Psicanálise à brasileira
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Sobre este e-book
Na coletânea "Psicanálise à brasileira", ela carrega os sobrenomes ginga, lundu, parangolé, capoeira, maxixe e carnaval, significantes que questionam a pretensão de pureza na psicanálise e os riscos de sua subserviência epistêmica.
Os quatorze ensaios aqui reunidos celebram a contribuição de psicanalistas brasileiros, propondo teorias que refletem a complexidade e a riqueza das experiências no nosso território.
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Psicanálise à brasileira - Fernanda Canavêz
APRESENTAÇÃO
PSICANÁLISES À BRASILEIRA
Fernanda Canavêz
Em uma manhã chuvosa, na cidade do Rio de Janeiro, em outubro de 2023, demos início ao Encontro Psicanálise à Brasileira, uma realização do Grupo de Trabalho Psicanálise, Subjetivação e Cultura Contemporânea, da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP). A instituição escolhida para a realização do evento – o Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro – está localizada no campus da Praia Vermelha, zona sul da cidade, perto de alguns pontos turísticos da capital fluminense, aos pés do Pão de Açúcar. Se ônibus e vans carregados de turistas chegam com facilidade ao bairro, o mesmo nem sempre se aplica a estudantes e demais interessados em psicanálise. As constantes enchentes no nosso Estado, das quais decorrem um acréscimo de caos na rede de transporte coletivo, constituem um obstáculo a mais para quem precisa se deslocar rumo às regiões do centro em busca de conhecimentos e formação. Cariocas certamente não gostam de dias nublados, como afirma a famosa canção, mas se os versos também lembram que cariocas são diretos, vamos, então, de papo reto: a maioria dos residentes no Rio de Janeiro encontra dificuldades para transitar pelo território, uma cidade partida por cor da pele, poder aquisitivo e rede de influências.
Os membros da comissão organizadora do Encontro em questão – psicanalistas, professores universitários e cariocas – ficamos preocupados com um possível esvaziamento do evento que tínhamos organizado com muita antecedência e dedicação. A preocupação não se referia apenas ao número de participantes, mas também à expectativa de que recebêssemos diferentes perspectivas sobre a psicanálise, no desejo de partilhar distintas experiências a respeito do tema proposto, vindas de pontos diversos do nosso território. Somava-se à previsão metereológica o trágico cenário das semanas antecedentes, marcadas por uma série de operações policiais em um conjunto de favelas cariocas, concentradas no complexo da Maré (Redes da Maré, 2023), às margens do cartão postal carioca. A administração central da UFRJ recomendara, em dias de operações, a suspensão das avaliações em sala de aula e o abono das faltas.
Contrariando as previsões, pelo menos nos dias do Encontro, o sol resolveu aparecer, não tivemos notícias antes do início do evento de operações policiais e o auditório lotou. Tudo é desse mundo, surpresa também
, compôs Sérgio Sampaio. Gostaria de adicionar, além das surpresas, o interesse que a discussão sobre uma psicanálise dita à brasileira parece inspirar. Uma psicanálise que extrapole a citação de termos em alemão ou francês e se banhe do pretuguês (Gonzalez, 1984), atenta às tensões do território em que é praticada, compromissada com a história que esculpe as dores e as alegrias do povo. Uma psicanálise múltipla. Porque se existe uma psicanálise por aqui, certamente ela não é uma só. No mínimo, é feita de muitas vozes, do centro e das margens. Psicanálises à brasileira. Se, por vezes, nosso campo não é tão plural como o desejado, que se sustente a aposta em uma psicanálise mais polifônica, de muitos sotaques e abordagens, tal como o Grupo de Trabalho Psicanálise, Subjetivação e Cultura Contemporânea. E que também nosso GT possa se pluralizar cada vez mais.
Os textos aqui reunidos resultam das comunicações feitas no Encontro Psicanálise à Brasileira. Debruçada sobre esse material, sou tentada a afirmar que trazem um quê de manifesto em prol de certa psicanálise à brasileira, no sentido de descolonizar o campo psicanalítico no Brasil, livrando-o da mimetização com o centro europeu. Alguns capítulos chegam a falar sobre a exigência de desidealização e de subversão do discurso dominante na psicanálise no Brasil: rompimento com a idealização das mestrias que nos regeram, historicamente, tornando-nos submissos a argumentos de autoridade, problemáticas e termos alheios ao nosso território. Quando as autoras e os autores não lançam mão dessa operação de maneira mais explícita, são os significantes utilizados que o fazem: capoeira, parangolé, lundu, ginga, samba, abadá, carnaval, maxixe.
Sendo assim, as diferentes vozes presentes nesta coletânea buscam colocar em xeque a pretensão de pureza na psicanálise, seu pacto com a branquitude e sua subserviência epistêmica. Digno de nota é o lugar estratégico conferido à Universidade nessa empreitada, mais recentemente também em função das transformações ocasionadas a partir do Sistema de Cotas¹, que vem favorecendo o deslocamento do centro, o questionamento endereçado aos argumentos de autoridade, a democratização do ensino e a diversificação das epistemologias com as quais trabalhamos. A psicanálise, que muito já se serviu de sua presença nas universidades, felizmente não passa incólume.
É, portanto, a partir dessa aposta no múltiplo que convido quem agora me lê a percorrer os textos deste livro. Em Subjugação e violência: o traumático encontro com a alteridade no Brasil, Fabio Belo e Camila Peixoto Farias se utilizam da categoria de clichês histórico-sociais para nomear a reprodução de cenas coloniais que nos mantêm enfeitiçados pela psicanálise europeia. É preciso descolonizar as psicanálises. Para isso, é necessário, ainda, se haver com o pacto narcísico da branquitude no terreno psicanalítico, motivo pelo qual temas como as desigualdades, as violências, os silenciamentos e a colonialidade precisam estar na ordem do dia.
Romper com silenciamentos também é a tônica que ganha corpo no capítulo de Marcio Farias e Emiliano de Camargo David, de título Psicanálise e demanda negra: reflexões sobre a escuta crítica. Os autores indagam se a psicanálise e a psicologia estão suficientemente atentas às demandas de sujeitos negros. Afinal de contas, por mais que, no campo psi, esteja naturalizada a afirmação de um compromisso ético com a realidade brasileira, os autores descortinam o véu da queixa de tais sujeitos, os quais, sistematicamente, vêm denunciando que não conseguem encontrar tão facilmente uma escuta qualificada para suas angústias. Partindo desse mote, a dupla assevera que uma psicanálise à brasileira nada mais seria do que aquela perpassada por fenômenos sociopolíticos que se configuram à brasileira, tais como o racismo à brasileira. Pode a psicanálise brasileira escutar o racismo?
De maneira análoga, uma questão é gestada no capítulo Desamparo, dependência e precariedade para a psicanálise no Brasil, em que Julio Verztman e Fernanda Pacheco-Ferreira investigam se psicanalistas brasileiros estariam efetivamente aptos a escutar as afirmações de potência por parte de sujeitos sobre os quais recaem desigualdades e diversas formas de privação. Destaca-se, nesse caso, a importância da indignação como ferramenta clínica. Caso estejamos aderidos, como psicanalistas, a valores definidos por ideologias que cristalizam os marcadores sociais de privilégio, reféns de categorias e conceitos que se pretendem neutros e universais, certamente não seremos capazes de testemunhar e reconhecer a dimensão positiva e política da resistência que se faz presente por aqui no sul Global.
Extraindo as consequências dos riscos de uma psicanálise que se pretende universal, Rosimeire Bussola Santana Silva questiona por quais territórios a psicanálise praticada nas universidades transita. Isso porque há uma psicanálise à brasileira que se constitui e se fortalece a serviço das elites, ensimesmada no centro. Na conferência A experiência da Perifanálise: uma psicanálise na periferia, da periferia e para a periferia, a perifanalista relata a constituição do Coletivo Perifanálise, em São Mateus (SP), apesar das violências perpetradas por um Brasil que Finge, elitista e que se imagina isolado da pujante produção de territórios periferizados, da qual também brota a prática psicanalítica. Uma psicanálise a serviço do povo, como chegou a sonhar Sigmund Freud.
As manifestações culturais do povo são trazidas por Gustavo Henrique Dionisio e Daniel Kupermann a partir da carnavalização em Psicanálise à brasileira: parangolés e carnaval. Os autores tomam o que chamam de espirituosidade brasileira como fio condutor para a discussão de uma psicanálise parangolé. Acompanhando o caráter experimental da produção de Hélio Oiticica, o texto exalta uma psicanálise à brasileira que possa desatar fantasias, incluindo as que alimentam o autoritarismo imposto por uma lógica colonial/ocidental. Salta aos olhos – e ao corpo inteiro – a referência que fazem à alegria nos processos de subjetivação.
Em Sob o signo da inconstância: alguns pontos sobre a psicanálise que ginga, eu e Jô Gondar apresentamos a ginga psicanalítica como contraponto da colonização epistêmica evidenciada por uma psicanálise forjada como centro. Se quisermos falar nos termos de uma psicanálise à brasileira, que seja marcada pelo empuxo (gingado) à mistura. Esse movimento, vale dizer, não resulta no elogio da ideia de mestiçagem, correndo o risco do desmentido do racismo, tampouco em uma identidade, uma forma definida de vida e de pensamento. A mistura, aqui, alude a um modo de fluir, uma disposição sem fixidez, uma tendência ao oscilatório e ao improviso. Uma psicanálise viva.
A capoeira é novamente evocada no texto A subversão como núcleo da psicanálise: sujeito e indeterminação radical. Nele, Fernando Hartmann e Ivan Ramos Estevão falam sobre a proposta de uma psicanálise que se movimenta, com o potencial de não ficar presa às tentativas de apagamento das marcas significantes que compõem o inconsciente brasileiro, tais como o histórico de escravização do povo africano e sua cultura. A capoeira é signo de subversão dessa tentativa, assim como a psicanálise pode ser tomada como prática clínica capaz de subverter o discurso dominante da psiquiatra norte-americana, da religião e da ciência positivista.
A conferência de Joel Birman, intitulada Arquivos da brasilidade e psicanálise, traz a discussão sobre o colonialismo presente nas condições de emergência do discurso psicanalítico no Brasil, nos anos 20 e 30 do século XX, a partir de uma dupla inscrição. Em nosso país, a psicanálise bebeu, por um lado, da fonte do movimento modernista, o qual aponta, segundo o autor, para a desconstrução do arquivo colonial. Por outro lado, os arquivos psicanalíticos foram aqui impressos com as marcas da psiquiatrização e da normalização das ideias freudianas, em franca perpetuação da dominação colonial. Essa dupla marca nos coloca, ainda hoje, em trabalho de elaboração dessa história, no esforço de fazer frente ao imperativo colonial da brasilidade.
Tal história comparece novamente em O sexo das crianças, ontem e hoje: traduções, assimilações e resistências da psicanálise no Brasil, texto em que Daniel Coelho e Cristiane Oliveira apresentam a íntima relação entre a expectativa de controle do sexo e a apropriação da leitura freudiana da sexualidade por discursos eugenistas e higienistas. A cruzada pela educação sexual remonta ao Brasil das décadas de 1920 e 1930, mas também teve seus fantasmas despertos em nossa história mais recente, ao longo da última década, culminando com as eleições presidenciais de 2018. A linha de continuidade traçada pelos autores coloca a psicanálise em lugar estratégico para a desmontagem de falácias e verdades
sobre o sexo a serviço da normalização, convocando-nos à defesa da diversidade, da liberdade e da justiça social.
Eduardo Leal e Mariana Pombo partem do debate sobre gênero e sexualidade, em Dissidências de gênero e periferias da psicanálise: travessias possíveis, para situar a questão das identidades na experiência contemporânea, registro tomado como ponto de partida para aventar uma psicanálise marcada pela brasilidade: a partir das margens, caracterizada por nossa posição periférica e por um desejo decolonial. Para isso, os autores advogam a favor dos saberes militantes e periféricos, exigindo que o movimento psicanalítico abdique de suas conhecidas reivindicações de pureza.
Em Psicanálise brasileira: de Narciso ao perspectivismo ameríndio, Isabel Fortes e Simone Perelson engrossam o caldo da construção de uma epistemologia crítica para a psicanálise brasileira. Partindo do perspectivismo ameríndio, as autoras apostam em um movimento de contracolonização, o que só parece possível caso os psicanalistas brasileiros recusem o círculo narcísico de correlação que toma por modelo o homem branco europeu.
Marta Rezende Cardoso e Mônica Medeiros Kother Macedo, em Psicanálise à brasileira: nas fronteiras entre apropriação e criação, seguem os rastros da hibridez presente na música popular brasileira – na multiplicidade de formações rítmicas, harmônicas e melódicas – para colocar em pauta o trabalho de perlaboração que compete à psicanálise à brasileira, entre a apropriação do legado recebido de psicanalistas que nos antecederam e a criação.
É também o mote da criação que inspira Leopoldo Fulgencio, autor de Algumas contribuições de brasileiros para a psicanálise: teorias psicanalíticas do desenvolvimento e psicanálise com evidências, em sua apresentação de trabalhos passíveis de inserir a psicanálise brasileira no cenário mundial. Essas pesquisas não trazem a marca identitária de uma psicanálise propriamente brasileira, mas buscam oferecer uma contribuição que insere a teoria psicanalítica por aqui produzida na cartografia do movimento psicanalítico internacional.
Nesse sentido, Fátima Caropreso apresenta Do social ao psíquico: o percurso de Virgínia Bicudo e sua contribuição para a psicanálise no Brasil na expectativa de fazer jus à importante e original contribuição da psicanalista Virgínia Leone Bicudo, figura sobre a qual ainda parece pairar a sistemática tentativa de silenciamento em nossa área. Sensível ao imaginário social brasileiro, Virgínia se empenhou em extrapolar os limites da clínica individual de uma elite social para a criação de uma psicanálise aplicável a questões sociais e práticas.
A história dessa psicanalista lembra que o trabalho de elaboração sobre uma psicanálise à brasileira não é novidade em nossas terras, embora esbarre em muitos obstáculos, dos mais antigos aos atuais. A exigência de ultrapassar a ficção de conceitos – e de uma psicanálise – tomados como universais continua a pairar sobre o movimento psicanalítico brasileiro, para que se construa uma psicanálise efetivamente situada em seu território, aterrada e atenta aos fenômenos à brasileira: das enchentes às operações policiais, passando por carnavais, rodas de capoeira e tantos outros saberes aos quais compete à psicanálise ser permeável.
Esta coletânea aceita o convite para a difícil tarefa de pensar sobre uma psicanálise à brasileira, em movimento pendular entre contradições, alianças e resistências, no empuxo a uma psicanálise que se pretende brasileira. Nas margens daquele que foi forjado como centro, o berço europeu do movimento psicanalítico, uma psicanálise em aproximação não submissa com o legado freudiano. Psicanálise misturada, indignada, subversiva, parangolé, viva, múltipla, que ginga e dança.
¹ Por alusão à Lei 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas, que busca reduzir as desigualdades raciais, sociais e econômicas através do acesso a universidades e concursos públicos.
Referências
Gonzalez, L. (1984). Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, p. 223-244.
Redes da Maré. (2023). Ocupação Maré: o que sabemos sobre seus impactos. Disponível em: https://www.redesdamare.org.br/br/artigo/320/operacao-mare-o-que-sabemos-sobre-seus-impactos.
SUBJUGAÇÃO E VIOLÊNCIA: O TRAUMÁTICO ENCONTRO COM A ALTERIDADE NO BRASIL
Fábio Belo
Camila Peixoto Farias
No dia em que o tema deste evento foi definido vários questionamentos surgiram: existiria uma psicanálise à brasileira? Seriam várias? Como delinear minimamente alguns de seus contornos? Algumas ideias foram ganhando contornos: uma psicanálise à brasileira talvez esteja relacionada ao arcabouço teórico da psicanálise que viajou até o Brasil, trazido por psicanalistas europeus e, chegando aqui, entrou no corpo a corpo com os mais diversos contextos. Que corpos são esses que dão vida às psicanálises à brasileira? Em que contextos? Em seguida, porém, questões que parecem anteceder as primeiras emergiram: essa viagem efetivamente se realizou? Nós, psicanalistas, estamos colocando os conceitos clássicos para dialogar com a pluralidade de realidades brasileiras?
Donna Haraway (2023), filósofa, bióloga, escritora e professora estadunidense, nos indica a importância de ficarmos com um problema: o de procurarmos construir um olhar complexo para os elementos que o compõe, para o contexto sócio-histórico a partir do qual o estamos analisando e no qual ele está inserido. Ficamos por dias, semanas, meses com esse problema, com essas questões. Foi retomando a história do Brasil que pudemos