a prova de que a percepção sobre a falta estava errada, ou, ao menos,
de que pode ser driblada, mediante a presença de um substituto obliterante, então
a premissa de castração perde temporariamente seu efeito” (LABAKI, 2007, p.81).
34 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
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Entretanto, como a teoria freudiana auxilia-nos


a pensar a manifestação do desejo de filho nos homens?
Partindo do pressuposto de que o desejo de ter um filho
advém da ausência do pênis, o que possibilita um sujeito
dotado do órgão sexual masculino querer gerar um bebê?
Parece-nos impossível responder estas questões desconsi-
derando o postulado da disposição bissexual dos humanos,
presente em toda a obra de Freud. Entendemos ser de
fundamental importância esclarecer que, na perspectiva
freudiana, a expressão do desejo de filho mostra-se muito
conectada à ideia da gestação e da fecundação, configuran-
do-se como desejo de gerar uma criança.
Como anteriormente citado, ao falar do Complexo
de Édipo completo, Freud registrou a tendência homosse-
xual do menino em relação ao pai, ressaltando que o ga-
roto “também se comporta como uma menina e apresenta
uma atitude afetuosa feminina para com o pai” (FREUD,
1923/1996, p.46). Porém, não foi esta a primeira vez
que Freud registrou seu reconhecimento de impulsos
homoeróticos na constituição normal dos meninos e dos
homens. Em uma nota de rodapé acrescentada em 1919
ao texto Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância
(FREUD, 1910/1996) encontramos:
[...] qualquer pessoa, por mais normal
que seja, é capaz de fazer uma eleição
do objeto homossexual, e mesmo já a
terá feito em alguma época da sua vida
e, ou ainda a conserva em seu incons-
ciente, ou, então, defende-se dela com
vigorosas contra-atitudes. (FREUD,
1909/1996, p.106)
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 35

Especificamente sobre o tema que aqui nos ocupa,


localizamos em um trecho do caso do Homem dos Ratos a
afirmação de Freud de que uma das teorias sexuais infantis
consiste na possibilidade de os homens gestarem filhos à
semelhança das mulheres: “A primeira dessas teorias é que
os bebês nascem do ânus; e a segunda, que decorre logica-
mente da primeira, que os homens também podem ter be-
bês, como as mulheres” (FREUD, 1909/1996, p.190-191).
Além da acima citada teoria sexual infantil, os pres-
supostos teóricos do Complexo de Édipo em sua versão
negativa e, também, em sua forma completa, possibilita-
ram a alguns psicanalistas identificarem fantasias de gravi-
dez nos garotos. Como exemplo, podemos citar o material
redigido por Arminda Aberastury pouco antes de seu fale-
cimento e publicado após sua morte sob o título A Paterni-
dade (1978/1984):
Paralelamente às mudanças sociais na
organização da família e aos estudos
realizados pela Sociologia, a inves-
tigação psicanalítica aprofundou na
compreensão da psicologia da mulher
e do homem. O estudo das primeiras
etapas do desenvolvimento permitiu
descobrir, no homem, um momento
no qual a fantasia de ter um filho no
seu ventre é normal. É um período
homossexual no qual o varão deseja
estar relacionado com o pai, tomar o
lugar da mãe e ter filhos. Esta raiz do
desejo de um filho condiciona em par-
te sua repressão, já que sua fonte é a
homossexualidade. (p.72-73)
36 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

Segundo Aberastury (1978/1984), o interesse ma-


nifestado pelas crianças do sexo masculino por brincadei-
ras socialmente associadas à maternidade, como cuidar de
bonecas, alimentando-as e banhando-as, podem ser identi-
ficadas em garotos bem pequenos e interpretadas como si-
nais do desejo de gerarem um filho. Contudo, o contato do
menino com as interdições culturais e com os preconcei-
tos sociais, possibilita a este que recalque suas tendências
homossexuais e “junto com essas tendências vá reprimindo
também o desejo do filho, que se transforma em proibido
porque em suas origens era um filho mantido em seu pró-
prio corpo” (ABERASTURY, 1978/1984, p.75).
No conceber de Arminda Aberastury (1978/1984),
os textos freudianos sobre a sexualidade infantil propor-
cionam-nos o entendimento de que inclinações homosse-
xuais estão presentes em todos os homens e de que al-
gumas das dificuldades relatadas pelos homens acerca da
paternidade originam-se deste desejo de gestar um filho,
desejo este recalcado e incompatível com a virilidade.
A investigação dos textos psicanalíticos sobre o de-
sejo de gerar um filho nos garotos e nos homens levou-nos
ao comentário de Jacques Lacan no Seminário, Livro III: As
psicoses (1955-56/1997), sobre um caso de histeria mascu-
lina em que a fantasia de gravidez era predominante. Tra-
ta-se do caso publicado em 1921 por Michael Josef Eisler,
neurologista, crítico de arte e psicanalista húngaro, sob o
título Fantasia inconsciente de gravidez em um homem com a
aparência de uma histeria traumática. Uma contribuição clínica
sobre o erotismo anal (1921/s.d.).
No Seminário, Livro III, Lacan utilizou o caso publi-
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 37

cado por Eisler para expor suas considerações acerca da


diferença clínica e diagnóstica entre a neurose histérica e
a psicose. Uma vez que no caso trabalhado por Freud em
1911 – O caso Schreber (1911/2010) –, encontramos a ma-
nifestação explícita de uma ideia delirante de procriação10,
diferenciar a fantasia de gravidez, presente no caso de Eis-
ler, do enlouquecimento paranoico, tornou-se propício.
Em síntese, podemos afirmar que, enquanto na psicose de
Schreber a ideia de gravidez responde a uma certeza pecu-
liar, a fantasia do homem atendido por Eisler aponta para
a questão fundamental da estruturação histérica: “Quem sou
eu? Um homem ou uma mulher? e, Sou eu capaz de gerar?” (LA-
CAN, 1955-56/1997, p.196).
Ao chamar a atenção de seus ouvintes – e leitores
– para o fato de que a característica fundamental da estru-
tura neurótica é a relação de reconhecimento do sujeito no
Outro da fala, Lacan colocou em evidência sua concepção
normativa e estruturante da linguagem. O específico da
10
Ao tecer suas considerações sobre a paranoia de Schreber, Freud registrou: “Eis
então o resumo das mudanças efetuadas em Schreber pela doença, conforme as duas
direções principais do seu delírio. Antes ele se inclinava à ascese sexual e duvidava de
Deus; após a doença passou a crer em Deus e entregar-se à volúpia. Mas, assim como
a fé readquirida era de natureza singular, também a fruição sexual por ele conquista-
da era de caráter bem insólito. Já não era liberdade sexual masculina, mas sensação
sexual feminina; ele se colocava femininamente em relação a Deus, sentia-se mulher
de Deus.” (FREUD, 1911/2010, p.43). Encontramos em nota de rodapé referente
ao parágrafo acima citado um trecho do livro de memórias escrito pelo próprio
Schreber: “Algo análogo à concepção de Jesus Cristo por uma virgem imaculada –
isto é, por uma mulher que nunca teve relações com um homem – aconteceu no
meu próprio corpo. Já em duas ocasiões diferentes (isso quando estava ainda no sa-
natório de Flechsig), eu possuí órgãos genitais femininos (embora desenvolvidos de
modo incompleto) e senti no corpo movimentos que correspondem aos primeiros
sinais de vida do embrião humano. Por milagre divino, foram lançados no meu corpo
os nervos de Deus correspondentes ao sêmen masculino, produzindo-se assim uma
fecundação” (SCHREBER apud FREUD, 1911/2010, p.43).
38 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

estrutura neurótica é a relação do sujeito com a cultura,


ainda que esta relação seja perturbada por intromissões
pulsionais e idiossincrasias fantasísticas (LACAN, 1955-
56/1997, p.193). Lacan serve-se do caso do paciente his-
térico de Eisler para exemplificar sua teoria estrutural da
neurose e da psicose.
O paciente de Eisler, J. V., um homem de 31 anos
de idade, trabalhador ferroviário, submeteu-se ao trata-
mento psicanalítico durante sete meses e obteve efeitos
terapêuticos desta experiência. J. V. foi encaminhado
pelo departamento de neurologia de um centro médi-
co húngaro à Psicanálise com um diagnóstico de histeria
traumática e, logo no início do tratamento psicanalítico,
relatou ao analista a história “de sua enfermidade” (EIS-
LER, 1921/s.d., p. 09-10).
Cerca de dois anos e meio antes de iniciar a análise,
J. V. sofreu um acidente no trabalho – caiu nos trilhos en-
quanto a máquina locomovia-se com velocidade. Foi feri-
do na cabeça, no antebraço e outras partes do corpo, todas
do lado esquerdo. No momento do acidente, desfaleceu
e foi transportado ao atendimento cirúrgico de urgência.
No traslado do local do acidente até o serviço médico de
urgência, retomou a consciência e constatou que a maior
parte de seus ferimentos era superficial, constatação con-
firmada por meio dos exames radiológicos realizados pos-
teriormente (EISLER, 1921/s.d., p. 10).
J. V. permaneceu internado no hospital de urgência
durante três semanas e, após rápida recuperação, retornou
às suas atividades profissionais. Contudo, com o passar do
tempo, começou a queixar-se de dores cada vez mais in-
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 39

tensas debaixo da primeira costela e desenvolveu ataques


de dores frequentes na região abdominal esquerda. Segun-
do Eisler, seu paciente, “em um destes ataques sentiu uma
dor aguda do lado esquerdo ‘como se um objeto sólido
insistisse em sair’” (EISLER, 1921/s.d., p.10).
Com a intensificação das dores, o homem maquinis-
ta começou a procurar por tratamentos médicos em di-
versos hospitais e clínicas a fim de livrar-se do incômodo
frequente. Entretanto, não obteve sucesso. J. V. chegou a
desfalecer três vezes, até que foi enviado ao departamento
de neurologia e, posteriormente, encaminhado ao trata-
mento psicanalítico (EISLER, 1921/s.d., p.10).
O exame do texto do caso de histeria masculina
aqui em questão revela-nos uma interpretação de Eisler
dos sintomas e das construções fantasísticas muito influen-
ciada pelos trabalhos de Freud, As transformações do instinto
exemplificadas no erotismo anal (1917/1996) e Sobre as teorias
sexuais das crianças (1908/1996). Apesar de encontrarmos
no texto de Eisler algumas referências à teoria de Ernest
Jones sobre os traços de caráter originados do erotismo
anal, a ênfase na fantasia e na transferência, bem como nas
explicações infantis à questão do nascimento dos bebês co-
loca em evidência as propostas freudianas.Tal influência de
Freud sob a condução clínica de Eisler é, também, notada
por Jacques Lacan:
O homem participa da primeira ge-
ração analítica, vê os fenômenos com
muito frescor, explora-os de trás para
diante. Entretanto, essa observação é de
1921, ela participa já da espécie de sis-
tematização que começa a marcar cor-
40 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

relativamente, parece, a observação e a


prática, e que vai produzir essa virada
de onde surgirá a inversão que insistirá
na análise das resistências. Eissler já está
extremamente impressionado pela nova
psicologia do ego. Em compensação,
ele conhece bem as coisas mais antigas,
as primeiras análises de Freud sobre o
caráter anal, ele se recorda da ideia se-
gundo a qual os elementos econômicos
da libido podem desempenhar um pa-
pel decisivo na formação do eu. E sen-
te-se que ele se interessa muito pelo eu
de seu sujeito, pelo seu estilo de com-
portamento, pelas coisas que traduzem
nele os elementos regressivos, na me-
dida em que se inscrevem não só nos
sintomas, mas na estrutura. (LACAN,
1955-56/1997, p.194)

A afirmação freudiana de que as teorias sexuais in-


fantis são decisivas para a configuração dos sintomas neu-
róticos da vida adulta mostra-se, claramente, na descrição
clínica do homem histérico atendido por Eisler (FREUD,
1908/1996, p.193). J.V., o paciente de Eisler, no decorrer
da análise, relatou experiências da infância relacionadas
à visão do nascimento de um bebê, bem como às cons-
truções fantasísticas referentes à fecundação por meio da
boca e à parição cloacal. Estas produções fantasísticas fun-
damentavam os sintomas histéricos desenvolvidos por J. V.
(EISLER, 1921/s.d.).
Entendemos que a apresentação do caso de Eisler
revela uma manifestação patológica da fantasia de gravidez
em um homem. Contudo, nos desperta a atenção o fato de
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 41

que tal manifestação contraria as limitações biológicas dos


órgãos reprodutores e aponta para a dimensão subjetiva
do desejar.
Nossas investigações levaram-nos ao exame um
pouco mais detalhado das expressões acima citadas
do texto de Freud, “desejo de um filho” (1925/1996,
p.248), “desejo de um bebê” (1917/1996, p.137), a fim
de esclarecermos a concepção freudiana do desejo de fi-
lho. Entretanto, propomos que a concepção freudiana do
desejo de filho seja melhor apresentada como um desejo
de gerar e/ou gestar uma criança. Os ensinamentos de
Freud sobre o desejo de filho – ou o desejo de gerar um
bebê – relacionam-se com as teorias sexuais infantis e,
também, com o Complexo de Édipo.
1.2.2 Desejo e vontade

No seminário Declinaciones de La Angustia, Colette


Soler (2001) apontou para uma diferença entre desejo de
filho e vontade de filho11. Neste trabalho não entraremos
na discussão suscitada pela psicanalista em seu seminá-
rio, contudo, interessa-nos, neste momento, a diferen-
ciação entre o substantivo alemão Wunsch, adequadamen-
te traduzido para a língua portuguesa como desejo, e os
termos, também alemães, Lust, melhor traduzido para o
português como “prazer” ou “vontade” e Wille (“vonta-
de”) (HANNS, 1996, p.136).
11
Em livre tradução, “O desejo de filho. Quem sabe o que ele é? O desejo de filho
não é vontade de filho. Evidentemente, o drama de nosso discurso atualmente, do
discurso do capitalista com os progressos da ciência, é que obriga o desejo de filho
a passar pela vontade de filho”, no original, “El deseo de hijo. ¿Quién sabe lo que es?
El deseo de hijo, no es ganas de hijo. Evidentemente, el drama de nuestro discurso
actualmente, del discurso capitalista com los progresos de la ciencia es que obliga al
deseo de hijo a pasar por las ganas de hijo.” (SOLER, 2001, p.166)
42 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

Wunsch (“desejo”) é um termo alemão que diz de


uma tendência ou um movimento ao que é almejado. Eti-
mologicamente, Wunsch (“desejo”) advém de um verbo
indo-europeu que significa circular ou rodar procurando
algo. De acordo com Hanns (1996), este verbo que origi-
nou o termo em alemão, provavelmente, referia-se à busca
por alimentos e outros suprimentos em períodos de guer-
ra. O termo Wunsch (“desejo”) expressa a inclinação ou a
afluência em direção a objetos almejados pelo sujeito, po-
rém, objetos não alcançados imediatamente, objetos mais
longínquos (HANNS, 1996, p.137).
Lust é comumente traduzido para o Português como
“prazer” e, também, como “vontade”. Trata-se de um ter-
mo alemão que difere de Wunsch (“desejo”), principalmen-
te, por enfatizar a imediatez da sensação agradável produ-
zida no corpo daquele que se dispõe a fazer algo que lhe
interessa. Lust diz respeito à vontade de fazer alguma coisa,
a fim de que alegria e deleite sejam alcançados (HANNS,
1996, p. 147, 149). Enquanto Wunsch (“desejo”) relaciona-
se com o anseio por algo mais remoto e distante, que exi-
ge procura, Lust (“prazer”/“vontade”) associa-se ao querer
mais apressado e iminente.
Entretanto, ao buscarmos o termo alemão Wille
nas Obras Completas de Sigmund Freud, traduzido para
a língua portuguesa como “vontade”, deparamo-nos com
algumas considerações psicanalíticas sobre o animismo e
a magia registrados em Totem e Tabu (FREUD, 1913/1996)
que nos despertaram a atenção.
No terceiro ensaio que compõe Totem eTabu (FREUD,
1913/1996), Freud escreveu sobre o animismo, a magia
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 43

e a onipotência de pensamentos. Citando os trabalhos de


James George Frazer (1911/1982), de Wilhelm Wundt
e de outros pesquisadores da História das Religiões e da
Psicologia Social de sua época, Freud afirmou que três sis-
temas de pensamento e representações do universo foram
desenvolvidos pela humanidade: a representação animis-
ta, a representação religiosa e a representação científica
(FREUD, 1913/1996). No seu entender, a primeira visão
de mundo construída pelos seres humanos “é uma teoria
psicológica” (FREUD, 1913/1996, p.89), uma vez que o
animismo consiste na crença de que as forças da natureza,
as plantas, as árvores, os minerais e os seres inanimados
são dotados de alma, de vontade própria e/ou intelecto.
Quando uma árvore passa a ser vista não
mais como o corpo do espírito que a ha-
bita, mas simplesmente como a sua mo-
rada, que pode abandonar quando qui-
ser, registra-se um avanço importante
no pensamento religioso: animismo está
se transformando em politeísmo. Em
outras palavras, em lugar de considerar
cada árvore como um ser vivo e cons-
ciente, o homem passa a ver nela sim-
plesmente uma massa sem vida, inerte,
ocupada durante um período mais longo
ou mais curto por um ser sobrenatural
(FRAZER, 1911/1982, p.60)

Assim, Freud escreveu o terceiro ensaio de Totem e


Tabu (1913/1996) levando seus leitores a constatarem que,
no período histórico em que o sistema animista foi pre-
dominante, os humanos desenvolveram uma técnica que
44 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

objetivava dominar e controlar os fenômenos da natureza,


a vegetação e os animais: a magia. Uma vez que os obje-
tos e as manifestações naturais como a chuva ou as ondas
do mar eram concebidos como entidades dotadas de alma,
qualquer procedimento que visasse influenciá-las deveria
considerar suas características anímicas. Diante disso, os
estudiosos das religiões e das crenças mitológicas, dentre
os quais Frazer (1911/1982), identificaram dois princí-
pios fundamentais nas artes mágicas do período animista:
o princípio da similaridade e o princípio do contato.
O princípio da similaridade consiste na certeza que “o
semelhante produz o semelhante” e se expressa na crença de
que é possível alcançar um efeito desejado imitando-o, re-
produzindo-o, ainda que em proporções inferiores, em um
ritual (FRAZER, 1911/1982, p. 34). Quanto ao princípio
do contato, este consiste na lógica de que os objetos que
estiveram em contato continuam a exercer influência uns
sobre os outros ainda que estejam fisicamente distantes:
Entra-se de pose de um pouco de seus
cabelos ou unhas ou outros produtos
de excreção ou mesmo de um pedaço
de suas roupas, e se os trata de maneira
hostil. Então, é exatamente como se se
tivesse apossado do próprio homem; e
este experimenta o que quer que tenha
sido feito aos objetos que dele se origi-
naram. (FREUD, 1911/1996, p.92-93)

Contudo, o texto freudiano destacou não apenas


estes princípios que regeram os atos mágicos, mas, prin-
cipalmente, os motivos pelos quais os homens os desen-
volveram. Segundo Freud, os estudos dos cientistas e
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 45

historiadores da religião de seu tempo sobre a magia no


sistema animista desconsideravam “a verdadeira essência”
das artes mágicas, isto é, não se atentaram para a moti-
vação dos homens ao praticarem a magia. Na perspectiva
freudiana, o desejo (Wunsch) levou os homens à prática da
magia. A crença básica do homem primitivo no período
animista, segundo Freud, estava no poder de seus desejos,
ou seja, na certeza de que, ao imitar um determinado fe-
nômeno da natureza ou hostilizar um objeto associado a
um animal, efeitos seriam produzidos, simplesmente, por-
que se os desejavam (FREUD, 1911/1996).
Na sequência do texto, Freud afirmou que as crian-
ças possuem um funcionamento mental semelhante ao do
homem primitivo, uma vez que também são regidas pe-
los seus desejos. Entretanto, o fato de a criança não ter
atingido o pleno desenvolvimento motor produz uma
diferença em relação aos homens primitivos no que diz
respeito aos caminhos do desejo. Desprovidas da com-
pleta habilidade motora, as crianças alucinam a realização
de seus desejos, recorrendo aos registros mnêmicos das
experiências sensoriais vividas. O adulto, ainda que pri-
mitivo, conta com um “impulso motor” que lhe confere
uma “representação da situação satisfatória” ao seu desejo.
A este “impulso motor” que possibilita o adulto agir a fim
de satisfazer seu desejo, Freud chamou “vontade” – Wille
(FREUD, 1913/1996).
Um homem adulto primitivo tem à sua
disposição um método alternativo. Seus
desejos são acompanhados de um im-
pulso motor, a vontade, que está desti-
nado, mais tarde, a alterar toda a face da
46 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

terra para satisfazer seus desejos. Esse


impulso motor é, a princípio, emprega-
do para dar uma representação da situ-
ação satisfatória, de maneira tal que se
torna possível experimentar a satisfação
por meio do que poderia ser descrito
como alucinações motoras. (FREUD,
1913/1996, p.95)

Freud, textualmente, diferenciou “desejo” (Wunsch)


de “vontade” (Wille), estabelecendo uma relação entre os
dois. A vontade, enquanto impulso motor, aponta para
aquilo que a origina, isto é, para o desejo. Todavia, enquan-
to a vontade pode se mostrar facilmente à consciência, o
desejo, na perspectiva freudiana, comumente é da ordem
do inconsciente (FREUD, 1913/1996).
Nos textos de Freud anteriormente citados, As
transformações do instinto exemplificadas no erotismo anal
(1917/1996), Algumas consequências psíquicas da distinção
anatômica entre os sexos (1925/1996) e, também no Esbo-
ço de Psicanálise (1938-40/1996), encontramos o termo
em alemão Kinderwunsch, traduzido na Edição Standard
Brasileira das Obras Completas ora como “desejo de um
bebê”, ora como “desejo de filho”. O termo Kinderwunsch
é composto, basicamente, por duas palavras em alemão:
Kind, “criança”, “bebê” e, em algumas situações, “filho”, e
Wunsch, “desejo”.
A teoria psicanalítica é, principalmente, uma teoria
sobre o desejo. Desde a correspondência de Freud com Fliess
e os textos anteriores à publicação de A interpretação dos so-
nhos (1900/1996) até seus últimos escritos, encontramos a
questão do desejo ocupando uma centralidade inquestioná-
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 47

vel na Psicanálise, uma vez que, na perspectiva freudiana, o


desejo (Wunsch) é, primordialmente, inconsciente. De ponta
a ponta, no pensamento de Freud, encontramos o desejo. É
isto que Lacan apontou em seu Seminário:
É nomeadamente sob essa rubrica do
desejo, como significativos do desejo
que os fenômenos que há pouco chamei
residuais, marginais, foram inicialmen-
te apreendidos por Freud, nos sintomas
que vemos descritos de uma ponta à ou-
tra do pensamento de Freud. (LACAN,
1958-59/s.d., p.13)

Na formação dos sonhos, bem como na gênese de


outras formações do inconsciente, como os lapsos de fala
e de escrita, Freud identificou a interferência do desejo.
As análises dos pacientes neuróticos e a investigação sobre
a origem dos sintomas apresentados na clínica psicanalíti-
ca levaram Freud a conceber a realização de desejo como
algo intimamente conectado às primeiras experiências
de satisfação registradas no aparelho psíquico (LAPLAN-
CHE & PONTALIS, 2004, p.113). Desde o seu início, a
Psicanálise concebe o desejo como algo que carrega uma
dimensão singular e que aponta para a especificidade da
história de cada sujeito desejante. A fim de dissertarmos
sobre a relação entre o desejo e a experiência de satisfação
na perspectiva freudiana, tomaremos o texto Projeto para
uma psicologia científica (1895/1996).
Publicado postumamente, o Projeto para uma psicolo-
gia científica (1895/1996) é um texto freudiano redigido
em 1895 que contém as primeiras elaborações de seu autor
48 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

sobre o funcionamento psicológico humano. Nesta época,


influenciado pelos pressupostos científicos das Ciências
Naturais, Freud redigiu uma teoria sobre o aparelho psíqui-
co fundamentada na interação entre neurônios. Entretan-
to, neste escrito freudiano, podemos encontrar em estado
embrionário muitas das noções e conceitos desenvolvidos
posteriormente – a exemplo, o conceito de desejo.
Ao registrar suas teses sobre o funcionamento psi-
cológico, no Projeto, Freud (1895/1996) utilizou de um
sistema quantitativo considerado paradoxal: os neurônios
tendem a livrarem-se do acúmulo de energia originado de
excitações internas ou externas ao mesmo tempo em que
mantêm um nível mínimo de excitação no aparelho psí-
quico para que haja vida. Diante disso, a classificação de
neurônios (neurônios “phi”: nada retêm; neurônios “psi”:
retêm energia) e a diferença entre fontes de excitação ex-
ternas e internas foram elaboradas.
Quanto à excitação endógena, interna, esta é con-
tínua e, de acordo com Freud (1895/1996), os neurô-
nios “psi”, excitados, tendem ao descarregamento motor.
Descarga energética possível apenas por uma modifica-
ção no ambiente ou por uma “ação específica” (FREUD,
1895/1996, p. 370). Contudo, em estados de completa
impossibilidade de modificação ambiental pelas próprias
forças ou capacidades, como na mais tenra infância, o agir
de uma pessoa hábil e prestativa se faz necessário para que
a redução da excitação no aparelho psíquico ocorra. Quan-
do a atividade da pessoa prestativa ocorre, diminuindo a
tensão no aparelho psíquico, a “experiência de satisfação”
daí originada marca o psiquismo infantil.
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 49

Segundo Freud (1895/1996), a “experiência de


satisfação” estabelece uma via de comunicação entre os
neurônios que desencadeiam o reflexo do estado de ur-
gência (grito, choro, etc.) e aqueles que retêm a imagem
do objeto que possibilitou a diminuição da excitação. As-
sim, todas as vezes em que o aumento de excitação no
aparelho psíquico for experimentado, uma reativação da
memória do reflexo do estado de urgência e do objeto
produzirá uma espécie de alucinação desta primeira “ex-
periência de satisfação”. Freud chamou esta reativação da
primeira “experiência de satisfação”, no Projeto, de desejo.
Assim, como resultado da experiência
da satisfação, há uma facilitação entre
duas imagens mnêmicas e os neurônios
nucleares que ficam catexizados em es-
tado de urgência. Junto com a descarga
de satisfação, não resta dúvida de que a
Q se esvai também das imagens mnêmi-
cas. Ora, com o reaparecimento do es-
tado de urgência ou de desejo, a catexia
também passa para as duas lembranças,
reativando-as. É provável que a ima-
gem mnêmica do objeto será a primei-
ra a ser afetada pela ativação do desejo.
(FREUD, 1895/1996, p.371)

Freud, em A interpretação dos sonhos (1900/1996),


defendeu a tese de que o sonho se constitui em uma
realização de desejo e, a partir disso, caracterizou os so-
nhos em dois grupos ou categorias: sonhos de desejo
não distorcido (a realização de desejo apresenta-se com
clareza), e sonhos de realização de desejo distorcida (a
censura onírica opera e dificulta a identificação da reali-
50 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

zação de desejo no sonho). Em ambos os tipos de sonho,


a força do desejo se mostra e atualiza a memória de uma
experiência de satisfação.
O desejo é sempre um lamentar-se, um
deplorar, uma nostalgia ou um anelo, de
tal maneira que, se buscarmos a palavra
desejo em Freud, vamos encontrá-la
predominantemente na palavra Wuns-
ch – o anelo que, segundo ele, está em
cada sonho... (MILLER, 1997, p.447)

Assim, ao realizar-se no sonho, o desejo permanece


insatisfeito. O desejo origina-se de uma falta e refere-se a
“um não ter” (MILLER, 1997, p.447).
É inegável que Jacques Lacan dedicou significativa
parcela de sua produção à questão do desejo – podemos
citar o inédito Seminário em língua portuguesa O desejo
e sua interpretação (1958-59); o Seminário ministrado no
ano anterior, As formações do inconsciente (1957-58/1999);
os textos publicados em Escritos (1998): “A direção do
tratamento e os princípios do seu poder” (1958/1998),
“Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconscien-
te freudiano” (1960/1998), entre outros. Optamos, aqui,
por trabalhar com algumas considerações sobre o desejo
proferidas por Lacan nas lições de seu Seminário inédito A
Identificação (1961-62/1962), recorrendo, quando neces-
sário, aos textos publicados nos Escritos (1998).
Na lição do dia 14 de março de 1962 de seu Seminá-
rio A identificação, Lacan (1961-62/1962) tratou da ques-
tão do desejo afirmando que o sujeito pode empreender
dizer qual é o seu objeto, mas será frustrado. Isto porque
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 51

o objeto causa de desejo é “perdido e jamais reencontra-


do” (LACAN, 1961-62/1962, p.199). Nesta lição, Lacan
ensinou que atentar-se para o desejo é considerar a “falta
fundamental” do sujeito, insistindo que esta é a tese que se
encontra no fundo do discurso freudiano. Na concepção
lacaniana, ao destacarmos a dimensão do desejo estamos
“trazendo à luz ao mesmo tempo a metonímia e a perda
que ela condiciona” (LACAN, 1961-62/1962, p.198).
Que significa trazer “à luz ao mesmo tempo a me-
tonímia e a perda que ela condiciona” (LACAN, 1961-
62/1962)? A fim de esclarecermos esta afirmação de La-
can, a seguir, teceremos algumas considerações sobre a
noção de deslocamento na perspectiva freudiana e disser-
taremos sobre a metonímia.
É possível identificarmos a noção de deslocamento
em toda a obra de Freud, inclusive nos textos pré-psica-
nalíticos e, também, na correspondência com Fliess. Con-
tudo, foi a partir de A Interpretação dos Sonhos (FREUD,
1900/1996) que Freud caracterizou o deslocamento
como um dos processos estritamente psicológicos pre-
sente nas formações do inconsciente. Na concepção freu-
diana, a energia libidinal investida em uma representação
pode deslocar-se para outra representação. Contudo, este
deslocamento revela uma ligação associativa entre as re-
presentações, de forma que a energia originalmente in-
vestida em uma representação não se desloca para uma
representação qualquer. O investimento libidinal desloca-
se por representações ligadas em “uma cadeia associativa”
(LAPLANCHE & PONTALIS, 2004, p.116).
52 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

Ao citar as características especiais do sistema in-


consciente, Freud (1915/1996) afirmou que os conteúdos
deste sistema podem receber maior ou menor investimen-
to energético. Entretanto,
As intensidades catexiais [no Ics.] são
muito mais móveis. Pelo processo de
deslocamento uma ideia pode ceder à
outra toda a sua quota de catexia; pelo
processo de condensação pode apro-
priar-se de toda a catexia de várias outras
ideias. (FREUD, 1915/1996, p.191)

Segundo Freud (1915/1996), deslocamento e con-


densação são os dois principais processos pelos quais o sis-
tema inconsciente se organiza e produz suas manifestações
(sonhos, sintomas, lapsos, etc.). No texto “Dois aspectos
da linguagem e dois tipos de afasia”, o linguista Roman
Jakobson (2010) apresentou uma relação entre o processo
inconsciente do deslocamento com o processo retórico da
metonímia e do mecanismo de condensação com a metá-
fora (LAPLANCHE. PONTALIS, 2004). Na concepção de
Jakobson, metáfora e metonímia estruturam toda a lingua-
gem e, semelhante ao que Freud fez com os processos de
deslocamento e condensação, o linguista estabeleceu rela-
ções simbólicas no cruzamento destes processos:
A competição entre os dois procedi-
mentos, metonímico e metafórico, se
torna manifesta em todo processo sim-
bólico, quer seja subjetivo, quer social.
Eis por que numa investigação da es-
trutura dos sonhos, a questão decisiva
é saber se os símbolos e as sequências
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 53

temporais usadas se baseiam na conti-


guidade (“transferência” metonímica e
“condensação” sinedóquica de Freud)
ou na similaridade (“identificação” e
“simbolismo” freudianos). (JAKOB-
SON, 2010, p.61)

Jacques Lacan, ao empreender seu retorno à Freud,


considerando os avanços das Ciências Humanas e Sociais
de sua época, retomou esta relação estabelecida por Jakob-
son acentuando a questão do desejo no deslocamento me-
tonímico. No texto A instância da letra no inconsciente ou
a razão desde Freud (LACAN, 1957/1998), Lacan afirmou
que a característica fundamental da metonímia é o fato
de a parte ser tomada pelo todo, revelando uma conexão
entre os significantes nas construções da linguagem. Por
meio do exemplo da frota de navios, Lacan (1957/1998)
convocou seus leitores a atentar-se para a cadeia associati-
va que possibilita o deslocamento metonímico:
Onde se vê que a ligação do navio com
a vela não está em outro lugar senão no
significante, e que é no de palavra em pa-
lavra desta conexão que se apoia a me-
tonímia. (LACAN, 1957/1998, p.509)

Que isto tem a ver com o desejo? Uma vez que o ob-
jeto causa de desejo, por estrutura, é perdido e para sem-
pre irrecuperável, a cadeia significante é marcada por uma
falta estruturante. Na perspectiva lacaniana é, exatamente,
por conter o registro de uma falta que o deslocamento
libidinal pode acontecer na trilha associativa. Assim, a es-
trutura metonímica indica que
54 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

[...] é a conexão do significante com


significante que permite a elisão me-
diante a qual o significante instala a fal-
ta do ser na relação de objeto, servin-
do-se do valor de envio da significação
para investi-la com o desejo visando
esta falta que ele sustenta. (LACAN,
1957/1998, p.519)

Seguindo a ordenação da linguagem, por meio do


recurso metonímico, o desejo desloca-se de objeto em ob-
jeto, revelando a associação entre os significantes e, tam-
bém, a falta primordial que lhe caracteriza. Desta forma,
concluímos com Lacan que “o desejo, se Freud diz a ver-
dade sobre o inconsciente e se a análise é necessária, só é
captado na interpretação” (LACAN, 1958/1998, p.629),
ou, ainda, que “o desejo é a metonímia da falta-a-ser” (LA-
CAN, 1958/1998, p.629).
Exatamente por ser marcado por uma falta primor-
dial, o desejo se apresenta, sempre, como aquilo que mo-
vimenta o sujeito, por meio de construções sintagmáticas.
Indestrutível, o desejo mostra-se como desejo de alguma
coisa. Assim, Lacan caracterizou o objeto do desejo como
objeto metonímico:
Não existe objeto a não ser metoními-
co, sendo o objeto do desejo objeto do
desejo do Outro, e sendo o desejo sem-
pre um desejo de Outra coisa – mui-
to precisamente, daquilo que falta, a,
o objeto perdido primordialmente, na
medida em que Freud mostra-o sempre
por ser reencontrado. (LACAN, 1957-
58/1999, p.16)
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 55

Diante disto, inferimos que é por meio da falta fun-


damental que alguém pode desejar tornar-se pai, tornar-
se mãe e/ou gerar um filho. Entretanto, ao fazer-se pai, ao
fazer-se mãe ou ao gerar uma criança, este alguém deve
surpreender-se com a impossibilidade de preencher com
totalidade o vazio que lhe coloca em movimento.

1.3 ... exceto os homossexuais

As discussões sobre o tema da homoparentalidade


tornaram-se frequentes nos países ocidentais nas duas úl-
timas décadas. Tais debates vêm interferindo em campa-
nhas políticas e suscitando manifestações públicas dos mais
diversos segmentos da população mundial - religiosos,
acadêmicos, militantes gays, etc. Em meio a pronuncia-
mentos, projetos de leis, tramitações jurídicas e criações
artísticas que têm como tema as famílias homoparentais,
cientistas sociais e representantes das abordagens psico-
lógicas têm sido convocados a exporem suas perspectivas
sobre o assunto. Seja por uma argumentação contra a ho-
moparentalidade ou a favor da filiação homoparental, as
Ciências Humanas são convidadas a tomarem o lugar da
verdade no cenário contemporâneo, legitimando ou ques-
tionando posicionamentos ideológicos a respeito da insti-
tuição familiar.
Dentre os argumentos apresentados por aqueles que
se mostram favoráveis à homoparentalidade, especialmen-
te à adoção homoparental, um específico desperta-nos a
atenção: casais homoafetivos podem adotar crianças e ado-
lescentes porque é melhor um sujeito desenvolver em um
lar homoparental que em uma instituição asilar ou abrigo
56 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

para menores. Estariam, então, as condições necessárias ao


exercício da parentalidade fundamentadas em um senti-
mento de solidariedade e bem-fazer de um casal condoído
por crianças e adolescentes órfãos ou impossibilitados de
viver com suas famílias biológicas? Em um contexto histó-
rico-cultural que legitima o requerimento dos heterosse-
xuais pela filiação adotiva considerando o desejo destes de
tornarem-se pais, por que os homossexuais devem receber
o direito à paternidade ou à maternidade apenas se contri-
buírem para a solução de questões sociais referentes aos
abrigos de crianças e adolescentes?
Clotilde Leguil (2013), psicanalista membro da
Escola da Causa Freudiana de Paris, em seu texto “Ma-
trimônio para todos”, chamou a atenção de seus leitores
para o fato de que os requerimentos contemporâneos
dos homossexuais revelam um “desejo de tradição”. Isto
porque tais requerimentos consistem no reconhecimen-
to jurídico do casamento civil entre pessoas do mesmo
sexo e, também, no direito de tornarem-se pais ou mães
por meio da adoção e/ou das tecnologias de fertilização.
Entretanto, as reações conservadoras e preconceituosas
de autoridades políticas e religiosas em todo o mundo
quanto ao tema do matrimônio e da adoção homoafeti-
vos evidenciam a dificuldade social de retirar da margi-
nalidade alguns tipos humanos.
Ao tecer algumas considerações sobre a homopa-
rentalidade, Elisabeth Roudinesco (2003), no livro A fa-
mília em desordem, afirmou que os homossexuais, ao re-
quererem o reconhecimento jurídico do direito de casar e
adotar apresentam um “desejo de família”. Nos desperta a
1 A concepção freudiana do “desejo de filho” 57

atenção o fato de que a experiência homossexual contem-


porânea recusa o lugar social da exceção e requer o direito
de viver coisas consideradas comuns: casar, filiar, procriar
(FERRARI & ANDRADE, 2004).
Parece-nos que atentar para a questão do desejo im-
plicado no querer ser pai e no querer ser mãe, bem como
para os entraves jurídicos e políticos ao direito dos homos-
sexuais desejarem constituir família é de grande importân-
cia para a construção de uma sociedade mais justa.
2 Considerações sobre os debates acerca
da adoção homoparental

– Honrar pai e mãe... – disse Marcelino.


– E cumpriste este mandamento?
– Não tenho pai nem mãe – disse logo o menino.
– Mas tens os frades, que te servem de pai e mãe... – lem-
brou-lhe Jesus. (SÁNCHEZ-SILVA, 1953/1982, p.104)

As famílias12 constituídas por casais homoafetivos,


da mesma forma como ocorre com as famílias em que os
casais heterossexuais são os genitores, são diversas e úni-
cas em suas particularidades, histórias e trajetórias. Entre-
tanto, questões relacionadas à saúde mental das crianças
criadas pelas famílias homoparentais, bem como sobre a
identificação sexual e a orientação sexual destas crianças,
muitas vezes são utilizadas como limitação contra as pes-
soas não heterossexuais que almejam a paternidade/ma-

12
Julgamos importante registrar que, enquanto redigimos este trabalho, tramita
no Congresso Nacional Brasileiro um projeto de lei popularmente conhecido como
“Estatuto da Família”. Dentre outros objetivos, este projeto de lei visa estabelecer
o seguinte conceito de família: “o núcleo social formado a partir da união entre um
homem e uma mulher, por meio do casamento ou união estável” (PL 6583/2013).
Autorizamo-nos a chamar o grupo afetivo caracterizado por vínculos de cuidado, re-
conhecimento e proteção constituído por casais homoafetivos e seus filhos de família.
60 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

ternidade, expressando a desconsideração das autoridades


jurídicas e as organizações sociais para com o singular de
cada sujeito envolvido no processo de constituição de uma
família (APA, 2005; CFP, 2008).
O questionamento acerca da capacidade de pesso-
as homossexuais exercerem as funções parentais aponta
para o preconceito ainda presente na sociedade ocidental
contemporânea sobre a homossexualidade. Concepções
da homossexualidade como doença, desvio moral ou per-
turbação psicológica, podem ser identificadas, ainda que
discretamente, nas (in)justificativas apresentadas por ins-
tituições e organizações sociais que argumentam contra a
adoção homoparental (LA FALCE, 2014).
Aqueles que se posicionam contra a adoção homo-
parental, comumente, alegam que a igualdade anatomo-
sexual no ambiente doméstico é prejudicial à formação
psicológica e identitária das crianças e dos adolescentes.
Além disto, não é raro que tais opositores das famílias ho-
moparentais constituídas por meio da adoção infiram que
a orientação sexual dos adotantes influencia – negativa-
mente – as futuras escolhas sexuais dos adotados (APA,
2005; LA FALCE, 2014).
Encontramos em uma publicação do ano de 2005,
da American Psychological Association (APA), Lesbian &
Gay Pareting, que reuniu resultados de pesquisas realizadas
em território norte-americano, a percepção dos psicólo-
gos estadunidenses sobre os entraves jurídicos às adoções
requeridas por casais homoafetivos. Segundo a publica-
ção, autoridades jurídicas nos Estados Unidos, quando
argumentam contra a homoparentalidade, costumam
2 Considerações sobre os debates acerca da adoção homoparental 61

apresentar três temores ou infundados receios quanto ao


desenvolvimento de crianças e adolescentes adotados por
homossexuais: 1) o desenvolvimento da identidade de
gênero destas crianças será prejudicado, resultando em
distúrbios de identificação sexual; 2) as crianças criadas
por casais homoafetivos tenderão a apresentar transtornos
mentais com maior facilidade do que crianças criadas por
casais heterossexuais, bem como distúrbios de compor-
tamento e/ou aprendizagem; 3) filhos de pais gays e/ou
lésbicas apresentarão maiores dificuldades de socialização
e serão estigmatizados, sendo vítimas de preconceitos so-
ciais (APA, 2005).
Jean Le Camus (2005), em seu livro dedicado ao
tema da paternidade nos dias contemporâneos, escre-
veu um capítulo sobre a homoparentalidade e, ao citar
alguns embates políticos sobre a adoção homoparental
na Europa, lembrou que a questão da saúde mental e da
identificação sexual das crianças e adolescentes criados
por famílias homoparentais sempre é evocada nas dis-
cussões sobre o tema.
A fim de que os argumentos que justificariam a ne-
gação do direito dos homossexuais de adotarem crianças
e adolescentes ganhassem legitimidade científica, auto-
ridades jurídicas, autoridades religiosas e lideranças so-
ciais internacionais recorreram às Ciências Humanas e às
abordagens psicológicas – inclusive à teoria psicanalítica.
Sendo assim, nos chamou a atenção o fenômeno que Jac-
ques-Alain Miller (2013, p. 129) denominou “instrumen-
talização ilegítima” da Psicanálise, isto é, a utilização dos
pressupostos da teoria psicanalítica na defesa de uma única
62 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

possibilidade de constituição familiar: a família formada


por um casal heterossexual e sua prole.
Considerando o cenário francês, Miller (2013) e ou-
tros psicanalistas comprometidos com o ensino de Jacques
Lacan, expressaram irritação e incômodo ao constatarem
que alguns de seus colegas colocaram-se ao lado do funda-
mentalismo religioso no combate ao reconhecimento das
uniões homoafetivas e das famílias homoparentais. Os psi-
canalistas que endossaram o movimento contra a homo-
parentalidade apresentaram peculiares perspectivas acerca
de alguns conceitos básicos da Psicanálise, oferecendo aos
conservadores e líderes religiosos fundamentalistas instru-
mentos por meio dos quais pudessem reafirmar precon-
ceitos contra os homossexuais.
Clotilde Leguil (2013), em uma intervenção rea-
lizada na Jornada da Escola da Causa Freudiana de Paris,
em fevereiro de 2013, chamou a atenção de seus in-
terlocutores para a associação do discurso psicanalítico
com o fundamentalismo religioso no combate às famí-
lias homoparentais:
Paradoxalmente, o discurso psicanalí-
tico e o discurso religioso estão juntos
em torno da condenação do matri-
mônio homossexual, como se a Igreja
encontrasse na Psicanálise um “coadju-
vante” para defender sua posição sobre
a família.13 (LEGUIL, 2013, p.147, tra-
dução nossa)

13
Paradójicamente, el discurso psicoanalítico y el discurso religioso están juntos em
torno a la condena al matrimonio homossexual, como si la Iglesia encontrara em el
psicoanálisis un “coadyuvante” para defender su posición sobre la família.
2 Considerações sobre os debates acerca da adoção homoparental 63

Entretanto, tal associação entre Psicanálise e posi-


ções conservadoras religiosas também pode ser encon-
trada no Brasil. Tomamos como exemplo a participação
do pastor evangélico Silas Malafaia na Sessão Solene em
Homenagem ao Dia Nacional de Valorização da Família14,
realizada no dia 20 de novembro de 2012 – a seguir, trans-
crevemos o trecho da fala do referido pastor evangélico
em que discurso religioso mescla-se a pontos de teoria psi-
canalítica no combate das famílias homoparentais:
A família é de vital importância por ser,
não só a primeira, mas a mais impor-
tante agência socializadora. Quem fez
a família foi Deus. E Deus, Ele criou
normas, estabeleceu normas para o
bom andar desta instituição. Ele cria
normas para que o ser humano pos-
sa tirar proveito, e possa crescer e se
desenvolver. O que nós chamamos de
família nuclear é um homem, a mulher
e sua prole. Isso é o que é a família nu-
clear. Não se assuste com o que eu vou
te falar: família é o homem, a mulher e
seus filhos, o resto vira parente. Quan-
do o camarada casa, quando a menina
casa, família é ela, o marido e os filhos.
O resto vira parente. Pra você ter ideia
da importância desta família nuclear!
A figura paterna e a figura materna,
elas são de fundamental importância
para o desenvolvimento do ser. Eu
cansei de ouvir na Universidade, eu
cansei de ouvir na faculdade, as várias
14
O vídeo contendo todo o pronunciamento do pastor evangélico Silas Malafaia na
Sessão Solene em Homenagem ao Dia da Família (2012), encontra-se disponível no
seguinte endereço eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=9pCYIbkef5o.
64 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

posturas da Psicologia dizer o seguin-


te: que a criança tem como primeiro
objeto de amor à mãe e ela faz a rup-
tura entre ela e a mãe a partir da figura
paterna. É a partir da figura paterna
que a criança faz diferenciação entre
si, a mãe e o mundo. E agora querem
destruir as figuras da família. A des-
construção da heteronormatividade e
a desconstrução desta família nuclear.
E nós vamos ver o que vai acontecer
nas relações futuras, o desarranjo so-
cial. Porque Deus, com qualquer insti-
tuição, ela precisa de organização. Até
a quitanda do “Seu Manel”, se não tiver
princípios de organização, vai “probele-
léu”. Então Deus cria uma organização
e esta instituição chamada família, co-
loca o homem como autoridade e de
vez em quando tem algumas feminis-
tas que assustam quando a gente fala
que a autoridade pertence ao homem
e elas não sabem definir o que significa
autoridade. O princípio de Deus não
é machista, é organizacional, porque
toda instituição tem que ter princípio
de autoridade.

A fim de tecermos algumas considerações sobre os


temores/preconceitos referentes à adoção de crianças por
casais homoafetivos anteriormente citados, bem como so-
bre a “instrumentalização ilegítima” da Psicanálise (MIL-
LER, 2013, p. 129), adotaremos a perspectiva lacaniana e
trabalharemos com O Seminário, com os Escritos (1998) e
os Outros Escritos (2003).
2 Considerações sobre os debates acerca da adoção homoparental 65

2.1 Sobre a igualdade anatômica e a sexuação

Como já fora dito, muitos dos atores políticos, reli-


giosos e acadêmicos que tomam a postura contrária à ho-
moparentalidade e à adoção homoparental afirmam teme-
rem que a identificação sexual das crianças criadas por dois
homens ou duas mulheres seja prejudicada. Na perspectiva
destes que combatem o reconhecimento social e jurídi-
co das famílias homoparentais, a igualdade anatômica do
par parental impossibilita a criança adotada de entrar em
contato com as diferenças sexuais e, consequentemente,
dificulta sua identificação como homem ou como mulher
(APA, 2005; CAMUS, 2005; LA FALCE, 2014).
Entendemos que o esclarecimento dos conceitos de
sexo, gênero e sexuação pode contribuir para que o avanço
na compreensão sobre a identificação sexual das crianças
e adolescentes de forma geral, não apenas daquelas cria-
das por famílias homoparentais, seja possível. Sendo assim,
nos propomos a dissertar sobre tais conceitos – sexo, gê-
nero e sexuação –, enfatizando as fórmulas da sexuação
apresentadas por Jacques Lacan (1972-73/2008) em seu
Seminário, Livro XX.

2.1.1 Sexo e gênero

De acordo com o Dicionário de Sexualidade Comen-


tado, de Nuno Nodin (2001), o termo sexo, em Língua
Portuguesa, é comumente empregado com ao menos
dois sentidos:
O mais habitual é o que designa uma re-
lação sexual entre duas ou mais pessoas.
Nesse caso é utilizada juntamente com
o verbo fazer (“fazer sexo”). O outro
66 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

sentido é quando serve para designar


os órgãos sexuais, ou seja, o pênis ou a
vagina. (p.155)

Ao falarmos sobre o sexo, referimo-nos às carac-


terísticas biológicas e anatômicas que definem os seres
humanos como machos ou fêmeas. Habitualmente, diz-
se que o sexo é natural, uma vez que os sujeitos nascem
dotados de órgãos sexuais específicos. Assim, o sexo apre-
senta-se como algo dado pela natureza e implica em um
polêmico determinismo biológico problematizado pelas
autoras feministas do século XX (SCOTT, 1990).
Encontramos no trabalho de Robert J. Stoller
(1968/1984), Sexo e Gênero, uma clara diferenciação de
sexo e identidade de gênero. Ao tratar de pessoas herma-
froditas e transexuais, Stoller (1968/1984) concluiu que
as adaptações cirúrgicas dos órgãos genitais aos sentimen-
tos de ser homem ou ser mulher apresentavam-se, mui-
tas vezes, como o recurso terapêutico mais adequado à
promoção do bem-estar de alguns sujeitos. Assim, Stoller
(1968/1984) revelou sua concepção de sexo – a anatomia
genital – e de identidade sexual – o sentimento de ser ho-
mem, o sentimento de ser mulher, o gênero. Quanto aos
pacientes apresentados por Stoller (1968/1984) em seu
livro, estes relatavam o sentimento de inadequação entre
o sexo (a anatomia) e o gênero (a identidade sexual); tra-
tava-se de casos em que “o ‘gênero’ não coincidia com o
‘sexo’, pois pessoas com anatomia sexual feminina sen-
tiam-se homens, ‘e vice-versa’” (PEDRO, 2005).
Assim, ao falarmos sobre gênero, consideramos as
construções socioculturais sobre o que é ser homem e o
2 Considerações sobre os debates acerca da adoção homoparental 67

que é ser mulher. Cada organização social, por meio da


linguagem, veicula uma interpretação da diferença anatô-
mica entre os sexos, acompanhada de atributos de força,
de beleza, de poder e de submissão. Aos sujeitos, consti-
tuídos pela relação estabelecida com o contexto cultural,
cabe adequarem-se ou não aos discursos ordenadores do
social quanto ao serem homens ou mulheres. Entretanto,
na perspectiva psicanalítica, a constatação por parte dos
sujeitos destas diferenças sexuais não são sem efeitos e foi
considerando estas consequências subjetivas que Jacques
Lacan apresentou a noção de sexuação na década de 1970
(MOREL, 1996).

2.1.2 O autorizar-se de si mesmo na sexuação

A diferença sexual na perspectiva psicanalítica não se


resume à diferença anatômica dos sexos. Desde Freud, a di-
ferença biológica entre os sexos tem valor para a Psicanálise
devido às suas “consequências psíquicas”. Contudo, enten-
demos que na obra freudiana o biológico possui uma função
importante, uma vez que é a partir da constatação de suas
especificidades pelas crianças que consequências psicológi-
cas são inscritas (FREUD, 1925/1996; MOREL, 1996).
Entretanto, parece-nos que a importância concedida
à biologia por Freud não se encontra no trabalho psicana-
lítico de Jacques Lacan, de forma que, para o psicanalista
francês, as questões referentes à cultura tornam-se mais
notáveis nos assuntos relacionados ao sexo. Geneviève
Morel (1996), em “Anatomia Analítica”, inicia seu texto
evocando as postulações freudianas sobre o Complexo de
Édipo na menina e no menino e pontua:
68 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

Essa breve evocação está aqui apenas


para fazer valer o recuo aparente da im-
portância da anatomia no ensinamento
de Lacan, uma vez que nesse contexto
ele aborda o sexo pelo viés do gozo e da
linguagem, e não mais em termos de de-
senvolvimento. (MOREL, 1996, p.43)

Na primeira lição do Seminário, Livro XIX: ...ou pior


(1971-72/2012), por exemplo, Lacan levou seus alunos a
constatarem que o fato de um indivíduo ser dotado do ór-
gão sexual masculino não determina que este tome o falo
como significante caracterizador da sua própria virilidade.
Ao contrário, nesta lição, Lacan afirmou que o órgão só
possui algum significado quando é tomado como signifi-
cante: “Um órgão só é instrumento por meio disto em que
todo instrumento se baseia: é que ele é um significante.”
(LACAN, 1971-72/2012, p.17).
Entendemos que o movimento de Lacan em dire-
ção às disciplinas sociais e culturais, como a Antropologia
e a Linguística, caracteriza não apenas seus ensinamentos
sobre as questões sexuais, mas todo o seu trabalho. Con-
tudo, julgamos importante esclarecer que as indicações
freudianas sobre a formação do analista já apontavam para
a importância do praticante da Psicanálise, além de sub-
meter-se à análise, envolver-se com conhecimentos que
ultrapassam os ensinamentos biológicos:
Se – o que pode parecer fantástico hoje
em dia – alguém tivesse de fundar uma
faculdade de Psicanálise, nesta teria de
ser ensinado muito do que já é leciona-
do pela escola de medicina: juntamente
2 Considerações sobre os debates acerca da adoção homoparental 69

com a psicologia profunda, que conti-


nua sempre como a principal discipli-
na, haveria uma introdução à biologia,
o máximo possível de ciência da vida
sexual e familiarização com a sintoma-
tologia da psiquiatria. Por outro lado,
a instrução analítica abrangeria ramos
de conhecimento distantes da medi-
cina e que o médico não encontra em
sua clínica: a história da civilização, a
mitologia, a psicologia da religião e a
ciência da literatura. A menos que es-
teja bem familiarizado nessas matérias,
um analista nada pode fazer de uma
grande massa de seu material. (FREUD,
1926/1996, p. 236)

Recordamos o escrito de Lacan (1975/2003),


Talvez em Vincennes..., em que encontramos a indicação
de como as ciências “propagadas à moda universitária”
podem ajudar o psicanalista em seu ofício e, também,
sofrerem uma renovação ao entrarem em contato com
o saber psicanalítico15. Ao estudarmos o tema da sexu-
ação, encontramos uma renovação proporcionada pela
Psicanálise à Linguística e à Lógica, pois, esta invenção
conceitual lacaniana apoia-se em elementos de tais dis-
ciplinas. Ao referir-se à sexuação, Lacan falou de posi-
ções, propôs fórmulas e serviu-se de noções matemá-
ticas; lançou mão destes recursos e disto concluiu que:
“o ser sexuado não se autoriza mais que por si mesmo”
(LACAN, 1973-74/1974, p.52).
15
“Agora não se trata somente de ajudar o analista com ciências propagadas à moda
universitária, mas de que essas ciências encontrem em sua experiência uma oportu-
nidade de se renovar.” (LACAN, 1975/2003, p.316)
70 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

Didaticamente, podemos escrever que a diferença


anatômica entre machos e fêmeas inscreve-se no campo
do sexo. Contudo, as consequências subjetivas desta dife-
rença para cada ser referem-se à sexuação. O sexo anatô-
mico corresponde à animalidade não subjetivada do estado
natural, enquanto a sexuação depende da inscrição signifi-
cante que produz consequências:
O humano, por falar, torna-se fala ser
(parlêtre) e não é mais um animal como
os outros. O sexo não é mais natureza,
physis, mas se torna sexus, palavra latina
que vem de secare, cortar – fato do sig-
nificante. (MOREL, 1996, p.43)

Porém, como isto ocorre? Como se produz este


corte que não é sem consequências para o sujeito? Partire-
mos da lição de Lacan “A pequena diferença”, do Seminário,
Livro XIX: ...ou pior (1971-72/2012), e descreveremos os
três tempos da sexuação propostos por Morel (1996) no já
citado texto “Anatomia Analítica”.
Na lição do dia 8 de dezembro de 1971, Lacan
(1971-72/2012) iniciou mais uma edição de seu Seminá-
rio retomando o aforisma proferido no ano anterior, a sa-
ber: “não existe relação sexual” (LACAN, 1971-72/2012,
p.12). Ao ter afirmado a inexistência da relação sexual,
Lacan despertou a atenção de seus alunos para o fato que
“o sexo não define relação alguma no ser falante” (LACAN,
1971-72/2012, p.13); isto é, para o psicanalista, o sexo
anatômico com o qual uma criança nasce não é, por si só,
determinante de sua subjetividade.
De acordo com Jacques Lacan, o que confere espe-
2 Considerações sobre os debates acerca da adoção homoparental 71

cificidades subjetivas aos seres falantes não é a simples pre-


sença de um órgão sexual, mas a “relação complexual com
esse órgão” (LACAN, 1971-72/2012, p.13). Ao convocar
seus ouvintes – e leitores – a atentarem-se para a “rela-
ção complexual” do ser falante com o órgão sexual, Lacan
introduziu a dimensão linguística e cultural da diferença
entre homens e mulheres nesta lição de seu Seminário. Di-
ferença esta que não se resume aos atributos performáti-
cos e caricatos das vestimentas comumente atribuídas aos
meninos e às meninas, dos caracteres sexuais secundários
ou da dita divisão sexual do trabalho. Trata-se da diferença
subjetiva entre aqueles que se reconhecem dotados de um
instrumento específico e aqueles que se veem desprovidos
deste mesmo instrumento.
Quando Lacan convocou seus alunos a se atentarem
para “a relação complexual” do ser falante com o órgão
sexual, bem como a não reduzirem à anatomia as diferen-
ças sexuais entre os seres, o psicanalista propôs uma dis-
tinção sexual “dentro da lógica” (LACAN, 1971-72/2012,
p.16). Tal distinção sexual não é natural, uma vez que ad-
vêm do campo do Outro e incide sobre a experiência de
cada criança com seu próprio corpo, configurando-a como
uma experiência subjetiva. Nas palavras de Lacan: “Nós os
distinguimos, não são eles que se distinguem.” (LACAN,
1971-72/2012, p.16).
Entretanto, segundo Lacan, a distinção sexual reali-
zada pelos adultos que circundam as crianças se apoia em
um erro. Erro que “consiste em identificá-los, sem nenhu-
ma dúvida, por aquilo pelo qual eles se distinguem”, ou
seja, pelo sexo anatômico, “mas em reconhecê-los somen-
72 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

te em função de critérios formados na dependência da lin-


guagem” (LACAN, 1971-72/2012, p.16). Na concepção
lacaniana, a distinção anatômica conferida pelo exame bio-
lógico do recém-nascido não equivale ao reconhecimen-
to deste por parte dos adultos que o cercam. Isto porque
o reconhecimento de uma criança como pertencente ao
conjunto de machos ou ao conjunto de fêmeas, passa pelas
fantasias, expectativas e construções subjetivas presentes
na fala daqueles que se responsabilizam por sua criação e
desenvolvimento.
No escrito “Observação sobre o relatório de Daniel
Lagache”, Lacan (1960-61/1998) teceu algumas conside-
rações sobre a tese de que o inconsciente é o discurso do
Outro. Neste texto, ao afirmar que antes do nascimento
da criança palavras sobre ela são proferidas, conferindo-lhe
um lugar nas relações simbólicas, Jacques Lacan escreveu:
Mas o lugar que a criança ocupa na li-
nhagem segundo a convenção das rela-
ções de parentesco, o prenome, talvez,
que já a identifica com o avô, os fun-
cionários do registro civil e até o que
nela denotará seu sexo, aí está algo que
se preocupa muito pouco com o que
ela é em si: pois ela que apareça her-
mafrodita, para ver só! (LACAN, 1960-
61/1998, p.659)

O discurso sobre a criança, presente antes mes-


mo de seu nascimento, revela, também, as expectativas e
concepções do Outro em relação ao seu sexo. De forma
tal que, a escolha do prenome da criança, comumente,
evidencia uma específica predileção por um dos dois se-
2 Considerações sobre os debates acerca da adoção homoparental 73

xos. No referido texto, Lacan (1960-61/1998) utilizou o


verbo “denotará”, ao inferir que a escolha do prenome da
criança já sinaliza a hipótese de seus pais sobre seu sexo.
Denotar é o mesmo que anunciar e exprimir, diz respeito
à caracterização ou designação.
Neste sentido, Lacan destacou, em O Seminário, Livro
XIX, a dimensão significante do falo e ressaltou que a insis-
tência em tratar o sexo anatômico como determinante para
um jeito específico de gozar é um “erro comum”, come-
tido, inclusive, pelo transexual (LACAN, 1971-72/2012,
p.17). De acordo com Lacan, o transexual recusa o falo
não como órgão, mas, principalmente, como significante:
Sua paixão, a do transexual, é a loucura
de querer livrar-se deste erro, o erro
comum que não vê que o significante é
o gozo e que o falo é apenas o significa-
do. O transexual não quer mais ser sig-
nificado como falo pelo discurso sexual,
o qual, como enuncio, é impossível.
Existe apenas um erro, que é querer
forçar pela cirurgia o discurso sexual,
que, na medida em que é impossível,
é a passagem do real. (LACAN, 1971-
72/2012, p.17)

Por meio da linguagem a diferença sexual se faz no-


tar, o que nos impossibilita de reduzir o falo à anatomia.
Assim, ao menos dois tipos de seres que falam podem ser
encontrados: aqueles que têm o falo e aqueles que não
têm. Na continuidade desta primeira lição de seu Seminá-
rio, Lacan atribuiu um caráter ficcional aos diversos tipos
de relacionamentos entre homens e mulheres, desnatura-
74 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

lizando o casamento e considerando-o mais uma invenção


da cultura diante da inexistência da relação sexual:
Em vista da hora, só poderei indicar ra-
pidamente, no tocante a tudo o que se
coloca como relação sexual, instituin-
do-a por uma espécie de ficção chamada
casamento, que seria uma boa regra o
psicanalista dizer-se, quanto a esse pon-
to – eles que se virem como puderem.
(LACAN, 1971-72/2012, p.18)

Exatamente por não existir uma determinação bio-


lógica e natural que regulamente a relação entre seres do-
tados de falo e seres desprovidos de falo, Lacan reafirmou:
“não existe relação sexual” (LACAN, 1971-72/2012,
p.18). Contudo, como um sujeito se reconhece como do-
tado ou desprovido do falo? Como se dá este processo que
Lacan chamou de sexuação?
Ao nosso entender, é importante registrar que a
sexuação é um processo subjetivo caracterizado, de um
lado, pelas marcas socioculturais e linguísticas que regem
os padrões de virilidade e feminilidade e, de outro, pela
escolha de cada sujeito que se autoriza relacionar com o
outro sexo completamente tomado pela função fálica ou
não todo inscrito por esta função (MOREL, 1996).
Morel (1996) depreendeu do ensino de Jacques
Lacan três tempos ou momentos lógicos da sexuação, a
saber: o tempo da diferença anatômica; o tempo do dis-
curso sexual e o tempo da sexuação propriamente dita.
Segundo Geneviève Morel (1996), o primeiro tempo da
sexuação é aquele assinalado no momento do nascimento,
2 Considerações sobre os debates acerca da adoção homoparental 75

na constatação do sexo anatômico do recém-nascido; um


momento que, na atualidade, é antecipado devido aos exa-
mes de imagem realizados no acompanhamento pré-natal
e aos testes de genótipos. Podemos afirmar que o primeiro
tempo da sexuação refere-se ao sexo, no sentido que ante-
riormente apresentamos.
De acordo com Morel (1996), o segundo tempo da
sexuação é caracterizado pela interpretação da anatomia
realizada pelo Outro. Trata-se do momento em que o sig-
nificante é essencial para que a diferença entre os sexos
seja percebida e, consequentemente, dita. É o momento
do discurso sexual; etapa em que o “erro comum” apresen-
tado por Jacques Lacan (1971-72/2012) na primeira lição
do Seminário, Livro XIX torna-se perceptível ao sujeito. Ser
reconhecido como garoto não implica em, simplesmente,
ser dotado de um pênis, mas capaz de força e virilidade;
ser reconhecida como garota equivale a ser tomada como
sinônimo de falta, de beleza, de mistério e feminilidade.
Entretanto, é no terceiro tempo que a sexuação pro-
priamente dita ocorre, uma vez que, neste momento, o
sujeito realiza a sua opção de identificação sexuada. No
terceiro tempo da sexuação, o sujeito se apropria de uma
das duas maneiras de relacionar-se sexualmente, de gozar:
Para se sexuar, um sujeito não se inscre-
ve diretamente nessa função como “eu
sou fálico” ou “eu não sou fálico”, que
valeria para os dois sexos , portanto,
não seria discriminante. Ele se inscreve
pelo modo de gozar do falo, “na rela-
ção com o outro sexo, eu sou tomado
por inteiro na função fálica, logo eu sou
76 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

um homem”, ou então, “na relação com


o outro sexo, eu sou não toda inscrita
na função fálica, logo, eu sou uma mu-
lher”.” (MOREL, 1996, p.44)

É neste terceiro tempo que o sujeito autoriza-se de


si mesmo na sexuação, escolhendo uma das duas maneiras
possíveis de servir-se do falo para estabelecer um laço com
o outro sexo (LACAN, 1973-74/1974; MOREL, 1996).
Julgamos importante compreender o que significa
“autorizar-se de si mesmo”, a fim de dissertarmos sobre o
terceiro tempo da sexuação proposto por Morel (1996).
Em seu percurso clínico e teórico, Jacques La-
can se destacou por insistir que “o analista, ou seja, não
qualquer um, autoriza-se apenas de si mesmo” (LACAN,
1973/2003, p.312). Ao questionar os rígidos padrões
estabelecidos pelas sociedades psicanalíticas de sua
época, Lacan afirmou o lugar de importância da análise
pessoal na formação de um psicanalista. Isto porque,
nas décadas de 1950 e 1960, as chamadas sociedades in-
ternacionais de Psicanálise reconheciam alguém como
psicanalista se este reproduzisse, no cotidiano da expe-
riência clínica, regras e comportamentos padronizados:
regularidade de sessões, preços fixos, tempo da sessão
analítica preestabelecido, etc.
Ao ressaltar o valor da análise pessoal para a forma-
ção analítica, Lacan expressou sua perspectiva singular do
processo psicanalítico, ensinando-nos que a autorização de
um psicanalista não advém de uma instituição de ensino
ou de uma associação internacional. O analista autoriza-se
de si mesmo, uma vez que, ao submeter-se à análise, pode
2 Considerações sobre os debates acerca da adoção homoparental 77

deparar-se com o desejo de analista e, por este desejo pe-


culiar, responsabilizar-se. Responsabilidade esta que possi-
bilita ao analista “autorizar-se”, o que “não é auto-ri(tuali)
zar-se” (LACAN, 1973/2003, p.312).
Assim, Lacan mostrou-se contra a padronização dos
tratamentos e da formação analítica, insistindo na impor-
tância dos princípios da Psicanálise. Dentre tais princípios,
este: “o psicanalista só se autoriza de si mesmo. Esse prin-
cípio está inscrito nos textos originais da Escola e decide
sua posição” (LACAN, 1967/2003, p.248).
Contudo, ao dizer sobre a sexuação, Lacan recorreu
à mesma expressão que utilizou para falar sobre o exercí-
cio do psicanalista: autoriza-se de si mesmo16. Identifica-
mos aí uma acentuação da responsabilidade de cada sujeito
para com sua maneira própria de gozar, para com a escolha
dos significantes que utiliza para apresentar-se ao Outro e,
também, para com os resultados de um processo – no caso
do psicanalista, do processo de análise pessoal; no caso do
sujeito que vivencia o terceiro tempo da sexuação, do pro-
cesso de assimilação e localização das diferenças sexuais.
Ao se sexuar, o sujeito apropria-se dos significantes
advindos do campo do Outro que caracterizam a mascu-
linidade ou a feminilidade, localizando-se em um dos dois
lados da tábua da sexuação. A tábua é uma condensação
do trabalho de Lacan sobre a sexuação, apresentada em O
Seminário, Livro XX: Mais, ainda (LACAN, 1972-73/2008),
constituída por conceitos psicanalíticos e por fórmulas ló-
gicas e matemáticas (GRASSELI, 2008).

16
Em seu Seminário, o psicanalista afirmou: “o ser sexuado não se autoriza mais que
por si mesmo” (LACAN, 1973-74/1974, p.52).
78 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

Figura 1: Quadro da Tábua da Sexuação

LACAN, Jacques. Le Séminaire, Livre XX: Encore (1972-73). Paris: Éditions du


Seuil, 1975. p.73.

Segundo Lacan, todo ser falante “se inscreve de


um lado ou de outro” da tábua da sexuação (LACAN,
1972-73/2008, p.107). Julgamos importante registrar
que os dois lados da tábua da sexuação receberam a ins-
crição do significante fálico, uma vez que, tanto para o
menino, quanto para a menina, a função normatizadora
do falo se faz notar. Contudo, duas formas distintas de
gozo foram registradas por Lacan na tábua. Isto signifi-
ca que, nas questões referentes ao amor e à sexualidade,
alguns sujeitos gozam de um jeito limitado pelo signi-
ficante fálico; outros, ao relacionarem-se com o outro
sexo, não se inscrevem totalmente “na função fálica”, e,
simultaneamente, possuem o gozo associado ao signifi-
cante e um outro gozo que ultrapassa os limites do falo
(MOREL, 1996, p.44). Este gozo para além do signifi-
2 Considerações sobre os debates acerca da adoção homoparental 79

cante foi chamado, por Lacan, de gozo feminino; gozo


sobre o qual aqueles que o experimentam não sabem o
que falar (GRASSELI, 2008).
Desta forma, torna-se – praticamente – impossí-
vel reduzir masculinidade e feminilidade, do ponto de
vista lacaniano, à anatomia sexual. Homem e mulher
são significantes que nomeiam duas maneiras possíveis
de gozar. Na lição do dia 20 de fevereiro de 1973 de
O Seminário, Livro XX, Lacan (1972-73/2008), ao falar
sobre a experiência mística de São João da Cruz, con-
cedeu um exemplo que ilustra a impossibilidade de de-
finirmos a posição subjetiva na tábua da sexuação por
meio do sexo anatômico:
Eu não emprego o termo mística como
o empregava Péguy. A mística, não é de
modo algum tudo aquilo que não é a
política. É algo de sério, sobre o qual
nos informam algumas pessoas, e mais
frequentemente mulheres, ou bem
gente dotada como São João da Cruz
– porque não se é forçado, quando se é
macho, de se colocar do lado do
. Pode-se também colocar-se do lado
do não todo. Há homens que lá estão
tanto quanto as mulheres. Isso aconte-
ce. E que, ao mesmo tempo, se sentem
lá muito bem. Apesar, não digo de seu
Falo, apesar daquilo que os atrapalha
quanto a isso, eles entreveem, eles ex-
perimentam a ideia de que deve haver
um gozo que esteja mais além. É isto
que chamamos os místicos. (LACAN,
1972-73/2008, p.81-82)
80 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

2.1.3 A sexuação das crianças adotadas


por casais homoafetivos

Se, na perspectiva psicanalítica de Jacques Lacan,


masculinidade e feminilidade são maneiras de servir-se do
significante fálico e, consequentemente, formas específi-
cas de gozar, a igualdade anatômica sexual no ambiente
doméstico não impossibilita a uma criança situar-se de um
lado ou do outro da tábua da sexuação. De acordo com
a Psicanálise de Orientação Lacaniana, podemos afirmar
que o indispensável para que uma criança se autorize ser
homem ou ser mulher é a presença da diferença sexual
no discurso de seus pais (MOREL, 1996; CAMUS, 2005;
LEGUIL, 2013).
Os pais, a partir de sua posição na lin-
guagem, introduzem ao filho no que
se diz dos homens e das mulheres. O
constituem como ser desejado a partir
do que lhes falta e não a partir de sua
natureza anatômica.17 (LEGUIL, 2013,
p.150-151, tradução nossa)

Sendo assim, o argumento que consiste na afirmação


de que crianças criadas por pessoas do mesmo sexo (ana-
tômico) tendem a desenvolver transtornos de identifica-
ção sexual e dificuldades para reconhecerem-se como ho-
mens ou como mulheres não se sustenta. Na perspectiva
lacaniana, a diferença sexual não se reduz à genitalidade,
mas diz respeito à posição que um sujeito ocupa na tábua
da sexuação. A posição masculina, ou seja, um ser falante
17
Los padres, a partir de suposición em el lenguaje, introducen al niño em lo que se
dice de los hombres y de las mujeres. Lo constituyen como ser deseado a partir de
lo que les falta y no a partir de su naturaleza anatômica.
2 Considerações sobre os debates acerca da adoção homoparental 81

limitado e constituído integralmente pela função fálica,


não equivale ao macho – de forma que um ser desprovido
de pênis pode sexuar-se no lado esquerdo da tábua da se-
xuação. Isto quer dizer que um ser dotado de pênis pode,
também, situar-se no lado feminino da tábua da sexuação,
estabelecendo uma relação contingencial com o significan-
te fálico (REYMUNDO, 2014).
Com Lacan dissociamos o gênero da sexuação,
uma vez que as duas formas possíveis de gozar e enlaçar-
se amorosamente ao outro sexo não estão diretamente
relacionadas às características físicas, aos timbres vocais,
às escolhas profissionais ou às vestimentas socialmente
atribuídas aos homens e às mulheres. A sexuação “rompe
com a possibilidade de correlacionar, de maneira inequí-
voca, os gêneros aos modos de gozo formulados por La-
can” (REYMUNDO, 2014).
Desta forma, não podemos afirmar que as crianças
adotadas por casais homoafetivos não entram em contato
com a diferença sexual e com a diferença de gênero. Isto
porque a igualdade anatômica do casal homoafetivo não
elimina a diferença sexual subjetivada, uma vez que for-
mas distintas de gozar possibilitam o (des)encontro amo-
roso. E, também, porque as crianças criadas por famílias
homoparentais não estão impossibilitadas de conviverem
socialmente com outros grupos afetivos e com outras fi-
guras de autoridade que pertencem ao gênero distinto do
de seus pais ou mães18.
18
A instituição familiar não é uma instituição total, na concepção de Erving Gof-
fman (1961/1974). Por instituição total, chamamos “um local de residência e tra-
balho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados
da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fe-
82 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

Além disto, nesta discussão, não se deve desprezar


as expressões utilizada por Lacan, em seu Seminário, para
falar das possibilidades de sexuação: “opções de identifi-
cação sexuada” (LACAN, 1973-74/1974, p.132) e “o ser
sexuado não se autoriza mais que por si mesmo” (LACAN,
1973-74/1974, p.52). Entendemos que tais expressões
evocam a dimensão de escolha e, consequentemente, res-
ponsabilidade do próprio sujeito na sexuação. É da ordem
da opção de cada um apropriar-se ou não dos significantes
advindos do campo do Outro que distinguem homens e
mulheres, masculinidade e feminilidade.

2.2 A função da mãe e a função do pai

Aqueles que se posicionam contrários à adoção ho-


moparental, geralmente, apresentam como argumento
para justificar suas ideias conservadoras, o receio de que
crianças e adolescentes criados por casais homoafetivos
desenvolvam transtornos mentais e tenham a saúde men-

chada e formalmente administrada” (GOFFMAN, 1961/1974, p.11). Textualmente,


Goffman demarcou algumas diferenças entre as instituições totais e as famílias: “As
instituições totais são também incompatíveis com outro elemento decisivo da nossa
sociedade – a família. A vida familial é às vezes contrastada com a vida solitária,
mas, na realidade, um contraste mais adequado poderia ser feito com a vida em
grupo, pois aqueles que comem e dormem no trabalho, com um grupo de compa-
nheiros de serviço, dificilmente podem manter uma existência doméstica significa-
tiva” (GOFFMAN, 1961/1974, p.22). Crianças e adolescentes criados por famílias
homoparentais não são impossibilitados de conviverem com outros grupos sociais,
sendo necessária sua circulação por diferentes espaços e estabelecimentos a fim de
crescerem e se desenvolverem – escolas, clínicas médicas e hospitais, clubes recrea-
tivos, cursos profissionalizantes e de idiomas, etc. Nesta circulação e movimentação
social da criança e do adolescente, o contato com seres humanos de diferentes gêne-
ros, orientações sexuais e estilos de vida é inevitável. Assim, torna-se, no mínimo,
ingênuo, afirmar que crianças e adolescentes criados por famílias homoparentais não
estabelecem relacionamentos sociais com pessoas de gêneros e orientações sexuais
distintos dos de seus pais ou mães.
2 Considerações sobre os debates acerca da adoção homoparental 83

tal comprometida devido à falta das funções paterna e ma-


terna. Assim, com o objetivo de esclarecer a concepção
lacaniana de função paterna e função materna, bem como
dissertar sobre a função normatizadora do pai, trabalhare-
mos com O Seminário de Jacques Lacan – principalmente
algumas lições de O Seminário, LivroV: As formações do incons-
ciente (LACAN, 1957-58/1999) – e, também, com alguns
textos publicados em Escritos (LACAN, 1998) e em Outros
Escritos (LACAN, 2003).
De início, consideramos importante afirmar que
a tendência social de associar a função paterna à fi-
gura do homem e a função materna a uma mulher é
motivada por dados histórico-culturais e ideológicos
construídos e consolidados pela civilização ocidental,
comumente apresentada como ordenação divina ou
regulação natural (LAIA, 2008). É, exatamente, este
caráter divino e natural das funções parentais que Ja-
cques Lacan, desde o texto sobre Os complexos fami-
liares na formação do indivíduo (LACAN, 1938/2008),
desconstrói, tratando a família como uma construção
social. Em suas próprias palavras, “a família humana é
uma instituição” (p.08).
No texto sobre Os Complexos Familiares, Lacan
(1938/2008) ressaltou que nenhum grupo humano é ca-
paz de transmitir a cultura a um indivíduo como a família.
Esta transmissão cultural consiste “na repressão dos ins-
tintos, na aquisição da língua acertadamente chamada de
materna” e, também, no imprimir “estruturas de compor-
tamento e de representação cujo jogo ultrapassa os limites
da consciência” (LACAN 1938/2008, p.09).
84 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

Se, com efeito, a família humana nos


permite observar nas fases mais prime-
vas das funções maternas, por exem-
plo, alguns traços de comportamento
instintivo, identificáveis aos da família
biológica, basta pensarmos no que o
sentimento de paternidade deve aos
postulados espirituais que marcaram
seu desenvolvimento, para compreen-
dermos que nesse domínio as instâncias
culturais dominam as naturais, ao ponto
de não se poderem considerar parado-
xais os casos em que umas substituem
as outras, como na adoção. (LACAN,
1938/2008, p.08)

O “sentimento de paternidade”, enquanto constru-


ção cultural ligada “aos postulados espirituais”, na concep-
ção de Lacan (1938/2008), é dissociado do instinto ou do
traço biológico que supostamente autorizaria ou desauto-
rizaria a maternidade e a paternidade.
Certamente, é por meio da família que a criança
se humaniza, apropria-se das palavras e constitui-se en-
quanto sujeito. Contudo, a família, na perspectiva laca-
niana, não é constituída, simplesmente, pelo matrimô-
nio e a procriação. A instituição familiar, na perspectiva
de Jacques Lacan, forma-se “pelo Nome-do-Pai como
função, o Desejo da Mãe, e a criança como resto dessa
cópula impossível” (ROSA, 2000, p. 25). Diante disso,
passamos a dissertar sobre a função paterna e a função
materna na concepção lacaniana, a fim de tecermos al-
gumas considerações sobre a constituição do sujeito nas
famílias homoparentais.
2 Considerações sobre os debates acerca da adoção homoparental 85

2.2.1 Da mãe

No texto Nota sobre a criança, Lacan (1969/2003)


ressaltou que as funções paterna e materna possibilitam
à criança relacionar-se com “um desejo que não seja anô-
nimo” – o que proporciona à criança algo que vai além
da satisfação das necessidades e da sobrevivência orgâni-
ca: “uma constituição subjetiva” (LACAN, 1968/ 2003,
p.369). Neste texto, Lacan apresentou as funções paren-
tais da seguinte maneira:
Da mãe, na medida em que seus cui-
dados trazem a marca de um interesse
particularizado, nem que seja por inter-
médio de suas próprias faltas. Do pai, na
medida em que seu nome é o vetor da
encarnação da Lei no desejo. (LACAN,
1968/2003, p.369)

Contrário ao que alguns profissionais de Ciências


Humanas insistem em afirmar, a função materna, na pers-
pectiva lacaniana, não se caracteriza pela atuação da mu-
lher em sentido físico e estrito, mas ao conferir cuidados
e assistência a uma criança. É importante destacar que La-
can, quanto à função materna, escreveu sobre “a marca de
um interesse particularizado”, isto é, alguém que encontra
na figura da criança um jeito de compensar suas próprias
faltas, dedicando a ela sua atenção e o seu afeto (LACAN,
1968/2003; LAIA, 2008).
Com Lacan (1956-57/1995. 1969/2003), pode-
mos afirmar que uma pessoa só se inscreve como mãe para
uma criança a partir do momento em que supre, ainda
que incompletamente, as necessidades desta criança. As-
86 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

sim, inferimos que uma criança só é tomada como filho


por alguém que se presta ao exercício da função materna,
quando a criança ameniza, ainda que incompletamente, a
falta constitutiva deste alguém. Mais uma vez, não se tra-
ta de uma questão de gênero, de orientação sexual ou de
anatomia. No que diz respeito à mãe, trata-se de alguém
que suponha ter na figura do filho a satisfação de uma falta
primitiva ou a reparação de uma perda incontestável.
Isto coloca em evidência a impossibilidade de afir-
marmos uma relação dual e completa entre a mãe e o fi-
lho. Pois, ao ser a mãe esta pessoa prestativa que dedica
uma atenção peculiar à criança motivada pela possibili-
dade de reparar sua falta constitutiva, a questão fálica é
apresentada. Em A significação do falo, Lacan (1958/1999)
afirmou que as consequências do Complexo de Castração
para um sujeito mostram-se, dentre outras maneiras, pela
forma como este responde às necessidades de seu parcei-
ro amoroso e, também, em como este acolhe “com jus-
teza as [necessidades] da criança daí procriada” (LACAN,
1958/1999, p.692). A resposta subjetiva do sujeito quanto
à paternidade ou à maternidade, em muito, é influenciada
por sua relação com o significante fálico.
Segundo Claude Conté (1996), “a criança só tem va-
lor para a mãe na medida em que satisfaz mais ou menos
para ela ao Penisneid, a inveja do pênis” (p. 334). Assim,
é esperado que apareça a pergunta: como um ser dotado
do órgão sexual masculino, então, pode exercer a função
materna para uma criança?
Ora, ao tomarmos o termo utilizado por Lacan
(1969/2003), em sua Nota sobre a criança, para falar do pai
2 Considerações sobre os debates acerca da adoção homoparental 87

e da mãe, isto é, “funções”, afirmamos a distância e a im-


possibilidade de tomarmos como iguais o exercício da fun-
ção e aquele que a exerce. Isto implica em que o exercício
da função materna não está intrinsecamente relacionado à
capacidade de gestar e parir uma criança.
Ao tomarmos O Seminário, Livro V, de Jacques Lacan
(1957-58/1999), detectamos que a mãe foi apresentada
em suas lições como análoga a um desejo. Neste seminário,
Lacan (1957-58/1999) utilizou, diversas vezes, a expres-
são “desejo da mãe” e, ao expor sua concepção do Comple-
xo de Édipo, ressaltou a importância da relação da criança
com o desejo materno. Romildo do Rêgo Barros (2011),
em uma aula do Curso Livre “Mães Lacanianas”, ministrado
com Marcus André Vieira na Escola Brasileira de Psicanáli-
se – Seção Rio de Janeiro, chamou a atenção de seus ou-
vintes para o fato de que, quanto à mãe, não se trata de um
sujeito, mas, “a mãe é um desejo” (BARROS, 2011).
O desejo da mãe, como apresentado por Lacan
(1957-58/1999), pode ser abordado por duas perspectivas
diferentes: pela perspectiva daquele que exerce a função
materna e pela perspectiva da criança. Em ambas as pers-
pectivas – a daquele que exerce a função materna e a da
criança – podemos detectar o falo como operador. Quanto
ao desejo da mãe na perspectiva daquele que exerce a fun-
ção materna, este diz respeito à tentativa de restituir uma
falta primordial; refere-se à suposição de que, por meio
do cuidar da criança, uma satisfação será encontrada. Con-
tudo, a lida cotidiana com o filho revela-se impossível de
suprir totalmente o anseio daquele que materna, levando
este que exerce a função da mãe a afastar, por alguns mo-
88 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

mentos, da criança e dirigir-se a outros objetos (LACAN,


1958/1999. LACAN, 1957-58/1999. BARROS, 2011).
É a mãe que vai e vem. É por eu ser um
serzinho já tomado pelo simbólico, e
por haver aprendido a simbolizar, que
podem dizer que ela vai e que ela vem.
[...] A pergunta é: qual é o seu signifi-
cado? O que quer essa mulher aí? Eu
bem que gostaria que fosse a mim que
ela quer, mas está muito claro que não
é só a mim que ela quer. Há outra coisa
que mexe com ela – é o x, o significa-
do. E o significado das idas e vindas da
mãe é o falo. (LACAN, 1957-58/1999,
p.180-181)

Assim, o desejo da mãe inscreve-se como questão


para a criança, instaurando o desejo de ser o desejo da mãe
no pequeno infans. Da perspectiva da criança, o desejo
da mãe se apresenta como pergunta e, ao mesmo tempo,
como querer ser aquilo que aquele que exerce a função
materna busca em outros lugares, em outros objetos e em
outras relações. Em suma, trata-se de querer ser o falo.
Digo que há uma relação entre esse ter-
nário simbólico e o que trouxemos aqui,
no ano passado, sob a forma do ternário
imaginário, para lhes apresentar a rela-
ção da criança com a mãe, na medida em
que a criança revela depender do dese-
jo da mãe, da primeira simbolização da
mãe como tal, e de nada mais. Através
dessa simbolização, a criança desvincula
sua dependência efetiva do desejo ma-
terno da pura e simples vivência dessa
2 Considerações sobre os debates acerca da adoção homoparental 89

dependência e alguma coisa se institui,


sendo subjetivada num nível primário
ou primitivo. Essa subjetivação consis-
te, simplesmente, em instaurar a mãe
como aquele ser primordial que pode
estar ou não estar presente. No desejo
da criança, em seu desejo próprio, esse
ser é essencial. O que deseja o sujeito?
Não se trata da simples apetência das
atenções, do contato ou da presença da
mãe, mas da apetência de seu desejo.
(LACAN, 1957-58/1999, p.188)

Julgamos importante registrar que, em sua Nota so-


bre a criança, Lacan (1969/2003) escreveu sobre a função
exercida pela criança na economia libidinal daquele que se
presta à função materna. Ao ter escrito que a criança “rea-
liza a presença [...] do objeto a na fantasia” da mãe, Lacan
(1969/2003, p.370) atualizou a questão do desejo da mãe
apresentada em O Seminário, LivroV, uma vez que chamou a
atenção dos seus leitores para as especificidades do efeito
deste desejo em cada uma das estruturas: neurótica, per-
versa ou psicótica.
Em O Seminário, Livro XVII, Lacan (1969-70/1992)
foi enfático ao afirmar que não é possível um sujeito man-
ter-se indiferente ao desejo da mãe. Ao ter convocado seus
alunos a se atentar para a participação da mãe na constitui-
ção subjetiva da criança, Lacan (1969-70/1992) afirmou
que a relevância desta participação encontra-se nos efeitos
do desejo materno.
O papel da mãe é o desejo da mãe. É
capital. O desejo da mãe não é algo que
se possa suportar assim, que lhes seja
90 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

indiferente. Carreia sempre estragos.


Um grande crocodilo em cuja boca vo-
cês estão – a mãe é isso. Não se sabe
o que pode lhe dar na telha, de estalo
fechar sua bocarra. O desejo da mãe é
isso. (LACAN, 1969-70/1992, p.118)

Ao considerarmos que a função materna é estrutu-


rante para a subjetividade da criança, ressaltamos a impor-
tância do cuidado responsável e do afeto dedicados por
um adulto a um pequeno ser. Afinal, em sua condição de
imaturidade e desamparo, a criança depende da platafor-
ma desejosa que o adulto disposto ao exercício da função
materna lhe oferece para crescer e fazer-se sujeito. Res-
saltamos a questão do desejo da mãe em sua relação com
o significante fálico, exatamente, por compreendermos
que é este ponto subjetivo que nos impossibilita de cair no
equívoco da associação da função materna à puericultura
e, também, do sexo anatômico feminino.
Assim, não encontramos nos textos de Jacques La-
can uma associação clara e direta entre o exercício da fun-
ção materna à anatomia genital feminina. Diferente de uma
construção estereotipada de gênero, a maternidade, na
perspectiva psicanalítica lacaniana, relaciona-se com um de-
sejo – o desejo da mãe. A função da mãe é sustentada pela
suposição de que uma impossível plenitude será alcançada
por meio da interação com a criança chamada de “meu” filho.

2.2.2 Do pai

Na lição do dia 15 de janeiro de 1958 do Seminário


sobre As formações do Inconsciente, Lacan (1957-58/1999)
2 Considerações sobre os debates acerca da adoção homoparental 91

buscou esclarecer aos seus alunos a função do pai na cons-


tituição subjetiva da criança. Jacques Lacan, nesta lição de
seu seminário, foi enfático ao afirmar que a função paterna
relaciona-se com a metáfora paterna19. Diante disso, fala-
remos, a seguir, da tese lacaniana do pai enquanto metáfo-
ra e da função do pai simbólico. Desta forma, objetivamos
tecer algumas considerações sobre o exercício da função
paterna nas famílias homoparentais.
Nas lições de O Seminário de Lacan ministradas nos
anos de 1957 e 1958, podemos perceber uma ênfase dada
pelo psicanalista às questões referentes ao Simbólico e,
consequentemente, à estrutura da linguagem. A influência
da Antropologia Estrutural de Lévi-Strauss, bem como da
Linguística de Saussure e de Jakobson, sobre o ensino de
Lacan, pode ser notada quando lemos as transcrições das
lições dos seminários ministrados nesta época e, também,
os textos redigidos e publicados neste período.
Assim, ao referir-se à função paterna, Lacan (1957-
58/1999) chamou a atenção de seus alunos para o fato de
que muitos psicanalistas enveredaram-se pelos caminhos
personalistas e descritivos do pai, desprezando as questões
de estrutura relacionadas ao Complexo de Édipo e à cons-
tituição subjetiva. Lacan, neste período de seu ensino, foi
incisivo ao afirmar que é por meio da experiência edípica
que a estruturação subjetiva da criança ocorre e, também,
a sua identificação sexual.
[...] o complexo de Édipo tem uma fun-
ção normativa, não simplesmente na es-
trutura moral do sujeito, nem em suas
19
“A metáfora paterna, pois, concerne à função do pai, como se diria em termos de
relações inter-humanas.” (LACAN, 1957-58/1999, p.166)
92 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

relações com a realidade, mas quanto à


assunção de seu sexo – o que, como vo-
cês sabem, sempre persiste, na análise,
dentro de uma certa ambiguidade. [...]
A virilidade e a feminização são os dois
termos que traduzem o que é, essen-
cialmente, a função do Édipo. (LACAN,
1957-58/1999, p.170-171)

Reconhecendo a importância da vivência edípica


para a formação do sujeito, Lacan (1957-58/1999) co-
locou-se a falar sobre a função do pai nesta experiência
estruturante da subjetividade, convocando seus alunos a
atentarem-se para o que, realmente, significam a presen-
ça e a ausência paterna, pois, “percebeu-se então que um
Édipo podia constituir-se muito bem, mesmo quando o
pai não estava presente” (LACAN, 1957-58/1999, p.172).
No entender de Lacan (1957-58/1999), as primei-
ras elaborações psicanalíticas atribuíam aos adoecimentos
neuróticos um excesso de “presença paterna”, contribuin-
do para a formação de uma representação imaginária do
pai terrível e/ou agressivo. Posteriormente, as discussões e
os textos produzidos sobre o drama edípico e, consequen-
temente, a questão do pai, começaram a destacar “as ca-
rências paternas”, isto é, os possíveis efeitos danosos para a
subjetividade da criança causados pelos “pais fracos, os pais
submissos, os pais abatidos, os pais castrados pela mulher,
enfim, os pais enfermos, os pais cegos, os pais cambaios,
tudo o que quiserem” (LACAN, 1957-58/1999, p.173).
Assim, diante de seus ouvintes, Lacan (1957-
58/1999) pontuou três questões sobre o pai e a sua função
na constituição da subjetividade que se mostram atuais e
2 Considerações sobre os debates acerca da adoção homoparental 93

relevantes no cenário em que vivemos. São elas: a questão


da presença e da ausência do pai; a questão da carência pa-
terna e a questão da normalidade do pai. Ao abordar cada
uma destas questões sobre o pai, Lacan combateu alguns
equívocos e desfez alguns preconceitos de seus alunos a
fim de possibilitar-lhes compreender o que chamava de
metáfora paterna.
Quanto à questão da ausência e da presença do pai,
Lacan a abordou não por um dado concreto e do meio
ambiente. Isto é, uma perspectiva ambientalista da função
paterna não se sustenta quando identificamos a inscrição
do Significante Nome-do-Pai mesmo quando o pai não
está presente. A vivência edípica é constatada mesmo “nos
casos em que o pai não está presente, em que a criança
é deixada sozinha com a mãe” (LACAN, 1957-58/1999,
p.173). E, curiosamente, antes que pudesse ser questio-
nado quanto às características peculiares do Complexo de
Édipo das crianças criadas apenas pela mãe, Lacan disse
que estes são estabelecidos “de maneira exatamente ho-
móloga a dos outros casos” (LACAN, 1957-58/1999,
p.173). Complexos de Édipo normalizadores e, também,
neurotizantes, à semelhança dos que ocorrem nas famílias
constituídas por um homem, uma mulher e seus filhos, se
formam nas configurações familiares em que o pai con-
creto não está presente no ambiente doméstico (LACAN,
1957-58/1999).
Sobre a carência paterna, Lacan nos ensinou que
“nunca se sabe em que o pai é carente” (LACAN, 1957-
58/1999, p.173). Diferente das abordagens personalistas
da função paterna, a Psicanálise, na perspectiva lacaniana,
94 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

não concebe a falta de dinheiro, a escassez de bondade ou a


pouca instrução escolar formal do pai como elementos de-
terminantes para a constituição subjetiva da criança. Nesta
lição de janeiro de 1958, Lacan (1957-58/1999) afirmou
que ao falarmos da carência do pai na família, não falamos
da carência do pai no Complexo de Édipo. Os aspectos bio-
gráficos do pai, por si só, não são suficientes para concluir-
mos por sua ineficiência ou carência na estrutura edípica.
Referente à normalidade do pai, Lacan (1957-
58/1999) disse que uma confusão de orientação pode ser
encontrada quando os praticantes da Psicanálise equivalem
o “pai como normativo” ao pai normal. Na concepção la-
caniana, tomar a saúde mental do pai como determinante
para o enlouquecimento ou a lucidez dos filhos “é rejeitar
a questão para o nível da estrutura – neurótica, psicótica
– do pai”, desconsiderando que “a normalidade do pai é
uma questão, e a de sua posição normal na família é ou-
tra” (LACAN, 1957-58/1999, p.174). Assim, a dimensão
caracterológica e diagnóstica do pai não nos possibilitam
estabelecermos maiores ou menores valores à sua função
na estrutura do Complexo de Édipo.
Diante disso, Lacan prosseguiu sua lição enfatizando
que, quanto à estruturação do sujeito, o pai que se inscreve
e é eficiente em sua função não é o pai agressivo, não é o
pai permissivo, não é o pai saudável ou o pai humilde. Tra-
ta-se do pai simbólico, isto é, “o pai é uma metáfora” (LA-
CAN, 1957-58/1999, p.180). Que isto quer dizer, “o pai
é uma metáfora”? A metáfora é um recurso de linguagem
caracterizado pela substituição de um termo por outro
termo, produzindo um novo sentido às palavras até então
2 Considerações sobre os debates acerca da adoção homoparental 95

comumente empregadas. Sendo assim, Lacan apresentou


aos seus alunos e ouvintes uma concepção do pai que con-
grega elementos teóricos da Linguística e da Psicanálise:
“o pai é um significante que substitui um outro significan-
te” (LACAN, 1957-58/1999, p.180).
A função paterna, neste período do ensino de Lacan,
foi apresentada como um significante que substitui o pri-
meiro significante da simbolização, ou seja, o significante
da mãe (LACAN, 1957-58/1999). Como anteriormente
exposto, aquele que exerce a função materna, nos cuida-
dos e atenção dedicados à criança, inscreve-se como matriz
simbólica primordial à medida em “que vai e que vem”, à
medida que dispensa afeto ao pequeno e, em seguida, se
ausenta, voltando-se para outra coisa. São estas idas e vin-
das daquele que exerce a função materna que possibilitam
o surgimento da pergunta pelo desejo da mãe na criança.
Na lição com que aqui trabalhamos, Lacan falou sobre a
constatação, por parte da criança, de que há “outra coisa
que mexe” com a mãe. Esta outra coisa que atrai a atenção
materna, segundo Lacan, “é o x, o significado. E o signi-
ficado das idas e vindas da mãe é o falo” (LACAN, 1957-
58/1999, p.181).
Neste processo, a via metafórica ou simbólica re-
vela-se como o caminho normatizador do Complexo de
Édipo. O significante paterno substitui o significante ma-
terno, apoderando-se do objeto do desejo da mãe, “que
então se apresenta sob a forma do falo” (LACAN, 1957-
58/1999, p.181).
Digo exatamente: o pai é um signifi-
cante que substitui um outro signifi-
96 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

cante. Nisto esta o pilar, o pilar essen-


cial, o pilar único da intervenção do
pai no complexo de Édipo e, não sen-
do neste nível que vocês procuram as
carências paternas, não irão encontrá-
-las em nenhum outro lugar. (LACAN,
1957-58/1999, p.180)

Sendo assim, não nos é possível considerar a hete-


rossexualidade ou a homossexualidade daquele que exer-
ce a função do pai como um facilitador ou dificultante da
constituição subjetiva da criança. Entendemos que atentar-
se para as peculiaridades e as preferências sexuais do pai,
inferindo nestas haver elementos decisivos para a consti-
tuição da subjetividade da criança, seria abordar a questão
paterna por um viés biográfico, personalista e/ou caracte-
rológico – abordagens que se distanciam daquela apresen-
tada por Lacan em sua lição sobre a metáfora paterna. Não
encontramos elementos teóricos que justifiquem associar
a função do pai no ensino clássico de Lacan à presença físi-
ca de um ser humano dotado do órgão sexual masculino e
sexualmente atraído por uma pessoa do sexo oposto.
Essa é uma dimensão que, é claro, é
igualmente da ordem do significante, e
que se encarna em pessoas que susten-
tam essa autoridade. Que essas pessoas
faltem, vez por outra, ou que haja ca-
rência paterna, por exemplo, no senti-
do de o pai ser imbecil demais, não é
o essencial. O essencial é que o sujeito,
seja por que lado for, tenha adquirido a
dimensão do Nome-do-Pai. [...] Acon-
tece, efetivamente, é claro, e vocês po-
2 Considerações sobre os debates acerca da adoção homoparental 97

dem levantar nas biografias, que o pai,


muitas vezes, está presente para lavar a
louça da cozinha com o avental da mu-
lher. Isto não basta, em absoluto, para
determinar uma esquizofrenia. (LA-
CAN, 1957-58/1999, p.162)

Ao retomarmos a concepção de função paterna


apresentada por Lacan (1969/2003) em sua Nota sobre a
criança, identificamos o destaque que o psicanalista fran-
cês concedeu ao nome, ao significante do pai: “Do pai, na
medida em que seu nome é o vetor da encarnação da Lei
no desejo” (LACAN, 1968/2003, p.369). Esta associa-
ção lacaniana do pai a um nome diz respeito à inserção da
criança em um universo simbólico e ao traço peculiar de
uma família. Trata-se da interdição paterna sobre o desejo
da mãe, impedindo que esta reintegre seu produto e pos-
sibilitando à criança atingir a estatura de sujeito desejante.
Desta forma, a partir da inscrição do nome, uma criança
deixa de ser apenas mais uma e torna-se pertencente a um
grupo, a um núcleo, a um lar. Trata-se de fazer com que
uma criança “deixe de ser uma ‘criança qualquer’ e se tor-
ne, para um pai, ‘a sua criança’” (LAIA, 2008, p.33).

2.2.3 Uma pequena nota sobre a normalidade

No texto A perda da realidade na neurose e na psico-


se, Freud (1924/1996) afirmou que tanto na loucura,
quanto no adoecimento neurótico, uma atrapalhação na
relação do sujeito com a realidade pode ser identificada.
De acordo com Freud, na neurose há um afrouxamento
dos laços do sujeito com a realidade, enquanto na psi-
cose detectamos uma ruptura destes laços. Por meio das
98 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

construções delirantes ou das fantasias e devaneios, o


relacionamento dos sujeitos com a realidade não ocor-
re sem interferências subjetivas. Julgamos necessário
recordar este princípio freudiano porque nele encon-
tramos a impossibilidade de clara delimitação e precisa
separação entre o normal e o patológico.

2.3 Quanto ao estigma e ao preconceito social

Como citamos no início deste capítulo, um dos ar-


gumentos utilizados por autoridades eclesiásticas e jurídi-
cas em diferentes localidades do mundo para justificar suas
posições contrárias à adoção de crianças e adolescentes
por casais homoafetivos consiste em dizer que estas crian-
ças e estes adolescentes sofrerão preconceitos sociais que
lhes serão danosos no desenvolvimento da vida comunitá-
ria (LE CAMUS, 2005; APA, 2005; CFP, 2008).
Falas como “a nossa sociedade não está preparada para
isto” ou, então, “as instituições não sabem lidar com estes tipos
de família”, repetem-se no cotidiano homofóbico e reve-
lam a dissimulação daqueles que reconhecem a hostilidade
social para com os homossexuais, contudo, recusam-se a
promover aquilo que pode combatê-la: a garantia de direi-
tos. A intolerância para com a diversidade sexual e familiar
se expressa nas agressões físicas e verbais, na restrição de
direitos e na insistência de algumas instituições sociais em
manter as práticas discursivas homofóbicas.
Os termos tolerância e, consequentemente, intole-
rância, surgiram ao longo do século XVI com a necessida-
de da criação de padrões de convívio entre cristãos pro-
testantes e cristãos católicos na Europa. Posteriormente, a
2 Considerações sobre os debates acerca da adoção homoparental 99

palavra tolerância ganhou a conotação de gentileza e cui-


dado para com o outro, bem como “respeito pela opinião
de outrem, [...] consideração à liberdade de pensamento e
da fé” (FUKS, 2007, p.60). Aproximadamente quatro sé-
culos após a veiculação do termo tolerância na Europa, as
experiências dos campos de concentração do regime na-
zista revelaram a mais severa manifestação da intolerância:
o sistemático extermínio do outro.
Em sua Proposição de 9 de outubro de 1967, Lacan
(1967/2003) deixou registrado que, no seu entender, os
pensadores contemporâneos “não se concentraram o bas-
tante” no assunto dos campos de concentração. De acor-
do com Lacan (1967/2003), a experiência dos campos de
concentração foi precursora por mostrar as consequências
da ciência sobre os grupos sociais: “a universalização que
ela ali introduz” (LACAN, 1967/2003, p.263). Por meio
das técnicas de seleção e identificação, a separação dos in-
divíduos em grupos homogeneizados coloca em evidência
o fenômeno da segregação. Nas palavras de Lacan: “Nos-
so futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio
numa ampliação cada vez mais dura dos processos de se-
gregação” (LACAN, 1967/2003, p.263).
Segregar é o mesmo que separar e apartar. Trata-se
do oposto de mesclar (MAZZUCA, 1992). Entendemos
que a nomeação de especificidades e características pecu-
liares de indivíduos ou grupos produz uma segregação ine-
vitável. Contudo, não concordamos que as convivências
de diferentes organizações afetivas e estilos de vida sejam
prejudiciais às subjetividades. Por mais problemático e, às
vezes, polêmico seja o posicionamento da Psicanálise dian-
100 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

te das questões sociais, compreendemos que este consiste


na defesa das diferenças e das singularidades – e não no
extermínio delas (HARARI & FROTA NETO, 2010).
Diante disso, os esforços políticos e sociais que vi-
sam à proibição da adoção de crianças e adolescentes por
casais homoafetivos baseiam-se em códigos e doutrinas
que, em princípios, nada comungam com a perspectiva
psicanalítica lacaniana. Ao enfatizarmos a questão da ca-
pacidade de um sujeito responsabilizar-se por seu desejo
de tornar-se pai ou mãe, evocamos a necessidade da es-
cuta atenciosa – e não preconceituosa – no decorrer dos
processos de adoção movimentados por homossexuais,
heterossexuais ou bissexuais. Isto porque reconhecemos a
importância da presentificação de um desejo não anônimo
para a subjetividade da criança (LACAN, 1969/2003). As-
sim, colocamo-nos a dissertar sobre o não anonimato do
desejo estruturante para a subjetividade de um filho.
3 Um desejo não anônimo

Henrique e eu voltamos a conversar


sobre o nosso sonho de sermos pais.
Um desejo antigo que se tornou reali-
dade a partir do pedido de adoção feito
três anos antes de elas chegarem. Em
nossas conversas, discutíamos perdas e
ganhos da paternidade: nossas viagens,
nossas idas ao cinema e nossa intimida-
de. Como seria viver com duas crianças
dentro de casa? Como nos relaciona-
ríamos com a escola onde elas iriam
estudar? O que os vizinhos pensariam
ao verem duas meninas morando com
dois homens? E os amigos e a família,
iriam aceitá-las? Eram muitas pergun-
tas e poucas respostas e a maioria de
nossos questionamentos nem de longe
contemplava trâmites e batalhas legais.
(PEREIRA, 2013, p.21)

Lacan (1969/2003), em sua Nota sobre a criança,


afirmou que a constituição subjetiva da criança relaciona-
se “com um desejo que não seja anônimo” (p. 369). Para
além da satisfação das necessidades básicas e daquilo que
102 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

é capaz de garantir uma sobrevivência, na concepção psi-


canalítica lacaniana, o que possibilita a formação de um
sujeito é a presentificação de um desejo.
Assim, nas páginas que se seguem, dissertaremos
sobre o “desejo que não seja anônimo” apresentando duas
possibilidades de leitura não excludentes desta expressão de
Lacan (1969/2003): uma que implica na responsabilidade
de um sujeito que requer uma determinada criança como
seu filho e outra que se relaciona com a noção de père-version
apresentada por Jacques Lacan (1974-75/1975) em O Se-
minário, Livro XXII. Entretanto, partiremos de uma apresen-
tação geral da Nota sobre a criança (LACAN, 1969/2003, p.
369) e, feito isto, apresentaremos as duas possíveis interpre-
tações do que venha a ser “um desejo que não seja anônimo”.

3.1 A Nota sobre a criança

A Nota sobre a criança de Jacques Lacan (1969/2003),


originalmente, foi escrita à mão em 1969 por seu autor e
cedida à Jenny Aubry (1903 – 1987) que a publicou, pela
primeira vez, em 1983. Jenny Aubry foi uma psicanalis-
ta francesa que submeteu-se à formação didática regulada
pela Associação Internacional de Psicanálise (IPA) e, ao ter
laços de amizade estreitados com Lacan, acompanhou seus
seminários e movimentos de fundação da Escola da Causa
Freudiana de Paris. Interessada no diálogo entre a neuro-
logia, a psiquiatria e a Psicanálise, Jenny Aubry dedicou
significativa parcela de sua experiência clínica e teórica à
análise de crianças (ROUDINESCO, s.d./2016).
Apesar de curta, a Nota sobre a criança é um texto
de Lacan (1969/2003) eminentemente clínico e que pro-
3 Um desejo não anônimo 103

duz efeitos de orientação para o trabalho dos praticantes


da Psicanálise nos mais distintos contextos. Isto porque,
em nosso entender, nesta nota, Lacan (1969/2003) con-
densou elementos expressivos de sua teoria e apresentou
diretrizes operacionais clínicas coerentes com estes ele-
mentos. Quanto ao condensar elementos teóricos em a
Nota sobre a criança, destacamos as construções das frases
de Lacan (1969/2003): são repletas de conceitos e noções
peculiares ao seu trabalho20. Sobre as diretrizes clínicas e
as indicações operacionais coerentes com os elementos te-
óricos, ressaltamos as questões sobre o manejo e o traba-
lho com o sintoma da criança. Nas palavras do autor: “O
sintoma pode representar a verdade do casal familiar. Esse
é o caso mais complexo, mas também o mais acessível a
nossas intervenções.” (LACAN, 1969/2003, p.369).
Redigida em um contexto de manifestações políticas
e revoluções estudantis que contestavam as tradições e os
costumes institucionais, a Nota sobre a criança (1969/2003)
trouxe, logo no início, um parecer de seu autor sobre as
“utopias comunitárias”: elas fracassaram. Sérgio Laia
(2013), bem como Eric Laurent (2007), afirmou que o
Lacan escritor de Nota sobre a criança do final da década
de 1960 testemunhou a fomentação de propostas libertá-
rias e horizontais da década de 1930, no contexto do pós-
guerra, e constatou o fracasso destas propostas na Europa
que inspirava-se contra o totalitarismo. De acordo com
Laurent, “para Lacan, que conhecera os anos 30, o ano de
20
Podemos exemplificar com a seguinte frase de a Nota sobre a criança: “Do pai, na
medida em que seu nome é a encarnação da Lei no desejo.” (LACAN, 1969/2003,
p.369). Nesta frase encontram-se, articulados, alguns conceitos e noções psicanalí-
ticos – função, Lei e desejo.
104 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

1968 foi somente uma repetição do mesmo fenômeno”21


(LAURENT, 2007, p.38). Isto porque as perspectivas pe-
dagógicas e educativas que floresceram na Europa após a
Primeira Guerra Mundial, em muito, assemelhavam-se às
práticas contraculturais e aos experimentos de vida comu-
nitária da década de 1960 (LAIA, 2013).
Desperta a atenção dos leitores de Nota sobre a criança
interessados nos assuntos referentes à família a afirmação
que Lacan (1969/2003) redigiu logo após emitir seu pare-
cer sobre as “utopias comunitárias”: “A função de resíduo
exercida (e, ao mesmo tempo, mantida) pela família conju-
gal na evolução das sociedades destaca a irredutibilidade de
uma transmissão” (p.369). Ao ter destacado a função resi-
dual da família conjugal na sociedade, Lacan despertou seus
leitores para o fato de que, apesar das tentativas de vida em
comunidade, bem como da total coletivização da experiên-
cia cotidiana, uma transmissão e uma orientação subjetivas
são peculiares à inscrição do par parental para a criança.
Isto porque, por meio das funções parentais, a criança entra
em contato com “um desejo que não seja anônimo” (LA-
CAN, 1969/2003, p.369). Sendo assim, propomo-nos es-
clarecer a que se refere o não anonimato do desejo com o
qual a constituição subjetiva da criança relaciona-se.

3.2 O desejo não anônimo e o desejo de adoção

Sérgio Laia (2008), em uma cartilha do Conselho


Federal de Psicologia publicada em 2008, teceu algumas
considerações sobre a adoção homoparental e o casamento
homoafetivo na perspectiva psicanalítica e, textualmente,
21
“Para Lacan, que conociera los años 30, el año de 1968 fue solamente una repeti-
ción del mismo fenômeno” (LAURENT, 2007, p.38).
3 Um desejo não anônimo 105

afirmou que o processo de filiação não é natural, caracte-


rizando-se por uma “adoção simbólica”. De acordo com
o psicanalista, “é a partir de um processo de “adoção sim-
bólica” que os seres humanos são “batizados” como “pai”,
“mãe” e “filho(a)” e, ao se reconhecerem assim [...], eles
se tornam, no dia a dia de suas existências, efetivamente
“pai”, “mãe” e “filhos”” (LAIA, 2008, p.31). Assim, de for-
ma geral, a família, seja esta homoparental ou não, é ca-
racterizada por uma operação em que sujeitos consentem
em submeter-se a significantes que delimitam as funções
parentais e, consequentemente, o produto destas – o filho.
Na sequência de seu texto, Laia (2008) recorreu à
Nota sobre a criança e propôs uma interpretação possível
à questão do “desejo que não seja anônimo” relacionada à
“adoção simbólica” apresentada anteriormente. Retome-
mos, primeiro, o seguinte trecho do referido texto:
A função de resíduo exercida (e, ao
mesmo tempo, mantida) pela família
conjugal na evolução das sociedades
destaca a irredutibilidade de uma trans-
missão – que é de outra ordem que não
a da vida segundo a satisfação das ne-
cessidades, mas é de uma constituição
subjetiva, implicando a relação com um
desejo que não seja anônimo. (LACAN,
1969/2003, p.369)

De acordo com Laia (2008), podemos responder a


pergunta sobre o desejo não anônimo apontando para o de-
sejo evidenciado na fala de um sujeito que se responsabiliza
pela declaração: “quero essa criança como meu filho” (p.32).
A verificação, em cada requerimento de adoção, da presen-
106 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

ça de um sujeito que consinta com a responsabilidade por


esse querer uma criança como filho é, no entender de Laia
(2008), de grande importância. O desejo não anônimo con-
figura-se como um desejo capaz de possibilitar a um sujeito
o exercício de uma função parental (LAIA, 2008):
Afinal, quando alguém decide se tornar
pai ou mãe, um desejo de adoção colo-
ca-se em ato. Este ato é uma declaração
pública que diz sim à responsabilidade
de sustentar um processo particular de
filiação/adoção. Devemos, portanto,
averiguar, em cada situação, se a decla-
ração “quero essa criança como filho(a)”
comporta efetivamente o consentimen-
to com uma responsabilidade, se há
mesmo quem responda por este desejo
e se, por isso, ao ser o desejo de alguém,
não é anônimo, mas um desejo particu-
lar de sustentar, na lida com a criança,
as funções paterna e materna. (p.32)

Julgamos importante destacar que Sérgio Laia


(2008), no referido texto, enfatiza que a operação sim-
bólica formadora da subjetividade da criança não é carac-
terística de um modelo familiar específico, mas da família
de forma geral. Uma vez que a consanguinidade, por si só,
não é suficiente para o estabelecimento dos vínculos afeti-
vos e relacionais, a adoção que implica no consentimento
com responsabilidades específicas é marca inquestionável
dos processos de filiação – inclusive dos filhos chamados
“biológicos”. Dito de outra maneira, as transmissões gené-
ticas e a consanguinidade não implicam, necessariamente,
no sentimento de paternidade ou no sentimento de mater-
3 Um desejo não anônimo 107

nidade, nem mesmo no responsabilizar-se pelos cuidados


para com uma criança ou adolescente.
Em um texto posterior, publicado no livro orga-
nizado por Mônica Torres, Graciela Schnitzer, Alejandra
Antunã e Santiago Peidro, Sérgio Laia (2013) tratou da
questão do “desejo que não seja anônimo” em diálogo com
o Seminário de Jacques Lacan A dissolução. De acordo com
Laia (2013), na lição do Seminário de Lacan ministrada no
dia 10 de junho de 1980 encontramos algumas afirmações
que podem nos ajudar a elaborar algumas respostas à ques-
tão da constituição subjetiva e da família. Lacan (1980),
nesta lição de seu Seminário, referiu-se ao trauma do nas-
cimento teorizado por Otto Rank e afirmou que o único
traumatismo que marca a experiência humana é o do mal-
-entendido, uma vez que o corpo do homem é resultado
de uma linhagem (LACAN, 1980).
Mais que um amontoado de células e funções neuro-
químicas, o ser falante carrega as marcas de seus ascenden-
tes, pois, na concepção de Lacan, participa do “balbucio”
destes (LACAN, 1980; LAIA, 2013). Isto quer dizer que a
criança, constituída subjetivamente ao relacionar-se com
“um desejo que não seja anônimo”, é aquela inserida em
uma trama familiar caracterizada por incompletudes e de-
sentendimentos e que, ainda assim, encontra a decisão de
alguém que lhe diz: “tu és meu filho”.
O mal-entendido já está desde antes.
Na medida em que desde antes deste
belo legado vocês fazem parte (vous fai-
tes partie), ou melhor, participam (vous
faites part) do balbucio dos seus ascen-
dentes. [...] Não é preciso que vocês
108 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

mesmo balbuciem. Desde antes, o que


os sustenta a título do inconsciente, ou
seja, do mal-entendido, tem aí suas raí-
zes. (LACAN, 1980, p.12)

3.3 O desejo não anônimo e a père-version

Autorizamo-nos, aqui, a afirmar que o ensino de Ja-


cques Lacan é caracterizado por um jeito peculiar de o psi-
canalista trabalhar com as palavras: aquele que aponta para
o equívoco. Por meio de escansões, destaques homofôni-
cos e citações poéticas, Lacan produzia em seus analisantes
e alunos a constatação das ambiguidades, possibilidades e
limitações das palavras. Em uma lição de O Seminário, Li-
vro XXII, Lacan (1974-75/1975), ao tratar da questão do
pai, concedeu aos seus alunos mais uma oportunidade de
depararem-se com o equívoco das palavras. Tratou da père-
version. Vejamos:
Um pai só tem direito ao respeito, se-
não ao amor, se o-dito amor, o-dito res-
peito, estiver, vocês não vão acreditar
em suas orelhas, père-vertidamente orien-
tado, isto é, feito de uma mulher, objeto
pequeno a que causa seu desejo, mas o
que essa mulher em pequeno acolhe,
se posso me exprimir assim, nada tem
a ver na questão. Do que ela se ocupa,
são outros objetos pequenos a que são
as crianças junto a quem o pai então
intervém, excepcionalmente, no bom
caso, para manter na repressão, dentro
do justo semiDeus, se me permitem, a
versão que lhe é própria de sua pai-ver-
são. [...] Aí está o que deve ser um pai,
3 Um desejo não anônimo 109

na medida em que só pode ser exceção.


Ele só pode ser modelo da função rea-
lizando o tipo. Pouco importa que ele
tenha sintomas, se acrescenta aí o da
perversão paternal, isto é, que a causa
seja uma mulher que ele adquiriu para
lhe fazer filhos e que com estes, quei-
ra ou não, ele tenha cuidado paternal.
(LACAN, 1974-75/1975, p.23)

Neste momento de seu ensino, Lacan (1974-


75/1975) apresentou uma concepção do pai que reuniu
não apenas os aspectos estruturais e simbólicos divulgados
nas décadas de 1950 e 1960, mas, também, a dimensão
real caracterizadora do último período de sua obra. O
pai, pervertidamente orientado, é aquele que toma uma
mulher como objeto causa de seu desejo e, com esta mu-
lher, faz filhos (LACAN, 1974-75/1975). No trecho de O
Seminário, Livro XXII citado anteriormente, Lacan (1974-
75/1975) deixou implícito, mas facilmente identificável,
que a pervertida orientação do desejo do pai sinaliza pos-
sibilidades e interdições para o filho.
Entendemos que, nesta lição de O Seminário, Livro
XXII, Lacan (1974-75/1975) evocou um pai carnal que
comporta uma dimensão de gozo. Gozo este que, por tra-
tar-se do sexual em sentido freudiano, pode ser chamado
de perverso. De acordo com Freud (1905/1996), em seus
Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, toda a sexualidade
humana contém um componente perverso por não visar
única e exclusivamente os fins reprodutivos e os órgãos
genitais propriamente ditos. Nas palavras de Lacan: “Toda
sexualidade humana é perversa, se acompanhamos bem o
110 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

que diz Freud. Ele nunca conseguiu conceber tal sexuali-


dade sem ser perversa” (LACAN, 1975-76/2005, p.153).
Assim, ao ter falado sobre um pai pervertidamente
orientado em seu desejo, Lacan (1974-75/1975) consi-
derou uma dimensão da paternidade que, em nada, pode
ser chamada de abstrata ou excessivamente racional (CAS-
TRO, 2015). Parece-nos que o pai morto e, consequente-
mente, simbólico, nesta lição de O Seminário, Livro XXII,
foi substituído por um pai que deseja. Contudo, diante da
impossibilidade de se desejar A mulher, uma vez que esta
não existe, exatamente, por não estar totalmente inscrita
na função fálica, resta ao homem tomar sua companheira
por um traço, um detalhe, um objeto o qual ela se faz.
Enquanto uma possível interpretação ao “desejo que
não seja anônimo” (LACAN 1969/2003, p.369), essen-
cial para a constituição subjetiva da criança, propomos o
desejo pervertidamente orientado do pai apresentado na
lição do dia 25 de janeiro de 1975 de O Seminário, Livro
XXII de Lacan (1974-75/1975). Em nosso entender, não
é sem efeitos para a subjetividade da criança o fato de esta
relacionar-se com um par parental marcado pelo desejo.
Reconhecemos, aqui, a necessidade e a importância do
desenvolvimento desta hipótese teórica. Entretanto, infe-
rimos que o anonimato do desejo na père-version não se dá.
Ao contrário, é o fato de o desejo pervertidamente orien-
tado do pai se presentificar que um modelo de gozo para
os filhos inscreve-se (CASTRO, 2015).
Considerando o tema da homoparentalidade trata-
do neste trabalho, cabe-nos perguntar: homem e mulher,
neste momento do ensino de Jacques Lacan, correspon-
3 Um desejo não anônimo 111

dem ao sexo anatômico ou, de acordo com o que ante-


riormente exposto no segundo capítulo, às posições sub-
jetivas representadas na tábua da sexuação? Entendemos,
aqui, que se tratam de corpos marcados por formas espe-
cíficas de servirem-se do significante fálico e, consequen-
temente, de gozar. Apesar de reconhecermos que na lição
do dia 25 de janeiro de 1975, Lacan (1974-75/1975), ao
falar da père-version, utiliza a parentalidade heterossexu-
al para transmitir aos seus alunos sua perspectiva do pai,
considerando as lições dos anos anteriores de O Seminário,
inferimos que se trata, mais uma vez, da relação amorosa
constituída no (des)encontro de um ser sexuado do lado
direito da tábua da sexuação com um ser sexuado do lado
esquerdo da tábua da sexuação – sejam estes do mesmo
sexo anatômico ou não.
Assim, enquanto hipótese e possibilidade de leitura
do “desejo que não seja anônimo” (LACAN, 1969/2003),
apresentamos o desejo pervertidamente orientado daque-
le que exerce a função paterna por aquele que exerce a
função materna, a père-version (LACAN, 1974-75/1975).

3.4 O “desejo de filho” e “o desejo que não seja anônimo”

Considerando o trabalho até aqui realizado, propo-


mos, à guisa de conclusões que possibilitam futuras pes-
quisas e investigações teórico-clínicas, os seguintes pon-
tos: 1) os textos de Sigmund Freud consultados revelam
um “desejo de filho” marcado por fantasias e construções
subjetivas advindas do Complexo de Édipo, bem como
da disposição bissexual original do humano; 2) do ensi-
no de Jacques Lacan apreendemos duas concepções não
112 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

excludentes do “desejo que não seja anônimo” (LACAN,


1969/2003): a) o desejo não anônimo enquanto resultado
de um processo de adoção simbólica, caracterizado pela
responsabilidade de um sujeito que acolhe uma criança ou
um adolescente como seu filho (LAIA, 2008); b) o desejo
não anônimo enquanto presentificação da père-version, do
gozo pervertidamente orientado do ser faltante sexuado
do lado masculino da tábua da sexuação por aquele ser
falante sexuado do lado feminino da tábua da sexuação,
que norteia o desejo dos filhos (LACAN, 1974-75/1975;
CASTRO, 2015).
Cientes de que tais propostas teóricas, em constan-
te diálogo com a experiência clínica de psicanalistas de
orientação lacaniana que escutam homossexuais, devem
ser aprofundadas, por ora, damo-nos por satisfeitos.
Conclusão

A pesquisa teórica aqui apresentada não visou es-


gotar o tema estudado. Na realidade, percebemos que,
com o desenvolvimento da pesquisa, aprofundamentos
e outros questionamentos tornaram-se inevitáveis. Um
tema complexo e passível de ser abordado por diversas
disciplinas – o “desejo de filho” –, na perspectiva psicana-
lítica aqui apresentada, evidencia a necessidade de novas
pesquisas e investigações – ao nosso entender, principal-
mente estudos de caso.
Por ora, concluímos que a pergunta sobre a motiva-
ção para tornar-se pai e/ou mãe esteve presente em refle-
xões filosóficas e propostas teóricas antes de o surgimento
da Psicanálise. Contudo, as elaborações de Freud sobre os
motivos pelos quais os seres humanos desejam ter filhos
podem ser consideradas inovadoras por destacarem a dis-
posição bissexual dos seres humanos, os desejos incestuo-
sos das crianças e, consequentemente, seus efeitos subjeti-
vos e, também, a interferência dos aspectos inconscientes
da vida mental nas escolhas e aspirações dos sujeitos.
A releitura dos textos de Freud empreendida por
Jacques Lacan possibilitou que a dimensão da responsabili-
114 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

dade de cada sujeito para com seu próprio desejo – inclu-


sive o desejo de tornar-se pai ou mãe – fosse acentuada. Ao
ter afirmado, textualmente, que a constituição subjetiva
de uma criança relaciona-se com o não anonimato de um
desejo, Lacan (1969/2003) reafirmou sua posição teórica
e clínica – aquelas que reconhecem a impossibilidade de
um sujeito tudo falar e tudo tornar claro por meio das pa-
lavras, mas insistem na responsabilização de cada um para
com sua própria história de vida, seus anseios e escolhas.
Entendemos que os requerimentos contemporâne-
os dos homossexuais por casarem-se e adotarem crianças
e/ou adolescentes, atualiza a pergunta sobre o “desejo de
filho”, suscitando discussões e embates acadêmicos e polí-
ticos acerca da legitimidade deste desejo.
Nestes – polêmicos – debates, identificamos aquilo
que Jacques-Alain Miller (2013, p. 129) denominou “ins-
trumentalização ilegítima” da Psicanálise, isto é, a apro-
priação distorcida de alguns conceitos e noções psicana-
líticas por parte de autoridades jurídicas e religiosas com
o objetivo de justificarem suas posições preconceituosas e
homofóbicas para com os casais homoafetivos que desejam
constituir família.
A escuta – ou defesa – da singularidade, acompa-
nhada da responsabilização dos sujeitos, características da
Psicanálise, no que diz respeito à instituição familiar e suas
configurações na Contemporaneidade, mostram-se politi-
camente necessárias.
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Posfácio
Por Cristina Moreira Marcos22

(...) cabe a todo ser falante encontrar as vias de seu desejo,


que são para cada um particulares, tortuosas e
marcadas pela contingência e pelos desencontros.
(LAURENT, 2013)

O pequeno texto em epígrafe pertence à declara-


ção assinada por diversos psicanalistas intitulada Casa-
mento para todos: Contra a instrumentalização da psicanáli-
se. A utilização da Psicanálise como argumento para fins
conservadores revela uma grande distorção do ensino de
Lacan, e também de Freud. É neste sentido que o livro
de Hugo deve ser lido com especial interesse. Pensar o
desejo de filho na adoção homoparental a partir da Psi-
canálise significa interrogar acerca da validade das teses
freudianas e lacanianas, após tantas décadas de transfor-
mações e modificações históricas, sociais e culturais. As
práticas clínicas são chamadas a responder a sintomas
que exigem um constante avanço da teoria. Os desafios
22
Psicanalista. Professora e orientadora do Programa de Pós-graduação stricto
sensu em Psicologia da PUC Minas. Doutora em Psychopathologie Fondamental et
Psychanalyse; Université de Paris VII, U.P. VII, França; 2005. Temáticas de pesquisa:
Psicanálise, Psicanálise e Literatura, Arte e Estética, Psicanálise e Saúde Mental.
134 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

colocados pelo cenário contemporâneo à Psicanálise nos


levam a repensar, questionar e reavaliar diversas premis-
sas e conceitos psicanalíticos. É na medida em que a Psi-
canálise enfrenta estes desafios que ela pode avançar e
abrir novos caminhos para as intervenções clínicas. Que
as transformações sociais, políticas e econômicas se tra-
duzam em produções discursivas diferentes a cada mo-
mento da civilização e que estas determinem posições
subjetivas diferentes, é inegável.
Exatamente por se constituir como dis-
curso do Outro, como sede dos valores
e comandos de uma determinada cul-
tura, o inconsciente se revela como um
laço social diferente em cada momento
da civilização. (...) Tratar das questões
do sujeito significa, também, a possibili-
dade de ler os efeitos e as características
do controle social concretamente pre-
sente. (PINTO, 2008, p.70).

A Psicanálise é um laço social que propõe tratar os


impasses de cada sujeito como efeitos de um certo mo-
mento da civilização. Trata-se de pensar a teoria e a clínica
psicanalíticas a partir das questões do nosso tempo. É pre-
ciso compreender como se mantêm, mas também como
se transformam, as teses freudianas e lacanianas, confron-
tadas ao mundo contemporâneo. O analista é convocado a
um redimensionamento dos referenciais teóricos buscan-
do colocá-los em relação com o nosso tempo e, como afir-
ma Lacan, o psicanalista deve “alcançar em seu horizonte
a subjetividade de sua época” (LACAN, 1953/1998, p.
322). Hugo aceita este desafio.
Posfácio 135

As configurações familiares atuais, educar uma


criança sozinha/sozinho ou com outra mulher ou com ou-
tro homem, as mulheres encarregadas da família, as novas
imagens e símbolos do homem e da mulher, as diversas for-
mas de identificação, homem, mulher, mas também homo,
trans, bi e outros, o discurso em relação ao gozo sexual,
definindo-o não apenas como legítimo, mas, sobretudo,
como um bem ao qual todos têm direito, independente do
amor ou da reprodução, a reprodução assistida e a separa-
ção entre sexo e procriação são evidências da abertura de
novos caminhos e destinos para o desejo de um filho.
Ainda não conseguimos mensurar os efeitos das mu-
tações nas famílias. Hoje temos que considerar os remane-
jamentos da instituição familiar e as novas formas de vida
que se tornaram possíveis graças aos avanços da ciência e
às mudanças na civilização. Alguns setores conservadores
da sociedade alardeiam que as novas famílias homoafetivas
ameaçariam os fundamentos da sociedade e fariam desa-
parecer a diferença sexual. O discurso jurídico esforça-se
em regulamentá-las.
A Psicanálise, por sua vez, nos permite interrogar o
que muda em relação ao desejo de ter um filho, ao lugar da
criança no inconsciente do casal, ao exercício das funções
paterna e materna. O que se tornaram as famílias hoje?
O que é querer ter um filho quando reprodução e sexo
se separam, quando reina a equidade no exercício da pa-
rentalidade, quando as relações se horizontalizam em uma
espécie de comunidade fraterna que parece vir no lugar do
pai? Os efeitos das mutações da civilização sobre a família
manifestam-se nos sujeitos, em seus sintomas e modos de
136 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

gozo. Hugo se impôs o desafio de levar em conta a varie-


dade das formas das famílias contemporâneas, em particu-
lar a adoção homoparental, a partir da Psicanálise. Ora, o
discurso da Psicanálise busca fazer emergir o desejo que
produziu uma criança. “A filiação contemporânea remete,
para além das normas, ao desejo particularizado de que a
criança é o produto” (LAURENT, 2007, p. 47). Interrogar
o desejo do Outro põe em questão a angústia que denuncia
um real em jogo no nascimento/adoção da criança, isto é,
o desejo e o gozo do qual ela é o produto. Seria a criança
hoje aquilo que constitui a família?
Sobre a mãe, podemos extrair do texto freudiano
a conclusão de que o desejo de um filho é um destino da
inveja do pênis; ter um filho seria um equivalente sim-
bólico da posse do falo. Uma importante tese acerca da
maternidade se desenha nesta equivalência criança-falo e
a situa do lado da lógica fálica. Isto não quer dizer que a
fantasia de maternidade ou mesmo o desejo de um filho
não possa estar presente nos sujeitos masculinos. Vários
casos clínicos freudianos o testemunham, como Hans ou o
Homem dos Lobos. O pênis não é o falo, embora seja nas
coordenadas do Édipo e do Complexo de Castração que
Freud pense a dissimetria sexual baseada na evidência ima-
ginária dos corpos. É daí que Freud faz surgir a descoberta
da castração do outro pela criança. A diferença é, inicial-
mente representada, freudianamente, no nível do ter ou
não o pênis enquanto ele pertence a um e não ao outro e
isso tem consequências. Sabemos que em A significação do
falo, Lacan (1958/1966) passa do órgão ao significante,
contudo a referência ao corpo não é eliminável, falar do
Posfácio 137

significante não desfaz a relação com o corpo de um e de


outro, não desfaz a relação com o corpo sexuado.
Temos, em Freud, a maternidade assinalada como
uma solução para o feminino. Entretanto, a clínica nos dá
testemunhos de que a maternidade, frequentemente si-
tuada do lado da lógica fálica, não se deixa recobrir in-
teiramente por ela. Lacan abre uma outra perspectiva ao
colocar a criança como um possível objeto a para a mulher.
Ou seja, o homem toma a mulher como objeto causa de
desejo, inscrevendo a condição fetichista do desejo mas-
culino. Do lado masculino, o homem se serve, portanto,
da mulher, que toma a forma de fetiche, para encobrir a
castração. Para a mulher, o objeto do qual ela se ocupa
seria a criança.
Um pai só tem direito ao respeito, e até
mesmo ao amor, na medida em que o
dito amor, o dito respeito, é, vocês não
vão acreditar no que vão ouvir, père-ver-
sement orientado, isto é, ele faz de uma
mulher, objeto a que causa seu desejo,
mas o que uma mulher acolhe
assim não tem nada a ver com a
questão. Aquilo de que ela se ocu-
pa, é de outros objetos a, que são
as crianças, junto a quem o pai inter-
vém, portanto − excepcionalmente no
bom caso para manter na repressão, no
junto mi-dieu, a versão que lhe é pró-
pria de sua perversão. (LACAN, 1975,
grifo nosso)

Não importa somente a relação do pai com a lei,


mas também com o gozo. O amor e o respeito aos quais
138 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

o pai tem direito se devem à sua relação com a mãe como


mulher objeto causa do seu desejo, mais do que enquanto
mãe. Desse lugar perversamente orientado, a mulher se
ocupa de outros objetos a, que são as crianças. Assim, a
perversão feminina, se ela existe, encontraria na criança
sua orientação. Bem antes do seminário R. S. I., Lacan afir-
ma que: “Freud nos revela que é graças ao Nome do Pai
que o homem não permanece amarrado ao serviço sexu-
al da mãe” (LACAN, 1964/1966, p.852). A criança é um
objeto real nas mãos da mãe que, para além dos cuidados,
pode usá-lo como uma possessão. Teríamos assim a criança
na posição de fetiche.
É o que Lacan afirma, também, no Seminário 4 acer-
ca do fetichismo, no qual o sujeito encontra seu objeto,
seu objeto exclusivo (LACAN, 1956-1957/1995, p. 85).
Neste seminário, Lacan aproxima a mãe do Outro da de-
manda e a define como uma encarnação do Outro da de-
manda (MILLER, 2015), uma potência que pode satisfazer
a demanda. Aquela de quem o bebê se torna dependente,
de quem aguarda a resposta.
Contudo, se as mulheres teriam na maternidade
uma relação direta com o objeto, o objeto aparecendo no
real, vemos hoje, a partir das mutações da civilização, os
pais, homens e mulheres, diretamente conectados à crian-
ça. Laurent (2007) nos lembra que, enquanto Freud deli-
neia a criança como Ideal do eu na figura da “Sua majestade
o bebê”, Lacan desvela o estatuto de objeto da criança,
situada não a partir do Ideal, mas do gozo e do desejo. Lau-
rent afirma que a criança vem no lugar de objeto a e que
a família se estrutura a partir disto e não mais em torno
Posfácio 139

das estruturas edípicas da metáfora paterna, mas no modo


como a criança é objeto de gozo da mãe, do pai, da família
e, mais além, da civilização.
Lacan (1969/2003) também destaca como a
criança pode vir a ocupar o lugar de objeto da mãe em
Nota sobre a criança. Ele afirma que a função de resíduo
exercida pela família conjugal na evolução das socieda-
des destaca a irredutibilidade de uma transmissão de
algo que é de outra ordem que não a da vida segundo
as satisfações das necessidades, mas da constituição de
uma subjetividade implicando a relação com um dese-
jo que não seja anônimo, que se conjugam as funções
da mãe e do pai.
Neste texto, Lacan parte do fracasso das utopias
comunitárias para destacar a função de resíduo da família
conjugal. Esse resíduo é a mãe dos cuidados particula-
rizados, “nem que seja por intermédio de suas próprias
faltas” e o pai na medida em que “seu nome é o vetor da
encarnação da Lei no desejo” (LACAN, 1968/2003, p.
369). A mãe transmite, portanto, a falha no cuidado e o
pai, a Lei no desejo do Outro. O que não quer dizer de
modo algum que a mãe não possa ser portadora da fun-
ção do Nome do Pai.
Brousse (2005) nos convida a pensar a parenta-
lidade como um sintoma que se impõe às sociedades
modernas e que teria vindo em substituição ao termo
“família” a partir da passagem da autoridade paterna a
uma autoridade parental. Nela estaria implicada uma si-
metria ou igualdade entre o pai e a mãe quanto à ordem
familiar e a criança surgiria como uma espécie de mais-
140 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

valia, objeto elevado ao zênite social23. O pai e a mãe


podem ser substituídos por pares. As configurações fa-
miliares atuais, monoparentalidade, coparentalidade, ho-
moparentalidade, o testemunham. As funções materna e
paterna são hoje dificilmente situáveis e se intercambiam.
A parentalidade é o “significante único que vem substituir
pai e mãe, ele pertence à época dos Uns separados e dis-
persos, entre os quais a relação não é mais organizada pela
diferença significante, mas pela equivalência, quer dizer, o
valor comum” (BROUSSE, 2005, p. 123). No laço com a
criança, as funções são orientadas cada vez menos a partir
das identificações aos tipos ideais de cada sexo e mais pelos
modos de gozo implicados nas parcerias e alianças do par
parental. Vê-se que a família edipiana é uma das versões da
estrutura familiar e que a posição de objeto a da criança se
destaca nas novas alianças.
A pergunta colocada por Hugo acerca do desejo de
filho para o casal homoparental, inevitavelmente, caminha
do desejo à função, do pai e da mãe ao homem e à mulher.
Temos nas mãos um livro que muito me agradou. Hugo
transita com facilidade por um tema espinhoso porque
carregado de preconceitos e estereótipos e nos oferece
uma discussão clara e elucidativa a respeito do desejo de
filho, das funções materna e paterna e da diferença sexual
segundo a Psicanálise. As funções da mãe e do pai se sus-
tentam a partir de um desejo particularizado de ter um
filho. Qual o lugar ocupado por essa criança no incons-
ciente do par homoparental é a pergunta que a Psicanálise
permite destacar. Em suma, o resíduo do que caracteriza
23
Refiro-me à expressão de Lacan (1970/2003) em Radiofonia.
Posfácio 141

a família é um par e a transmissão à criança de um desejo


que não seja anônimo. É isto que Hugo coloca em evidên-
cia em seu livro.

Belo Horizonte, junho de 2016.


C. M.

Referências

BROUSSE, M. H. Un néologisme d’actualité la parenta-


lité. La cause freudienne, n. 60, p. 117-123, 2005.
LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psi-
canálise (1953). In:______. Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998, p. 238-324.
______. O Seminário, Livro 4: a relação de objeto
(1956/1957). Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
______. La signification du phallus (1958). In:______.
Écrits. Paris: Seuil, 1966. p. 685-695.
______. Du “Trieb” de Freud et du désir du psycha-
nalyste (1964). In: ______. Écrits. Paris: Seuil,
1966, p. 851-877.
______. Nota sobre a criança (1969). In:______.
Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
p.369-370.
______. O Seminário, Livro 22: R. S. I. (1974-1975).
Inédito.
LAURENT, E. As novas inscrições do sofrimento da crian-
ça. In: ______. A sociedade do sintoma: a Psicaná-
lise hoje. Rio de Janeiro: Contracapa, 2007. p. 35-58.
142 O DESEJO DE FILHO NA ADOÇÃO HOMOPARENTAL:
Uma perspectiva psicanalítica | Hugo Leonardo Goes Bento

LAURENT, E. Quem cuidará das crianças?, Opção Laca-


niana Online: Nova Série, n. 10, 2007.
MILLER, J. A. Mèrefemme. La cause du désir: Revue
de Psychanalyse, n. 89, 2015, p. 115-122.
PINTO, J. Psicanálise, feminino, singular. Belo Hori-
zonte: Autêntica, 2008.
Esse livro foi composto na tipologia Perpetua
e impresso em papel pólen 80g/m2.

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