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A criação original: A teoria da mente segundo Freud
A criação original: A teoria da mente segundo Freud
A criação original: A teoria da mente segundo Freud
E-book509 páginas8 horas

A criação original: A teoria da mente segundo Freud

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Sobre este e-book

Este é um livro para quem sempre quis conhecer a teoria de Freud sobre o funcionamento da mente, mas ainda não teve fôlego ou apetite para transitar pelos vinte e quatro volumes de sua obra. Em A criação original, Francisco Daudt inventa um personagem que o leitor pode acompanhar desde antes de seu nascimento até sua vida adulta para ver como sua alma se forma, passo a passo, segundo a teoria freudiana do aparelho psíquico.

"Leandro Konder me manda um bilhete divertido apresentando Francisco Daudt da Veiga, um psicanalista que escreve limpo e quer democratizar Freud. […] A explicação dele de 'O complexo de Édipo' não poderia ser mais clara e satisfatória, a meu ver. O livro é obrigatório para quem quer conhecer o assunto", comenta Paulo Francis.
IdiomaPortuguês
Editora7Letras
Data de lançamento15 de jun. de 2023
ISBN9786559056255
A criação original: A teoria da mente segundo Freud

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    A criação original - Francisco Daudt da Veiga

    a_criacao_original_capa_epub.jpg

    Sumário

    Prefácio

    Introdução

    capítulo 1

    O nascimento do aparelho psíquico

    capítulo 2

    A fase oral

    capítulo 3

    Teoria dos impulsos

    capítulo 4

    A fase anal

    capítulo 5

    Atividade e passividade

    capítulo 6

    Fase fálica

    capítulo 7

    O complexo de Édipo

    capítulo 8

    A crítica do complexo de Édipo

    capítulo 9

    Nascida a angústia, nascem os mecanismos de defesa

    capítulo 10

    Puberdade (saindo da fase de latência)

    capítulo 11

    As possibilidades da adultez

    Apêndice

    Sobre o autor

    Texto de orelha

    agradecimentos

    A Lucas Peccin Mendes, Daniel Accioly,

    Renato Capper, Guilherme Veiga e Tita Berredo.

    Prefácio

    Desde que me interessei pelo estudo da alma humana (ou mente, psique, psiquismo, aparelho psíquico), procurei, sem achar, um livro que me contasse sua formação passo a passo, desde a concepção, comentando as possíveis interferências em sua moldagem, fossem biológicas ou culturais. Um livro que não me deixasse perplexo, que eu lesse e entendesse. Que não fosse Freud explica, cheio de especulações esquisitas que insultam a nossa inteligência, mas dificultam nossos argumentos em contrário. Que me mostrasse de onde saíram suas deduções lógicas, como num livro de Sherlock Holmes, e não apresentasse conclusões tiradas do bolso de um colete a que eu não tivesse acesso, como num livro de Agatha Christie. Que não usasse jargão, me obrigando a estudar uma verdadeira língua estrangeira antes de abordá-lo, mas que citasse o jargão, explicando-o, para eu não ficar por fora se alguém quisesse depois me enrolar com ele. Enfim, que me desse um panorama geral da alma, presumindo que eu, como iniciante do estudo da psicanálise, precisaria começar pelo princípio, pelos conceitos, pela construção pedaço a pedaço de um aparelho que eu adivinhava complicado.

    Já que eu nunca achei o tal do livro, resolvi fazê-lo. Sua fonte principal é a obra de Freud. Seus ingredientes se misturam. Quinze anos estudando Freud, nove anos dando cursos sobre sua teoria. Cinco anos de análise kleiniana (de Melanie Klein, psicanalista e autora ausente neste livro), quase quatro de análise freudiana curiosamente próxima do velho mestre (o analista do meu analista fez sua formação com Theodor Reik, um dos primeiros psicanalistas formados por Freud), esse tempo todo discutindo com colegas, pensando, comparando ao pensamento de outros autores, a maioria sem ligação direta com a psicanálise. Esse tempo todo depurando comigo mesmo, com os clientes, com os alunos as formulações teóricas que mais se aproximassem da percepção que a gente tem de si mesmo (que eu considero como o mais fiel indicador do achado psicanalítico verdadeiro).

    Ao longo do livro foram surgindo objetivos além dos que falei lá em cima. Que ele não servisse só ao estudante de psicanálise. Que contribuísse para a psicanálise tomar seu lugar social fora do consultório, um lugar que o próprio Freud considerava como o seu principal: de instrumento de pensar a cultura e auxiliar a educação para um ser humano mais feliz (leia-se educação aqui no sentido original, ex = para fora + ducere = trazer, conduzir, ou seja, a psicanálise como instrumento de trazer para fora os elementos que o ser humano tem em si que o capacitem para a felicidade).

    E surgiu a reflexão sobre a própria psicanálise, esta ciência em construção, tão querida e tão incômoda às vezes, com seus ares pomposos de produto acabado, de dona da verdade definitiva, coisa que não é nem será nunca, tomara, se a gente não permitir que vire religião.

    Aí está o livro, para o estudante de psicanálise e para o consumidor deste produto que frequenta os consultórios. Para pais interessados em entender melhor seus filhos e filhos interessados em entender melhor seus pais. E para cada um interessado em entender melhor a si mesmo e às circunstâncias que o formaram. E chega de prefácio.

    Introdução

    A clareza é ponto fundamental neste livro. Nossa experiência de escolaridade nos deu a impressão de que, quanto mais a gente não entende um texto, mais sábio é seu autor e menos inteligentes somos nós. Pois vamos fazer um acordo logo de saída. Tudo o que não ficar claro neste livro fui eu que não soube explicar. Esta é a razão pela qual gostei de Freud. A gente lia e entendia. Também é a razão pela qual quase não há Jacques Lacan neste livro. Porque comecei a lê-lo há muitos anos e comecei a não entender nada. Parei. Meus amigos diziam que era uma leitura freudiana imprescindível (hoje em dia a maioria dos analistas e dos cursos que se dizem freudianos são lacanianos), mas que, realmente, para entender Lacan era preciso saber muito Freud. Até hoje ainda não me achei suficiente para tanto. Pode ser que chegue o dia.

    Essa vontade de clareza me parecia muito simples. Ora, se o trabalho da psicanálise era tornar claro o obscuro, tornar consciente o inconsciente, como uma teoria psicanalítica poderia causar, ela mesma, perplexidade? Porque a perplexidade na nossa cultura é muito perigosa. Nós morremos de medo de dizer não sei, porque vão nos achar umas bestas. Então, quando algo nos deixa perplexos, como um filme de Luis Buñuel, por exemplo, nossa tendência é fazer ar de esperto e acabar achando que entendemos tudo. A propósito, Buñuel dava gargalhadas com as interpretações que as pessoas faziam de seus filmes.

    Para que o livro pudesse ser lido assim, claro e direto, e ao mesmo tempo eu pudesse me estender e me aprofundar nas questões que fossem necessárias, eu o separei em duas partes. O livro propriamente dito e o apêndice. Quando for o caso, eu remeto o assunto para ser continuado no apêndice. Se você quiser, pode parar a leitura para ler o apêndice. Ou pode ler direto deixando o apêndice para depois ou para nunca. Ou ler o apêndice voltando ao livro (cada tópico do apêndice tem sua página de referência assinalada). Ou ler o livro do jeito que você inventar, afinal ele é seu. Por exemplo, sobre a clareza (Ap)1.

    Este livro foi construído no sentido inverso do que a psicanálise costuma percorrer. A investigação psicanalítica toma um adulto com um problema psíquico e procura suas origens até a mais remota infância e as circunstâncias culturais lá presentes. Como isto já foi feito muitas vezes, agora eu pude inventar um personagem que a gente fosse acompanhando desde antes de seu nascimento até sua adultez para ver como sua alma se forma, passo a passo, segundo a teoria freudiana do aparelho psíquico.

    Que aparelho psíquico é este? É sinônimo de alma (psique é alma em grego), ou psiquismo. A palavra alma tem umas conotações religiosas em nossa língua, a gente pensa na alma imortal das religiões, que vai ser julgada e sai do corpo após a morte, essas coisas. Mas aqui vamos estar usando alma neste sentido que Freud deu: de aparelho que contém e articula aquilo que existe de abstrato em uma pessoa. Lembranças, ideias, sentimentos, impulsos, desejos, medos, mecanismos de defesa contra os medos, enfim, tudo aquilo que existe em nós além do corpo. E curiosamente isto inclui o conceito que nós temos de nós mesmos e do nosso corpo, a nossa REPRESENTAÇÃO PSÍQUICA disso. Ou seja, apesar do corpo existir concretamente, nós temos uma concepção, uma ideia dele em nós, e isso não é mais concreto, é abstrato, e mora no aparelho psíquico como representação dele, como um embaixador representa um país. Este é um conceito fundamental de se entender, porque daqui em diante vamos estar lidando na maior parte das vezes com as representações psíquicas dos fatos. Com aquilo que um mesmo fato pode significar para pessoas diferentes, muitas vezes coisas completamente diversas.

    Você viu que eu escrevi representação psíquica em maiúsculas lá em cima. Toda vez que eu for apresentar um conceito teórico novo ele vai estar em maiúsculas e explicado em seguida. Agora a questão da teoria freudiana. O que vai estar escrito aqui não é teoria freudiana ortodoxa. É uma maneira de entender o que Freud escreveu, o que se chama de uma leitura de Freud. Mesmo porque não existe essa coisa de freudiano ortodoxo. Ortodoxo significa caminho certo, reto, direito, em grego. Ora, quem pode dizer o que é a leitura freudiana certa, verdadeira?. Então seria uma leitura heterodoxa? Também não. Heterodoxo quer dizer caminho diferente. Como se vê, não é antônimo de ortodoxo. O antônimo de heterodoxo seria homodoxo (caminho igual, mas a palavra nem existe). E o contrário de ortodoxo seria uma palavra que significasse caminho errado.

    Então o título deste livro significa que os textos de Freud foram tomados como base para deduzir o que acontece na construção da pessoa. Frequentemente eles vão ser citados, criticados, discutidos, comentados, mas sempre serão nosso ponto de referência nesta jornada. Isto porque eles foram a fonte mais rica de entendimento da alma que eu encontrei, mesmo quando divergi deles. Freud não só escrevia bem, mas escrevia com honestidade. Dizia que não sabia quando não sabia, acabava por deixar claras suas ambivalências (ambas as tendências contraditórias valem) e hesitações (e são inúmeras) tanto quanto suas especulações e presunções. Seu gênio está nisto, em permitir que sua obra seja lida, não como a Bíblia é lida por um religioso fundamentalista, mas como o texto de uma ciência em estado embrionário. Quem quiser tomá-la ao pé da letra vai ter que se haver com inúmeras contradições, vai ser forçado a ficar intrigado, a duvidar, a pensar por si mesmo.

    Este incômodo é fecundo. É igual ao conflito contido na neurose, foi o que criou a psicanálise e hoje nos faz achar que há alguma coisa errada com nossas vidas, que assim não pode ficar, e nos faz procurar um jeito de repensar nosso destino, seja através da busca da psicanálise, seja pela leitura de um livro como este. Este incômodo o próprio Freud constatou que trazia ao mundo, quando disse que a psicanálise produzia uma terceira ferida ao orgulho de senhor da criação que o ser humano tinha desenvolvido ao longo da história. Primeiro porque Copérnico tinha mostrado que a Terra não era o centro do Universo, que ela girava em torno do sol. Isso já causou uma celeuma enorme. O próprio Copérnico não teve coragem de publicar sua teoria, ela foi apresentada por um discípulo. E mais tarde, quando Galileu reafirmou que a Terra se movia, a Inquisição foi atrás dele, ameaçando-o com a fogueira. Ora, quando nos dão a opção entre a bolsa ou a vida, escolhemos a vida e entregamos a bolsa. Galileu também preferiu voltar atrás e dizer que não, que o Sol é que se movia. Mas, terminado o desmentido, desabafou baixinho: E, no entanto, ela se move! .

    Depois foi Darwin que teve a ousadia de dizer que o ser humano era apenas um outro animal, primo-irmão dos macacos, sobrevivente por suas habilidades e não fruto direto, produto pronto e acabado do Criador. Isto perturbava ainda mais. Porque insinuava nossa imperfeição, nosso estado transitório, a possibilidade de nossa extinção por incompetência. Naquela época, o fim do século XIX, não havia a bomba de hidrogênio e esta possibilidade parecia blasfema ao inglês vitoriano, talvez o ser humano mais cheio de si e vaidoso de sua condição de senhor do mundo que a espécie produziu. Basta dizer que eles tinham um hino que dizia Comanda, Bretanha! A Bretanha comanda o mundo... E era levado a sério!

    Agora Freud afirmava que o ser humano não era nem dono de seu próprio quintal, que havia um inconsciente em sua alma que o dominava, que o atropelava em suas vontades mais íntimas. E onde ficava o livre arbítrio, esta instituição tão querida das religiões e tão lisonjeadora ao comum dos mortais, que podia se pensar dono de seu destino? Pois foi o que Freud fez: decompôs a estabilidade de espírito de uma humanidade que se julgava perfeita e usava como expediente para esta autoimagem o varrer para debaixo do tapete assuntos como a sexualidade, as transgressões e demais sordidezes. A própria palavra psicanálise significa isto, decomposição da alma para sua compreensão, assim como análise química significa decomposição de uma matéria em seus elementos para se saber do que é feita.

    A reação foi grande [no (Ap)2 está uma discussão do conteúdo dessas reações e seus efeitos sobre a trajetória da psicanálise como ciência em formação]. [Lucas: Na minha opinião esta nota (Ap)2 é muito importante e deveria estar no texto principal] Muitos meios foram usados para anular aquela influência nefasta. Quando ele sugeriu que as crianças tinham uma sexualidade e que o abuso sedutor dos adultos era fonte comum de doença neurótica nelas, aí então que a gritaria foi enorme. A concepção vitoriana de criança era tipicamente romântica e indiferente ao mesmo tempo que a disciplina férrea fazia com que, desde que elas não incomodassem os adultos, o resto não importava. "Children are to be seen, not to be heard" (As crianças são para serem vistas, não ouvidas), dizia uma máxima educacional da época. Na mesma época, estes versos, atribuídos a Machado de Assis, davam conta desta existência dupla da infância:

    Criança bonita e meiga,

    Para os pais, anjo celeste.

    Para nós uma peste

    Que suja de manteiga

    A roupa que a gente veste.

    Bem, agora é você que está lendo o livro, tendo o mesmo contato com as teorias psicanalíticas que já provocaram tanta reação. Vamos dizer que você não tenha nenhum conhecimento formal dessas teorias. Como é que você vai saber se eu estou inventando, enrolando, distorcendo ou dizendo algo substancial e consistente? Nós só vamos poder usar um referencial, que também serve para quem tem a tal teoria: você mesmo, aquilo que você percebe sobre si mesmo e a inteligência que você tem. Esta é a vantagem da clareza, fica muito fácil saber quando uma coisa não encaixa ou quando faz sentido. Quando a gente era criança os adultos nos enrolavam com suas habilidades verbais. Quando eles queriam que a gente não entendesse alguma coisa, soletravam ou falavam numa língua estranha, como a língua do pê, por exemplo. Até hoje as pessoas que discutem conosco, com a finalidade de ganhar a discussão e não de demonstrar uma tese, se utilizam de truques verbais, do deboche, tentam nos enquadrar em posições absurdas, tudo para vencer e calar nossa boca. Se eu abrir mão dessas trucagens, procurar a maior transparência e clareza, meus argumentos ficarão o mais vulneráveis possíveis a qualquer crítica, ao mínimo insulto que eles fizerem à sua inteligência. É exatamente isto que eu quero. Se eles passarem neste teste, têm a chance de estarem certos. (Ap) 3

    Outra questão que vai ser tratada neste livro e que sempre provoca polêmica é a suposta oposição entre o que é genético e o que é cultural, entre o congênito e o adquirido no ser humano. Esta polêmica é antiga. Na época de Freud havia uma palavra mágica que encerrava várias discussões sobre a maneira de ser da humanidade: predisposição. Os alcoólicos eram alcoólicos pela predisposição, tudo que não podia ser explicado de outra forma era predisposição. Uma verdadeira panaceia (remédio para todos os males, em grego) que só fazia disfarçar a ignorância dos senhores doutores. Vou estabelecer logo o que eu penso do assunto: que esta posição é falsa. A capacidade de gerar cultura e ser influenciado por ela é, em si, um fator genético do ser humano. Primeiro uma definição. Toda vez que eu falar em cultura o sentido é o seguinte: o conjunto de aprendizados transmissíveis pelos quais o ser humano consegue sobreviver à natureza (e colocá-la a seu serviço) e consegue viver em sociedade. Além disso, o termo cultura também significa a sociedade que representa esses aprendizados. São os conhecimentos tecnológicos tanto quanto a comunidade científica que os representa. São as regras de comportamento, as leis, tanto quanto as instituições e pessoas que se proclamam seus guardiões, como religiões, governos, família, etc. É o principal instrumento que a espécie humana inventou para não ser extinta, apesar de conter a força potencial de levá-la à extinção. Nunca vai ter o sentido que se costuma dar quando se diz que fulano é muito culto. Mas eu poderei dizer: Este livro é uma contribuição minha à cultura, apesar de eu pressentir que vou discutir muito com ela por causa dele.

    Vou querer demonstrar neste livro que a cultura não é alheia à genética. Ao contrário, foi moldada por ela, pelas condições biológicas com que ela nos marcou. Mas adquiriu com o tempo uma existência de certa independência, capaz de ser discutida e redirecionada por este bicho estranho que sabe, e pior, que sabe que sabe: o homo sapiens sapiens. A capacidade de mutação da cultura é infinitamente maior que a da genética. Nossa possibilidade de intervir na cultura será sempre maior que de intervir na genética, apesar de uma coisa não impedir ou invalidar a outra. É intervindo na cultura que a gente intervém na educação de nossos filhos, em busca de uma vida melhor. É claro que, por isso, eu vou estar discutindo os fatores culturais muito mais que os genéticos, mas vou estar mostrando como um interfere no outro, como eles dialogam sempre. Há uma corrente de pensamento, o culturalismo, que despreza a influência biológica no ser humano, privilegiando, ou mesmo dando papel exclusivo, à cultura na sua construção. Não posso concordar com isto, já que a cultura surgiu como decorrência da seleção natural, como instrumento da nossa sobrevivência. E nossa sobrevivência foi ameaçada por conta de nossa fragilidade biológica.

    Este livro também contém uma tese: a de que somos educados para a tirania. Que a cultura original da lei do mais forte permanece gerando indivíduos autoritários através da hierarquia (o comando do forte, do sagrado, em grego) transportada para o nosso tipo de família, que isto tem sido o principal elemento para o fracasso da nossa busca de uma estrutura social democrática, de intercâmbio de poderes semelhantes.

    Quero que este livro seja um instrumento do leitor para questionar a cultura que o gerou e que ele, por sua vez, passou a gerar. Repare bem, nós não temos quase instrumentos para isto. Nem nos damos conta que o que somos é um resultado de nossas circunstâncias, e que elas não são absolutas, ao contrário, mudam com o tempo e com o lugar. E podem mudar com a nossa interferência.

    Vamos começar a pensar esta grande história da cultura, portanto, através da pequena história de um indivíduo.

    capítulo 1

    O nascimento do aparelho psíquico

    O que é um aparelho psíquico? É uma metáfora concreta para entender uma coisa abstrata. É como se estivéssemos dizendo: O ser humano tem um fígado, dois pulmões, um coração, um aparelho psíquico, etc., e a gente fosse estudar a formação, composição e funcionamento deste órgão, que, afinal, gerencia nossas vidas e a de muita gente que depende de nós.

    Para que serve um aparelho psíquico? Em ciência a pergunta para que serve não é uma boa pergunta. Ela supõe que as coisas existem para cumprir determinadas finalidades, um jeito de entender o mundo chamado teleológico (de teleologia, o estudo das finalidades). Assim, as girafas teriam pescoço comprido para alcançar um número maior de folhas nas árvores. Na maneira de ver de Charles Darwin, a seleção natural fez com que as girafas de pescoço curto se alimentassem menos, se acasalassem menos e sobrevivessem menos. Elas se extinguiram e as de pescoço comprido sobreviveram. Então, para responder como é que o ser humano chegou a ter um aparelho psíquico e entender afinal para que ele serve, nós já temos uma resposta básica: sobrevivência. Para negociar com o mundo e escapar da extinção.

    Como assim? Para entender o funcionamento da nossa alma vamos ver como funciona um bicho que não tem alma, uma curiosíssima galinha australiana chamada Mallee (Mallee fowl). Para pôr seus ovos ela constrói uma espécie de chocadeira, cavando na terra um buraco que forra de folhas secas, sobre elas põe ovos e os cobre de areia. As folhas fermentam e produzem calor. O sol aquece a areia e a galinha passa o tempo de gestação dos ovos passeando sobre a chocadeira, experimentando a temperatura da areia com a língua. Se está muito quente, põe mais areia. Se frio, tira. Até o momento da eclosão do primeiro ovo. Aí acontece uma coisa assombrosa. O pintinho Mallee sai do ovo, sacode a areia, não toma o menor conhecimento da existência da mãe, nem ela dele, dá uma corridinha E SAI VOANDO! Compreendeu o que se passou aí? Esse bicho nasceu pronto para enfrentar o mundo, para se alimentar sozinho, para escapar de seus perseguidores sozinho e, em breve, achar seu par e acasalar. Não precisa que ninguém lhe ensine nada, não precisa de mãe nem de pai, nem de comunidade, só tem que seguir um programa de computador que traz embutido em si, chamado instinto, sem precisar negociar coisa nenhuma com ninguém. A galinha Mallee não precisa de um aparelho psíquico. (Ap) 4.

    O bicho homem é o justo oposto da galinha Mallee. Seu bebê nasce quase completamente incapaz. Entre todos os mamíferos é o único que não consegue se mover em direção à teta da mãe no mesmo dia em que nasce. É tão descoordenado em seus movimentos que se for posto sobre uma mesa plana e deixado lá, acaba por morrer de fome e sede sem ter conseguido sequer cair da mesa. Isto é resultado da imaturidade de seu sistema nervoso, os nervos que comandam seus músculos são como fios que conduzem eletricidade. Só que nascem desencapados, causando uma série de curtos-circuitos minúsculos, que não dão choque mas resultam em contrações musculares desordenadas. E vai demorar muito para que o encapamento dos nervos se complete (esta capa se chama bainha de mielina), produzindo movimentos finos e capacidade para a criança se virar sozinha.

    Por causa disto nós precisamos, por muito tempo depois do nascimento, que os adultos façam quase tudo pela gente. Uma espécie de continuação das funções que o ventre da mãe desempenhava: proteção, nutrição e calor. Vamos dar a isto o nome de FUNÇÃO DE MÃE. De fato, a única independência que o ser humano ganha ao nascer é conseguir respirar sozinho. O resto tem que ser feito pelos adultos ligados a ele. E veja bem que eu não disse tem que ser feito pela mãe. Porque a criança precisa da função de mãe e não da pessoa da mãe biológica. Nós chamamos de função de mãe porque é a continuação do ventre, mas o pai, a avó, a tia, a babá ou outro adulto podem exercê-la igualmente. Eu imagino que a essas alturas você pode estar inquieto com a questão da importância do papel da mãe biológica em pessoa. Peço então um pouquinho de paciência que a gente já já conversa sobre isso. A função de mãe vai atender essas necessidades do bebê.

    Mas um bebê muda com uma rapidez surpreendente. Sua mudança se dá no sentido do desenvolvimento de suas capacidades. Essas capacidades se desenvolvem na direção de sua independência, de não precisar mais de alguém que desempenhe função de mãe para ele. Quando nasceu, ele já tinha as capacidades de respirar, de sugar e de chorar quando sentia algum incômodo. Mas essas capacidades estão se aprimorando a cada momento e novas capacidades estão surgindo. Elas precisam ser atendidas tanto quanto as necessidades que a função de mãe atende. Senão o bebê vai ficar um bebezão para sempre dependente dos outros. Essas capacidades que permitem ao bebê virar gente grande e ir ao mundo para negociar com ele precisam ser atendidas também pelos adultos, a criança sozinha não tem como atendê-las.

    Vamos chamar esse atendimento das capacidades de FUNÇÃO DE PAI, já que é o oposto da função de mãe, sendo complementar a ela, formando com ela um casal. É como se o parto não fosse só um momento, mas que ele fosse se dando continuamente ao longo do desenvolvimento da criança. Quando o feto ficou pronto para viver no mundo, a mãe natureza desencadeou o processo de parto, e a função de mãe diminuiu um pouco: a criança passou a respirar sozinha. Suponha agora que a gente não atendesse a capacidade que a criança tem de sugar o leite (coisa que ela não fazia dentro da barriga) e quisesse conservar a alimentação por via sanguínea, como na placenta. Nós estaríamos desempenhando função de mãe, sem dúvida, mas não estaríamos exercendo a função de parto (que significa também apartar, separar), ir separando a criança da mãe na medida em que ela é capaz de ir ao mundo. Da mesma maneira que a função de mãe, a função de pai pode ser exercida por vários adultos além do pai biológico. Quando a mãe põe a criança para mamar, ela está exercendo função de mãe (nutrição) e função de pai (atendimento da capacidade de sucção) ao mesmo tempo.

    Mas já dá para perceber que enquanto a função de mãe é de definição fácil (é a continuação das funções do ventre), a função de pai é muito mais cheia de sutilezas. Se uma se pauta pela biologia, a outra se pautará pela ideologia. Como? Porque a função de pai não consiste em atender e ajudar a desenvolver TODAS as capacidades de uma criança, mas aquelas que vão determinar um rumo para a vida da criança. Eu estou dizendo que ela vai introduzir a criança no mundo. Mas em que mundo? Vou dar exemplos extremos. O filho de um rei será introduzido num mundo, o filho de um súdito camponês em outro completamente diferente. A capacidade que uma criança pode desenvolver de cavar a terra e prepará-la para o plantio não terá o menor sentido para o filho do rei, mas pode ser vital para o filho do camponês. Está se vendo novamente que, ou a função de pai vai poder ser exercida automaticamente, sem consciência, só por tradição, porque sempre foi assim, ou "será exercida a partir da questão: O QUE EU QUERO PARA OS MEUS FILHOS? E da consequente tomada de consciência desse caminho. Novamente, seu exercício será o produto final de uma ideologia. O que eu proponho é que a gente tenha clareza dela para saber se é isso mesmo que queremos. (No fim do Ap 2 há uma discussão sobre o significado de ideologia. Só fica registrado aqui que eu a estou usando no sentido do conjunto de crenças e convicções íntimas que pautam a prática de uma pessoa ou grupo).

    Você já viu que ambas as funções são necessárias, se complementam, mas são complicadas de exercer bem, porque dependem da capacidade dos adultos de compreender com clareza as necessidades e capacidades da criança. É por isso que o segundo filho costuma ser tão mais fácil de criar, porque os pais já aprenderam linguagem de criança. A gente repara que tanto os pais quanto o segundo filho lucram com isto. O interessante dessas funções é que, se são bem exercidas, bem adaptadas ao desenvolvimento da criança, elas vão se extinguindo pouco a pouco. Cada vez menos a criança vai precisar da função de mãe, porque terá cada vez mais capacidades de se produzir sozinha calor, proteção e nutrição. Assim como cada vez menos ela vai precisar da função de pai, porque suas capacidades caminham no sentido de ela mesmo atender suas capacidades. Podia-se então traçar um gráfico das funções de pai e mãe num acompanhamento da criança em condições imaginárias ideais:

    A curva das capacidades de uma criança começa perto do zero, mas à medida que o tempo passa vai aumentando cada vez mais. Desta maneira a curva de atendimento externo (pelos adultos que exercem as funções de pai e mãe) das necessidades e capacidades vai diminuindo, enquanto a criança vai assumindo este atendimento, até que a função de mãe e função de pai se extingam, a criança não é mais criança, está criada e se criou. Vive no mundo e está pronta para dar continuidade à vida.

    Mas nós sabemos que não é isto que acontece. Inúmeros fatores concorrem para que uma criança não seja percebida e que suas necessidades e capacidades sejam atropeladas, não compreendidas. Durante este livro nós vamos estar comentando esses fatores, tanto quanto essas necessidades e capacidades. Há uma piada que dramatiza bem esses acidentes de percurso da criação:

    Mamãe, eu não quero ir à escola!

    Meu filho, você precisa ir!

    Mas mãe, eu não gosto dos alunos, eles são chatos, os professores também são chatos, tudo é chato lá!

    Meu filho, você deve ir à escola. Você já tem quarenta e três anos, é diretor dessa escola, TEM QUE IR À ESCOLA!

    Afinal, os tropeços e atropelos do exercício da função de pai e da função de mãe é que vão causar as doenças psíquicas, que é como nós chamamos as dificuldades de lidar com o mundo externo, de negociar com a cultura (talvez até as doenças corporais sejam influenciadas por isto, mas é assunto mais complicado, vou deixar como ideia a ser verificada). O mundo externo é como uma pessoa a quem somos apresentados. Se veio bem recomendados e se se apresentou de maneira agradável, aprendemos a gostar dele e se torna fácil lidar com ele. Se se parece aquela tia chata a quem devemos boas maneiras forçadas, mas que nos espeta com um bigode mal aparado quando nos beija e diz, Como está crescido!, decididamente preferimos ficar fechados no quarto. É isto a doença psíquica, ficar fechado no quarto de nossa alma e ter horror do mundo. Desde o catatônico ou o autista que desistiram dele, até gente como nós, que nos ofendemos facilmente e achamos que ninguém nos entende. Mas se isto é assim tão comum já dá para suspeitar como a cultura costuma exercer as funções de pai e mãe.

    Está bem, já deu para entender que para sobreviver nós precisamos negociar com os outros. Não dá para cumprir um programa pré-fixado como a galinha Mallee faz. Nossos programas precisam ser articuláveis, adaptáveis às situações novas, às modificações constantes do mundo externo que são ameaçadoras para a nossa fragilidade. Já entendemos a necessidade de um APARELHO psíquico. Mas como ele é? Como começa a funcionar? E quando? Você percebe como é difícil responder a essas perguntas. Nós já passamos por isso tudo, mas quem se lembra? O jeito é usar a dedução a partir do que temos certeza e do que podemos observar do lado de fora.

    Vamos começar deduzindo um estado de espírito em que o feto esteve um dia, chamado NARCISISMO PRIMÁRIO ou PROTONARCISISMO. Narcisismo significa interesse em si mesmo. É um termo que vem da lenda grega de Narciso, o mais belo dos adolescentes gregos, que despertou uma paixão avassaladora na ninfa Eco, mas sempre se esquivava dela. Como castigo os deuses fizeram com que ele se apaixonasse por sua própria imagem refletida num lago e dali não conseguisse tirar o olho, fascinado por si mesmo, até morrer de fome e sede. Proto significa primitivo, primeiro, primário, em grego. Então vamos imaginar um tempo em que o embrião está (e sempre esteve) tão protegidinho, quentinho, bem alimentado que não tem por que supor a existência de alguma coisa no mundo além dele. Na verdade, o termo narcisismo é meio impróprio, não se pode dizer que ele esteja interessado em si mesmo, ele não tem razões nem para supor sua própria existência porque para isto ele precisaria se distinguir do resto do mundo. Nem se poderia dizer que ele É o mundo, já que o mundo ainda não existe para ele. Vamos então fazer uma formulação esquisita e dizer que, neste momento, ele apenas É.

    Como é que você poderia sentir alguma coisa que se parecesse a isso? O mais aproximado é nossa hora de dormir. A gente vai, aos poucos, desligando o mundo e se recolhendo para dentro de si mesmo. Vê se tudo está trancado, se as luzes estão apagadas, vai ao banheiro para a bexiga não incomodar, vai à geladeira para a fome não perturbar, se cobre bem aconchegado, fecha os olhos, desliga os ouvidos, relaxa os músculos, deixa os assuntos chatos para amanhã, pensa umas coisas agradáveis que nos deem colo e vai afundando em direção ao esquecimento. Dali a pouco estamos embalados no nada. Estamos nos reabastecendo daquele narcisismo que ninguém nunca pode abandonar completamente. Tanto que uma das torturas mais conhecidas é impedir que a pessoa durma. Ele vai ser sempre o nosso porto seguro, ao qual a gente volta pelo menos uma vez por dia, e de onde sai para o mundo externo pela manhã, muitas vezes com relutância.

    Pois o aparelho psíquico só vai ter sentido frente a esse despertar para o mundo. O bebê-Narciso foi obrigado a tirar os olhos de si, para evitar a morte. Mas como é esse aparelho psíquico do bebê? Não se trata de um órgão corporal, uma parte do cérebro. Até pode ser que um dia ele seja traduzido em termos bio-eletro-físico-químicos, pode ser que as ciências naturais acabem achando um jeito de expressá-lo, mas atualmente os estudos em neurociência estão apenas engatinhando. O que vamos usar é a maneira abstrata de pensá-lo, deduzi-lo, e é uma maneira que sempre será útil, não vai ser aposentada quando as ciências exatas chegarem lá. O instrumento mais facilitador de se pensar o abstrato é a metáfora, a comparação.

    Assim, nós podemos comparar o aparelho psíquico da criança a uma espécie de gravador interno que pudesse comandar o corpo. Como um gravador ele tem um microfone que percebe estímulos vindos dos órgãos dos sentidos. Tem uma fita que registra e guarda esses estímulos como marcas de memória. E tem uma fonte de comando do corpo, que usa esses registros para efetuar suas ações. A maneira como Freud o esquematizou e seus caminhos para deduzir isto estão no (Ap)5.

    Vamos ver quando é que o aparelho psíquico do bebê começa a funcionar. A ultrassonografia nos mostra que os bebês dormem, acordam, chupam dedo, sonham, se agitam ainda quando estão na barriga da mãe. Eu e minha mulher tivemos uma experiência fascinante de comunicação com nossa filha em seu sétimo mês de gestação. Um dia eu dei um beijo bem estalado na barriga da minha mulher e o bebê, que então estava quietinho, se agitou todo. Será que ele estava dormindo e foi acordado pelo meu beijo? O cientista faz a hipótese e tenta repetir a experiência para confirmá-la ou não. Foi o que eu fiz. Numa hora em que ele estava quietinho, novo beijo... e novo agito! A gente o havia chamado, e ele respondeu!

    É claro que parei por aí, não ia ficar atrapalhando o sono da criança só para satisfazer a minha curiosidade. Mas dá para perceber um aparelho psíquico funcionando, já de acordo com aquele gravador-acionador que descrevi: percepção de estímulo e resposta muscular. Posso deduzir que houve registro, marca de memória (marca mnêmica, em jargão freudiano) daqueles ruídos. Mas também penso que essas marcas e esse funcionamento rudimentar ainda se parecem com o da galinha Mallee, não é ainda o aparelho psíquico que nos interessa. Por quê? Pela falta de consciência, que é o grande barato do nosso aparelho, aquilo que dá nome à espécie, o homem que sabe que sabe. Deduzo isto da seguinte maneira, vamos fazer uma experiência. Pare de ler um instante e volte sua atenção a todos os ruídos que seu ouvido puder captar. Não é espantoso? Você ouviu aquela criança chorando, aquele cachorro latindo ao longe e antes nem se dava conta de que eles estavam ali. E, no entanto, você estava ouvindo essas coisas todas. Mas sem a consciência elas não eram nada, já que ele está imerso no conforto absoluto da ausência do mundo.

    Mas um dia este conforto vai acabar. O dia em que ele precisar da intervenção do adulto para cessar seus incômodos se inicia uma nova era. Por isso vamos deixar de lado a questão casuística de se o funcionamento do aparelho psíquico começa antes ou depois do nascimento e vamos ficar com os resultados de seu diálogo com o mundo externo. Freud tomou a fome como exemplo deste diálogo. Pela primeira vez na vida a criança tem fome. É um incômodo desconhecido que entra em seu aparelho psíquico pelo microfone como uma perturbação a se ver livre. (Ap)6.

    Tendo fome, captada a perturbação, o acionador muscular do aparelho produz uma descarga automática sem consulta a registros (ainda não há marcas mnêmicas desse tipo): choro com agitação. Ora, o choro é chato. Se houve uma espécie de antropoides para quem o choro não foi chato, que achava lindo ouvir criança chorando, essa espécie se extinguiu. Na nossa espécie, se uma criança chora perto de nós, a gente recebe uma sobrecarga no nosso aparelho psíquico que nos leva a tomar uma providência para que o choro pare, livrar-se (descarga) da perturbação e assim, sentir alívio.

    Vamos examinar duas hipóteses então. A da criança ser atendida pelo adulto e a de não ser. Primeiro, se o adulto atende. A criança terá seu primeiro registro, sua primeira marca mnêmica de satisfação. Terá seu primeiro alívio. E nós teremos a primeira e mais primitiva forma de sentimento. Trata-se do par incômodo-alívio, que corresponde à forma mais antiga de DESPRAZER-PRAZER. Com essa marca de satisfação dentro do aparelho, a próxima vez que a criança sentir fome ela já terá uma alternativa à descarga automática pelo choro: recorrer à marca mnêmica, ao seu registro de satisfação.

    Isto se parece com o que acontece conosco, sentimos fome e devaneamos sobre o que nos apetece mais. Mas não é a mesma coisa, é muito mais primitivo. Nós podemos fazer o inventário da despensa, da geladeira e dos restaurantes sob a forma de pensamentos, que são símbolos sofisticadérrimos. A criança ainda não aprendeu nenhum símbolo, não pode fazer isto. Como assim? Primeiro vamos pensar o que são símbolos e sua importância em nossas vidas. Um símbolo é uma coisa menor que representa uma coisa maior. Exemplo: baleia. O que você viu foram pequenas manchinhas pretas no papel, que simbolizam sons, que juntos formam uma palavra, que é o símbolo de uma coisa. Desta maneira as minúsculas manchinhas de tinta te fizeram pensar automaticamente num mamífero descomunal que provavelmente você só conhece da televisão. Já percebeu a economia de tempo e agilidade mental que os símbolos produzem? Deu para sentir a que distância eles estão da coisa simbolizada, e como essa distância é percorrida instantaneamente?

    Mas a criança ainda não aprendeu nenhum símbolo, sua marca mnêmica está registrada com todas as percepções que seus sentidos apreenderam da coisa em si. A coisa está representada em seu aparelho psíquico como marca de memória. Em jargão freudiano é a REPRESENTAÇÃO DE COISA. Ela não pode lembrar de que mamou, ela só pode reviver as sensações táteis, visuais, olfativas, auditivas e gustativas daquela experiência. Diz-se então que ela não lembra, ela alucina. A alucinação é tão vívida quanto um sonho, só que a pessoa está acordada e não consegue distinguir entre o que está alucinando e o que está vendo.

    Há uma história clássica de Ipanema contada pelo Jaguar n’O Pasquim que mostra bem o que é alucinação. Os amigos, todos boêmios inveterados, se reuniam no bar Jangadeiro quando entrou o Hugo Bidet com um ratinho branco no ombro. Eles viram, mas fingiram que não tinham visto nada. Já experientes nas alucinações do delirium tremens (estado do alcoolismo em que a pessoa tem alucinações visuais, geralmente de pequenos animais), eles juravam que era mais uma delas e não queriam demonstrar que estavam atacados para os outros. Até que uma mocinha, claramente não alcoólica, gritou: Um rato! Aí sim, todos, aliviados, fizeram coro: É mesmo, um rato!

    Quando a criança teve sua nova fome, em primeiro lugar chorou como reação automática. Mas em seguida aconteceu a novidade: ela pode recorrer a seu registro de satisfação, sua marca mnêmica da primeira mamada, e como isto acontece sob a forma de alucinação, durante algum tempo ela repete a sensação de estar sendo satisfeita. (Ap)7.

    Mas só durante algum tempo. Sem comida o estímulo incômodo não passa, e ela volta a mover o acionador do aparelho, volta a descarregar pelo choro. Se for novamente atendida, nova experiência de satisfação ficará marcada em seu arquivo. Se isso se repetir muitas vezes, ser atendida cada vez que chorar, em breve haverá condições para que se forme o primeiro símbolo. Quando minha filha tinha dois meses, mais uma vez chorou de fome. Ela ficava em outro quarto e nós sempre a atendíamos quando ela chorava. Só que, desta vez, assim que eu acionei a maçaneta da porta para buscá-la para mamar, ela parou de chorar. Tinha acontecido o primeiro diálogo de símbolos entre nós. O ruído da maçaneta fazia parte de uma série de registros, sempre encadeados: fome >> incômodo

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